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ESCREVIVÊNCIAS: ESCRITAS CORPORAIS DE MULHERES AO VENTO. Autora: Andreza Jorge Resumo: O presente artigo visa mostrar a importância e a potência de criar espaços para estimular e possibilitar as diferentes formas de escrever história de mulheres negras e faveladas sobre suas próprias vidas partindo da analise da atuação de um projeto social comunitário chamado Mulheres Ao Vento que acontece em um território de favela, que criou coletivamente dois espetáculos cênicos usando a dança e o resgate cultural e histórico para criar e produzir. Com inspiração nas escritas literárias de Conceição Evaristo e Glória Andalzua surge a possibilidade de escrita do corpo e a noção de corpo - linguagem como conceitos chaves para marcar através do fazer dança a urgência e a necessidade de mulheres negras e faveladas ocuparem seu lugar de fala na produção, na resistência e na visibilização de seus conhecimento, culturas e saberes ancestrais, produzindo discursos contra hegemônicos, criando fontes de representatividade, resgatando epistemologias a partir das suas histórias familiares, tornando o projeto social um espaço para pensar e produzir conhecimento a partir das vivências das mulheres negras e faveladas da Maré objetivando também a disputa do entendimento de fazer e produzir cultural hegemonicamente e assim democratizar o acesso e visibilizar novos olhares sobre o fazer e produzir cultura. Palavras chave: Mulheres negras- Cultura- Dança- Favela

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ESCREVIVÊNCIAS: ESCRITAS CORPORAIS DE MULHERES AO VENTO.

Autora: Andreza Jorge

Resumo: O presente artigo visa mostrar a importância e a potência de criar espaços para

estimular e possibilitar as diferentes formas de escrever história de mulheres negras e

faveladas sobre suas próprias vidas partindo da analise da atuação de um projeto social

comunitário chamado Mulheres Ao Vento que acontece em um território de favela, que

criou coletivamente dois espetáculos cênicos usando a dança e o resgate cultural e histórico

para criar e produzir. Com inspiração nas escritas literárias de Conceição Evaristo e Glória

Andalzua surge a possibilidade de escrita do corpo e a noção de corpo - linguagem como

conceitos chaves para marcar através do fazer dança a urgência e a necessidade de mulheres

negras e faveladas ocuparem seu lugar de fala na produção, na resistência e na visibilização

de seus conhecimento, culturas e saberes ancestrais, produzindo discursos contra

hegemônicos, criando fontes de representatividade, resgatando epistemologias a partir das

suas histórias familiares, tornando o projeto social um espaço para pensar e produzir

conhecimento a partir das vivências das mulheres negras e faveladas da Maré objetivando

também a disputa do entendimento de fazer e produzir cultural hegemonicamente e assim

democratizar o acesso e visibilizar novos olhares sobre o fazer e produzir cultura.

Palavras chave:

Mulheres negras- Cultura- Dança- Favela

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Introdução

Com o passar do tempo e do progresso social, juntamente com o desenvolvimento

do sistema político vigente no Brasil, o capitalismo e a ideia de sucesso e ascensão pautada

na aparência, em um modelo criado e padronizado que segrega culturalmente homens e

mulheres, fazendo com que percam suas origens ancestrais e identidade cultural, torna-se

necessário pensar em uma alternativa para resgatar os valores de um povo, empoderando e

potencializando esses valores, seus costumes, suas características e fenótipos, uma vez que

tais padronizações pré-estabelecidas de aparências e de atitudes a serem aceitas

socialmente excluem a maior parte da população brasileira, com cor de pele mista,

transitando em etnias como negra e indígena e todas suas combinações. Descentes de

negros e índios tiveram/têm sua cultura, seus costumes, sendo estigmatizados2 e perdidos

pelo descaso e pela desvalorização, transformando os descendentes em pessoas que não se

reconhecem na sociedade como detentores de uma enorme bagagem de ancestralidade e

cultura, desvalorizando seus costumes, modos de agir, religiosidade, sua relação com a

natureza e o mundo, sua aparência física, transformando e criando pessoas que não aceitam

e se envergonham de sua cor de pele, seu cabelo e seus corpos pelo fato de não estarem de

acordo com os padrões sociais estabelecidos, de acordo com Oliveira,

No caso da sociedade brasileira, a mulher negra não tem como esconder seus estigmas: O

de ser mulher e o de ser negra. São duas condições de pessoas tipicamente desacreditadas

numa sociedade machista e racista tal qual a que vivemos. Nesse sentido a mulher negra

precisa o tempo todo aprender a lidar com situações tensas criadas com sua presença em

certos lugares sociais. (...) A exposição cotidiana da mulher negra a esses olhares de

2

O estigma foi uma palavra criada pelos gregos como referencia aos “sinais corporais com os

quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de

quem os apresentava” (GOFFMAM, 1988.p.11). O autor ainda nos fala dos tipos de estigma, a

saber: abominações do corpo (deformidades físicas), culpas de caráter individual (paixões

tirânicas, vontade fraca) e tribais de raça, nação ou religião sempre associados a atributos

depreciativos e estereótipos levando a pessoa que possui ao descrédito. O estigma surgiu da

necessidade que a sociedade sentia em classificar as pessoas de acordo com seus atributos

naturais, a fim de indicar a probalidade de inclusão ou exclusão delas em certos grupos, ou

mesmo as possibilidade de sucesso ou fracasso de cada pessoa, indicando, assim, o valor da

identidade social. N o estigmatizado a vergonha torna-se possiblidade central “que surge quando

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o individuo percebe que um de seus próprios atributos é impuro” (idem,ibdem p.17).

(OLIVEIRA, Kiusam Regina, 2008.).

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critica diante daquilo que não é socialmente aceito pode provocar reações diversas em quem

recebe essas mensagens. (OLIVEIRA, Kiusam Regina. 2008 p. 138.).

Por tais motivos, a importância de ter espaços onde mulheres negras e de classes

sociais baixas, tenham a oportunidade de contar suas próprias histórias é uma ferramenta

potente na valorização contra hegemônica de saberes e epistemologias, por isso é preciso

potencializar esses espaços e trazer a luz referenciais de mulheres escritoras das suas

próprias historias, fazendo com que assim cada vez mais mulheres se sintam motivadas e

seguras para compartilhar suas histórias através de linguagens3 diversas, como por

exemplo, as duas autoras citadas a baixo:

Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva da complacência que me

amedronta. Porque não tenho escolha. Porque devo manter vivo o espírito de minha revolta

e a mim mesma também. Porque o mundo que crio na escrita compensa o que o mundo real

não me dá. No escrever coloco ordem no mundo, coloco nele uma alça para poder segurá-

lo. Escrevo porque a vida não aplaca meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o

que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim,

sobre você. (ANZALDUA.Glória.1981 p.232).

Escrever pressupõe um dinamismo próprio do sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua

auto-inscrição no interior do mundo. E, em se tratando de um ato empreendido por mulheres

negras, que historicamente transitam por espaços culturais diferenciados dos lugares

ocupados pela cultura das elites, escrever adquire um sentido de insubordinação.

Insubordinação que pode se evidenciar, muitas vezes, desde uma escrita que fere “as

normas cultas” da língua, caso exemplar o de Carolina Maria de Jesus, como também pela

escolha da matéria narrada. A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para

“ninar os da casa grande” e sim para incomodá-los em seus sonos injustos. (EVARISTO.

Conceição. 2007. P.21.)

Mulheres Ao Vento- Um projeto social de base comunitária no Complexo da Maré

Mulheres Ao Vento é um projeto social feminista, de base comunitária que iniciou

em 2016 após a conquista do prêmio Ações Locais 2016 da secretaria de Cultura do Rio

de Janeiro. O projeto piloto, com seis meses de duração, reuniu 30 mulheres moradoras

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O termo linguagens nesse caso em específico está se referindo ao fato de ao longo do artigo

abordar a dança como linguagem e assim tratar o termo linguagem como manifestações verbais e

não verbais.

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do Complexo da Maré, com idades acima de 15 anos. O grupo vivenciou aulas teóricas e

práticas de dança a partir da discussão de temas, como raça e etnia, sexualidade, gênero,

Empoderamento negro feminino, através da inspiração de uma personagem principal, a

Orixá do panteão yorubá Oya, divindade responsável por comandar os raios e os ventos.

As participantes, que em maioria, nunca haviam tido experiências anteriores com

dança, ao longo de seis meses se encontravam semanalmente para as aulas, com o objetivo

final de ao longo do processo criar um espetáculo coletivo a partir das vivências na aula.

Os ritmos desenvolvidos nas aulas práticas são os populares, principalmente as

danças afro-brasileiras, permitindo conexões com as aulas teóricas sobre as temáticas do

projeto que giram em torno das discussões de gênero, raça e etnia, sexualidade e cultura.

Ao final do processo, o espetáculo cênico Obinrin-Ventos na Maré trouxe para o público a

temática do Empoderamento feminino a partir da inspiração na força e virtudes de Oya,

possibilitando a construção coletiva de olhares contra hegemônicos e criação de novos

referenciais de representatividade.

No ano de 2017, outro grupo de mulheres foi formado para desenvolver novamente

as metodologias propostas pelo projeto social, dessa vez com o foco nas histórias de vida

de cada participante individualmente, com a intenção de buscar referenciais

epistemológicos contra hegemônicos nas linhagens familiares e assim produzir ao final do

processo de seis meses performances artísticas individuais que formaram o espetáculo

cênico ADENTRO- Performances em Movimento, como produto final.

Os dois grupos formados pelo projeto Mulheres Ao Vento são compostos

majoritariamente por mulheres autodeclaradas negras e indígenas moradoras do complexo

de favelas da Maré, na zona norte, no Rio de Janeiro.

O complexo da Maré–

Ao pensar em um campo de pesquisa, na cidade do Rio de Janeiro, especificamente

em um território popular, em uma favela, é preciso levar em consideração as características

do lugar, das pessoas que vivem no lugar, o processo de formação desse espaço e, por

conseguinte o que diferencia essas pessoas de outras em outros espaços na cidade e até

mesmo suas relações com a cidade. Com isso, temos a necessidade de contextualizar onde

o projeto social Mulheres Ao Vento está inserido ressaltando algumas das peculiaridades

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do Complexo da Maré, utilizando

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principalmente dados empíricos de observação e atravessamentos afetivos de uma

moradora e cria4 da Nova Holanda, uma das 16 favelas do Complexo.

Entre os anos 1940 e o início dos anos 2000, o território do chamado Complexo da Maré

foi se consolidando à medida que suas comunidades iam sendo formadas, resultado de um

intenso processo de crescimento e ampliação, a partir da organização e iniciativa dos

moradores ou por politicas habitacionais do poder publico.(...) Por meio da Lei municipal

nº2.119 de 19 de janeiro de 1994, foi criado e delimitado o bairro Maré.(...) O bairro Maré

com suas 16 comunidades e quase 140 mil habitantes tornou-se o 9º bairro mais populoso

de um total de 160 oficialmente reconhecidos na cidade do Rio de Janeiro. (SANTOS,

Andréia Martins de Oliveira; SILVA, Eliana Sousa, 2013)

Os espaços populares têm como características principais o fato de serem

historicamente lugares marcados por ausências do poder público, ausências de serviços de

necessidades básicas e população oriunda majoritariamente das classes baixas, tendo sido

formados em sua maioria por famílias removidas, ocupações sem fiscalizações

governamentais e migrações entre estados do Brasil. Com esse histórico de ausências e

uma criação de identidade que parte da luta e da resistência dos moradores para ter o

mínimo de dignidade para sobreviver, cria-se um cenário com pessoas que tiveram desde

sempre seus direitos básicos negados, sua autoestima afetada e sua força física explorada,

sendo em sua maioria negros,pardos e indígenas como fruto do processo cruel e

escravocrata que estruturou a construção histórica do racismo e da desigualdade da

sociedade brasileira.

A maré, em específico, possui uma localização privilegiada, próxima as principais vias

expressas, com uma vasta oferta de transporte público, proximidade do aeroporto

Internacional e da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O complexo detém uma gama

de projetos sociais e organizações não governamentais atuando em diversos segmentos,

como esportes, cultura, educação e lazer. Tais fatores tornam a Maré um espaço

comumente frequentado por pesquisadores, por intervenções acadêmicas e iniciativas

filantrópicas e não governamentais com o objetivo de preencher lacunas governamentais.

Ainda assim, é um universo de quase 140 mil habitantes que vivem e sentem diariamente

o peso de ser morador de favela, com as frequentes incursões policiais e todas as questões

referentes à declarada guerra as drogas que vigora dentro dos espaços populares.

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Gíria para individuo que nasceu e viveu/vive maior parte da sua vida (criação) em espaços

populares, favelas.

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Ser mulher negra e ser favela

“A noite não adormecerá

jamais nos olhos das fêmeas

pois do nosso sangue-mulher

de nosso líquido lembradiço

em cada gota que jorra

um fio invisível e tônico

pacientemente cose a rede

de nossa milenar resistência.(EVARISTO. Conceição, 2008)”

A autora Lélia Gonzales, trás em seu texto Racismo e sexismo na cultura brasileira,

a importância de se fazer um recorte para além da raça e do gênero, pensar a questão classe,

e como o fato de ser mulher negra e favelada se torna um componente a mais de opressão

e desumanização.

Mas é justamente aquela negra anônima, habitante da periferia, nas baixadas da vida, quem

sofre mais tragicamente os efeitos da terrível culpabilidade branca. Exatamente porque é

ela que sobrevive na base da prestação de serviços, segurando a barra familiar praticamente

sozinha. (GONZALES, Lélia 1984, p 231.).

Os contextos supracitados atenuam a necessidade de pontuar as relações desiguais

de poder, a inequidade de gênero estabelecida na sociedade de maneira geral e fortemente

mantida e marcada nos espaços populares. Ao pensar nas favelas como espaço de ausências

de direitos, as demandas específicas referentes às mulheres se tornam maiores, fazendo

com que as mesmas tenham seus direitos violados e quase nenhuma chance de recorrer.

A partir de reflexões sobre as condições da população de mulheres negras faveladas

é imperativo destacar a posição de maior vulnerabilidade em relação às mulheres não

negras, ao pensar nas relações sociais de poder estabelecida, as mulheres negras acabam

por ocupar um posto abaixo, devido à junção dos preconceitos racial e de gênero.

Mulheres negras são criadas em uma sociedade sexista e racista não tendo acesso a

modelos positivos e representatividade desde a infância.

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No caso da mulher negra, sua identidade pode se fragmentar por conta da angustia sentida

através da não aceitação de seu próprio corpo, voltando-se contra ele, podendo buscar

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formas para uma transformação radical, com finalidade de deixar de ser, São procedimentos

perigosos, uma vez que a única referencia que a mulher negra tem de “ser”, foi construída

a partir do referencial estético que está desejando alterar completamente. Em última

instância, esta mulher está desejando sua auto-destruição. (OLIVEIRA, Kiusam 2008)

A necessidade de estimular escritas das histórias de mulheres negras e faveladas é

a mesma de torna-las foco do processo de pesquisa, insistindo nas subjetividades ativas que

faz com essas mulheres, ainda que sufocadas pela colonialidade, criem rusgas a partir de

uma não sujeição, uma forma de resistir e teimar se reinventando como potência. Uma

potência corporal vista e referenciada positivamente para que essa mulher não deseje sua

“auto-destruição” descrita na supracitação de Oliveira.

Um corpo escrita, uma dança linguagem.

(...) O corpo que dança, sendo uma unidade, é múltiplo. Nele, aspectos materiais (sua fisiologia),

mentais (seu processos cognitivos), emocionais (suas vivencias e sentimentos) e históricos (sua

temporalidade) funcionam em uma simbiose inseparável e atualizada ao longo de sua existência.

Cada um desses aspectos é singular, mas se remete a cada um dos outros, sem os quais não poderia

ser. (MOTTA, Alice, 2006 p.90)

O corpo é o foco do almejado Empoderamento5, essa produção dos significados

produzidos a partir da corporeidade feminina e negra que precisa ser esmiuçada e

investigada por ter sido historicamente alvo de exclusão e humilhação, seja através da

mídia e das atitudes socioculturais (hábitos) adquiridas no período de escravidão, como

exemplifica Gonzalez,

É por aí que a gente entende porque dizem certas coisas, pensando que estão xingando a

gente. Tem uma música antiga chamada “Nêga do cabelo duro” que mostra direitinho

porque eles querem que o cabelo da gente fique bom, liso e mole, né? É por isso que dizem

que a gente tem beiços em vez de lábios, fornalha em vez de nariz e cabelo ruim (porque é

duro). E quando querem elogiar a gente dizem que a gente tem feições finas (e fino se opõe

a grosso, né?). E tem gente que acredita tanto nisso que acaba usando creme

5

“Empoderamento” é um neologismo que vem da palavra inglesa empowerment e significa uma

ampliação da liberdade de escolher e agir, ou seja, o aumento da autoridade e do poder dos

individuoes sobre os recursos e decisões que afetam sua vida. Fala-se,então, do empoderamento

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das pessoas em situação de pobreza,ds mulheres, dos negros, dos indígenas e de todo aqueles que

vivem em relação de subordinação ou são excluídos socialmente (OIT-Organização Internacional

do trabalho.2005.p.81)

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prá clarear, esticando os cabelos, virando leidi e ficando com vergonha de ser preta.

(GONZALES, Lélia 1984 p.234.)

É preciso uma atuação direcionada para essa problemática e ampliar as discussões

levando em conta, segundo Milton Santos (2002,p.159) “três dados de base: a

corporeidade, a individualidade e a cidadania, a corporeidade tem valor central porque o

corpo é capaz de trazer dados objetivos, ainda que a sua interpretação possa ser subjetiva.”

Por isso, é importante perceber como atividades que têm o corpo como foco e suas

possibilidades de representação são fundamentais para o empoderamento das mulheres

negras e a urgência em ampliar o entendimento de corpo e dança como linguagem e escrita.

O significado atribuído a linguagem verbal só é possível ao passo que formos

capazes de imaginar algo, ativar nossa mente e nosso corpo para a construção dessa

linguagem, pois os artifícios da linguagem verbal são resultados da interação do corpo com

o mundo.

O significado na linguagem verbal se faz a partir da percepção corpórea, ou seja,

da associação das construções não verbais (a interação com o ambiente físico,

as experiências sensórias motoras – o tato, a visão, o olfato etc. – com as verbais – os signos

linguísticos). A dependência da linguagem verbal das construções não verbais é que gera a

significância das coisas, por isso o corpo, em todos os seus aspectos, suas instâncias e modo

de operar, desempenha um importante papel cognitivo na estruturação da linguagem seja

ela qual, inclusive a linguagem da dança.

(RENGEL, Lenira Peral; FERREIRA, Patrícia Cruz. 2012 p.24.).

A partir deste entendimento do corpo como linguagem e suas manifestações e

movimentos como forma de expressão se evidencia que o corpo é a base da comunicação

linguística uma vez que ele esta presente na comunicação de forma não verbal porém como

agente comunicador indispensável para a troca, para a fala e para escuta, principalmente

para expressar subjetividades formadas pelas marcas/histórias de vida dos indivíduos,

nesse caso em especifico, histórias das mulheres negras do projeto social Mulheres Ao

Vento.

Assim, a palavra “escrita” só existe porque o corpo se sentepensapercebe como escrito e

escritor. Ele traça e é traçado por emoções, pensamentos, leituras, cenas de dança... Escrita

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provém do procedimento metafórico do corpo e se faz em metáfora, ou em hipérbole

metafórica. A hipérbole é uma expressão intencionalmente exagerada com o

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intuito de realçar um pensamento, um sentimento, um movimento. Na dança podemos, por

exemplo, prezar pela repetição excessiva de movimentos e gestos do corpo, de expressões

faciais. Abusar de contraste de cores e a mistura de texturas diferentes na composição do

figurino, maquiagem e iluminação, o excesso de informações de acordo com a quantidade

de elementos cênicos. (RENGEL, Lenira Peral; FERREIRA, Patrícia Cruz. 2012, p.28.).

Obinrin-Ventos na Maré e Adentro- Perfomances em Movimento: As escritas corporais das

Mulheres Ao Vento.

Os espetáculos cênicos Obinrin-Ventos na Maré e Adentro- Perfomances em

movimento, foram criados a partir de vivências de mulheres da Maré nas oficinas teóricas

e práticas do projeto social. A partir das vivências compartilhadas, dos estímulos artísticos

apresentados e da prática corporal conjunta em forma de laboratório de criação do

movimento que surge a partir das especificidades corporais e individuais, os resultados são

as escritas das histórias de mulheres através de seus corpos. Admitindo a

dança como uma linguagem corporal e o corpo como meio dessa escrita o conceito de

escrevivência se faz presente nos espetáculos supracitados, as cenas apresentadas narram

as historias dessas mulheres negras e faveladas da maneira ao quais as mesmas decidiram

contar, possibilitando o espectador uma visão/versão da história que elas desejam que seja

ouvida, como conceitua Evaristo,

A escrevivência seria escrever a escrita dessa vivência de mulher negra na sociedade

brasileira. Eu acho muito difícil a subjetividade de qualquer escritor ou escritora não

contaminar a sua escrita. De certa forma, todos fazem uma escrevivência, a partir da escolha

temática, do vocabulário que se usa, do enredo a partir de suas vivências e opções. Toda

minha escrita é contaminada por essa condição. É isso que formata e sustenta o que estou

chamando de escrevivência. (EVARISTO, Conceição 2017)

A escrita a partir do lugar de mulher negra e favelada é a potência exemplificada

das fraturas que a insistência em ser o que se é dentro dos processos de opressão nos

permite, são as rusgas que possibilitou que a cultura negra e indígena se mantivesse não

apenas nas frestas, mas em todos os mitos fundadores da história brasileira, das historias

das mulheres negras e indígenas brasileiras.

As cenas dos espetáculos são as escritas dessas mulheres e seus olhares sobre suas

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histórias que se expõem da forma que desejam e onde desejam contar, o espetáculo teve

apresentações dentro da favela da Maré e em espaços artísticos fora do complexo da

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Maré, possibilitando a propagação dessas histórias sobre holofotes literais para um

público diverso.

Conclusão-

A voz, a escrita, o visibilidade das mulheres negras e faveladas é comumente

conquistada a partir de disputas contra todo um discurso social hegemônico, ao pensar em

todas as mulheres do dito terceiro mundo, ou de acordo com Lélia Gonzales (1988) todas

as Amefricanas, porque a ideia de América Latina não contempla a grandiosidade da

influência indígena e negra, é preciso combater a ideia de que negras e índias estão em

permanente condição de subordinação, indo contra a essa forma ideológica do

branqueamento.

Não calar, seguir falando e permeando a voz, ocupando espaços com nossos corpos

teimosos e desestruturando, ainda que aos poucos os engendramentos que nos calam,

seguimos questionando nosso lugar e o desejo incessante do calar e oprimir nossa história,

como aponta Kilomba,

Por que deve a boca do sujeito Negro ser amarrada? Por que ela ou ele tem que ficar calado

(a)? O que poderia o sujeito Negro dizer se ela ou ele não tivesse sua boca selada? E o que

o sujeito branco teria que ouvir? Existe um medo apreensivo de que, se o(a) colonizado(a)

falar, o(a) colonizador(a) terá que ouvir e seria forçado(a) a entrar em uma confrontação

desconfortável com as verdades do ‘Outro’. Verdades que têm sido negadas, reprimidas e

mantidas guardadas, como segredos. (KILOMBA, Grada 2010 p.177.)

Ainda que seja dolorosa a experiência de contar nossa história é preciso e necessário

e pensar nessas possibilidades através de um projeto social comunitário é acreditar na

transformação social e sonhar com a possibilidade da ampliação de espaços seguros para

ser, para dizer, mesmo que o colonizador/ opressor esteja desconfortável com isso.

Escrever é perigoso porque temos medo do que a escrita revela: os medos,

as raivas, a força de uma mulher sob uma opressão tripla ou quádrupla. Porém neste ato

reside nossa sobrevivência, porque uma mulher que escreve tem poder. E uma mulher com

poder é temida. (ANZALDUA, Gloria,1981 p.234.).

Amém

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No corpo de mulher fica presa sua ordem

Desejo, tesão e gozo

Cada dia ficando mais forte

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O medo de não ser e estar onde devia

Me fez acreditar que sou sua

E que nunca fui minha

Meu grito é de histeria

Mas louca eu nunca fui

Até pra me proteger das pedras

Puseram um homem, um Jesus

A pedra ainda bate em mim

E eu nunca me esquivei

E quando acerta doí, eu sei.

Sua mão que macula meu rosto

Já fez tantas de mim sangrarem

E sentir o gosto

Gosto do teu prazer em ter domínio de um corpo

Vibrante

Que pulsa a força da vida

E que morre a cada instante

A contradição de um poder de gerar e padecer

Nos deixa nessa linha fininha

Que separa o ser ou não ser

Da sua vã filosofia

Ao passo que morro cada vez que um ventre cai

Renasço e fortaleço da vida que dele sai

Nunca sua prisão vai ser possível em mim

E pela força ancestral que ainda estou aqui

Esse poder que vem do outro,

O segundo sexo, como classificam

Vive dizendo o que meu sexo significa

Corpo, alma, desejos puros e impuros

Sexualidade vazando pela fresta

Não preciso que me diga outro homem

Que meu corpo é uma festa

Quero outra voz

Pra falar mais que verdade

Voz e mulher, de alma, sangue, carne.

(JORGE, Andreza 2017 p.63)

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Referência Bibliográfica

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matéria: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2017/05/26/Concei

%C3%A7%C3%A3o-Evaristo-%E2%80%98minha-escrita-%C3%A9-contaminada-pela-

condi%C3%A7%C3%A3o-de-mulher-negra%E2%80%99

FERREIRA, Patrícia Cruz; RENGEL, Lenira Peral, Dança: escrita metafórica do corpo

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como

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