escravos e senhores no brasil no início do século xix_são paulo em 1829

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    Escravos e Senhores no Brasil no Incio do Sculo XIX :So Paulo em 1829 1

    Francisco Vidal Luna

    Herbert S. Klein

    Resumo

    A partir dos censos manuscritos nominativos, objetivamos aprofundar o estudo dapopulao escrava e seus proprietrios. Selecionamos trs localidades da Provncia deSo Paulo em 1829: Mogi da Cruzes, Itu e a prpria cidade de So Paulo. Consideramosvariveis relevantes, tais como sexo, idade, origem, estado civil, atividade do proprietrio,bem como a estrutura de posse dos escravos. Procuramos comparar nossos resultadoscom os obtidos em outras pesquisas no Brasil, assim como com evidncias existentespara outros regimes escravistas na Amrica, principalmente Estados Unidos e Antilhas. Aregio estudada representava um caso incomum, at mesmo para os padres brasileiros,na significativa ocorrncia de casamentos entre escravos, muitos dos quais, provvel,formalmente legalizados. Possivelmente em nenhum outro regime escravista da Amrica

    verificou-se tal proporo de escravos casados legalmente e em poucas provnciasbrasileiras encontram-se nveis to elevados de casamentos entre escravos, comparveisaos da populao livre.

    Palavras-chave : escravismo, demografia escrava, posse de escravos, casamento deescravos.

    Abstract

    Through an analysis of the nominal manuscript listings, it was our proposal to makea thorough study of the slave population and its owners. We have selected three

    communities in the province of So Paulo of 1829: Mogi das Cruzes, Itu and the city ofSo Paulo. Relevant variables, such as sex, age, origin, marital status, the occupation ofthe slave owner, as well as the structure of slave ownership, have been taken intoconsideration. We have attempted to compare our results with those obtained in otherresearch. work in Brazil, as well as with evidence of other slave regimes in the Americas,mainly those in the United States and in the West Indies. The region analyzed alsorevealed a rather uncommon pattern, even by Brazilian standards, in the high marriagerates among its slaves; most probably many of these marriages were performed legally. Itis possible that in no other slave regime in the Americas was such a high ratio of legallymarried slaves to be found; moreover, few other Brazilian provinces experienced such ahigh incidence of slave marriages, comparable with that of their free population.

    Key words : slavery, slave demography, slave holding/ownership, slave marriages.

    Os autores so, respectivamente, professor da FEA-USP e professor da ColumbiaUniversity.

    1 LUNA, Francisco Vidal & KLEIN, Herbert S. Escravos e Senhores no Brasil noIncio do Sculo XIX: So Paulo em 1829, Estudos Econmicos, So Paulo, 20(3):349-379, set/dez. 1990. Tambm publicado como: Slaves and Masters in EarlyNineteenth -Century Brazil : So Paulo, Journal of Interdisciplinary History, XXI, 4(Spring 1991), 549-573.

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    Nos ltimos dez anos, o regime escravista tornou-se objeto de significativo esforode pesquisa no Brasil. Os modelos tradicionais de uma sociedade assentada na "grandelavoura", apresentados no trabalho fundamental de Gilberto Freyre, no mais so aceitoscomo norma e, pela primeira vez, estuda-se de maneira sistemtica as complexidades evariaes regionais do sistema escravista2. Nesse sentido, estudos recentes sobre MinasGerais e So Paulo no final do sculo XVIII e no sculo XIX revelaram-se de grandeimportncia na determinao de novos padres e novos campos de pesquisa3. A maiorparte destes estudos baseou-se na anlise minuciosa de material contido em censos

    manuscritos.

    No caso deste trabalho, objetivamos, pela anlise das listas nominativasmanuscritas, aprofundar algumas das recentes evidncias a respeito dos escravos e seusproprietrios na regio centro-sul do Brasil. Assim, selecionamos como objeto de estudoum conjunto representativo de cidades em So Paulo, no incio do sculo XIX.

    Apesar de So Paulo apresentar-se, s vsperas da abolio, como uma das trsmaiores provncias escravistas e cafeeiras do Imprio, sua importncia chegoutardiamente. Durante a maior parte do sculo XIX, a populao escrava manteve-serelativamente reduzida, crescendo lenta e gradativamente atravs do fluxo constante de

    escravos trazidos da frica e pelo crescimento vegetativo da populao cativa existentena regio. Entretanto, havia baixa densidade na maior parte da provncia; somente pelaexpanso da produo cafeeira atravs do Vale do Paraba4 introduziu-se, finalmente,essa cultura em uma rea que combinava a produo de acar com atividades agrcolasvariadas. O caf invadiu a provncia j nos primeiros anos do sculo XIX, mas apenas emmeados da dcada de 1840 as plantaes cafeeiras de porte se instalaram na partecentral da provncia, que veio a se transformar na principal zona produtora de caf doBrasil ao longo da segunda metade do sculo (DEAN, 1976, p. 31).

    Infelizmente, as informaes demogrficas disponveis para o estudo da economiaagrcola paulista e sua populao escrava so relativamente limitadas para os propsitos

    do historiador. Alm do censo nacional de 1872 e do censo especial de escravospublicado no final daquela dcada e meados da dcada de 1880 - cujas tabelasmanuscritas originais se perderam - , as listas nominativas disponveis datam do incio dosculo XIX, quando o complexo escravista-cafeeiro estava em fase de formao. Em1829, o governo de So Paulo realizou o ltimo censo de forma ampla e baseado nomodelo colonial, compreendendo praticamente a totalidade dos municpios existentes. Aocontrrio dos censos posteriores, para este ano as listas manuscritas nominativasencontram-se disponveis para a maioria das localidades. Em 1836, tentou-se realizar um

    1 A reinterpretao de aspectos econmicos e demogrficos iniciou-se, fundamentalmente, atravs de

    vrias teses: SLENES (1976); COSTA (1977); MELLO (1977); LUNA (1980); MARTINS (1980). Estesprofessores aprimoraram seus trabalhos posteriormente, em uma srie de artigos como os de MELLO(1978 e 1983), o estimulante trabalho de MARTINS FILHO & MARTINS (1983) e os artigos sobre afamlia e a escravido de SLENES, citados adiante. A estes trabalhos sobre Minas Gerais, Rio deJaneiro e So Paulo deve ser agregado o fundamental estudo sobre os aspectos econmicos a sociaisdo regime escravista no nordeste, de autoria de SCHWARTZ (1985). Por fim, grande parte das novaspesquisas sobre temas no econmicos do regime escravista encontram-se em MATTOSO (1982).

    3 Um grupo de economistas da Universidade de So Paulo realizou minuciosas pesquisas sobre oescravismo no Brasil, baseadas em dados contidos em censos manuscritos no publicados. Estestrabalhos incluem, entre outros, os estudos de COSTA (1979); LUNA (1981) LUNA & COSTA (1982);COSTA (1982); COSTA & GUTIRREZ (1985); GUTIRREZ (1987 e 1988) e, por fim, o trabalho deMOTTA (1988b). Trabalhos mais especializados desses autores sobre proprietrios de escravos,demografia a famlia escrava sero citados adiante. Existe tambm um significativo grupo de pesquisas

    estudando o censo de Minas Gerais do incio do sculo XIX no CEDEPLAR (Belo Horizonte) e naUniversidade Federal de Minas Gerais. Veja, por exemplo, PAIVA (1988), LIBBY & GRIMALDI (1988) aGUERZONI FILHO & NETTO (1988).

    4 O estudo clssico sobre a produo de caf na regio do Vale, pertencente provncia do Rio deJaneiro, foi realizado por STEIN (1970).

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    novo censo em todo o territrio da provncia e, nas dcadas seguintes, realizaram-seesporadicamente censos locais a nvel municipal. No houve nenhum outro registro tocompleto at o primeiro censo nacional de 1872. Assim, o material manuscrito disponvelcontm dados fragmentados e especficos para algumas localidades e anos, como 1843 e1850. Portanto, nossa melhor e mais rica fonte sobre idade, sexo, origem, distribuioentre proprietrios e ocupao da populao escrava, desta importante provncia doImprio brasileiro, provm de um perodo relativamente inicial na fase de consolidao docomplexo cafeeiro-escravista.

    Nesta poca So Paulo constitua uma provncia secundria. No ano de 1823,segundo estimativas da poca, residiam em So Paulo aproximadamente 21.000escravos ou 2% do total geral de 1,1 milho de escravos existentes no Brasil e, os259.000 habitantes livres, representavam 9% do total da populao livre. Estes nmerosprovavelmente subestimam o total de escravos em aproximadamente 10.000 pessoas.Mas, mesmo agregando esse valor, a participao relativa ainda permanece abaixo dos3%. Possivelmente no ocorreu mudana dramtica nestas propores nos anosprecedentes ao censo nacional de 1872. Na estimativa nacional realizada em 1867, osescravos da provncia atingiam cerca de 75.000 escravos, ou seja, modestos 5% da forade trabalho escrava do pas, enquanto os 825.000 habitantes livres representavam 8% da

    populao livre brasileira. Contudo, o forte impacto provocado pelo caf j se fazia sentirno censo de 1872. Os 157.000 escravos da provncia representavam 10% do total dafora de trabalho escrava, resultado este surpreendente pois os habitantes livres de SoPaulo perfaziam apenas 8% da populao livre do Imprio5.

    Em 1829, o complexo cafeeiro apresentava-se em processo de formao naprovncia, ainda primordialmente produtora de acar, gneros alimentcios variados egado. A produo de caf ampliava-se no Vale do Paraba, mas o acar permaneciacomo a principal cultura agrcola de So Paulo, provncia importante na produoaucareira, porm no seu principal produtor nacional.

    Neste ensaio, tentamos descrever as principais caractersticas da fora de trabalhoescrava e de seus proprietrios, nessa fase inicial da atividade cafeeira. Selecionamospara anlise trs comunidades representativas: Mogi das Cruzes, com 2.138 escravos,situada no extremo sul do Vale do Paraba, constitua uma regio agrcola tradicional, comfora de trabalho relativamente estvel e produo variada de gneros alimentcios,contando ainda com alguma produo de aguardente; Itu, na zona central da provncia,com 4.173 escravos, significava, juntamente com Campinas, um dos dois principaiscentros produtores de acar e uma das mais importantes zonas agrcolas da provncia6;por fim, os 3.446 escravos da cidade de So Paulo formavam uma pequena, pormimportante fora de trabalho urbana, envolvida tanto em atividades artesanais noespecializadas, de pequena escala, quanto em atividades agrcolas realizadas em

    5 IBGE (1987, Tabela 1.4, p. 30). A populao estimada para So Paulo, fornecida na compilao reunidapor Clotilde Paiva no volume acima, difere substancialmente da populao escrava de So Pauloapresentada por Jos Francisco de Camargo em sua grande pesquisa acerca da populao paulista. Eleestimou uma populao escrava de 78.013 para 1836 e de 117.731 para 1854 (CAMARGO, 1981; I-III,Tabela 11, p. 18). Nossos prprios clculos parciais, partindo das listas nominativas de populao de1829 (vide nota 7), indicam que os nmeros de Camargo provavelmente so os corretos. Mesmoajustada para estes nveis mais elevados, a importncia relativa da populao escrava paulista nos doisanos pr-censo no muda significativamente. Para a dcada de 1850, a proporo aumenta paraaproximadamente 8% do total do Imprio; mesmo assumindo uma populao escrava de 40.000pessoas em 1829, ainda assim a proporo seria de apenas 3,5% do total da populao escrava

    brasileira na dcada de 1820.6 Na dcada de 1820 existiam aproximadamente 100 engenhos em Itu, com produo da ordem de100.000 arrobas de acar refinado por ano. Embora Campinas superasse temporariamente Itu naliderana da plantao de acar na provncia, nas dcadas de 1820 a 1830, Itu recuperou a posio deprincipal zona de produo aucareira em meados do sculo (PETRONE, 1968, p. 41-44).

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    unidades produtivas de porte reduzido7. Juntas, as trs comunidades, com seus 9.450escravos, participavam com pouco menos de um tero da populao escrava daprovncia8.

    Estas trs reas sintetizam as principais caractersticas da economia regional deSo Paulo neste perodo e, especialmente, do uso e controle do trabalho escravo9. Aregio de Mogi, tradicional produtora de gneros alimentcios, sofrera pouca influncia domodelo de "grande lavoura", logo representativo da agricultura paulista. So Paulo

    mostrava um ambiente misto urbano-rural e Itu representava um caso tpico da fase inicialde "grande lavoura" que, na segunda metade do sculo, predominaria na provncia.

    Considerando-se a reduzida populao escrava da provncia, o ritmo decrescimento relativamente lento, bem como a natureza incipiente da agricultura comercialna primeira metade do sculo XIX, surpreendente encontrar na regio resultadossimilares ao do Brasil, no referente ao peso dos escravos nascidos na frica, queparticipavam com pouco mais de 50% 10. Pelas prprias caractersticas distintas dasvrias reas, nota-se que tal comportamento no se mostrava homogneo nas trslocalidades consideradas (ver Tabela 1). Itu mantinha a maior proporo de escravos deorigem africana; nesta comunidade metade da populao era escrava e, desta, quase

    metade africana. Nas outras duas comunidades os africanos significavam menos de umquinto da populao escrava que, por sua vez, constitua parcela minoritria da populao(20% do total em Mogi e 35% em So Paulo). Assim, a proporo de africanos em Itucorrespondia mdia da provncia, enquanto em Mogi e na cidade de So Paulomostrava-se bastante abaixo desta mdia. Nestas duas localidades predominavamlargamente os escravos nascidos no Brasil.

    O modelo da "grande lavoura" da economia ituana evidencia-se novamente aodividirmos a populao escrava por sexo e estrutura etria. Encontramos resultadossignificativamente diferentes dos obtidos nas outras duas reas. Como o comrcio deescravos do Atlntico fazia-se, principalmente, com adultos do sexo masculino11, a

    populao africana resultava coerentemente, em mdia, mais velha, em comparao aosescravos nascidos no Brasil. Alm disso, a alta concentrao de africanos em Itu explica aproporo elevada de homens na fora de trabalho nesta localidade, em contraste com

    7 Faltam dois distritos paulistas no censo de 1829. Porm, em funo da pequena populao destes doisdistritos (872 pessoas), o nmero de escravos no computados pode ser considerado poucosignificativo. Assumindo para estes dois distritos a mesma proporo de escravos existente no resto domunicpio, podemos acrescentar mais 307 escravos aos 3.139 listados nos mapas disponveis, Os dadosindividuais sobre escravos provm das Listas Nominativas do acervo do Arquivo do Estado de So Paulo(AESP), Populao, Ordem 79 (Itu), Ordem 113 (Mogi) a Ordem 37 (So Paulo).

    8 Nossa cifra para o "total provincial' de cerca de 70% do provvel total da populao escrava provincial.Ela se baseia em uma compilao de treze das maiores localidades da provncia em 1829 (a qualtambm incorporava as cidades do Paran, que ainda faziam parte da provncia de So Paulo napoca). Exclumos a maioria das cidades do litoral que esto sendo analisadas por outrospesquisadores, em projetos de longo prazo. Entretanto, estas comunidades eram zonas com umadensidade de populao escrava relativamente baixa.

    9 Os trs municpios incluem tanto as pequenas populaes urbanas como todos os distritos rurais at olimite do prximo municpio. Por esta razo, talvez seja mais apropriado consider-los como regies ano como cidades. Esta classificao era tpica da Amrica Latina, no sculo XIX.

    10 Havia 11.464 escravos nascidos no Brasil a 13.414 africanos nos treze principais municpios daprovncia. O nmero de africanos representava 54% dos escravos de origem conhecida e 41% do totalde 32.695 escravos nestas trs comunidades (LUNA, 1988a, p. 217-221). Em reas do resto do Brasildiretamente relacionadas com o trfico, os nmeros de africanos ficavam entre 50% a 60% do total deescravos. No censo do Rio de Janeiro de 1849, por exemplo, 60% dos aproximadamente 110.000

    escravos eram africanos. Em 1856, na prpria provncia do Rio de Janeiro encontramos 40% deafricanos entre seus 184.000 escravos (SOUZA E SILVA, 1986, p. 95-104). Em uma pequena amostrade escravos lavradores na Bahia, nas principais dcadas do sculo XIX, os africanos representavam, emmdia, 60% da populao (SCHWARTZ, 1985, p. 474).

    11Vide KLEIN (1987)

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    So Paulo e Mogi. No total de 2.888 escravos africanos existentes nas trs reasencontramos elevada proporo de homens: 213 para cada grupo de 100 mulheres. Poroutro lado, entre os 3.460 escravos nascidos no Brasil o nmero de homens e mulheresera praticamente idntico.

    Pelo fato de os africanos existentes no Brasil serem estruturalmente mais velhosque os escravos nascidos no Brasil, o perfil etrio em Itu tornava-se muito mais denso nasfaixas etrias mais avanadas, quando comparado aos das outras duas localidades (ver

    Grfico 1). Esta tendncia evidencia-se claramente ao considerarmos a populaoescrava das trs localidades em conjunto (ver Grfico 2). A idade mdia dos africanossituava-se na faixa dos 25-29 anos, enquanto a dos nascidos no Brasil ficava entre 15-19anos.

    Tabela 1ORIGEM E SEXO DA POPULAO ESCRAVA DAS LOCALIDADES DE ITU, SO

    PAULO E MOGI DAS CRUZES EM 1829

    Itu Mogi So Paulo

    Homem Mulher Total Homem Mulher Total Homem Mulher Total

    Africanos 1.450 559 2.009 190 96 286 324 269 593

    Nascidos Brasil 802 801 1.603 286 309 595 650 612 1.262

    Desconhecidos 355 205 560 656 601 1.257 662 620 1.282

    Total Escravos 2.607 1565 4.172 1.132 1.006 2.138 1.636 1.501 3.137

    Total Proprietrios 1.061 1.964 1.745

    Total Populao 8.184 10.550 8.887

    Notas: Em Itu encontramos um escravo sem informao de sexo e em Mogi dois.Exclumos os trs da tabela.

    Fonte: Arquivo do Estado de So Paulo (AESP), Populao, Ordem 79 (Itu), Ordem 113 (Mogi) e Ordem37 (So Paulo).

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    Dada a normalidade na estrutura etria e na composio por sexo da populaonascida no Brasil, pode-se supor que esta populao era capaz de se reproduzirautonomamente. Estudos relativos a Minas Gerais e Paran sugerem este fato 12.Infelizmente, nas estatsticas demogrficas brasileiras, todas as crianas nascidas noBrasil foram classificadas como nativas, mesmo com pais africanos. , portanto,impossvel distinguir, a partir das informaes dos censos, o efetivo potencial dereproduo dos dois segmentos. Somados os dois grupos, a anlise da proporo entrecrianas e mulheres (como na Tabela 2), sugere a impossibilidade de a populaoescrava, como um todo, reproduzir-se por si prpria. Mesmo que a considerao arespeito de padres de mortalidade diferenciados - que por ora no podemos estabelecer- modificasse de alguma forma estes resultados, parece evidente que a populaoescrava da provncia de So Paulo no seria capaz de se reproduzir por si prpria em1829.

    12 Vide LUNA & CANO (1984); LIBBY & GRIMALDI (1988); e GUTIRREZ (1988 e 1987).

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    Tabela 2

    Relao crianas/mulheres na populao escrava em 1829(Crianas por 1000 mulheres).

    Nmeros e taxas Itu Mogi das Cruzes So Paulo Total

    Crianas 0-4 269 184 248 701Crianas 0-9 505 378 508 1391

    Mulheres 15-44 938 569 891 2398Mulheres 15-49 968 596 918 2482

    Taxa 0-4/15-44 287 323 278 292Taxa 0-9/15-44 538 664 570 580

    Taxa 0-4/15-49 278 309 270 282Taxa 0-9/15-49 522 634 553 560

    1836: 0-9/15-49 666 677 1024 814

    Nota: Dado o debate a respeito da faixa etria relevante para a relao crianas/ mulheres, apresentamosos resultados para os quatro padres utilizados na literatura demogrfica.Fonte: A mesma da Tabela 1; censo de 1836 foi obtido em Muller (1978, Tabela 5, p. 136-137 e 140).

    Pode ter havido, e provavelmente houve, um potencial para o crescimentopopulacional entre os escravos nascidos no Brasil, mas a importao continua deafricanos adultos mascarou este crescimento em potencial. A expanso da cafeicultura e,consequentemente, a intensificao no fluxo de entrada de novos escravos africanos,resultava no aumento do seu peso relativo e compensava o modesto crescimentopopulacional dos escravos nascidos no Brasil. Isto explica a tendncia para taxas de

    crescimento populacional cada vez mais negativas entre os escravos paulistasconsiderados como um todo, ao longo do sculo XIX.

    Para maior compreenso a respeito do processo de reproduo da populaoescrava, vejamos a relao crianas/mulheres (Tabela 2). Os nmeros encontradosrepresentam, em mdia, menos da metade daqueles verificados entre a populaoescrava nos Estados Unidos em 1830, que mostrava a mais alta relaocrianas/mulheres entre as populaes escravas das Amricas no sculo XIX 13, eapresentava condies autnomas de crescimento vegetativo positivo. O baixo valor darelao crianas/mulheres em So Paulo estava prximo ao da Jamaica em 1817, regiocom taxas negativas de crescimento em conseqncia da presena majoritria de

    africanos na populao escrava14

    . Mesmo assim, os valores so demasiadamentepequenos, provavelmente como resultado da subcontagem de crianas no censo de1829. Para os trs municpios, por exemplo, o censo oficial de 1837, descrito por Muller,acusa taxas ligeiramente superiores s da Jamaica (MULLER, 1978, Tabela 5, p. 132 ff).Igualmente, uma anlise recente do censo mineiro no publicado de 1831 revela umarelao crianas/mulheres (0-9/15-49) de 616, para 21301 escravos em trscomunidades. Entretanto, a cidade de Ouro Preto apresentava uma taxa de 429, inferior de So Paulo (PAIVA, 1989, Tabela 1). Estes resultados sugerem uma estrutura

    13 A proporo de crianas menores de dez anos de idade para cada 1.000 mulheres entre 15-19 nos EUAem 1829 era 1.484. Vide STECKEL (1982, p. 241).

    14 A proporo para a Jamaica, a maior populao escreva das Antilhas Britnicas, estava na ordem de399 crianas na faixa de 0-4 anos para cada 1.000 mulheres, entre 15-44 anos. Vide HIGMAN (1984 , p.356). Os nmeros situavam-se tambm consideravelmente abaixo das estimativas para Trinidad em1813: proporo de 434 crianas escravas na faixa de 0-4 anos para cada grupo de 1.000 escravasentre 15-49 anos (JOHN, 1988, p. 128).

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    demogrfica do regime escravista brasileiro mais semelhante s Antilhas Britnicas doque ao continente norte-americano, embora estimativas mais precisas a respeito dacapacidade de reproduo somente podero ser obtidas com o conhecimento das taxasde mortalidade e de natalidade.

    As listas nominativas manuscritas de 1829 tambm contm informaes a respeitoda situao matrimonial dos escravos, um aspecto da vida escrava, minuciosamenteexaminado na ltima dcada, alterando-se a tendncia da literatura tradicional que a

    ignorava. Estudos recentes revelaram padres peculiares e surpreendentementeincomuns do sistema escravista brasileiro15. Uma pesquisa demonstrou a existncia detrs geraes de famlias em comunidades escravas abertas - isto , comunidadesafetadas pelo mercado de escravos com migraes freqentes - e tambm identificou quea maior parte das vendas de escravos no mercado interno fazia-se em unidadesfamiliares16. Ainda mais surpreendente foi a descoberta de altas taxas de casamentoslegais entre os escravos paulistas17. Nossos resultados, para as trs localidades,demonstram uma proporo de casamentos semelhante verificada em censos maisrecentes. Os censos provinciais de 1872 e 1887 em So Paulo, contm, como casados,respectivamente 29,1% a 22,8% dos escravos adultos, cifras que se aproximavam dasencontradas meio sculo antes. Similarmente, estas trs comunidades mostraram os

    mesmos padres de casamento e diferenciais entre homens e mulheres relativamentesemelhantes s demais localidades da Provncia em 1829 18. Surpreendentemente, aspropores de casamento entre escravos adultos no diferia das relativas populaolivre da provncia, tanto branca como de cor. As unies consensuais representavam opadro, pois, em 1872, poca do primeiro censo nacional, os casados representavamsomente 28,7% dos adultos livres em So Paulo19. Estes resultados de So Paulo, noincio do sculo XIX, relativos aos escravos, reproduziram-se tambm em outras regiesbrasileiras. Em Minas Gerais, por exemplo, a proporo dos escravos adultos casadosalcanava um tero dos adultos em 1831. Neste caso, entretanto, entre os adultos livres,os casados representavam mais da metade da populao20. Por fim, na principal reacafeeira paulista, em meados do sculo XIX, presenciou-se a maior incidncia de

    15 Duas boas pesquisas sobre a literatura tradicional incluem MOTTA (1988a, p. 104-160) e SLENES(1988). Algumas das questes e evidncias, mais recentes so discutidas em SAMARA (1988), assimcomo nos artigos citados adiante.

    16 Vide o estudo pioneiro de FRAGOSO & FLORENTINO (1987).17 Uma forma de verificar se os casamentos entre os escravos revestiam-se de forma legal realizou-se

    atravs da anlise de diversos documentos, nos quais apareciam dados sobre o mesmo escravo, com aespecificao de sua situao matrimonial, A pesquisa demonstrou a consistncia da informao, dandolegitimidade ao termo constante nas listas nominativas de populao, que representa a fonte originalbsica da maioria dos trabalhos sobre famlia escrava. Vide METCALF (1989).

    18 SLENES (1976, p. 447, Tabela 9-8). As trs comunidades selecionadas no s tinham taxas em comumcom as outras treze comunidades do censo de 1829, como tambm apresentavam taxas similares a

    estas comunidades em censos anteriores. Vide LUNA (1989). As taxas tambm se situavam prximasdaquelas anotadas para as comunidades do Paran. Vide COSTA & GUTIRREZ (1984). Aqui as taxasde 20% a 24% dos escravos adultos casados representavam a metade da verificada entre as pessoaslivres. Segmentados pela cor, notamos no haver diferena entre escravos negros ou mulatos - apesardos negros libertos estarem normalmente na faixa dos 40%, enquanto os brancos casados perfaziampouco menos de 50% da populao livre adulta branca.

    19 Ibid., p. 456. A cifra para brancos era de apenas 29,3%, para os mulatos livres 26,7% e para os negroslivres 25,5%. Inegavelmente So Paulo mostrava resultados incomuns nestas propores dematrimnios. Resultados mais tpicos obtiveram-se a partir do censo de 1831, de dois ricos municpiosdo sudeste de Minas Gerais que possuam 40.000 pessoas livres e 15.000 escravos. Nestas localidadesverifica-se que aproximadamente 1/3 dos escravos adultos (pessoas acima de 12 anos de idade) eramcasados, em comparao com os 213 de adultos livres casados (GUERZONI FILHO & NETTO 1968, p.499-501).

    20 GUERZONI FILHO & NETT0 (1988, p.501). Um caso especial foi a fazenda jesuta de Santa Cruz no Riode Janeiro com 1.347 escravos em 1791. Aqui as taxas de casamento entre os escravos mostravam-seextraordinariamente elevadas: 68% dos adultos homens e mulheres estavam nesta categoria. Somente anatureza especial dos proprietrios pode explicar esta taxa extraordinariamente alta e nica (GRAHAM,1976, p. 382-85).

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    escravos legalmente casadas do Brasil e provavelmente de toda a Amrica21. A razo daelevada proporo de escravos casados em So Paulo e Minas no fcil de sercompreendida, pois no se verificava em outras reas do pas. No Nordeste22 e no Rio deJaneiro23 as taxas de casamento de escravos mostravam-se baixas. No se podedeterminar se o clero mineiro e paulista exerceu maior empenho na instituio docasamento ou se os plantadores locais se preocupavam menos com as implicaes docasamento de seus escravos. Contudo, tal padro manteve-se ao longo de todo o sculoXIX, conforme comprovam documentos de variados tipos.

    Os censos mais recentes de So Paulo mostram, de forma consistente, acorrelao entre a proporo de escravos casados e a quantidade de escravos possudapor cada um dos proprietrios. Quanto maior o nmero de escravos de propriedade de ummesmo dono maiores as probabilidades de casamento entre os cativos adultos24.Considerando-se o desequilbrio quantitativo existente entre os sexos, no surpreende aocorrncia de maior porcentagem de mulheres casadas do que de homens casados (verTabela 3) 25.

    A correlao entre quantidade de escravos de uma propriedade e a proporo decasamentos sugere uma tendncia para os casamentos ocorrerem dentro de suas

    unidades; neste caso, ampliando-se o nmero de escravos, aumentava a probabilidadede se encontrar um cnjuge adequado.

    Tabela 3Taxas de casamento entre escravos (15 anos e mais) em So Paulo, 1829 (1)

    Itu (%) Mogi das Cruzes(%)

    So Paulo (%) 3 localidades (%) Total 13centros

    (%)H M Total H M Total H M Total H M Total

    1-5 17 18 18 18 20 19 9 10 10 14 15 14 176-10 17 22 19 23 33 27 14 17 15 17 23 20 26

    11-15 20 45 28 26 38 31 19 20 19 21 33 26 30

    16-20 25 38 29 37 37 37 23 19 21 26 32 28

    21-40 28 59 38 34 52 41 23 32 27 28 51 36 36

    41 + 34 73 47 25 37 30 28 23 25 33 60 43 34

    Total 26% 48% 34% 24% 30% 27% 16% 16% 16% 23% 32% 27% 28%Nmero 2065 1085 805 672 1149 1058 4019 2815 22887

    Notas: (1) Casados incluem casados e vivos. O nmero de adultos refere-se aos escravos com 15anos e mais.

    Fonte: Idem Tabela 1. Para a anlise do total das treze localidades, veja-se LUNA (1989, Tabela 3).

    21 Esta colocao original desenvolvida por Slenes em sua tese foi muito bem aceita em anos recentes.Vide Ibid, cap. 9. Num estudo detalhado das plantaes de Campinas, em 1872, encontrou taxas aindamais altas do que as de 1829. Assim, para 76 donos com 1.975 escravos, o total de escravos adultoscasados era de 41 % (30% dos homens adultos a 62% das mulheres) (SLENES, 1987, p. 225).

    22 Vide a discusso de SCHWARTZ (1985, p. 382ff).23 KARASCH (1987, p. 289). Em 1839 somente 1,5 casamentos para cada 1.000 escravos eram

    registrados, comparado com os 9,4 por 1.000 para pessoas livres. Ademais, dada a idade mdia maiselevada da populao escrava, predominantemente africana, estes nmeros seriam proporcionalmentemenores para os escravos se somente a populao adulta fosse considerada.

    24 Em Campinas, no ano de 1872, encontrou-se resultado similar (SLENES, 1987), assim como no

    municpio paulista de Lorena em 1801; vide COSTA, SLENES & SCHWARTZ (1987, p. 252).25 Esta mesma diferena na proporo de casamentos por sexo dos escravos ocorria nos 15.000 escravosdo sudoeste de Minas Gerais, no censo de 1831. Enquanto 28% dos homens adultos (12 anos a mais)eram casados, 47% das mulheres escravas se encontravam nesta categoria (GUERZONI FILHO &NETTO 1988, p. 502).

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    Observaes referentes a 413 casamentos de escravos nos Estados Unidos,baseadas em penses requeridas aps a guerra civil por vivas de ex-escravos,mostravam ser maior a probabilidade de casamentos entre cativos de diferentesproprietrios medida que os plantis tornavam-se menores. Isto pode ser compreendidoa partir dos problemas relacionados com a insuficiente disponibilidade de escravoshomens elegveis nos pequenos plantis. Entretanto, outras pesquisas realizadas, tendopor fonte testamentos e registros das plantaes, mostram uma surpreendente correlaonegativa entre a quantidade de escravos da propriedade e a fertilidade (pesquisas que

    infelizmente no fornecem informaes suficientes a respeito dos casamentos entre osescravos). Isto no parece ser ocasionado pela pouca disponibilidade de cnjugeshomens. Nos dados referentes s localidades aqui estudadas em 1829, note-se taxas decasamento correlacionadas positivamente com a quantidade de escravos da propriedade,mas a proporo crianas/mulheres no evidencia relao importante com o nmero deescravos possudos. Aparentemente, isto sugeriria ser a taxa de fertilidade, nas maioresplantaes, menor que nas propriedades menores; resultado coincidente com os obtidosnas estatsticas americanas, que apontam na mesma direo. Porm, com asinformaes disponveis, torna-se difcil interpretar a razo deste fato. Steckel sugere apossibilidade de as maiores plantaes, sendo mais antigas e mais estveis (com menosvenda de escravos), enfrentarem maiores problemas com o tabu do incesto e,

    consequentemente, apresentarem menor proporo de casamentos entre os escravos ereduzida taxa de crianas/mulheres. Entretanto, no h evidncias concretas paraconfirmar estas suposies26.

    Em contraste, uma pesquisa sobre casamentos e unies consensuais no incio dosculo XIX, nas plantaes escravistas das Antilhas Britnicas, encontrou uma correlaoentre a proporo de escravos adultos casados e a quantidade de cativos da propriedade,tal como So Paulo em 1829. Como nos Estados Unidos, evidenciou-se tambm umpercentual relativamente alto de casamentos de escravos, nos quais marido e mulherpertenciam a diferentes proprietrios. No caso de Barbados, por exemplo, na dcada de1820, cerca de 30% das unies conjugais envolviam tais casamentos. Entretanto, os

    resultados de Barbados no esclarecem sobre a eventual existncia de correlao entretais matrimnios e a quantidade de escravos na propriedade. Por fim, resultados para asAntilhas Britnicas das dcadas de 1810 e 1820 diferem substancialmente dos nossosreferentes provncia de So Paulo em 1829, pois mostram os escravos africanos comum acesso menor ao casamento do que os escravos nativos (HIGMAN, 1975, p.369-371).

    No caso brasileiro, os poucos trabalhos que trataram da questo parecem indicar epouca freqncia dos casamentos entre escravos de diferentes donos27. Entretanto,devem ter ocorrido nas pequenas propriedades unies familiares estveis e, talvez,matrimnios legais, pelas mesmas razes apresentadas no caso norte-americano. provvel que e correlao entre tamanho da propriedade e casamento estivesse

    26 STECKEL (1982, p. 270, Tabela 12, bem como a discusso sobre estas variveis na p. 257 ff). Em seutrabalho original sobre o tema, GUTMAN (1978, p. 131), sugere categoricamente que a permisso para ocasamento dos escravos fora de suas unidades estava basicamente relacionada falta de homens nasunidades menores. Nas unidades maiores tais matrimnios no se constituam em norma. Tambmreala as relaes pr-nupciais - ou o que os outros qualificam de casamentos experimentais - comopadro para uma importante minoria de escravas, Ibid, p. 60 ff.

    27 Um dos poucos estudos existentes baseou-se em dados do municpio de Santana do Parnaba, prximo atual cidade de So Paulo. Dos 569 casamentos de escravos ocorridos entre 1726 a 1820,aproximadamente 93% eram entre escravos de um mesmo dono. Embora 30% dos casamentos deescravos ocorressem entre escravos a pessoas livres, ainda assim mantm-se o padro geral, pois

    geralmente o cnjuge livre era empregado do dono do escravo. Por fim, no pequeno nmero de casos decasamentos entre escravos de diferentes proprietrios (denominados broad marriagespela historiografiados Estados Unidos), verificou-se que os diferentes proprietrios mantinham entre si algum tipo derelao pessoal (METCALF, 1989, p. 55-56). Slenes encontrou o mesmo resultado em seu estudo sobreum grupo de plantaes de Campinas no censo de 1872. Vide SLENES (1987, p. 220).

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    particularmente relacionada com a maior disponibilidade de parceiros masculinos empotencial. Por fim, os poucos dados disponveis nos estudos brasileiros mais recentessugerem pouca diferena entre as taxas de casamento de escravos africanos e nascidosno Brasil e, se alguma diferena houve, seria uma maior proporo de casamentos entreos escravos africanos do que entre os nascidos no Brasil28.

    Um aspecto evidenciado pelos dados aqui analisados a forte presena dosescravos africanos na agricultura comercial. Assim, verificamos que os proprietrios

    dedicados produo aucareira possuam aproximadamente 30% da totalidade dosescravos e mais da metade dos africanos (vide Tabela 4). Isto significa que os africanossituavam-se nos maiores agrupamentos de escravos, tais como as fazendas de acar29.Porm, ao considerarmos apenas as culturas no aucareiras, desaparece a relaoentre a origem dos escravos (africanos e nascidos no Brasil) e o porte da propriedade. Acorrelao identificada entre o tamanho do proprietrio e sua vinculao atividadeaucareira permite entender porque os proprietrios de escravos de Itu apresentavam emmdia 11 escravos por proprietrio, enquanto os senhores das outras duas localidadespossuam, em mdia, a metade desse valor. Como resultado, em Itu encontramos maisda metade dos escravos em plantis de 21 ou mais escravos, enquanto a mediana naposse de escravos, nas outras duas localidades, situava-se na faixa dos 6 a 10 escravos

    (vide Tabela 5). Se considerarmos os escravos das trs localidades agregadamente,verificamos que o peso de Itu influencia os resultados no tocante posse de escravos doconjunto. Assim, embora nesse agregado de 1.477 senhores a mdia de escravos porproprietrio fosse apenas 6, encontramos mais de um tero dos cativos em plantissuperiores a vinte escravos, evidenciando a importncia da emergente agriculturacomercial na provncia de So Paulo. Em contraste, uma pesquisa referente ao incio dosculo XVIII em Minas Gerais, com um contingente 2.120 proprietrios de escravos,mostrou uma situao diferente. Embora a mdia de escravos possudos nessaspropriedades se mantivesse pouco abaixo de 7, somente uma pequena porcentagem doscativos encontrava-se em unidades acima de vinte escravos30.

    Tabela 4Ocupao do proprietrio e origem dos escravos para o total das trs localidades

    (em percentual)

    Atividades Africanos Nascidos no Brasil Desconhecidos Total

    Produo de acar 52,5 33,8 15,9 33,9

    Produo de aguardente 1,7 5,7 4,8 4,1

    Cultivo de cana 4,9 1,0 0,3 2,0

    Cultivo de caf 0,0 3,6 7,2 3,6

    Gneros alimentcios 16,6 22,6 28,1 26,1Atividades no agrcolas 24,3 23,3 43,6 30,3

    Total (%) 100,0 100,0 100,0 100,0

    Nmero total (1) 2803 3130 2860 8793Nota: (1) Para 654 escravos no foi possvel identificar a atividade do proprietrio.Fonte: Idem tabela 1.

    28 De fato, pelos dados das trs localidades, 32% dos escravos africanos adultos eram casados,comparado com os 27% dos escravos adultos nascidos no Brasil.

    29 Enquanto 56% de todos os escravos nas trs comunidades pertenciam a grupos de 15 ou menosescravos, apenas 43% dos africanos pertenciam a tais grupos. Por outro lado, 24% dos africanos nas

    trs localidades pertenciam a grupos de 41 ou mais escravos, contra 16% do total de 9.449 escravos dastrs comunidades.

    30 LUNA (1983, p. 30). No conjunto das quatro localidades mineradoras de Minas Gerais em 1718, os 2.120proprietrios de escravos possuam, em mdia, 6,9 escravos cada; porm, apenas 27% dos escravoseram possudos por senhores com 21 ou mais cativos.

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    Tabela 5

    Distribuio dos escravos por tamanho do proprietrionas trs localidades em 1829

    Faixa denmero

    escravos

    Itu Mogi das Cruzes So Paulo Total

    nmero % acum. nmero % acum. nmero % acum. nmero % acum.

    1-5 503 12 790 37 1081 34 2374 25

    6-10 417 22 531 62 845 61 1794 44

    11-15 452 33 296 76 416 75 1164 56

    16-20 442 44 119 82 204 81 765 64

    21-40 1137 71 262 94 403 94 1801 84

    41 + 1222 100 140 100 190 100 1552 100

    Total 4173 2138 3139 9450

    Fonte: idem tabela 1.

    Esta importncia dos maiores proprietrios na posse de escravos parecerelacionar-se, especificamente, com a natureza agrcola da sociedade paulista. J em1804, uma pesquisa em dez municpios com mais de 17.000 escravos e 2.827proprietrios - incluindo Itu e Mogi das Cruzes, mas no So Paulo, identificou-se umaestrutura de distribuio de escravos quase idntica de 1829. Apesar de a mdia ser de6 escravos por senhor, 26% dos cativos situavam-se em grupos de 5 ou menos, e 14%em segmentos de 20 ou mais31. Pode-se assumir, apesar da falta de dados censitriospara perodos posteriores, que esta concentrao de escravos em propriedades maioresse ampliaria ao longo daquele sculo, pois o modelo de grande produo comercial de

    acar verificado em Itu se transformava, tambm, no padro das novas propriedadescafeeiras que se desenvolviam em outros municpios da provncia32. Enquanto asfazendas dedicadas ao cultivo de gneros alimentcios em geral possuam, em mdia, 5escravos por unidade, nas plantaes aucareiras de Itu e Mogi das Cruzes a unidadeprodutiva possua, em mdia, 26 a 28 cativos (vide Tabela 6). Mesmo na indstria deaguardente, considerada em geral uma produo secundria, encontramos grandesunidades na provncia de So Paulo. Em Mogi das Cruzes, por exemplo, tais agricultores,com mdia de 11 escravos possudos, detinham, em conjunto, uma participaosignificativa dos cativos do local (13%). Em fazendas produtoras de alimentos, asunidades mdias apresentaram metade deste nmero de escravos. Em Mogi e SoPaulo, com uma produo de gneros alimentcios mais significativa do que em Itu(absorvendo 50% do total da populao escrava no primeiro municpio e 28% nosegundo, comparado com apenas 14% de Itu), encontramos, em mdia, apenas 4escravos por unidade.

    31 LUNA & COSTA (1983, p. 211-221). As percentagens de escravos foram calculadas a partir do pontomdio das estimativas da Tabela 4 desse artigo.

    32 Um indcio desse fato pode ser identificado na distribuio de escravos encontrada na cafeicultura jneste perodo inicial. Assim, no municpio paulista de Jacare, onde 58 % dos 1.298 escravos seengajavam na produo de caf neste perodo, apenas 9% dos escravos na cafeicultura eram mantidosem grupos de 5 ou menos cativos, enquanto 50% ficavam em grupos de 21 ou mais (LUNA, 19886, p.32-34). Curiosamente, uma anlise de um censo populacional similar de 1825, no publicado, para uma

    importante zona pecuria em dois municpios do sul, numa rea do atual Estado do Paran, tambmexibiu este padro de concentrao de escravos em unidades maiores, diferentemente do identificadoem reas no produtoras de caf ou acar. Verificou-se que nas propriedades de gado, 2,5% dosescravos ou menos eram encontrados em unidades de 4 ou menos escravos, enquanto 39%situavam-se em unidades de 20 escravos ou mais (GUTIRREZ, 1989, p. 15)

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    Tabela 6

    Distribuio dos escravos na agricultura nas trs localidades em 1829

    Itu Mogi das Cruzes So Paulo

    Mdiaescravos

    NmeroProprietrios

    Mdiaescravos

    NmeroProprietrios

    Mdiaescravos

    NmeroProprietrios

    Produo acar 26,3 113 28,0 2 11,3 3Produo de aguardente 6,0 1 10,9 26 15,1 7

    Cultivo de caf 5,0 1 6,5 58 1,0 1

    Gneros de subsistncia 5,1 94 4,0 265 5,3 140

    Atividade no agrcolas 3,7 162 3,2 106 4,1 420

    Total 11,0 371 4,7 457 4,6 571

    Desvio Padro 15,3 6,6 4,9

    Nmero escravos (1) 4067 2130 2606

    Notas: (1) Informaes perdidas: Itu (9), Mogi das Cruzes (4) e So Paulo (67).

    Fonte: Idem tabela 1.

    Embora os nmeros para a fora de trabalho por engenho sejamconsideravelmente altos em Itu e Mogi das Cruzes, representam, de fato, valoresrelativamente baixos, se comparados com os padres das plantaes brasileiras deacar daquele perodo. Na Bahia, centro mais avanado da produo aucareira doBrasil no comeo do sculo XIX, os engenhos de acar possuam em mdia 66 escravospor propriedade entre 1816-1817; mesmo no Rio de Janeiro, no final do sculo XIX, amdia situava-se em 36 escravos por propriedade (COSTA, 1988, p. 113; SCHWARTZ,1985, p. 446). Estas cifras indicam que as plantaes de acar existentes em Itu, degrande importncia para a provncia, apresentavam reduzido porte para os padres dasdemais reas aucareiras no Brasil.

    Nas plantaes comerciais predominavam, em geral, unidades com nmero deescravos superior ao encontrado em propriedades envolvidas com outras atividadeseconmicas. Assim, a mdia dos comerciantes proprietrios de escravos destas trslocalidades (vide Tabela 7) resultou 5, enquanto para os artesos donos de escravos onmero mdio por unidade alcanou 2 a 3 escravos. Em relao aos proprietriosenvolvidos em atividades de transporte, a mdia elevou-se para 6 a 8 escravos.Infelizmente, no caso de proprietrios de escravos que exerciam posies relevantes

    naquela sociedade, tais como membros das Foras Armadas, clrigos, profissionaisliberais ou funcionrios da administrao pblica, as informaes contidas nas listasnominativas no permitem uma anlise apropriada a respeito do tipo predominante deutilizao dos escravos em atividades como: trabalho domstico, artesanato ouagricultura. Outra dificuldade colocava-se quando ocorria mais de uma atividade para oproprietrio. Neste caso, consideramos aquela mais diretamente relacionada produo.As categorias ocupacionais voltadas administrao, Igreja e os Servios tinham poucarelevncia no tocante posse de escravos em Mogi das Cruzes (3%) a Itu (5%).Entretanto, a situao modificava-se em So Paulo, onde 28% dos escravos pertenciam atais indivduos.

    Ao examinarmos as informaes referentes aos proprietrios de escravos, notamoscertas tendncias. Somente um tero dos chefes de fogo em cada uma dessaslocalidades possua escravos. Dentro deste pequeno grupo constitudo de senhores, oshomens controlavam entre dois teros e quatro quintos do total de cativos em cada uma

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    das localidades e 73% dos escravos se considerarmos as trs reas em conjunto (videTabela 8). Embora minoritrias, as mulheres apresentavam um peso relativo no total deescravos possudos, proporcionalmente sua participao no conjunto dos proprietrios:representavam 26% dos senhores e controlavam aproximadamente 21 % dos cativos.Nota-se, entretanto, uma profunda diferena quanto independncia econmica entrehomens e mulheres, como se observa polo exame do estado civil e ocupaes exercidaspelos dois segmentos.

    Tabela 7

    Nmero mdio de escravos por proprietrio e por atividade do proprietrio

    Itu Mogi das Cruzes So Paulo

    Mdiaescravos

    NmeroProprietrios

    Mdiaescravos

    NmeroProprietrios

    Mdiaescravos

    NmeroProprietrios

    Agricultura 16,3 214 5,0 352 5,8 154Artesanato 1,8 41 2,2 38 2,5 90

    Clrigos 2,4 11 3,4 9 4,0 25

    Funcionrios pblicos 3,0 2 2,5 4 5,0 22Oficiais militares 1,5 2 5,2 61

    Profissionais liberais 3,9 9 3,0 1 3,3 19

    Capitalistas 4,8 31 3,5 2 6,6 24

    Comrcio 4,5 41 4,6 41 4,9 108

    Transportes 6,4 11 1,0 1 8,2 5

    Servios em geral 2,0 1

    Diaristas 1,3 3 4,5 2

    No classificados 2,4 9 1,7 6 2,4 60

    Total 11,0 371 4,7 457 4,7 571

    Nmero de escravos 4067 2130 2606

    Notas: Havia o seguinte nmero de informaes perdidas: Itu (9), Mogi das Cruzes (4) e So Paulo (67).Fonte: Idem Tabela 1

    O tipo de atividade produtiva, na qual se utilizavam os cativos, exerceu profundainfluncia na posse de escravos. Sem dvida, a especial importncia da produoaucareira em Itu influenciou sobremaneira a forma como os cativos se distribuam entresenhores. Nesta localidade, encontramos metade dos proprietrios de escravosexistentes na cidade de So Paulo. Entretanto, a populao escrava em Itu era superior

    (em mais de mil pessoas) quela existente em So Paulo. Como em Itu a mdia deescravos possudos correspondia ao dobro daquela verificada em So Paulo, pode-seentender os resultados obtidos com o ndice de Gini - quando o utilizamos para medir aconcentrao na posse de escravos -substancialmente maior em Itu comparativamente aSo Paulo, indicando, portanto, maior concentrao na primeira33. Curiosamente, Mogidas Cruzes, rea dominada pela cultura de gneros alimentcios, e So Paulo, comcaractersticas fortemente urbanas, produziram coeficientes de concentrao de escravospraticamente idnticos.

    33 Igual padro de maior desigualdade na posse de escravos tambm identificou-se no censo de 1829 norecm-formado municpio cafeeiro de Bananal - um dos primeiros nas zonas paulistas de caf. Nestemunicpio, os 195 senhores de escravos possuam, em mdia, 11,7 escravos, e o ndice de Gini resultou0,657 - semelhante ao de Itu (MOTTA, 1989, p. 2-5).

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    Tabela 8

    Nmero de escravos por sexo e condio do proprietrionas trs localidades, em 1829.

    Itu Mogi das Cruzes So Paulo Total

    Escr. Propriet. Escr. Propriet. Escr. Propriet. Escr. Propriet.

    Masculino 3107 267 1657 369 2130 439 6894 1075

    Feminino 862 106 363 90 780 193 2005 389Herana 25 1 25 1Ordens religiosas 42 2 118 2 160 4Pessoa Jurdica 137 4 137 4No consta 269 6 229 6Total(Escr. e Prop.)

    4173 380 2138 461 3139 638 9450 1479

    Mdia escravospor proprietrio

    11,0 4,6 4,9 6,4

    Desvio padro 15,3 6,6 7,3 10,2

    ndice de Gini (1) 0,610 0,524 0,513 0,583

    Total Chefes fogo 1061 1964 1745 4770

    % fogos comescravos

    36 23 37 31

    ndice de Gini (2) 0,860 0,888 0,822 0,871

    Notas: (1) ndice de Gini da distribuio de escravos entre proprietrios de escravos.(2) ndice de Gini da distribuio de escravos entre chefes de fogos.

    Fonte: Idem Tabela 1.

    Estas diferenas relativas no ndice de concentrao entre as trs localidadesdiminuem ao incluirmos todos os fogos e no somente aqueles com escravos. Nas trsreas os fogos com escravos constituam um universo minoritrio. Por esse novo critriode medida encontramos um padro de concentrao bastante elevado, sugerindo ser aposse de escravos em si determinante, na prtica, de uma caracterstica de elite.Entretanto, existe alguma diferenciao nos resultados das trs comunidades. So Paulorepresentou a rea de menor concentrao e Itu constitui, primeira vista, uma surpresa,apresentando um ndice de Gini menor do que Mogi das Cruzes. Isto se deveprovavelmente ao fato de a posse de escravos em Itu encontrar-se mais disseminada

    entre a populao como um todo. Dessa forma, o peso dos no proprietrios resultavamenor, refletindo-se em um ndice de concentrao tambm menor.

    Aprofundando o exame das caractersticas dos proprietrios de escravos notamosdiversas especificidades deste grupo de pessoas livres. Em primeiro lugar, uma idademdia consideravelmente alta, comparativamente aos demais grupos da populao,inclusive escravos africanos. Em geral, a mdia de idade dos senhores, homens oumulheres, situava-se em torno dos 45 anos34) Este resultado, aparentemente incomum,no deve ser considerado inesperado, pois a posse de escravos constitua umempreendimento oneroso, do qual apenas uma minoria da populao conseguiaparticipar. Os escravos representavam, inequivocamente, um ativo acumulado ao longo

    de uma vida de rendimentos e, embora as heranas constitussem uma importante fonte34 Os proprietrios do sexo masculino apresentavam idade mdia (45 a 47 anos) um pouco inferior s

    proprietrias (48 a 52 anos).

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    de obteno de escravos, jovens herdeiros no assumiam a posse de seus bens atalcanar um perodo relativamente avanado de suas vidas. Estas trs localidadesparecem diferir de outras no Brasil, neste perodo, pelo fato de, aparentemente, no havercorrelao significativa entre a idade do senhor e o nmero de escravos possudos - isto, o efeito do acmulo de riqueza na forma do escravos atravs do tempo no se mostrapresente nas reas consideradas35.

    Os censos fornecem indcios interessantes quanto s ocupaes exercidas pelas

    mulheres proprietrias de escravos. Encontramos grande proporo de mulheres solteirasou vivas com participao superior as 90% entre as proprietrias, enquanto entre oshomens o percentual de casados alcanava dois teros de seus membros (vide Tabela 9).Como os proprietrios dos dois sexos possuam idade mdia semelhante, esta diferenano estado civil sugere a possibilidade de maior participao de heranas como fonte deobteno de escravos entre as mulheres do que entre os homens e que as mesmas noatuavam, de modo geral, como agentes economicamente independentes. Deve-sechamar a ateno para uma importante exceo ao padro encontrado para asproprietrias. Trata-se das artess, quase exclusivamente costureiras, normalmentesolteiras, proprietrias de escravos empregados presumivelmente como artfices ouajudantes. Este grupo pode ser encontrado nas trs localidades, mas mostrava-se

    particularmente importante em So Paulo e Mogi das Cruzes.

    Tabela 9

    Idade e estado civil dos proprietrios de escravos nas trs localidades em 1829

    Itu Mogi das Cruzes So Paulo

    Escravos Propriet. Escravos Propriet. Escravos Propriet.

    Homens 3107 267 1657 369 2130 439

    Casados 2731 217 1415 306 1317 258Solteiros 124 28 140 39 541 137Vivos 215 21 102 24 196 40Desconhecidos 37 1 76 4

    Mulheres 862 106 363 90 780 193

    Casadas 19 7 19 9 17 6Solteiras 116 37 40 12 202 75Vivas 727 62 304 69 537 108Desconhecidas 24 4

    Total 3969 373 2020 459 2910 632

    Fonte: Idem Tabela 1.

    As mulheres costureiras (50) ou tecels (3) representavam mais de um quarto dasproprietrias de escravos em So Paulo, com mdia de 2,4 escravos. Entre estasmulheres encontramos 30 solteiras, 23 vivas e 3 casadas. Apesar de as mulheres

    35 COSTA & NOZOE (1989, p. 18-17). Os autores encontraram correlao positiva entre o nmero mdiode escravos possudos e a faixa etria dos donos, se excludos os grandes proprietrios - ou seja,aqueles com 25 ou mais escravos -, j que estes escravos foram provavelmente herdados e nocomprados. Nos nossosdados, mesmo excluindo-se ao escravos pertencentes aos senhores com 25 ou

    mais cativos, a correlao entre a idade doa proprietrios e a quantidade de escravos possudos em Ituainda resultava insignificante (-0,0189). Tampouco encontrou-se um resultado significante em qualquerdas trs localidades, quando se excluam as mulheres. Porm, os nmeros que os autores acimaencontraram para a idade mdia de senhoras de escravos (49,3 anos) aproximam-se dos nossos para1829 (ibid. p. 2).

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    tambm controlarem estas atividades em Mogi das Cruzes, nesta rea de caractersticasmais rurais as vivas predominavam (21 casos), seguidas pelas casadas (5). Havia 11mulheres nessas duas atividades em Itu e, surpreendentemente, o padroassemelhava-se ao de So Paulo, com 8 solteiras. Embora signifiquem nmerosrelativamente modestos, estes resultados refletem uma tendncia para as mulheres seestabelecerem como artess independentes nessas atividades; proprietrias de escravospor seus prprios meios, em contraste com o padro dominante na camada rural, na qualas proprietrias de escravos, em geral vivas, eram provavelmente herdeiras de seus

    maridos e ou tutoras de seus filhos.

    Como se comparam estes padres demogrficos e de posse de escravos comoutras zonas do Brasil em fins do sculo XIX e incio do sculo XIX? Verificamos que otamanho da propriedade aucareira nestas trs localidades, em termos de seucomponente de trabalho escravo, diferia dos centros mais dinmicos de produo deacar no pas. Ainda assim, no geral, a mdia de escravos possudos reproduzia ospadres observados no resto do Brasil, assim como seu grau de concentrao (videTabela 10). Mesmo na Bahia, consideradas as plantaes no aucareiras, a mdia entreos proprietrios alcanava 7 escravos por unidade. Nesse aspecto, Itu, com sua altaconcentrao na posse de escravos e plantaes de acar, destaca-se da norma geral,

    com mdia relativamente alta de 11 escravos.

    A anlise dos resultados obtidos nas trs localidades da provncia de So Paulo,em 1829, bem como os referentes a outras comunidades brasileiras, indica que o padrode propriedade de escravos, na regio centro-sul do Brasil no incio do sculo XIX,assemelhava-se ao padro norte-americano. Algo em torno de um quarto e um tero dasfamlias livres possua escravos, e era proprietria de uma quantidade mdia de escravosrelativamente pequena. Neste aspecto, as duas zonas continentais diferiam do sistemaagrcola existente nas Antilhas. Embora o aumento na importncia relativa da culturacafeeira provocasse um crescimento acentuado no tamanho mdio das plantaes, estasnovas unidades apenas se aproximavam, no tamanho, dos engenhos nordestinos de

    acar e das plantaes de algodo norte-americanas, sendo nessa pocasignificativamente menores que as propriedades aucareiras das Antilhas. Um aspectoque merece realce a importncia dos agricultores no proprietrios de escravos, quesignificavam uma das caractersticas marcantes tanto no sistema escravista brasileirocomo no norte-americano.

    Tabela 10

    Comparao de indicadores da posse de escravos em localidades selecionadas

    Localidades Tamanho mdiodos proprietriondice de Gini para a distribuio dos

    escravos entre proprietrios

    Lorena (SP) 1804 5,8 0,56

    Sorocaba (SP) 1804 5,0 0,54

    Bahia 1816/1817 7,2 0,59

    Vila Rica (MG) 1804 3,7 0,50

    Congonhas do Sabar (MG) 1790 4,5 0,54

    So Caetano (MG) 1804 6,5 0,57

    Curitiba (SP/PR) 1824 5,6 0,53

    Nota: SP (So Paulo); MG (Minas Gerais); PR (Paran).Fonte: Modificada da Tabela 2 de COSTA & NOZOE (1989) e de LUNA (1981, p. 127).

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    Entretanto, So Paulo apresentava mais semelhanas com as Antilhas do que como sistema norte-americano na estrutura demogrfica da populao escrava. Apredominncia dos escravos africanos em So Paulo, em contraste com sua posiomenos importante nos Estados Unidos, teve significativo impacto nas idades mdias,propores entre os sexos e, sobretudo, na sua capacidade de reproduo. So Paulo, napoca, destacava-se como uma zona especialmente desequilibrada pela forte presenamasculina, pela idade elevada da populao escrava, e consequentemente, pela menorcapacidade de reproduzir-se nas dcadas seguintes. Nesse sentido, So Paulo

    apresentava caractersticas bastante diferentes em relao a Minas Gerais e Paran e,provavelmente, de muitas partes do Rio de Janeiro. Nestas regies, nveis mais baixos deentrada de africanos nesse perodo implicavam a possvel obteno de taxas decrescimento vegetativo positivas para a populao escrava residente.

    So Paulo representa um caso incomum, at mesmo para os padres brasileiros,na ocorrncia de casamentos entre escravos, muitos dos quais formalizados e legalmentereconhecidos. Provavelmente em nenhum outro regime escravista das Amricas existiutantos escravos casados legalmente e em poucas provncias brasileiras encontram-senveis to elevados de casamentos entre escravos, quase iguais aos da populao livre,tanto branca como negra. Ademais, a correlao existente entre a quantidade de

    escravos na propriedade e as taxas de casamento poderia aparentemente sugerir altastaxas de unies dentro da prpria propriedade. Nos Estados Unidos aparentemente existemaior tendncia de unies de escravos de propriedades distintas. No estgio atual dapesquisa deste tema, no h possibilidade de se estabelecer a razo dessa diferenaentre So Paulo e os Estados Unidos nos padres de casamentos dentro e fora daprpria propriedade atravs da informao de que nas duas reas o tamanho mdio daposse de escravos apresentava nmeros relativamente homogneos. Em So Paulo, asevidncias quanto existncia de correlao positiva entre o tamanho do plantel e astaxas de casamento parecem melhor explicadas pela disponibilidade de cnjugesapropriados, fator reforado pelas elevadas discrepncias entre as taxas de casamentopara os homens e para as mulheres.

    Esta pesquisa preliminar das amostras de 1829 indica a ocorrncia, no centro-suldo Brasil, de um complexo sistema escravista, compartilhando vrios aspectos formaiscom outros sistema que existiram nas Amricas, mas ao mesmo tempo possuindodiversos padres singulares de desenvolvimento, mesmo no contexto da escravidobrasileira. Esperamos que o estudo fornea aos leitores uma viso de aspectos relevantesdas pesquisas em andamento no Brasil sobre a escravido no sculo XIX.

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