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ESCRAVIDÃO URBANA NO MUNDO ATLÂNTICO 1 : Um exame historiográfico sobre Rio de Janeiro e Havana (c.1790-1850) Ynaê Lopes dos Santos (Doutoranda em História Social – USP) Em dois de janeiro de 1838, o Jornal Diário de Havana anunciava a oferta de aluguel de um escravo sapateiro que, além ser livre de vícios, era especializado em sapatos femininos; o mesmo anunciante ainda oferecia os serviços de uma negra lavadeira e cozinheira. Para cada um dos cativos seriam cobrados 12 pesos mensais e os interessados deveriam dirigir-se à primeira quadra da Rua Maloja, em frente ao número 9 2 . Anúncios como esses foram freqüentes nos jornais de Havana e dos demais centros urbanos escravistas. Isso porque nesses espaços os cativos eram alocados no trabalho doméstico bem como na rede de serviços urbanos – que variavam desde o carregamento de produtos na região portuária até tarefas mais especializadas como sapateiros, barbeiros e músicos. De maneira geral, esses escravos eram empregados de duas formas: no aluguel, também comum nas regiões rurais, o cativo era emprestado por tempo determinado mediante pagamento de um senhor para o outro, podendo realizar uma gama variada de atividades, como exemplificado no anúncio acima. Já no caso do ganho - característico dos grandes centros urbanos das Américas -, o escravo teria que dispor de sua força de trabalho, passando a maior parte do tempo nas ruas à procura de serviços e, portanto, longe das vistas de seu senhor, com a contrapartida de entregar, semanalmente, uma quantia previamente estipulada pelo proprietário. Observa-se, então, que a natureza do trabalho escravo nas cidades exigia que os cativos tivessem maior mobilidade e autonomia de trânsito para desempenhar suas tarefas. Até mesmo os escravos domésticos realizavam parte de seus afazeres fora das residências senhoriais lavando roupa nos chafarizes ou então acompanhando suas senhoras no caminho até a missa. E o que era necessidade por vezes transformou-se em oportunidade: muitos cativos alargaram a autonomia vivenciada no trabalho para outros campos de suas vidas. 1 Parte desse artigo foi realizada com auxílio da Bolsa de Pesquisa da Fundação Biblioteca Nacional 2008. 2 Apud DESCHAMPS CHAPEAUX, Pedro. El negro en la economia habanera del siglo XIX. UNEAC, Habana, 1971, p. 50.

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Page 1: ESCRAVIDÃO URBANA NO MUNDO ATLÂNTICO1 Um exame ... · como exemplificado no anúncio acima. Já no caso do ganho - característico dos grandes centros urbanos das Américas -, o

ESCRAVIDÃO URBANA NO MUNDO ATLÂNTICO1:

Um exame historiográfico sobre Rio de Janeiro e Havana (c.1790-1850)

Ynaê Lopes dos Santos

(Doutoranda em História Social – USP) Em dois de janeiro de 1838, o Jornal Diário de Havana anunciava a oferta de aluguel

de um escravo sapateiro que, além ser livre de vícios, era especializado em sapatos femininos;

o mesmo anunciante ainda oferecia os serviços de uma negra lavadeira e cozinheira. Para cada

um dos cativos seriam cobrados 12 pesos mensais e os interessados deveriam dirigir-se à

primeira quadra da Rua Maloja, em frente ao número 92.

Anúncios como esses foram freqüentes nos jornais de Havana e dos demais centros

urbanos escravistas. Isso porque nesses espaços os cativos eram alocados no trabalho

doméstico bem como na rede de serviços urbanos – que variavam desde o carregamento de

produtos na região portuária até tarefas mais especializadas como sapateiros, barbeiros e

músicos. De maneira geral, esses escravos eram empregados de duas formas: no aluguel,

também comum nas regiões rurais, o cativo era emprestado por tempo determinado mediante

pagamento de um senhor para o outro, podendo realizar uma gama variada de atividades,

como exemplificado no anúncio acima. Já no caso do ganho - característico dos grandes

centros urbanos das Américas -, o escravo teria que dispor de sua força de trabalho, passando

a maior parte do tempo nas ruas à procura de serviços e, portanto, longe das vistas de seu

senhor, com a contrapartida de entregar, semanalmente, uma quantia previamente estipulada

pelo proprietário.

Observa-se, então, que a natureza do trabalho escravo nas cidades exigia que os

cativos tivessem maior mobilidade e autonomia de trânsito para desempenhar suas tarefas.

Até mesmo os escravos domésticos realizavam parte de seus afazeres fora das residências

senhoriais lavando roupa nos chafarizes ou então acompanhando suas senhoras no caminho

até a missa. E o que era necessidade por vezes transformou-se em oportunidade: muitos

cativos alargaram a autonomia vivenciada no trabalho para outros campos de suas vidas.

1 Parte desse artigo foi realizada com auxílio da Bolsa de Pesquisa da Fundação Biblioteca Nacional 2008. 2 Apud DESCHAMPS CHAPEAUX, Pedro. El negro en la economia habanera del siglo XIX. UNEAC, Habana, 1971, p. 50.

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Um caso exemplar foi do escravo Pedro Congo, habitante do Rio de Janeiro que,

durante a primeira década do século XIX, conseguiu morar longe do olhar senhorial. Ao

contrário do que se possa imaginar, ele não foi mais um dos quilombolas que adentrou as

matas cariocas a fim de fugir ou até mesmo negar a escravidão. Na realidade, Pedro Congo foi

mais um dos cativos empregados na atividade do ganho; a variante a ser destacada é que,

mesmo escravo, ele conseguiu refazer seus laços de parentesco morando sobre si em um

casebre próximo ao centro da cidade, com sua esposa Maria Rosa3.

Existiram também aqueles escravos que levaram ao limite a maior autonomia

vivenciada no ambiente urbano e transpuseram as muralhas visíveis e invisíveis das cidades

preferindo viver à margem do sistema escravista, mesmo sabendo o perigo que isso

representava. Alguns estudos apontam que periódicos do Rio de Janeiro, Havana e outras

cidades como Salvador e Santiago de Cuba noticiavam quase que diariamente a fuga de

escravos.

Desse modo, ao mesmo tempo em que o uso da mão-de-obra escrava nas cidades

dependia da maior mobilidade de trânsito do cativo - o que pressupunha maior autonomia

escrava -, esta mobilidade muitas vezes era reapropriada pelo escravo na tentativa de negociar

por melhores condições de vida, ou até mesmo lutar contra a condição do cativeiro.

A complexidade que a maior mobilidade escrava trouxe para o ambiente urbano não é

novidade nos trabalhos historiográficos, mesmo porque as dinâmicas criadas pela autonomia

escrava no mundo citadino precisavam ser explicadas para que se alcançasse uma

compreensão mais abrangente do sistema escravista nas Américas.

Com o intuito de contribuir para a ampliação do debate internacional sobre escravidão

urbana, o presente artigo pretende, justamente, fazer uma análise das principais obras que

versaram sobre o tema naquelas que foram as duas maiores cidades escravistas do Novo

Mundo: Rio de Janeiro e Havana.

As razões que justificam uma análise comparada entre Havana e Rio de Janeiro são

resultados da macro política adotada pelas elites políticas cubana e brasileira, que por sua vez

também aproximaram a realidade escravista de Cuba e Brasil a partir de 1790 até a abolição

da escravidão nas duas localidades em fins dos oitocentos.

3 Arquivo Nacional. Termos de Bem Viver. Coleção Policia da Corte. Códice 410 – vol.2 p. 9.

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Nas últimas décadas do século XVIII, um ciclo de revoluções alterou o quadro

mundial. O Antigo Regime e o Sistema Colonial foram colocados em xeque ao mesmo tempo

em que o liberalismo se expandia rapidamente. A Revolução Norte-Americana (1776) foi o

primeiro evento de grandes proporções baseado nos princípios do Iluminismo que rompeu os

paradigmas da colonização européia. Os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade,

defendidos na Revolução Francesa, foram resignificados em diferentes localidades do mundo,

chegando, inclusive, a viabilizar o que foi a maior revolução de escravos da história humana:

a revolução do Haiti, que abalou o sistema escravista em escala mundial4.

No continente europeu, a experiência constitucional marcou o fim do absolutismo e a

construção de um novo modelo de sociedade, no qual conceitos como cidadania e soberania

nacional eram palavras-chave, discutidas nos parlamentos recém constituídos. Do outro lado

do Atlântico, tais conceitos foram relidos sob a ótica da submissão política e econômica das

relações coloniais, impulsionando assim o processo de independência no continente

americano. Nunca a liberdade foi tão debatida e defendida. Nunca se usou tanto a mão-de-

obra escrava.

Aparentemente contraditórias, a liberdade ilustrada e a escravidão moderna foram

rearticuladas em meio às transformações da Era das Revoluções. É bem verdade que a nova

concepção de homem aliada aos interesses mercantis fizeram do abolicionismo não só um

movimento que inflava os defensores do humanismo, como uma posição política defendida

pelos britânicos. A partir da primeira década dos oitocentos, a Grã-Bretanha, que já

despontava como grande potência, adotou uma política ferrenha contra o tráfico pressionando

diversos países que mantinham o comércio negreiro, o que, aliado ao movimento

independentista de diversas colônias, resultou na abolição da escravidão em diferentes

localidades americanas.

No entanto, à medida que se sofisticava o processo de industrialização nas economias

centrais, crescia a demanda por artigos tropicais nos principais centros urbanos do hemisfério

norte. O que era produzido e exportado por meio das estruturas tradicionais do escravismo

colonial deixava de ser suficiente. Paralelamente, o aumento da competitividade no mercado

mundial fez com que os produtores coloniais não conseguissem acompanhar esse ritmo

4 Uma boa síntese sobre o período conhecido como “Era das Revoluções” é: BLACKBURN, Robin. A queda do escravismo colonial: 1776-1848. Rio de Janeiro, Record, 2002.

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frenético. Era preciso que as colônias ou países recém formados se adequassem a um sistema

de produção mais especializado. Por diferentes razões Brasil, Cuba e Estados Unidos

conseguiram adequar a escravidão à expansão capitalista, sendo que as duas primeiras

localidades investiram no crescimento exógeno da população escrava, incrementando o tráfico

transatlântico de africanos escravizados. Tal adequação da instituição escravista ao sistema

capitalista vem sendo chamada por alguns estudiosos de segunda escravidão, e aponta como a

manutenção do escravismo foi fundamental para o desenvolvimento industrial de países

europeus, inclusive aqueles que defendiam o abolicionismo5.

No caso brasileiro, tal adaptação foi resultado da aliança entre escolhas políticas e

interesses econômicos. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que, graças à invasão

napoleônica, a Corte portuguesa transferiu-se para o Rio de Janeiro na tentativa de salvar todo

seu Império Ultramarino. Apesar da discordância de inúmeros portugueses, o fato foi que, a

partir de 1808, a cidade foi moldada transformando-se assim na nova sede do Império Luso.

A eficácia dessa mudança foi tamanha que, em 1815, a América Portuguesa recebeu o título

de Reino Unido a Portugal e Algarves. Esse foi um período de instrumentalização do aparato

estatal no Rio de Janeiro, que acarretou a interiorização da metrópole, por meio de um

processo de enraizamento do Estado português no centro-sul da colônia6.

Os mesmos interesses que viabilizaram uma independência menos turbulenta

definiram as diretrizes da construção do Estado Nacional brasileiro a partir de 1822. O Brasil

foi um Estado que nasceu assentado no escravismo. A resistência às pressões inglesas para o

término do tráfico transatlântico de escravos foi um dos aspectos mais significativos da

política liberal adotada. Durante quase trinta anos, um país recém criado, em parte dependente

das relações comerciais e políticas com a Grã-Bretanha, conseguiu não só manter, como

incrementar o tráfico com a África.

No caso cubano, dois acontecimentos da “era das revoluções” marcaram diretamente a

trajetória da colônia. Por um lado, a revolução haitiana (um dos episódios centrais da “era de

revoluções”) abriu grandes oportunidades para a economia escravista de Cuba, o que, aliado

ao crescimento econômico e político da oligarquia criolla, fizeram com que as produções

5 Cf. TOMICH, Dale W. Through the Prism of Slavery. Labor, Capital, and World Economy.Boulder, Co.: Rowman & Littlefield, 2004. 6 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. “A Interiorização da Metrópole”. In: A Interiorização da Metrópole e outros estudos. São Paulo, Alameda, 2005, p. 14.

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açucareira e cafeeira da ilha aumentassem seu valor econômico para a coroa espanhola7. Por

outro lado, Cuba não vivenciou o mesmo processo de independência das demais colônias

espanholas, mantendo-se fiel à Espanha. Essa postura foi resultado do prevalecimento dos

interesses políticos da oligarquia havaneira, que conseguiu equacionar maior autonomia

política com a manutenção do estatuto colonial.

A significativa autonomia e o poder de decisão da sacarocracia cubana8 puderam ser

atestados durante a Constituição de Cádiz (1810). Na ocasião, as elites cubanas com plena

consciência de seu papel e importância na economia do Império espanhol ofereceram os

argumentos necessários para a manutenção e o incremento da mão-de-obra africana

escravizada para o fabrico do açúcar e do café9. Mesmo face às pressões da Inglaterra – que

havia abolido o tráfico transatlântico de escravos em 1807 –, os cubanos continuaram

comprando africanos até 1866 sob a tutela da coroa espanhola e contando com o apoio da

mesma coroa em caso de possíveis revoltas escravas. Em contrapartida, era mantido o estatuto

da relação colonial entre Cuba e Espanha.

Percebe-se então que em meio às independências, revoluções e abolicionismos dos

oitocentos, parlamentares e elites sócio-econômicas do Brasil e de Cuba foram eficazes na

defesa de seus interesses e conseguiram manter a permanência e a legalidade da escravidão e

do tráfico transatlântico10 em um contexto econômico ainda mais acirrado.

As mudanças do quadro econômico atlântico datadas da última década do século

XVIII acabaram aproximando duas cidades que, até então, tinham tido trajetórias e dinâmicas

sociais diversas, embora já conhecessem a escravidão. A partir de 1790, a nova articulação do

7 Cf.: FRAGINALS, M.M.Cuba. Espanha. Cuba. Uma História Comum. Bauru, EDUSC, 2005, pp. 205-206. KLEIN, Herbert S. A Escravidão Africana. América Latina e Caribe. São Paulo, Brasiliense, 1987, pp. 105-119. 8 Fraginals chega a apresentar a tese desenvolvida por Adolphe Jollivet na qual é defendida a hipótese de que entre os anos de 1790 e 1820, Cuba não era uma colônia, tendo em vista a ampla autonomia da burguesia criolla. Cf. FRAGINALS, Op. Cit, pp. 206-207. Outro trabalho que permite entender os argumentos da elite cubana é: TOMICH, Dale. “A Riqueza do Império: Francisco Arango y Parreño, economia política e a segunda escravidão em Cuba”. Revista de História, no. 149, São Paulo, USP, 2003, pp. 1-33. 9 SCHMIDT-NOWARA, C. “A escravidão cubana, o colonialismo espanhol e o mundo atlântico no século XIX”. In: Estudos Afro-Asiáticos, Ano 26, no. 2, 2004, pp. 417-442. 10 Ver: BERBEL, M.R. & MARQUESE, R. “La esclavitud en las experiencias constitucionales ibéricas, 1810-1824”. In: Ivana Frasquet (org.) Bastillas, cetros y blasones. La independencia en Iberoamérica. Madri: Fundación Mapfre, 2006.

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uso de escravos fez com que Rio de Janeiro e Havana se tornassem as duas maiores cidades

escravistas do Novo Mundo.

O incremento da atividade portuária e a proximidade com as regiões produtoras de

café (no Brasil) e açúcar (em Cuba) intensificaram o uso da mão de obra escrava nesses dois

espaços. Ainda que a maioria dos africanos escravizados fosse trabalhar nas zonas agrícolas,

parte desses cativos também foi explorada pelos proprietários urbanos.

Em ambas as cidades as décadas de 1820 a 1840 comportaram o ápice do crescimento

da parcela escrava da população. Em recente trabalho, Michael Zeuske apontou que, no ano

de 1850, Havana possuía quase vinte e dois mil escravos, o que correspondia à mais de vinte

por cento de sua população total, enquanto a população do Rio de Janeiro era formada por

mais de setenta e oito mil cativos, trinta e oito por cento do total. Esse resumido quadro

demográfico foi definidor das relações sociais e políticas experimentadas nas duas cidades11.

Mas não foi só em termos quantitativos que Rio de Janeiro e Havana se aproximavam.

É importante ressaltar que durante o período indicado, ambas as cidades foram centros de

poder com grande importância nos quadros do mundo atlântico. Ainda que desempenhassem

poderes políticos assimétricos (enquanto o Rio de Janeiro era capital do Império português

(1808) e, mais tarde do Brasil (1822), Havana era uma Capitania Geral do Império espanhol,

o que significa que, formalmente, apenas questões militares referentes a Cuba podiam ser

decididas localmente, todas as demais questões sendo reportadas para Madri), o fato do Rio

de Janeiro e de Havana terem sido sedes de poder de localidades reconhecidamente

escravistas sugere que as duas cidades foram palcos privilegiados das discussões políticas

relacionadas ao destino da instituição escravista no Brasil e em Cuba durante os oitocentos,

bem como centro decisório das questões relevantes ao cotidiano urbano escravista.

Desse modo, o grande número de escravos no espaço urbano, a proximidade com

importantes centros de produção agrícola, o peso político e a forte presença de autoridades

estatais criaram semelhanças relevantes entre Rio e Havana, que permitem aventar a hipótese

da existência de um padrão de cidade escravista no mundo atlântico. A hipótese poderá ser

testada por meio da análise de como as ações empreendidas por diferentes Estados lidaram

com um mesmo fenômeno, a escravidão urbana.

11 ZEUSKE, M. “Comparing or interlinking? Economic comparisons of early nineteenth-century slave systems in the Americas in historical perspective”. In: LAGO & KATSARI (Ed). Slave Systems. Ancient and Modern. Cambridge, Cambridge University Press, 2008, pp. 148-184.

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É interessante notar que ao mesmo tempo em que a produção historiografia sobre

escravidão urbana no Rio de Janeiro e em Havana parece corroborar a hipótese da existência

de certo padrão de cidade escravista, ela ponta a necessidade de estudos mais abrangentes

sobre a temática e a viabilidade do exame comparado entre as duas cidades.

Conforme assinalado, a despeito da forte presença escrava no Rio de Janeiro – bem

como em outras cidades brasileiras como Salvador e Recife -, questões referentes ao cativeiro

citadino são relativamente recentes nos estudos sobre a escravidão no Brasil. Durante muitos

anos, os trabalhos sobre a escravidão moderna nas Américas estiveram preocupados em

compreender a função do cativo dentro da lógica econômica colonial. Por este motivo, os

historiadores se concentraram na análise da escravidão nos grandes latifúndios monocultores.

No caso do Brasil, a reformulação historiográfica levou a um profundo

questionamento da historiografia anterior fundada por Gilberto Freyre12 e reiterada por Caio

Prado Jr.13 e Sérgio Buarque de Holanda14, que entendiam a escravidão no Brasil como um

fenômeno marcadamente rural e, no caso de Freyre, menos violenta do que o sistema

escravista de outras partes do Novo Mundo. Nas décadas de 1950 e 1960, novos estudos

realizados por diversos cientistas sociais reavaliaram as obras anteriores e acabaram por

afirmar o caráter profundamente violento do sistema escravista brasileiro, estabelecendo

importantes relações desse legado escravista com a situação da população negra-mestiça no

Brasil republicano15.

Com o boom historiográfico internacional verificado em meados da década de 1960, a

escravidão urbana ganhou lugar na historiografia brasileira e internacional16. Nesse momento,

o estudo da escravidão urbana passou a fazer parte, de forma objetiva, das agendas

12 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1977. 13 PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 24a. reimpressão São Paulo, Brasiliense, 1996. 14 HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26a. edição. Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 1994. 15 Esse grupo de sociólogos ficou conhecido como “Escola de São Paulo”. As principais obras desse grupo foram: CARDOSO, Fernando H. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional; o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. São Paulo, 1962. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia.São Paulo, Difel, 1966. FERNANDES, Florestan. A Integração do negro na sociedade de classes, 2 vols. São Paulo, l964. 16 A mudança historiográfica a respeito da escravidão moderna é bem comentada no artigo: PATTERSON, Orlando. “The Study of Slavery”. In: Annual Review of Sociology, 3, pp. 407-449, 1977.

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internacionais de pesquisa. O trabalho de Richard Wade inaugurou o estudo sobre o cativeiro

moderno no espaço urbano, mostrando que, mesmo numa sociedade marcada pela agricultura

monocultora (no caso, o Sul dos Estados Unidos), a escravidão adaptou-se a diversas

situações17.

Imersa nas discussões feitas nos Estados Unidos, e tendo o livro de Wade como um

modelo, Mary Karasch foi a primeira pesquisadora a realizar um estudo sobre escravidão

urbana no Brasil, em A vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808 – 1850,) datado de 197218.

A obra de Karasch foi inovadora por dois motivos. O primeiro refere-se à própria escolha do

objeto de estudo. Ao se valer de um corpus documental riquíssimo - desde relatos de viajantes

até atas municipais, jornais da época e processos criminais – a autora demonstrou a

viabilidade de se realizar mais pesquisas sobre o tema. O segundo ponto inovador se remete à

perspectiva analítica adotada por Karasch, que tomou o escravo como sujeito de sua

história19. Essa abordagem permitiu esmiuçar as diversas facetas da vida escrava no Rio de

Janeiro, traçando um amplo quadro sobre a estrutura do sistema escravista e o cotidiano

cativo. A autora apresentou um verdadeiro guia da vida escrava no Rio de Janeiro, que

comporta a origem dos cativos, o tráfico transatlântico, a venda dos escravos, as atividades

realizadas por eles no espaço urbano, suas formas de reinventar seus laços identitários, as

atitudes do Estado perante a massa escrava, dentre outros aspectos.

Com a obra de Karasch é possível afirmar que os estudos sobre escravidão urbana no

Brasil se apresentaram como interessante campo investigativo e foram ganhando maior

legitimidade. Sete anos após a pesquisa de Karasch, Kátia Mattoso publicou Ser escravo no

Brasil20, obra na qual a autora apresentou um quadro geral da vida escrava na cidade de

Salvador21. Em tese de doutorado defendida em 1982 e publicada alguns anos depois, João

José Reis reorientou o tema da escravidão nos centros urbanos. Ao estudar o levante dos

Malês em 1835 na cidade de Salvador, o autor trabalhou com a potencialidade explosiva dos

17 WADE, R. Slavery in the Cities the South, 1820 – 1860. Londres, Oxford University Press, 1964. 18 KARASCH, Mary. A vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808 – 1850). São Paulo, Cia. das Letras, 2000 (2a. edição). A data de 1972 se refere à tese de doutoramento de Karasch. 19 Essa perspectiva analítica adotada por Karasch segue a linha proposta por Genovese em sua obra: GENOVESE, Eugene Roll. Jordan, Roll. The World the Slaves Made. New York. Vintage, 1974. 20 São Paulo, Brasiliense, 1982. O livro é tradução do original francês de 1979. 21 Muitos dos pontos levantados pela autora foram questionados pela historiografia subseqüente, principalmente no que se refere à certa suavidade do sistema escravista nas cidades, se comparado à escravidão no campo.

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centros urbanos do Brasil Imperial, que exacerbava o sentimento de desigualdade social e

política22.

No caso específico da escravidão urbana no Rio de Janeiro, observam-se dois

momentos historiográficos distintos. Durante a década de 1980, os trabalhos exploraram

questões controversas que durante muitos anos foram responsáveis pelo caráter anômalo

atribuído a esse tipo de escravidão. Em 1983, Leila Mezan se propôs estudar a escravidão no

Rio de Janeiro joanino a partir da constatação da falta de intermediação na relação senhor-

escravo que era representada, no campo, pela figura do feitor23. Por meio da análise de

processos criminais, a autora trabalhou com uma das facetas mais polêmicas do cativeiro nas

cidades: a maior liberdade escrava nas ruas dos centros urbanos e o papel do Estado como

instância de controle social, ou seja, como substituto do feitor.

Cinco anos depois, Marilene Rosa Nogueira da Silva defendeu sua dissertação de

mestrado24, na qual procurava compreender o cotidiano do escravo ao ganho – o cativo que ia

para as ruas cariocas para realizar suas tarefas - a partir do pressuposto de que o espaço

urbano era altamente explosivo. Nesse mesmo ano, Luis Carlos Soares também analisou parte

das questões relacionadas ao mundo do trabalho dos escravos urbanos, reiterando que o

pecúlio recebido pelos cativos não diminuía a violência inerente às relações escravistas25.

No final da década de 1980 e meados da década de 1990, a escravidão urbana já havia

se firmado como campo de estudo para os historiadores brasileiros. Os trabalhos descritos

acima demonstraram que o cativeiro urbano foi muito mais presente na história do Brasil do

que se tinha idéia, indicando que o sistema escravista foi se moldando às mais diferentes

circunstâncias, sem que com isso perdesse seu caráter marcadamente violento26. Tal investida

22 REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil – A história do levante dos Malês (1835). São Paulo, Ed. Brasiliense, 1987, 2a. Edição. 23 ALGRANTI, Leila Mezan. O Feitor Ausente. Estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro, 1808-1821. Petrópolis, Editora Vozes, 1988. (Dissertação defendida em 1983 na Universidade de São Paulo). 24 SILVA, Marilene R. N. Negro na Rua. A nova Face da Escravidão. São Paulo, Editora Hucitec, 1988. 25 SOARES, Luiz Carlos Os escravos de ganho no Rio de Janeiro do século XIX In: Revista Brasileira de História vol. 16, São Paulo, Editora Marco Zero e ANPUH, 1988. 26 Durante alguns anos a escravidão urbana foi compreendida como sendo mais suave que a escravidão vivida no campo, já que o escravo tinha mais mobilidade. Os trabalhos apresentados no projeto mostraram que nas cidades a violência não era representada pela figura do feitor, mas que em nenhum momento deixou de existir.

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possibilitou que novas pesquisas pudessem examinar questões específicas do cativeiro

citadino.

A análise dos tipos de moradia escrava foram temas de pesquisa de Sidney Chalhoub27

e de Carlos Eugênio Líbano Soares28. Os mesmos autores também examinaram, em trabalhos

distintos, como os escravos se apropriaram de laços de solidariedade29 e da prática da capoeira

para lutar contra a escravidão. Formação de quilombos nas proximidades do perímetro urbano

carioca; capoeira escrava; fugas; compra de liberdade; relações de compadrio; maneiras de

controlar os cativos. Esses são exemplos de outros temas que vêm sendo abordados pela

historiografia que se debruça sobre o escravismo citadino, sobretudo na cidade do Rio de

Janeiro30. Tal diversidade, aliada ao uso de fontes variadas, à formulação de novas perguntas e

análises criteriosas demonstram a relevância e as potencialidades da investigação da

escravidão urbana no Brasil. No entanto, ainda são poucos os estudos que articulam o exame

da escravidão urbana às dinâmicas públicas da vida política que regularam o Rio de Janeiro, e

até mesmo o Império do Brasil, durante o século XIX.

No que tange a historiografia acerca da escravidão urbana em Havana, o percurso é

outro. Ao passo que a historiografia brasileira precisou comprovar a relevância do estudo do

cativeiro urbano, trabalhos que analisaram a escravidão em Cuba parecem não ter dito

nenhum estranhamento em relação a esse fenômeno. Em contrapartida são poucos os estudos

que elegeram o escravismo urbano em Havana como objeto principal de análise. Ao que tudo

27 CHALHOUB, S. Cidade Febril. Cortiços e Epidemias na corte imperial. São Paulo, Cia.das Letras, 1996. 28 SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Zungú: rumor de muitas vozes. Rio de Janeiro, Arquivo Público do Rio de Janeiro, 1998. 29 CHALHOUB, S. Visões de Liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo, Cia. das Letras, 1990. 30 Ver respectivamente GOMES, Flávio dos Santos. Quilombos do Rio de Janeiro no século XIX. In: REIS. J.J. GOMES, Flávio dos Santos (Org). Liberdade por um fio. História dos quilombos no Brasil. São Paulo, Cia. das Letras, 1996, pp. 263-290. SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Capoeira Escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas, Ed. Unicamp, 2002. FLORENTINO, Manolo. Dos escravos, forros e fujões no Rio de Janeiro imperial. In: Revista da USP -Dossiê Brasil Império, 58, jun./jul./ago. 2003 pp.104-115. FRANK. Zephyr L. Dutra's World. Wealth and Family in Nineteenth-Century Rio de Janeiro. Albuquerque, University of New Mexico, 2004. FERREIRA, Roberto Guedes. Na pia batismal; família e compadrio entre escravos na freguesia de São José do Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2000. ROSSATO, Jupiracy A. R. Sob os Olhos da Lei: o escravo urbano na legislação municipal da cidade do Rio de Janeiro (1830-1838). Dissertação de Mestrado apresentada na Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2002.

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indica, essa aparente contradição entre história e historiografia pode ser entendida a partir de

um breve exame da trajetória da capital cubana.

Desde meados do século XVI até a segunda metade do século XVIII, a estratégica

posição geográfica de Cuba no contexto do sistema atlântico ibérico fez com que a cidade de

Havana possuísse uma ampla rede de serviços para atender as diversas tripulações que lá

aportavam anualmente, bem como inúmeras fortificações que expressavam a constante

preocupação com a segurança da capital cubana. Em diversos casos eram os escravos,

africanos ou crioulos, que participavam da construção civil e naval, assim como realizavam

tarefas fundamentais para o funcionamento das casas e da própria cidade31.

Embora não tenha conhecido nenhuma alteração de estatuto até a independência de

Cuba e de não ter sediado Corte alguma, Havana passou por mudanças importantes durante os

oitocentos. Na realidade, a nova posição de Cuba dentro do Império espanhol fez com que a

cidade conhecesse uma profunda ampliação de suas funções portuárias bem como de sua

população cativa32. Os escravos que anteriormente eram designados às construções de

fortificações e de embarcações, também passaram a ser utilizados no transporte de açúcar e do

café para o porto; o setor negro-mulato (escravo e livre) passou a dominar quase todos os

ofícios; a maior parte das casas havaneiras possuía ao menos um cativo e a prostituição

permaneceu um negócio lucrativo para os senhores de escravas33. Como foi dito

anteriormente, esse continum da trajetória dos escravos na história de Havana pode ser

verificado na historiografia que trata da escravidão em Cuba.

Um dos primeiros estudiosos a eleger a escravidão cubana como tema de análise foi

Fernando Ortiz. Contrário às abordagens que examinavam o escravo e seu legado apenas sob

a ótica econômica, Ortiz foi pioneiro na análise da presença do negro em Cuba a partir de uma

perspectiva cultural. Em 1916 foi publicado Hampa afro-cubana: Los Negros Esclavos34,

31 FRAGINALS, Op. Cit, pp.101-111. 32 Cf. SALVUCCI, L. “Supply, Demand, and the Marking of a Market: Philadelphia and Havana at the Biginning of the Nineteenth Century” In: KNIGHT, F. LIIS, P. Atlantic Port Cities. Economy, Culture, and Society in the Atlantic World, 1650-1850. Knoxvill, The University of Tennessee Press, 1991, pp. 40-57. 33 FRAGINALS, Op. Cit., pp. 224-227. 34 ORTIZ, Fernando. Hampa afro-cubana: Los Negros Esclavos. Estúdio sociológico y de derecho publico.Revista Bimestre Cubana, La Habana, 1916. Em 1987, essa obra juntamente com as anotação do autor encontradas no arquivo do Instituto de História de la Academia de Ciencias de Cuba,

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obra na qual o autor examinou diferentes aspectos da vida dos escravos cubanos, inclusive do

escravo urbano que, segundo o autor, possuía melhores condições materiais, na medida em

que se alimentava melhor, vestia roupas mais elegantes, não precisava dormir nos barracões,

gozava de maior mobilidade e tinha maior possibilidade de obter alforria.

Ainda que contemplado na análise de Ortiz, a escravidão urbana apareceu como uma

forma menos violenta do sistema escravista, já que o cotidiano dos cativos citadinos seria

radicalmente diferente do vivido pelos escravos empregados no plantio do café e da cana-de-

açúcar. Tal percepção foi compartilhada por outros estudiosos da escravidão em Cuba.

Esse foi o caso dos estudos de Herbert Klein35 e Franklin Knight36. Imersos nas

discussões iniciadas por Frank Tannenbaum (1947) e Stanley Elkins (1959) a respeito das

diferenças entre os sistemas escravistas das Américas, os dois autores analisaram questões

relacionadas à escravidão em Cuba. Apesar de elaborarem diferentes interpretações sobre o

sistema escravista cubano, ambos abordaram aspectos gerais da escravidão urbana em Cuba

(sobretudo em Havana), demonstrando a relevância do cativeiro citadino na ilha por meio da

análise das tarefas realizadas e da maior autonomia de trânsito dos escravos nesses espaços.

Em 1971, Pedro Deschamps Chapeux elegeu o espaço urbano como seu palco de

análise. Apesar de não se restringir ao estudo da população escrava, em El negro en la

economia habanera del siglo XIX37, o autor resgatou parte da trajetória da população negro-

mulata que viveu em Havana durante o século XIX por meio da alternância do exame

documental e de análise historiográfica. Deschamps Chapeux investigou questões importantes

como os agrupamentos negros (cabildos), os batalhões de Pardos e Morenos de Havana, os

músicos, os barbeiros e sangradores, os casamentos inter-raciais que indicaram a intrincada

relação que se estabeleceu entre os negros escravizados e aqueles que haviam obtido a

liberdade.

compuseram a edição do livro: ORTIZ, Fernando. Los Negros Esclavos. La Habana, Editorial de Ciências Sociales, 1987, usado nesse projeto. 35 KLEIN. H. Slavery in the Americas. A comparative Study of Virginia and Cuba. Chicago, Elephant Paperbacks, 1989. 36 KNIGHT, F.W. Slave Society in Cuba during the nineteenth century. Madison, The University of Wisconsin Press, 1970. 37 DESCHAMPS CHAPEAUX, Pedro. Op. Cit.

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Na sua obra síntese sobre as relações estabelecidas entre Cuba e Espanha, Moreno

Fraginals38, um dos maiores especialistas em escravidão cubana, ressaltou a proeminência da

escravidão em Havana em dois dos seus vinte e três capítulos. Ao analisar os Negros e

mulatos: vida e sobrevivência e A sociedade produzida pelo açúcar, o autor mostrou como o

cativeiro citadino fez parte de praticamente toda história da capital cubana, advertindo para as

principais mudanças ocorridas nesse segmento da população a partir do século XIX39.

A partir do ano 2000, inúmeros trabalhos tocaram, mesmo que tangencialmente, na

questão da escravidão urbana em Havana. Parte desses estudos acompanhou as inovações

historiográficas iniciadas por Rebecca Scott e Ada Ferrer que trabalham, respectivamente,

com a passagem do trabalho escravo para o trabalho livre em Cuba e com as imbricações dos

conceitos de raça e nação em Cuba nas últimas décadas do século XIX40.

Em 2001, Luz Mena41 defendeu sua tese de doutorado na qual analisou os negros

livres e as relações raciais existentes em Havana durante seu processo de modernização

urbanística. Dois anos depois, Gloria García trabalhou com diferentes aspectos da escravidão

cubana num constante diálogo entre documentos e análise historiográfica a fim de tentar

“escutar a voz do escravo”42. No mesmo ano, Maria del Carmen Barcia Zequeira43 examinou

a problemática da formação de famílias escravas em Cuba e, uma vez mais, Havana foi citada

como um dos espaços de reconstrução dos laços de parentesco de escravos e seus

descendentes. Em 2004, Daniel Walker tratou da resistência dos escravos urbanos com base

em um estudo comparativo entre as cidades de Havana e de New Orleans44. Para tanto, o

38 FRAGINALS, M. Op. Cit. 39 Idem, pp. 101-111 e pp. 217-237. 40 Ver: SCOTT R. Slave Emancipation in Cuba: The Transition to Free Labour, 1860-1899. Princeton, Princeton University Press, 1985. SCOTT, R. Degrees of Freedom: Cuba and Louisiana after Slavery. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 2005. FERRER, A. “Esclavitud, Ciudadanía y los Límites de la Nacionalidad Cubana: La Guerra de los Diez Años, 1868-1878”. In: História Social, no. 2, 1995, pp. 101-125. FERRER, A. Insurgent Cuba: Race, Nation, And Revolution, 1868-1898, North Carolina, University of North Carolina Press, 1999. Ada Ferrer também analisa as relações estabelecidas entre Haiti e Cuba. 41 MENA, Luz Maria. “No Common Folk”. Free Black and Race Relationships in the Early Modernization of Havana (s1830-s1840). Tese defendida na Universidade de Berkley, 2001. 42 GARCÍA, Gloria. La Esclavitud desde la Esclavitud. La Habana, Editorial de Ciências Sociales, 2003, p. 3. 43 BARCIA ZEQUEIRA, Maria del Carmen. La Outra família. Parientes, redes y descendência de los esclavos em Cuba. La Habana, Fondo Editorial Casa de las Americas, 2003. 44 WALKER, D.E. No more, No more. Slavery and Cultural resistance in Havana and New Orleans. Minneapolis, University of Minessota Press, 2004.

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autor analisou o controle social no espaço público, a luta escrava pela constituição de

famílias, o imaginário africano e o imaginário negro e, por fim, a construção do que chamou

de herança cultural.

A relação entre espaço urbano e trajetórias femininas foi o tema central analisado por

Camillia Cowling45 em tese defendida em 2006. A partir de uma perspectiva comparativa,

Cowling trabalhou com a realidade das mulheres “de cor” no Rio de Janeiro e em Havana

durante os últimos anos de vigência da escravidão. Também em 2006, Matt Childs46

tangenciou questões relacionadas à escravidão em Havana ao examinar a luta contra a

escravidão atlântica a partir da rebelião de Aponte. Recentemente, Maria Barcia Zequeira47

apresentou um estudo sobre os espaços que os negros ocupavam em Havana. Embora não

trate estritamente da vida do escravo na capital cubana, a autora lançou luz sobre algumas das

implicações que a escravidão urbana teve na cidade, sobretudo no que diz respeito à

população livre e “de cor”.

Os estudos elencados acima permitem identificar duas formas por meio das quais as

historiografias brasileira e cubana trabalharam com a problemática da escravidão urbana. De

um lado, e mais freqüente nos estudos sobre o Rio de Janeiro, o exame da escravidão urbana

está quase que exclusivamente condicionado ao estudo das ações escravas no espaço citadino;

daí os trabalhos sobre moradia, construção de laços de parentesco, resistência à escravidão

etc. Do outro, característica mais comum nos trabalhos sobre Havana, a escravidão urbana é

tangenciada por meio da análise de questões que de alguma forma são resultantes da presença

de cativos nas cidades, tais como o exame da população “de cor” liberta e livre ou das

rebeliões ocorridas nas adjacências da cidade.

Ainda que tais obras tenham sido fundamentais para tornar a escravidão urbana um

objeto de estudo autônomo, diversos aspectos sobre o tema ainda não foram examinados de

forma sistemática, como, por exemplo, as medidas políticas que buscavam controlar os

45 COWLING, Camillia. Matrices of Opportunity: Women of Colour, Gender and the Ending of Slavery in Rio de Janeiro and Havana, 1870-1888. Tese defendida na Universidade de Nottingham, 2006. 46 CHILDS, Matt D. The 1812 Aponte Rebellion in Cuba and the Struggle against Atlantic Slavery. Chapel Hill, University of North Carolina Press, 2006. 47 BARCIA ZEQUEIRA, Maria del Carmen. Negros en sus espacios: vida y trabajos en la Habana Colonial (espacios físicos, espacios sociales, espacios laborales). Texto apresentado no V Coloquio Internacional de Historia Social Trabajo libre y trabajo coactivo en sociedades de plantación, Universidad Jaume I, Castellón de la Plana, Espanha, abril de 2008.

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espaços da autonomia escrava, as formas de negociação entre cativos e senhores, e as

mudanças que a malha urbana sofreu para comportar o trânsito constante desse segmento

social. Isso porque mais do que entender a escravidão urbana, tais trabalhos estavam mais

interessados em compreender aspectos da vida escrava nas cidades.

Observa-se então, que ao mesmo tempo em que as obras citadas servem de base para o

estudo da escravidão urbana nas Américas, elas apontam os limites históricos de suas

abordagens que, grosso modo, tinham como objetivo ressaltar a agência escrava no mundo

citadino. Tendo como premissa a relevância de todos os atores sociais que experimentaram a

vida em cidades escravistas, é inegável a necessidade da ampliação de perspectiva no que

tange o estudo do cativeiro citadino, e uma dessas possíveis ampliações é, justamente, o

estudo comparado entre as duas maiores cidades escravistas do novo mundo – situação essa

que, segundo o historiador Michel Zeuske fez do Rio de Janeiro e de Havana “irmãs

Atlânticas”48. Mas essa é uma tarefa para as gerações de agora e futuras.

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48 ZEUSKE, M. Op. Cit., p. 183.

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