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OCTAVIO IANNI ESCRAVIDÃO E RACISMO EDITORA HUCITEC São Paulo, 1978

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OCTAVIO IANNI

ESCRAVIDÃOE RACISMO

EDITORA HUCITEC

São Paulo, 1978

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©Direitos autorais 1978 de Octavio lanni. Direitos de publicação da Editora deHumanismo, Ciência e Tecnologia Hucitec Ltda., Alameda Jaú, 404, 01420 SãoPaulo, SP. Telefone (01 1) 287-1825. Capa de Luís Díaz.

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Prefácio

SUMÁRIO

Primeira Parte

ESCRAVIDÃO E CAPITALISMOAcumulação primitiva e trabalho escravo 3

/ Aspectos da formação social escravista 12Expansão capitalista e crise da escravatura 19

V O senhor e o escravo '. 25O senhor, o burguês e o escravo 29Transparência e fetichismo da mercadoria : 37Liberdade e mais-valia -. 42

RAÇA E CLASSERa,ça e cultura 51Casta e classe ,—' ' 57Reprodução social das raças 64Consciência de alienação . , *9

Consciência política 75 •'

Segunda Parte

ESCRAVIDÃO E HISTÓRIAO presente e a idealização do passado 82Eficácia e humanidade da escravatura 87Tempo sem duração 91O declínio da perspectiva histórica . , 94A formação social escravista 96 /

ESCRAVIDÃO E RACISMOTipologias e ideologias raciais 101Raízes históricas dos antagonismos raciais 111A historicidade do presente 118

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RAÇA E POLÍTICASignificado político dos problemas raciais 127

i Antagonismos e conflitos raciais 128J Condição racial e desigualdade económica 132

í A política das relações raciais 135• Problemas raciais e contradições estruturais 140

PREFÁCIO

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Toda análise sobre as relações entre escravatura e capitalismo, nasAméricas e Antilhas, tende a girar em torno de algumas questõesbásicas. Independentemente das contribuições históricas e teóricasdas monografias e ensaios, em geral os escritos sobre escravidão ecapitalismo focali^arn QU£stécs~tais cojaek^s seguintes: .Como e porqueocapitalismo criaTQdesenvojyft^destror^ escravatura? QuandoT~cõrno as • contr^uliçéè>4«tcrtíasW-«*teffias, em cada uma das

, formações sociais escravistas, passam a desenvolver-se ei manifestar-se de forma irreversível, ou revolucionárias, provocan-l do a extinção do regime de trabalho escravo? Em que medida as

peculiaridades da formação social escravista e do processo abolicio-nista, em cada país, influenciam, ou determinam, as peculiaridadesdas formas de integração e antagonismo raciais após a extinção doregime de trabalho escravo? Como se cruzam, ou não, raça e classe,nos quadros das relações capitalistas de produção? Qual é a relaçãoentre capitalismo e racismo?

Essas questões são retomadas neste livro. Não pretendo terrealizado uma discussão completa dessas questões. Faço apenasuma ejtlocjUx-brevg- da~-pjxihlemáiit^ joamprej^dlda.. poxjdas.Mas penso que essa exploração permite propor, ou recolocar, temasde interesse para discussão e pesquisa.

Os trabalhos que compõem este livro são autónomos, no sentidode que" cada um pode ser lido de per si. Entretanto, todos estãoreciprocamente referidos, quanto aos problemas que abordam. Emconjunto, focalizam as questões mencionadas acima, sempre sob amesma perspectiva teórica. Foram escritos em 1974-76.

Quero agradecer a Heloísa Rodrigues Fernandes e CarlosGuilherme Mota, que tiveram a gentileza de ler e fazer sugestõessobre a primeira versão dos trabalhos reunidos neste livro.

São Paulo, agosto de 1977CEBRAP-PUC Octavio lanni

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JPRIMEIRA PARTE

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ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO

Acumulação primitiva e trabalho escravo

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1 Em primeira aproximação, parece um paradoxo o fato de que namesma época em que na Europa implantava-se o trabalho livre, noNovo Mundo criavam-se distintas formas de trabalho compulsório.Ao longo dos séculos XVI a XVIII , na Europa, primeiro expandiu-se a manufatura e depois surgiu a grande indústria, ao mesmotempo que se generalizou o trabalho livre. Nessa mesma época, nas

i colónias do Novo Mundo, criaram-se e expandiram-se as planta-fl tions, os engenhos e as encomiendas. O trabalho escravo era a base• da produção e da organização social nas plantations e nos> : engenhos; ao passo que nas encomiendas e outras unidadesíj produtivas predominavam distintas formas de trabalho compulsó-

1 rio. Tratava-se de dois processos contemporâneos, desenvolvendo-se no âmbito do processo mais amplo e principal de reprodução do

i; capital comercial. O motor desse processo mais amplo era o capital'.; comercial, que subordinava a produção de mercadorias na Europa

[g' 1[ e nas colónias do Novo Mundo e em outros continentes. Em'•'l decorrência da maneira pela qual expandia-se o capital comercial,]' criavam-se as condições çstruturais no seio das quais iriaj, desenvolver-se o capitalismo.JÁ medida que se expandia o capitalf comercial, amplamente dinamizado com os resultados dos grandesIj descobrimentos marítimos, isto é, devido à colonização de novas

terras e à formação de plantations, engenhos, fazendas, encomien-das, repartimientos e haciendas, corria na Europa, e principalmentena Inglaterra, a acumulação primitiva. Nesse país, de forma maisacentuada e ampla que em outros, verificava-se intensa acumula-ção de capital comercial, ao mesmo tempo que ocorria o divórcioentre o trabalhador e a propriedade dos meios de produção,surgindo assim o trabalhador livre. Em síntese, foi o capitalcomercial que gerou as formações sociais construídas nas colóniasdo Novo Mundo, provocando dessa maneira uma intensa acumula-

i cão de capital nos países metropolitanos, em particular na Inglater-j rã. Devido à sua preeminência crescente no sistema mercantilista

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mundial, a Inglaterra pôde impor à Espanha, Portugal e outrospaíses condições de comércio que aceleraram a acumulação decapital em seu território. Acresce que sob o mercantilismo os lucroseram bastante elevados.

As nações se jactavam cinicamente com cada ignominia que lhe servisse paraacumular capital. Vejamos, por exemplo, os ingénuos anais do comércio, do probo A.Anderson. Aí trombeteia-se como triunfo da sabedoria política ter a Inglaterra, napaz de Utrecht, extorquido dos espanhóis, com o tratado de Asiento, o privilégio deexplorar o trafico negreiro entre África e América Espanhola, o qual ela realizara atéentão apenas entre África e índias Ocidentais Inglesas. A Inglaterra conseguiu aconcessão| dejfornecer anualmente à América Espanhola, até o ano de 1743, 4.800negros. Isto servia, ao mesmo tempo, para encobrir sob o manto oficial ocontrabando britânico. Na base do tráfico negreiro, Liverpool teve um grandecrescimento. O tráfico constituía seu método de acumulação primitiva ... Liverpoolempregava 15 navios no tráfico negreiro, em 1730; 53, em 1751; 74, em 1760; 96, em1770, e 132, em 1792.

A indústria algodoeira têxtil, ao introduzir a escravidão infantil na Inglaterraimpulsionava ao mesmo tempo a transformação da escravatura negra dos EstadosUnidos que, antes, era mais ou menos patriarcal, num sistema de exploraçãomercantil. De fato, a escravidão dissimulada dos assalariados na Europa precisavafundamentar-se na escravatura, sem disfarces, no Novo Mundo (1).

Estes são os elementos do paradoxo: o mesmo processo deacumulação primitiva, que na Inglaterra estava criando algumascondições histórico-estruturais básicas para a formação do capitalis-mo industrial, produziac-no Novo Mundo a escravatura, aberta oudisfarçada. Ocorre que a acumulação primitiva foi um processo, deâmbito estrutural e internacional, gerado por dentro do mercantilis-mo. Penso que é conveniente especificar um pouco melhor oconceito. Convém lembrar que a categoria acumulação primitivaenvolve um conjunto de transformações revolucionárias, a partir dasquais se torna possível o desenvolvimento capitalista. A acumulaçãoprimitiva poderia ser considerada o processo social, isto é, político-econômico, mais característico da transição do feudalismo aocapitalismo. Como processo de âmbito estrutural, a acumulaçãoprimitiva envolveu principalmente a força de trabalho e o capital,nos seguintes termos. Quanto à força de trabalho, o que ocorreu foium divórcio generalizado e radical entre o trabalhador e a proprie-dade dos meios de produção. Historicamente, esse fenómeno ocorreutanto na agricultura como nos grémios e corporações de ofícios. Elese deu em concomitância com a criação de valores culturais e

(1) Karl Marx. O Capital, 3 fivros, trad. de Reginaldo Sant'''Anna, EditoraCivilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968 a 1974; citação do Livro l, vol. 2, p.877-878.

padrões de comportamento que compreendiam os princípios dacidadania, principalmente a faculdade de oferecer-se livremente nomercado, sem as limitações ou amarras das instituições gremiais,patriarcais, comunitárias ou outras. Quanto ao capital, o processo deacumulação primitiva envolveu intensa acumulação e concentraçãodo. capital, inclusive dos meios de produção. Apoiado na ampliação eintensificação do comércio internacional, nos quadros do mercanti-lismo, o capital comercial reproduziu-se em elevada escala.

As descobertas de ouro e de prata na América, o extermínio, a escravização daspopulações indígenas, forçadas a trabalhar no interior das minas, o início daconquista e pilhagem das índias Orientais e a transformação da África num vastocampo de caçada lucrativa são os acontecimentos que marcam os albores da era daprodução capitalista. Esses processos idílicos são fatores fundamentais da'acumulaçãoprimitiva (2).

Os diferentes meios propulsores da acumulação primitiva se repartem numaordem mais ou" menos cronológica por diferentes países, principalmente Espanha,Portugal, Holanda, França e Inglaterra. Na Inglaterra, nos fins do século XVII, sãocoordenados através de vários sistemas: o colonial, o das dívidas públicas, o modernoregime tributário e o protecionismo. Esses métodos se baseiam em parte na violênciamais brutal, como é o caso do sistema colonial(3).

O tratamento que se dava aos nativos era naturalmente mais terrível nasplantações destinadas apenas ao comércio de exportação, como as das índiasOcidentais, e nos países ricos e densamente povoados, entregues à matança e àpilhagem, como México e índias Orientais (4).

O sistema colonial fez prosperar o comércio e a navegação. As sociedadesdotadas de monopólio, de que já falava Lutero. eram poderosas alavancas deconcentração do capital. As colónias asseguravam mercado às manutaturas emexpansão e. graças ao monopólio.umai acumulação acelerada. As riquezas apresadasfora da Europa, pela pilhagem, escravização e massacre refluíam para a metrópoleonde se transformavam em capital(S).

(2) Karl Marx, Op. dl., Livro l, vol 2, p. 868.(3) Ibidem, p. 868-869.(4) Ibidem, p. 871. Quanto à violência inerente ao escravismo vigente no Brasil:

"Terrível, e lastimosa sorte é a de um cativo! Se come, é sempre a pior e mais viliguaria; se veste, o pano é mais grosseiro e o trajo o mais desprezível; se dorme, oleito é muitas vezes a terra fria e de ordinário uma tábua dura. O trabalho é contínuo,a lida sem sossego, o descanso inquieto e assustado, o alívio pouco e quase nenhum;quando se descuida, teme; quando falta, receia; quando não pode, violenta-se, e tirada fraqueza foiças". Cf. Jorge Benci, Economia cristã dos senhores no governo dosescravos (livro brasileiro de 1970), Editorial Grijalbo, São Paulo, 1977, p. 221.

(5) Karl Marx, Op. cit.. Livro l, vol. 2, p. 871.

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Foi o capital comercial que comandou a consolidação e ageneralização do trabalho compulsório no Novo Mundo. Todaformação social escravista dessa área estava vinculada, de maneiradeterminante, ao comércio de prata, ouro, fumo, açúcar, algodão eoutros produtos coloniais. Esses fenómenos, protegidos pela ação doEstado e combinados com os progressos da divisão do trabalhosocial e da tecnologia, constituíram, em conjunto, as condições datransição para o modo capitalista de produção. Assim, paracompreender em que medida o mercantilismo "prepara" o capitalis-mo, é necessário que a análise se detenha nos desenvolvimentos dasforças produtivas e das relações de produção. Mas para compreen-der esses desenvolvimentos é preciso situá-los no âmbito dastransformações estruturais englobadas na categoria acumulaçãoprimitiva. Nesse sentido é que a acumulação primitiva expressa ascondições históricas da transição para o capitalismo. Foi esse ocontexto histórico no qual se criou o trabalhador livre, na Europa, eo trabalhador escravo, no Novo Mundo. Sob esse aspecto, pois, oescravo, negro ou mulato, índio ou mestiço, esteve na origem dooperário.

É claro que esse enfoque não pretende desprezar, ou esquecer, ascondições particulares em que se constituíram e desenvolveram asdistintas formações sociais no Novo Mundo. Essas condições particu-lares foram responsáveis pela fisionomia singular assumida pelaplantation do Sul dos Estados Unidos, a encomienda do México, oengenho de açúcar do Nordeste do Brasil e outras formas deorganização social e técnica das relações de.produção baseadas notrabalho compulsório(6). Em cada caso (prata, ouro, fumo, açúcar,algodão etc.) entravam em jogo exigências específicas de capital,tecnologia, terra, mão-de-obra, divisão do trabalho social, forma deorganização e mando etc. Entravam em linha de conta a concentra-ção maior ou menor das terras férteis, os depósitos minerais, o vultoe a organização dos empreendimentos, a preexistência ou não demão-de-obra local, o custo da compra e manutenção escravo trazidoda África etc. Na base do arcabouço de cada formação social, noentanto, havia dois elementos fundamentais: o trabalho compulsórioe o vínculo com o capital comercial europeu."\e o século XVI, quando se iniciou o tráfico de africanos paraoríovo Mundo, ao século XIX, quando cessou esse tráfico e terminoua escravatura, teriam sido transportados da África cerca de 9.500.000negros. Desses, a maior parte foi levada para õ Brasil, que importou

(6) Quanto à encomienda e outras formas de organização social da produção baseadasno indígena, consultar: Juan A. e Judith E. Villamarin, Indian labor in mainlandcolonialSpanish America, Universlty of Delaware, Newark-Delaware, 1975.

6

38 por cento do total. Outros 6 por cento foram levados para osEstados Unidos. Nas Antilhas britânicas entraram 17 por cento, etambém 17 por cento foram às colónias francesas da área do Caribe.Por fim, outros 17 por cento foram levados às colónias espanholas.Cuba recebeu 702.000 africanos, ou seja, mais do que qualquer outracolónia espanhola; ao passo que o México importou cerca de200.000(7).

Ao mesmo tempo, foi amplo e intenso o intercâmbio comercialentre as metrópoles europeias e as suas colónias no Novo Mundo.Esse comércio era comandado pelo capital comercial, controladopelos governos e empresas estatais e privadas metropolitanas. Aolongo de todo o período colonial - e principalmente nas épocas doapogeu da produção de prata, ouro, açúcar, fumo, algodão e outrosprodutos -foi bastante elevada a exportação de excedente económicopara as metrópoles. Tanto por meio das administrações metropolita-nas nas colónias, como por intermédio das empresas e do comércioprivado, as exportações coloniais excediam às importações. Apenasuma parcela do excedente gerado nas colónias permanecia ali, paraa continuidade dos empreendimentos, das transações e das estrutu-ras de administração e controle(S). Essas relações económicas,

(7) Robert W. Fogel e Stanley L. Engerman, Time on thecross(The economics ofAmerican negro slavery), 2 vols., Little, Brown and Company, Boston, 1974, primeirovolume, cap. 1. Consultar também: Maurício Goulart, Escravidão africana no Brasil,Livraria Martins Editora, São Paulo, 1950; Rolando Mellafe, Breve historia de Iaesclavitud en América Latina, Sep-setentas, México, 1973; Magnus Morner, Estado,razas y cambio social en Ia Hispanoamérica colonial, Sep-setentas, México, 1974;Magnus Morner, Race misture in the history of Latin America, Little, Brown andCompany, Boston, 1967; Nicolas Sanchez-Albornoz e, José Luis Moreno, Lápoblación de América Latina (Bosquejo Histórico), Editorial Paidos, Buenos Aires,1968; Arthur Ramos, As culturas negras no Novo Mundo, Editora CivilizaçãoBrasileira, Rio de Janeiro, 1937; Roger Bastide, Lês Amériques noires, Payot, Paris,1967.

(8) Enrique Semo, História dei Capitalismo en México (Los origenes: 1521-1763).Ediciones Era, México, 1973, esp. p. 230-237; Caio Prado Júnior. Formação doBrasil Contemporâneo (Colónia), 4" edição. Editora Brasiliense. São Paulo. 1953.esp. p. 226-234; Roberto C. Simonsen, História económica do Brasil (1500-1820). 5a

edição, Companhia Editora Nacional, São Paulo. 1967. esp. cap. XI I I : Samuel E.Morison, The Oxford history of the American people, Oxford Oniversity .Press. NewYork, 1965, esp. caps. XII. XI I I e XIV; Lawrence A. Harper. "Mercantilism and theAmerican revolution", publicado por Cari N. Degler (Editor). Pivolal inlerpreta-tions of American history, 2 vols., Harper Torchbooks. New York. 1966. vol. I. p.77-90; Sérgio Bagu. Economia de Ia sociedadcolonial (Ensayo de historia comparadade América Latina). Librería El Ateneo Editorial. Buenos Aires. 1949: Stanley J.Stein e Barbara H. Stein. The colonial heritage of Latin America (Essays oneconomic dependence in perspective). Oxford University Press. New York. 1970.esp. caps. II e V; Demetrio Ramos Perez. Historia de In coloni:ación espanolaenAmérica, Ediciones Pégaso, Madrid. 1947. esp. livro II.

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organizadas segundo as exigências do mercantilismo, foram a basesobre a qual se formaram as sociedades coloniais. Em essência, pois,foi o capital comercial que comandou a constituição e o desenvolvi-mento das formações sociais baseadas no trabalho compulsório nascolónias europeias do Novo Mundo. A exploração do trabalhocompulsório, em especial do escravo, estava subordinada aosmovimentos do capital comercial europeu. Este capital comandava oprocesso de acumulação sem preocupar-se com o mando do processode produção. O comerciante europeu se enriquece comprando barato- com as vantagens da exclusividade que a metrópole mantém sobreos negócios da colónia-e vendendo mais caro. O dinheiro se valorizano processo de circulação da mercadoria.

Qualquer que seja a organização social das esferas de produção donde saem asmercadorias trocadas por intermédio dos comerciantes, o património destes existesempre como haveres em dinheiro e seu dinheiro exerce sempre a função de capital.A forma desse capital é sempre D - M - D; o ponto de partida é o dinheiro, a formaindependente do valor-de-troca, e o objetivo autónomo é o aumento do valor-de-troca. A própria troca de mercadorias e as operações que a propiciam -separadas na produção e efetuadas por não-produtores-são apenas meio de acrescera riqueza, mas a riqueza em sua forma social geral, o valor-de-troca(9).

O movimento do capital mercantil é D - M -D ; Por isso, o lucro do comercianteprovém, primeiro, de atos que ocorrem no processo de circulação, os atos decomprar e de vender, e, segundo, realiza-se no último ato, o de venda. É portantolucro de venda, profit upon alienation. É evidente que o lucro comercial puro,independente, não pode aparecer, quando os produtos se vendem por seus valores.Comprar barato, para vender caro, é a lei do comércio. Não se trata portanto de

trocar equivalentes(lO).

O desenvolvimento autónomo e preponderante do capital como capital mercantilsignifica que a produção hão se subordina ao capital, que o capital portanto sedesenvolve na base de uma forma social de produção a ele estranha e dele

mdependente(ll).

(9) Karl Marx. O capital, citado. Livro 3. vol. 5. p. 376.(10) Ibidem. p. 379.( 1 1 ) Ibidem, p. 377. Quanto aos característicos do mercantilismo e às relações do

capital comercial europeu com o tráfico de africanos e a escravidão no Novo Mundo,consultar: Eric Williams, Capitalism & slavery, Capricorn Books. New York. 1966;Thomas Mun. La riqueza de Inglaterra por el comercio exterior - Discurso acerca deicomercio de Inglaterra con Ias índias Orientales. trad. de Samuel Vasconcelos. Fondode Cultura Económica. México. 1954. Earl J. -Hamilton. El florecimiento deicapitalismo v olros ensavos de historia económica, trad. de Alberto Ullastres. Revistade Occidente. Madrid. 1948; Karl Polanyi. Dahomey and lhe s/ave trade, University ofWashington Press, Seattle, 1966; Eli F. Hecksher. Mercantilism. 2 vols. trad. deMendel Shapiro. George Allen & Unwin. London. 1953, esp. vol. l, cap. VII ."Foreing trade and busines organization"; Henri See. Origen y evolución dei

Essas reflexões indicam claramente que o que singulariza ahegemonia do capital mercantil é que ele torna autónomo, ousubstantiva, o processo de circulação, subordinando o processo deprodução. Tanto assim que a produção de mercadorias pode dar-sesob as mais diversas formas de organização social e técnica dasrelações de produção: seja nos grémios, corporações e manufaturas,seja nas haciendas, encomiendas, fazendas, engenhos eplantafions.

Note-se, no entanto, que na época em que o capital mercantil éautónomo e preponderante, relativamente ao processo produtivo, asmercadorias não são trocadas com base em seus valores, equivalên-cias. ou segundo as quantidades de trabalho social nelas contidos. Aequivalência entre elas é fortuita, já que o comerciante se dedicapura e simplesmente a comprar barato e vender caro. Ele opera noâmbito do mercado europeu, da comercialização dos produtosprovenientes do Novo Mundo e outras partes do sistema colonialeuropeu surgido com o mercantilismo. Beneficia-se do monopóliocolonial, característico do mercantilismo, para aumentar mais oumenos à vontade o seu lucro comercial. Nessas condições, ésecundário o valor real da mercadoria, em termos de contabilidadede custos, ou trabalho social nela cristalizado. Esse valor, seja qualfor a maneira de avaliá-lo, somente tem importância para o dono daplantation, engenho ou outras unidades produtivas baseada notrabalho compulsório ou formas de cooperação simples. Para ocapital mercantil, era bastante secundária a forma de produção dofumo, açúcar, algodão, prata, ouro e outros produtos. Mesmo porque,no apogeu do capital comercial, o comerciante não domina oprocesso produtivo, mas sim o processo de circulação.

Comprar barato, para vender caro. é a lei do comércio. Não se trata portanto detrocar equivalentes. O conceito de valor está ai implícito, na medida em que asdiferentes mercadorias representam todas valor e por conseguinte dinheiro;qualitativamente são todas elas por igual expressões do trabalho social. Mas. nãosão valor da mesma magnitude. No inicio, é inteiramente fortuita, casual, a relaçãoquantitativa em que os produtos se trocam. Assumem a forma de mercadoria, namedida em que são permutáveis, isto é, expressões do terceiro termo que as tornahomogéneas. A troca continuada e a reprodução mais regular para troca eliminacada vez mais essa casualidade; no começo, porém, não para os produtores econsumidores, e sim para o intermediário entre ambos, o comerciante, que comparaos preços em dinheiro e embolsa a diferença. Com as próprias operações estabeleceele a equivalência.

capitalismo moderno, trad. de M. Garza. Fondo de Cultura Económica. México, 1944;Eric Hobsbawn, En torno a los orígenes de Ia revolución industrial, trad. de OféliaCastillo e Enrique Tandeter, Siglo Veimiuno Editores. Buenos Aires, 1971; MauriceDobb, A evolução do capitalismo, 3* ediçáo. trad. de Affonso Blacheyre. ZaharEditores. Rio de Janeiro. 1973. esp. cap. V, "A acumulação de capitais e mercantilis-mo"; Christopher Hill. Reformation to industrial revolution (A social and economichistoryofBritain: 1530-1780). Weidenfeld & Nicolson, London, 1968.

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Nos primórdios, o capital mercantil é movimento mediador entre extremos quenão domina e pressupostos que não cria(I2).

É importante observar que por sob o processo de circulação demercadorias, governado pelo capital mercantil, encontràm-se váriasformas de produção. A despeito de que o lucro do comerciante serealiza no comércio, ele não pode realizar-se a não ser com base emquantidades crescentes de mercadorias. E estas são produzidas nascolónias europeias no Novo Mundo, principalmente sob distintasmodalidades de trabalho compulsório. Aqui, pois, coloca-se umproblema crucial. Em última instância, por sob o lucro do comer-ciante está o sobrevalor criado pelo sobretrabalho realizado pelonegro e o índio aberta ou veladamente escravizados. Ou seja, em umnível, o comerciante lucra comprando barato e vendendo mais caro.Em outro nível, no entanto, é preciso que ele possa comprarquantidades crescentes de mercadorias, para expandir os seusnegócios e ampliar a escala da acumulação. Se as mercadorias sãoproduzidas em condições convenientes - quanto ao volume, àpresteza, à qualidade e outros requisitos - é claro que o comerciantepode ampliar e dinamizar os seus negócios; melhorar a suacompetitividade e ou a sua margem de lucro.

E nesse ponto que a escravatura e as outras formas de trabalhocompulsório se situam. O capital comercial absorve quantidadescrescentes de mercadorias. Para que estas se produzam nas colóniasdo Novo Mundo, é necessário atar o trabalhador aos outros meios deprodução. Ele não pode ser assalariado, porque a disponibilidade deterras devolutas permitiria que se evadisse, transformando-se emprodutor autónomo. Daí a escravização aberta, ou disfarçada, deíndios e negros na encomienda, hacienda, plantation, engenho,fazenda e outras modalidades de organização social e técnica dasrelações de produção e das forças produtivas.

Em sua análise das condições que produziram a escravatura noNovo Mundo, Marx ressalta dois pontos. Em primeiro lugar, adisponibilidade de terras baratas ou devolutas, o que permitiria queo assalariado, em pouco tempo, pudes.se abandonar a plantation, oengenho ou outra unidade produtiva, para tornar-se sitiante, aomenos produzindo o essencial à própria subsistência. Em segundolugar, as metrópoles não dispunham de grandes reservas de mão-de-obra, para encaminhar às colónias e dinamizar a produção de

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fumo, açúcar, prata, ouro etc. Essas foram as razões principais dacriação e generalização do trabalho escravo em várias colóniaseuropeias no Novo Mundo. Nas colónias em que havia indígenas,estes foram submetidos a alguma forma de trabalho compulsório,nas aldeias, reduções, encomiendas etc. Para evitar-se que eles seevadissem dos locais de trabalho, ou sofressem de maneira demasia-do destrutivas as condições de trabalho exigidas pela produçãocolonial, os índios do Novo Mundo foram submetidos a formasespeciais de trabalho compulsório. Em algumas situações, a escrava-tura era,aberta e organizada como tal; em outras ela era latente,social e tecnicamente organizada de forma diversa daquela (13).Além dos africanos trazidos para o Novo Mundo, também gruposnativos foram submetidos à escravidão aberta. No conjunto dascolónias europeias no Novo Mundo, a administração metropolitanaorganizou-se principalmente com três finalidades. Primeiro, evitar ecombater a penetração dos interesses de outras metrópoles, noespírito do exclusivismo ou monopólio característico do mercantilis-mo. Segundo, controlar a circulação do trabalhador escravo, sobtodas as formas, para garantir a produção colonial e assegurar avigência do sistema político-social cujo fundamento era o trabalhoescravizado. Terceiro, garantir a continuidade e a regularidade daexportação do excedente económico produzido na colónia, exceden-te esse essencial à reprodução e ampliação do capital mercantilmetropolitano.

Mas é fundamental reconhecer, ainda, que a escravidão foitambém um grande negócio para os comerciantes ingleses, holande-ses, franceses, espanhóis, portugueses e outros ligados ao tráfico denegros da África ao Novo Mundo. Havia vultuosos capitais metropo-litanos envolvidos no comércio de escravos, vinculando assim ametrópole, a África e as colónias do Novo Mundo. A dinâmica docapital mercantil envolvido no tráfico era um elemento importantena manutenção e expansão da escravatura nas colónias. A produçãodas colónias, por sua vez, era comandada a partir da dinâmica docapital mercantil, cuja árcade realização e reprodução era a Europa.Assim é que se intensifica a acumulação primitiva e, ao mesmotempo, consolidam-se e expandem-se as formas de organizaçãosocial e técnica do trabalho compulsório. Pouco a pouco, essesencadeamentos entre a Europa, a África e o Novo Mundo adquiremoutros desenvolvimentos, principalmente com o crescimento da

(12) Karl Marx, O capital, citado, Livro 3, vol. 5,. p. 379-380. Esta citação, bem comoas três anteriores, foram retiradas do cap. intitulado "Observações históricas sobre ocapital mercantil''. Consultar também:Christopher Hill, Op.cit; e Maurice Dobb.Op.

(13) Karl Marx, O capital, citado, Livro l, vol. 2, cap. XXV, intitulado "Teoriamoderna da colonização", p. 883-894; Enrique Semo, História dei capitalismo enMéxico, citado, esp. cap. V, sobre o trabalho em "La República de los Espanoles", p.188-229.

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produção manufatureira. Em conjunto, essas relações económicasinternacionais, aceleram a acumulação de capital na Inglaterra,devido à posição privilegiada que esse país passou a ocupar nomercantilismc"e, em seguida, no capitalismo industrial nascente.

Williams: Nesse comércio triangular, a Inglaterra - da mesma maneira que aFrança e a América Colonial - oferecia as exportações e os navios: a África ofereciaa mercadoria humana: e as plantations as matérias-primas coloniais. O navionegreiro navegava da metrópole com a carga de manufaturados. Estes eramtrocados lucrativa mente por negros na África, negros esses que eram comerciadosnas plantalions com mais lucro, em troca de produtos coloniais que eramtransportados à metrópole. Quando o volume do comércio cresceu, a trocatriangular foi suplementada, mas não suplantada, pelo intercâmbio direto entre ametrópole e as índias Ocidentais, comerciando-se manufaturados da metrópolediretamente com produção colónia (14)

Hill: Entre 1700 e 1780 o comércio exterior inglês quase dobrou; e triplicou nosvinte anos seguintes. A frota também dobrou. Nos mesmos anos 1700-1780 ocorreuuma mudança no mapa económico, no qual a Europa era ainda o mais importantemercado da Inglaterra, para um mapa no qual esse lugar passou a ser ocupado pelascólon ias (l 5).

A spectos da formação social escravista

Note-se, pois, que o funcionamento e a expansão do capitalmercantil cria, mantém e desenvolve o paradoxo representado pelacoexistência e interdependência do trabalho escravo e trabalholivre, no âmbito do mercantilismo. No limite, o escravo estavaajudando a formar-se o operário. Isto é, a escravatura, nasAméricas e Antilhas, estava dinamicamente relacionada com oprocesso de gestação do capitalismo na Europa, e principalmentena Inglaterra. Esse "paradoxo" começa a tornar-se cada vez maisexplícito à medida que o mercantilismo passa a ser suplantado pelocapitalismo.

Esse paradoxo, ou melhor, essa contradição, não seria sustentávelse se apoiasse apenas na acumulação primitiva, no comércio demercadorias, ou no monopólio colonial. Por mais decisivas quetenham sido as relações comerciais externas, no âmbito do mercanti-lismo, a referida contradição somente pode manter-se porquehaviam-se constituído, nas colónias, formações sociais amplamente

(14) Eric Williams, Capitalism & slavery, citado, p. 51-52. Consultar também: KarIPolanyi, Dahomey and the slave trade, University of Washington Press, Seattle, 1966;José Ribeiro Júnior, Colonização e monopólio no Nordeste brasileiro, Hucitec," SãoPaulo, 1976, esp. cap. IV.

(15) Christopher Hill, Reformalionto industrial revolution, citado, p. 184.

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articuladas internamente. Isto é, as formações sociais escravistastornaram-se organizações político-econômicas altamente articula-das, com os seus centros de poder, princípios e procedimentos demando e execução, técnicas de controle e repressão. Independente-mente dos graus e maneiras de vinculação e dependência dascolónias, em face da metrópole, é inegável que em cada colóniaorganizou-se e desenvolveu-se um sistema internamente articulado emovimentado de poder político-econômico. Nesse sentido é que emcada colónia constituiu-se uma formação social mais ou menosdelineada, homogénea ou diversificada. Uma formação social escra-vista era uma sociedade organizada com base no trabalho escravo(do negro, índio, mestiço etc.) na qual o escravo e o senhorpertenciam a duas castas distintas; sociedade essa cujas estruturas dedominação política e apropriação económica estavam determinadaspelas exigências da produção de mais-valia absoluta. Nessas forma-ções sociais, as unidades produtivas - como os engenhos de açúcar noNordeste do Brasil e as plantations do Sul dos Estados Unidos, porexemplo-estavam organizadas de maneira a produzir e reproduzir,ou criar e recriar, o escravo e o senhor, a mais-valia absoluta, acultura do senhor (da casa-grande), a cultura do escravo (dasenzala), as técnicas de controle, repressão e tortura, as doutrinasjurídicas, religiosas ou de cunho "darwinista" sobre as desigualdadesraciais e outros elementos. A alienação do trabalhador (escravo)característica dessas formações sociais implicava que ele era física emoralmente subordinado ao senhor (branco) em sua atividadeprodutiva, no produto do seu trabalho e em suas atividadesreligiosas, lúdicas e outras. Nessas condições, as estruturas dedominação eram, ao mesmo tempo e necessariamente, altamenterepressivas e universais, estando presente em todas as esferaspráticas e ideológicas da vida do escravo (negro, mulato, índio emestiço). Assim, a formação social escravista era uma sociedadebastante articulada internamente, motivo porque ela pôde resistiralgum tempo às contradições "externas"; ou às contradições internaspouco desenvolvidas.

Desde fins do século XVIII começou a desenvolver-se algum tipode antagonismo, entre as exigências do capitalismo e as da formaçãosocial escravista. Para compreender a duração desse antagonismo, éindispensável compreender a fisionomia da formação social escravis-ta como uma estrutura político-econômica singular; nos primeirostempos, não era apenas um apêndice do sistema mercantilista, edepois, a partir do século XVIII, não se manteve apenas umapêndice do capitalismo em expansão.

Nos tempos modernos, a plantation em geral surgiu sob os auspícios burgueses.

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para- suprir a indústria com matérias-primas baratas: mas as consequências nãoforam sempre harmónicas com a sociedade burguesa (16).

A sociedade da plantalion, que havia começado como apêndice do capitalismoinglês, terminou por ser uma poderosa civilização, amplamente autónoma, comambições e possibilidades aristocráticas, embora permanecendo vinculada ao mundocapitalista pelos laços da produção mercantil. O elemento essencial desta singularcivilização era o domínio do senhor de escravos, possibilitado pelo controle dotrabalho. A escravatura foi a base do tipo de vida económica e social do Sul, dos seusproblemas e tensões especiais, das suas peculiares leis de desenvolvimento (17).

A verdade é que toda pesquisa sobre a escravatura no NovoMundo enfrenta-se, de alguma maneira, com as implicações históri-cas e teóricas da problemática expressa nas categorias modo deprodução e formação social. Os ensaios, as monografias e os estudoscomparativos de David Brion Davis, Eugene D. Genovese, HerbertAptheker, E. Franklin Frazier, Gunnar Myrdal, Robert W. Fogel,Stanley L. Engerman, Everett C. Hughes, Herbert Blumer, Cari N.Degler, Magnus Morner, C. R. Boxer, Herbert S. Klein, Sérgio Bagu,Demetrio Ramos Perez, Enrique Semo, Verena Martinez-Alier,Juan Martinez Alier, Ciro F. S. Cardoso, Caio Prado Júnior,Florestan Fernandes, Celso Furtado, André Gunder Frank, ErícWilliams, Emilia Viotti da Costa, Fernando H. Cardoso, Stanley J.Stein, Fernando A. Novais e outros orientam-se no sentido decompreender a escravatura em suas articulares e contradições com osistema económico mundial. Mesmo quando alguns desses autoresnão trabalham explicitamente com as noções de modo de produção eformação social, é inegável que as suas análises, sugestões ehipóteses representam contribuições de maior ou menor valor para adiscussão e a pesquisa das articulações entre a escravatura do NovoMundo e o sistema económico mundial. Inicialmente,.ao longo dosséculos XVI e XVII, tratava-se do relacionamento entre o mercanti-lismo e as distintas formas de trabalho compulsório; depois, ao longodos séculos XVIII e XIX, tratava-se do encadeamento e antagonismoentre escravidão e capitalismo. Em todos os casos, no entanto, éimportante assinalar que" os autores mencionados apresentam subsí-dios históricos e teóricos para a interpretação dos encadeamentosentre as formações sociais prevalecentes nas diversas|colônias ameri-

(16) Eugene D. Genovese, The política! economy ofslavery (Studies in the economyand society of the slave south), Pantheon Books, New York, 1966, p. 15.

(17) Ibidem, p. 15-16. A propósito dos movimentos e perfis de diferentes formaçõessociais escravistas: Eugene D. Genovese (organizador), The slave economies, 2 vols.,John Wiley & Sons. New York. 1973; Florestan Fernandes, Circuito FechadoHucitec São Paulo, 1976, cap. l, intitulado "A sociedade escravista no Brasil".

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canas e antilhanas e o modo de produção prevalecente em âmbitomundial, com núcleo dinâmico na Europa.

O que parece não vhaver ainda, entre esses e outros cientistassociais, é um consenso suficientemente consistente sobre essas eoutras categorias envolvidas na história político-econômica dassociedades do N ovo Mundo. Ciro F. S. Cardoso, Juan Martinez Aliere Verena Martinez-Alier, por exemplo, utilizam o conceito de "modode produção escravista". Fernando A. Novais sugere a noção de"modo de produção colonial". Celso Furtado emprega os conceitosde "semifeudal" e "feudalismo". Sérgio Bagu também consideraaplicáveis as noções de "formas feudais" e "feudalismo". André G.Frank rejeita essas e outras noções, preferindo considerar o NovoMundo sempre nos termos do conceito de "capitalismo". EnriqueSemo afirma que não se pode falar em modo de produção escravistanas colónias da Espanha, e sugere as noções de "semifeudal" e"feudalismo", como Bagu, Furtado e outros. Vejamos, a título deexemplo, os termos de algumas formulações de Semo. Sob váriosaspectos, elas contêm os principais elementos da controvérsia sobreas características e os movimentos das formações sociais baseadas notrabalho compulsório.

Apesar da extensão da escravatura de um ou outro tipo (manifesta e latente), asociedade novo-hispânica nunca passou por um modo de produção escravista. Não sedeve esquecer que a escravidão generalizada do índio serviu para inundar de pratabarata a uma Europa em plena revolução sócio-econômica. e lançar as bases deunidades económicas semifeudais no México.

A escravidão generalizada não fez da sociedade novo-hispânica um sistemaescravista, assim como o capital comercial e usurário da antiga Roma não converteuesta num empório capitalista. A escravidão negra nos Estados Unidos lançou as basesdo desenvolvimento do capitalismo pré-industrial; a escravidão indígena serviu, naNova Espanha, para impulsionar o surgimento de um sistema no qual o feudalismoaparece estreitamente entrelaçado com o capitalismo embrionário e dependente (18).

Assim como àsplanlations escravistas dos EstadosUnidosnão foram a base de ummodo de produção escravista, mas sim do desenvolvimento do capitalismo, aencomienda - apesar da sua forma tributária de exploração - serviu para a gestação deuma estrutura baseada na propriedade privada, na qual feudalismo e capitalismoembrionários se entrelaçam (19).

Devido a uma série de fatores já apontados, a economia da Nova Espanhacontava, desde o princípio, com um desenvolvimento importante da produção

(18) Enrique Semo, Op. cit., p. 209-210(19) Ibidem, p. 219.

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mercantil. Isto tem induzido a erro a mais de um historiador, que, confundindoprodução mercantil com capitalismo, fala-nos em encomienda "capitalista", hacienda"capitalista" e obrajes "capitalistas", em pleno século XVI, porque estas unidadesachavam-se ligadas a um mercado e produziam em parte para ele (20).

Não me parece oportuno fazer-, neste ensaio, uma discussãocrítica dessas e outras interpretações e hipóteses, relativamente aosencadeamentos entre formação social e modo de produção; ou sobreo caráter colonial, escravista, semifeudal, feudal etc. das relações deprodução na época colonial e no século XIX, após as crises e lutas deindependência. Essa é matéria para ser examinada, de maneirasistemática e especial, em outra ocasião. Ela implica a própriacompreensão das categorias: capitalismo, feudalismo, mercantilis-mo, escravismo, modo de produção, formação social, relações deprodução, forças produtivas e algumas outras. P&rece-me oportuno,no entanto, fazer algumas sugestões, na medida em que envolvemdiretamente a compreensão da história politico-econômica daescravi-dão.

Convém repetir aqui: as formações sociais baseadas no trabalhocompulsório, criadas no Novo Mundo, nascem e desenvolvem-se nointerior do mercantilismo! ou seja, na época e sob a influência docapital mercantil, então predominante e ascendente na Europa. Aomesmo tempo que se organizam e expandem as formações sociaisbaseadas na plantation, engenho, fazenda, encomienda, hacienda etc.,o Novo Mundo entra ativa e intensamente no processo de acumula-ção primitiva, que se realiza de maneira particularmente acentuadana Inglaterra. Em seguida, a progressiva subordinação do capitalmercantil ao capital produtivo, isto é, industrial, as formações sociaisbaseadas no trabalho compulsório rearticulam-se interna e externa-mente. Sofrem o impacto do tipo de comercialização (dosprodutos coloniais, produzidos pela mão-de-obra escrava) comanda-da pelasiexigências da reprodução do capital industrial.jContempora-neamente, em especial desde o começo do século XIX, as relaçõesescravistas de produção e as próprias formações sociais escravocra-tas (coloniais) entram em crise e declínio. Tanto assim que a

(20) Ibidem, p. 240. Consultar também: Sérgio Bagu, Op. dl., p. 101-113; C.S.Assadourian, C.F.S. Cardoso, H. Ciafardini, L C.Garavagliae E. Laclau, Modos de'producción en América Latina, Ediciones Passado y Presente, Córdoba, 1973; Juan yVerena Martinez-Alier, Cuba: economia y sociedad, Ruedo Ibérico, Paris, 1972, p.13; André G. Frank, Capitalism and underdevelopment in Latin America, MonthlyReview Press, New York, 1967, p. 221-242; Celso Furtado, Formação económica daAmérica Latina, Lia Editor, Rio de Janeiro, 1969, p. 35-39; Fernando A. Novais,.Estrutura e dinâmica do antigo sitíema co/om'a/'(séculos XVI-XVIII), Cadernos Cebrap,São Paulo, 1974, p. 27 e 33.

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independência política das colónias do Novo Mundo e a emancipa-rcão dos escravos são processos mais ou menos contemporâneos -econjugados. De qualquer maneira, desde o princípio as sociedadesjlp,,Noy0 Mundo estão atadas à economia mundial: primeiro àmercantilista e depois à capitalista. Nesse sentido é que as socieda-des das Américas e Antilhas são formadas em estado de dependên-cia, enquanto colónias e países. São como que geradas nos quadros^do mercantilismo, da acumulação primitiva e do nascente capitalis- |mo europeu. Por isso, no primeiro instante as formações sociais \s do Novo Mundo são essencialmente determinadas pela j

reprodução do capital mercantil. E, no segundo momento, a partir ;do século XVIII, as formações sociais escravistas passam a ser \e determinadas pelas exigências do capital industrial, f

em expansão na Europa e, principalmente, na Inglaterra. Ou seja, idesde o século XVI ao XIX os movimentos, as articulações e asrearticulações, internos e externos, das formações sociais escravistasnas Américas e Antilhas são influenciados e mesmo determinados l(em graus variáveis, é certo) pelas exigências da reprodução do 'capital europeu; primeiramente mercantil e em seguida industrial^

Essa determinação "externa" aparece em várias interpretações. Elaé importante para compreendermos as características e os movimen-tos das formações sociais baseadas no trabalho compulsório. Aoreferir-se a essa questão, Caio Prado Júnior aponta o que lhe pareceser o próprio sentido básico e geral da colonização no Novo Mundo.Ciro F. S. Cardoso chama a atenção para as inestabilidades inerentesa essa dependência histórico-estrutural. Aliás, em meados do séculoXIX Marx já havia assinalado o caráter "anómalo" e "formalmenteburguês" da formação social escravista nas Américas e Antilhas.

Prado Jr.: Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nosconstituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros géneros; mais tarde ouro ediamantes; depois, algodão, e em seguida café, para o comercio europeu(21).

Cardoso: A dependência e a deformação fazem que as estruturas coloniais soframpesadamente as consequências:das mudanças de conjuntura e das imposições do mercado -internacional, sem ter a flexibilidade e autonomia que permitam uma adaptação rápidae eficaz ai condições novas (11).

Marx: A escravidão dos negros • uma escravidão puramente industrial - quedesaparece de um momento para outro e é incompatível com o desenvolvimento da

(21) Caio Prado Júnior, Formação do Brasil contemporâneo (Colónia), citado, p.26. Também: Enrique Semo, Op. cit., p. 251-252.

(22) Ciro Flamarión Santana Cardoso, "El modo de producción esclavista colonialen América", publicado por C.S. Assadourian e outros. Modos de producción enAmérica Latina, citado, p. 193-230; citada p. 214. Também E. Semo, Op. cit., p. 249.

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sociedade burguesa, pressupõe a existência de tal sociedade: se junto a essa escravidãonão existissem outros estados livres, com trabalho assalariado, todas as condiçõessociais nos estados escravistas assumiriam formas pré-civilizadas(23).

O fato de que os donos das plantaiions na América não somente os chamemosagora capitalistas, mas que o sejam, funda-se no fato de que eles existem como umaanomalia dentro de um mercado mundial baseado no trabalho livre(24)

Na segunda classe de colónias- as plantations, que são, desde o próprio momentode sua criação, especulações comerciais, centros de produção para o mercadomundial - existe um regime de produção capitalista, ainda que somente de um modoformal, posto que a escravidão dos negros exclui o trabalho livre assalariado, que é abase sobre a qual descansa a produção capitalista. Não obstante, são capitalistas osque manejam o negócio do tráfico de negros. O sistema de produção introduzido poreles não provém da escravatura, mas sim enxerta-se nela. Neste caso, o capitalista e odono âaplantalion são uma só pessoa (25).

Nessas condições, quando o capitalismo alcança certo grau dedesenvolvimento, em âmbito mundial, ele. torna difícil a continuida-de das relações escravistas de produção-yDepois de alcançar certodinamismo, em escala mundial, o capital i ndustriai começa ainfluenciar, matizar, alterar ou mesmo destruir as formas deorganização social e técnica das relações de produção que não seadequam, de alguma maneira, ao seu ritmo e sentido. <("Assim, o paradoxo representado pela articulação do trabalho livre,na Europa, com o trabalho escravo, nas Américas e Antilhas,revela-se uma contradição estrutural significativa quando ocorre aindependência das colónias do Novo Mundo. Com a independênciados Estados Unidos, por exemplo, a burguesia ascendente éobrigada a_jrecj3nhe<^jL£xis^ênjd^d^^lado com o trabalho livre. Ao mesmo tempo que a constituiçãoestabètéce o princípio da cidadania, para o branco, confirma oprincípio da escravatura, para o negro. A mesma incongruênciaideológica tornou-se mais ou menos explícita para os outros novosEstados nacionais surgidos com a crise dos sistemas, coloniais domercantilismo europeu. Essa ambiguidade foi registrada por JoséBonifácio, um dos líderes da independência política do Brasil.Precisamente na época da formação do Estado nacional, nesse país,tornou-se evidente a incongruência entre os compromissos liberais,inerentes à forma pela qual desenrolou-se a luta pela independência,

(23) Karl Marx, Elementos fundamentales para Ia crítica de Ia economia política, 2vols., trad. de José Arico, Miguel Murmis e Pedro Scarón, Siglo Veintiuno Editores,México, 1971, vol. l, p. 159.

(24) Ibidem, p. 476.(25) Karl Marx, Historia crítica de Ia teoria de Ia plusvalia, 3 vols.. trad. de

Wenceslao Roces, Fondo de Cultura Económica, México, 1944-45; citação do vol. II, p.332-333.

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f

e as exigências da continuidade do trabalho escravo. TambémFriederich Engels registrou essa ambiguidade, quanto aos EstadosUnidos.

Bonifácio: Mas como poderá haver uma Constituição liberal e duradoura em umpaís continuamente habitado por um multidão imensa de escravos brutais e ini-migos? (26).

Engels: E é indicativo do caráter especificamente burguês desses direitos humanosque a Constituição americana, a primeira a reconhecer os direitos do homem, damesma forma confirma a escravatura das raças de cor existentes na América:privilégios de classe são proscritos, privilégios de raça são sancionados(27).

O paradoxo aparente dos primeiros tempos, surgido no âmbito daacumulação primitiva e do mercantilismo, tornara-se um paradoxoreal, económica e politicamente, quando o capitalismo industrialganha preeminência no sistema económico mundial. A criação dosEstados nacionais nas Américas tornava interna, presente, explícita eaguda a contradição entre o trabalho escravo e o trabalho livre. Essafoi a ocasião em que - conforme as condições peculiares de cada país -a nascente formação social capitalista se impôs e venceu a escravista.

Expansão capitalista e crise dia escravatura

Ao longp dos séculos XVI e XVIII, o capital comercial floresceubastante, mas acabou por subordinar-se ao capital industrial. Poucoa pouco, ajírodução passou a ser a esfera em que a acumulação d,ecapital passavà~~ir rejjíza&se; e a circulação transformou-se ,mjmjnpmento necessário, mas subordinado, do conjunto do processocapitalista de produção. Essa transição qualitativa fundamentalocorreu sob as mais variadas formas. Houve comerciantes que~se..

Jnjejsssj^rarrijpelajjrodução e organizarãST os seíis negócios combi-nando^ e^oir^mlanda os prpcessos produtivo e de circuf^áo, efn"conjunto. ^Houve donos de fábricas e outros empreendimentos"1^produtores de mercadorias que passaram a negociar na esfera dacirculação de mercadorias. Ao mesmo tempo, na Inglaterra crescia aacumulação do capital financeiro, devido a sua hegemonia na ,

(26) José Bonifácio, "Representação à Assembléia-Geral Constituinte e Legislativado Império do Brasil sobre a Escravatura", publicado por Octavio Tarquinio deSousa, José Bonifácio, Livraria-Martins Editora, São Paulo, 1944, p. 39-66; citação dap. 41.

(27) Friederich Engels, Antidiihring, Foreign Languages Publíshing House, Mos-cow, 1962, p. 146.

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expansão do capital mercantil. E paralelamente^ generalizava-se odivórcio entre o trabalhador e a propriedade dos<rneiqs^ de produção,o que transformava todo trabalhador em vendeHor de força detrabalho, em especial no mercado urbano e industrial em francaexpansão. Paulatinamente, pois, ji_vida económica passou a sercomandada pelo movimento das forças produtivas e das relações deprodução. Na industria, na agricultura e na mineração dinamizararfivsê" ás forças produtivas e desenvolveram-se económica, social eVpoliticamente as relações de produção. Os mercados nacionais cj,internacionais passaram a ser inundados também por produtosmanufaturados, em quantidades crescentes e nas mais diversasqualidades e modas. As colónias europeias passaram a receber, emquantidades crescentes, as manufaturas inglesas^Q—capital industrial Vimp-Uftha-$e--sekFe~ e -eemereial e o financeirjC Assim, ao longo dos\s XVI a XVIII foi crescendo a importância da prodtiçãp ;

industrial: embarcações, metalurgia (principalmente armas), tecido^de lã, tecidos de algodão etc. Mas foi no século XVII I que o capitalindustrial conquistou a preeminência sobre o capital comercial. Foiuma transição histórico-estrutural complexa, na qual o capital v

produtivo passou a colorir e dar sentido ao conjunto das relações deprodução e do processo de realização da mercadoria. Vejamosalgumas formulações breves de Christopher Hill e Karl Marx, sobre aascensão do capital industrial.

Hill: Um pré-requisito essencial para a revolução industrial foi o monopólio demercados coloniais amplos e estáveis. A conquista da índia permitiu que, na ocasiãooportuna, tal mercado se abrisse à indústria inglesa de tecidos de algodão. Desdemeados do século XVIII havia declinado a importância das índias Ocidentais, poisque os seus escravos e os donos deplantations absenteístas não criavam um mercadosignificativo, para as manufaturas inglesas. As tradicionais colónias das índiasOcidentais forneciam matérias-primas não competitivas com os produtos da metrópo-le, matérias-primas essas que eram processadas para reexportação. Dessa maneira, onovo império podia ser visto como um mercado crescendo indefinidamente para asmanufaturas inglesas. Quando o antigo monopólio imperial se extinguiu, cerca de1770, as indústrias inglesas de tecidos de algodão e metalurgia já haviam sedesenvolvido tanto que os seus produtos podiam reentrar e capturar os mercadoseuropeus. Assim, podemos distinguir cinco períodos na evolução do comércioexterior inglês: (1) até 1600, os antigos tecidos eram exportados principalmente paraos mercados da Europa do norte; (2) cerca de 1600-1650, os novos tecidos supriamem especial os mercados europeus do sul; (3) cerca de 1650-1700. monopólio-colonial,entreposto e reexportação; (4) cerca de 1700-1780, exportação de manufaturas,,principalmente para as colónias; (5) a partir de 1780, a Inglaterra como fábrica do

mundo(28).

(28) Christopher Hill, Reformation to industrial revolulion, citado, p. 191.

Marx: Na produção capitalista, o capital mercantil deixa a antiga existênciasoberana para ser um elemento particular do investimento de capital, e o nivelamentodos lucros reduz sua taxa de lucro à média geral. Passa a funcionar como agente docapital produtivo(29).

A transição portanto triplica-se: primeiro, o comerciante se torna diretamente (industrial. ... Segundo, o comerciante torna os mestres artesãos seus intermediários ou /compra diretamente do produtor autónomo; deixa-o nominalmente independente eintato o modo de produção dele. Terceiro, o industrial se torna comerciante e produz ;em grosso diretamente para o comèrcio(30). ^

Nos estádios de circulação, o valor-capital assume duas formas, a de capital-dinheiro e a de capital-mercadoria; no estádio de produção, a forma de capitalprodutivo. O capital que no decurso de todo o seu ciclo ora assume ora abandonaessas formas, executando através de cada uma delas a função correspondente, é ocapital-industrial, industrial aqui no sentido de abranger todo ramo de produçãoexplorado segundo o modo capitalista(31).

O capital industrial é o único modo de existência do(capital em que este tem porfunção não só apropriar-se da mais-valia, ou do produto excedente, mas tambémcriá-la. Por is$o, determina d carálfiLcapitalista.dje produção; sua existência implica aoposição entre a classe capitalista e a trabalhadora. Na medida em que se apodera daprodução social, são revolucionadas a técnica e a organização social do processo detrabalho e com elas o tipo econômico-histórico da sociedade. As outras espécies decapital que surgiram antes dele em meio a condições sociais desaparecidas ou emdecadência, a ele se subordinam, modificando o mecanismo de suas funções e, alémdisso, movem-se nele fundamentadas, com ele vivem ou morrem, firmam-se ou caem. iO capital-dinheiro e o capital-mercadoria quando funcionam como veículo de um iramo específico, ao lado do capital industrial, não são mais do que modos de \a que a divisão social do trabalho tornou autónomos e especializados, das )

diferentes formas de funcionamento que o capital industrial ora assume ora abandonana esfera da circulação(32). . -

O {2jr££fiS$Q_-fU&díilivo_ deixa de ser subalterno ou reflexo doprocesso de circulação de mercadorias. Torna-se o núcleo dinâmicoda vida económica, núcleo esse caracterizado pela produção demais-valia relativa. Agora, a reprodução do capital implica odesenvolvimento da produção, esfera essa na qual se dá a transfigu-ração da,mercadoria preexistente (M) em uma mercadoria valoriza-da (M') pelo trabalho social excedente (não pago) que o capitalistaimpõe ao operário. Daí a possibilidade de o capitalista vender o

(29) Karl Marx, O capital, citado, Livro 3, vol. 5, p. 377(30) Ibidem, p. 386-387.(3 1) Ibidem, Livro 2, vol. 3, p. 53.(32) Ibidem, p. 56-57.

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tecido por um preço maior do que o custo da linha e do desgaste dasmáquinas. Temos, pois, o seguinte processo global: D - M - P - M' -D', sendo que em P entram o capital constante e o capital variável(gasto em força de trabalho).

Contemporaneamente, na medida em que se instaurava o capita-lismo industrial, no qual a acumulação passa a ser comandada pelocapital industrial, entram em crise as relações coloniais, externa einternamente. O Capital jndustrial^ começa a assenhorear-se dasesferas produtivas nasíõíôniàsTãTenTde subordinar a comercializaçãodos produtos coloniais. Por isso, a conquista da independênciapolítica e a crise da escravidão, no Novo Mundo, são fenómenoscontemporâneos. Ocorrem no âmbito da mesma configuraçãohistórico-estrutural. Em boa parte, essa transição é visível nos dadosapresentados na Tabela I.

Ao longo dos anos 1772, quando foi proibido o trabalho escravo ína Inglaterra, a 1888, quando foi decretada a abolição da escravatu-ra no Brasil, modificam-se substancialmente as condições político-econômicas no Novo Mundo. Em pouco mais de um sécuk>\e externa e internamente as; estruturas político-econômicas

herdadas do mercantilismo. Não há dúvida de que em cada caso ascondições peculiares da colónia determinaram amplamente aafeição assumida pelas lutas de independência e abolicionistas.

A despeito das peculiaridades de cada país, quanto à decadência N

do escravismo e ao andamento do processo abolicionista, é inegávelque a extinção da escravatura iniciou-se no âmbito do capitalismoinglês em expansão, É verdade que cada colónia ou país, nasAméricas e Antilhas, desenvolveu de forma singular o trabalhocompulsório e articulou-se também de maneira singular com omercado mundial. Além do mais, o estatuto jurídico-político eeconómico das colónias espanholas era diferente do que definiajasituação da colónia portuguesa (Brasil) e dos que caracterizavam ascolónias inglesas, francesas e outras. No México, durante o períodocolonial, houve encomienda e escravatura.|No Brasil, a escravidão deafricanos e seus descendentes parece ter-se generalizado muito'mais do que nos Estados Unidos, tomados em conjunto. Noentanto, a formação social escravista do sul dos Estados Unidosrevelou maior tenacidade que a do Brasil, para ser suplantada pelaformação social capitalista. Apesar dessas peculiaridades, é inegávelque em todos os casos o capitalismo inglês desempenhou um papelimportante no conjunto do processe da abolição das formas detrabalho compulsório. Nas Américas e Antilhas, a escravidão sofreuo bloqueio combinado das seguintes condições: o monopólio colo-nial se tornara inconveniente para o desenvolvimento do comércioinglês, agora comandado pela produção industrial. O capitalismo

TABELAI

DECLARAÇÃO DE INDEPENDÊNCIA E ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA

Países eEstados

América CentralArgentinaBolíviaBrasilChileColômbiaColónias francesasColónias holandesasColónias inglesasConnecticutCubaEquadorEstados UnidosHaitiInglaterraMassachusettsMéxicoPennsylvaniaPeruPorto RicoUruguaiVenezuela

(1772-1888)

Declaração deindependência

182318161825182218181819

1898182217761804

1813

1828

18281811

Abolição daescravatura

1824181318311888182318141848186318381784188618511865180417721780182917801854187318421854

Fontes: Roberto W. Fogel e Stanley L. Engerman, Time on the cross, citado, vol lp. 33-34; A. Curtis Wilgus e Raul d'Eca, Latin American history, Barnes & Noble'New York, 1966; Hebe Clementi, La aboltción de Ia esclavitud en América La-tina. Editorial La Pléyade, Buenos Aires, 1974; Hebe Clementi, La abolictón deIa esclavitud enNorteamerica, Editorial La Pléyade, Buenos Aires, 1974.

inglês exigia a quebra das prerrogativas e exclusivismos coloniaisherdados do mercantilismo. Quando a produção industrial se tornouo núcleo do processo de acumulação, a esfera da comercializaçãoprecisou subordmar-se às exigências da produção. Isto é, o comérciode matenas-pnmas e manufaturados passou a ser comandado pelasexigências da reprodução do capital na esfera da produção Daíporque a Inglaterra passou a combater a escravidão em suaspróprias colónias. Quando o capital industrial adquiriu predomínio

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sobre o comercial, o lucro passou a ser o resultado da operaçãoda empresa produtora de mercadorias; isto é, da articulação dinâmicaentre o capital constante (máquinas, matérias-primas etc.) e o capitalvariável (força de trabalho). Isso levou o capitalista a interessar-sepelo preço das matérias-primas e dos produtos tropicais, fosseaçúcar, algodão ou outro produto. Marx e Engels já haviamexaminado a questão em 1850. E Eric Williams a retomou em suaanálise sobre lCapiialifim & Slaven; obra publicada pela primeira vezem 1944.

Marx-Engels: A produção algodoeira norte-americana baseia-se na escravidão.Quando a indústria se tenha desenvolvido a ponto de que o monopólio algodoeirodos. Estados Unidos se torne insuportável, produzir-se-á, exitosa e maciçamente,algodão em outros países; e isso hoje em dia pode ocorrer, em quase todas as partes,somente por meio de trabalhadores livres. Mas quando o trabalho livre de outrospaíses abastecer a demanda algodoeira de modo suficiente, e a melhores preços que otrabalho escravo norte-americano, terá soado a última hora para o monopólioalgodoeiro norte-americano e, também, para a escravidão norte-americana: e osescravos serão emancipados porque, enquanto escravos, ter-se-ão tornado inúteis(33).

Williams: Os capitalistas inicialmente encorajaram a escravidão nas índiasOcidentais e depois a destruíram. Enquanto o capitalismo inglês dependia das índiasOcidentais, eles ignoraram ou defenderam a escravidão. Quando o capitalismoinglês sentiu que o monopólio das índias Ocidentais era incómodo,,eles destruírama escravidão, como primeiro passo para destruir o monopólio das índias Ociden-tais(34).

Esse combate desenvolveu-se em três fases: o combate ao tráfico, o combate àescravidão e o combate às preferências alfandegárias para o açúcar. O tráfico deescravos foi abolido em 1807, a escravidão em 1833 e os privilégiosdo açúcar em 1846.Os três acontecimentos são inseparáveis. Os mesmos interesses que haviam criado osistema escravista agora combatem e destroem aquele sistema (35).

As possibilidades de desenvolvimento das forças (terras, capital,tecnologia, força de trabalho, divisão social do trabalho etc.) quehaviam sido abertas pelo capitalismo industrial não podiam seracompanhadas pelas formações sociais escravistas, criadas na épocado predomínio do capital mercantil. A dinâmica das relaçõesescravistas de produção, no sul dos Estados Unidos, no Brasil, nasAntilhas e outros países e colónias, entraram em descompasso com

(33) K. Marx e F. Engels, Materiales para Ia historia de América Latina, textosselecionados e traduzidos por Pedro Scaron, Ediciones Pasado y Presente, Córdoba,1972, p. 156-157.

(34) Eric Williams, Capitalism & slavery, citado, p. 169.(15)Ibidem, p. 136.

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relação à dinâmica das forças produtivas e das relações de produçãodo capitalismo; tanto com o capitalismo predominante e emexpansão desde a Inglaterra como com o emergente nas mesmassociedades escravistas. O caráter "anómalo" da escravatura modernatornara-se explicito e insustentável. Vejamos dois exemplos distin-tos: a abolição pacífica ocorrida no Brasil e a violenta verificada nosEstados Unidos.

O senhor e o escravo •

No Brasil, a formação social capitalista foi se constituindo, porassim dizer, por dentro e por sobre a formação social escravista. Poucoa pouco, uma parte do capital produzido pelo escravismo eraaplicado em atividades artesanais, fabris, comerciais e financeirasque não revertiam necessariamente em benefício dos interessesescravistas. Isso ficou especialmente evidente na expansão urbana,ou seja, na diferenciação interna das estruturas sócio-econômicas epolíticas urbanas. É verdade que inicialmente a vida urbana estavaconstituída no espírito e no interior da formação social escravista.Progressivamente, no entanto, surgem na cidade (Rio de Janeiro. SãoPaulo, Porto Alegre, Salvador, Recife e outras) interesses autónomose divergentes, quanto aos interesses prevalecentes no escravismo.Essas transformações eram ampliadas e aceleradas inclusive pelacrescente influência económica e política dos ingleses nos negóciosdo Brasil., A abolição do tráfico de africanos, os investimentos e qsempréstimos ingleses, a difusão das ideias liberais entre políticos,profissionais liberais, jornalistas e novos empresários, além de outrosfatos, indicam a progressiva influência inglesa, essencialmenteantiescravista. Simultaneamente, devido à interrupção do tráfico deafricanos para suprir a agricultura escravista, .inicia-se e expan3ê-serapidamente a imigração-de europeus. O fenómeno imigratório foitão notável, que a área pioneira e mais dinâmica da cafeicultura,situada no oeste da Província de São Paulo, baseou-se principalmen-te na força de trabalho não escrava, isto é, trabalhadores assalariados,colonos, meeiros etc. Pouco a pouco, a partir dos anos 1850, foram-sedelineando os contornos das duas formações sociais diversas eprogressivamente antagónicas: a escravista, cada vez menos dinâmi-ca, é a capitalista, ganhando dinamismo crescente.

A formação social escravista tinha as suas bases económicas nonordeste açucareiro e na cafeicultura-da Baixada Fluminense e doVale do Paraíba, na Província de São Paulo. Os seus interessespolíticos e económicos estavam organizados - e não apenas represen-tados no governo monárquico. Mas em meados do século XIX a

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cafeicultura eia área açucareira sofrem o impacto da interrupção dotráfico. Além disso, a zona cafeeira começava a ressentir-se doempobrecimento das terras ocupadas^já que o café era cultivado demaneira extensiva e segundo técnicas que provocavam ou propicia-vam a erosão.

<MConsciente do seu novo status económico e da sua importância como cafeicultor,

o fazendeiro nunca duvidou de sua capacidade para liquidar dívidas contraídas sobreas safras futuras de café. Este era o círculo vicioso em que se encerrava a economiade Vassouras: destruir florestas virgens para plantar café para pagar dívidas paraobter crédito para comprar escravos para destruir mais florestas e plantar mais. cafe(36).

A economia açucareira, por seu lado, encontrava-se numa situaçãodifícil, devido à concorrência internacional; e provavelmente àprodutividade relativamente menor das unidades antigas baseadasem mão-de-obra escrava. O mercado inglês era abastecido pelascolónias das Antilhas. Cuba estava fornecendo o mercado norte-americano. E os outros produtos de exportação - algodão e fumo -também não conseguiam animar o conjunto da economia escravista.

Entre 1821-30 e 1841-50, o valorem libras das exportações de açúcar cresceu em 24por cento, vale dizer, com uma média anual de 1,1 por cento; o das exportações dealgodão se reduziu à metade; o das de couros e peles se reduziu em 12 por cento, e odas de fumo permaneceu estacionário. Desses produtos, o único cujos preços semantiveram estáveis foi o fumo. Os exportadores de açúcar, para receber 24 por centomais em valor, mais que dobraram a quantidade exportada; os de algodão receberama metade do valor, exportando apenas 10 por cento menos, e os de couros e pelesmais que dobraram a quantidade para receber um valor em 12 por cento inferior(37).

A formação social capitalista teve a sua base económica maisdinâmica principalmente na cafeicultura do oeste paulista, da qualCampinas foi ceníro importante por certo tempo. Essa zonadesenvolveu-se de maneira cada vez mais intensa desde meados doséculo XIX. Baseou-se de forma progressiva no trabalhador livre,proveniente da imigração europeia. Aí o fazendeiro dispunha demelhores condições de organização e movimentação dos elementoseconómicos, técnicos e sociais da produção.

(36) Stanley J. Stein, Vassouras (Brazilian coffee county, 1850-1900), HarvardUniversity Press, Cambridge, 1957, p. 30. Essa obra foi publicada em ediçãobrasileira; Grandeza e decadência do café no Vale do Paraíba, trad. de EdgarMagalhães, Editora Brasiliense, São Paulo, 1961, p. 36.

(37) Celso Furtado, Formação económica do Brasil, 79 edição, Companhia EditoraNacional, São Paulo, 1967, p. 115-116.

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A nova classe dirigente formou-se numa luta que se estende em uma frenteampla: aquisição de terras, recrutamento de mão-de-obra, organização e direção daprodução, transporte interno, comercialização nos portos, contatos oficiais, interfe-rência na política financeira e econômica(38).

Neste ponto, convém lembrar que a Guerra do Paraguai, nos anos1864-70, pôs em evidência a relativa fraqueza da formação socialescravista, como sistema politicô-econòmico. As dificuldades paravencer os paraguaios e a necessidade de lançar mão, de escravosbrasileiros para lutar na guerra, tornaram mais visíveis as limitaçõesdo escravismo, como forma de organizar a produção e o poder.Tanto que praticamente todos os historiadores reconhecem que aMonarquia e a Escravatura entraram em declínio irreversível comessa guerra.

Contemporaneamente às transformações económicas e políticas,decresceu o número de escravos na população brasileira. Em 1850havia no Brasil 2.500.000 escravos e 5.520.000 pessoas livres. Em1872 os escravos eram 1.510.000, ao passo que os livres totalizavam8.60 1 .255. ojaojd^ahoJiãQ^Êni. 1888, a população escrava estavaem cerca de 500.000, mas a população livre continua acrescer, defOrmOíceTèTâda, devido à intensificação da imigração europeia nasúltimas décadas do século XIX. Em 1890 a população total do Brasilalcançava um pouco mais de 14 milhões de pessoas(39).

A verdade é que desde o término da Guerra do Paraguaiaceleroú-se o desenvolvimento capitalista no Brasil. Além dasfazendas cafeeiras, baseadas na mão-de-obra do trabalhador livre,multiplicaram-se os empreendimentos artesanais. fabris e comerciais:e expandiram-se os aparelhos de Estado. Assim, a partir de 1870,vão se delineando, de maneira cada vez mais nítida, os contornos e asincompatibilidades entre a formação social capitalista, mais vigorosaem expansão, e a formação social escravista, impossibilitada deacompanhar integrativamente o dinamismo daquela. É claro que atensão daí resultante refletia-se 'também na organização e nofuncionamento dos aparelhos de Estado. Expressivamente, é nessaépoca que o Exército e a Igreja católica dividem-se, abertamentequanto à defesa e o combate à escravatura.

.Não foi por mero acaso, pois, que a campanha abolicionista e acampanha pela criação do regime republicano de governo - nestecaso a extinção da Monarquia - foram contemporâneas. Em muitoslugares e circunstâncias as duas campanhas tiveram as mesmas basessociais,' expressavami interesses político-econômicos dos mesmos gru-

(38) Ibídem, p. 124.(39) Caio Prado Júnior, História económica do Brasil, 3* edição, Editora Brasiliense,São Paulo, 1953, p. 328; também Stanley J. Stein, Vassouras, citado, p. 294

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pôs sociais. Da mesma forma, não foi por mero acaso que a Aboliçãoda Escravatura e a Proclamação]da República ocorreram com poucosmeses de diferença, respectivamente 13 de maio de 1888 e 15 denovembro de 1889. A queda da Monarquia foi o desenlace final doconfronto entre a formação social escravista, em franca decadência,e a formação social capitalista, em expansão. Ou melhor, a luta entrea aristocracia agrária, de base escravocrata, e a burguesia cafeeira dooeste paulista, na qual vence esta, era a expressão política dosdesajustes e antagonismos entre as duas formações sociais: desajus-tes e antagonismos esses expressos nas divergências e lutas entreduas facções políticae economicamente|diversasída/camada dominante.A rigor, uma era uma casta decadente, ao passo que a outra era umaclasse social ('ascendente. Por isso a Proclamação da|Repúlblica tem oscaracterísticos de uma mudança político-econômica importante.

No terreno económico observaremos a eclosão de um espírito que se não eranovo, mantivera-se no entanto na sombra e em plano secundário; a ânsia deenriquecimento, de prosperidade material(40).

Em suma a República, rompendo os quadros conservadores dentro dos quais semantivera o Império apesar de todas suas concessões, desencadeava um novo espíritoem tom social bem mais de acordo com a fase de prosperidade material em que o paísse engajara. Transpunha-se de um salto o hiato que separava certos aspectos de umasuperestrutura ideológica anacrónica e o nível das forças produtivas em francaexpansão. Ambos agora se acordavam. Inversamente, o novo espírito dominante queterá quebrado resistências e escrúpulos poderosos até havia pouco estimularáativamente a vida económica do país, despertando-a para iniciativas arrojadas eamplas perspectivas. Nenhum dos freios que a moral e a convenção do Impérioantepunham ao espírito especulativo e de negócios subsistirá; a ambição do lucro edo enriquecimento i se consagrará como um alto valor social. O efeito disto sobre ívida económica do país não poderá ser esquecido nem subestimado(41).

(40) Caio Prado Júnior, História económica do Brasil, citado, p. 214.(41) Caio Prado Júnior. Op. cif., p. 215. Outras obras sobre a problemática discutida

nos parágrafos precedentes: i Emília Viotti da Costa. Da senzala à colónia. DifusãoEuropeia do Livro, São Paulo, 1966; Oliveira Vianna, O caso do Império, 2- edição,Comp. Melhoramentos de S. Paulo, S. Paulo, 1933; Nelson Werneck Sodré,Panorama do Segundo Império, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1939; AlanK. Manchester, Preeminência inglesa no Brasil, trad. de Janaína Amado, EditoraBrasiliense, São Paulo, 1973; Richard Graham, Britain & the onset ofmodernization inBrasil, 1850-1914, Cambridge University Press, Cambridge, 1968; Stanley J. Stein,The Brazilian cotton manufacture (textile enterprise in an underdeveloped área,1850-1950), Harvard University Press. Cambridge. 1957; Thomas Davatz. Memóriasde um colono no Brasil (1850), trad. de Sérgio Buarque de Holanda, Livraria Martins,S. Paulo, 1941; Sé|-gio Buarque de Holanda (Organizador), História geral dacivilização brasileira, 2 tomos, Difusão Europeia do Livro, São Paulo, 1960-1972,

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Devido às peculiaridades da formação social escravista, em faceda capitalista, a incompatibilidade entre elas não provocou senãopolémicas ideológicas, controvérsias jurídico-políticas, confrontosmorais; antes do que antagonismos económicos drásticos. Empoucas palavras, esse o segredo da forma relativamente pacíficapela qual se aboliu a escravatura e, ao mesmo tempo, mudou-se oregime político no Brasil.

O senhor, o burguês e o escravo

Nos Estados Unidos, a formação social capitalista, por assim dizer,constituiu-se e desenvolveu-se um tanto à parte e independentemen-te da formação social escravista. Devido às condições políticas eeconómicas em que se realizou a independência política das colóniasinglesas da América do Norte, os estados da federação norteamericana guardaram certa autonomia relativa, quanto a questõespolíticas e económicas. Ao mesmo tempo, a independência significoua emancipação política e económica reais, o que abriu possibilidadesde industrialização nos estados em que os interesses agrários eescravistas não eram muito fortes, ou preponderantes. Nos estados doNorte, os colonos haviam organizado uma economia, de tipocamponês, baseada no trabalho familiar, assalariado ou outro. Eraminicialmente camponeses que trabalham principalmente para si evendiam a produção excedente. Progressivamente, iniciaram oupropiciaram atividades artesanais e fabris, com as quais abriram-seoutras possibilidades de desenvolvimento das forças produtivas, dadivisão social do trabalho e das relações de produção, além dosquadros do escravismo. Nos estados do Sul, predominava o trabalhoescravo e a produção de algodão. De fato, a formação socialescravista que se manteve no sul dos Estados Unidos depois daindependência, revelou elevado dinamismo demográfico, apesar daredução drástica do tráfico de escravos havida nos anos 1820-60. Era

especialmente Tomo II, dividido em vários volumes, sobre "O Brasil monárquico",Octavio lanni, Raças e classes sociais no Brasil, 2S edição, Editora CivilizaçãoBrasileira, Rio de Janeiro, 1972, esp. caps. I e II; Roger Bastide e FlorestanFernandes, Brancos e negros em São Paulo, 2° edição. Companhia Editora Nacional,São Paulo, 1959, esp. cap. I; Paula Beiguelman, A formação do povo no complexocafeeiro: aspectos políticos, Livraria Pioneira Editora, São Paulo, 1968; PaulaBeiguelman, Pequenos estudos de ciência política. Editora Centro Universitário, SãoPaulo, 1967, esp. os três primeiros ensaios; Ronaldo Marcos dos Santos; Término doescravismo na Província de São Paulo (1885-1888), MS, São Paulo, 1972; FernandoHenrique Cardoso, Capitalismo e escravidão, Difusão Europeia do Livro, São Paulo,1962, Peter L. Eisenberg, The sugar industry in Pernambuco, University of CalifórniaPress, Berkeley, 1974.

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uma sociedade fundada na casta de escravos. Devido aos vínculos daprodução algodoeira do Sul com a indústria têxtil da Inglaterra, aformação social escravista manteve seu crescimento económico efortaleceu as suas estruturas e ambições políticas. Conforme aanálise realizada por Robert W. Fogel e Stanley L. Engerman,antes da guerra civil, ocorrida nos anos 1861-1865, o Sul escravo-crata possuía uma economia próspera.

Os Estados Unidos, pois, tornaram-se a principal nação escravocrata do mundoocidental, não por sua participação no tráfico de escravos, mas devido à excepcional-mente elevada taxa de crescimento natural da sua população escrava. Em 1825 haviacerca de 1.750.000 escravos no sul dos Estados Unidos. Isto representava mais de 36por cento de todos os escravos do Ocidente, naquele ano. Apesar do seu papelsecundário no tráfico atlântico de escravos, os Estados Unidos foram, durante as trêsdécadas que precederam à guerra civil, a maior potência escravocrata" do mundoocidental e o baluarte da resistência à abolição da escravatura (42).

1 Longe de estar estagnado, o Sul era razoavelmente rico. pelos padrões da época,que precede a guerra civil. Se tratarmos o Norte e o Sul como duas nações;separadas, e as classificarmos entre as outras nações da época, o Sul entraria como aquarta nação mais rica do mundo em 1860(43).

O ritmo de desenvolvimento do Sul era tão rápido (1,7 por ano) que constitui umaevidência indiscutível contra a tese de que a escravidão, retardou o crescimento doSul(44).

Essa compreensão do Sul escravista contrasta com a interpretaçãoprevalecente entre historiadores, economistas e sociólogos, comoEugene D. Genovese, Gunnar Mjyrdal, Herbert Aptheker, E. Fran-klin Frazier e outros. Ocorre que Fogel e Engerman tomaram aescravatura norte-americana em termos exclusiva e estritamenteeconómicos. Não realizaram uma análise político-econômica,naqualsobressaíssem as relações, os processos e as estruturas de apropriaçãoeconómica e dominação política que efetivamente revelassem oescravismo, interna e externamente. Apesar disso, no entanto, acontribuição de Fogel e Engerman deve ser aproveitada em todo

(42) Robert W. Fogel e Stanley L. Engerman, Time on lhe cross, citado, vol. l, p.29.

(43) Ibidem, p. 249.(44),Ibidem,p. 251.Consultar também:Eugene D. Genovese, The política! economy of

slavery (studies int the economy and society of the slave South), Pantheon Books,New York, 1966; Herbert Aptheker American negro slave revolts, InternationalPublishers, New York, 1964, esp. cap. III; E. Franklin Frazier, The negro in theUnited States, The MacMillan Company, New York, 1957, esp. parte 1; GunnarMyrdal, An American dilemma, Harper & Brothers Publishers, New York, 1944, esp.cap. 10.

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intento de compreender a formação social escravista do Sul dosEstados Unidos.

Os dados da história político-econômica dos Estados Unidos, naépoca que vai da independência à guerra civil, mostram que nessepaís criou-se uma formação social capitalista que se expandiu para ooeste e o exterior. Fez parte dessa expansão a conquista de territóriosantes pertencentes ao México, da mesma forma que a luta contraingleses e franceses, ao norte e ao sul dos primeiros treze estadosindependentes. Ao mesmo tempo que o Sul escravista revelava vigoreconómico e político, os estados não escravistas expandiam-se. Comisso os interesses mais tipicamente capitalistas eram cada vez maispresentes e protegidos nas esferas do governo federal. Progressiva-mente, crescia o poder decisório dos setores hegemónicos naformação social capitalista. Aliás, desde a independência a Consti-tuição da União norte-americana garantiu as bases jurídico-políticaspara o funcionamento e a expansão das forças produtivas e dasrelações capitalistas de produção.

Uma das principais contribuições da Constituição para o crescimento - provavel-mente a mais fundamental - foi o estabelecimento das bases legais para um mercadonacional. Ao garantir-se ao Congresso a autoridade sobre o comércio interestadual,privou-se os estados da faculdade de interpor obstáculos ao livre j movimento depessoas, produtos e fatores produtivos por toda a nação(45).

O dispositivo constitucional, que estendeu o poder judiciário federal a todas ascontrovérsias entre cidadãos de diferentes estados, abriu as cortes da União àsquestões e disputas relativas à propriedade e outros direitos, que poderiam surgir nasmais distantes partes do mercado nacional(46).

Ao mesmo tempo, aluaram favoravelmente, no sentido da expan-são do capital industrial, as dificuldades de importar manufaturaseuropeias, na época da segunda guerra com os ingleses em1809-1815, a proteção governamental, a introdução de aperfeiçoa-mentos técnicos na manufatura algodoeira. Nessas condições, criou-se a indústria têxtil (algodão e lã), a siderúrgica e a de alimentação.Pouco antes da guerra civil, já era bastante dinâmica e vigorosa abase económica da formação social capitalista vigente nos EstadosUnidos. É o que indicam os dados registrados na Tabela II. Note-sea posição relativa e absoluta dos estados escravistas do Sul. Aí estãoalguns elementos importantes para a compreensão das relações deinterdependência e antagonismo entre a formação social escravista,por um lado, e a formação social capitalista, por outro.

(45) Stuart Bruchey, The roots of American economic growth 1607-1861, HarperTorchbooks, New York, 1968, p. 96-97.

(46) Ibidem, p. 97.

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Progressivamente, o Estado nacional havia aoquirido os contornosde um aparelho político burguês, no qual os interesses escravistasencontravam cada vez menor ressonância. Ao longo das décadas queantecedem a guerra civil, colocaram-se em confronto, de maneiracada vez mais delineada e tensa, a formação social capitalista,baseada principalmente no Norte, e a formação social escravista,baseada apenas no Sul. É verdade que a formação social escravistaainda revelava certo vigor. Devido às suas relações económicas coma indústria têxtil inglesa, a produção algodoeira do Sul garantiu avigência e o poder económico do escravismo. Daí o elevado índice dearticulação interna das estruturas político-econômicas, garantindo ofuncionamento, a tenacidade e a agressividade dos escravocratas doSul. Por isso a formação social escravista não cedeu à formaçãosocial capitalista, cujas bases sócio-econômicas e políticas estavam noNorte e Oeste, além do maior controle do aparelho estatal federal. Aluta armada havida nos Estados Unidos nos anos 1861^-65 pode serconsiderada o resultado das divergências, tensões e antagonismosentre os senhores de escravos, do Sul, e a burguesia industrial,comercial e financeira, do Norte. Por sob essa luta militar,encontravam-se as incompatibilidades estruturais entre o escravismoe o capitalismo, como formas distintas e divergentes de organizaçãodas relações de apropriação económica e dominação política.

É claro que essa interpretação|deveria ser melhorjdesenvolvida ecomprovada. Mas ela sugere que a forma assumida pela aboliçãonos Estados Unidos não se explica pelo tipo de escravatura vigenteali, e sim pelas relações recíprocas e antagónicas entre as duasformações sociais. Nessa perspectiva de análise, os valores culturais,os padrões de comportamento, as instituições religiosas, jurídico-políticas e económicas passam a ser compreendidos nos quadros derelações e estruturas de dominação política e apropriação económi-ca num caso, essencialmente determinados pelo trabalho escravo,e no outro, essencialmente determinados pelo trabalho livre. Amaneira violenta ou pacífica do colapso da escravatura - nosEstados Unidos, Brasil ou outro país passa a ser vista à luz dasrelações de interdependência e antagonismo entre a formaçãosocial capitalista e a formação social escravista. Contando sempre,é claro, com as tensões e os antagonismos entre a casta dos senhores

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explicar-se a singularidade da abolição do regime de trabalho

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escravo, no Brasil, Estados Unidos e outros países. É preciso que aanalise apreenda as peculiaridades da formação social capitalista e asda formação social escravista, em si e em suas relações recíprocas, deinterdependência e antagonismo. A pesquisa precisa compreendercomo a formação social capitalista surge do desenvolvimento dasforças produtivas internas e das relações externas, transformando-se,em seguida, num sistema de dominação e apropriação diverso, eantagónico, em face da formação social escravista.

Esse é o contexto histórico e teórico no qual a pesquisa e ainterpretação das singularidades e semelhanças entre a escravaturano Brasil, Estados Unidos e outros países pode alcançar resultadosnovos e talvez menos equívocos do que os encontrados até opresente. Toda discussão sobre as diferenças de tradições religiosas ejurídico políticas poderia adquirir outra significação se inserida napesquisa mais ampla e concreta da maneira pela qual se organizam,desenvolvem e entram em antagonismo as formações sociais escra-vista e capitalista. Isto significa trabalhar com os acontecimentos emtermos de relações, processos e estruturas de apropriação económicae dominação política. Ou, em outras palavras,_a análise da crise eextinção da escravatura pode tornar-se muito mais objetiva quandoela procura conhecer as seguintes dimensões básicas de cadaformação social: as formas de organização social e técnica'da srelações de produção, o que implica conhecer também a composiçãodas forças produtivas (capital, terra, tecnologia, força de trabalho,divisão social do trabalho, modalidades de trabalho cooperativo etc.)e os graus do seu desenvolvimento e desigualdades; as relações eestruturas gerais e especiais de apropriação económica e dominaçãopolítica; as estruturas jurídico-políticas e ideológicas (incluindo-sereligião, educação etc.) que compõem, integram e expressam osmovimentos das relações de produção; as articulações, os desencon-tros e os antagonismos entre as formaçTões sociais escravista ecapitalista. — • -

Note-se, pois, que não é a casta dos escravos que destrói otrabalho esçrayjzaáo;_g_ muito jrnenos vence a casta dos senhores.Acontece que a condição* económica, jurídico-política e sócio-cultural do escravo não lhe abria qualquer possibilidade de elaborar,como coletividade, uma compreensão articuíada e crítica da própriasituação. Na medida em que era socializado como escravo, isto é,como propriedade do senhor, ao escravo não se abriam quaisquerpossibilidades de entendimento independente, autêntico, ou crítico,da sua .condição. Daí a importância e a significação da cultura dacasta escrava, da cultura da senzala. Nessa cultura predominamvalores e padrões de entendimento e comportamento permitidos ouimpostos pela casta dos senhores. As sutilezas e os significados

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estruturais desses valores e padrões - por meio dos quais se marcame expressam as linhas de casta do escravismo - têm sido examinadospor vários autores. Entre eles estão E. Franklin Frazier, GunnarMyrdal, Roger Bastide, Florestan Fernandes, Frank Tannenbaum,Gilberto Freyre, Marvin Harris, David Brion Davis, C. R. Boxer,Herberjt S. Klein, Emilia Viotti da Costa, Fernando HenriqueCardoso e outros. Um estudo particularmente, importante, sobreafitudes raciais e valores sexuais na sociedade escravocrata, foipublicado "por Verena Martinez-Alier(47). A despeito das diferençasde interpretação entre os autores, praticamente todos reconhecem asespecificidades da cultura escrava, em relação com a cultura dosenhor.

Nabuco: É (a escravidão) a posse, o domínio, o sequestro de um homem -corpo, inteligência, forças, movimentos, atividade-e só acaba com a morte(48).

... os escravos e os seus filhos... não podem ter consciência, ou, tendo-a, nãopodem reclamar, pela morte civil a que estão sujeitos(49).

Elkins: Pensava-se que ensinar os escravos a ler e a escrever produziria ainquietação em suas mentes, provocando assim a insurreição e a rebelião(50).

Cardoso: A formação dos escravos e a sua preparação para a vida social sãoincompletas. Regra geral, eles são preparados apenas para as'tarefas não especializa-das e para as atitudes que o seu dono espera deles. Trata-se, pois, de impedir queadquiram meios que facilitem a adoção de ações combinadas e autónomas de suaparíe(51).

Nessas condições, características da situação de casta vivida pelo'escravo, ele não dispunha de elementos para organizar umainteligência política da sua alienação e possibilidades de luta. Porisso, na relação escravo-senhor, o antagonismo nunca se desdobra naluta propriamente1 revolucionária. O escravo podia fugir, esconder-se, suicidar-se, matar ou roubar o senhor e membros dessa casta;inclusive podia rebelar-se em grupo. Mas esses atos não eram o

(47) Verena Martinez-Alier, Marriage, class and colour in nineteenth-century Cuba,Cambridge University Press, 1974.

(48) Joaquim Nabuco, O abolicionismo. Companhia Editora Nacional, São Paulo,1938, p. 124.

(49)Ibidem, p, 20.(50) Stanley M^Èlkins, "Slavery|in capitalistjand|non-capitalist cultures",L.[Foner e

E. D. Genovese (organizadores), Slavery in the New World, Prentice-HalI, EnglewoodClifís, 1969, p. 8-26; citação da p. 13.

(51) Ciro F. S. Cardoso, "El modo de producción esclavista colonial en América",citado, p. 222.

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produto de uma compreensão política da alienação escrava(52). Emgeral, eram o produto de uma revolta por assim dizer subjetiva,individual ou anárquica. E quando a rebeldia, ou outros atos,possuíam conotação política - e houve muitos atos desse tipo nahistória da escravidão-o que estava ocorrendo era uma politizaçãodo escravo em situações não mais especificamente de escravatura. Oescravo politizava a sua visão crítica do mundo social em que viviaprecisamente no momento em que se "deteriorava" a condiçãoescrava; isto é, no momento em que ele se urbanizava, começava aingressar na cultura especificamente capitalista, ou principiava atornar-se opeíário. Aliás, não é por mero acaso que a escravidãosempre foi extinta principalmente devido a controvérsias e aantagonismos entre brancos, ou grupos e facções das camadasdominantes. Em geral, a abolição da escravatura foi um negócio debrancos.

Cabe aqui uma nota sobre a abolição da escravatura no Haiti.Haiti foi a única colónia europeia no Novo Mundo na qual aescravatura foi abolida em consequência da luta armada entrenegros, mulatos e brancos. Assim, numa primeira aproximação,esse é um caso em que não se comprovaria a tese de que a casta deescravos não poderia organizar uma consciência política da aliena-ção escrava. De fato, ao longo dos anos da luta, em 1789-1804, osescravos lutaram contra os senhores e aboliram a escravatura.

Ocorre, no entanto, que a crise do escravismo em Haiti, em 1789,iniciou-se com uma crise no seio dos homens livres: os "grandes"brancos, os "pequenos" brancos e os mulatos. Sob a influência daRevolução Francesa, a colónia francesa de Saint-Dominique (quepassou a denominar-se Haiti com a independência) entrou emgrande efervescência política. Nesse momento, desencadeou-se umaluta entre os vários grupos políticos formados pelos homens livres.Estava em jogo a democratização e a independência de Saint-Dominique, e não a abolição da escravatura. Foi nesse contexto, no

(52) Edison Carneiro, O quilombo dos Palmares (1630-1695),\EAilora. Brasiljlense,São Paulo, 1947; Herbert Aptheker, American negro .slave revolts, InternationalPublishers, New York, 1963; Eugene D. Genovese, In red and black (Marxianexplorations in Southern and Afro-American history), Vintage Books, New York,1971, esp. caps. 4 e 10; Joaquim Nabuco, O abolicionismo, citado; Octavio lanni, Asmetamorfoses do escravo, Difusão Europeia do Livro, São Paulo, 1962, esp. cap. V.;Roger Bastide e FVorestan Fernandes, Brancos e negros em São Paulo, citado, esp.cap. I.

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qual os mulatos livres estavam sendo rechaçados do jogo político,que esses mulatos iniciaram a luta armada e associaram-se' aosescravos. Assim, teriam sido os mulatos livres que iniciaram edesenvolveram a luta contra os brancos: (l9) para participar do novopoder; (2Ç) pela independência de Saint-Dominique; (3°) pelaabolição da escravatura. O líder Toussaint Louverture, que coman-dou boa parte da luta contra os senhores brancos e o exércitonapoleônico invasor, teria sido um criado doméstico, rendeiro numaplantation e cocheiro. Outros registram que ele teria sido escravo. Averdade é que Louverture sabia ler e escrever, além de ter adquiridoconhecimentos de matemática e possuir experiência militar. Tivesseou não sido escravo, ele possuía nível cultural muito acima daqueleque era permitido ao escravo do eito, fazenda, engenho ouplantation. E como ele, havia outros, sem contar os mulatos livres,que também participaram das lutas de independência, lutas essasque se desdobraram na abolição da escravatura(53).

Como vemos, a vitória dos negros sobre os brancos, ou escravossobre os senhores, no Haiti, foi o resultado de um processo políticocomplexo, desenrolado ao longo de quinze anos. E reflete umaformação social escravista muito especial, na qual os mulatostiveram atuação importante, alguns escravos puderam aprender a lere escrever, os brancos - senhores ou não - estavam divididos e a lutapela abolição da escravatura foi um processo por assim dizerderivado da luta pela independência.

Convém observar, por fim, que a Revolução Francesa, no seio daqual ocorreu a crise em Saint-Dominique e a libertação dessacolónia e dos escravos, foi um acontecimento fundamental nahistória do capitalismo francês, europeu e mundial. Aliás, emperspectiva histórica, a Revolução Francesa e a Revolução Industrialsão duas expressões notáveis das rupturas estruturais, político-econômicas, que assinalam a supremacia .mundial do modo capita-lista de produçãõ(54).

Transparência e fetichismo da mercadoria

O fato de que a escravatura foi abolida de forma violenta, comoem Haiti e nos Estados Unidos, ou pacífica, como em Cuba e no

(53) Gerard Pierre-Charles, La economia haitiana y su via de desarrollo, CuadernosAmericanos. México. 1965. esp. cap. I: Alfred Barnaby Thomas. Latin America: ahistory, The MacMillan Company. New York. 1956. p. 222-225.

(54) E. J. Hobsbawn. The age of revolution: 1789-1848. Mentor Book. New York.1964.

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Brasil, indica bastante claramente a importância explicativa dascondições políticas e económicas específicas de cada caso. Essaespecificidade é fundamental, se queremos compreender toda agama das implicações económicas e políticas envolvidas no funcio-namento e crise da formação social escravista, em cada país e em suadevida época. Mas é necessário lembrar que a escravatura foiabolida, em praticamente todos os países, no curso do século duranteo qual a Inglaterra capitalista afirmou e expandiu a sua hegemoniaeconómica mundial. Essa combinação de condições internas, pró-prias de cada país, e externas, devidas à expansão do comérciointernacional de manufaturados e matérias-primas, foi suficiente-mente examinada nos capítulos anteriores. Talvez seja possível econveniente recolocar alguns dos aspectos mais significativos daabolição da escravatura nos seguintes termos: a abolição daescravatura foi uma transformação revolucionária das relações deprodução, pois que, ao possibilitar a generalização do trabalho livre,abriu novas e amplas condições para o desenvolvimento das forçasprodutivas; e_implicoa_a transformação das relações e estruturas decastas, específicas do escravismo, em relações e estruturas de classessociais, características do capitalismo.

Vejamos, pois, mais alguns aspectos importantes da crise detransição do regime de trabalho escravo ao regime de trabalho livre.Dessa maneira quero acrescentar outros dados e hipóteses para acompreensão da formação social escravista e das condições histórico-estruturais do seu colapso final.

O caráter repressivo e violento do escravismo não se explicavapelo medo que o senhor poderia ter da revoltaouvingançado escravo.Não há dúvida de que esse era um dado da consciência do senhor.Todo escravo aparecia, na consciência do senhor, como sua proprie-dade e seu inimigo. Afinal de contas, a condição escrava tornava oescravo e o senhor, ao mesmo tempo e reciprocamente, inimigos.Mas seria incompleta a explicação que se limitasse a situar arepressão e a violência características do escravismo como produtosdo medo.

Para explicar o caráter repressivo e violento das relações escravis-tas de produção é necessário compreender que o escravismo é umsistema de produção de mais^valia absoluta, sistema esse no qual amercadoria aparece imediata e explici tamente como produto daforça de trabalho alienada. Aliás, o escravo é duplamente alienado,como pessoa, enquanto propriedade do senhor, e em sua força detrabalho, faculdade sobre a qual não pode ter comando. O es-cravo é obrigado a produzir mui to além do que recebepara viver e reproduzir-se; e não dispõe de condições paranegociar, nem o uso da sua força de trabalho nem a simesmo. Esse é o fundamento do caráter repressivo e violento do

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escravismo. Assim, na essência do funcionamento e dos movimentosdo escravismo, enquanto formação social, está um singular processo:a violência e a repressão abertas são as exigências políticas, sociais eculturais de relações de produção organizadas para produzir mais-valia absoluta, produto esse que aparece direta e explicitamentecomo expropriação. No escravismo, a mercadoria aparece direta-mente como produto alienado de um produtor alienado. Isto é, amercadoria surge transparente, como trabalho social cristalizado eexpropriado. Daí a importância das técnicas de repressão e violên-cia, operando tanto no processo produtivo, em sentido estrito, comonos níveis sociais e culturais da existência do escravo, fora dasituação de trabalho.

Trata-se portanto, de uma situação radicalmente diversa daquelavigente nas relações de produção especificamente capitalistas, basea-das no trabalho do operário. Na sociedade capitalista, na qualpredomina o trabalho livre, a mercadoria aparece fetichizada àconsciência do perário e do burguês. O fato de que o operário vendea sua força de t rabalho por um salário especificado em contrato, deque pode vender a diversos compradores, sucessivamente, e de quepode variar o preço dessa venda, nas condições do mercado, cria nooperário a ilusão de que o concreto é o salário, ou a .rnejca-doria. e não o trabalho alienado, a mais valia. A mercadoria acaba porapresentar ao operário como estranha e independente de e, fetichi-zada. Ao passo quedara o escravo a mercadoria surge imediata eexplicitamente como produto alienado de seu trabalho. A condiçãoescrava torna explicita a expropriação do trabalhador, no produtodo seu trabalho e na sua pessoa. Essa e outras características"3a"alienação peculiar à condição escrava foram registrados por diversosautores. Vejamos alguns exemplos:

Anlonil: Os escravos são as mãos e os pés do senhor do engenho, porque sem elesno Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenhocorrente(55).

Genovese: Ao contrário do sitiante, o senhor de escravaria t inha uma fonteespecial de sua maneira de ser e mitologia: o escravo. Mais precisamente, ele t inhao habito do mando, mas havia mais do que uma autoridade despótica na relaçãosenhor-escravo. O escravo permanecia interposto entre o senhor e o objeto desejadopor seu senhor (o que era produzido). Dessa forma, o senhor relacionava-se aoobjeto desejado somente pela mediação do escravo. O senhor de escravo controlavaos produtos do trabalho do outro, mas pelo mesmo processo era forçado a dependerdesse outro (56).

(55) André João Antonil, Cultura e opulência do Brasil, Companhia EditoraNacional, São Paulo, 1967, p. 159 Obra editada pela primeira vez em 1711.

(56) EugeneD. Genovese, The política] economy of slavery, citado, p. 32.

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Marx: Na pessoa do escravo rouba-se diretamente o instrumento da produ-ção(57).

É claro que o tipo de alienação em que vive o escravo geratambém uma modalidade singular de alienação do senhor. Atransparência da alienação do trabalho e do trabalhador, naescravatura, torna o senhor direta e imediatamente alienado eprisioneiro da situação escrava. Ao senhor, o escravo surge direta eexplicitamente como inimigo, motivo porque deve estar todo otempo submetido ao seu arbítrio.

Se a alienação do escravo é transparente, ela se torna um duploobstáculo à continuidade do trabalho escravo no interior docapitalismo.

Em primeiro lugar, os escravos não podem ser postos em situaçõesde trabalho nas quais^possam intercambiar e socializar as experiên-cias da sua condição alienada. Já que a alienação escrava étransparente, o sistema não pode propiciar aos escravos - coletiva-mente ou mesmo em pequenos grupos - nenhuma possibilidade deorganização social ou política do seu pensamento e atividade sobre asua condição alienada. Nem no trabalho, nem fora dele, os escravostêm possibilidades de organizar as suas experiências, ideias eatividades. Daí porque muitas reações dos escravos são atosindividuais de revolta anárquica. Daí porque as rebeliões escravassão poucas e de resultados precários ou negativos. Em nenhum país(salvo nas condições especiais do Haiti) a abolição da escravatura foiuma ruptura estrutural na qual os próprios escravos tiveram ospapéis relevantes, Em sua significação histórico-estrutural, a aboli-ção foi sempre um negócio de brancos, o resultado dos. antagonismosentre os interesses da casta dos senhores brancos e os interesses daburguesia branca eme.rgente.

Em segundo lugar, o escravo não pode ser posto a trabalhar com ooperário, em caráter permanente. Por um lado, o trabalho de cadaum organiza-se social e tecnicamente de maneira peculiar. Emnenhuma hipótese a forma de controle, estímulo e repressão queorganiza o trabalho escravo pode ser igual ou semelhante à queorganiza o trabalho operário. Por outro lado, o convívio direto e.permanente do escravo com o operário significaria o convívio entreuma modalidade de alienação aberta e outra fetichizada. É obvioque a alienação transparente da condição escrava iluminaria aalienação velada da condição operária.

Essas são as razões porque o escravismo se deteriora mais

(57) Karl Marx, Elementos fundamentales para Ia crítica de Ia economia política,citado, vol. l, p. 18.

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rapidamente na cidade. No ambiente económico, sócio-cultural epolítico da cidade, ocorre mais fácil e amplamente a socialização dasexperiências da condição alienada de cada um, como pessoa etrabalhador. No ambiente urbano, as técnicas de repressão eviolência não podem ser usadas com o mesmo arbítrio e a mesmageneralidade que na fazenda, engenho, plantation e outras unidadesde produção escravista. Na cidade e na indústria os escravosencontram melhores condições para conviver e trocar experiênciasentre si e com os operários, ou ex-escravos, cujas condições de vida ecujos ideais podem ser diversos e mais críticois. Por fim, é noambiente urbano que florescem e difundem-se as opiniões e asinterpretações críticas sobre o escravismo e as possibilidades da suaextinção. Vejamos o que escrevem Stein, Klein e Genovese, sobre aincompatibilidade entre o trabalho escravo e o trabalho livre, emdistintos contextos sociais, no Brasil, em Cuba e nos Estados Unidos.

Stein: Em 1853, ao afirmar que a escravidão não atrasou a industrialização, acomissão de preços admitia que "a maioria dás fábricas em nosso pais usa trabalhoescravo". Não obstante, as fábricas em geral abandonaram o uso de escravos depoisde 1850, logo que o trabalho assalariado surgiu, e começou a imigração europeia. Asombra da escravidão era visível em frases como esta: "o trabalho é caro e ineficaz,quando não é executado por escravo sob um regime disciplinar correspondente"(58).

Klein: Ao mesmo tempo que desfrutavam de mais oportunidades económicas edos privilégios da semiliberdade, associados à maior circulação e à faculdade dealugar-se, os escravos urbanos também mantinham um intercâmbio social ativo comhomens livres e outros escravos, nas suas tabernas, agremiações e outras atividadessociais. Para o escravo urbano, a vida era realmente rica e variada(59).

Genovese: Entre os começos dos anos 1840 e o princípio da guerra, muitos sulistasabandonaram a sua oposição à expansão industrial, mas em geral mantiveram a suahostilidade ao "sistema manufatureiro". Mesmo durante a guerra, depois de umbreve período de entusiasmo pelas novas fábricas, a opinião pública voltou-se contraos fabricantes, com surpreendente fúria. De que tinham medo os senhores deescravos? Uma burguesia urbana, com interesses próprios e dinheiro para defendê-los; um proletariado urbano com tendências imprevisíveis; um contingente semi-escravo subvertendo a disciplina do trabalho no campo - eles temiam isso e algomais(60).

Dessa forma, a alienação aberta e transparente do escravo,em suapessoa e no produto do seu trabalho, tornou-se um duplo obstáculo à

(58) Stanley J. Stein, The Brazilian cotton manufacture, citado, p. 51.(59) Herbert S. Klein, Slavery in the Americas (a comparative study of Cuba and

Virgínia), The Universityof Chicago Press, Chicago, 1967, p. 160.(60) Eugene D. Genovese, Op. cit., p. 181.

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continuidade da escravidão no interior do capitalismo. Ou seja, àincompatibilidade entre a formação social escravista e a capitalistatinha raízes mais fundas.

Liberdade e mais-valia

A "desumanidade" da escravatura, segundo as leis de Deus e daburguesia, somente se instaura e desenvolve, de maneira irreversí-vel, na consciência da burguesia ascendente, quando a acumulaçãode capital passa a ser comandada pelo processo produtivo. Quando ocapitalismo generaliza a ideia e a prática de que o lucro se produz noprocesso da produção, o senhor de escravo se coloca diante de umimpasse. A composição orgânica de seu capital passa a ser umrequisito essencial para o aumento ou a preservação da sua taxa delucro. Ao dar-se conta de que o trabalhador livre corresponde arelações de produção mais propícias à produção de lucro - nascondições do capitalismo - o senhor de escravos transforma-se numburguês; ou é forçado a transformar-se num burguês, para não ser•ultrapassado pela empresa capitalista, organizada com base notrabalho livre. Também houve senhores que sucumbiram com oescravismo. De qualquer maneira, essa é a época em que se tornamais agudo o antagonismo entre liberdade e escravidão, na cons-ciência e na prática da classe burguesa em formação. Quando a forçade trabalho escravo começa a revelar-se obsoleta, na dinâmica doprocesso produtivo, da divisão social do trabalho e da transição paraa produção de mais-valia relativa, então o escravocrata é obrigado atransformar-se em empresário capitalista, associar-se com outros, ouabandonar o sistema produtivo.

Ocorre que o escravo era subjugado económica, social e cultural-mente aos interesses do seu proprietário. Sob certo aspecto, ele eraparte do capital constante imobilizado na plantalion, engenho,fazenda ou fábrica, como os outros instrumentos de trabalho, asmáquinas, a matéria-prima, a terra. Os custos de sua alimentação eabrigo estavam mais ou menos na mesma categoria dos custos demanutenção dos instrumentos e máquinas.

Furtado: A mão-de-obra escrava pode ser comparada às instalações de umafábrica: a inversão na compra do escravo, e sUa manutenção representa custos fixos.Esteja a fábrica ou o escravo trabalhando ou não, os gastos de manutenção terão deser 'despendidos. Demais, uma hora de trabalho do escravo perdida não érecuperáve'l...(61).

(61) Celso Furtado, Formação económica do Brasil, citado, p. 54.

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Mintz: Afinal de contas, o investimento em escravos significa que o capital écolocado numa forma inelástica. ... Diferentemente dos assalariados no capitalismo,os escravos representam um custo adicional para o empresário, reduzindo o seucapital, quando não estão trabalhando(62).

Cardoso: O escravo faz parte do capital fixo, dos meios de produção. A rotaçãodesse capital é lenta, seu ciclo corresponde à duração da vida ativa do escravo. Estepode morrer, tornar-se invalido, o que supõe a perda parcial ou total da importânciainvestida nele, e que constituía o lucro antecipado e capitalizado que se esperavaobter dele(63).

Chayanov: No sistema económico escravocrata, a parte do produto atribuída aotrabalho escravo, em termos económicos, não é tomada pelo escravo, mas por seuproprietário, por força da sua condição de proprietário do escravo. E esta é umarenda suplementar, que é a razão de ser da escravatura(64).

Marx: Na economia escravista, o preço pago pelo escravo nada mais é que amais-valia antecipada e capitalizada,ou seja.o lucro que se pretende extrair dele. Mas,capital desembolsado nessa compra não faz parte do capital com que se tira lucro,trabalho excedente do escravo. Ao contrário, é capital de que o senhor de escravos se

desfez, deduzido do capita! de que dispõe para a produção efetiva. Já não existepara ele. do mesmo modo que o capital desembolsado nu compra da terra cessou deexistir para a agricultura. E a melhor prova disso é que só pode voltar a existir parao senhor de escravos ou para o dono das terras se um vender o escravo, e o outro aterra. Mas. o comprador ficará na mesma situação bem que eles estavam antes dessavenda. A compra não o capacita automaticamente a extrair lucro do escravo.Precisa de novo capital para aplicar na exploração escravista (65).

Marx: O escravo não vendia sua força de trabalho ao possuidor de escravos,assim como o boi não vende o produto de seu trabalho ao camponês. O escravo évendido, com sua força de trabalho.de uma vez para sempre, a seu proprietário. E umamercadoria que pode passar das mãos de um proprietário para as de outro. Elemesmo é uma mercadoria, mas sua força de trabalho não é sua mercadoria(66).

(62) Sidney W. Mintz, "Slavery and emergent capitalisms", em Laura Foner eEugene D. Genovese (organizadores), Slavery in the New World, citado, p. 27-37;citação da p. 35.

(63) Ciro F. S. Cardoso, "El modo de producción esclavista colonial en América",citado, p. 216.

(64) A.V. Chayanov, The lheory ofpeasant economv. edição organizada por DanielThorner. B. Kerblay e R. E. F. Smith, publicada por The American EconomicAssociation,Homewood, Illinois, 1966, p. 14. Citação do ensaio intitulado"On thetheory of [ non-capitalist economic systems", p. 1-28.

(65) Karl Marx, O capital, citado, Livro 3, vol. 6, p. 926.(66) Karl Marx, Trabalho assalariado e capital, Editorial Vitória, Rio de Janeiro,

1963, p. 24. Traduzido do inglês,' sem indicação do tradutor.

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Ao contrário (do trabalho assalariado), no trabalho dos escravos até a parte dotrabalho que se paga parece ser trabalho não remunerado. Claro está que para podertrabalhar, o escravo tem que viver e uma parte de sua jornada de trabalho serve pararepor o v.alor de seu próprio sustento. Mascomo entre ele e seu senhor não houve tratoalgum, nem se celebra entre eles nenhuma compra e venda, todo o seu trabalho parecedado de graça(67).

É claro que essa forma de "imobilização" de capital em força detrabalho cria limitações ao desenvolvimento da produção. Quando oprocesso produtivo se transforma na esfera principal de criação delucro, o capitalista é obrigado a pensar e pôr em prática novas esempre renovadas formas de organização social e técnica dasrelações de produção; o que implica novas e renovadas possibilida-des de desenvolvimento das forças produtivas, incluindo-se aí a forçade trabalho e a divisão social do trabalho. As exigências dareprodução e acumulação do capital agem sobre as forças produtivase as relações de produção, provocando mudanças estruturalmentesignificativas, como as seguintes: a concentração do capital, o quesignifica a reinversão continuada dos lucros, provocando a expansão ea diversificação das empresas; e a centralização do capital, o quesignifica a absorção de uns capitais pelos outros, em geral os maiorese mais dinâmicos anexando ou absorvendo os menores e poucoativos. Esses dois processos, que em geral ocorrem simultaneamente,implicam a elevação da composição orgânica do capital. As exigên-cias da reprodução e acumulação do capital provocam a inversão e aaplicação de novos e renovados métodos de organização social etécnica dos processos produtivos. Com isso o capitalista faz crescer acapacidade produtiva da força de trabalho. Ao investir crescente-mente em capital constante (máquinas, instalações, racionalizaçãodos processos produtivos etc.) ele potência a capacidade produtiva daforça de trabalho. É óbvio que o desenvolvimento da composiçãoorgânica do capital implica o desenvolvimento de formas cada vezmais elaboradas de divisão social do trabalho. E o progresso dadivisão do trabalho pressupõe condições sócio-culturais especiaispara a preparação e a especialização da força de trabalho. Isto é, sobas formas avançadas da divisão social do trabalho, conforme elas semanifestam no capitalismo, superam-se as limitações próprias dacooperação simples, ou formas mais ou menos rudimentares decooperação, que tendem a prevalecer na organização do trabalhoescravo em fazendas, engenhos, plantations ou outras unidades

(67) Kad Marx, Salário, preço e lucro, Editorial Vitória, Rio de Janeiro, 1963, p.52-53. Traduzido do inglês, sem indicação do tradutor.

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produtivas. Segundo Marx,o aumento crescente do capital constante,em relação ao variável - ou a progressiva elevação da composiçãoorgânica do capital - é uma tendência característica das relaçõescapitalistas de produção. Isso é mais "visível" na indústria, mas podeser observado também na agricultura e outras esferas da produção.

Pondo-se de lado as condições naturais, como fertilidade do solo, e a habilidadede produtores que trabalham independentes e isolados, a qual se patenteia mais naqualidade do que na quantidade do que produzem, o grau de produtividade dotrabalho, numa determinada sociedade, se expressa pelo volume relativo dos meios deprodução que um trabalhador, num tempo dado, transforma em produto, com omesmo dispêndio de força de trabalho. A massa dos meios de produção quetransforma aumenta com a produtividade de seu trabalho. Esses meios de produçãodesempenham duplo papel. O incremento de uns é consequência, o de outros,condição da produtividade crescente do trabalho. Assim, por exemplo, com a divisãomínufatureira do trabalho e o emprego das máquinas, transforma-se no mesmotempo mais material, e por isso quantidade maior de matérias-primas e de materiaisacessórios entram no processo de trabalho. Isto é consequência da produtividadecrescente do trabalho. Por outro lado, a massa da maquinaria empregada, das bestasde carga, dos.adubos minerais, das tubulações de drenagem etc. constitui condiçãopara a produtividade crescente do trabalho. O mesmo se pode dizer com relação àmassa dos meios de produção concentrados em edifícios, altos fornos, meios detransporte etc. Mas, condição ou consequência, a grandeza crescente dos meios deprodução, em relação à força de trabalho neles incorporada, expressa a produtividadecrescente do trabalho; O aumento desta se patenteia, portanto, no decréscimo daquantidade de trabalho em relação á massa dos meios de produção que põe emmovimento, ou na diminuição do fator subjetivo do processo de trabalho em relaçãoaos seus fatores objetivos.

Essa mudança na composição técnica do capital, o aumento da massa nos meios deprodução, comparada com a massa da força de trabalho que os vivifica, reflete-se nacomposição do valor do capital, com o aumento da parte constante às custas daparle variável. Se. por exemplo, originalmente se despende 505 em meios deprodução e 50% em força de trabalho, mais tarde, com o desenvolvimento daprodutividade do trabalho, a percentagem poderá ser de 80Í? para os meios deprodução e de 20^ para a força de trabalho e assim por diante. Esta lei do aumentocrescente do capital constante em relação ao variável se confirma em cada passo...(68).

Mas todos os métodos para elevar a força produtiva social do trabalho... são aomesmo tempo métodos para elevar a produção de mais-valia, ou do produtoexcedente, que por sua vez é o fator constitutivo da acumulação. São, portanto, aomesmo tempo métodos para produzir capital com capital, ou métodos para acelerarsua acumulação... Com a acumulação do capital desenvolve-se o modo de produçãoespecificamente capitalista e com o modo de produção especificamente capitalista a

(68) Karl Marx, O capital, citado. Livro l, vol 2, p. 723-724.

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\o do capital. Esses dois fatores, na proporção conjugada dos impulsos que

se dão mutuamente, modificam a composição técnica do capital, e, desse modo, aparte variável se torna cada vez menor em relação à constante(69).

Mas é fundamental registrar aqui um aspecto básico da incompa-tibilidade entre o trabalho escravo e o trabalho livre. Ao criar-se egeneralizar-se o regime de trabalho livre, as exigências económicas esócio-culturais da reprodução da força de trabalho operária passa-ram a ser governadas pelas condições próprias das relações capitalis-tas de produção. Sob o capitalismo, a reprodução da força detrabalho (da classe operária) se rege por condições histórico-estrutu-rais próprias, diferentes daquelas específicas do escravismo. Asexigências económicas e sócio-culturais do escravo, por sua condiçãode propriedade do senhor, são substancialmente diferentes dasexigências económicas e sócio-culturais do operário, enquantotrabalhador, vendedor de força de trabalho, cidadão, membro desindicato, partido etc. As possibilidades de organização social epolitica das reivindicações do operário são essencialmente diferentesdas que dispõe o escravo. Por isso é que o custo da reprodução daforça de trabalho escrava tende mais facilmente a ser determinadapelo nível fisiológico mais do que o social. Ao passo que o custo dareprodução da força de trabalho livre tende a definir-se pelascondições políticas de que dispõe o operário para defender oumelhorar as suas condições económicas e sócio-culturais de vida. Emessência, a relação do operário com o capitalista é contratual, aindaque em condições adversas; ao passo que o escravo é simplesmentepropriedade do senhor por toda a vida.

Marx: Na medida porém em que a exportação de algodão se tornou interesse vitaldaqueles estados (meridionais da América do Norte) o trabalho em excesso dospretos e o consumo de sua vida em sete anos de trabalho tornaram-se parteintegrante de um sistema friamente calculado. Não se tratava mais de obter delescerta quantidade de produtos úteis. O objetivo passou a ser a produção da própriamais-valia(70).

Chayanov:Q$ gastos de manutenção dos escravos são determinados pela exigên-cias fisiológicas e pelas tarefas que lhes são atribuídas(71).

Isso era possível porque a condição escrava praticamente anulavaqualquer capacidade de reivindicação do escravo, enquanto casta.

(69) Ibidem, p. 725-726.(70) Kail Marx, O capital, citado, Livro l, vol. l,j>. 266.(71) A.V. Chayanòv, The (heory ofpeasanl economy, citado, p. 13.

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As suas condições históricas e morais de existência, na formaçãosocial escravista, possibilitavam que a casta dos senhores mantives-sem os escravos vivendo próximo do nível fisiológico; ou sendoaumentado e abrigado segundo condições totalmente ditadas pelossenhores.

Ao examinar especificamente a determinação do valor da força detrabalho livre, Marx chamou a atenção do leitor para as condiçõeshistóricas e morais, ou sócio-culturais e políticas, além das económi-cas, dessa determinação. Inclusive mostrou que o custo da reprodu-ção da força de trabalho, do operário, envolve necessariamente ocusto da reprodução da classe operária.

As próprias necessidades naturais de alimentação, roupa, aquecimento, habitaçãoetc variam de acordo com as condições climáticas e de outra natureza de cada pais.Demais, a extensão das chamadas necessidades imprescindíveis e o modo desatisfazê-las são produtos históricos e dependem, por isso, de diversos fatores, emgrande parte do grau de civilização de um pais e, particularmente, das condições emque se formou a classe dos trabalhadores livres, com seus hábitos e exigênciasparticulares. Um elemento histórico e moral entra na determinação do valor da forçade trabalho, o que a distingue das outras mercadorias(72).

Quando são examinadas de forma mais demorada, as contradi-ções políticas e económicas que deram origem à extinção do regimede trabalho escravo parecem estar referidas, em última instância, aoseguinte: sob o escravismo tendem a predominar condições deprodução de mais-valia absoluta, ao passo que no capitalismotendem a prevalecer condições de produção de mais-valia relativa.Lembremo^nos de que a mais-valia absoluta se produz pelaextensão da jornada de trabalho; enquanto que a mais-valia relativaresulta da potenciação da capacidade produtiva da força detrabalho, por meio da organização técnica e social do processoprodutivo. Com isso quero frisar que sob o escravismo podepredominar uma forma de organização das relações de produçãoque implica uma composição orgânica do capital relativamentebaixa; ou seja, com elevada participação de mão-de-obra noprocesso produtivo. Como não pode reivindicar, o escravo estásujeito às condições ditadas pelo senhor. E este somente muda oudesenvolve os elementos que compõem o processo produtivo -modificando a composição orgânica do capital - em função defatores como os seguintes: oferta ou disponibilidade de mão--de-obra; interesse em aumentar ou'dinamizar ,a produção. Mas não

(72) Karl Marx, Op. cit., vol. citado, p. 191.47

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em função de qualquer pressão social ou política do escravo. Comocasta, o escravo não se repõe. O operário, por seu lado, tempossibilidades de lutar por maior participação no produto do própriotrabalho. Ainda que sob as condições estabelecidas e controladaspela burguesia, o operário é livre de negociar a sua força detrabalho. Pode negociar a reposição da sua força produtiva, inclusiveenquanto classe social.

O estravo pertence a um senhor determinado; o operário, certamente, precisavender-se ao capital, mas não a um capitalista determinado, de tal modo que, dentrode certos limites, pode escolher a quem quer vender-se, e pode trocar de patrão.Todas estas relações modificadas fazem com que a atividade do trabalhador livre sejamais imensa, continua, móvil e competente .que a do escravo, além de que ocapacitam para uma ação histórica muito diferente. O escravo recebe em espécie osmeios de subsistência necessários para sua manutenção, e essa forma natural dosmesmos está ficada, tanto por seu género como por seu volume, em valores de uso. Otrabalhador livre os recebe sob a forma de dinheiro, do valor de troca, da forma socialabstraia'da riqueza. ... O operário pode poupar algo, imaginar que economiza. Pode,da mesma maneira, desperdiçar em aguardente etc. Ao fazer isso, porém, atua comoagente livre, que deve pagar os pratos quebrados; ele próprio è responsável pelamaneira que gasta seu salário. Aprende a aulodominar-se, diferentemente do escravo,que precisa de un) amo(73).

O que o operário vende não é diretamente o seu trabalho, mas a sua força detrabalho, cedendo temporariamente ao capitalista o direito de dispor dela. Tanto éassim que, não sei se as leis inglesas, mas, desde logo, algumas leis continentais fixam

' o máximo de tempo pelo qual uma pessoa pode vender a sua força de trabalho. Se lhefosse permitido vendê-la sem limitação de tempo, teríamos imediatamente restabele-cida a escravatura. Semelhante venda, se o operário se vendesse por toda a vida, porexemplo, convertê-lo-ia sem demora em escravo do patrão até, o final de seusdias(74).

É óbvio que também o escravo pode ser posto numa organizaçãosocial e técnica do processo produtivo na qual se potência acapacidade de sua força produtiva. Dessa forma ele produziriamais-valia relativa. Mas o que é difícil, e mesmo impossível, é que oescravo e o trabalhador livre possam ser colocados a trabalhar lado alado, por longo tempo, na mesma oficina, fábrica, fazenda, planta-íion, engenho etc. Se é verdade que um e outro podem produzirmais-valia relativa, não é igualmente verdadeiro que as condiçõessócio-culturais e políticas que envolvem o escravo e o trabalhador

(73) Karl Marx, El capital, Libro I, Capitulo VI (INÉDITO), trad. de Pedro Scaron,Ediciones Signos, Buenos Aires, 1971, p. 70.

(74) Karl Marx, Salário, preço e lucro, citado, p. 46.

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livre sejam sequer semelhantes. A forma de organização social etécnica das relações de produção com base no trabalho livre diferesubstancialmente daquela baseada no trabalho escravo. É claro que ouso da violência e dos incentivos difere radicalmente em cada caso.Além do mais, o escravo representa principalmente capital constan-te. E isto o torna diferente, económica e socialmente, do trabalhadorlivre, em especial o operário, que representa capital variável,aplicado segundo as exigências do processo produtivo. O operário élivre de oferecer-se no mercado, para vender a sua força de trabalho.E isto permite que o capitalista compre a sua força de trabalho /segundo as condições que lhe garantam o lucro. Ao passo que o /escravo é capital constante, que precisa ser alimentado e abrigado, *mesmo quando as condições de produção não garantem lucro, ou omercado está desfavorável para o produto do engenho, plantationetc. O trabalhador livre, em especial o operário, não poderiasuportar as condições de trabalho a que o escravo é submetido. Averdade é que o.operário, e _o escravo implicam dua^foimas distintas"é estruturalmente incompatíveis de organização técnica e social dasrelações de produção.

Ao permitir que o proprietário dos meios de produção compreapenas a força de trabalho necessária, sem comprar o trabalhador,a abolição da escravatura torna possível a mudança da composiçãoorgânica do capital. Isto significa que o proprietário dos meios deprodução pode investir maiores quantidades de capital constante -ou diversificar as aplicações em capital variável (salários) - segundoas exigências do ciclo do capital produtivo. Assim ele se livra dainversão ociosa, ou arriscada, em escravaria. Antes de mais nada,ao abolir-se a escravatura criam-se outras e mais amplas possibili-dades de produção e circulação do capital. Talvez se possa dizerque sob o regime de trabalho livre o capital produtivo pode sermais "versátil" do que sob o regime de trabalho escravo. Aomesmo tempo, a transformação do escravo em trabalhador livre -ou seja, a generalização do trabalho livre - abre novas e amplaspossibilidades à "divisão social do trabalho. Na empresa (agrícola,pecuária, mineradora, industrial ou outra) a versatilidade da forçade trabalho livre amplia as oportunidades de organizar, hierarqui-zar e sistematizar os usos da força de trabalho, segundo asexigências do conjunto do processo produtivo, ou do desenvolvi-mento das outras forças produtivas. É fundamental reconhecer queo operário desenvolve a sua atividade produtiva numa relaçãocontratual, na qual ele e o capitalista são partes formalmenteiguais. É a "cidadania" do operário - inerente à relação contratualespecífica do processo capitalista de produção - que permiteresponsabilizar o operário por renovadas tarefas, segundo especia-

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lizacões e incentivos também sempre renováveis. Na situação decontrato específica dessas relações de produção, o operário etransformado, em boa parte, em juiz de si mesmo sem o que elenão faria jus ao seu salário. Esse é o preço da cidadania, isto e, datransição para o regime de trabalho livre.

Em síntese, no primeiro momento, as formações sociais baseadasno trabalho escravo produziram as mercadorias que permitiram aampliação e a aceleração da acumulação de capital, processo queesteve na base da criação e generalização do capitalismo. Nesseentão, o próprio trabalhador é mercadoria. No outro momento, .ocapitalismo constituído e em expansão revoluciona as relações deprodução nas formações sociais escravistas, transformando o escravoem trabalhador livre. Nesse então, o trabalhador é livre de vender

\ sua força de trabalho como mercadoria. Antes, no âmbito dai adulação primitiva, o escravo havia ajudado, a fnarem-se asl condições de formação do operário. Depois no século XIX ol operário ajudava a criarem-se as condições de transformação do

escravo em operário.

RAÇA E CLASSE

Raça e cultura

Na América Latina e no Caribe, o africano^ transforma-se emnegro e mulato. Ao-longo de vários séculos, e sob as mais variadascondições sociais, o africano"passa por personificações ou figuraçõessociais como as seguintes: escravo, boçal, criou,lo,iladino, ingénuo,libertõTlnulato ou negro. No confronto com o branco, o índio, omestiço, o imigrante europeu, o imigrante asiático e outros tipossociais, paulatinamente o africano é transformado em negro emulato. E são estes, o negro e o mulato, que aparecem no horizontesocial do branco e de si mesmos, no século XX. Aparecem nasrelações de trabalho, relações políticas, religiosas, sexuais, lúdicas eoutras, como tipos sociais que são diferentes do brancOj^ejn_sfi-US-atributosTTMcos;, fenotipicos, psicológicos ou culturais (1). JNa_trama, das relações sociais, o branco, e o próprio negro, acabam porpensaj e agjr como se o negro possuísse outra cultura, outro modo deavaliar as relações dos homens entre si, com a natureza e osíJbTenatural. Não è como o branco, é diferente, outro, estranho.Em"gcrãT..é uma raça subalterna. Em quase lodosos países, o negroaparece corno a segunda ou a terceira raça, depois do branco ouíndio.

Esse é o sigmfi£ado_jogiojóg.ico_de_rasa_jieg£a. _As djfere-nçasraciais, socialmente reelaboradas, engendradas ou codificadas, sI0continuamente recriadas e reproduzidas, preservando, alterando,reduzindo ou mesmo acentuando os característicos físicos, fenotípi-cos, psicológicos ou culturais que djstingyj.nam..P_branço. do negro.As distinções e diferenças biológicas, nacionais, culturais, lingtiísti-

(1) A partir deste ponto, o negro e o mulato serão englobados frequentemente naexpressão negro. Algumas vezes, conforme as exigências da narração, destacarei umou outro. Outra observação: Salvo nos casos em que especifico o pais e a época, emgeral a discussão feita neste trabaiho engloba o conjunto dos países da AméricaLatina e do Caribe nos quais houve escravatura de. africanos e seus descendentes.Emnenhum momento a discussão enfoca a situação racial em Cuba socialista.

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cãs, religiosas ou outras são continuamente recriadas e reproduzidasnas relações entre as pessoas, as famílias, os grupos e as classessociais. Nas várias esferas da organização social, nas relações detrabalho, nã~pràtica religiosa, nas relações entre os sexos, na família,reprodução artísticaj no lazer e em outras situações, as raças são

i seguidamente recriadas e reproduzidas como socialmente distintas e' desiguais. Em cada país pode variar a composição dos critérios so-

ciais para classificar as pessoas, famílias, grupos ou classes embrancos, índios, mestiços, negros, mulatos e outras categorias sociais.Ma£jern_tod_os,_ para_ Q_branco, índio, mestiço,, italiano, alemão,japonês, inglês, francês e outros, o negro pertencera outra raça, a uniujiiverso_de _vajgre_s_^j.ajdj5^^ócio:c_ujtur_ais pouco ou _ muito

o branco.

Em termos mais específicos, nas Américas o critério para definir raças sociaisdifere de região para região. Em dada região, enfatiza-se a descendência, em outraressaltam-se os critérios sócio-culturais e, ainda numa outra, a aparência física è abase primeira para classificar a pessoa segundo a raça social. Isso produz em cadauma dessas regiões diferentes raças sociais e arranjos diversos das relações raciais. Asdistintas maneiras de cada região conceber as raças sociais refletem as relações entrepessoas de diferentes origens biológicas e culturais dentro de uma sociedade(2).

Nesses termos é que o negro surge no horizonte da análisecientifica..Xle aparece ao branco, e a si mesmo, como um tipo socialcuja sociabilidade escultura apresentam característicos que o diferen-ciam jdojmmco. Algumas das suas atividades, bem como os valoresque organizam essas atividades, parecem diferenciar e discriminar o.negro, a ponto de transformá-lo num problema, ou desafio, para obranco e a si mesmo. O branco procura encontrar no próprio negroos motivos da distância social, do preconceito e das tensões que serevelam, nas relações entre ambos. O negro, por seu lado, procurasituar-se e movimentar-se na trama das relações sociais, nas quais elesurge como diferente, afastado ou discriminado pelo branco. Aidentidade do branco conte'm uma espécie de reflexo da identidadeque ele imputa ao negro. E este, para identificar-se, precisa aceitar,passiva ou criticamente, a identidade que o branco lhe_irnjnita. Esseé o núcleo do universo social tenso, no qual o negro aparece como

jjn^ problema^ para o^ranço,_a_si_rnesrno_e para o cientista social.Essa busca da singularidade- social "e cultural do negro está

(2) Charles Wagley, The Latin American tradition, Columbia University Press, NewYork, 1968, p. 156. Citação do cap. V, inti tulado "The conceptof social race in theAméricas", p. 155-174.

presente em boa parte das pesquisas e interpretações de antropólo-gos, sociólogos, historiadores e outros cientistas sociais que têmtrabalhadocom o problema das rejações entre o branco e ojiegro naAmérica Lãtina oCaribe. Fernando Ortiz, Gilberto

~\ _ _ _

Melvjlle J. Herskovits, E. Franklin Frazjer, Frank ̂ TannenbaumTCharles Wagley, Marvin Harris, H. Hoetink, Eugene E. Genovese, J.Halcro Ferguson, Sidney W. Mintz, David Brion Davis, MagnusMorner, Verena Martinez-Alier, Florestan Fernandes e RogerBastide são alguns_dentre _os._gigntistas sociais Jntgressados_ empesquisar e explicar os conteúdos históricQ& e,,cultura]s dasj[elae.õesentre o negro e o branco no^£aíses_jia-_A -t"pr'ca_.L.ãlirjff--. e doCaribe. EssSC-jÊ í̂C-piaSlemátiea que aparece na escala culturalconstruída por Herskovits e publicada pela primeira vez em 1945 (3).Trata-Se de Uma_SÍStefflafÍ7.açqnjjf infnrjpa^õe^sjrjibrp a presençajjp.elementos culturais africanos em vários países ..... das Amérieas-eCaribe. Nessa escala vemos como se distribuem os elementosculturais pelas jHferjailfii£§feras_de atividade em que sjejjrganizarn as_rejações entre o branco e ,0 negro: tecnologia, vida económica,organizarão social, instituições, religião, magia, arte, folclore, músicae " língua^ E verdade que Hersko.vils está -fiteocupadiX-em- mostrarcomova cultura africanaj2ej3ÍSíe_iiA.cuUiir.a^ eCaribe. Mas também podemos dizer que a referida escala de'africanismos culturais presentes nesses países pode ser vista comoúmã~escaía ^ê~perdas"culturars; ou, ajuda, como urna escala deformas culturais recriadas. Vejamos os dados da tabela í.

Dentre outros significados dos dados apresentados por Herskovits,penso que a escala de africanismos culturais é bem uma amostra decomo os cientistas sociais procuram explicar a mèTáníorfose doafricano em negro e mulato. Sim, uma questão central é compreen-

(_ ."á?I ££mo ° africano se transforma em negro e mulato, e porque asrejações errtrg^ o branco, o negro e p mulato marcam e recriamdiferenças raciais, em lugar de apagar ou diluir essas diferenças.Para explicar essa metamorfose, antropólogos, sociólogos, historia-dores e outros tendem a começar pela relação entre raça e cultura.

Examinemos, pois, como se encara habitualmente a relação entrea cultura africana e a condição do negro. Para compreender qual é afisionomia social do negro na América Latina e no Caribe, podemoscomeçar pelo que parece ser a singularidade da sua cultura. Há pelo

(3) Melvi l le J. Herskovitz. The New H orla negro, Minerva Press. 1969. p. 53. Areferida escala 'deafr icanismos está no cap. i n t i t u l a d o "Probleni. method and theoryin Afroamerican studies" p. 43-61.

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menos três jnterpretações distintas sobre a contribuição cultural dasu o o populaçõêlTdà Afrjça^seus descendentes às sociedades da América

'§• Lajinaie do Caribe. Vejamos quais são, de modo breve.Í A primeira interpretação estabelece que a cultura africana, mais

,0 .n l ou menos enquanto tal, está presente em todas as sociedades nase quais toram introduzidos escraym^frJ£anojs._JEssa cultura estáw -" presente - de torma desigual naturalmente - nas várias esterafclaG < atividade e da organização sociais: religião, toiclore^ música,

-B-e « ^ língua, família, culinária etc.v|lambj;nTsurge decontrontamos países, regiões é lugares. Mas está presente enquanto

™ v ! cultura que pode ser reconhecida como de origem africana, diversfl^ f > o T i o * > o o a f > o o o o oooooooo ° ^ da europeia, asiática eindígena. isso sigmtica que alguns aspectos"dã

O S \a social e culfúrãTd^^^opulações negras da América,, t .atinae

z — 'E «S Cabbe, bem~cQrnQ certos característicos das relações entre o branco§ *§• § « « « « * . «,* & a a a £ > a a * > f > £ > £ ) & f > s * a ~^ ^ e O7rnegro. acham-sg ^JT_a_. jnfyi^nçj j» (]ç ejementfí^ culturais;o S | . aftjçânos.. Estes elementos são manti^2^_jTelnsjj^ejdentes dosb u ''E l africanos como sobrevivências culturais^ que protejam a snhr?yi-^ •« ? « i s c 8 , o c a M o » i « . o = a , o , a r t o o o o o o o ^ ygngia aas"pe5soas. Tamilias- grupos e cornunídades.z l ^ ' "g. ''"A^gguTraà interpretação estabelece que a cultura trazida pelosg g M- g africanos foi, rnais ou menos profundamente, rompida e reelabora-5 P "S.* § '~- "dã^Tjet^gsetayjíitu rã - h.nquanto Jorma de orgãmlaçaQ social e

_ tío a - 3 g « o o o - o - a u u ^ í i ^ - a ^ ^ o í J o - a - o T j T S -^ técnica das relaçõesde produção, a escravatura produz uma cultura< g* | |j § l g própjia, que pouco ou 'nada tem a ver com os elementos .culturais'g •* g, **• . £ europeus, africanos, indígenas e asiáticos, Vá.rios séculos de regime< Q *- ^ o ^ll^rafíalh" ?grrav" ro^pirn tQ4a§__aj___£°ntri_buigões culturais

Q « « "§ c 8 ^ í i o j i o * o o i i j ) T i x > o o ^ o o o o ò o^ enrãlzã~ê espraia na socTêdãde pessoas farnilias. grupos e classesES | | •*> S s-99âÍ5- Assirryo que aparec^ depois. no^_sécujos'XIX e XX."comòZ Q . o

__g g ° ' i cultura do nçgry, n^o é "enãn a r.iitnra prõtirmfla com_j saciedadeZ E « -g baseada no trabalhe encravo. Na sociedade em que a escravaturaa S S _ _ _ , , "8 'predomin^u,-trorno íiõrrffãçãTr social, persistem,, depois, inclusive no:g r o ^ j o j j - o - t í o o t s - a o o o o - a - a a j T S - a o i u i u o r, ' ' . . r . r . ,, _" 8 c . ,3> •* século XX, elementos culturais de cunho escravista. Sao^ essesd ͧ ^ í. m <^PTT1f"t"'! TH? aparecem na prátjca religiosa, magia, musica.o ^ "S" *• organização da famílía1 culinária e outras esferas da atividade

social do negro em países 4a ^T'Pr'.':ra_, Vat 'na e do Caribe. SejjamPOUCOS OS ementns afrirann<; nrptprvarlrn;- e OS aue se Preservas

<§" ram jorgrr|lllrlee|fl^prados nas relações e estruturas escravTstasT~ ~Ã~terceira interprftaqãr. pctah^iprp que as culturas africana e

* ° 4 escrava foram rompidas e superadas pelas relações e estruturam^ 8 " .Capitalistas ~mre-YrpÕffiirTãrh amplamente ' n a s ^nc^g^pdes. dao 3 3 . America Latina_e ao Caribe j nó século XX. E claro que odgmS " S ^ ideTTtifirai'-se elementos culturais africanos eÍ l .coes vividas jpelos negros ê"brancQSLnp s.écilia XX.f Na religião^l l música, folclore, organização famjl iar ..culináriaT 1'ingua e outrãF'3 «' esferas da vida social esses elementos podem ser vistos.JMas o que«B § — ..... ---------- ..................... ............. - .............. = ....... r ........... — * ........... ~~_I# ^í, § 'a S í 55

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predomina é a cu l tura do capitalismo; ou uma cuh^rahgterogênea.desigual e mesmo contraditória cujo sentido básico e dado pelasrelações e estruturas do modo capitalista de produção. „-

Essas três interpretações não são necessariamente expjii^iyac f. f ma.podejeF_çx5mpxeendida peia. autca^So b certo aspecto, a primeiras e^asegunda podem ser englobadas pela terceira! O fato de que as

_(málênais, organizatórios, espirituais e outros) quejhes corresgoia-dejn_nã^_jrrir^dje__jg^^ eesj0^1?MlJ;amliéin---«sto}aa^^ As relações e estruturas"capitalistas têm a faculdade de criar e recriar tanto o que é novocomo o que é velho. A heterogeneidade, a desigualdade e acontradição culturais (em termos materiais e espirituais) fazem partenecessária da heterogeneidade, desigualdade e contradição caracte-rísticas das relações e estruturas capitalistas.

Q_ que está no centro de cada uma das interpretações (sobre acontribuição cuhural_das populações . ja.,Áfiica . ásJsocie4ãdss._d aAmérica Latina e do Caribe) é_a singularidade, do rtéãro: em quetermos e por^ueTefe aparece no branco e^a si mesmo como um tiposocial singular, cprhõ outra raça, outra Forma de pensar, sentir e agir?A questão central, pois, é~explTcar como se produz historicamente ametamorfose do africano em negro.

Paraaparecer no século XX como negro, na América Latina e noC a ríBeTo ajricano__não só toi escravo mas também transformou- seem operário. Mais que isso, no século XX o negro foi transformadoou Iransformou-se em operário industrial, operário agrícola, braçal,esftgcializado. funcionário. emjyegado,cãmj:rciante. sitiante, çs^idjn-te,_p_oliticp, in|ej£gtyâl e outras figurações .S-Ociais. B é sob essasformas IJue ele se reproduz no_ século XX; não se reproduz nemcomo _afncano_nem como escravo. O que há dlTafncano ou escravoernsua cuIturãTou visão rio mundo, não SP explica apenas_cornosobrevivência^ mescla de culturas o_u_^flic_ujações ; sincréticas_sobasquais se escpnde_o.ex-africano ou ex-excravo. O q ue_h á d e a fríganõ'ouescravona cultura ou visão do mundo do negro da AmericaLJítina eCanbe é o que se recria e reproduz continuadamente. Masse recria e reproduz continuadamente menos por decisão e atividadedo^HggTorJB per si, do que pelas condições e determinações dasrelações dèTrneTdeperTdêncía", alienação e antagonismo caracteristi-cãs^gõ"cãp1talisrrtor"TantQ- assim que o gne parece ser culturaafncálíã~piT7^ThTTra npgTa p-m paísps Ha Amfrjça Latina e do Caribesão componentes intrínsecos da mltnra presente e viva desses países.Na santería, no vodu, no candomblé, na umbanda e outrasmanifestações d? ^iltnra rpiioioca HP pff;rns e mulatos não só estãopresentes elementos do^spiritismo e do catolicismo, como também

56

estão presentes brancos, Índios, mestiços,rtarlianõSTTÕútros. que a magia,_

~rnulálós. ^ _bõradãs pelo corijUntõ^l^Têma culturãlvi^mtejiesses países. Nãoé ~pôí ' MèTõ7ã^S5r^xÓUsrao~pú "sobTevívênçia cultural que certoseTernênlõs"culturais "africanos",_"escravistas" ou "negros" surgem eressurgem, criam-se e reproduzern-se_ nas jrandes cidade^ CíriosgraiKterTe"n'ffôs industriais" em' cada .paísJSa América Latina e noCarrbe7-aT'cúlturas "negras" são dimensões populares, operárias, declasse média ou outras, das relações político-econômicas que garan-tem a reprodução da sociedade, em suas harmonias, desigualdades econtradições.

Casta e classe

Para compreender a forma pela qual o africano transforma-se emnegro e mulata*-? conveniente que tenhamos em mente que essjjmetamorfose envolve a passagem do africano pela co_n_digãg_ deescravo, hm graus yariáyejs obviamente, é e r»

lugar

^o século XX são um pouco. 011 bastante conforme o país.

ou éoca, o produto da Na° ue eles_guardaram a experiência escrãvãTem srináTporque a escravatura_marcou mais ou menos fundamente as sociedades nas quais otrabalho escravo toi a torma principaldojrabalho produtiva— A~~esrravarura toi a torma '^Hã~^uar~sê'' realizou uma partefundamental do processo de aculturação do africano nas sociectadesrdas Américas e Caribe(4). Sob a condição de escravo, o atricariõpnssrni por urrT processo cie aculturação forçada, subalterna, eorganizada segundo os interesses ̂ po^ljtiog^e^onômicos exclusivos da

ayia dos senhores. Ma condição de tríbãTRãdores forçados, a casTadus tíscrãVDS loilTbãse da sociedade como um todo, e não apenas daeconomia escrava. O escravo produzia o necessário e o supérfluo, oque se consumia, exportava e ostentava. A importância do escravofoi particularmente excepcional nas sociedades brasileira, cubana,haitiana, norte-americana e algumas outras do Caribe. Em menorgrau, o escravo africano também participou de formas de trabalhoforçado no México, Venezuela, Colômbia. Peru, Argentina ealgumas outras sociedades da América Latina. Nas colónias e,

(4) Nesta parte do trabalho incluo algumas referências e dados sobre os EstadosUnidos.

57

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países em que a formação social escravista foi predominante, oconjunto do processo de aculturação do africano esteve totalmentemarcado e organizado pelas relações escravistas de produção, nasquais se destacam a casta dos escravos e a dos senhores.

Foram milhões os escravos trazidos para trabalhar na plantação,fazenda, enjgerTho, transporte de carga^ produção de artefatos demadeira,jcouroeferro,,serviços domésticos, serviços urbanos e outros.Naturalmente variam as estimativas sobre o número de africanostransferidos para as Américas e o Caribe. Dentre as estimativas maisrecentes, encontram-se as que Robert William Fogel e Stanley L.Engerman realizaram. Esses economistas escrevem que mais de9.500.000 africanos foram transportados da África para as Américase o Caribe. Desse total, teria sido esta a distribuição dos africanos:ao Brasil chegaram 38 por cento; à América espanhola 17 por cento;ao Caribe francês também 17 por cento; ao Caribe britânico ainda17 por cento; ao Caribe holandês, dinamarquês e sueco mais 6 porcento; e aos Estados Unidos chegaram 6 por cento (5). A tabela IIregistra os números absolutos dos africanos transportados para osprincipais centros nas Américas e Caribe.

Note-se, no entanto, que as- proporções dos escravos não semantiveram semelhantes às proporções dos africanos transferidos àscolónias e países das Américas e Caribe. As condições de vida ereprodução dos escravos variaram bastante, conforme a colónia oupaís. Às vezes, dentro de um mesmo país, como no caso das diversasregiões em que se dividiam os Estados Unidos e o Brasil, variarambastante as condições de vida e reprodução das populações escravas .As condições de exploração da força de trabalho escrava determina-ram, em alguns casos, ampla destruição de trabalhadores escravos.Esse foi o caso, por exemplo, do Brasil. Em outros casos, tambémdevido a condições peculiares de exploração e reprodução da castados escravos, houve alguma preservação e mesmo algum aumentoda população escrava. Esse foi o caso da América espanhola e dosEstados Unidos, como indicam os dados do gráfico l (6).

Somente uma análise rigorosa de cada uma das formações sociaisescravistas permitiria explicar como e porque, em cada caso, apopulação escrava se reproduziu mais ou menos. É claro que ofundamento principal da explicação está na forma de organizaçãosocial e técnica das relações de produção. Independentemente da"humanidade" da escravatura, em cada caso, é evidente que a

(5) Robert W. Fogel & Stanley L. Engerman, Time on the cross, 2 vols. Little,Brtftfíi and Company, Boston, 1974, vol. l, p. 14-15.

58

TABELA II

PRINCIPAIS IMPORTADORES DE ESCRAVOS

(1502-1870)

Colónias e países] Quantidades

BarbadosBrasil ;ColômbiaCubaEstados UnidosGranadaGuadalupeGuiana e SurinãHaitiJamaicaMartinicaMéxicoPeruVenezuelaDestino desconhecido

Total

364.0003.647.000200.000702.000596.00067.000290.000500.000864.000748.000365.000200.00095.000121.000741.000

9.500.000

Fonte: Robert W. Fogel & Stanley L. Engerman, Time on the cross, 2 vols., citado,vol. l, p. 18.

GRÁFICO lDISTRIBUIÇÃO DA POPULAÇÃO NEGRA (ESCRAVA E LIVRE) EM 1825,

COM A DISTRIBUIÇÃO DAS IMPORTAÇÕES DE ESCRAVOS, 1500-1825

50

40

30

20

10

l l Percentagens das Importações de escravos, 1500-1825

E3 Percentagens de negros no hemisfério ocidental, 1825 j

lE.U.A Caribe

brltinlcoCaribefrancês

Caribeespanhol

Brasil Caribeholandês

dinamarquêse sueco

59

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destruiçjlo.ajrjreservação ou o aumento da casta de escravos são fatosdeterminados pelo caráter da formação social jgsggvista. seu modode vinculação com o mercado externo, os tipos dê~comércio demercadorias com africanos etc. De qualquer maneira, é bastantesignificativo que algumas formações sociais destruíramtnais__apopjjlação escrava dó que outras. E esse é um dado imporfãntíTsobreo caráter da formação social escravista, em cada caso.

O fato é que a escravatura de africanos deu ao mapa racial decada um dos países das Américas e Caribe uma fisionomia peculiar.Em vários casos, a população negra e mulata é notável, por suapresença quantitativa e qualitativa na estrutura social. Em certoscasos, é notável a visibilidade social de negros e mulatos nas classesassalariadas, principalmente nos operariados urbanos e rurais. Éverdade que em alguns países, como no Chile e em São Salvador,por exemplo, a população negra e mulata é relativamente ínfima, emtermos absolutos e relativos. Na maioria dos casos, no entanto, ela ésignificativa. E em alguns, ela é a população que define a fisionomiado país. Uma imagem do mapa racial das Américas e Caribe podeser apreciada nos dados da tabela III, dados esses organizados porFrank Tannenbaum e citados por Bastide(7).

Dentre os países e colónias que compõem a área do Caribe, énotável a presença da população negra e mulata; ou mesmo o seupredomínio, em comparação com os brancos, indígenas, mestiços easiáticos, estes principalmente de origem hindu. Os dados da tabelaIV mostram que em Barbados, Jamaica e Trinidad-Tobago, além deoutros casos, a população negra e mulata predomina sobre as outrasraças. Mas é também significativa a presença de asiáticos entre oshabitantes de Trinidad e Tobago. No caso da Guiana inglesa, osasiáticos perfazem cerca de 45 por cento da população (8). N o conjuntodo Caribe, como indicam os dados das tabelas III e IV, é notável opredomínio da população negra e mulata. A tabela III indica queeram mais de 39 por cento os negros e mais de 21 por cento osmulatos, perfazendo cerca de 60 por cento do total da população daárea. Note-se, ainda, que há países da América Latina nos quais apopulação negra e mulata está concentrada em dadas regiões. Esse éo caso do Brasil. No conjunto, este país contava, em 1950, com cercade 36 por cento de negros e mulatos. Mas a distribuição dessapopulação não é homogénea, se comparamos os vários estados dopaís. Há estados nos quais os negros e mulatos perfazem cerca de 10

(6) Robert W. Fogel & Stanley L. Engerman. Op. cit., vol. I. p. 28.(7) Roger Bastide, As Américas negras, Tradução de Eduardo de Oliveira e

Oliveira, Difel-Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1974, p. 20.(8) Anthony H. Richmond, The colourproblem, Penguin Books, London, 1955, p.

215.

60

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Page 36: escravidão e racismo.hucitec, 1978. pp. 1-80, 127-142- ianni, o

Território

Barbados

Guiana inglesa

Honduras britânica

Jamaica

Ilhas Caim

áoIlhas T

urcas e Calcos

Antigua

Monserrat

SanCristofe-N

evisIlhas V

irgens .T

rindade e Tobago

Dom

iniqueG

ranadaSanta L

úciaSão V

icenteB

aamas (1943)

Berm

uda

Total

TA

BE

LA

IV

POPU

LA

ÇÃ

O D

AS

ÍND

IAS

OC

IDE

NT

AIS

BR

ITÂ

NIC

AS, B

AA

MA

S E

BE

RM

UD

A1946

Africano»

Europeu*

148.923143.38522.693

9655601.0514.432

35.43713.31959562

5.670261.485

11.86253.26540.61645.04257.346

9.83911.0232.329

13.8092.074

1056957192535

15.283142635343

1.9067.923

14.724

Origem

nacional ou racial

Asiáticos

Am

eríndiose caribenhos

16.32214.1422640

11313242

136167.237

1.54429.1068017

165

202.277393.5282.6511.824

178

Mistos

33.82837.68518.360

227.1483.5181.5845.349

9175.091

79978.77535.52414.76926.32612.6313.214

22.638

Não

especificados

7449152

1.04027171969100l1241777164••*?18541

Total

192.800375.70159.220

1.237.0636.6706.138

41.75714.33346.2436.505

557.97047.62472.38770.11361.64768.84637.403

2.902.420

Fonte:D

igest of colonial statístics. N9 10, C

olonial Office, L

ondres, setembro-outubro, 1953, tabelas H

, M e N

. Cf. A

nthony H R

ichmond,

Op.cit.,p

.21S.

capitalismo. O

corre que a form

ação social escravista se funda emprincípios estruturais e organizatórios distintos dos que

fundamen-

tam" a form

ação social capitalista. Em

poucas palavras, na formação

social escravista o trabalhador é escravo, isto é, alienado no produtodo seu trabalho e na sua pessoa. É

propriedade do outro, do senhor,juridicam

ente e de fato. E está destinado a trabalhar de m

odo aproduzir principalm

ente mais-valia absoluta, que resulta da exten-

são da jornada de trabalho. S

ob a escravatura, o poder político

nesses casos a cultura da escravidão "dissolve-se."

na cultura do

asiáticos, m

odificado ás

suas estruturas

político-econômicas etc..

exjglicj£jisfOT

masjde_gensar

ç agir 90 negrp.no sécuío XX

. Apenas"

na4_locip.dades que'

pouco se

modificaram

, após

ã abolição ~âa

escravatura, somente nesses casos Jíjq

ue o peso da cultura escrava

pode continuar a ser. importante, ou m

esmo preponderar. N

os,outroscasos,

nos casos

em

que a

sociedade tem

-se urbanizado

rna,isam

plamente, ou industrializado, recebidairnigrantes europeus ou

gais, marcou

decisivamente

o perfil e o modo

de ser do negfo.

Marcou decisivam

ente õ perfil e o modo de ser do negro e do branco

nas Am

éricas e no Caribe. M

as também

é inegável que.a condiçãpdjL

-ejs-escrayo^não pode

ser nem

suficiente,

nem

decisiva para

condigãcTiaF

escravo, por cerca de três a quatro séculos, cohTõrrne~Opassa pela m

etamorfose do africano em

escrava. £ inepA

vel quê ?

joraãlisíás, professores, atores, poetas, romancistas, políticos, em

pre-sários.

Nesses term

os é que a.rnetamorfose do africano

em nçpro e m

ulatn

sociais. Em

alguns países os descendentes dos africanos tornarata-sem

emtrfòs das forças policiais, das forças arm

adas e outras categoriasrurais,

camponeses,

assalariados de

classe m

édia, funcionários.

dos aíricanos transformaram

-se1 em

operários industriais, operáriosca, social e cultural de negros e m

ulatos. As populações descendentes

por cento da população, ao lado de

brancos, italianos, alem

ães,poloneses, japoneses e outros; ao passo que

em outros estados os

negros e

mulatos

podem

chegar a

cerca de

70 por

cento da

população. Pode-se

supor que a complexidade

dos mapas raciais,

por país

e região, bem

como as densidades absolutas e relativas

diversas, afetam o perfil e as tendências das relações de alienação e

antagonismo entre negros, m

ulatos e brancos.É

evidente que as sociedades do Caribe, da G

uiana inglesa, daH

onduras inglesa, do Brasil, da G

uiana holandesa e alguns outrospaíses

estão fortem

ente m

arcadas pela

presença física,

social e

cultural de

negros e

mulatos.

Note-se

que em

vários

casos a

população mulata é bem

maior do que a população negra, com

o noB

rasil, V

enezuela e

Uruguai.

No

conjunto, as

sociedades ..dasA

méricas dependem

de modo significativo da C

Qptribuição econôm

i-

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exercido pela casta dos senhores não é contestado politicamente pelacasta dos escravos. Esta é principalmente uma categoria económica.Não são as revoltas de escravos (quilombos, cimarrons, marrons,maroons c outros) que destroem nem abalam as relações eestruturas escravistas. Em geral, a formação social escravista rompe--se a partir dos antagonismos que se desenvolvem na esfera da castados senhores, ou nas lutas entre a casta dos senhores e a emergenteclasse burguesa. Ao passo que na formação social capitalista otrabalhador (negro, mulato, índio, mestiço branco etc.) é alienadoapenas no produto do seu trabalho. Ao menos formalmente, ele nãoé alienado em sua pessoa. O trabalhador livre produz principalmen-te mais-valia relativa, que resulta da potenciação técnica eorganizatória da força de trabalho. Ele trabalha sob o regime docontrato, que pode discutir ou refazer. Nesse caso, o poder políticoda classe burguesa pode ser contestado pela classe operária, que éuma categoria económica e política. E é na classe operária que seencontra boa parte da população negra e mulata das Américas eCaribe.

Reprodução jsocial das raças

No século XX, o negjroj: o mulato são continuamente recriados ereproduzidos sociaTfnerUé^^eTãs^lmesrnãs'relações sociais que re-criam e reproduzem os membros das outras^ "raças", tais como osbrancos, índicos, mestiços"' japoneses, chineses, espanhóis, portu-gueses, judeus, italianos, alemães, ingleses, franceses, holandeses,norte-americanos e outros. Em cada uma das sociedades nacionaisque compõem a América Latina e o Caribe, algumas, ou às vezestodas essas categorias, sãq_socialmente recriadas e reproduzidaspelas relações sociais que orgajúzam_e^movimentam cada socieda-de^ Nas relações de trabalho7~políticas, religiosas, sexuais, lúdicas ecnítras uns e outros recriam-se e reproduzem-se socialmente. Daíporque o antropólogo, o sociólogo, o linguista ou outro cientistasocial encontra diferentes arranjos de elementos culturais "euro-peus", "africanos", "asiáticos" e "indígenas", na organização social,nas atividades económicas, religiosas e outras (9).

É c l a ro que a r e c r i a ç ã o c o n t í n u a das ca tegor ias

(9) MelvilleJ. Herskovitz, The New World negro, Minerva Press. 1969; do mesmoautor: The myíh of the negrc pás!. Beacon Press. Boston, 1958; Roger Bastide. LêsAmériques naires. Payot, Paris, 1967; Magnas Morner (Editor). Race and ciass inLaiirt America. Columbia Universíty Press, New York. 1970.

64

raciais implicam a recriação e reprodução inclusive das culturasafricana e escravocrata. Na plantação, fazenda, engenho, usina,fábrica, oficina; casa, escola, quartel, igreja, templo, terreiro oselementos culturais africanos e da escravatura aparecem de forma àsvezes nítida às vezes apagada. Em todos os casos, no entanto, esseselementos somente aparecem ou reaparecem porque são recriados e,reproduzidos socialmente por brancos, negros, mulatos, índios,mestiços e outras categorias raciais em suas atividades e relaçõespolítico-econômicas e culturais. Em geral, é a trama das relaçõessociais concretas, na produção material e espiritual (fazenda, fábrica,escola, igreja etc.) que comanda a invenção e a reinvenção, ou arecriação e reprodução de valores culturais, padrões de comporta-mento, ideias, categorias de pensamento, característicos raciais,traços fenotípicos, traços culturais que fazem com que o negro,mulato, branco, índio, mestiço e outros sejam tomados prática eideologicamente como distintas e desiguais categorias raciais.

Numa Visão de Conjunto, e tomando alguns r arartPn'QtW,c Ha

relaçaojentrg cultura africana, cultura escrava cultura negra eorganização socialj^j\mé£Ícj^Ljm^^

Em primeiro lugar, a sociedade neflra nunca é urrm sociedade desagregada.Mesmo onde a escravidão - e depois, as novas condições urbanas de vida - destruíramos modelos africanos, o negro reagiu, reestruturando sua comunidade. Ele não vivecomo homem de natureza, mas cria novas instituições, dá-se novas normas de vida.cna-se_uma organização própria, separada da Em particular, asexualidade do negro permanece sempre controlada pelas leis do grupo, submissa aostabus do incesto e às regras da troca de serviços entre os dois sexos. Só podemosadmirar esta plasticidade e a originalidade das soluções inventadas, mesmo se elasparecem chocar nosso próprio género de vida ocidental.

Em segundo lu^ar, fomos levados a distinguir, segundo as regiões, dois tipos decomunidades: aquelas onde os modelos africanos levam vantagem sobre a pressão domeio ambiente; por certo, esses mo delos_ são obrigados a modificar-se pam_pfliÍ£riciãdaptar-se, deixar-se aceitar; riósas chamaremos dç comunidades africanas. Aquelas,pelo contrário, nas quais a pressão do meio ambiente foi mais forte que osjresquícios3â memória coletiva, usada por séculos de servidão, mas nas quais tambénTrsegregação racial não permitiu a aceitação pelo descendente de escravo dos modelosculturais de seus antigos senhores; nesse caso.oneero teve que inventar novas formasdê vida em sociedade, em resppsta a seu isolamento^a serj regime de trabalho, a suasnecessidades novas; nos as chamaremos comunidades negras; negrasjporquepbranco permanece, fora dfflas. masjiao africanas, uma vez que essas comunidadesperderam a lembrança de suas antigas pátrias.

Esses dois tipos de comunidades nada mais são que imagens ideais. De fato,encontramos, na realidade, amcojijfOMíím- entre-esse_s...dois tipos. Assim, _ujn_setor dasociedade pode haver permanecido francamenle_a.fricano (ã religião) epqiianjn~vimQVJtfó 'ê~u"ma^ resposta ao novo meio vilaJ.ta.t'amiJ.ia..Qm— economia). Bem entendido,as"cofflufíicfãdes de negros marrão s são as~que mais se aproximam do primeiro tipo,

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pelo menos aquelas que foram criadas pelos negros "boçais"; e as comunidades quese formaram após a supresão do trabalho servil, então já entre crioulos que viviamisolados no campo, são as que mais se aproximam do segundo tipo. Nas cidadesnegras das Caraíbas ou da África do Sul, encontraremos um tipo intermediário, poisas "nações" podiam, na época escravista, reformar-se mais facilmente fora docontcole dos brancos, para assim manterem em segredo suas tradições: mas,alhures, esses negros deviam submeter-se às leis matrimoniais, económicas, políticasdo Estado, e deviam pois adaptar-se aos modelos que o exílio lhes impunha(lO)!

A recriação eji reprodução sociais do negro e mulato, entre outrascategorias raciais, não ocorre senão na trama das relações político-econômicas que fundamentam a recriação e a reprodução continua-das das relações e estruturas da sociedade. Nessa perspectiva, agrande complexidade das composições raciais que organizam emovimentam as relações entre negros, mulatos e brancos começa aesclarecer-se. À primeira vista, o mapa racial dos países da AméricaLatina e Caribe é bastante complexo, heterogéneo ou mesmocontraditório. Mas quando é visto no contexto das condiçõespolítico-econômicas nas quais se reproduzem relações e estruturassociais, esse mapa adquire alguns contornos e movimentos maisnítidos. Em artigo sobre as sociedades do Caribe, Sidney W. Mintzdescreve de maneira bastante clara alguns aspectos da relação entreraça e organização social. Inclusive ressalta a relação entre oprocesso de diferenciação estrutural e o processo de recriação,rearranjo e reprodução das relações e categorias raciais.

A composição "racial" do Caribe é bastante diversificada. Primeiro, a diversidadefenotípica das populações caribenhas é incomum, devido às circunstâncias daimigração e o longo período colonial dqs suas sociedades. Segundo, os códigos derelações sociais características dessas sociedades levam em conta a diversidadefenotípica, mas cada sociedade emprega o seu código de forma particular. Assim,enquanto "raça" é importante em tudo, a sua significação e os seus usosparticulares na classificação social variam de uma para outra sociedade do Canbe(11).

Mas os "mapas" dessas sociedades em termos de "raça", percepção de raça eetnicidade elide o que muitos teóricos consideram como a muito mais óbvia efundamental base de classificação: a estrutura de classes. As sociedades do Caribesão, naturalmente, entidades estratificadas e diferenciadas em classes. Cor eetnicidade não são nitidamente correlatas à condição de classe, mesmo que tivessesido geralmente verdadeiro - e em boa medida ainda é •• que branqueamento oubrancura e status superior tendem a acompanhar um ao outro, da mesma maneira

(10) Roger Bastide, As Américas negras, citado, p. 44-45 .(11) Sidney W. Mintz, "The Caribbean region", Daedalus, Harvard University,

Cambridge, Mass., Spring 1974, p. 45-71; citação da p. 52.

66

que negritude e status inferior. Além do mais, a introdução de grandes contingentespopulacionais que não são localizáveis em uma única escala de negritude a brancura,tais como os indígenas em Trindade e os chineses em Cuba, tornou muito maiscomplicada qualquer análise das relações entre status económico, tipo físico eidentidade étnica.

Enquanto muitos aspectos do sistema tradicional de estratificação da região sãoainda vigentes, as mudanças na estrutura de classes têm ocorrido em distintasdireções, tais como o declínio da classe dos fazendeiros locais, a emergência dafazenda empresarial, de organização estrangeira, o crescimento do terciário, do setorde prestação de serviços, o desenvolvimento do consumo orientado para o exterior, aemigração de grandes grupos populacionais etc. Essas mudanças afetaram adistribuição de pessoas com identidades físicas e étnicas particulares em sistemassociais locais; e o vínculo entre essas identidades e a condição de membro de classetambém se tornou mais nuançado. As mudanças havidas nos arranjos políticostambém alteraram a configuração tradicional. Registremos apenas dois casosdiferentes: nas décadas recentes, tanto em Cuba como no Haiti as mudanças políticasforam marcadas por um nítido movimento de ascenso de algumas pessoas nãobrancas, em termos de posição ou oportunidades de vida. Muitos negariamfenómenos paralelos em outras partes da região. Dessa fnrma^ a complexidade,sociológica dessas sociedades parece ter aumentado significativamente^ de acordocom processosjiolíticos, econômicos e demográficos qu.e se estendem no tempo( 12).

1 O mesmo processo básico de diferenciação da estrutura social temocorrido também nas sociedades da América Latina, além doCaribe. No século XX, a divisão social do trabalho e a expansão dasforças produtivas, em certos casos implicaram a imigração mais oumenos maciça de europeus e asiáticos em países da área. É óbvio queessa imigração modificou os característicos da população branca deorigem espanhola, portuguesa, inglesa, francesa e outras. Issosignifica que essa imigração modificou o conjunto do contextodemográfico, racial, social e cultural no qual se movimentouo negroe o mulato.

Contemporaneamente ocorrem novas expansões dá-urbanização edas forças produtivas no setor industrial. Ao lado das atividadesagropecuárias, de mineração ou outras, dinami/a -se o setor deserviços, transportes e comércio. Em alguns casos, a industrializaçãoé um processo básico, que passa a influir decisivamente, ou mesmocomandar as relações sociais(13). A urbanização e a industrializaçãoocorrem simultaneamente com a migração do meio rural e depequenas cidades para os núcleos urbanos maiores. Algumas

(12) Sidney W. Mintz, "The Caribbean region", citado, p. 53.(13) Philip M. Hauser (Editor), Vrbanization in Latin America, Unesco, Paris, 1961;

Boletín Económico de América Latina, vol. VI, nç 2, Santiago de Chile, 1961, p. 13-53.

67

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vezes, os maiores centros urbanos são também centros industriaisimportantes! Numa perspectiva histórico-estrutural, a divisão socialdo trabalho, a expansão das forças produtivas, a urbanização, aindustrialização e o crescimento do setor de comércio, transportes eserviços modificam de forma mais ou menos profunda a estrutura

• das relações sociais e, também, das relações de raças .A culturaafricana e a cultura da escravidão "perdem-se" na cuITufa dbcajMtalismo. Isto ê, na sociedade organizada em termos do trabalhoassalariado, das exigênciasda produção do lucro e da supremaciado capital monõgolista, òTvalores e pTcIroes culturais "herdados''

,da~ATncã~ê~da escravatura perdem os seus significados originais e1iníãW~õWrm7CT^úTprêaõrnina, à medida que avança oséculoX, é a organização capitalista das relações de produção. Pouco a

pouco, todas as esferas da vida social são determinadas ourecriadas e reproduzidas segundo as exigências das relaçõespolítico-econômicas do capitalismo. Nesse contexto, o que parecerser. sobrevivência de traço cultural africano ou escravista só temsentido enquanto elemento cultural inserido nas relações capitalis-tas presentes. O que parece ser anterior só tem aparência deanterior. Da mesma forma que as relações sociais, ou as estruturaspolítico-econômicas, também os elementos culturais são recriados ereproduzidos segundo as condições e exigências das forças quedominam a sociedade. Nesses termos é que a análise de Bastideadquire significação nova.

A segregação não é desejada pelos governos: pelo contrário, esses fazem amiúdegrandes esforços com vistas a acelerar a integração nacional mas, nas regiões degrande povoamento de cor, os negros, porque se sentem "diferentes", preferem viverà parte e fora do controle dos brancos. Uma instituição, de origem católica, queregula as relações inter-raciais de maneira a evitar todo cho.que traumatizante entre osindivíduos, é o "apadrinhamento"; o negro(da classe baixa escome,,para seus filhos,padrinhos ou madrinhas pertencentes à classe dos brancos, mais elevadas, e como oparentesco espiritual é considerado ainda mais importante do que o parentescocarnal, os brancos e os negros têm entre si relações afetivas e se ajudam mutuamente;mas por outroUado, como o apadrinhamento se faz segundo a linha hierárquica, estaafetividade não impede a subordinação de uma cor à outra, o que faz com que onegro não espere do branco senão favores, não lhe copie os modelos de vida; nãotenta integrar-se no seu grupo, preferindo ficar "entre os seus", onde não sofrerá, naverdade, qualquer frustração, já que evita a luta. A festa, por outro lado, misturabem, numa mesma alegria, as etnias e as cores, mas cada uma fica separada; nasprocissões religiosas, as confrarias dos negros vêm na frente e a confraria dos brancosvêm em seguida, com as autoridades municipais; os brancos dançam nos salões, osnegros na rua; as cores se acotovelam mais do que se fundem verdadeiramente.Assim, se o grupo negro tem, em toda a América Latina, ao contrário da Américaanglo-saxônia, relações amigáveis com os outros grupos raciais, permanece separado

_na vida privada, familiar e cotidiana.( 14).

(14) Roger Bastide,^s Améhcas negras, citado, p. 182-183.

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Ocorre que__na formação sociaj_£a£italista a^organização socialflistrinill f» rí»r>l et ctí̂ FIr>õ r̂̂ íilí̂ r̂̂ T."^^« <• .̂ „7;~tl~™"TTTr í̂ 1̂ —^^^___,

^ k jexo, iclade^jiível Q ducacipnalLjeligião, etnia, raça eclasse social, além~3eoutros'aTributos fundamentais ou secundários?Por isso é que no século XX as pessoas 'são também classificadascornoJuanc^negro^ mulato^ índio, _mestiço, italiano, alemão,japonês e assjm por diante. Na>ep7oduçãõ^sõcíaRãviaã7iíaTábncã7fazenda, escola, igreja, ' qua r t e l e outras esferas da sociedade,'reproduz-se tanto o que é material como o que é espiritual. Aorecriar e reproduzir as relações sociais, a sociedade reproduzcontinuadamente tanto o negro e o branco - ou outras raças - comoas imagens e os atributos que cada um e todos possuem de simesmos e uns com relação aos outros.

^Consciência de alienação

Entre os nepros e mulatos da América Latina e do Caribe, 'aconsciência de alienação tem se revelado mais frequentemente nõs~valores e prátjcas relij>rosris__As religiões negras parecem ser, tantona época da escravatura como nas sociedades de classes, no séculoXX, a esfera sócio-cultural naTcjual e mais evidente a compreensão",ingénua ou críticarTIãs^ongicoês alienadas de vida de negros emulatos. ' "~~^""" ' - -- • —

Nessa perspectiva de análise, as duas formas da religião negraapresentadas por Roger Bastide podem ser vistas como duas formasde organização da consciência negra. Lembremos como Bastidedefine as religiões que se acham estabilizadas^ ou "em conserva" e asreligiões "vivas". É claro que as duas são formas religiosas vividaspor negros e mulatos (e também várias categorias de brancos). Masuma seria relativamente estável; ao passo que a outra se modifica.Bastide põe as religiões afro-brasileiras entre as primeiras e o voduhaitiano entre as segundas.

Religiões em conserva: Queremos exprimir o caráter ferozmente conservador dadogmática como da prática africana na América. Contra o esvaziamento incessantede que é objeto, da parte da sociedade circundante, a cultura negra resiste,imobilizando-se, de medo de que, se viesse a mudar um pouco, isto seria para ela ofim. Existe aí um fenómeno, se assim posso dizer, de mineralização cultural, ou, sepreferimos uma comparação com o que se dá com o indivíduo quando sente suaintegridade ameaçada pelo meio exterior, um mecanismo de defesa(15). A religião évivida - mas ela não é viva, no sentido de que não evolui, de que não se transformacom o correr do tempo, de que permanece estática no cumprimento do que foiensinado pelos antepassados; mesmo na Bahia, onde os bantos, como já dissemos, se

(15) Roger Bastide, As Américas negras, citado, p. 120.

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deixam contaminar por \outras religiões populares, como o Calimhó dos índios ou oespiritismo dos brancos, os verdadeiros candomblés formaram uma Federação(apesar das rivalidades que existem entre as seitas) para controlar a fidelidade àsnormas do passado(l6). O Brasil nunca esteve totalmente cortado da África e, mesmodepois de uma pausa relativa, as Comunicações recomeçam atualmente, o que fazcom que as seitas afro-brasileiras permaneçam em contato com as religiões mães(17).

Religiões vivas: O mesmo não se dá com relação a outras religiões afro--americanas,e'm,particular|com o Vodu do Haiti. Primeiro, porque a independênciada ilha remonta ao começo do século XIX e levou à ruptura com a África, enquantopara o Brasil a ligação continuava. Em segundo lugar, porque esta independênciaconduziu à eliminação da população branca. Os negros não tinham mais que lutarcontra a vontade assimilatória desta última, nem que erigir institucionalmente;seuprotesto duplo, como nas outras Antilhas ou no continente, de um lado contra ospreconceitos raciais, e de outro contra a imposição de valores acidentais(lS). Oresultado foi a falta de centralização para uma religião que, uma vez cortada asamarras da África, rompeu-se em múltiplas seitas í, a partir de um ponfp inicialcomum, evoluíam cada uma à sua maneira(19). Na verdade, existem tantos Vodusquanto são as regiões da ilha e, para uma mesma região, vari. coes sensíveis de umlugar de culto a outro(20). Enfim: tendo-se tornado o Vodu, como dissemos, emvistas da falta de luta contra a cultura europeia, a expressão de organização, dosbens e das aspirações da sociedade camponesa nacional, mudará por conseguinte, àmedida em que se modificarem as estruturas agrárias(21).

As religiões que se estabilizaram, ou se acham "conservadas" e asreligiões "vivas", portanto";' pôdêrrTsêr tomadas como duas modali-dades distintas de organização da consciência social das populaçõesnegras e. jaulatas. -Ocorre q ue na religiâo.ãTcíónsciêiiciacríticasempréaparece de^Jorma_^inocente", estilizada, sublimada, invertfdã. Nareligião negra, o negro também se jefugia, preserva, organiza, emface do branco, da religião do branco, do poder estatal ou outrasexpressões das relações de alienação que fundamentam asrelaçõessociais. No Brasil, os centros e terreiros afro-brasileiros são obrigadosa registrar-se na polícia, o que não ocorre com outras igrejas e seitas.

A maioria dos pesquisadores reconhece que nas religiões negrasda América Latina e Caribe ̂ stão presentes traços culturais africa-noS-,_AQ lado da música, do folclore e da magia, a religião é umaesjera da vida social na qual parecem estar retidos muitos traçosculturais de origem africana. Mesmo quando a reiigiáo negra, em

fartem e ntê~*impregnada de elementos provenientesdo espintisjnOjjDU do catolicisnip, mesmo nesse caso os pesquisado-

(16) Roger Bastfde, Op. cit., p, 121.(17) Roger Bastide, Op. cit., p. 121.(18) Roger Bastide, As Américas negras, citado, p. 122.(19) Roger Bastide, Op. dl., p. 123.(20) Roger Basti de, Op. cit., p. 123.(21) Reger Baslide, Op. cit., p. 123.-124

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rés tendem a _ ^religmò dFBãsejfjricâna- Alguns autores sugerem que o empréstimodeeTémèhtos culturais nãoafricanos-catolicismo.espiritismo.religtóoindígena - não altera o espiVifn afhVanr. Ha r^lipiãn ngffrfl Mp«nn

fni bastante profunda edemorada, ainda nesse caso q religião (a.ojado do folclore, música,magia) é considerada uma ^g^j^^jaTlia q"«* "prevalecem ou^persistem elementos culturais africanosjssa é a interpretação queHerskovits ora explicita ora sugere.

A música, o folclore, a magia e a religião, em conjunto, retiveram os seuscaracterísticos africanos mais do que a vida económica, a tecnologia ou a arte; aopasso que a língua e as estruturas sociais baseadas no parentesco e na associaçãolivre tendem avariarão longo de todas as gradações observadas.

Estas diferenças são provavelmente devidas às circunstâncias da vida escrava econfirmam as observações de senso comum feitas durante a vigência da escravatura.Os senhores de escravos estavam basicamente interessados nos aspectos tecnológicose económicos da vida dos escravos, pois que as condições de vida destes, comoescravos, pervertia qualquer padrão de estrutura social que os negros quisessempreservar. Ao mesmo tempo, fossem quais fossem as estórias contadas ou cançõescantadas, isso fazia pouca diferença para os senhores, e poucos eram os obstáculosopostos ao seu modo de retenção. No caso da religião, os controles externos eram devários tipos e eram respondidos em diferentes formas, conforme se reflete na posiçãointermédia deste elemento cultural. A magia, que tende a tornar-se clandestina sobpressão e pode mais facilmente ser praticada sem direção (neste caso é de particularsignificação a força específica das compulsões psicológicas) persistiu numa formareconhecível em toda a parte, particularmente porque a similaridade entre a magiaafricana e a europeia é tão grande que uma reforça a outra. A incapacidade da arteafricana para sobreviver, exceto na Guiana e, em menor grau, no Brasil, écompreensível, desde que lembremos que a vida do escravo permitia pouco lazer eoferecia escasso estímulo para a produção artística, seja no estilo aborígene africano,seja em outro (22).

Diante dessa problemática/Bastide sugere que as religiões negrasnão são africanas, mas principalmente sincréticas~Para ele o tráficod& africanos e a escravização destes destruíram amplameri!ê~a~cultura afrícaqa. ' ~———

Aqui é fácil discernir tendências gerais, ou mesmo leis, que se verificam em todosos países da América Latina, das Antilhas (com exceção, naturalmente, das Antilhasinglesas, protestantes) até á Argentina:

lç) Etnicamente, o sincretismo é tanto mais pronunciado se passamos dosdaomeanos (Casa das Minas) aos yoruba e. destes últimos, aos bantos. os maispermeáveis de todos às influências exteriores:

(22) Melville J. Herskovits, The New World negro, citado, p. 55.

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2°) Ecologicamente, o sincretismo é tanto mais pronunciado se passamos daszonas rurais, onde a mestiçagem cultural é intensa, às cidades, onde os escravos, osnegros "livres" e seus descendentes puderam agrupar-se em corporações e "nações";

3°) Institucionalmente, o sincretismo é tanto mais acentuado, se passamos dasreligiões "em conserva" às religiões vivas, já que a vida de um organismo, tanto socialcomo biológica, consiste em assimilar o que vem de fora;

4Ç) Sociologicamente, e seguindo o que G. Gurvitch chamou de "a sociologia emprofundidade", as formas de sincretismo variam de natureza quando passamos donível morfológico (sincretismo em mosaico) ao nível institucional (com, entre outros,o sistema das correspondências, deuses africanos-santos católicos) e do nívelinstitucional ao nível dos fatos de consciência coletiva (fenómenos de.reinterpretaçào);

5Ç) Enfim, é preciso considerar a natureza dos fatos estudados. A regra para areligião continua sendo o estabelecimentodecorrespondências,e a regra para a magiaa da acumulação(23).

O sincretismo por correspondência Deuses-Santos é o processo mais fundamental,além de ser o mais estudado. Pode ser explicado historicamente, pela necessidade quetinham os escravos, na época colonial, de dissumilar aos olhos dos brancos suascerimónias pagãs; dançavam então diante de um altar católico, o que fazia com queseus senhores, mesmo achando as coisas esquisitas, não imaginassem que as dançasdos negros se dirigiam, muito além das litografias ou das estátuas dos santos, às-divindades africanas. Ainda hoje, os sacerdotes ou sacerdotisas do Brasil reconhecemque o sincretismo não é mais do que uma máscara dos brancos posta nos deusesnegros(24). ^,

Ao longo dos séculos de escravidão, as relações de dominaçãopolítica e apropriação económica permitiram à casta dos senhoresdestruir e recriar, ou reestruturar, os elementos culturais da casta dos

Ç escravos. Note-se que a escravatura fni a forma assumida pela- \ culturação dos africanos; e que essa aculturação foi forçada,

. subalterna e organizada segundo os interesses e o predomínio da\casta dos brancos. ASSim. também para hastirip n i e era_a'frjr.gmn SP_transforrna em negro, pela intermediacão da' escravatura. Nesseprocesso, a religião negra é formada como uma totalidade sincréticamais ou menos autónoma. Nessa perspectiva de interpretação é queBastide busca as mesclas e as correspondências entre divindadesnegras e brancas, ou católicas e afro-americanas. É o que ele registranos dados da tabela V.

Já está sugerido que a religião negra é uma religião de vencidos;de vencidos que guardam na prática religiosa um dado fundamentalda resistência ao domínio do vencedor. Religião de vencidos,subcultura ou contracultura, estas são hipóteses ou interpretaçõesque surgem em algumas análises. Por sob os africanismos, ou sob as

(23) Roger Baslide, As Américas negras, citado, p. 142-143.(24) Roger Bastide, Op. cit.. p. 144.

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mesclas e correspondências do sincretismo religioso, haveria umasubcultura ou contracultura, de uma categoria social subordinada,subalterna.

Tem-se frequentemente observado que, quando um povo invasor impunha a suareligião ao povo vencido, produzia-se um desnivelamento dos valores, consecutivo àpassagem da sociedade mais ou menos igualitária para a sociedade mais ou menosestratificada. A religião do vencedor se tornava a única religião pública válida para amassa total da população, enquanto a religião vencida (e aqui tornamos a encontraras alternativas do comportamento coletivo) se degrada em magia ou se metamorfo-seia em religião de mistérios, fundada na iniciação e no segredo. Ambos osfenómenos são encontrados no Brasil, bem como no resto das duas Américas negras.O candomblé se refugia no segredo, celebra-se nos bairros das cidades, em casasisoladas ou em esconderijos das florestas tropicais; tende a se tornar um culto t demistério; nele não se entra obrigatoriamente por pertencer-se a uma linhagem, maspor uma iniciação voluntária. Mas esse segredo inquieta o branco: ele sente que, norecinto das seitas fechadas, manipulam-se forças temíveis, e como nem sempre eletem a consciência tranquila em suas relações com o negro, receia que tais forçassejam manipuladas contra ele. Receio absolutamente sem fundamento. Com efeito,os escravos se servirem de Exu, de Ogum ou das ervas de Ocem para lutar contra aopressão económica e racial da classe dominante(25).

Essa interpretação é bastante atraente. Ela apresenta elementosconvincentes. Mostra que o negro da ^m/r'''a T at'"a_**^rvníy nnséculo XX. retém ou recria elementos culturais de origem africanapara defender-se ou opor-se ao domínio exercido pelo branco. Nessesentidõ~ a ^religião negra, sincrética ou não, é uma espécie decatacumba espiritual, na qual o negro evade-se, esconde-se, resisteou articula alguma luta contra a supremacia do branco.

Mas ainterpretaçâo da religiãQ negra, corno urna forma de contra-, cultura não esclarece duas questões básicas. Em primeiro lugar, elaimplica a oposição negro-branco, apenas ou fundamentalmenteenquanto raças. Sim, não há dúvida que as relações de interdepen-dência e alienação de branco e negro geram um antagonismoinsuportável para o negro. À ideologia da supremacia do branco(nos países em que o branco domina as estruturas político--econômicas de poder) o negro tende a opor uma contra-ideologia.Na visão do mundo do negro, enquanto categoria racial criada nasrelações sociais de produção em que se acha também o branco, éclaro que a religião pode ganhar o caráter de uma contracultura, ouinscrever-se nos quadros de uma contra-ideologia. Para isso, e em

(25) Roger Bastide, As religiões africanas no Brasil, 2 vols., tradução de MariaEloisa Captellato, e Olívia Krahenbuhl, Livraria Pioneira Editora, São Paulo, 1971,segundb volume, p. 544.

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segundo lugar, seria necessário que o conteúdo da religião negrafosse expressivo das relações de interdependência e alienação quemarcam o relacionamento do branco com o negro. Mas não estáainda demonstrado que o conteúdo da religião negra correspondeefetivamente a uma contracultura ou contra-ideologia.

Enquanto não se esclarecem essas duas questões, resta pordemonstrar-se o caráter da religião negra. Note-se que não nego quea religião negra, no Caribe e na América Latina, possua um carátercritico ou venha a desenvolver esse caráter. Pode-se mesmo dizer queexiste um > componente crítico na religião negra. O candomblébrasileiro, ío vodu haitiano e a santeria cubana contêm elementossociais que expressam visões do mundo que não são compartilhadaspelo branco; ou somente são compartilhadas por brancos que aderemà negritude. E são muitos os indícios de que os africanismos esincretismos 'escondem alguma resistência à visão do mundo expressana ideologia racial do branco, ou em segmentos da sua .culturadominante.

Mas sugiro que os africanismos persistentes na religião negra, ouas formas sincréticas assumidas por ela, não lhe conferem, sem mais,o caráter de uma frente de resistência em defesa do negro, e emoposição ao branco. É claro_gue_as._relações de interdependência » .

^aliejiaçãa vigentes nas relações entre o negro e o brancojjeram. antagOQÍsrnQS.0quenãoéclaroé que esses antagonismos expressam eesgotam a condição do negro, em face do branco. O negro de quefalo, na América Latina e no Caribe, é também operário industrial,operário agrícola, empregado, funcionário, soldado, estudante, co-merciante, intelectual, pequeno-burguês etc. Inclusive o branco.Uma questão central, portanto, é esclarecer como^raça e classe sesubsumem reciprocamente; ou como e quando a política dosantagonismos de raça implica a política dos antagonismos de classe,ou se desdcbra nela.

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Consciência política

A metajnjjrji^e_doescravo em negro e mulato é também ametamorfose desama forrnlTde alienação a outra. Na escravatura, oescravo é alienado no produto do seu trabalho e em sua pessoa. E énessa condição que ele reelabora ou recria elementos da culturaafricana, em combinação com a cultura da sua própria condiçãoescrava. Nesse contexto^ ai^religião, maj,ia, música,jrolcloree^ línguatornam-se a expressão de um empenho em garantir um^universosócio-cultural restrito, no qual o escravo se refugia, expressa., jjirma

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Ê resiste à cultura da escravidão, A casta dos senhores concede_esserefúgicu Inclusive toma esse universo sócio-cultural como prova deque. .a casta dos escravos é de fato outra raça. A despeito dissojisrelações, os valores e as estralaras articulados em torno da religião,magia, música, folclore e língua acabam por tornar-se o universoSócio-cultural em que o escravo se refugia e guarda a sua rebeldia, oseu protesto, a sua negação da condição escrava. Aqui, o negro e omulato estão subsumidos na condição escrava, da casta escrava. Aopasso que na sociedade de .«classes o negro.._é_um. trabalhador livre.Apesar das condições adversas nas quais ele circula no mercado deforça de trabalho (quando é obrigado a competir com o branco^índio, mestiço ou outra categoria racial) na sociedade de classes onegro pode negociar a sua força de trabalho. Como pessoa, éformalmente livre,_É um cidadão, ainda que de segunda classe, ousubalterno. Mas_.é_alienado no produto do seu trabalho (quandoassalariado) e na sua condição de cidadão: é negro ou mulato,ademais de assalariado. Além de operário industrial ou agrícola,funcionário ou empregado, ele é negro ou mulato. Nessa condição,novamente recria e reelabora os elementos culturais da sua condiçãosocial e racial. Como negro, ou mulato, e assalariado, ele recria ereelabora os elementos culturais da sua condição de classe e do seupassado escravo. A experiência coletiva e histórica de escravo, pordois, três ou quatro séculos, é recriada e reelaborada juntamentecom a experiência presente de negro ou mulato membro da classeoperária (urbana e rural), da classe média, pequena-burguesia ououtra categoria social.

Na sociedade de classes^ no século XX, portanto, as formas, deconsciência de alienação po^ènTse7Tira"rsTÍiferencTádas. É verdadeque a religião, a magia, a música, o folclore, a língua continuam a seresferas de um universo sócio-cultural importante. Mas as significa-ções sócio-culturais e políticas desse universo são dadas pelasrelações de interdependência, alienação e antagonismo das classessociais. A condição de raça e classe subsumem-se reciprocamente.

Os conteúdos políticos da condição social (político-econômica) donegro, entretanto, não se desenvolvem a não ser de forma irregular,contraditória mesmo. A condição duplamente subalterna da maioriada população negra e mulata, em quase todos os países da AméricaLatina e Caribe, dificulta bastante a transição de uma consciência"ingénua" (ou mesmo alienada) da alienação, para uma consciênciaadequada, politicamente organizada, crítica. O negro e o mulatocom frequência são-jduplamente alienados, porque são alienadoscomo membros de uma raça diTerènfeTinferior, em face do branco ecomo membros de uma classe social também subordinada a outra,na" q uaTãTriãíõna. p ode ser branca. Há casos em que a situação se

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complica, pois que a maioria negra é subordinada a grupos brancose mulatos.

Nessas condições, da mesma forma que entre outras raças e classessubalternas, entre os negros e mulatos ^consciênciade alienaçãonão se apresenta imediatamente como uma consciência política. Emtóda^ategõria social subalterna, a consciência política da situaçãotende a aparecer mesclada com elementos religiosos, morais, lúdicosé~óútrosL Os próprios valores políticos das raças ou classes dominan-tes invadem e permeiam a consciência dos subalternos, mesclandoou confundindo a sua compreensão das próprias condições de vida.

A dupla alienação em que se acha o negro, em quase todos ospaíses da América Latina e Caribe, tem dado origem a váriasmodalidades de reações. Além da religião e arte em geral, tambémnas organizações políticas (associações, sindicatos, partidos) o negroestá organizando a sua consciência e prática política. No Brasil, porexemplo, ele organizou na década dos anos trinta a Frente NegraBrasileira, que foi extinta pela ditadura instaurada em 1937, porGetulio Vargas. Entre a abolição da escravatura e a criação de ummovimento mais explicitamente político, surgem várias manifestaçõesbastante significativas.

A formação de clubes e associações no "meio negro" data de 1915, tendo-seintensificado por volta do período de 1918-1924. As organizações aparecidas nãovisavam, porém, à "arregimentação da raça", propondo-se somente fins "culturais ebeneficientes". A evolução naquele sentido se operou naturalmente, depois de 1927,em algumas dessas associações, sob a pressão da própria situação económica e socialdo negro em São Paulo. Tomemos por exemplo o Centro Cívico Palmares: "Afinalidade nitidamente cultural com que surgiu - organização de uma biblioteca - foisuperada por força das condições em que vivíamos, passando essa sociedade a terpapel na defesa dos negros e dos seus direitos". Outras organizações^, nascidas noambiente criado pela incipiente afirmação coletiva do elemento negro, aparecem compropósitos mais definidos e combativos. A Frente Negra Brasileira, por exemplo, quese constituiu em 1931, propunha-se a "congregar, educar e orientar" os negros doEstado de São Paulo(26).

Evolução paralela se verificou com a imprensa negra da cidade. Os primeirosjornais negros, publicados entre 1915 e 1922, assumem uma orientação literária. Mas,logo, se tornam "um órgão de educação" e um "órgão de protesto", por causa dosproblemas sociais que afligiam as pessoas de cor, que formavam o seu público (27).

(26) Florestan Fernandes, "A luta contra o preconceito de cor", em Roger Bastidee Florestan Fernandes, Brancos e negros em São Paulo, 29 edição, Companhia EditoraNacional, São Paulo, 1959, p. 269-318; citação das p. 281-282.

(27) Florestan Fernandes, "A luta contra o preconceito de cor", citado, p. 283.Consultar também, do mesmo autor: A integração do negro na sociedade de classes, 2vols., Dominus Editora. São Paulo, 1965.

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Ao mesmo tempo, o negro brasileiro realiza congressos, debates ediscussões, para retomar, desenvolver ou aprofundar a análise dosseus problemas, em face do branco e de si mesmo. Também organizamovimentos artísticos, como teatro, dança e outros, para recriar edesenvolver a sua criatividade e marcar a individualidade e origina-lidade da sua maneira de viver, sentir, pensar, fazer. Em anosrecentes, entre 1945 e 1975, o negro brasileiro tem votado naseleições políticas em candidatos negros. Não possuem um partido, oque é proibido pela constituição adotada pelo governo em 1969. Masos grupos negros, em vários dos estados em que se organizaadministrativamente o país, têm eleito vereadores, deputados esta-duais e deputados federais. Há uma evidente politização dos gruposnegros, tanto os proletários como os que ingressaram ou começama ingressar nas classes médias. -No conjunto, e em perspectivahistórica, o negro brasileiro evolui de uma situação de ànomia,

.havida logo após a abolição da escravatura, para uma situação declasse. Depois da abolição, ocorrida em 1888, em várias partes do paíso negro tornou-se um desempregado, e mesmo lumpenizou-se devidoàs condições adversas que precisou enfrentar, na competição coni obranco, o imigrante, o italiano, o alemão e outras categorias doambiente racial brasileiro. Nessa época ele é talvez o principalelemento do exército de trabalhadores de reserva. Depois, poucoa pouco,, vai sendo absorvido nas ocupações assalariadas que semultiplicam e diferenciam, com a urbanização e a industrialização.Assmf,™põ~uco~a ^xnico, ele se transforma em negro operário, naindústria ou na agricultura. Note-se, negro e operário, o que tem sido adupla condição de vida da maioria dentre os negros e mulatos.

É óbvio que as mudanças das condições de consciência social nãosão homogéneas nem semelhantes nos vários países da AméricaLatina e do Caribe. Em cada um, a formação social capitalistaassume uma feição singular. Além disso, são diversas as estruturassociais em cada sociedade; distinguem-se os graus de urbanização,industrialização, desenvolvimento agrário, as composições demográ-ficas (negros, mulatos, brancos, índios, mestiços, imigrantes, descen-dentes de europeus, asiáticos etc.) e as distribuições das raças pelasclasses sociais. No conjunto, no entanto, parece evidente a progressi-va transição de uma consciência religiosa da condição do negro parauma consciência política. Note-se que a transição da consciênciareligiosa para a consciência política não significa, em nenhumahipótese, a substituição de uma por outra. Elas não são nemexclusivas nem únicas. Há, por exemplo, manifestações artísticas quepodem expressar outra ou outras modalidades de consciência dacondição alienada em que se sente o negro. A poesia, o teatro, a

,—a pintura, o cinema podem tanto exprimir formas de

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consciência religiosa e política como outras maneiras de compreen-der, aceitar ou rejeitar a condição de raça subalterna na qual o negrooi posto pelo branco (2 8)._São várias as modalidad£s.dÊ.cojisciên£Ía

que o negro tem sido levado a formular e desenvolver. Comotendência, há uma consciência política que se sobrepõe, ou começa a 'sobrepor-se, às outras.

Esse processo de politização da raça negra caminha de formavariável, conforme o país da América Latina e Caribe. No México,Colômbia, Venezuela, Peru e alguns outros países da AméricaLatina, os grupos negros estão obrigados a subordinarem a suaatividade religiosa, artística e política às estruturas criadas edominadas por brancos; ou brancos, índios e mestiços. _Mo_Brasiltambémjjcorre a mesma subordinação, mas com algumas peculiari-dades. Em algumas áreas do país, como por exemplo nas cidades deSalvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, as atividadesreligiosas, artísticas e políticas parecem desenvolver-se cada vezmais. E há mesmo indícios de que o negro e o mulato se vêem deforma cada vez mais nítida, como categorias sociais e políticaspotenciais. A alienação racial produz desenvolvimentos políticos, adespeito do vigoroso predomínio do mito da democracia racial, queconfunde brancos, negros e mulatos. É claro que a situação é diversaem algumas sociedades do Caribe, nas quais a população negra emulata é maioria ou está no governo. Nesses casos, os movimentospolíticos de negros e mulatos adquirem alguma, ou ampla, autono-mia, em face da religião e outras formas de organização daconsciência social. Além disso, rechaçam as propostas políticas dosbrancos, ou sobrepõem-se a elas. Mas assumem o poder político semalterar a estruturação de classes em que se dividem negros emulatos. Nesses casos, são os negros e mulatos que se defrontamdireta e explicitamente com a dupla alienajção em que foramproduzidos historicamente: eles próprios acham-se estruturados emclasses sociais hierarquizadas, sem haver superado as subdivisõesraciais, em negros e mulatos - ou negros e mulatos pobres e negros emulatos ricos - produzidas nas suas relações passadas e recentes comos brancos, colonizadores ou não. Nesse caso, a condição racial podesubsumir-se à condição de classe, de forma paulatina ou rápida,conforme o contexto das relações de interdependência, alienação eantagonismo geradas com a reprodução das estruturas político-econômicas.

Ocorre que o negro reajejanto às condições reais de vida em quese acha como à ideologia racial do branco. Enquanto operário negro^

(28) Jean Franco, fhe modern culture of Latin America, Penguin Books, 1970, esp.p. 131-140; César Fcrnandez Moreno (coordenador), América Latina en su literatura,Siglo Veintiuno Editores, México, 1972, esp, p. 62-69.

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por exemplo, .ele.Jnão desfruta dos mesmos direitos do operáriobranco que se acha em idêntica situação. .Para ser igual a umoperário branco, o operário negro precisa ser melhor do que ooperário branco. Na estrutura ocupacional e na escala de salários, onegro está em piores condições. Além disso, ele .sofre o preconceito, a

^discriminação ou também a segregação. Isto é, o negro se vê emcondição subalterna, tanto prática como*ideologicamente. A ideolo-gia racial do branco o rejeita ou confunde; mas não o consideraigual. O paternalismo, a ambiguidade, o mito da democracia racial eoutras expressões da dominação exercida pelo branco confundem ouirritam- o negro. É diante dessa situação, prática e ideológica, que onegro toma consciência da_sua dupla^alieriãçaõ: como_ra£tfecomomembro de ceasse. Nesse sentido, para reduzir ou eliminar ascondiçõeTda sua alienação, da sua condição duplamente subalterna,o negro é-levâdo a elaborar uma consciência política dúplice; élevado a pôr-se diante de si mesmo e do branco como membro deoutra raça e membro de outra classe. Enquanto membro de raça,está só, e precisa lutar a partir dessa condição. Enquanto membro declasse, está mesclado com membros de outras raças, e precisa lutar apartir dessa condição. Nesse contexto, raça e classe subsumem-serecíproca e continuamente, tornando mais complexa a consciência ea prática políticas do negro.

SEGUNDA PARTE

K O

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No mercado capitalista de força de trabalho, a demanda é sempreseletiva, ou estratificada, segundo critérios económicos, políticos esócio-culturais. Na indústria, por exemplo, a demanda se organizaem função da qualificação profissional, nível de instrução, idade,sexo, etnia, raça, religião, e outros atributos. Quanto mais graus deliberdade tiver, em função do excesso da oferta de trabalhadores,relativamente à demanda, esta tende a tornar-se mais seletiva,económica, política e socialmente. Isto é, quando as condições sãofavoráveis para a demanda de força de trabalho, o trabalhador podeser selecionado em função da sua qualificação profissional, nível deinstrução, idade, sexo, etnia, raça, religião, filiação sindical, filiação apartido político, capacidade de articulação política de suas ideias eoutros característicos. O resultado óbvio é a sofisticação da escala dediscriminação. Ao mesmo tempo, essa escala de discriminação podeser generalizada no seio dos próprios trabalhadores, na medida emque ela pode funcionar como um artifício competitivo. Nessascondições, os trabalhadores são divididos em negros, mulatos, índios,mestiços, brancos e outras gradações. Apenas formalmente todos sãocidadãos, iguais perante a lei.

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RAÇA E POLÍTICA

Significado político dos problemas raciais

Neste ensaio, pretendo fazer algumas sugestões sobre as implicaçõespolíticas de situações de antagonismo e conflito raciais em países domundo capitalista. É claro que as implicações políticas dos proble-mas raciais poderiam ser apreendidas também por meio da análisede situações nas quais as raças parecem conviver em acomodação.demaneira mais ou menos harmoniosa, ou em processo de integração.Deixando de lado o fato de que essas situações parecem ser menosfrequentes, não há dúvida de que elas são menos propícias àinterpretação das condições e possibilidades de desenvolvimento dosproblemas raciais. Creio que as manifestações de antagonismo econflito são mais reveladoras das implicações políticas desses proble-mas, implicações essas invisíveis ou não expressas nas situações deacomodação e integração. As condições económicas e políticas dasrelações raciais concretas aparecem de forma clara nas situações deantagonismo e conflito, situações essas expressas nos rims dos negrosnorte-americanos, nas guerrilhas dos negros africanos e na lutaarmada dos vietnamitas contra a dominação estrangeira, francesa ounorte-americana. Nos conflitos gerados pelos problemas da integra-ção linguística na índia, ocasiões em que às vezes ocorrem mortes,também se revelam mais abertamente as implicações políticas,económicas e culturais da heterogeneidade racial nesse país.

Antes de iniciar a discussão, quero fazer dois esclarecimentospreliminares. Penso que eles ajudam a explicitar a perspectivaanalítica em que me coloco.

NJto tratare^de^roblejnas raciais em países socialistas,. Com issonão pretendo sugerir que esses países não se enfrentem com questõesraciais mais ou menos relevantes. Mas suponho que essas questõesapresentam outras especificidades, se admitimos que as leis dedivisão do trabalho social, estratificação social,repartição da renda eorganização do poder político são ali diversas das leis estruturais queorganizam a sociedade capitalista. Prefiro concentrar-me apenas empaíses capitalistas, porque quero reunir elementos e sugestões para acompreensão do caráter das tensões e antagonismos raciais no

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contexto de situações coloniais e imperialistas, por um lado, esituações nas quais mesclam-se raças e classes sociais, por outro. Ameu ver, essa é uma maneira de apanhar as dimensões políticas dosproblemas raciais. Penso que é impossível, ou muito difícil, com-preender as condições de resolução de problemas raciais, nosEstados Unidos, África do Sul, Inglaterra, índia, Brasil ou outrospaíses, se a análise não apreende os conteúdos e as implicaçõespolíticos das tensões e antagonismos raciais. Para isso, entretanto, éindispensável que a análise passe pelas relações sociais estabelecidaspelo modo de apropriação do produto do trabalho social.

Neste ensaio, a noção de raça está usada no sentidosociológico, de raça social, e não no de raça biológica, dado pelaantropologia e a genética. Isto significa que as raças são tomadas nasacepções dadas a partir da perspectiva das próprias pessoas envolvi-das na situação social concreta em que se encontram, situação essana qual os critérios biológicos são geralmente menos importantes,esquecidos, ou socialmente recriados, segundo os componentessociais da situação (1). Ocorre que_a noção sociológica de raça noscoloca diretamente diante de relações políticas, na medida em que asdiferenças de atributos, traços, marcas ou outros elementos fenotípi-cos e físicos, raciais ou não, são organizados e definidos pelasrelações sociais de apropriação económica e dominação política.

Essa colocação preliminar indica que, a meu ver, os problemasraciais seriam ininteligíveis se examinados em si, sem conexão comas relações, os processos e as estruturas económicos e políticos quegovernam as condições básicas de estratificação, reprodução emudança sociais. Esse é o contexto em que se torna possívelpesquisai e interpretar tanto os fenómenos de relações raciais, emsentido estrito, como os fenómenos de ressurgência de identidadeétnica e racial em níveis nacional e internacional.

Antagonismos e conflitos raciais

O que surpreende e desafia tanto cientistas sociais como gover-nantes e cidadãos, nos países do mundo capitalista, é que osproblemas raciais parecem antes agraVar-se do que resolver-se. A

1

(1) Quanto ao conceito sociológico de raça, consultar: Charles Wagley, The LaíinAmerican tradition, Columbia Universirv Press, New York, 1968. cap. V: MichaelBanton, Race relalions, Tavistock Publications, London, 1967. cap. 4; GunnarMyrdal, An Amerícam dilema, Harper& Brothers Publishers. New York, 1944, paneII; Roger Bastidee Rorestan Fernandes, Brancos e regras em São Paulo, CompanhiaEditora Nacional, São Paulo, 1959, apêndice I; Octavio lanni. Raças e classes sociaisno Brasil, Editora Civilização- Brasileira, Rio de Janeiro. 1972. quarta parte.

despeito da contínua difusão e propaganda dos ideais gerados com acultura burguesa do capitalismo europeu e norte-americano, relati-vamente à igualdade política e intelectual dos cidadãos, é surpreen-dente como a_prática das^ relações entre as pessoas, os grupos e asclasses sociais revela a^persistèncTa e, muitas vezes, o agravaffieTlTode tensões, antagonismos e conflitos~déTvãsè~raciãl. Tssõ^ê eSpécM-mente verdadeiro para os Estados Unidos, África do Sul, Rodésia,Inglaterra e alguns outros países, nos quais os conflitos raciaisentraram em etapas políticas novas. Outro grupo de países, dentre osquais encontram-se a França, Alemanha e Suíça, apresentamsituações de tensão^-cojiflito raciais também novas, surgidas com aexpansão capitalista baseada, às vezes amplamente, na incorporaçãode operários imigrados da Argélia, Itália, Grécia, Espanha, Portugale outros países. Em termos totalmente diversos, países africanos easiáticos defrontam-se com os problemas criados pela multiplicidadeétnica, racial, linguística e religiosa de suas populações. Na índia,desde a independência, ocorrida em 1947, os problemas de baseétnica, racial, linguística e religiosa têm gerado tensões sociais epolíticas relevantes para a nação. Em outro plano, creio que se podeafirmar que os indigenismos da revolução mexicana, iniciada em1910, e do movimento aprista do Peru, surgido na década dos vinte,não produziram melhora substancial das condições de vida daspopulações de origem asteca, maia e inça. Da mesma forma, jipBrasil, não há indícios seguros de que o mito da democracia racialdeixou de ser uma expressão da ideologia racial da classe dominan-te, branca, para usos internos e externos. E cabe lembrar, ainda, aconotação racial das várias guerras havidas nas últimas décadas noOriente Médio, entre árabes e judeus; e das muitas e longas guerrasmantidas pelos vietnamitas contra invasores franceses e norte-americanos.

É sintomático, aliás, que os programas educativos, culturais e depesquisas sociológicas e antropológicas iniciados e estimulados pelaUNESCO desde 1947, não produziram os efeitos civilizatórios queos seus idealizadores pretendiam (2).

(2) Estas são algumas publicações nas quais se registram e discutem as preocupa-ções e os programas da UNESCO relativamente a tensões raciais: Otto Klineberg,"The UNESCO project on international tensions", International social sciencebulletin, Vol. I, N" l, Paris, 1949, p. 11-21; do mesmo autor, Êtats de tension etcompréhension Internationale, Librarie de Médicis, Paris, 1951; Hadley Cantril,Tensions et conflits, Librairie de Médicis, Paris, 1951; Association Internationale deSociologie, De Ia nature dês conflits, Unesco, Paris, 1957; Unesco, The race question inmodern science, Paris, 1956; Lê racisme devant Ia science, Unesco, Paris, 1960 (28

edição, 1973).

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Em documento de 1969, a ONU - da qual a UNESCO é umaorganização afiliada - registrava a persistência e o agravamento dasituação racial na África Meridional. E apontava a relação entre raçae economia, sempre em detrimento das populações indígenasafricanas. Nesse documento, fica evidente a articulação entrecapitalismo e racismo, ou melhor, entre a acumulação capitalista e aexploração do negro pelo branco.

As populações indígenas africanas permanecem em uma situação miserável,apesar de as potências imperialistas terem investido enormes quantias, estimadas emmais de 5 milhões de dólares, nos territórios coloniais. Contrastando com isso, aminoria de exploradores brancos locais e os monopólios estrangeiros a eles aliadostêm à sua disposição indústrias, uma agricultura altamente desenvolvida, cidades,portos, aeroportos e outras riquezas criadas à custa do sangue e do suor damão-de-ohra africana.

Como os meios básicos de produção - especialmente as terras, minas, indústrias efábricas, transportes e comunicações - estão nas mãos dos capitalistas estrangeiros edos habitantes locais a eles associados, a população indígena vê-se privada do direitode participar das atividades económicas e comerciais. O destino a ela reservado é o deservir á exploração dos monopólios estrangeiros e das autoridades coloniais que osapoiam.

O domínio da agricultura pelos monopólios levou à alienação das terras dapopulação indígena. Como as melhores terras foram tomadas pelos estrangeiros, amaioria esmagadora dos camponeses vê-se obrigada a arrendar, itas condições maisdesfavoráveis, terras pertencentes a latifundiários europeus e. a companhias estrangei-ras. Os camponeses africanos são obrigados a cultivar apenas aqueles produtos emque se especializam as companhias concessionárias. Eles só podem vender suas safraspara os agentes dessas companhias e a preços por estas determinados, os quais,normalmente são muito inferiores aos preços médios pagos aos fazendeiros europeuse aos preços do mercado internacional. Dessa maneira, os monopólios estrangeiros eas potências coloniais obtêm lucros ainda mais altos. A população indígena está, pois,sendo objeto de uma dupla opressão, exercida pelas companhias estrangeiras e pelasminorias brancas (3).

Em 1974, a ONU voltou ao assunto, ao formular recomendações apropósito da exploração de matérias-primas em regiões coloniais epaíses dependentes. Reeenh€cia-a direito de-os povos coloniaislutarem por sua emancipação económica e política; e sugeria que aONU se empenhasse em ajudar esses povos nessa luta.

O direito dos países em desenvolvimento e dos povos de territórios sob dominaçãocolonial e racial e ocupação estrangeira de lutar por sua libertação e para recuperar odomínio efetivo sobre os seus recursos naturais e-as suas atividades económicas.

A prestação de assistência aos países em desenvolvimento e aos territóriossubmetidos à dominação colonial e estrangeira, à ocupação forânea, à discriminação,ao apanheid ou que são objeto de coerção e agressão económica ou de pressõespolíticas e do neocolonialismo em todas as suas formas e que chegou a exercer ouestão exercendo domínio efetivo sobre os seus recursos naturais e atividadeseconómicas que estiveram ou permanecem sob domínio estrangeiro(4).

É importante notar, nessas recomendações votadas pela Assem-bleia Extraordinária das Nações Unidas sobre Matérias-Primas, queos problemas raciais estão postos junto com os problemas econô-

* micos e políticos relativos às condições coloniais e de dependênciade países asiáticos, africanos e latino-americanos, em face dos paísescolonialistas, neocolonialistas ou imperialistas, na década dos setenta.

No presente, pois, _as_ antagonismos sociais, de base. racial sãoelementos constantes e às vezes fundamentais em muitos países domundo capitaJister Em distintas gradações, os antagonismos raciaisaparecem nos mais diversos países desde os Estados Unidos e aÁfrica do Sul até a índia e o Brasil. Também manifestam-se noâmbito das j-ela^õejjjilexnaciojnais, unindo e divorciando países, comonos seguintes exemplos: o tribalismo e a negritude, em paísesafricanos de população negra; o panarabismo e o islamismo, empaíses árabes e nos quais predomina a religião islâmica; o sionismo,entre populações de .origem judia, dentro e fora de Israel; oindigenismo, em países latino-americanos nos quais populações deorigem inça, asteca e maia continuam a ser uma parte importante dapopulação; o hispanismo em alguns países latino-americanos cujastradições históricas e culturais comuns foram herdadas do colonialis-mo espanhol. A ênfase cultural, ou rel ;giosa, em ideologias dessetipo, não elimina as suas implicações raciais, nem as suas significa-ções políticas. É importante observar, no entanto, que essas e outras'ideologias sociais, de base racial mais ou menos evidente, tendem aser com frequência éontra-ideologias.;ao mesmo tempo que são aafirmação de alguma especificidade racial, étnica, religiosa, política

, ou outra. Respondem a algum tipo de racismo, colonialismo ouimperialismo. Ocorre que os antagonismos raciais tendem sempre aestar mesclados com formas de estratificação social, organização dasrelações económicas e estruturação do poder político, em conjunto.A importância relativa e absoluta das dimensões económicas,políticas, raciais, religiosas ou outras naturalmente varia em cadasituação específica; mas é inegável que umas e outras coexistem e

(3) Nações Unidas. Interesses económicos estrangeiros e descolonizarão. Serviço deInformações Públicas. New York. 1969, p. 6

(4) Transcrição de Folhade S. Paulo, 2 de maio de 1974, p. 17, sob o título "ONU :deve ser criada nova ordem económica mundial". Quanto ao problema racial naÁfrica do Sul, consultar: Apanheid: its effects on educalion, science, culture andinformation, Unesco, Paris, 1969.

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influenciam-se reciprocamente. Inclusive pode verificar-se que al-guns dos antagonismos estruturais básicos, como ocorre na explora-ção do trabalhador negro em distintos contextos, na África do Sul,nos Estados Unidos ou no Brasil, apareçam ideologicamente defleti-dos, ou mesmo invertidos, em ideologias raciais e religiosas; às vezesas duas integradas numa só.

Condição racial e desigualdade económica

Grande parte da problemática relativa às relações raciais, confor-me essa problemática manifesta-se em países capitalistas, aparece demodo mais ou menos claro no seguinte paradoxo: Difundem-se evalorizam-se cada vez mais os ideais de igualdade intelectual epolítica de todas as pessoas ou cidadãos, sem distinção de raça oucredo religioso; ao mesmo tempo que se multiplicam as situações deantagonismo e conflito raciais, em países coloniais, dependentes edominantes. Nos Estados Unidos e na África do Sul, ou na Irlanda eno Canadá, ou no Oriente Médio e na Europa, as tensões e osantagonismos raciais e religiosos, em separado e mesclados, parecemser mais agudos em 1974 do que ao término da Segunda GuerraMundial; salvo, é claro, o problema da matança de judeus pelonazismo alemão. Em alguns países, é evidente que os conflitos debase racial ganharam dimensões inesperadas, por sua violência,organização política e sofisticação ideológica. Muitas discussões epesquisas, académicas e não académicas, sobre fenómenos raciais nomundo capitalista,certamente estão inspiradas pelo interesse de mui-tos em compreender e resolver esse paradoxo.

A meu ver, esse paradoxo não pode ser satisfatoriamente explica-do enquanto a análise não busca as raízes económicas e políticas dasdesigualdades raciais, em cada situação específica. Com isso nãoquero dizer que as condições históricas e culturais de formação dassociedades multirraciais não sejam importantes. É evidente, em todosos casos, seja nos Estados Unidos ou África do Sul, na índia ouBrasil, na França ou Inglaterra, a importância das condiçõeshistóricas de sua formação demográfica, racial, religiosa e te. Inclusiveé evidente que algumas situações cruciais passadas influíram deforma decisiva na maneira de organização sócio-cultural das rela-ções e ideologias raciais. Mas todas as condições histórico-culturaismais significativas reaparecem nas situações concretas presentes.Podem ser reencontradas nos riots, na atuação de partidos políticosde base racial, na violência guerrilheira. São as relações político-econômicas, no entanto, que em última instância podem explicar apersistência e as transformações das situações de antagonismo econflito que se repetem em um e muitos países.

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Tanto assim é que a história dos antagonismos e conflitos raciais,em dado país, parece acompanhar a história das relações político-e^onômicas das classes sociais e dos grupos raciais nelas distribuídose concentrados:Nos Estados Unidos, por exemplo, em várias ocasiõesé evidente que os brancos são menos atingidos pelo desemprego.Assim, em 1940 havia 13 porcento de brancos desempregados, maseram 14,5 os não brancos na mesma situação. Em 1962 essadesproporção é maior, pois os brancos perfazem 4,9 por cento,enquanto que os não brancos alcançam 11,0 da força de trabalhodesempregada (5).

Não é surpreendente, pois, que a renda per capita dos norte-americanos também varie segundo a condição racial. Nesse país, 0não branco (negro, mulato, portorriquenho, chicano e outros) emgeral participa em apenas mais ou menos cinquenta por cento darenda auferida pelo branco. Assim, por exemplo, em 1948 a rendamédia dos não brancos do sexo masculino alcançava apenas 54 porcento do que era recebido pelos brancos. Em 1969 essa relação semantinha quase a mesma, pois que os não brancos percebiam 59 porcento do que era ganho pelos brancos (6).

Não é necessário lembrar aqui que essas diferenças de participa-ção no produto do trabalho social não se explicam apenas pelasdiferenças de preparo profissional, ou grau de socialização nascondições sociais e técnicas de organização do trabalho, na fábrica,fazenda, escritório etc. Além do mais, essas diferenças raciais,quanto ao tipo de preparo profissional, também se explicam pelascondições económicas, culturais e políticas de educação e profissio-nalização, segundo as classes sociais, na cidade e no campo. Todas aspesquisas económicas, sociológicas e antropológicas mostram que asraças subalternas são discriminadas na prática cotidiana das relaçõeseconómicas, políticas e outras. O preconceito e a discriminaçãoraciais estão sempre inseridos dinamicamente na prática dasrelações de produção, em sentido lato.

A verdade é que a participação desigual das raças no produto dotrabalho social é geral, em praticamente todos os países capitalistas.Ela se verifica na Europa, África, Ásia e Américas. As raçasdefinidas ideologicamente como inferiores, em dada sociedade, sãoas raças que participam em menor grau do produto do própriotrabalho. São também essas raças que podem reivindicar emimenor

(5) Paul A. Baran e Paul M. Sweezy, Monopoly capilal, Monthlv Review Press. NewYork, 1966, p. 261.

(6) Richard C. Edwards, Michael Reich e Thomas E. Weisskopf (Editors). Thecapitalist system, Prentice-Hall, Englewood Cliffs. 1972, p. 289.

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escala, em comparação com os trabalhadores brancos, ou pertencen-tes a estratos sociais privilegiados. Isso é assim na índia e no México,no Brasil e na África do Sul, na França e nos Estados Unidos. Ouseja, não é certo que o desenvolvimento económico capitalistamelhore generalizadamente o nível económico, social e cultural dostrabalhadores. Ao contrário, muitas vezes preservam-se e refinam-seas desigualdades, com frequência mais visíveis quando se confron-tam as condições de vida dos trabalhadores das raças dominantescom as condições das raças subalternas, ou discriminadas (7).

Todo país produz uma forma singular de hierarquização racial dasua população. As pessoas e os grupos podem distribuir-se por raça,religião, filiação política etc.; ou classes, estamentos, castas mais oumenos desenvolvidos, estabilizados ou em regressão. As castaspodem estar em regressão, como na índia. Nem por isso, no entanto,as pessoas deixam de ser classificadas segundo a condição racial, aomesmo tempo que por sua situação sócio-econômica. Tanto^assimque não é por mero acaso que em cada país o exército industríãTUereserva tende a ser formado pelos membros das raças discriminadas,ou subalternas. Em boa parte, a lógica da discriminação racialguarda alguma congruência com a lógica das relações de produção.E claro que uma e outra não são perfeitamente harmónicas entre si.Mas é inegável que a maioria dos desempregados são membros dasraças subalternas; que os membros destas raças, mesmo queempregados, participam em menor escala do produto do trabalhosocial; que, nas classes médias e dominantes, os membros das raçassubalternas são menos visíveis, mais raros ou mesmo totalmente

ausentes.Essa distribuição desigual das raças na estrutura sócio-econômica

de cada país pode ser vista também em escala internacional. As

(7) Alguns dados e análises sobre pluralidade racial, discriminação racial, racismo ealienação económica encontram-se em: Everett C. Hughes e Helen M. Hughes,Where peoples meei, The Free Press, Glencoe, 1952, esp. cap. 5; Herbert Blumer,"Industrialisation and race relations", publicado em Guy Hunter (Editor), Industriali-salion and race relalions, Oxford University Press, London, 1965; E. Franklin Frazier,Race and culture coniacls in the modern world, Alfred A. Knopf, New York, 1957, esp.'parte 11; Michael Banton, Race relalions, citado, esp. caps. 8 e 10; Jack Woddis,África: as raízes da revolta, trad. de Waltensir Dutra, Zahar Editores, Rio de Janeiro,1961, esp. caps. V. VI e V I I : Immanuel Wallersteir. (Editor), Social change:'thecolonial situation, John Wiley & Sons. New York, 1966, esp. parte II; Marvin Harris,"Raça, conflito e reforma em Moçambique", Política externa independente, N? 3, Riode Janeiro. 1966. p. 8-39: J . -P. Sartre. Reflexões sobre o racismo, trad. de J.Guinsburg, Difusão Europeia do Livro, São Paulo, 1960; T. W. Adorno, E.Frenkel-Brunswik, D. J. Levinson, R. N. Stanford, The authoritarian personaiity,Harper & Brothers. New York, 1950.

possibilidades de mobilidade sócio-econômica dos imigrantes (deprimeira e demais gerações) nos países adotivos são menores que ados trabalhadores nativos, nas mesmas condições. Os países quecompram a força de trabalho imigrante estabelecem barreirasjurídicas, políticas e sociais delimitando o âmbito de circulação do"estrangeiro" ou seu descendente. Isso é verdade para hindus epaquistaneses na Inglaterra, portorriquenhos e chicanos nos EstadosUnidos, ou argelinos e espanhóis na França. O mercado internacio-nal de trabalho também faz circular internacionalmente as técnicasde seleção, controle e repressão das raças subalternas. Aliás, osfenómenos migratórios, em escala internacional, tanto no século XIXcomo no XX, estão sempre altamente determinados pelas exigênciasdo mercado de força de trabalho (8). Quanto mais se desenvolve ocaráter internacional do capitalismo, mais se internacionalizam eintensificam os movimentos das forças produtivas básicas, seja ocapital e a tecnologia, seja a mão-de-obra. Nem por isso, no entanto,a generalização do trabalho livre implica a generalização daliberdade do trabalhador, em termos sociais e políticos. Um operárioargelino na França é sempre e ao mesmo tempo argelino e operário.Da mesma forma, o hindu na Inglaterra, o chicano nos EstadosUnidos, o negro no Brasil, o índio no México.

A política das relações raciais

A história das raças subalternas e dos povos dominados, em níveisnacional e internacional, mostra que eles têm reagido sempre emtermos religiosos, culturais e políticos. Nas lutas pela emancipaçãopolítica, económica e cultural dos povos asiáticos e africanos, nesteséculo, e dos povos latino-americanos, nos começos do séculopassado, sempre esteve presente o elemento racial. Nas religiõesafro-americanas, em vários países da América Latina, a condiçãoracial também tem estado de alguma forma presente. Os fenómenosmessiânicos, na África, América Latina e Ásia, muitas vezesconjugam manifestações religiosas e de identidade racial. Emdiversos movimentos religiosos, culturais e políticos, entre povoscoloniais e no seio das raças subalternas, nos países dependentes edominantes, são evidentes as suas implicações raciais. Seria impossí-vel compreender de outra maneira fenómenos como os seguintes:messianismo, tribalismo, negritude, hinduísmo, budismo, sionismo,

(8) Julius Isaac, Economics of migration. Kegan Paul, Trench, Trubner & Co,London, 1947.

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/islamismo, panarabismo e outros. Em distintas gradações, eles sãoreações às condições de antagonismo e conflito em que raçassubalternas são colocadas, dentro de dado país ou nas relações compaíses dominantes.

Mas é importante não esquecer que essas ideologias e movimentossão frequentemente reações às ideologias e movimentos dos grupos eclasses dominantes, em geral identificados com outras raças. Muitospovos colonizados, da mesma forma que grupos raciais subalternos,no interior de dado país, têm sido obrigados a lutar contra umpersistente e continuamente reavivado darwinismo social. Aliás,toda a história do imperialismo europeu e norte-americano, em suasimplicações políticas e culturais, é também a história de muitas esempre renovadas manifestações de darwinismo social, no qual semesclam o etnocentrismo, o eurocentrismo, a identificação entrebranco e civilizado, o puritanismo civilizatório, a identidade entre ospovos anglo-saxônicos, o capitalismo industrial, a democracia liberale o clíiriax do processo histórico (9).

Seria impossível compreender as compontentes "irracionais" dapolítica da Guerra Fria dos governantes norte-americanos nos anos1946-70, sem levar em conta as convicções do puritanismo civilizató-rio simbolizado na política externa posta em prática por John FosterDulles. Da mesma forma, seria impossível compreender a violênciada guerra que os norte-americanos fizeram contra o povo do Vietnãsem incluir na análise a ideia do "perigo" amarelo de mistura com ocomunismo, ou formas não ocidentais de compreender e organizar avida) *

Aliás, para conseguir a sua independência política, o Egito e aArgélia, ou a índia e a Indonésia, para mencionar exemplosdiversos, tiveram que realizar todo um longo e complexo processo deelaboração de uma nova identidade. Em alguns casos, entra emjogo a religião, em outro a língua predominante, mas sempre aespecificidade das tradições culturais. Em graus variáveis, conformea diversidade racial maior ou menor dopais, tambérnentram em linhade conta as bases raciais, a ideia de uma identidade racial mínima,ao menos em oposição ao colonizador. Ou seja, para realizar a sua

(9) Quanto às relações entre imperialismo e racismo: Georg Lukács, El asalto a Iarazón, trad. de Wenceslao Roces, Fondo de Cultura Económica, México, 1959, esp.cap. VII; J. A. Hobson, Imperialism, The University of Michigan Press, Ann Arbor,1965, esp. parte II; Richard Hofstadter, Sócia! Darwinism in American thought,Beacon Press, Boston, 1967; Hannah Arendt, The origins of totalitarianísm, The WordPublishing Company, Cleveland, 1958, esp. caps. 6 e 7; Claude Julien, L'EmpireAméricain. Editions Bernard Grassei, Paris, 1968; Gordon Connell-Smilh. Theinter-American svsiem. Oxford University Press. London. 1966, esp. p. 14-18.

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emancipação política, nos anos posteriores à Segunda GuerraMundial, os povos da África e Ásia tiveram que elaborar elementosreligiosos, políticos e científicos para desmascarar e negar o darwi-nismo social inerente à cultura imperialista.

Mas também no interior dos países dominantes, os antagonismos econflitos de base racial encontram expressões religiosas,.culturais epolíticas. É o que tem ocorrido com as minorias raciais, nos EstadosUnidos e outros países.

Nos países da América Latina, parece evidente que algumasreligiões de base indígena e africana desempenham inclusive asfunções de uma espécie de contracultura de raças subordinadas eexploradas. Ao lado de outros significados específicos de cadareligião e seita, é inegável a sua conotação antagonística, quanto àsseitas e religiões dos brancos, os donos do poder. Negros, índios emestiços parecem refugiar-se de forma sublimada em suas práticasreligiosas, ao mesmo tempo que elaboram e reelaboram a suaidentidade, distinta e em alguns casos em aberta oposição à dosbrancos.

É claro que as relações raciais na América Latina, por exemplo,estão se transformando com a urbanização e a industrialização, maisou menos notáveis havidas nas últimas décadas em alguns países.Esse seria o caso do México e Brasil, entre outros. Mas não éevidente que essas mudanças estão resolvendo as questões raciais.Parece claro que o índio, chollo, mestizo, mulato, negro e outrascategorias raciais, em países latino-americanos, continuam a ser distin-guidos dos brancos. Essa discriminação, mais ou menos velada ouaberta, conforme a situação particular, de trabalho, aparece nas

<• atividades rurais e industriais. Se é verdade que a institucionalização dotrabalho assalariado abre possibilidades a todo tipo de trabalhador, semdistinções de sexo, idade, religião ou raça, isso não significa que essaspossibilidades são na prática iguais para todos. Para ser reconhecidocomo um operário da mesma categoria do branco, o operário negroprecisa ser melhor que o branco. Além do mais, a situação de trabalho éapenas uma esfera da existência do trabalhador, ainda que seja a maisimportante. Ao analisar a relação entre industrialização e relações raciaisno Brasil, Roger Bastide fez as seguintes observações:

Em resumo, no Brasil a industrialização tem desempenhado um papel duplo. Porum lado, no começo do crescimento industrial, quando os negros começaram acompetir com os brancos, intensificou-se o preconceito e tornou-se mais acentuada adiscriminação. Por outro, em períodos de prosperidade e crescimento económicorápido, a industrialização faz com que as tensões sociais predominem sobre as raciais.Isto naturalmente ocorre ape"nas na esfera das relações de trabalho. O resto da vidasocial - relações de vizinhança, diversões e amizade - continua a ser regulada pelos

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padrões tradicionais, que ainda coexistem com os novos padrões surgidos com aindustrialização (10).

É de supor-se que as novas configurações sociais de vida nacidade, e em conexão com as relações de produção na indústria,estejam criando condições e perspectivas totalmente novas n,odesenvolvimento de ideologias e movimentos políticos entre osnegros brasileiros. À medida que o capitalismo destrói e reelabora osvalores e padrões raciais que haviam sido produzidos em quatroséculos de escravização do trabalhador negro, é óbvio que se criamnovas possibilidades de organização e expressão dos seus interesseseconómicos, culturais e políticos. Isto é, as tensões e os antagonismosraciais são recriados nos quadros das tensões e antagonismos sociaisemergentes e predominantes nas novas condições.

Nos Estados Unidos, as ideologias e os movimentos de base racialpassaram por transformações notáveis nos anos cinquenta e sessenta.Depois de muitas décadas de aceitação mais ou menos passiva depolíticas racistas ou integracionistas propostas pelos brancos, osnegros norte-americanos passaram a organizar-se e atuar de formaautónoma e eminentemente política. Aliás, tomada em suas linhasgerais, enquanto às suas tendências predominantes, talvez se possadizer que a história do negro norte-americano revela duas orienta-ções principais. Até a Segunda Guerra Mundial e mesmo algunsanos após, ele aceitava de forma passiva ou ativa a política deintegração subordinada, definida, implementada e controlada pelobranco. Essa é a política na qual os brancos organizam e propõem oproblema racial em termos morais, jurídicos ou principalmenteantropológicos. Não é por acaso que a análise do problema racialnorte-americano realizada por Gunnar Myrdal coloca a questão emtermos de desencontro entre valores culturais: os da ideologiadominante, que propõem a igualdade e a liberdade entre todos oscidadãos, e os da prática das relações raciais, que negam cotidiana-mente àqueles. Para ele, simbolizando e exprimindo grande parte daprodução científica até então, e mesmo depois, o dilema norte-americano é antes de mais nada axiológico (l 1).

(10) Roger Bastide, "The development of race relations in Braeil", publicado porGuy Hunter (Editor), Induslrialisation and race relations, citado, p. 9-29; citação da p.26. Quanto aos problemas de preconceito e discriminação em ambientes urbano-industriais brasileiros, consultar também: Florestan Fernandes. A integração do negrona sociedade de classes, 1 vols., Dominus Editora, São Paulo, 1965; L. A. da CostaPinto, O negro no Rio de Janeiro, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1953;Octavio lanni, Raças e classes sociais no Brasil, citado.

(l 1) Gunnar Myrdal, An Americandilemma, citado.

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Nas décadas dos cinquenta e sessenta, no entanto, o negro norie-americano propõe, adota e desenvolve interpretações políticas pròpriiis,sobre o seu grupo racial, o branco, as relações raciais, a organi/uçúoeconómica, política e cultural do país e outros aspectos da sua existência.Ele descobre que a política de dessegregação ou integração racial estavasendo proposta, implementada e controlada segundo os interesses dobranco. Mais que isso, descobre que o tipo de vida que o capitalismonorte-americano lhe oferece não corresponde ao seu ideal de vida, àssuas possibilidades reais de existência livre e criativa. O desempregorelativo maior entre os negros dos Estados Unidos e a mortalidaderelativa maior de negros norte-americanos na guerra do Vietnã são fatostransparentes, que põem em evidência toda a sua situação económica,política e cultural. Esse é o contexto no qual o negro norte-americanopossa a rejeitar politicamente as políticas raciais dos brancos, governan-tes ou não. Pouco a pouco, as novas correntes políticas e culturaisdesenvolvidas entre os negros dos Estados Unidos começam a negartanto as políticas integracionistas como o próprio regime políticoeconómico com o qual se identifica o branco.

A mudança para uma posição revolucionária antiestablishment, proposta por HueyNewton, Eldridge Cleaver e Bobby Seale como uma solução para os problemas dascolónias negras da América, tem se consolidado no pensamento dos irmãos. Agoraeles mostram grande iriteresse nos pensamentos de Mão Tsê-tung, Nkrumah, Lênin,Marx e nas realizações de homens como Chê Guevara, Giap e o Tio Ho (12).

Os acontecimentos do Congo, Vietnã, Malaia, Coreia e aqui nos Estados Unidosestão ocorrendo pela mesma razão. A convulsão, a violência, a luta em todas essasáreas, e muitas outras, nascem da mesma fonte: os maus, malignos, possessivos evorazes europeus. As suas teorias abstraias, desenvolvidas em séculos de treino,relativas à economia e à sociologia, tomaram as formas conhecidas porque elespadecem da equívoca convicção de que o homem somente pode garantir-se melhor,neste mundo inseguro, pela propriedade pessoal e privada de grande riqueza. Elestratam de impor as suas teorias a todo o mundo, por óbvias razões de interesse próprio.A sua filosofia sobre o governo e a economia tem subjacente uma intonação egoística,de possessão e voracidade porque o seu caráterestá feito dessas «coisas (13).

Assim, à tendência integracionista proposta segundo os termos daideologia racial dos brancos, e aceita por uma grande parte dosnegros, opõe-se a tendência política independente e agressiva deuma parcela da população, negra dos Estados Unidos. É claro que asduas tendências coexistem e desenvolvem-se no interior da socieda-

(12) George Jackson, Soledad Brother (the prison letters of George Jackson),Penguin Books, London, 1970, p. 50.

(n)Ibidem, p. 60.

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de norte-americana. Mas é inegável que desde as décadas doscinquenta e sessenta em diante transformou-se quali tat ivamente ocaráter da situação racial nos Estados Unidos. O preconceito, adiscriminação e a segregação deixaram de ser uma questão moral,jurídica ou antropológica, definida segundo os termos da ideologia eda ciência dos brancos. Desde essa época, as tensões, os antagonis-mos e os conflitos raciais nesse país passaram a ser, para boa partedos negros /norte-americanos, uma questão aberta, necessária efundamentalmente política.

Problemas raciais e contradições estruturais

A análise dos antagonismos e conflitos raciais vigentes nos maisdiversos países, sejam os Estados Unidos e a África do Sul, ou aíndia e o Brasil, revelam que em todos há algum tipo de assimetriaeconômico-social, política e cultural que tende a corresponder àsassimetrias reveladas na hierarquia das raças^ Há uma raça que

. tende a concentrar o poder económico e político, ao passo que outra

. ou outras tendem a situar-se no proletariado industrial e agrícola.Com freqiiénciajos mestiços encontram-se em posições intermédias.Eles^são apresentados e apreserítam-secomo prova de que o sistema.social é aberto. Mas também revelam que atuam nos quadros da•ordem político-econômica e de pensamento estabelecida em confor-midade com os interesses da classe e ou raça que detêm o poder.Portanto, jjs tensões e antagonismos raciais alimentam-se basica-mente das assimetrias económicas, sociais, políticas e culturaiscaracterísticas do capitalismo, em geral,. e__segundo as condiçõeshistóricas próprias de cada subsistema nacional, em particular.

Convém observar, no entanto, que esses países não são diferentesapenas em sua composição racial, história demográfica, especificida-de cultural, ou quanto a línguas, religiões etc. Eles são diversosinclusive quanto ao grau e tipo de desenvolvimento das relaçõescapitalistas de produção. Sob certos aspectos, os Estados Unidosisãoo país mais avançado do mundo capitalista, ao passo que o Brasil éainda uma nação dependente e subdesenvolvida. São dois pólos, ougradações bastante, distintas e distantes, na gama das possibilidadesde desenvolvimento das relações capitalistas de produção, se pensa-mos em termos de classes operária e burguesa, graus de desenvolvi-mento tecnológico, composição absoluta e relativa de capital,tecnologia e força de trabalho, nos diferentes setores produtivos, naextensão da dependência de capital, know-how. tecnologia e comér-cio externos etc. Entretanto, a despeito das diferenças estruturais

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determinadas pelos graus diversos de desenvolvimento económico,tipos de heranças culturais etc., é inegável que esses (assim comooutros) países capitalistas apresentam marcadas simil i tudes DJIdistribuição assimétrica dos vários grupos raciais pelas dist intasclasses sociais. As notáveis diferenças de grau, intensidade, conteúdoe estilo das tensões e dos antagonismos raciais, nos dois países, nãoelimina o fato de que os brancos dominam o poder político-econômico, ao passo que os negros e os mulatos se encontramsituados nas classes assalariadas; com frequência em condiçõessubalternas às dos brancos que se acham na mesma categoria social.

A verdade é que a história do capitalismo demonstra que essemodo de produção rompe, substitui ou recria continuamente asrelações econômico-sociais e políticas preexistentes. Isso é o quedemonstra a história da expansão imperialista inglesa, francesa,alemã, belga, holandesa, italiana, portuguesa e norte-americana naÁsia, África e América Latina. Esse fenómeno é particularmenteevidente na produção industrial, na qual castas e estamentos, oudiferenças sociais de idade, sexo, religião e outras submergem nasrelações de produção capitalistas, em formação ou expansão.

Mas não é certo que as relações capitalistas de produção destroemou eliminam as desigualdad.es sociais, económicas, políticas e cultu-rais baseadas em diferenças raciais. Ao contrário, o capitalismorecria essas diferenças continuamente, segundo as leis da divisão dotrabalho social e estratificação social que lhes são próprias. Todospasflfcn a ser cidadãos, trabalhadores livres etc., segundo a ideologiaburguesa dominante. Na prática, todos continuam a existir comooperários e burgueses, ao mesmo tempo que índios, negros, brancos,hindus, paquistaneses, amarelos, mestiços etc.

No sistema capitalista, pois, a pluralidade racial não garante aintegração harmónica das raças, nem significa, automaticamente, adiscriminação generalizada. Cada país e situação tem a sua especifi-cidade. Na índia, por exemplo, a pluralidade racial, cultural elinguística pode gerar situações menos tensas e violentas do que nosEstados Unidos. Nos países da América Latina, as tensões e osantagonismos raciais são qualitativamente diversos, se pensamos empaíses com composições raciais tão distintas como o Brasil, México ePeru. Mas essas situações não são estáticas. Elas modificam-se com amudança das condições políticas e económicas, nas quais se envol-vem os membros de umas e outras raças. Em todos os países, aheterogeneidade racial tende a constituir-se num princípio classifica-tório, ao lado das diversas crenças religiosas, línguas etc. Em últimainstância, são as condições económicas e políticas de organização doprocesso produtivo e de apropriação do produto do trabalho coletivo

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que tendem a comandar ou influenciar decisivamente as relações eclassificações raciais. Estas tendem a ser subordinadas, secundariasou mesmo reflexas, em face dos princípios classificatórios estabeleci-dos pelas condições político-econômicas, encaradas como estruturais.Nem por isso, todavia, as determinações raciais deixam de serimportantes; e em certas situações as mais importantes. Comfrequência elas conferem sentidos especiais e complementares asdeterminações político-econômicas.

A luta de classes, realidade primordial..., adquire indubitavelmente característicosespeciais quando a imensa maioria dos explorados está formada poi uma raça e osexploradores pertencem quase que exclusivamente a outra (14).

Em resumo, ,a sociedade capitalista revela uma capacidadeexcepcional para controlar, disciplinar, reprimir ou dar novassoluções aos antagonismos e conflitos sociais de base racial. Mas j»afltem mostrado capacidade especial para resolver as situações deantagonismo e conflito segundo os interesses das raças discrimina-das, oprimidas ou subalternas. Daí os frequentes desdobramentos eirrupções de tensão é violência racial.

Ocorre que os antagonismos e conflitos sociais de base racial estãosempre imbricados nas condições económicas e políticas nas quais aspessoas, os grupos e as classes sociais se definem e atuam comoprodutores, cidadãos, trabalhadores assalariados, operários, campo-neses, burgueses etc. Mais que isso, as manifestações de tensão eviolência racial têm as suas raízes nas contradições po»ico-econômicas que caracterizam a sociedade capitalista. Os valores epadrões de comportamento racial, ou as ideologias e as praticas nasrelações raciais, em geral são mediações sócio-culturais e políticasimportantes no contexto das relações entre classes e subclassessociais, articuladas de modo hierarquizado, em conformidade com asrelações de produção e apropriação. É claro que raça e classe não sereduzem uma à outra; são determinações importantes, que precisamser compreendidas em sua especificidade. Mas seria equivoca eincompleta a interpretação de problemas raciais que não incorporas-se a condição das pessoas na estrutura de classes da sociedade, sejamelas classes sociais em formação, amadurecidas ou em situação decrise.

(14) José Carlos Mariátegui, Ideologia y política. Empresa Editora Amauta, Lima,1969, p. 61.

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CIP-Brasil. Catalogacão-na-FonteCâmara Brasileira do Livro, SP

II 7e

78-0841

lanni, Octávio, 1926—Escravidão e racismo / Octávio lanni. — São Paulo • HU-

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17. e 18. -326.098117. -330.1518. -330.122

índices para catálogo sistemático:1. Brasil: Escravidão : Política 326.0981 (17. e 18)2. Brasil : Racismo : Sociologia

301.450981 (17.) 301.4510420981 (18.)3. Capitalismo : Economia 330.15 (17.) 330.122 (18.)4. Escravidão: Política 326 ( 17. e 18.)5. Escravidão : Sociologia 301.4522 (17.)

301.4493 (18.)6. Racismo : Sociologia 301.45 (17.) 301.451042 (18.)