escolas hermenêuticas e a interpretação da lei

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7/25/2019 Escolas Hermenêuticas e a Interpretação Da Lei http://slidepdf.com/reader/full/escolas-hermeneuticas-e-a-interpretacao-da-lei 1/126 Marcelo Mazotti As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei A Manole

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Marcelo Mazotti

As EscolasHermenêuticas

e os Métodos deInterpretaçãoda Lei

AManole

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As Escolas Hermenêuticas e os

Métodos de Interpretação da Lei

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Marcelo MazottiGraduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.Aperfeiçoou-se em Direito Público pela Universidade de Coimbra,

Portugal.Vencedor do Prêmio Itaú Prof. Silas R. Gonçalves pelamonografia “Hermenêutica e métodos de interpretação da lei”.

Atualmente é professor da Faculdade Anhanguera e mestrando naFaculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USR E advogado e

membro da comissão de Direito Constitucional da OAB-SP

As Escolas Hermenêuticas e osMétodos de Interpretação da Lei

Manole

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Copyright  © 2010 Editora Manole Ltda., por meio de contrato de coedição com o autor.

Minha Editora c um selo editorial Manole.

Projeto gráfico e editoração eletrônica: Departamento editorial da Editora ManoleCapa: Dep artam ento de arte da Editora Manole

 Im agem da capa: istockphoto

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

 ________________________ (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) _____________________ 

Mazotti, Marcelo

As escolas herm enêu ticas e os méto dos de interpr etação da lei / Marcelo Mazotti. — 

Barueri, SP : Mi nha Editora, 2010.

ISBN 978-85-98416-9 0-8

1. Direito - Filosofia 2. Direito - Metodologia

3. Hermenêutica (Direito) I. Título.

09-07518____________________________________CDU-340.132.6 ______________________ 

índices pa ra catálogo sistemático:

1. Herm enêu tica jurídica : Direito 340.132.6

2. Interpretação jurídica : Direito 340.132.6

Todos os direitos reservados.

 N enhum a part e de ste livro poderá ser re pro duzid a,

 por qualq uer proc esso , sem a perm is sã o expressa dos ed itores .

É proibida a re produção po r xerox.

Edição-2010

Editora Manole Ltda.

Av. Ceei, 672 - Tam boré

06460-120 - Barueri - SP - Brasil

TeL: (11) 41 96 -6 00 0- Fax: (11) 4196-6021

wwv.manole.com.br 

[email protected] 

Impresso no Brasil

Printed in Brazil 

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DEDICATÓR IA

Dedico esta obra ao meu estimado mestre e

amigo Luís Rodolfo A. de Souza Dantas, que me

iluminou durante meus primórdios acadêmicos,

ensinando-me a olhar para o Direito e para a vida

como quem olha para si mesmo.

Mmha sincera gratidão.

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“ Para ser grande, sê inteiro: nada

Teu exagera ou exclui.Sê todo em cada coisa. Põe quanto és

No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

Brilha, porque alta vive.”

Ricardo Reis

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Sumário

Apresentação..................................................................................IX

Prefácio.........................................................................................XIII

Introdução....................................................................................XVII

Capítulo I - O que é a Hermenêutica?................................................ I

1. Or igem da palavra e s ignificado............................................................................. 1

1.1. Hermenêutic a com o dizer ....................................................................................3

1.2. Hermenêutica co mo explicar ...............................................................................5

1.3. Hermenêutica com o traduzir .............................................................................7

2. Hermenêutica, interpretação, compreensão, explicação e aplicação - traços

 particulares.........................................................................................................8

3. Lógica, retórica e hermenêutica...........................................................................12

4. Escolas hermenêuticas e a hermenêutica jurídica............................................17

Capítulo 2 - Escolas Hermenêuticas..................................................191. Escola bíblica........................................................................................................... 19

2. Escola filológica.......................................................................................................20

3. Schleiermacher e a hermenêutica universal........................................................21

4. Escola histórica........................................................................................................24

4.1. A consciência histórica e a simpatia universal em Dilthey............................27

5. Escola fenomenológica ......................................................................................... 29

5.1. A compreensão do ser........................................................................................ 29

5.2. O mundo da vida em Husserl............................................................................315.3. Martin Heidegger e a hermenêutica ontológica existencial....................... 34

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VIII As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

5.4. O horizonte do tem po e a projeção interpretativa preconceituosa do ser 

na fenomenologia de Gadamer................................................................... 38

6. Paul Ricoeur e os sistemas de in te rp re ta ção.....................................................42

Capítulo 3 - Herm enêutica Jurídica................................................................... 44

1. O problema da identificação e escolha dos métodos interpretativos ........44

2. O estado de direito, o ideal do justo e o raciocínio judiciário em diálogo

com a hermenêut ic a .....................................................................................46

3. Método gramatical ou literal ............................................................................... 53

4. Método exegético e o espírito do legislador .......................................................55

5. M étodo lógico-s istemático .................................................................................. 59

6. A analogia e as in terpre tações extensiva e restrit iva........................................63

7. Método histórico....................................................................................................68

8. Método teleológico................................................................................................72

9. Escola da livre pesquisa (libre recherche) e o método científico....................75

10. Método sociológico..............................................................................................77

11. Escola do direito livre (Freies Rechts)...............................................................78

12. A tópica jurídica em Theodor Viehweg........................................................... 87

13. A lógica do razoável de Luis Recaséns Siches..................................................93

Capítulo 4 - Estudos In terpreta tivos Ju ri sp rude nc iai s.................................98

1. A união homoafetiva - REsp n. 820.475/RJ..................................................100

2. A gratuidade do ensino público super ior e as taxas de matrícula - RE n.

500.171-7/GO.............................................................................................104

3. A Emenda Consti tucional n. 15/96 e a criação de municípios brasileiros -

ADIn n. 2.240/BA......................................................................................112

C onclusão...............................................................................................................I 18

Referências Bibliográficas..

/

Indice Alfabético-remissivo

120

123

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Apresentação

A presente obra nasceu de um grupo de estudos formado por acadêmicos

de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie sob o manto intelectual

do professor Luis Rodolfo A. de Souza Dantas, cujo objetivo primordial era

responder a mais simples questão: o que é hermenêutica?

Durante os anos de graduação, nas mais diversas disciplinas, constante

mente o aluno se vê diante de inúmeras interpretações da lei, sem que, contu

do, haja um compromisso intelectual por parte dos intérpretes em discutir os

fundamentos de tais interpretações.

Para alguns, o Direito é uma ciência neutra, imparcial e até mesmo matemática, na qual impera o falso argumento de que “a lei é a lei”, e o texto legis

lativo deve ser automaticamente aplicado. O comando é simples, direto e não

aceita questionamentos.

Outros preferem pensar o Direito como “o domínio do justo”, sustentando

a existência de um elo inquebrantável entre a moral e a legislação positivada.

Para essa concepção, em certa medida ingênua e romântica, uma determinada

interpretação da lei é sempre correta quando o sentido alcançado é justo; pois

a justiça é o valor maior do Direito, devendo prevalecer em toda situação. Jádizia a velha máxima: “se tiveres que optar en tre a justiça e a lei, opta pela pri

meira!” O problema em que esbarram, contudo, é o de definir exatamente o

que é o “jus to” e o “injusto”, uma vez que as próprias leis são criadas com essa

finalidade.

De qualquer modo, sejam por essas ou po r outras razões aqui não expos

tas, pudemos notar durante os anos de graduação que as interpretações da lei

eram justificadas, na maioria dos casos, de forma insuficiente ou tendenciosa.

Ciente de que a atividade hermenêut ica estava presente em todas as disci plinas do curso e que não poderia estar presa a arbitra riedade dos intérpretes,

ou resumir-se a um joguete de especulações efêmeras, tornou-se tarefa daquele

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X As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

grupo descobrir o que era a hermenêutica, o que, ao final, revelaria também

como opera a realização do Direito em si.

Falar em interpretação não é apenas especular acerca de teorias abstratas.

Antes, é o próprio modo com que o Direito se manifesta e concretiza-se nas

relações sociais e na atividade jurídico-decisional.

 Nos pr imeiros anos do novel séc. XXI, após inúmeros eventos e debates,

os trabalhos desenvolvidos pelo grupo de estudos instigaram ainda mais a mi

nha curiosidade e meu prazer pelos estudos hermenêuticos. O encontro da

interpretação com a lógica, a retórica e a filosofia foram essenciais para que se

 promovesse uma compreensão daquilo que seria a he rm enêutica como uma

das chaves operacionais do Direito.

Após esse primeiro momento de abertura e posicionamento crítico, pas

sou-se a um estudo analítico e calcado principalmente nas obras clássicas in

ternacionais, o que me revelou, com certa decepção, a superficialidade com que

o tema vinha sendo tratado pela doutrina jurídica nacional, ainda arraigada

em pressupostos reducionistas daquilo que é a atividade interpretativa.

Com o términ o do grupo de estudos, encetei uma monografia que ade n

sasse os temas pesquisados e que pudesse articular as relações existentes entre

os métodos interpretativos da lei e a hermenêutica filosófica. Sem ter a pretensão de esgotar o assunto, algumas obras elementares foram estudadas, assim

como analisadas as correlações das escolas filosóficas com a doutrina jurídica,

a fim de revelar a origem dos diversos métodos de interpretação.

Verificou-se então que a filosofia promovia uma abertura do horizonte

hermenêutico para além da atividade de interpretação textual e que o olhar

interpretativo não deveria estar apenas no texto, mas também no sujeito-in-

térprete.

 Nesse ponto, houve uma guinada substancial nos trabalhos. O reconhecimento de que o intérprete também é parte integrante do universo herme

nêutico e responsável direto pelo resultado interpretativo alcançado cham ou a

atenção para uma pesquisa de fundo acerca dos preconceitos e das ideologias

 presentes no próprio intérpre te e como elas inf luenciam na in terpretação.

Aquela simples e modesta pergunta sobre o que é hermenêutica passou

a exigir um cuidado especial na medida em que demandava a compreensão

de conceitos lingüísticos, históricos e ideológicos que, muitas vezes, passavam

despercebidos, devendo ter seus com ponentes clarificados a fim de se encontrar com maior precisão e densidade aquilo que era a atividade hermenêutica.

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Apresentação XI

Promovi um a releitura de todos (ou quase todos) os métodos interpre tati

vos jurídicos a fim de confrontá-los e revelar seus substra tos e mitos inerentes.

Minha pergunta passou de “o que é hermenêu tica?”, para “quais são os mé to

dos interpretativos e por que escolher um em d etrimento de outro?”

Ao final de anos de t rabalho e prazerosa pesquisa, compreendi que a ati

vidade judiciária no pós -mo derno desconfia e indaga-se constantemente sobre

o verdadeiro sentido das leis, a fim de tornar justa e legítima a aplicação da

norma interpretada ao caso concreto.

Todavia, para se alcançar o conteúdo da norma, é preciso realizar uma

leitura hermenêutica que promova a escamoteação dos véus lingüísticos e

ideológicos que cobrem o ordenamento jurídico e os próprios métodos inter

 pretativos, especialmente quando verificamos a existência de preconceitos que

cercam a formação humana e histórica do hermeneuta, contaminando-se a

apreensão do conteúdo textual.

Por isso, optei por escrever a obra de um modo que, inicia lmente, resgata a

semântica originária do vernáculo “herm enêu tica”, desde a sua origem no mito

grego Hermes, até as acepções mais modernas do vocábulo, confrontando-o

sempre com seus pseudossinônimos e encontrando seus pontos de contato

com a lógica e a retórica.A partir disso, trilhei um intenso esforço histórico-filosófico para loca

lizar as escolas que estruturaram a hermenêutica na modernidade, partindo

dos embriões da escola bíblica no séc. XVII, passando pela filologia, pela his

toriografia e pela fenomenologia, sempre com uma análise sistemática de seus

 pr incipais precursores: Schleiermacher , Husserl, Heidegger, Gadamer e, mais

recentemente, Paul Ricoeur.

 No terceiro capítulo, investiguei o modo como a hermenêutica se inseriu

no raciocínio jurídico e, por meio dos métodos interpretativos, buscou solucionar as aporias judiciárias de adaptação (aplicação) do texto legal aos litígios

 judiciais.

 No úl timo capítulo, procu rei verificar com o os métodos in terpreta tivos

estavam sendo empregados nos principais Tribunais Superiores brasileiros,

selecionando alguns leading cases que comprovassem ou refutassem as conclu

sões da pesquisa teórica realizada.

Ao final, encerrei os estudos consciente de que mais do que meros proce

dimentos e regras instrumentais, os métodos hermenêuticos revelam em seusubstrato as verdadeiras ideologias que fo rmam o intérprete, com suas visões

acerca do Direito, do Estado, do político e das axiologias do justo.

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XII As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

Tal pesquisa, após ser concluída em forma de monograf ia, teve a honra de

ser contemplada com o primei ro lugar do prêm io “TGI Itaú - Professor Silas

Rodrigues Gonçalves” da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo

em novembro de 2006. Dita menção, faço eu apenas para agradecer minha

nobre e amada alma mater   que, com muita seriedade e dedicação, instiga o

trabalho de pesquisa de seu corpo discente e promove o academicismo como

 poucas em terras brasilis.

Deixo aqui, em homenagem a essa instituição de ensino que me é tão que

rida, um breve versículo insculpido em seus muros que marcou a minha vida

como acadêmico e como cidadão:

“conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”

Jo 8. 32

Marcelo Mazotti

agosto de 2009.

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Prefácio

Luís Rodolfo de Souza Dantas1

Extremamente honrado fiquei com o convite para prefaciar a obra  As Es

colas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei, do professor Marcelo

Mazotti. O autor, de maneira densa e acessível, produz iu importante cont ribui

ção às letras jurídicas, ao enfren tar as problemáticas atinentes aos mecanism os

de interpretação, aplicação e integração do direito, por meio de investigação

 percuciente das pr incipais caracterís ticas das mais marcantes escolas herme

nêuticas e hermenêutico-jurídicas. Nesse sentido, não se furtou o auto r a assu

mir posicionamentos que rivalizam com tendências hermenêuticas lastreadas

nas tradições de estrito legalismo ou dogmatismo, ao afirmar em determina

dos momentos do trabalho uma forma de compreensão do direito assimilável

ao que denominei em ou tro contexto de “hermenêutica plural”.

A expressão acima transcrita, longe de querer instaurar uma nova con

cepção de hermenêutica jurídica, pretende tão somente sintetizar o que diag

nostiquei como opção por parte de determinados estudiosos e operadores do

direito - sobretudo do período pós-Segunda Guerra Mundial - de modos deinterpretação e aplicação do direito de caráter não sectário, mas abertos a for

mas de complementaridade entre métodos de interpretação outrora conside

rados antagônicos.

1Mestre e doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professor da Faculdade de Direito e do curso de pós-graduação em Direito Empresarial da

Universidade Presbiteriana Mackenzie. Chefe do Núcleo Temático de Filosofia e Teoria Geral doDireito da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Autor e coautor de

ensaios e livros, como  Hermenêutica Plural (Martins Fontes, 2002) e coordenador da obra Justiça 

Plural (Manole, 2006). Advogado.

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XIV As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

De fato, exemplifico o que acabei de afirmar com os postulados mais re

levantes da Escola da Exegese, do séc. XIX. Para essa escola, tão fortemente

vinculada aos valores liberais-burgueses plasmados na legislação francesa da

época napoleônica, os princípios da legalidade e da separação de poderes eram

concebidos como verdadeiros dogmas a serem ortodoxamente observados.

Destarte, na fase pós-absolutista da história política francesa, a interpretação

literal constituía pa ra os juristas dessa escola o procedim ento pelo qual o intér

 prete desentr anharia a vontade do legislador da expressão juríd ica, impedin

do-se qualquer forma de entendimento que ultrapassasse ou ficasse aquém da

estrita interpretação normativa.

Desse modo, o exegeta - mo rmente o magistrado - não teria condições,

assim pensavam os adeptos da escola, de macular a legalidade, ao servilmente

compreender o direito à luz da suposta vontade ou mesmo intenção de um le

gislador onisciente, pelo fato de haver produzido um direito (v.g., Código Civil

francês de 1804) que conteria em si todas as respostas para as problemáticas

 jurídicas de ontem, hoje e amanhã. Assim, a ideologia polí tico-jurídica dessa

escola tinha na interpretação literal o meio pelo qual a controvérsia judicial

concreta e atual deveria ser sintonizada a uma vontade pretérita, mesmo que

em prejuízo da solução mais justa ou equân ime para o litígio.Embora a Escola da Exegese tenha por vezes considerado a possibilidade

de utilização excepcional do método lógico-jurídico de interpretação, imperava

a defesa da interpretação gramatical do direito como mecanismo que, em ter

mos kantianos, não produziria enten dimen to novo, mas analiticamente apenas

extrairia o significado contido nas palavras da lei. Portanto, qualquer out ra for

ma de compreensão cujo significado ficasse além ou aquém dos significantes

verbais seria considerada espúria, mesmo que fosse mais fiel à equidade.

Sem querer aqui esgotar a análise de outras importantes característicasdessa escola, tomo a liberdade de elegê-la como destacado paradigma de um

tipo de mentalidade jurídica identificadora exclusivamente do direito com a

lei, que em momentos históricos distintos receberá outras roupagens, todas

a apresentar em comum o que Miguel Reale tantas vezes criticou: o reducio-

nismo normativista.

Esse fenômeno, embora não obrigatoriamente atrelado ao processo literal

de interpretação, como bem demonstram as concepções hermenêutico-jurídicas

de Hans Kelsen, contidas em sua clássica obra Teoria pura do Direito, veda um pluralismo hermenêut ico que tem - tal com o Luiz Recaséns Siches assim enten

dia - o mund o da vida como ambiente onde a normatividade está inscrita.

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Sumário

Capítulo 12 - Contratos Marítimos............................................................133Intr odução.......................................................................................................133Contratos de afretamento marítimo........................................................... 133

Estadias e sobre -e st ad ia s.............................................................................. 134Cont rato de transporte marítimo de carga ...............................................134

Conhecimento de transporte marítimo (B/L).................................... 135Funções e características do B/L........................................................... 135B/L nominativo e “à ordem” ................................................................ 136Conhecimento limpo e conhecimento sujo........................................ 136Cláusula de reserva .................................................................................136Sujeitos do B/L.........................................................................................137Frete maríti mo.........................................................................................138

Questões para discussão................................................................................139

Capítu lo 13 - Jurisdição M arít ima.............................................................140Introdução.......................................................................................................140Águas na cionai s............................................................................................. 140Tribunal Marítimo.........................................................................................141

Jurisdição.................................................................................................. 142Competências e atribuições...................................................................142O processo perante o Tribunal Marítimo..........................................143Penalidades e efeitos do processo e das decisões proferidas

 pelo Tribunal M arítim o......................................................................143Questões para discussão............................................................................... 144

Referências Bibliográficas............................................................................. 145

índice Remissivo............................................................................................ 148

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Introdução

Quando o jurista enceta seu trabalho matinal, a primeira pe rgunta que ele

faz ao abrir o seu código é: o que quer dizer a lei? Qual é o seu sentido? O que

ela exige, obriga, impõe?

Estudar uma no rma não é simplesmente proceder ao encontro da vontade

do legislador (emissor), pelo jurista (receptor), em u ma superfície textual uní-

voca. Mais do que representar um mandame nto preciso e determ inado, a lei é

fixada em um medium  essencialmente polissêmico, ambíguo e histórico, que

é a linguagem humana.

 Na seara jurídica , além da imprecisão ineren te à linguagem, os sentidosdos termos utilizados na lei adquirem uma conotação técnico-científica que

muitas vezes confunde-se e confronta com o seu uso vulgar, emb araçando ain

da mais a investigação de seu conteúdo semântico.

Por isso, hodiern amente, realiza-se um a separação entre o texto da n orm a

e o conteúdo normativo, uma vez que a lei pensada abstratamente como um

ente jurídico ideal pode não encontrar uma manifestação lingüística precisa e

adequad a para revelar seus mandamen tos, valores e fins.

Além do mais, o trabalho do jurista não se resume a descobrir o sentidoda lei em razão de sua p rofund idade lingüística ou a buscar a vontade do legis

lador que a emanou. A lapidação da no rma revela-se em um labor incansável

e tortuoso de pesquisa que sempre se remete a maior aporia do Direito: o que

é a justiça?

A lei não é simplesmente um comando que visa a uma determinada con

duta. É, além de tudo, a forma mais primitiva e criativa do ho mem de estabele

cer e desenvolver a com unid ade dent ro de parâm etros de justiça e equidade.

Há um elo indissolúvel entres as leis, o Direito, o Estado e a Justiça, quese querem ver concretizados no plano da realidade por meio dos enunciados

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XVIII As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

normativos. Afinal de contas, para que servem as leis e o Direito senão para

 promover a igualdade e a dign idade dos homens em sociedade?

O problema é que não há um consenso em relação ao mo do de se mate ria

lizar tais ideais em uma sociedade multi facetada e recheada de interesses diver

gentes. Apesar da concordância no plano axiológico abstrato, isso não ocorre

na sua tradução para a pragmática, tornan do o Direito um campo de disputa.

Assim, de um lado, há a atribuição legal do Poder Legislativo em elaborar

as leis. De outro, o Poder Judiciário deve vigiar e atuar no cumprimento de

las. E, alheio às instituições estatais, os cidadãos são os detentores originários

dos legítimos interesses, mas sua pluralidade infinita acaba por inviabilizar um

 projeto polí tico único que respeite todas as suas sensibil idades.

Podemos visualizar então um quadro no qual uma ciência lingüística im

 precisa, inserida em um contexto polí tico-sociológico confli tante, é o meio es

colhido para a realização de um valor indecifrável, a justiça.

Como resolver tamanha problemática?

É com esforço hercúleo que o jurista, face a tais adversidades, busca incan

savelmente a preservação do Direito e da paz social por meio dos ens inamentos

da hermenêutica.

Para lograr êxito em seu labor, foram criados diversos métodos interpreta-tivos ao longo dos séculos que prop un ham a mais eficiente instrum ental idade

 para clarificar os sentidos da lei e com preendê- la da melhor fo rm a possível.

O estabelecimento de um cânon de regras direcionou os intérpretes,

cada qual em seu tempo, sob determinada ótica historicamente justificada.

Leis foram positivadas e decisões judiciais foram formuladas tendo-se em

vista os ditames dos critérios de interpretação. Mas então surgiu a pergunta:

qual é o melhor método hermenêutico? Qual conduz ao real encontro com

a verdade?Em nossa pesquisa, pudemos encontrar mais de uma dezena de métodos

que se diziam legítimos a alcançar o posto maior na hipotética escala hierár

quica dos métodos hermenêuticos. Porém, nenhum deles explicava o porquê.

Decidimos então investigar profundamente cada um para que pudésse

mos c i o final proferir um juízo de valor sobre esses, vislumbrando encontrar

verdades e equívocos, pontos de convergência e de complementaridade e, an

siosos pelo encontro científico com o original, desatar os nós presentes na in

terpretação.

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Introdução X IX

Qual foi o nosso espanto quando, para além desse impulso pretensioso,

depara mo-no s com um elemento que até então não era evidenciado ou posto

em xeque: a figura do intérprete.

Tomando a hermenêu tica como um sistema de regras e critérios objetivos,

o intérprete esconde suas reais intenções sob esse véu de imparcial idade e mera

instrumentalidade. Mal sabíamos que a interpretação, longe de ser um m étodo

científico e puramente racional, está recheada de ideologias e fetiches que a

todo momento determinam a compreensão, direcionando-a a um projeto de

valores e fins camuflados pelo hermeneuta .

Ficam assim os juristas de braços atados frente a uma situação que não

 podem escapar: a lei não subsiste sem a at ividade interpretat iva, mas seus mé

todos estão corrompidos ideologicamente.

Somente uma pesquisa de fundo sobre a hermenêutica, realizada desde a

origem do vernáculo, passando pelas escolas filosóficas e jurídicas uma a uma,

 poderá nos mostrar como trabalha r com essa ciência indispensável ao juris

ta, sem que mergulhemos nas armadilhas do reducionismo e nas ilusões da

imparcialidade que, pouco a pouco, vão se revelando como um complexo e

intrincado sistema de afirmação de valores e preconceitos.

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CAPITULO

O Que é a Hermenêutica?

I . Origem da palavra e significadoAs raízes da palavra hermenêutica provêm do verbo grego hermeneuein 

e do substantivo hermeneia, ambas relacionadas com o mito do deus grego

Hermes (Mercúrio na tradição romana). De acordo com a mitologia, Hermes

era o filho de Zeus incumbido de levar a mensagem dos deuses do Olim po aos

homens, uti lizando-se de suas velozes asas para a execução de tal tarefa.

O mais interessante, entretanto, era que o deus mensageiro deveria tr adu

zir e interp retar as mensagens dos deuses para os mortais, um a vez que a línguade um era inacessível ao outro. Sendo assim, Hermes acabou por inventar a

escrita e a linguagem para aperfeiçoar a com unicação en tre eles.

A mitologia grega é extremam ente simbólica para revelar-nos a semântica

originária do vernáculo que estudamos. Ao deus Hermes não cabia a tarefa

 pura e simples de transmitir ou repassar a mensagem divina, ao contrário , de

veria ele realizar um papel ativo em sua tarefa, devendo tr ans form ar algo inin

teligível em inteligível, compreensível.

De acordo com Richard E. Palmer1, a dita transformação ocorreria em trêsdimensões: na enunciação, na explicação e na tradução.

Uma mensagem, quando emitida, está assentada em um médium   (escrita,

fala, imagens etc.) e exigirá do receptor uma percepção tal que recepcione o

dito conteúdo da melhor forma possível. Quer dizer, aquilo que foi expresso

exigirá do receptor uma verdadeira tradução da mensagem para que este possa

captar o conteúdo daqui lo que se declarou. Nesse caso, a tradução não se refere

especificamente a uma atividade de cognição de um a língua estrangeira, como

se utiliza corriqueiramente o termo. Antes, refere-se à transferência, à trasla-

1 Hermenêutica, p.24.

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2  As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

dação do conteúdo de algo que foi manifestado em um medium  e ali está sedi

mentado, para a esfera de conhec imen to do receptor, utilizando-se dos códigos

de linguagem que sua inteligência alcança.

Além disso, tal conteúdo deverá ser explicado na medida em que a com

 preensão do sent ido não se dá de forma direta e clara. Ainda que a linguagem

 parta de uma convenção de sentidos en tre os homens, o fato é que diversos

sentidos são ambíguos, dúbios e tal convenção se faz apenas de m odo superfi

cial, já que não há um acordo absoluto do sentido específico de todos os te rmos

e orações. Se isto ocorresse, seriamos hábeis a elaborar um dicionário preciso e

 perfeito que dispensaria defini tivamente a in terpretação.

 Neil MacCorm ick nos re lembra uma interessante si tuação em que a men

sagem e os símbolos utilizados são claros e precisos tanto para o emissor qu an

to o receptor. Todavia, o próprio contexto da mensagem provoca a dúvida.

Se eu vejo u m s inal de “não fum ar” na sa la em que es tou en trand o e apago o

m eu c igarro antes de en trar nessa sa la , eu de m ons tro co m preen der o s inal e agi r

de acordo com ele . Sem qu alquer e lem ento de d úvida ou tenta t iva de resolver essa

dúv ida, eu imed iatam ente ap reen do o que é necessário. ( ...)

[ . . . ] pode haver uma ocasião particular em um encontro no qual se falemmuitas l ínguas em que eu es te ja t ra jado formalmente (usando um smokingy

como se fala em francês). E o sinal de não fumar pode estar escri to em inglês

(no smoking). Então , eu poder ia pa ra r por um m om ento pa ra m e pe rgun ta r s e o

s inal exige que eu m ude de rou pa e vis ta algo men os form al , em vez de me abs ter

de fumar. Pensar acerca dessa dúv ida e resolvê- la op tand o de form a razoável po r

um a das visões do que o texto exige é “inte rpr etar” [ . . .] .2

Em outro aspecto, quando se transmite uma mensagem, pode-se inter pretá- la de modo a conferi r uma “performance” à enunc iação da mesm a, re

cheando-a de estilizações particulares, como um músico faz diante de uma

 partitu ra.

Alcança-se assim, três dimensões fundamentais e estruturais da palavra

hermeneia conforme nos ensina Palmer. Estudemo-las separadamente.

2 Retórica c o estado de direito>p. 161-2.

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O Que é a Hermenêutica? 3

l.l. Hermenêutica como dizer 

O primeiro sentido de hermeneuein é  exprimir, afirmar ou dizer. Tal fun

ção está estritamente relacionada com a tarefa de Hermes em dizer aos homens

as mensagens do Olimpo.

Interessante constatar que o vocábulo grego está próximo da forma lati

na serrno  (dizer), e que ambas as expressões foram largamente utilizadas pela

Igreja Católica na Idade Média. A função maior do sacerdote sempre foi a de

anunciar as Escrituras Sagradas, proclamar a palavra de Deus a todos os ho

mens e convertê-los ao catolicismo.

 Note-se que dizer   uma palavra não é o mesmo que explicar  ou debater  a

mesma. A tarefa sacerdotal era nitidamente a de se utilizar da vivacidade da

linguagem oral para proferir belos e emocionados sermões, a fim de provocar

a adesão das massas aos dogmas da fé cristã. Não se deve olvidar que segundo

os ditames da Igreja Católica, a própr ia razão divina era vista com o inacessível

aos olhos dos mortais, cabendo a estes o papel de meros ouvintes dos sermões

 profer idos pelos homens legi timados por Deus.

A sacralidade das palavras do Senhor não era acessível aos ouvidos dos

mortais, singelos pecadores que lhe deviam submissão. Somente os sacerdotes,representantes do Senhor na terra, conseguiam alcançar os ditames sublimes

dos Céus por meio das Escrituras e da oração, podendo assim, comunicar aos

homens a Sua vontade.3

A posição de passividade absoluta do receptor aqui é clara e manifesta,

não havendo espaço para indagação, dúvida ou suspeições. Aquilo que era dito

deveria ser encarado como verdade incontestável e absoluta, já que aquele que

dizia era o Deus Todo-Poderoso.

Por sua vez, as artes humanas, em especial a música e as artes cênicas,sempre se utilizaram da hermenêutica para o fim de interpretar um texto e

conferir-lhe uma performance, um estilo.

Quando um maestro se depara com um a sinfonia de Mozart, obviamente

não a executará de forma mecânica, lendo a pa rtit ura como quem lê números.

O uso de diversas técnicas musicais permitirá ao maestro intensificar deter

minado trecho, relevar outros e exaltar a qualidade de certas harmonias que

conferirá à execução um estilo próprio.

3 Nota-sc que, aqui, tamb ém se encontr a a atividade da tradução ao lado do (lizeryda mesma for

ma como deveria Hermes traduzir as mensagens dos deuses do Olimpo aos mortais.

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4 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

O mesmo se poderá dizer de um ator que tem em sua frente uma peça de

Shakespeare. Como dizer todas aquelas palavras mortas em um a folha de papel?

Somente o recurso à interpretação o permitirá escolher uma forma de atuar e

não outra.

Isso nos remete a uma questão interessante: não é verdade que enquanto

lemos parece que ouvimos vozes interiores? E quando lemos um romance poli

cial não nos parece que a voz nos guia de forma diferente de quando lemos um

 jornal? E a leitura de um diálogo? As vozes dos que dialogam não são distintas?4

Isso nos remete à questão da inseparabilidade do sentido de um texto das

entoações auditivas confer idas pela sua leitura. Ler e ouvi r provocam sensações

extremamente diferentes.

De acordo com Palmer, enqu anto a escrita imortaliza uma obra e confere-

lhe estabilidade para as gerações vindouras, expressar um a ob ra confere ao in

térprete um espaço aberto de infinitas possibilidades de atuação que atribuem

vida ao texto, provocando sensações distintas nos ouvintes conforme a perfor

mance realizada.

Pode-se ler a Odisséia de Homero com grande exaltação e orgulho, como

 pode-se chorar constantemente os in fo rtún ios aos quais o heró i se submete . O

certo é que ler a Odisséia nunca será igual a ouvir a Odisséia.Segundo o au tor em análise “escrever uma língua é 'um a alienação da lín

gua' relativamente à sua vivacidade - é um Selbstentfremdung der Sprache - um

autodistanciamento da fala”5. O recurso à escrita é carente em termos de ex

 pressão emocional, por isso, toda vez que se lê, ut il izamos as vozes interiores

 para recuperarm os aquela força perdida da expressão oral.

Para os juristas, tal aferição é verificada cotidianamente nos fóruns ao se

defender u ma causa. A distância que existe em termos de expressividade e viva

cidade entre um recurso de apelação escrito e um a sustentação oral é enorm e,mesmo que não levemos em consideração os recursos retóricos de cada um

deles, o que agravaria tal distância.

Sendo assim, o mu ndo da escrita e o mu nd o da fala encont ram seus limi

tes e suas qualidades próprias que não podem ser ignorados. A perform ance de

um discurso pode revelar muito mais do que o texto o faria. Ou não será assim

que os políticos conseguem convencer o eleitor mesmo quando se utilizam

unicamente de lugares-comuns?

4  p a l m e r  , Richard E. Hermenêutica, p.27-8.

Ibidcm, p.26.

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O Que é a Hermenêutica? 5

1.2. Hermenêutica como explicar 

Essa é a utilização moderna e mais usual da palavra hermeneuein , que se

refere ao ato de determinar e clarificar o sentido de algo.

Segundo alguns autores, encontramos o primeiro uso da palavra herme

nêutica na obra de J. C. Danhauer , publicada em 1654: Hermenêutica sacre sive 

methodus exponemdarum sacrarum litterarum . O teor da obra se referia aos

métodos de interpretação da Bíblia que, como veremos posteriormente, foi a

forma precursora da Hermenêutica.

É sabido que antigamente, a Igreja Católica, para bem organizar e auxiliar

na difusão do Texto Sagrado, escrevia obras de exegese bíblica nas quais se in

seriam comentários sobre suas passagens, determinando explicitamente quais

eram as verdades divinas de cada uma delas.

Esse modelo exegético, aos poucos, foi dando espaço a métodos que pri

vilegiavam formas mais racionais de interpre tação de textos, com critérios de

terminados (filológicos, históricos etc.), que surgiram principalmente com os

filósofos protes tantes e com o  Aufklarung  (iluminismo) alemão.

Embora a exegese bíblica estivesse vinculada a uma interpretação orien

tada à afirmação de dogmas religiosos, importa destacar a necessidade de se pensar e refletir sobre um texto, de modo a perceber-lhe o real conteúdo .

A compreensão de uma obra nunca se dá de modo evidente. Apreender

um a mensagem denota um esforço de lapidação das palavras e de suas articu

lações que envolve o auto r do texto (com suas intenções e sentidos originários),

o contexto em que se dá a comunicação (como e onde se compreende) e o

 próprio intérprete, com toda sua carga cul tura l de pré-concei tos e expectativas

 já formuladas em seu pensamento antes mesmo da leitura.

O simples verso de Shakespeare: “Ser ou não ser: eis a questão!” pode provocar (e sempre provocou) um universo infinito de interpretações respaldadas

em origens semânticas, contextualizações históricas da obra, análise das pai

xões do autor, até e lucubrações filosóficas existencialistas, niilistas, psicanalíti-

cas etc., que buscam explicar seu sentido da forma mais verdadeira possível.

A busca do sentido, aliás, é algo que sempre inquietou a mente dos hermeneu-

tas. Qual o sentido que se busca: aquele que o autor quis imprimir? O sentido que a

força do texto possui em si? Ou o sentido da verdade que o texto proporciona?

É importante verificar que encont rar o sentido não é o mesm o que enco ntrar a verdade. Na maioria dos casos, estamos a procurar o sensus orationum  

e não a veritas  dos textos. Isto porque quem transmite uma mensagem pode

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6 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

estar cometendo um equívoco, contando uma mentira ou apenas realçando

um estilo. Senão vejamos:

O poeta é um fingidor.

Finge tão com pletamen te

Qu e chega a f ingir que é dor

A do r qu e deveras sente.

E os que lêem o que escreve,

 Na do r li da sen tem bem ,

 N ão as duas que ele teve ,

Mas só a qu e eles não têm .

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse com boio de corda

Qu e se cham a o coração.6

Em seu aclamado poema, Fernando Pessoa nos descreve de forma magistral o espírito e as dores que movem os poetas em seus labores literários. Mas

seriam mesmo os poetas fingidores? Estariam os mesm os fingindo ao escrever?

Ao ser poeta, Fernando Pessoa não estaria fingindo o próprio fingimento? Ou

o sabor e o deleite que os versos nos provocam estão no encontro de sentimen

tos com o Belo, mais do que com a veracidade do descrito?

Emb ora o cam po das artes seja mais aberto e interpretativo que os demais,

a mesma questão se apresenta naqueles campos do conhecimento nos quais a

verdade é o seu própr io escopo, mas que em seu sentido absoluto (da verdade),talvez nunca se alcance.7Isso nos relembra a dicotomia filosófica entre o apa

rente e o verdadeiro que é sempre utilizada para justificar um pensamento em

detrim ento dos demais.

6  p e s s o a , Fernando. Ficções do interlúdio, m a r t i n s , Fernando Cabral (org.), p. 100.

7Nietzsche ressalta o impulso tirânico da filosofia em busca da verdade: “A vontade da verdade,

que ainda nos fará correr não poucos riscos, a célebre veracidade que até agora todos os filósofos

reverenciaram [...]. O problema d o valor da verdade apresentou-se à nossa frente - ou fomos nós

a nos apresen tar d iante dele?M. Mais adia nte ,“Reconhecer a inverdade como condição de vida: istosignifica, sem dúvida, enfrentar de maneira perigosa os habituais sentimentos de valor; é uma

filosofia que se atreve a fazê-lo se colocando, apenas po r isso, além do bem e do ma l'’. Além do bem 

e do mal: prelúdio a uma filosofia dofuturoy p.9-11.

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O Que é a Hermenêutica? 7

As próprias escolas hermenêuticas que se formaram ao longo dos séculos in

cutiram aos métodos pregressos o caráter de aparência do sentido que aquele po

deria alcançar, ao passo que o novo método criado t inha ao lado de si a verdade.

 Não cabe à hermenêutica determ inar o que é a verdade e o que é equívoco.

O sentido enco ntrado deve ser justificado ora pela intenção do autor, ora pela

forma como o intérprete analisa e enxerga o conteúdo. Há quem se refira ainda

à força própria do texto, como se esse possuísse vida autônoma face aos sujei

tos criadores e interpretativos, conferindo significado a si mesmo.

A discussão é extensa e será feita em momentos op ortu nos , sempre dentro

do que cada escola hermenêutica propõe. O que se torna claro é que a inves

tigação dos sentidos de um texto significa incursionar em esferas subjetivistas

mais do que em estruturas objetivas como se poderia supor. O encontro de

dois mun dos (autor e intérprete) proporciona um ambiente de descoberta ex

trem amente frutífero do qual surgiria o novo ou um reencontro revelador com

o velho, de modo a contribuir para o caráter humano e dinâmico de nosso

aprendizado.

1.3. Hermenêutica como traduzir 

A função de traduzir um texto torna-se explícita quand o se trata da co m

 preensão de uma língua estrangeira. É o que Herm es fazia quando traduz ia as

mensagens divinas para a linguagem dos homens.

Entretanto, pode-se dizer que há tradução mesmo quando texto e intér

 prete dominam o mesmo idioma.

 Não há di ferença estrutural de apreensão do conteúdo de um discurso

quando ele é escrito em língua materna ou estrangeira. Todo idioma, inde

 pendente de sua denominação, é um repositório cultura l que nos remete acertas qualificações, por exemplo, históricas e regionais. Entender o subst rato

de det erm inad o idioma, seus vocábulos e suas expressões próprias, é essen

cial na tarefa da compreensão.

Em  Memórias do subsolo, de Dostoiévski, o personagem principal nos diz

em suas tortuosas e ásperas elucubrações que: “na terra russa não existem im

 becis, isto é no tór io ; é nisso que nos di st ingu imos de todas as demais terras

alemãs.”8

8 Memórias do subsolo, p.59.

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8  As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

 Nesse caso, o termo terras alemãs tratava-se de uma expressão popular da

Rússia oitocentista, cujo s ignificado seria o de terras estrangeiras, como nos re

lata o tradu to r em nota de rodapé. Grave equívoco seria o de considerar o texto

em sua literalidade, sem considerar as peculiaridades históricas da linguagem

utilizada pelo autor.

É interessante também l embrarm os do personagem de quadrin hos criado

 por Goscinny e Uderzo - Asterix, o gaulês. Em suas aventuras com o compa

nheiro Obelix, não raro eles se deparavam com tropas romanas que, ao ver os

 bravos gauleses e cientes da surra que levariam destes, exclamavam com grande

 pavor: “Por Júpiter!!!”.

Os amedrontados soldados romanos utilizavam tal expressão para mani

festar seu pedido de socorro ao seu deus maior, Júpiter (Zeus na tradição gre

ga), como quem pede misericórdia ao único que pode salvá-los do infortún io.

Em razão de tal elemento histórico, deveríamos traduzir, em um mun

do ocidental majoritariamente cristianizado, os clamores romanos por: “Meu

Deus!” ou “Salvai-me Jesus!”? Ou a expressão “Por Júpiter!” é suficiente para

expressar o discurso romano e toda a carga emotiva?

As questões da tradução, vistas nos exemplos anteriores, fornecem-nos

elementos extremamente ricos para a compreensão de um discurso, estrangeiro ou não, atendo-se sempre às significações que o uso de uma língua pode

 possu ir dentro de seu amplo universo de comunicação .

2. Hermenêutica, interpretação, compreensão, explicaçãoe aplicação - traços particulares

A hermenêutica, de um modo geral, sempre foi vista como sinônimo de inter

 pretação, compreensão. Poucos são os autores que se atentam aos traços diferencia-dores dos vocábulos e que buscam uma definição própria para cada um deles.

Desde a Antiguidade, os autores empregavam o termo interpretação  para

se referirem à análise de textos e à investigação de sent idos de um discurso em

geral. Se verificarmos o sentido desse substantivo nos dicionários modernos,

ele nos conduzi rá às ideias de: explicação ou declaração do sentido de algo; re

 presentação de teatro; execução de uma música. Já o termo intérprete, por sua

vez, além de se referir àquele que realiza a interpretação é tam bém quem traduz

algo de um idioma para outro.9

9 f e r r e ir a , Aurélio Buarque de Holanda.  Novo dicionário da língua portuguesa. 2.ed. Rio de Janeiro,

 Nova Fronteira, 1986.

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O Que é a Hermenêutica? 9

Ora, os sentidos encontrados de interpretação são os mesmos que dis

corremos ant erio rmente em relação à hermenêutica: dizer, explicar e traduzir.

Qual seria a diferença entre ambos?

Ao que tu do indica, o vocábulo hermenêutica , apesar de ter raízes na Anti

guidade, apenas começou a ser utilizado recentemente, a part ir do surg imento

dos estudos de interpretação bíblica no séc. XVII. Sua utilização seria pratica

mente a mesma do termo interpretação, como sinônimos, indicando a ideia

fundamental de clarificação de sentido de um texto.

Dessa forma, vários autores conceituam a hermenêutica como a arte de

interpretar, ou como a ciência cujo objeto é a determinação do sentido de um

texto. A verdade é que hermenêutica e interpretação possuem um substrato

semântico comum que faz referência a dizer, explicar e traduzir.

 Não poderíamos deixar de citar que, ao longo do desenvolvimento das

escolas hermenêuticas, cada uma delas emprestou um sentido próprio ao vo

cábulo em questão. Asseverar que a hermenêutica de Schleiermacher é a mes

ma de Husserl seria um erro crasso. Entretanto, não se deve olvidar que existe

uma raiz comum que une as diversas correntes hermenêuticas, na medida em

que as indagações filológicas, históricas, fenomenológicas, entre outras, sem

 pre buscam alcançar o sent ido de um discurso, cada qual com sua metodologia próp ria.

Assim, tanto aquele que busca nas origens históricas de um evento, como

quem explora as intenções da mente de um autor, está sempre ao encalço de

um sentido.

Hodiernamente, em virtude da grande quantidade de escolas e méto

dos que se formaram, alguns autores, principalmente aqueles da área ju

rídica, passaram a conceber a hermenêutica como uma ciência que visa à

sistemati zação dos método s de int erp ret ação 10, con ferin do à mesma umcaráter organizador das técnicas existentes, na busca de um estudo mais

racionalizado.

10 Segundo Carlos Maximiliano» “a hermenêu tica é a teoria científica da arte de inte rpre tar” e a

“hermenêutica jurídica tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para

dete rminar o sentido e o alcance das expressões do Direito”. Hermenêutica e aplicação do Direito,

 p. 13. Já para Luís Roberto Barroso, “A Herm enêu tica jur ídica é u m domín io teórico, especulativo,cujo objeto e a formulação, o estudo e a sistematização dos princ ípios e regras de interpretação do

Direito”. Interpretação e aplicação da Constituição: fun damentos de um a dogmática constitucional 

transformadora, p. 103.

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10 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

 Não esposamos tal dou tr ina. Para nós, tan to o te rmo hermenêutica quanto

interpretação podem ser utilizados como sinônimos na seara jurídica, uma vez

que, no campo do Direito, a utilização de ambas se refere a uma pesquisa de sen

tido da norma, sem maiores conseqüências teóricas e dogmáticas daí advindas.

Por outro lado, o mesmo não ocorre 110  campo da filosofia. Ao longo de

décadas, diversas escolas hcrmenêuticas-filosóficas distinguiram interpreta

ção, hermenêutica, compreensão e explicação, sendo necessário o rigor con

ceituai.

O romantismo alemão, por exemplo, considerava que a compreensão era

 própria das ciências do espíri to (Geisteswissenchaften), enquanto a explicação

estava ligada às ciências da natureza ( Naturw issenchaften ). O filósofo francês

Paul Ricoeur nos expõe tal distinção, dizendo que a explicação, para aquela

doutrina, referia-se à compreensão de fatos observáveis, causas e efeitos, leis

gerais e processos hipotético-dedutivos. A compreensão, por out ro lado, impli

cava exper imentar um outro sujeito, tom ar conta to com essa alteridade em um

fenômeno comunicat ivo.11

Para Ricoeur, esses conceitos não devem ser levados ao extremo, isolando

uma atividade da outra. De acordo com seus estudos, a compreensão se con

substancia na unidade intencional do discurso (ênfase no locutor) e a explicação na estrutura analítica do mesmo (ênfase na enunciação). Dessa forma,

apesar de expressarem polos distintos, compreensão e explicação trabalham

dialeticamente no processo da interpretação.

Um outro traço conceituai deve ser traçado em relação ao termo com

 preensão, cujo sent ido está ligado à ideia de percepção e entendimento de algo,

isto é, o modo como o sujeito apreende determinado objeto e o toma para

si. Não faremos aqui uma digressão à gnoseologia para verificar a precisão

dos mom entos de compreensão e os de interpretação da mente humana, masconstataremos com Gadamer que a interpretação se revela como uma forma

explícita da co mp reensão12, ou com o diz Richard Palmer, dá ênfase ao aspecto

discursivo13.

11 c o s t a , Miguel Stadler Dias da. Sobre a teoria da interpretação de Paul Ricoeur , p.42.

 Nas palavras do au to r alemão: “o r oman tism o reconheceu a unidade interna de intelligere e ex- 

 plicare. A interpretação não é um ato posterior e ocasionalmente complem entar à compreensão.

Antes, compreender é sempre interpretar, c, por conseguinte, a interpretação e a forma explícitada compreensão. [...] Esses três momentos devem perfazer o modo de realização da compreen

são.” Verdade e método I: traços fundamentais de um a hermenêutica filosóficay p.406.

13 Hermenêutica, p.30.

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O Que é a Hermenêutica?

Mas ainda há um quarto vocábulo: a aplicação. Nessa, a ideia de concre-

tude se faz presente de forma incisiva, denotando algo que deve ser trazido ao

mundo real, em contraposição àquilo que reside e permanece no pensamento.

O termo aplicação foi utilizado, sobretudo , nas escolas hermenêut icas jurídicas,

referindo-se a uma interpretação que não se restringiria apenas a pensar, refletir

ou teorizar um entendimento acerca de um texto legal. A lei, expressa no orde

namento jurídico e discutida em um processo, deve sempre conduzir a um a de

cisão concreta, isto é, a um a sentença judicial que aplica a no rm a em questão.

Todavia, embora o termo pareça estar longe das esferas subjetivas da com

 preensão e da interpre tação, a fenomenologia tra tou de aproximá-los para des

crever a aplicação como um mom ento fundamental da própria compreensão,

no que foi seguido pelas correntes jurídicas mais modernas.

Isso porque a pretensa separação absoluta entre o interpre tar e decidir

concretamente não pode se perpetuar. O pensamento moderno, apoiado

na filosofia e no desenvolvimento da psicologia e da psicanálise, é cons

ciente de que o pen sar é direciona do pelos interesses do indivíduo , ou seja,

quando ele busca compreender um discurso, ele o faz com vistas a alcançar

algo.

Essa prede term inarão do sujeito em querer saber algo para algo condiciona o processo interpretativo. Trata-se das expectativas e dos preconceitos do

sujeito intérprete.

Qu an do alguém faz a leitura de um texto, antes m esm o de iniciá-la, já terá

realizado inconscientemente algum juízo de valor sobre o mesmo, seja por

que já conhece o autor ou o assunto, seja porque mantém uma expectativa de

sentidos sobre ele, como quem diz: quero ouvir “isto” nesta leitura, ou preciso

resolver “tal” problema.

Isso é ainda mais claro quan do se trata da hermenêu tica jurídica. Quan doum juiz interpreta um caso e aplica uma lei, não o faz pela mera análise fac

tual e sua correspondência normativa. Ao se debruçar sobre uma lide, todo e

qualquer juiz já possui uma enorme carga de pré-conceitos e expectativas, que

se traduzem em seu modo de enxergar o justo, em seu aprendizado teórico,

suas ideologias, sua experiência prática etc., que influenciam no modo como

alcançará a decisão.1'1

11Ver a esse respeito, o texto de Eduardo C. B. Bittar, “Hans Georg Gadamer: a experiência herme

nêutica e a experiência jurídica”. In:  b o u c a u l t , Carlos Eduardo de Abreu & r o d r i c í u e z , José Rodri

go (orgs.). Hermenêutica plural: possibilidades jusfilosóficas em contextos imperfeitos , p.181-201.

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12 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

A aplicação, apesar de parecer um momento posterior e alheio à com

 preensão, guarda com esta uma relação dialética desde o início.

Assim, evidenciam-se as peculiaridades existentes entre interpretar, expli

car, compreender e aplicar, demonstrando que há um fio condutor que as une

no singular movimento interpretativo que o sujeito faz com o texto na busca

 pelo entender .

3. Lógica, retórica e hermenêutica

 Na med ida em que tomamos contato com uma ideia, u m texto ou mesm o

um objeto material, estamos a percebê-lo e compreendê-lo por meio de juí

zos mentais que nos conduzem à expressão (clarificação) daquilo que estamos

captando.

 Nesse sent ido pouco rigoroso de nosso “entender as coisas”, as ciências ló

gica, retórica e hermenêu tica se entrelaçam e coabitam muitas vezes o mesmo

espaço, ainda que cada uma possua seu objeto de estudo específico.

Esses ramos do conhecimento se inserem dentro do conceito amplo de

filosofia que é gênero de todas as espécies em questão. Vale dizer, sob o manto

da busca do conhecimento não se pode isolar uma ciência da outra, mas apenas indicar quais pontos as tornam distintas, de modo que as mesmas não se

excluam, mas se complementem.

Em relação à lógica, tom ada aqui, inicialmente, em seu sent ido tradicional

de estudo dos modos como se realizam os juízos de pensamento e suas cone

xões, as distinções poderiam ser observadas de forma clara, principalmente

em razão da óptica nitidamente formalista e instrumental que lhe conferiu

Aristóteles.

Para o mestre estagirita, a lógica se constitui em um método que leva à pureza do pensar e à certeza da retidão do raciocínio alcançado. Tal método se

traduz no silogismo. O modelo da premissa maior, premissa menor e conclu

são cond uz a uma certeza que permite ao homem pensar melho r.15

A compreensão, estudada pela lógica clássica, está relacionada a um modo

ideal de raciocínio, o qual apon ta o cam inho (método) que o pensam ento deve

realizar para tornar-se válido. Nota-se, aqui, que o escopo da lógica silogística é

a validade do pensamento e não a verdade daquilo que se infere.

15 Exemplo: premissa maior: as árvores têm folhas; premissa menor: o eucalipto e uma árvore;

conclusão: o eucalipto te m folhas.

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O Que é a Hermenêutica?

O m odelo dedutivista e studad o po r Aristóteles está alicerçado sob um

 p rim um veru m   inquestionável, impe dindo qualquer indagação de conteú

do a seu respeito. Um silogismo evidentemente falso, sob o ponto de vista

da realidade, pode ser perfeitamente válido como raciocínio lógico. Por

exemplo:

Premissa maior: As bananas têm asas.

Premissa m eno r: João é uma bana na.

Con clusão: João tem asas.

A lógica em si, não explica o que são bananas , porque elas têm asas e nem

quem é João. Ela apenas ensina suas conexões lógico-formais.

Sendo assim, nesse sentido de lógica formal, pouco temos a relacioná-la

com a hermenêutica, já que aquela não se atenta para o conteúdo do que foi

discorrido, mas apenas para as conexões formais dos enunciados.

Somente a partir das perspectivas da lógica moderna, como a lógica do

razoável ou as lógicas do concreto, poderemos aproximá-la com os aspectos

fundam entai s da hermenêutic a de entender e torn ar claro.16

A ciência jurídica, diga-se de passagem, por muito tempo foi estudadacomo um modelo silogístico puramente formal, no qual a lei se consubstan

ciaria na premissa maior, a lide, na premissa menor e a sentença judicial, na

conclusão. Exemplo:

Premissa m aior: art . 121, CP: “M atar alguém.”

Premissa men or: Carlos ma tou Maria.

Con clusão: Carlos com eteu o crim e do art . 121 do CP.

O trabalho do operador do Direito, nesse caso, seria extremamente me

cânico, na medida em que apenas teria de aplicar um preceito previamente

estabelecido e inquestionável à sua situação fática correspondente, gerando as

respectivas conseqüências jurídicas previstas na lei.

 Não tardou para se pe rceber que o labor jud icial não pode ser reduz ido

a esta atividade formal. Primeiramente, porque a conexão entre o fato e a

16 Em seu conceito de Lógica, Alaôr Caffé Alves salienta sua perspectiva formal e material, tratando de harmonizá-las: “Definição: lógica é a ciência das leis ideais do pensamento e a arte ou

técnica de aplicá-las corretamente, a indagação (busca) e a demonstração da verdade.”  Lógica: 

 pensamento formal e argumentação: elementos para o discurso jurídico , p. 134.

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14 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

regra jurídica não é tão simples de se realizar como se supunha. A comple

xidade da realidade e dos sujeitos não permite que a lei preveja em minúcias

caso a caso, ainda mais quando a primeira tem a forma tradicional de uma

hipótese.

Assim, a premissa menor é muito mais rica e dinâmica que a premissa

maior, impedindo que haja uma correspondência perfeita entre ambas.

Um segundo ponto é que a consciência moderna permitiu que se inda

gasse sobre a validade da lei, isto é, sua legalidade ou inconstitucionalidade.

A premissa maior, a qual deveria ser um  prim um verutn , deixa de sê-lo já que

 pode ser questionada no Poder Judiciário. O cr itér io do justo e da legalidade se

entrelaçam para pe rmi tir uma maior discussão a respeito das decisões legisla

tivas, fazendo com que a lógica tradic ional e a aplicação silogística tenham seu

valor relativizado na área jurídica.

A retórica, por sua vez, sempre trilhou traços mais íntimos com a inter

 pretação, havendo um campo comum no qual ambas interagem.

A arte re tórica iniciou-se na Sicília grega, por volta de 465 a.C., e tem sua

origem nos embates judiciários que se travavam naquela época sem o auxílio

dos advogados (profissão inexistente até então) . Com o as pessoas necessitavam

de se defender de alguma forma, foi editada uma obra que visava a ofereceraos litigantes alguns artifícios oratórios e argumentativos, que os levassem a

convencer os julgadores sobre sua inocência ou a dem ons tra r a culpa alheia. O

filósofo Córax (cuja obra descrita leva seu nome) define retórica, pela primeira

vez, com o criadora de persuasão.17

O conceito foi largamente utilizado pela doutrina sofista, a qual influen

ciada pelo relativismo pragmático de Protágoras (“o homem é a medida de

todas as coisas”) pregou, durante décadas, que ao sujeito não cabia conhecer a 

verdade, mas apenas a sua verdade. Vale dizer: as coisas somente são na formacom o cada hom em as veem, não há verdade pura e absoluta.

Seguindo o raciocínio de Protágoras, uma vez que cada um, em sua indivi

dualidade, formula um juízo sobre algo, a única forma do outro compartilhar a

mesma opinião é por meio da retórica, a qual visa persuadir pelo discurso.

Tais pretensões eram claramente contrárias aos ideais platônicos filo

sóficos. De acordo com o mestre grego, o corpo humano seria um túmulo

que guardava as reminiscências da Verdade, somente encontrada no mun

do inteligível (o mu nd o das verdades imutáveis). A única fo rma de se livrar 

17 r e b o u l , Olivier.  Introdução à retórica, p.2.

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O Que é a Hermenêutica?

desse corpo mundano e atingir tais Verdades seria por meio da filosofia e

da dialética.

Longe de tentar convencer alguém a respeito de suas crenças e pensamentos, a

dialética objetivava, de uma forma nobre e elevada, conduzir o homem à verdade,

 por meio de um diálogo justo e aberto, cujas contradições deveriam ser expostas

claramente e cooperativamente, sem o intuito de se encontrar vencedores.

Para Platão, a retórica somente seria utilizada para justificar discursos ló

gicos inferiores, já que a verdade alcançada pela dialética é sempre evidente e

sua superio ridade t riunfa sofre qualquer sofisma.

Aristóteles, posteriormente, viria a conciliar a nobreza platônica com o

 pragmatism o sofista, na medida em que não concebeu a retórica com o uma for

ma de dominação e opressão pelo discurso, mas sim como uma arte de se defen

der - e de defender aquilo que é verdadeiro. Sendo os valores relativos, estes não

 podem ficar desprotegidos dos discursos tirânicos, em vez disso, os bons valores

 precisavam de fortes argumentos para não sucumbirem em um embate.

Desse modo, Aristóteles efetuou diversos estudos que levam a uma efi

ciente retórica condutora de uma persuasão positiva. Obviamente, o mestre

estagirita também fez questão de diferenciar a arte retórica e seus diversos

campos de aplicação, já que os argumentos utilizados dentro de um discurso judic iário possui funções e pe rsonagens diferentes daquele travado por filó

sofos; seus escopos, inclusive, não são os mesmos, modificando claramente a

intenção do retor e como ele se comporta.

Hodiernamente, a retórica foi conceituada como a arte de persuadir pelo

discurso18ou, na auto denom inada  Nova retórica , de Chaim Perelman e Lucie

Olbrechts-Tyteca, como “o estudo das técnicas discursivas que permitem pro

vocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhe apresentam ao

assentimento”19.Pode-se perceber assim que, apesar de todos os séculos de distância entre

a retórica originalmente desenvolvida na Sicília grega e aquela do séc. XXI20, o

cerne desta arte continua a ser a persuasão.

18 Ibidem, p.XIV.

19 Tratado da argumentação: a nova retórica, p.4.

20 Vale ressaltar que com o cientificismo, Descartes passou a repudia r a retórica , pois a considerava

como a arte de falar empolado. O raciocínio cartesiano rigorosamente demonstrativo conduziria

à verdade das coisas, que não perm itiria nem m esmo o argumenta r, tal a evidência e força da con clusão encontrada. Somente com Perelman, no pós-modernismo, e com o relativismo retórico,

foi possível o reencon tro com os term os “verossim ilhança’' e “plausibilidade>>, em contrapos ição a

 busca ferrenha do perfeito pelo racional .

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As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

O que teria então em comum a hermenêutica com a retórica? Em que a

 persuasão seria assimilada com a interp re tação e a compressão? Seria preciso

entender para persuadir? Ou pelo contrário, somente se consegue persuadir

 por meio de uma clara compreensão do assunto?

A resposta quem nos dá é Oliver Reboul, em sua obra  Introdução à retóri

ca. De acordo com o filósofo francês, a retórica possui quatro funções: persua-

siva, heurística, pedagógica e he rmenêu tica.21

Em breve síntese, a função persuasiva estaria ligada à ideia de convencer

um auditório por meio de recursos racionais e emotivos. A heurística estaria

 preocupada com a descoberta dos argum entos , con fe rindo um caráte r de cria

tividade e originalidade ao retor, o qual deveria desenvolver seus raciocínios de

forma clara e coerente (função pedagógica).

Por fim, resta o caráter hermenêu tico explicitado pelo próprio autor:

A le i fund am ental da re tór ica é que o o rad or - aquele que fala ou escreve

 para convencer - n un ca está sozinho , exprim e-se sem pre em conco rdânc ia com

outro s oradores o u em oposição a e les, sem pre em função de ou tros discursos .

Ora, para ser persuasivo, o orador deve compreender os que lhe fazem face,

captar a força da retórica deles, bem como seus pontos fracos. Esse trabalho deinterpre tação é fe ito por todos de m od o mais ou m enos espon tâneo. [...]

Para ser bom orador, não basta saber falar; é preciso saber também a quem

se está falando, compreender o discurso do outro, seja esse discurso manifesto

ou latente, detectar suas ciladas, sopesar a força de seus argumentos e sobretudo

captar o não di to.

[...] N ão se ensin a m ais re tó ric a co m o arte de p ro du z ir dis cursos, m as c om o arte

de inte rpr etá -lo s [...].22

 Nesses moldes, a hermenêut ica se torna uma tarefa essencial do retor, que

deve sempre interpretar o discurso e seu auditório para poder persuadir de

forma mais eficiente.

Isso é evidenciado, por exemplo, na seara jurídica criminalista, em que

o bom advogado deve fazer uma leitura prévia do corpo de jurados antes de

iniciar a defesa do acusado. O uso de um discurso cientificista e puramente

21 Introdução à retórica, p.XVII-XXI.

22 Ibidem, p.XVIII-XIX.

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O Que é a Hermenêutica?

técnico terá pouca adesão caso o auditório seja formado por indivíduos com

 pouca formação escolar. Portanto, o uso de parábolas , ilustrações e ditos po

 pulares certamente surt irá mais efeito, dado o conhecimento mais próximo e

mais acessível.

O contrário ocorrerá, caso se trate de uma demanda altamente técnica e

especializada, por exemplo, uma ação de cartel em determinado setor da eco

nomia. Os argumentos técnico-econômicos terão supremacia sobre os de cará

ter emocional, que pouca força exercerão sobre o julgador.

Assim, com preender um auditório a pa rtir de seus preconceitos e valores

é uma tarefa fundamenta l para a adesão deste. A situação econômica, histórica

e social do sujeito é fundamental na formação de seus juízos, e o retor deverá

trabalhá-los a seu favor.

Logo, a interpretação em âmbito retórico reside na exigência de se entender

a quem  se dirige e como se dirigir a este ente, tendo em vista a adequação de argu

mentos e posturas que serão realizadas em função da análise hermenêutica.

As correlações lógicas, retóricas e hermenêuticas podem muito bem ser

estudadas cooperativamente de modo a propiciar um estudo filosófico supe

rior, permitindo uma melhor compreensão das ideias e do sujeito em si. Pro

cedendo desse modo, adquirirá o indivíduo maior precisão e retidão em suatarefa na busca do conhecimento.

4. Escolas hermenêuticas e a hermenêutica jurídica

Ao que tudo indica, a hermenêutica se iniciou no seio da Igreja Católica

Medieval, a par tir dos comentários realizados pelos eclesiásticos para clarificar

o sentido das passagens das Sagradas Escrituras (muitas vezes obscuros para o

leigo). Não tardou para que outros ramos do saber descobrissem a utilidadedas técnicas de interpretação, fato este que promoveu o desenvolvimento de

diversas escolas hermenêuticas no período moderno.

Restou evidenciado que a interpretação é uma necessidade natural do ser

humano, independente daquilo que está em exame, em razão de seu próprio

caráter discursivo. Encont rar sentidos e atribuir significados é uma atitude rea

lizada a cada mo men to, jun tam ente com o nosso pensar. Foi só preciso que os

exegetas bíblicos construíssem técnicas com tal finalidade, para que os estu

diosos das demais áreas as transformassem em instrumentos aplicáveis à sua própria disciplina.

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18 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

Por uma questào metodológica, partiremos das escolas hermenêuticas

filosóficas para, posteriormente, examinarmos os métodos interpretativos da

lei no campo do Direito. O uso da hermenêutica jurídica tardou um pouco

a aparecer já que os códigos legais mod ernos surgiram somente após a Revo

lução Francesa (final do séc. XVIII) e, mesmo assim, muitas vezes possuíam

disposições expressas que proibiam a interpretação das leis.

Durante muitos anos, as doutrinas liberais exigiram a separação absoluta

entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Não podia haver influência

de um sobre o outro, sendo a independência uma regra de ouro para o sistema.

Somente mais tarde percebeu-se que a hermenêutica poderia auxiliar o

Poder Judiciário, que já não era um poder isolado, mas trabalhava harmoni-

camente com o Legislativo. A lei não era mais um texto claro que expressava

uma rígida vontade parlamentar, mas uma disposição normativa que deveria

ser compreendida pelos juizes para melhor solucionar uma lide e concretizar

os ideais de justiça da sociedade.

Além do mais, o uso da hermenêutica nas ciências jurídicas não só favo

receu o estudo das leis, como também revelou uma faceta importante e vivifi-

cante da hermenêutica antes pouco percebida: a aplicação.

Tradicionalmente, havia uma clara preocupação com os processos com preensivos e interpretat ivos dos textos, não se a tentando à d imensão da aplica

ção. Seu crédito foi apenas descoberto devido à própria finalidade do sistema

 jurídico, que é c riar e aplicar a lei. Veremos em momento oportuno a relevân

cia de tal fato.

Sendo assim, na Era íModerna, as experiências hermenêut icas das diversas

escolas passaram a se influenciar constantemente, criando um ambiente mul-

tidisciplinar e permi tindo enorm es avanços em seus estudos.

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CAPÍTULO 2

Escolas Hermenêuticas

I . Escola bíblicaOs estudos de interpretação da Bíblia foram os primeiros a utilizar o ter

mo hermenêutica para descrever a atividade de investigação de sentido a partir

do estudo de um texto. Não se deve olvidar, todavia, que os clássicos já haviam

 pensado em formas de se apreender o sentido de um discurso, mas davam a

isto o nome de interpretação, e, muit as vezes, a estudavam ju nto com a poesia

e a retórica.

A Escola Exegética, por sua vez, criou uma forma de leitura da EscrituraSagrada que se diferenciava dos modelos conhecidos em seu tempo: o uso de

comentários reais (exegese).

Devido a esse fato, alguns autores acreditam que deva ser feita uma se

 paração técnica fundamental ent re a hermenêutica e a exegese. Isto porque,

apesar da prim eira ter originado a segunda, o modelo exegético se realiza por

meio de comentários, ao contrário da hermenêutica que se traduz em méto

dos e técnicas de interpretação (revelação de sentido). Para esses estudiosos,

a criação de instrum entos que pe rmitem interpretar é claramente diverso daquilo que se considera meio, mas na verdade se constitui com o fim. Em outra s

 palavras, não se pode ria confundir a técnica de interpretação, com o texto já

interpretado.

A diferença entre a exegese bíblica e a hermenêutica moderna se origina

somente com o Iluminismo, principalmente na Alemanha, onde a influência

das correntes protestantes e o racionalismo criaram um ambiente propício

 para a criação de uma herm enêutica mais vinculada à ideia de ciência, de mé

todo, conforme exporemos adiante.Entretanto, não se pode dizer que a exegese bíblica não tivesse uma di

mensão metodológica, já que os comentá rios realizados eram efetuados - e

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20 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

assim deveriam  ser feitos a parti r da leitura literal do texto (sensus literalis) 

de forma que se pudesse clarificar as verdades divinas.

Por outro lado, não se tratava de encontrar um sentido para o texto, de

forma livre e independente. A atividade exegeta possuía um scopus definido: a

 justif icação dos dogmas da Igreja a partir das Sagradas Escrituras.

O intérprete sacro estava então totalmente desprovido de liberdade para

descobrir os sentidos das passagens bíblicas. Mesmo quando eram estudadas

as parábolas - cujas metáforas tornam a atividade hermenêutica mais aberta e

especulativa -, o resultado final deveria sempre traduzir uma unidade dogmá

tica incontesti.

A busca por essa unidade se transformou em um princípio interpretativo

sobre o qual Lutero se debruçou densamente. De acordo com o teólogo, cada

 passagem individual da Bíblia deveria ser entendida em relação ao todo do

Livro (contextus), de forma a revelar uma unidade de sentido para o qual todas

as passagens individuais se direcionavam (scopus). Desta forma, o particular

conduzia e justificava o geral, e vice-versa.

Este movimento circular passou a ser conhecido posteriormente como

círculo hermenêutico, e, até hoje, provoca inúmeras discussões acadêmicas dada

sua estrutura.1A Escola da Exegese bíblica, rigorosamente falando, não criou um método

hermenêutico propriamente dito, tomado aqui no sentido de um sistema de

regras e proced imen tos para a interpretação de um texto. Entretanto, revelou a

necessidade de torn ar claras passagens textuais consideradas obscuras, de difí

cil entendimento para os leitores (no caso, os fiéis), alertando os racionalistas

do séc. XVIII que algo deveria ser feitos para que suas obras também fossem

corretamente interpretadas e compreendidas.

2. Escola filológica

As portas abertas pela teologia bíblica permitiram que inúmeros intelec

tuais do período racionalista-iluminista buscassem um método que permiti

ria um maior entendimento das obras clássicas, relidas avidamente naquela

época.

1Vale ressaltar que este problema já era conhecido pelos rctores gregos, cientes da relaçüo que

deveria haver entre o “ind ividual” e o “tod o” no discurso.

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Escolas Hermenêuticas 21

 Nesse particular , a exegese bíblica era frus trante para tais fins, vez que sua

 pecul ia ridade finalística em justif icar dogmas não permitia seu uso nas artes

 profanas. Outrossim, não era conveniente tratar a he rmenêuti ca de uma forma

universal, já que os próprios teólogos consideravam que a prática interpretati-

va deveria ser reservada aos textos sacros.

Sendo assim, para esses intelectuais sedentos de interpretação, o estudo da

filologia passou a ser a chave-mestra. A ciência das línguas, da semântica dos

vocábulos, das regras gramaticais, da morfologia etc. se demonstrou como a

forma mais racional possível de se alcançar o sentido de um texto.

Pode-se dizer que aqui ainda não se trabalha com uma ciência da inter

 pretação no sent ido rigoroso do termo. As doutrinas não estão claramente

definidas e os filólogos se comunicam com os teólogos com certa frequência.

Os primeiros buscam um conjunto de regras gerais de uma exegese filológica,

 passível de ser aplicada em todas as obras do gênero humano. Os segundos

(teólogos), ainda permanecem firmes em sua tarefa de desvendar a Escritura

Sagrada e unificar o saber ao redor da fé cristã.

3. Schleiermacher e a hermenêutica universal 

Somente com Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher, filósofo alemão do

final do séc. XVIII e início do XIX, a hermenêutica é concebida como um pro

cedim ento universal que visa a interpreta r qualquer tipo de texto, independen

te da ciência a que está adstrito seu conteúdo.

Os pressupostos filosóficos de Schleiermacher que permitem desenvolver

a hermenêutica como u ma ciência, residem na ideia de que no diálogo entre os

homens, a estranheza (Fremdheit ) é um a constante, na medida em que a carga

de vida e as experiências particulares constroem os seres humano s diversos umdos outros.

A existência do eu  e do outro  sempre implica essências diversas que, ao

comunicarem-se , estarão inevitavelmente expressando seus eus  diversos. Nesse

 processo interpessoal , o mal-entendido ocor re com grande probabi lidade . Isso

nos conduz à ideia primitiva de que compreender significa entender uns aos

outros.

A particularidade do eu  e do tu   tem grande influência na doutrina de

Schleiermacher que, contrariando a ordem iluminista da existência de umarazão pura e superior, considera o discurso à luz da subjetividade e do psicolo-

gismo de seu autor. Não há um a razão m aior e única que guia a compreensão,

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22 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

mas somente um modo de enxergar que cada autor se expressa a partir de sua

individualidade.

Desse modo, o filósofo alemão constrói o conceito de hermenêutica uni

versal  (allgemeine Hermeneutik)y uma ciência que busca metodologicamente

a consciência do tu , tendo em vista a resolução de estranhezas e mal-entendi-

dos.

Pela primeira encontramos a ideia de um conjunto de regras (método)

que leva ao entendimento. A hermenêutica não é mais vista em razão de seu

resultado interpretativo (o sentido aferido), mas como uma metodologia que

conduz a este.

E podemos então nos perguntar: e como funciona este método? Como

ele resolve a compreensão do tuyse o mal-entendido é inevitável entre os ho

mens?

Para responder a estas perguntas, Schleiermacher desenvolve uma teoria

hermenêutica alicerçada em dois pilares: a interpretação gramatical e a inter

 pretação psicológica, ou seja, visa a uma le itura do texto do ponto de vista de

sua estrutura semântica e gramatical, como investiga o sentido que o autor

quis ali imprimir.

Devemos nos lembrar de que, em Schleiermacher, o ideal da razão absoluta já foi quebrado. Estamos diante de um iluminismo romântico de tradição

alemã, no qual a objetividade é expulsa em favor da subjetividade.

Sendo assim, o processo compreensivo não pode ser reduzido à estrutu

ra objetiva do discurso (texto), mas deve contemplar, outrossim, sua estrutura

subjetiva (vontade do autor). Na hermenêutica universal, tudo aquilo que nos é

dado objetivamente somente pode ser considerado como uma medida que nos

conduz ao pensamento originário do autor.

A função da interpretação psicológica é justam ente a de retroceder a gênese da mente do tu e encont rar ali o entendimento. “Todo ato de compreensão é

a inversão de um ato do discurso, a reconstrução de um a construção.”2

Verifica-se assim que há uma superioridade do sujeito em relação à obra,

 já que esta serve apenas como estrutura estética. Isso fica ev idenciado quando

imaginamos uma pintura: ela nos fornece diversos elementos, como tonali

dade de cores, luz, posição dos objetos etc., que nos permite deduzir diversos

sentidos acerca daquilo que está exposto.

2 g a d a m e r , Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica,

 p.259.

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Escolas Hermenêuticas 23

Para Schleiermacher, entretanto, esta dedução não é uma operação válida.

Somente podemos deduzir do quadro aquilo que o autor quis dizer com ele,

ainda que não haja um a correlação perfeita entre sua ideia e a obra concretiza

da. Além do mais, compreender um discurso significa alcançar o sentido que o

autor lhe propôs, e não a sua verdade científica.

O ato criativo originário é a busca que a hermenêutica deve traçar. A mente

do autor é o reduto do entendimento e tudo aquilo que foi expresso, somente

conta como estrutura estética.

Entretanto, a interpretação psicológica não trata da diferença fundamen

tal que há entre a produção artística e a não artística, não sendo aquela aplicá

vel a ambas.3

Isso porque a produção artística implica uma dose de genialidade e de

originalidade do autor, não em termos de qualidade do construído, mas em

relação à exclusividade e particularidade da produ ção e, dado esse caráter au

têntico, o artístico não poderá ser apreendido por meio de regras como o não

artístico. Uma vez que o autor desenvolveu sua obra de forma livre, é ele mes

mo quem cria as regras e define os padrões. Somente ele explica a si mesmo,

ainda que a filologia conseguisse alcançar algum sentido.

Sendo assim, a compreensão do discurso artístico necessita daquilo queSchleiermacher chama de adivinhação, ou seja, todo aquele que visa a entende r

o artístico precisa de uma congenialidade para alcançar o sentido. O originário

só é compreensível pelo cooriginário.

Isso somente é possível, pois apesar da estranheza do tu   ser fundamental,

também há dentre os homens u ma carga de experiências comum que os apro

xima e os torna aptos a compreenderem uns aos outros. A partir do m omento

em que possuímos um pouco do outro dentro de nós,  somos capazes de utili

zarmos processos comparativos para tentar adivinhar o que esse outro diz. Acongenialidade, conforme referimos, será então uma forma de transformação

do eu no tu.

É nesse ponto que a experiência hermenêutica se torna universal, pois

apesar de toda estranheza, há também familiaridade entre os homens, o que

 provoca um entendimento comparativo ao que é comum, e adivinhatório ao

que é particular.

Tais estranheza e familiaridade existentes no discurso nos colocará nova

mente diante do círculo hermenêutico, em que se tem um vicioso raciocínio

Ibidem, p.259-60.

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24 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

circular (antes retratado na relação do individual e o todo). Para Schleierma-

cher, a compreensão deve mover-se dentro deste círculo, formado por uma

relação dialética entre o todo e as partes. O retorno de uma parte a outra é

fundamental para que se amplie cada vez mais tal círculo e aprofunde-se a

compreensão.

4. Escola histórica

Com o desenvolvido da filologia e da hermenêutic a românt ica, a historio

grafia encontrou bases sólidas para trabalhar metodologicamente o seu tema

central: a história universal. Seus estudos se alicerçam na pesquisa das correla

ções existentes entre os fatos históricos individuais, de forma que estes viabili

zem uma compreensão integral da história.

Trata-se de investigar o chamado grande livro da vida, cujo saber não pode

ser reduzido ao estudo de momentos particulares, pois estes não se explicam

em si mesmos. Ao contrário, é necessário que os fatos históricos estejam ali

nhados de forma a propiciar uma visão da história como um todo, uma vez

que um conforma o outro. Esta integração deve feita de acordo com a clássica

relação do todo e da parte, já estudada pelo romantis mo no círculo hermenêu tico.

Dessa forma, a historiografia assume uma posição hermenêutica na me

dida em que realiza essa mediação entre o passado factual-individual e o todo-

histórico, descrevendo e interpretando suas relações dialéticas.

A partir de tal concepção, o estudo de um texto não pode mais ser com

 preendido unicamente por meio de seus vocábulos que acabam por limitar

semanticamente os sentidos possíveis, nem ao menos como uma investigação

 psicológica da produção originária do autor. O sent ido do texto deverá serextraído por meio de sua análise metodológica com os nexos históricos mais

amplos, que justificarão as razões de seu existir como tal. O texto é visto como

uma parte, que deve ser lida em razão de um todo (história), dada a relação de

concordância e coerência que os permeia.

Entretanto, ocorre uma problemática de cunho lógico: ao estudarmos o

todo da história não estamos nos aven turando em algo que se constrói a cada

dia, a cada momento? O agora e o porvir imedia to não se tornam históricos a

 partir de suas ocorrências?A história não possui a mesma conclusividade que se encontra na relação

do filólogo com o texto, em que existe um campo de sentidos limitados. Como

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Escolas Hermenêuticas 25

é possível interpretar algo que ainda nâo está definido, que se transforma a

cada dia em algo novo? Como compreender o constante devir ?

Frente a tal obstáculo, Wilhelm Dilthey assevera que a história deve ser

estudada em unidades relativas, ou seja, delimita-se um campo de atuação

hermenêutica que concentre uma unidade de sentidos próprios. Dentro dessa

unidade, serão encontrados conceitos e chaves que somente podem ser escla

recidos dentro de seus próprios critérios de valor, mas que não se distanciam

completamente das outras unidades, já que há um a experiência comu m a to

das elas: a vida.

Da mesma forma que o eu  e o tu  possuem estranheza e familiaridade, as

unidades relativas da história explicam a si mesmas e também conversam entre

si, formando a história universal.

Todavia, não podemos esquecer que as relações entre as unidades não

surgem acidentalmente, nem ao menos poderiam se estabelecer sem um algo

aglutinador que as unissem solidamente. De acordo com Ranke, este “algo” se

traduz em nexos existentes entre os fatos históricos que, por meio de seus su

cessos ou fracassos, tenham alcançado êxito em conferir ao porvir u m sentido

de efeito duradouro.

Segundo Ranke, tais nexos históricos são “cenas de liberdade”4. São espíritos originais e livres que, em dete rminado m om ento histórico, exteriorizam-se

com o auxílio da força e adquir em significado duradouro.

A associação entre força e liberdade constrói um quadro que não se resu

me ao efêmero, mas que se prolonga no tempo modificando e transforman

do a realidade. Estudar a história significa estudar os jogos de forças que nela

atuaram e ainda atuam, estando elas constantemente a provocar as alterações

fundam entai s àquilo que se chama vida.

Prolongando o raciocínio, pode-se dizer que a história adquire um substrato de continuidade  na medida em que essas forças somam-se cada vez que

se manifestam. Vale dizer: estando a história sempre em desenvolvimento, as

forças atuantes das cenas cie liberdades vão sendo depositadas no grande livro

da vida e, ali, permanecem umas com as outras, construindo-se uma tradição

cada vez maior.

É nesse ponto que Droysen faz sérias objeções ao pensamento de Ranke.

Para o primeiro, há um erro metodológico nas considerações desse continuum ,

1 r a n k e , Weltgeschichtey IX, p.XIV apud g a d a m e r  , Hans-Georg. Verdade e método I: traços funda 

mentais de uma hermenêutica filosófica, p.278.

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26 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

 pois uma vez que foram estabelecidas un idades histór icas de sentido, e elas sào

qualitativamente heterogêneas, não é possível efetuar um a simples soma entre

as duas. A ideia da cont inuidade é muito mais formal do que material, já que

os conteúdos não podem ser aglutinados.

Dessa forma, deve-se reconhecer a unidade histórica-universal como re

lativa, sendo apenas uma representação que não impo rta um conteúdo m eto-

dologicamente correto.

Ademais, todo aquele que observa a história está também participando

dela ativamente, já que todo indivíduo está inserido em determinada tempo-

ralidade. Conforme expusemos, o fato de o objeto e o sujeito serem homogê

neos faz com que o pensar sobre o outro seja, na verdade, um pensar sobre

si mesmo, e vice-versa. Deste modo, o sentido de continuidade é visto mais

como uma pré-disposiçâo do pensamento em alcançá-la, do que pela própria

aferição dos fenômenos que ocorrem. É a própria história que busca tal sen

tido, pois, ontologicam ente falando, a história está determ inada pelo saber de

si mesma.

Em outro m omento, Droysen também discorda de Ranke no que se refere

à ideia de história universal como cenas de liberdade. De acordo com Droysen,

a liberdade é um impulso constante dentro dos homens e não possui valorapenas em momentos excepcionais. Para ele, o que mov imenta a história são os

chamados poderes éticos, que se encon tram naqueles indivíduos que se elevam

até os grandes objetivos comuns da vida hum ana e deles participam.

A força ética tam bém possui um substra to valorativo de liberdade, mas o

que se salienta aqui é que o sujeito, em seu atuar na realidade, não está simples

mente expressando sua liberdade singular, mas atuando conjuntamente com o

mundo ético formado pelo coletivo, o que lhe dá a expressividade necessária

 para o devir. Nesse momento, surgirá um problema herm enêutico na medida em que

tais manifestações éticas e libertárias encontram reduto no interior de cada

indivíduo. É apenas no íntim o de cada um que po dem os encontrar o verdadei

ro espírito que guiou a força ética. Como bem expressa o vocábulo, em nossa

vida material, tomamos contato apenas com as manifestações de tais forças,

que são imperfeitas face ao ontológico. Cabe então ao historiador, por meio

da hermenêutica, promover uma leitura das exteriorizações dos fragmentos

da tradição, a fim de alcançar o sentido verdadeiro da história universal e seus poderes éticos e libertários.

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Escolas Hermenêuticas 27

4.1.A consciência histórica e a simpatia universal   em Dilthey

As relações entre a hermenêutica e a filosofia histórica alcançaram seu

apogeu em Wilhem Dilthey (1833-1911). O mestre alemão não só promoveu

estudos densos sobre a herm enêut ica na linha historiográfica, como ainda lan

çou as bases para o pensamento fenomenológico moderno, realizando uma

conexão epistemológica entre essas duas escolas que marcariam visceralmente

os estudos do hom em e da interpre tação no século seguinte.

Em um primeiro momento, Dilthey situa a hermenêutica como funda

mento das ciências do espírito (Geisteswissenschaften) em oposição às ciências

naturais ( Naturwissenschaften). Segundo o filósofo, é imperativo distinguir às

ciências passíveis de um racionalismo demonstrativo, como a física e a sua possi

 bilidade de comprovação causai, daquelas ciências em que tal inteligência não é

viável dado que seu conteúdo é fatalmente complexo e relativo, como a filosofia

e a literatura.

Sendo assim, a hermenêut ica somente se presta ao estudo das Geisteswis

senschaften., na med ida em que realiza a compreensão das expressões da vida do

homem. As Naturwissenschaften, por o utro lado, não necessitam ser interpreta

das, mas sim plesmente explicadas. Trata-se de um a distinção teórica marcantena dou trina de Dilthey, pois separa abissalmente a explicação da compreensão,

colocando a primeira em um plano de elucidação da natureza e a segunda

com o apreensora do espírito hum ano s e suas manifestações.

Ainda que tal distinção seja radical e não tenha vigorado de form a incon-

testada até os dias atuais, o fato é que Dilthey promoveu um apro fundamento

dos estudos hermenêuticos ao colocá-lo como base das ciências do espírito

e, consequentemente, desenvolvendo uma metodologia interpretativa da alma

do hu ma no e das concepções do mundo.Como um filósofo da vida, Dilthey acreditava que não se podia pensar

 por meio de conceitos ou categorias externas à vida, assim como não se pode

colocar o raciocínio em um plano supostam ente superior, separado e afastado

dela. Em sua obra Teoria das concepções do mundo , o mestre alemão dem ons

tra como toda a tentativa de se desenvolver um sistema filosófico absoluto e

imutável sucumbiu em razão da ambição de se colocar o pensamen to acima da

realidade, como se ele pudesse dar um salto metafísico para além do humano ,

divinizando a atividade racional.A própria história se incumbiu de demonstrar como as concepções do

mundo são efêmeras e relativas. Desde a época das campanhas de Alexandre, o

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28 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

Grande, a vida colocou aos olhos dos gregos uma diversidade de novos povos,

culturas, costumes e religiões que despertaram o ceticismo e a dúvida qu anto a

certeza do saber absolu to filosófico.5

O conhecimento histórico é fundamental na medida em que relativiza o

saber e anula toda pretensão de validade universal que a filosofia e, por conse

qüência, a hermenêutica, busca conferir ao pensamento. Nas palavras do autor:

Perante o olhar que abarca a Terra e todo o passado esvanece-se a validade

abso luta de qu alqu er form a singu lar de vida, de consti tuição, rel igião ou filosofia.

Por isso, a formação da consciência histórica destrói mais radicalmente do que o

 p a no ram a do an tagon ism o dos sis te m as a fé n a vali dade univ ersal de qua lqu er

f ilosof ia que ten ha p re tendid o expressar a conexão cósmica de m od o conv incente

me diante u m a conexão de conceitos .6

O relativismo histórico imposto por Dilthey importa aceitar que a vida

não é somente um a exteriorização de atos que podem ser interpretados. Antes,

a vida é uma dimensão de sentido interior do ser humano pois, a partir do

mo me nto em que este se insere na vida, com ela com unga e co-habita, confor

mando-a e conformando-se, de modo a suspender a relação sujeito-objeto.Para realizar a leitura da vida é preciso tam bém ler a si mesmo, haja vista

que somos aquilo que a vida nos faz; esta última, por outro lado, é apenas

aquilo que nós concebemos como tal. Esta relação dialética exige que a leitura

hermenêutica não se faça em termos de uma simples compreensão, mas de

uma autocompreensão.

 Nesse pon to, importante frisar que para Dilthey o ser é histór ico e, por

isso, a autocompreensão não se faz a partir da introspecção (olhar sobre si

mesmo), mas sim, por meio da leitura histórica do homem. Para interpretá-lonão se deve olhar inte rnamente, mas sim, olhar para toda a temporal idade em

que o ser está inserido a fim de extrair-lhe um sentido.

Historicidade, nota-se bem, não é sinônimo de passado. O olhar histórico

ressalta o caráter temporal e relativo do horizonte em que o indiv íduo se insere,

mui to mais do que a referência a acontecimentos pretéritos.

Desse modo, a metodologia herm enêutica de Dilthey exige uma inte rpre

tação dos horizontes em que se inserem os sujeitos, para que, com a relativiza-

5 d i l t h e y ,Wilhem. Teoria das concepções do m undoy p. 15.

6 Ibidem, p. 110.

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Escolas Hermenêuticas 29

ção das diversas visões de mundo, possa-se selecionar os melhores e mais fortes

sistemas de pensamentos, sem conferir-lhes, contudo, o adjetivo de absolutos.

Sem embargos, a fim de que o hermeneuta abandone as concepções de

vida a que está preso, de modo a debruçar-se livremente sobre o universo da

experiência histórica, é preciso que se utilize da simpatia universal, cujo term o

se relaciona com a ideia de que a compreensão livre de desejos e preferências

somente pode se dar por meio da sabedoria do amor.

A simpatia (uma forma de amor) é um a condição fundamental do conhe

cimento e, consequentemente, da interpretação. Aquele que ama está aberto

 para novos conhecimentos e novas experiências, não se re traindo para o es

tranho de mo do a fechar-lhe as portas e negar passagem. A simpatia universal

 permite uma herm enêutica livre onde vicejam sent idos autênt icos desprovidos

de preconceitos.

Uma vez que a interpretação deve ser guiada para a compreensão do ho

mem (ser histórico), deve-se tom ar cuidado com os limites que seu horizonte

lhe impõe, rejeitando ou admi tindo posições em razão das qualidades morais e

sent imentai s que, ao fim e ao cabo, estão inexoravelmente ligadas à sua relativa

concepção de vida. Por isso a importância do caráter de abertura e liberdade

que propicia a simpatia universal.O próprio círculo hermenêutico de Dilthey é histórico e assim deve ser

tratado. O sentido do todo somente pode ser aferido a partir do sentido das

 partes, cada qual apresentando sua ind ividual idade histórica. Sendo assim,

cada experiência da vida pode proporcion ar um sentido ao todo, dem ons tran

do que o sentido não se faz de modo aritmético e calculista como se fosse uma

soma de partes. Apenas um evento, em toda a sua densidade de significados, é

capaz de alterar o sentido do todo e expandir-se sobre as partes.

Desse modo , a relação todo e parte possui a mesma es trutu ra que a com  preensão e a autocom preensão, lançando as bases para uma pesquisa de cunho

ontológico que será o traço fundamental da fenomenologia moderna.

5. Escola fenomenológica

5.1. A compreensão do ser

As indagações propostas pela historiografia e pela filosofia em termos deum a hermenêutic a da autocom preensão e superação das tradições do tempo,

somente pud eram ser mais bem elaboradas com o surgimento da fenomeno-

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30 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

logia. Iniciaremos seus estudos com a doutrina do mestre alemão Husserl, na

qual se enco ntram os questionam entos fundadores dessa disciplina, para então

 procede rm os às lições de Heidegger e Gadamer.

Traremos à tona apenas as linhas mestras desses estudiosos, que reputa

mos com o referências indispensáveis a qualquer estudo fenomenológico, mes

mo porque o assunto é denso, tortuoso e não poderia ser tratado de forma

analítica em razão do espaço e dos objetivos desta obra.

Ressaltamos que, em nosso trabalho, os estudos da fenomenologia buscam

dem onst rar como a hermenêutica abandona definitivamente o seu conceito de

método para adquirir um conceito de compreensão do ser.

 Não mais se vislumbra uma técnica ou um conjunto de regras a serem

aplicadas a um discurso a fim de extrair-lhe uma razão. A busca do sentido,

na fenomenologia, adquire um valor muito mais profundo, na med ida em que

supera a dicotomia sujeito e objeto, em que o p rimei ro lança um olhar sobre o

segundo e retira-lhe determinadas propriedades.

O que está em jogo na fenomenologia não é busca do sentido real, origi

nário ou essencial de algo a parti r da interpretação que o sujeito faz desse algo,

atrib uindo-lhe sentido de forma predicativa. A investigação fenomenológica é

ontológica, pois busca responder à questão do sentido do ser visto em sua pró  pria existencialidade, não como sinônimo de realidade, de uma coisa que está

no mundo e pode ser empiricamente constatável. O ser (não como um ente,

mas como existência) manifesta-se no mundo em que vivemos por meio das

coisas que aqui estão postas (o ar, a terra, o hom em , a cadeira etc.). Entre tanto ,

este ser reside em uma dimensão out ra que não esta nossa realidade palpável,

e somente pode ser alcançada por meio de uma fenomenologia que busque o

ontológico.

Resumindo: na fenomenologia, o sentido do ser não é trabalhado como osentido de algo que é, mas sim o próp rio é.

Portanto, o compreender do sujeito se torna um compreender-se, pois o

hom em e o seu ato de compreensão tam bém “são” e deverão ser compreendidos.

O compreender volta sobre si mesm o para realizar a sua próp ria compreensão.

É como se sujeito e objeto se fundissem em uma relação original em que o

sujeito passa a ser também objeto e interpreta-se.

Conforme dissemos, escusaremo-nos de apresentar integralmente as

doutrinas dos autores citados e lançaremos apenas os pensamentos fundamentais de cada autor que reputam os necessários para os fins desta obra. Pois,

na fenomenologia, a relação entre as escolas hermenêuticas e os métodos in-

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Escolas Hermenêuticas

terpretativos nâo é direta, já que os estudos fenomenológicos não visam um

método de atribuição de sentido a um discurso (como é próprio da interp re

tação jurídica), mas investiga o sentido do próprio ser, conforme exporemos

a seguir.

5.2.0 mundo da vida em Husserl

Em suas investigações fenomenológicas, Husserl (1859-1938) esteve sem

 pre em busca da resposta que solucionasse as indagações do modo como as

coisas se davam no m undo. O filósofo alemão estava ciente de que as expe riên

cias que os homens realizam na vida se dão de uma forma que lhes propor

cionam um sentido peculiar, mas que poderiam também lhes fornecer outros

sentidos, caso ocorressem de modo diverso.

A posição do ser humano no mundo em conexão com os seus objetos

exteriores se perfaz de uma forma diferente para cada consciência, ou seja, há

uma universalidade ideal de modos como as coisas podem ser experimentadas

sem que uma tenha o mesmo sentido que a outra e, ainda, sem que nenhuma

delas experimen te necessar iamente o real dessas coisas.

Essa problemática é o terreno fértil sobre o qual trabalha Husserl, formulando u ma fenomenologia orien tada para a investigação dos mod os subjetivos

como as coisas se dão.

Essa tarefa herm enêutica perscru ta a ontologia do ser não como ele foi ex

 perimentado pela consciência, mas como ele é em sua consti tu ição originária.

Esse é um problema-chave para a compreensão, pois a parti r do m om ento em

que se investiga algo, está a se investigar a respeito de um a coisa que, de a lguma

forma, já possui um sentido atribuído, u ma vez que já foi experim entado an te

riormente, ou o está sendo pela primei ra vez sob determ inadas circunstânciasque lhe determ inarã o um sentido específico.

Face a essa prisão de temporalidade circunstancial em que o ser que com

 preende encontra -se, a única forma de at ingi r a fenomenologia da consti tu ição

é por meio da desvinculação de toda posição do ser, o que lhe permite enxergar

a subjetividade transcendental dos entes.

Alcançar este universo de sentido originário implica uma consciência tal

que supere toda a posição temporal da intencionalidade, pois toda consciência

 possui uma vida, e toda vida possui seus horizontes . A pa rtir do momento que aconsciência vê o modo como as coisas se dão den tro de um horizonte, este mes

mo delimita-o e atribui-lhe sentido, inviabilizando o ontológico originário.

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32 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

Usemos as palavras de Gadamer para explicar esse raciocínio husserlia-

no:

O fato de que, em tudo, Husser l tenha em vis ta o “desempenho” da sub

 jetiv id ade transcenden ta l corresponde sim p lesm ente à ta refa da in vesti gação fe-

nom enológica d a cons t ituição. Mas o que caracter iza seu verdadeiro propós i to é

que ele não fala mais da consciência e nem cia subjetividade, mas de “vida”. Ele

quer pos ic ionar-se a lém da a tual idade da consciência temporal , e mesmo além

da potencia l idade da cointenção, re t roceden do a té a universalidade do produzir ,

a única capaz de m ed ir a universalidade do prod uzido , is to é, do q ue ela cons ti tui

sua validade.

[...]A ref lexão transcenden ta l , que deve suspend er toda val idez de m un do e toda

al teridade dada de antemão , deve pensar-se a si m esm a com o abarcada pelo m u n

do da vida . O eu   que reflete sabe que vive sob determinações teleológicas funda

men tadas sobre o m un do da v ida .7

Verifica-se assim a necessidade de se compreender esse mundo da vida

(Lebenswelt ) como o solo prévio de toda experiência, o todo em que vivemosenquanto seres. Esse mundo é essencialmente histórico, e dentro de sua histo-

ricidade possui seu horizonte.

 Nesse sentido, o  Lebenswelt   torna-se um tema fundamental da filosofia

husserliana, na medida em que propõe um reposicionamento do pensamento

filosófico ocidental oprimido pelo desenvolvimento positivista e naturalista da

idade moderna.

Seguindo a divisão anteriormente proposta por Dilthey entre  Naturw is- 

senschaften  e Geisteswissenschaften , pode-se dizer que o tempo de Husserl éfortemente marcado pela predominância das ciências naturais que visavam a

tudo fundamentar sob uma ótica empírica e objetivista.

 Na obra  Die Krisis der europaischen Wissenschaften um die Transzen- 

dentale Phànomenologie8, Husserl expõe como o pensam ento hu m an o m o

derno, vislumbrado com as conquistas tecnológicas e científicas, abando

nou o pensar crítico e reflexivo filosófico para apoiar-se em uma razão

7 g a d a m e r  , Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica fúo$óficay

 p.331-3.- Referente ao tema, pode-se encontra r no Brasil a obra trad uzida por U rbano Zilles A crise da 

hum anidade européia e a filosofia.

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Escolas Hermenêuticas 33

matemática, reduzindo o saber à cientifização da técnica. Nas palavras de

Jovino Pizzi:

De fato, ao longo dos últ imos séculos, a ciência aplicou-se em confirmar

sua pos ição hegem ônica , dand o a entend er que seus recursos ser iam indubi tavel

me nte suf ic ientes para a autoco m preensão s istemát ica e abran gente da real idade.

[.. .] Esse m on op ólio acaba sub sti tuin do a reflexão fi losófica pelo estud o dos fatos

empír icos , interpre tados m etodológica e c ient if icamente , con form e os padrõe s da

 p ró p ria ciê ncia.9

Visa-se com isso, a retirar do conhecimento seu aspecto ético e político,

aniquilando a subjetividade do hum ano e pregando u ma intencionalidade do

agir que já não possui cun ho moral, mas está adstrita a uma relação natura l de

causa-efeito.

Para a corrente naturalista, a biologia e a física explicam o modo como o

mundo funciona, conferindo-lhe uma validade científica absoluta, provada e

dem ons trad a faticamente, torn and o inútil a crítica especulativa filosófica. Des

sa forma, instala-se uma crise no pensamento europeu, na medida em que se

reduz a filosofia aos parâmetros científicos:

A controvérs ia em torn o da a t ividade f ilosóf ica chega ao seu apogeu qu and o

a Filosofia passa a aderir a uma racionalidade cognitivo-instrumental , apoiada

nu m proc edim ento f ís ico-mateinático. Este proc edim ento é cons iderado com o “a

Filosofia prim eira”, ign ora nd o sua função crí tica. O p osit ivism o reflete, nesse caso,

um a “sociedade que nã o tem m em ória e nem tem po p ara ref lexionar; à sua luz , o

aspe cto calcu lista sub stitui a ver dad e”10.

Contrariando a mentalidade da época, Husserl apresenta um conceito de

 Lebenswelt   que entrelaça o mundo objetivo com o mundo subjetivo, investi

gando o todo que perfaz a experiência humana não se permitindo um racio-

nalismo unilateral.

O m un do da vida é, portanto , o ponto de partida para a investigação feno-

menológica que explica a subjetividade e determina a objetividade. Esse m un

do não pode ser encerrado em um positivismo naturalista, nem ao menos se

9 O mundo da vida: Husserl e I laber mas, p.29-30.

10Ibidem, p.32.

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34 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

orientar para um subjetivismo psíquico; ele é fenomenológico pois precede a

toda conceituação metafísica e científica.11

O  Lebenswelt   se configura como um todo que não pode ser reduzido ou

fragmentado p or um a ou o utra visão científica parcial. Representa todo o con

texto experiencial da vida e, dessa forma, é um local compa rtilhado p or todos

onde se desenvolve o sujeito dentro de um horizonte comum de intersubjeti-

vidade social.

Assim, a pesquisa fenomenológica trilha o caminho para encontrar esse

solo de realização do sujeito no mun do, sem se apegar a uma dou trin a cientí

fica preconceituosa que não alcança ontologicamente o sentido desse encont ro

de mundo e vida, fundamental para a hermenêutica do ser.

5.3. Martin Heidegger e a hermenêutica ontológica existencial

É preciso mui to cu idado ao se estudar Martin Heidegger (1889-1976). Sua

 pesquisa fenomenológica é extensa e baseada em uma filosofia analítica, o que

impede um resumo preciso de seu pensamento. Em Heidegger, o reducionis-

mo pode fatalmente levar ao equívoco e qualquer tentativa de síntese é, no

mínimo, temerária. Mesmo porque a terminologia heideggeriana é específica,isto é, diversos vocábulos são reformulados ao longo de sua obra a fim de lhes

conferir um sentido que somente são compreensíveis à luz de seu próp rio p en

samento, assim como é o Dasein, a existência, a temporalidade, o ser no mun do

etc.

Além disso, é parte de sua concepção que a com preensão ontológica do ser

abra possibilidades de sentido que exigem sempre uma nova compreensão, ou

seja, a compreensão é permanente na medida em que não há um sentido ori

ginário alcançado e de term inad o que cessa a atividade de pesquisa ontológica.A fenomenologia sempre libera novos horizontes que deverão ser novamente

interpretados.

Por isso mesmo, em escritos posteriores à obra primeira e fundamen

tal, Ser e Tempo  (Sein und Zeit)l2y Heidegger apresenta uma virada de seu

 pensamento, chegando-se a considerar os filósofos modernos a exis tência de

um Heidegger I e Heidegger II, fato este negado por aqueles que acreditam

que a própria abertura constante dos horizontes do sentido do ser implicam

11Ibidem, p.70-1.

12 h e i d e g g e r  , Martin. Ser e tempo: parte 1.

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Escolas Hermenêuticas 35

tal virada, o que não nega a estrutura primária e fundamental da obra Ser e 

Tempo1-.

Sendo assim, estudaremos Heidegger somente naqui lo que é o gérmen de

sua doutrina, a pergunta p rimei ra que conduz toda a sua obra, ou seja: o que é

o ser ? O que significa ser? Qual é o sentido do ser?

 Nas investigações fenomenológicas, fica clara a busca pela compreensão

da essência do ser, em contraposição à análise das aparências. Essa tarefa in-

vestigativa é própri a da ontologia, e por isso mesmo, a fenomenologia deve ser

entendida como um conceito de método. A fenomenologia é a via de acesso

 para se determ inar aqui lo que consti tu i a ontologia , sendo que esta só pode ser

entendida em função daquela.M

Entendido isso, Heidegger verifica que o term o fenomenologia é co mpos

to por outros dois: fenômeno e logos. De um a man eira costumeira, a tradução

 poderia ser dada como ciência dos fenômenos, mas faltaria aqui uma análise

mais profunda que realmente explicitasse o con teúdo desses termos e conferis

se um valor conceituai mais autêntico.

O entendimento de logos não provoca grandes dúvidas. Apesar de seu uso

 polissêmico em Platão e Aristóteles, seu sent ido básico é discurso, o que quer

dizer: aquilo que deixa e faz ver. Essa concepção originária sofreu mutaçõesem suas diversas traduções ao longo de séculos de filosofia, chegando aos dias

atuais com a conotação de razão.13

Isso porque somente o discurso é que permi te perceber, discutir e emitir

 juízos sobre aqui lo que se discorre, podendo, portanto, ser chamado de razão.

A despeito da história vernacula r do logosyo que nos interessa - e é funda

mental - é entender o que é o fenômeno . O que ele é? O que expressa? Com o

que se relaciona? O que contradiz?

A palavra fenômeno é um a derivação do verbo grego mostrar-se, que estárelacionado com parecer, aparecer, fazer ver. Isso demonstra que o fenômeno

é aquilo que se mostra, aquilo que se faz ver em si mesmo, uma revelação de

conteúdo ontológico. Todo fenôm eno corresponde à máxima: “às coisas em si

mesmas!”16

Entretanto, não se pode deixar que o fenômeno seja confund ido po r aqui

lo que é aparência ou pela manifestação. Apesar dos significados próximos na

13 d u b o i s , Christian. Heidegger: introdução a um a leitura ,  p . 13.11 h e i d e g g e r  , Martin. Ser e tempo: parte  i , p . 6 6 .

15Ib idem, p.62-3.

16Ibidem , p.58-61.

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Escolas Hermenêuticas 37

Essa atitude hermenêutica deve ser diferenciada daquela metodologia

trad icional . De acordo com o filósofo francês Chr ist ian Du bo is19, na análise

de Heidegger, a compreensão é imprópria ou própria. Será imprópria quando

com preender a parti r do que se faz, do que se diz. Será própria quando se refe

rir a si e permitir um a abertura verdadeira. A analítica existencial na busca do

sentido do ser deverá rompe r com a compreensão imprópr ia, a fim de possibi

litar a abe rtur a de si mesma.

A hermenêutica , portanto, é a lógica da ontologia fenomenológica, já que

o existir é compreender e explicitar.

Em Heidegger, conforme dissemos, a compreensão implica sempre uma

abertura para uma nova compreensão, o que nos remete ao chamado círculo

hermenêutico. Entretanto, em Ser e Tempo> esse círculo não atua de uma forma

viciosa como a estrutura tradicional desenvolvida pelos autores clássicos em

que “o todo d ete rmina as partes e as partes dete rminam o todo ”.

Aqui, o círculo é concebido de uma forma peculiar pois, de acordo com

o filósofo alemão, o correto posicionamento da questão dentro desse círculo

hermenêu tico permite alcançar possibilidades de conhecimento que não o tor

nam vicioso e desde que a compreensão não se faça apoiada em concepções

 prévias.20Tais pré-conceitos estão inseridos inevitavelmente na própria tempo-

ralidade do ser. Aquilo que entendemos como ser  está determina do a partir

do horizonte do tempo que age como determinação ontológica da subjetivi

dade. A obra Ser e Tempo pode, sob certo aspecto, ser anunciada como “ser

é  temp o”.

Essa compreensão, em razão da temporalidade , permi te a quebra de pré-

conceitos e a aber tura de sentidos do ser. A aber tura então efetuada - dent ro

de certa temporalidade -, permitirá uma nova quebra que explicitará outroshorizontes, e assim sucessivamente.

 Nesse sentido, a filosofia de Heidegger se apoia na tempora lidade do ser

e na sua autocompreensão. Esses pilares são apenas alguns daqueles que per

19 Heidegger: introdução a uma leitura , p.37.

20 h e i d e g g e r , Martin. Ser e tempo: parte i , p.210: “Esse círculo de compreensão não é um cerco emque se movimentasse qualquer tipo de conhecimento. Ele exprime a estrutura-prévia existencial,

 pr óp ria da pré-sença. O círculo não deve ser rebaixado a um vitiosunu  mesmo que apenas tole

rado. Nele se esconde a possibilidade positiva do conhecimento mais originário que, de certo, só pode ser apreendida de modo au tênt ico se a interpre tação t iver com pr eend ido que sua p rimeira ,

única e últim a tarefa é de não se deixar guiar na posição prévia, visão prévia e concepção prévia,

 por conceitos ingênuos e ‘chutesV'

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38 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

fazem o pensamento da obra do autor e não refletem, de modo algum, um

resumo de sua ob ra.21

Ser e Tempo deve ser lido e relido minuciosamente. N ão se pode ter pres

sa nem anseio em encontrar conceitos diretos e concisos, pois eles não estão

 presentes na analít ica fundamental. Sua análise é descritiva e não conceituai.

Como nos ensina Christian Dubois, a obra toda de Ser e Tempo visa a respon

der a questão do sentido do ser, sem, contudo, resolvê-la. Sua ideia é justamen

te a de ab rir possibilidades.22

5.4. O horizonte do tempo e a projeção interpretativa

preconceituosa do ser na fenomenologia de Gadamer

Já pud em os analisar que Husserl e Heidegger conceberam a herm enêutica

com o um a forma de se atingir a ontologia do ser, com respaldo em um a inteli

gência da dimensão histórica e suas implicações fenomenológicas.

O alemão Hans-Georg Gadamer (1900-2002) insere-se dentro dessa linha

filosófica, evidenciando em sua obra-p rima, Verdade e Método  (Wahrheit und  

 Methode)yos pressupostos para toda experiência interpretativa, quais sejam: o

horizonte temporal a que todo indivíduo está submetido pela sua existênciadentro de dado momento histórico, e o modo como isso influencia na sua

formação de hábitos, costumes e preconceitos.

Pode-se verificar isso na atividade da interpretação. Quando o homem se

coloca diante de um texto, sua postura não é a de olhar para o objeto, pura e

simplesmente. O ser que interpreta projeta-se sobre o texto para ali perceber

sentidos e deles se apropriar. Neste movimento, suas intenções e sensibilidades

de vida que possui como ser histórico não se desligam automaticamente para

que a neutralidade frente ao texto seja absoluta. Ao contrário, o projetar-se trazem si uma densa formação histórica do sujeito, e é com ela que o indivíduo

interpreta.

Visamos nesse capítulo apenas a marcar algumas peculiaridades do pensamento heideggeria-

no que possuem ligação com aquilo que estudamos na nossa obra hermenêutica (por exemplo,

compreensão, temporalidade e círculo hermenêutico ). Por esta razão, não efetuamos, proposita

damente, o estudo de conceitos fundamentais como o  Daseiti (“pré-sença”, “ser-aí”), o “ser-no-

mun do ”, a “cura”, “a morte ”, o “ser-à-nião”, sem os quais não se pode compreender in tegralm entea obra do autor. Ficamos apenas com alguns aspectos do pensam ento do autor, aqueles que nos

são mais imediatos face aos propósitos traçados, sem negar a parcialidade de tal decisão.

22 d u b o i s , Christian. Ikidcgger: introdução a uma leitura , p. 10.

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Escolas Hermenêuticas 39

Quando o faz dessa forma, o intérprete fatalmente insere em sua com preen

são os preconceitos e as expectativas próprias de sua formação histórica:

Quem qui se r l e r um tex to rea l i za sempre um pro je ta r . Tão logo apareça

um sent ido no t ex to , o in té rpre te pre l ine ia um sent ido do todo . Na tura lmente

que o sen t ido som ente se man i fes ta porq ue q uem lê o t ex to l ê a pa r t i r de de te r

m inad as expecta tivas e na perspect iva de um sent id o de term inad o.23

Essa condição natural do intérprete exige que se tome consciência dessa

atividade indutora de sentidos que realizam as nossas expectativas. Sem isso,

não há como se falar em liberdade de interpretação, e o texto se transfo rma em

uma extensão do leitor.

Por isso se faz necessário o reconhec imento da alteridade do texto, ou seja,

 por meio da leitura, o in té rpre te deve compreender o outro como uma indivi

dualidade e não afirmar inconscientemente, ali, as convicções do eu.

 Novamente es tamos dian te da problemática do círculo he rmenêut ico,

dessa vez, expressa na relação entre o projetar-se e o reconhecer a alteridade.

Esse estar no outro sem que o outro passe a ser o eu representa um m om ento es

trutu ral da própr ia ontologia da compreensão, e a partir dela devemos sempreretomar nossas investigações.

A questão que se coloca então é: como se compreender esse círculo sem

cair em u m solipsismo infinito?

Essa é uma indagação fundamental para a compreensão. Para Gadamer, a

resposta está no reconhecimento de que toda interpretação é preconceituosa.

A ideia de preconceito e suas implicações é essencial para a práxis inter-

 pretativas, por isso, veri fiquemos detidamente as lições do autor:

Uma anál ise da his tór ia do concei to mostra que é somente na  A u fk làn m g  

que o conceito de precon ceito  recebeu o matiz negativo que agora possui. Em si

mesmo,“preconce i to” (Vorurteil)   que r dizer um juízo ( Urteil) que se form a antes

do exame def ini t ivo de todos os momentos determinantes segundo as coisas em

ques tão. No procedimento da jur isprudência , um preconcei to é uma pré-decisão

 ju rídica , an te s de ser baixada u m a sentença defi nit iv a. Para aquele que partic i

 pa da d isp u ta ju dicial, um preconceit o dess e tipo represen ta ev identem ente u m a

23 g a d a m e r , Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundame nta is de uma hermenêutica filosófica,

 p.356.

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40 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

redução de suas chances. Por isso,  pre ju dic e , em francês, tal como  prae iiidicu im> 

s ignif ica tam bém s implesmen te pre juízo, desvantagem, dano. Não obs tante es ta

negat ividade é apenas secund ária . A conseqüência negativa repousa jus tam ente

na valide / posit iva, no valor prejudicial de um a pré-decisão, tal qual o de qu alqu er

 precedente .

Preconceito não significa pois , de modo algum, falso juízo, uma vez que

seu conceito perm ite que ele possa ser valorizad o posit iva ou n egativam ente. ( .. .)

Existem  préjugés legitimes . E videntemente isso passa m ui to dis tante dos sensores

de nossa l inguagem atual . O term o alemão Vorurteil (p reconce i to) - a ss im com o

o termo francês  pré jugé   mas de m od o a inda m ais pregna nte - parece ter sido

restringido, pela  A ufk là rung  e sua crí tica religiosa, ao significado de juízo não fu n

dam entad o.24

Ao se pregar a extinção de todos os preconceitos, o que o racionalismo

criou foi um verdadeiro preconceito do preconceito. É imperioso que se ad

mita as diferenças entre os preconceitos válidos (que expressam corretamente

a verdade) e aqueles obstaculizadores dos raciocínios, que conduzem ao mal

entendido.

 Não há como se imaginar um indivíduo cr iado dentro de um ambientehistórico sem que sua formação desenvolva formas preconceituosas de pensar.

É imp orta nte reconhecer a naturalidade e fatalidade dessa constatação, e aliado

a isso, tomar consciência de que os preconceitos, mais do que pré-juízos da

realidade, constituem a própria ontologia do ser.

Pensar hermeneuticamente torna-se mais do que uma atividade meto

dológica voltada ao subjetivo, mas uma tarefa de mediação do ser com os seus

 preconceitos e sua tempora lidade. Ê na hermenêutica que o compreender tor

na compreender-se e o indivíduo encontra-se com sua tradição. Essa ação dointérprete consigo mesmo é um momento ontológico fundamental da com

 preensão. Vejamos o raciocínio do autor:

Desse modo, o sent ido de per tença, is to é, o m om ento da t radição no c om

 p o r ta m e n to h is tór ico -herm enêu tico , re ali za-se atr avés da co m un id ade de p re

concei tos fundamentais e sus tentadores . A hermenêut ica precisa par t i r do fa to

de que aquele que quer compreender deve es tar vinculado com a coisa que se

14Ibidem, p.360-1.0 tradutor escreve em nota de rodapé que o termo Vorurteil cm alemão signi

fica literalmente juízo prév io e, por isso, todas as conotações jurídicas e conceituais.

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Escolas Hermenêuticas 41

expressa na t ransmissão e ter ou a lcançar determ inada conexão com a t radição a

 pa r t ir da qual a transm issão fala. Por o u tro la do, a consciê ncia he rm enêu tica sabe

que não pode es tar vinculada à coisa em ques tão ao modo de uma unidade in

ques t ionável e natura l , com o se dá na com unid ade in interrup ta de um a t radição.

Existe realm ente u m a pola rida de en tre fam iliaridade e estranheza, e nela se baseia

a tarefa da h erm enêu tica. [ ... ] Ela se desenrola en tre a estranhe za e a familiaridade

que a t radição ocupa ju nto a nós , ent re a obje t ividade da dis tância , pensada his

tor icamente , e a per tença a um a t radição.  Esse entrem eio (Z w ischen) é o verdad eiro  

lugar da hermenê utica.

(...]

Essa pos ição intermediár ia onde a hermenêut ica deve ocupar seu pos to

mostra que sua tarefa não é desenvolver um procedimento compreens ivo mas

esclarecer as condições sob as quais surge com preen são.25

Esse esclarecer de condições só é possível quando o ser admite sua vincu-

lação a determinada tradição e, a partir daí, busca uma distância temporal de

sua realidade histórica.

Essa ação permite ao intérpre te fil trar os seus preconcei tos e identificá-los

dentro de seu universo, sejam eles produtivos ou indesejáveis.A questão que nos apresenta é como alcançar essa distância temporal se a

ela somos n atura lmente inconscientes?

Para Gadamer, essa clarificação de temporalidade aliada à exigência her

menêutica de suspensão de todo pré-juízo tem a estrutura da  pergunta. É por

meio da pergunta que mantemos em aberto diversas possibilidades de senti

dos, e, só a partir disso, podemos identificar nossos preconceitos. Quem pensa

 bem, pergunta bem.

Essas indagações a respeito da distância temporal e da percepção de horizonte com o auxílio da pergunta levam àquilo que o filósofo alemão chamou de

“consciência da história efeitual”. Isso que dizer que aquele que lê a história, lê com

olhos de quem participa historicamente de determinado momen to e, por isso, deve

estar atento à sua condição, sob pena de se amarrar em seu próprio horizonte.26

Consequentemente - e conclusivamente -, o mestre realça que a consciên

cia da história efeitual possibilita que se crie uma situação hermenêutica do

25 Ibidcm, p.390-1.

26 De acordo com filósofo alemão, o horizonte é “o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o

que pod e ser visto a par tir de de terminado pon to”. Ibidem, p.399.

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42 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

horizonte do presente que dialogue com a tradição, revelando os hábitos de

linguagem e preconceitos, identificando-os positiva e negativamente em um

novo horizonte histórico. Essa atividade, diga-se de passagem, é infinita.

 Nota-se que há uma similar idade entre o solipsismo inte rpre tativo encon

trad o por Heidegger e o de Gadamer. O que impo rta, em essência, para ambos

os autores, não é o resultado de sentido encontrado a part ir da inserção do in

térprete no círculo hermenêutico, mas a sua postura filosófica ali dentro, reco

nhecendo o fórum da tradição histórica de sua formação (seja pela linguagem,

seja pelos preconceitos) e ampliando seus horizontes a cada momento .

6. Paul Ricoeur e os sistemas de interpretação Nas décadas poster iores, Paul Ricoeur (1913-2005) se afasta da Escola Fe-

nomenológica - sem deixar de ser, por ela, influenciado -, e resgata um a de

finição hermenêutica mais próxima da sua intenção histórica originária: “Por

hermenêutica ent endemos a teoria das regras que governam u ma exegese, quer

dizer, a interpretação de um determinado texto ou conjunto de sinais suscetí

veis de serem considerados como textos.”27

É claro que não estamos diante daquela interpretação primitiva e inocentedos primórdios. Paul Ricoeur efetua um profundo es tudo da fenomenologia e das

teorias modernas da linguagem (com imersões na psicanálise), partindo do ponto

de que existem dois polos dialéticos nas manifestações lingüísticas: a referência

(acerca do quê do discurso) e o sentido (o quê do discurso).

Todavia, não há necessariamente um a correlação perfeita entre a referên

cia e o sentido, podendo haver apreensões distintas sobre um e outro, tanto

em função da imperfeição da linguagem quanto pela falibilidade do emissor

ou do receptor do discurso. De acordo com Miguel Stadler Dias da Costa: “aexperiência que se transmite a outro na comunicação não é a experiência en

quanto vivida mas sim enquanto significação, como sentido que se extrai da

esfera privada e se torna público.”28

A linguagem é o processo no qual uma impressão se torna expressão por

meio da função referencial. O problema do discurso está na relação que sua

estrutura mantém com a verdade do evento extralinguístico, que pode sofrer

distorções durante a passagem do evento ao significado. Por isso, é impres

J7 r i c o e u r  . Paul apud  p a l m e r  , Richard E.  Hermenêutica, p.52.

28Sobre a teoria da interpretação de Paul Ricoeur, p. 18.

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Escolas Hermenêuticas 43

cindível realizar uma transcendência da linguagem sobre si mesma, a fim de

alcançar aquilo sobre o que se diz, ou seja, a referência.

Essa operação dialética entre evento e significação é a principal atividade

da hermenêutica, cujo objeto de estudo são os símbolos unívocos e os equívo

cos. Os primeiros possuem sentido único, enq uan to que os segundos têm m úl

tiplos significados, e é nestes que a hermenêutica deve atuar com mais agudez.

Entretanto, ainda que determ inados símbolos possuam, aparentemente, um

sentido coerente, sendo tomados pelo sujeito como símbolos unívocos, na verda

de, podem estes ocultar um sentido mais profundo, de alguma forma mascarado,

cujo conteúdo deverá ser encontrado por meio dos sistemas interpretativos.

Essa investigação do obscuro, do não aparente, conduz Ricoeur aos ensina

mentos de Nietzsche, Marx e Freud, encontrando neles uma filosofia comum

de desconfiança da superfície, e até mesmo da realidade. Os estudos desses

filósofos refletem um esforço de desmitificação de nosso conhecimento por

meio da suspeita, da dúvida.29

Ricouer faz largos estudos de Freud, pois encon tra ali uma psicanálise que

desconfia da consciência hu mana a todo tempo, por meio de seus mitos e suas

ilusões. O estudo da psicanálise é necessário já que a busca da racionalidade

implica a destruição dos processos inconscientes da mente e, para isso, precisamos da psicanálise para desmascará-los, principalmente, pela leitura dos

sonhos e por lapsos de linguagem.

Diante dessa busca da quebra do conhecimento superficial da realidade,

utilizando-se do pensar por meio da suspeita, Ricoeur considera que não há de

se falar em um métod o exegético universal que promova a consecução dessa ta

refa. Há sim diversas teorias, às vezes separadas e opostas, mas sempre relativas

a um mesmo sistema de regras de interpretação .30

Esse sistema é importante, pois permite a validação - ou não - da infinidade de interpretações que o sujeito pode promover. Não se pode dizer que os

métodos são iguais, e que todos os resultados são legítimos. Ricoeur utiliza uma

lógica de probabilidades, subjetiva, não empírica, e essencialmente argumentat i-

va para realizar um arb itramento dos sentidos e alcançar um acordo sobre eles.

Logo, o círculo herm enêutico será sempre progressivo, nunca vicioso, pois

os sentidos inválidos são retirados de seu campo de dialeticismos, e o solipsis-

mo infinito não ocorre.

- 9  p a l m e r  , Richard E. Hermenêutica, p.53.

30 Ibidem.

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CAPÍTULO 3

Hermenêutica Jurídica

I. O problema da identificação e escolha dos métodosinterpretativos

Estudar e classificar as escolas jurídicas hermenêuticas não é uma tarefa

fácil. De um lado, lidamos com regras formais de interpretação da lei pura

mente instrumentais e, de outro, analisamos os substratos ideológicos e filosó

ficos que dete rmin am os sentidos da norm a.

As escolas interpretativas não surgem independentes das concepções de

 just iça e de Estado contemporâneas à sua época, pelo contrário, refletem claramente as ideologias que revestem o Direito em cada m om ento de seu desen

volvimento histórico e nele se amarram firmemente.

Tivemos a oportunidade de verificar que a interpretação é recheada de

 preconceitos que limitam as possibil idades de sent ido do sujeito dentro de seu

horizonte, sendo que a aplicação dos métodos interpretativos não afasta a par

cialidade do leitor.

Dessa forma, é fundamental não tratarmos a hermenêutica como simples

regras de interpretação, ainda que assim tenha sido concebida po r determinadasdoutrina s em tempos pretéritos.

Em razão disso, apresentamos nos subcapítulos seguintes uma classifica

ção de métodos hermenêuticos que, apesar de não negar a classificação da do u

trina tradicional, a estas não se resume, identificando as ideologias e os mitos

conform adores de sua razão.

Refutamos dessa forma as leituras reducionistas da interpretação na me

dida em que estas não reconhecem os alicerces da hermenêu tica jurídica, prin

cipalmente, as teorias do Estado - com ênfase na separação dos Poderes -, e asconcepções do justo.

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Hermenêutica Jurídica 45

Obviamente poderíamos citar diversos outros ramos do conhecimento

que influenciaram na construção da hermenêutica jurídica, como a história,

a sociologia, a psicologia, a psicanálise etc. Entretanto, em virtude do espaço e

da densidade que nos permite este traba lho de pesquisa, opta mos por nos ater

mais significativamente a estas duas linhas de pesquisa, o Estado e a Justiça (a

última vista como o valor maior a ser alcançado pelo Direito).

É o desenvolvimento histórico dessas duas concepções que direcionará

de forma patente a interpretação do julgador no momento de sua expressão

maior: a decisão judiciária.

Apesar de não ser o único momento interpretativo, é na sentença do juiz

que podemos encontrar concretamente qual o significado atribuído ao texto e

qual a fundamentação proposta pelo intérprete.

É interessante notar que o mesmo texto abre-se para uma pluralidade de

métodos que lhe atribuem sentidos distintos, sendo que na sentença o juiz de

verá esclarecer qual o métod o empregado e fundamentá-lo. Daí a importância

do m om ento decisório.

Realizar a compreensão da lei é uma tarefa árdua. Entretanto, mais árduo

é optar dentre diversos sentidos e excluir interpretações que são justificáveis

em função de um método racional.Entretanto, são poucos aqueles que conseguem realizar tal tarefa. A maioria

das decisões emprega os métodos interpretativos de forma acidental, sem revelar

quais são os critérios utilizados para escolher uma interpretação e afastar outra.

Em foce de diversos sentidos, qual deles escolher? Qual método devo pri

vilegiar e qual devo excluir? O abandono de um sentido significa que seu mé

todo interpretativo subjacente não é legítimo?

Tais questões são vitais para a compreensão da hermenêutica, mas acabam

sendo pouco tratadas no discurso judiciário. As decisões são comumente realizadas de forma inconscientes, velando seu real fundamento e atribuindo ao

méto do acidentalm ente aplicado a razão única da decisão. É como se o julgado

fosse um ente totalmente neutro (mito da imparcialidade do juiz) e não reali

zasse qualquer ato de vontade discricionário na escolha do método .

Sendo assim, cumpre-nos revelar o que está por trás da eleição de um

méto do e identificá-lo no discurso de form a aberta e consciente.

Em virtude dessas ponderações, traremos no próximo subcapítulo uma

análise geral do raciocínio e das ideologias judiciárias que influenciaram demodo significativo a hermenêutica jurídica desde a publicação do Código

de Napoleão, em 1804, até os dias atuais.

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46 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

Após essa sucinta pesquisa, desenvolveremos os métodos interpretativos

 propriamente di tos e suas propostas de investigação do sentido da lei, sempre

fazendo remissão constante ao momento histórico em que se inserem e seus

substratos de compreensão.

Buscamos, dessa maneira, uma pesquisa não reducionista que evidencie

as influências ideológicas e filosóficas da hermenêutica, mas reflitam ao mes

mo tempo sua operacionalidade pragmática no campo da interpretação da lei.

A problemática acerca da identificação e escolha do métod o não é uma questão

fácil que apresenta uma resposta simples e direita. Antes, cabe-nos analisar o

que está em jogo para podermos tirar as conclusões ao final da obra.

2.0 estado de direito, o ideal do justo e o raciocínio judiciário em diálogo com a hermenêutica

Conforme verificamos no ponto anterior, a hermenêutica surgiu no séc.

XVII por meio dos intérpretes da Bíblia e desenvolveu-se pelos séculos, resul

tando em diversas escolas interpretativas.

 No âmbito dos es tudos jurídicos, porém, o ponto de part ida já não pode

ser o mesmo, pois a interpretação das leis surge como um a disciplina do Direito a partir da formação do Estado Moderno, em especial, em virtude da con

cretização da do utr ina da separação dos Poderes após a Revolução Francesa e a

 publ icação do Código de Napoleão.

O Poder Legislativo estaria encarregado de elaborar as leis; o Executivo,

de gerir os negócios públicos por meio delas; e o Judiciário, deveria aplicá-las

quando fosse chamado. Nota-se que existe um vínculo de interdependência

entre os três Poderes, alicerçado no primado do Direito (leia-se leis).

Todos os Poderes devem respeito à nor ma jurídic a que est rutura e fun damenta o Estado Moderno. Por isso, toda vez que se falar em hermenêu

tica, deve-se pensar também na própria concepção de Estado e como este

admite a atividade interpretativa da norma, já que a última estará delimi

tada pelo campo de atuação disponível pelas próprias bases que sustentam

o Estado.

O que aconteceria com um a nação marcada pela rigidez de sua separação

dos Poderes, se um magistr ado decidir, ao interp retar a lei, que pode executar

 por si mesmo uma obra pública? Como ficaria o Estado se o Poder Judiciáriolegislasse?

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Hermenêutica Jurídica 47

Dessa forma, a hermenêutica jurídica nâo atua livremente na tarefa de

investigação de sentido da no rm a.1Está sempre condicionada e limitada. O que

não ocorre na hermenêutica filosófica, a qual é livre na investigação de sentidos

e somente está restrita pelos próprios pressupostos em que se assenta.

Ao lado dessa questão está o ideal do justo  que é a razão primeira das aglo

merações sociais em torno do Estado (ainda que isso não se repita sempre).

Como lecionava Aristóteles, não é apenas para viver jun to  que o homem criou

o Estado, mas para bem viver juntos.2

A problemática em torno do ideal do justo  é que os mais diversos senti

mentos inerentes à condição hum ana - desde o mais cauteloso uso consciente

da razão até as mais explosivas paixões inconscientes -, repercutem na sua co n

formação e, consequentemente, são traduzidos em normas de regulamentação

da sociedade.

Se o indivíduo se coordena em uma comunidade política e uma de suas

finalidades, dentre outras, é a de preservar o justo, é natural que as leis devam

fazer referência àquele valor primeiro, caso contrário, estarão em desacordo

com a fundação da sociedade. Este ju sto , porém, não é algo conceituável e ple

namente racionalizável, ficando à mercê da subjetividade de cada ente social.

O psiquismo no Direito é tão relevante que o médico e psicanalista inglêsDonald Woods Winicott considera ser um dos papéis da lei expressar os senti

mentos inconscientes de vingança de uma sociedade.3

Essas considerações, longe de serem impertinentes ao nosso trabalho, re

fletem a íntima conexão das escolas hermenêuticas com a consciência ética e

 polí tica de um povo em um dado momento histórico.

1Relerinio-nos, aqui, à herm enêu tica que é aceita pelo discurso oficial do Estado na atividade do

Poder Judiciário. Isso porque, não raro, o método interpretativo desenvolvido de forma especulativa pela doutr ina não é acolhido pelas magistraturas que, muitas vezes, estão presas às limitações

de cunho legal ou até mesmo ideológicas, considerando seu espaço de atuação dentro do âm bitodos Poderes Estatais.2 A política > p.53.

3 YVinnicott, na obra em questão, desenvolve suas pesquisas no âmbito do tratamento da delin

qüência e da punibilidade “[...] É impossível fugir ao princípio de que a função precípua da lei

é expressar a vingança inconsciente da sociedade. É muito possível a qualquer delinqüente indi

vidual ser perdoado, no entanto, isso não impede a existência de um reservatório de vingança e

também de medo que não podemos nos permitir ignorar [...). É possível que, se os sentimentos

de vingança da sociedade fossem plenamente conscientes, a sociedade pudesse admitir o trata

men to do delinqüente como doente, mas grande parte da vingança é inconsciente, de modo quese deve levar per manen tem ente em conta a necessidade de se manter a punição em vigor, em certa

medida, mesm o quando ela é inútil no tratam ento do delinqüente”. “Com entários sobre o  Report  

o f the comm itteepunishrnent in prisons and borstals” p.2Ü7-13.

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48 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

Mesmo que muito se tenha feito ao longo dos anos para se desvencilhar

o Direito das paixões humanas e do subjetivismo - tratan do-o como u m ente

absolutamen te imparcial e científico na defesa da justiça tud o o que se con

seguiu provar foi o inverso: não há Direito sem moral e a conseqüente consa

gração de valores que conduzam ao sentim ento de justiça.

Além dessa fatalidade axiológica, é interessante constatar que as correntes

mais radicais, ilustradas pelo formalismo positivista de um lado e o subjetivis

mo do outro, batalharam ferrenhamente durante décadas pela concretização

de sua doutrina sendo que, ao mesm o tempo, realizaram um a tarefa comum de

afirmação do Dire ito e respeito das leis pela sociedade.

Independente do método hermenêutico utilizado e do sentido da lei al

cançado, será sempre afirmado que existe uma lei e que esta deve ser respeita

da.

A própria existência da interpretação jurídica revela o primado da lei, pois

se esta não fosse soberana, as decisões judiciárias poderiam ser dadas ao livre

arbítrio, sem justificações respaldadas no sistema normativo.'1

Todavia, esse primado adquire, muitas vezes, um caráter simplesmente

formal. Isto ocorre na medida em que o intérprete, por meio da abertura de

sentidos promovida pela hermenêutica, é capaz de articular resultados inter pretativos que se distanciam do enunciado normat ivo , porém, pela metodolo

gia aplicada, são justificáveis.

O trabalho da hermenêutica jurídica, sob esta óptica, revela uma faculdade

de se alterar o sentido da no rm a sem que se perca de vista o primado do Direito

e se negue a força da lei. Em razão disso, em muitos momentos , a hermenêutica

se transforma em um meio de manipulação ardil, cujo único intuito é a preser

vação de ideologias contraproducentes à busca do justo.

O professor Warat em seu livro  Introdução ao Direito   demonstra densamente como cada escola hermenêutica foi responsável pela proliferação de

discursos ideológicos, e o m esmo tentaremos most rar no subcapítulos seguin

tes. O que nos interessa agora, além de relacionar cada método interpretativo

com estas fontes ideológicas e éticas, é fornecer um quadro geral, apoiado

em Perelman, que ressalte essas características ao longo do desenvolvimento

4 Lembramos que o magistrado, ao decidir um caso, deve fundamentá-lo, obrigatoriamente, em

razão de uma norma, especificando qual o artigo da lei que permitiu tal julgamento. É curiosonotar que a exigência de menção ao artigo de lei prom ove algumas situações esdrúxulas em que o

magistrado acaba buscando sentidos longínquos e remotíssimos da nor ma a fim de fundam entar

sua decisão com base cm u m art igo de lei.

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Hermenêutica Jurídica 49

das escolas de interpretação, partindo-se da Revolução Francesa até os dias

atuais.5

De acordo coin Chaim Perelman6, o raciocínio judiciário passou po r três

fases: a primeira , com a Escola da Exegese que surge concomitante ao advento

do Código de Napoleão; a segunda, são as concepções funcionalistas, teleoló-

gicas e sociológicas do Direito; e a terceira etapa ocorre quando o positivismo

 jur íd ico é quebrado após a Segunda Guerra Mundia l, e o pós-modernismo se

instala na hermenêu tica. Analisemo-las pari passu.

Após a Revolução Francesa (1789), a burguesia e as classes mais desfavo

recidas da sociedade clamavam pela instalação de um regime político que em

nada lhes lembrassem os pavores e opressões do  Ancien Régimen. A resposta a

essa perturbação estava nos ideais iluministas que pregavam a instituição de

 poderes polí ticos que freassem os espíri tos mais autor itários , viabil izando um

governo democrático e justo.

Surgem as obras clássicas de Locke7e Montesquieu8pregando a separação dos

Poderes. Pela distribuição de tarefas e de prerrogativas, o Estado estaria protegido

da tirania. Ao Poder Legislativo foi conferida a função de representar o povo em

sua integralidade, não mais vinculando à vontade da lei ou à vontade de um ser

soberano. A supremacia passou a estar no colegiado, e não no individual.Ao Poder Judiciário, por sua vez, carecedor de tal representatividade de

mocrática direta, foi incumbida a tarefa de aplicar a lei aos litígios concretos.

Admitindo-se que o povo reside no Parlamento, os juizes nada poderiam fazer

que cont rariasse as vontades legislativas, pois estariam atuando em desfavor cia

soberania popular. Com esse espírito, o Código de Napoleão é publicado em

1804 e ju nto com este nasce a Escola da Exegese.

Segundo essa doutrina, o papel do juiz estava restrito a reconhecer na lei

a vontade do legislador e aplicá-la ao caso concreto. O juiz não elabora, nãoquestiona, não investiga a lei, apenas a aplica, como em um sistema dedutivo.

O apego aos primados iluministas que ecoavam nos quatro cantos da

Europa transformaram a lei em uma espécie de mito, uma expressão maior 

5 Estamos cientes de que a atividade interpretativa estava presente no seio do Direito Romano e

sobre ela estudos foram realizados e muitas máximas permanecem até hoje. Entretanto, dada a

distância conceituai de  Estado, separação de Poderes, Poder Judiciário e outros, desenvolvidos na

Era Moderna, optam os po r restringir nossa pesquisa.

0 Lógica jurídica: nova retórica.

' Cf. Dois tratados sobre o governo; e The second treatise on civil government. 

s De Pesprit des lois, v . 1 e 2. Ver tam bém a respeito: c a n o t i l h o , J. J. Gomes. Direito constitucional 

e teoria da Constituição, p.579-82.

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50 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

da razão inquestionável, a qual deve ser firmemente respeitada e preservada.

O brocardo romano dura lex, sed lex  retoma seu valor e denota a vontade de

se estabelecer uma ordem jurídica desprovida de paixões e subjetividades, cujo

único referencial permitido é a lei mesma.

Essa ordem exige que o juiz admita sua tarefa como a de mero reconhecedor

e aplicador da lei ao caso concreto, sem qualquer necessidade de interpretação ou

investigação criativa. O corpo jurídico é tido como um sistema formal axiomático,

aos moldes da geometria, no qual só há espaço para a tarefa dedutivo-silogística.

 Nesse contexto, encontramos o advento de métodos que se coadunam

com tal modo de pensar, a saber: o exegético, o literal (ou gramatical), e em

certo sentido, o lógico-sistemático.

Essas escolas encontram na hermenêutica um a leitura rasa do texto, a qual

não permite interpretações que fujam do âmbito das intenções legislativas ori

ginárias, preservando seu espírito e sua vontade.

O legislador, imbuído de soberania, formula regras de conduta em signos

unívocos, coerentes e completos, em que o juiz apenas deduz racionalmente a

lei à realidade dos fatos que lhe é exposta, sem ao menos poder se questionar a

respeito da justiça e sensatez da decisão alcançada.

Essa fidelidade estrita ao espírito do legislador   e apego à letra da lei durou até os finais do séc. XIX, quando a dout rin a jurídica começa a questionar

este modelo silogístico formal, que não resolve as situações não legisladas, ou

aqueles que foram, mas geravam dúvidas em sua aplicação. A completude do

sistema falhara, e era preciso reconhecer tal fato.

Ainda que se buscasse uma solução na sistematicidade dos códigos ou

numa vontade presumida do legislador, as lides no judiciário apresentavam

um a complexidade e uma diversidade não encontradas em qualquer manifes

tação remota do espírito legislativo que conferisse uma orientação à decisão.Além do mais, o julgador se encontrava em uma posição extremamente

delicada, pois o art. 4o do Código de Napoleão considerava como culpado de

denegação de justiça o juiz que se recusasse a julgar sob o pretexto de silêncio

da lei. Como cumprir tal mandamento se a lei era imperfeita e incompleta?

Com o preencher as lacunas se a interpretação era proibida?

Foi sendo cada vez mais sentida pelos juristas a impossibi lidade do legislador

regulamentar todas as condutas humanas e relações sociais, e aqueles passaram a

formular meios alternativos de se encontrar uma decisão à matéria lacunosa. Nesse momento, passamos à segunda fase do raciocínio judiciário, no qual a Es

cola Histórica de Savigny reconhece que a lei não é um axioma estático aos moldes da

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Hermenêutica Jurídica 51

geometria, mas antes, uma construção cultural e histórica da sociedade que quer ver

seus anseios expressos na legislação. Dado o dinamismo das relações sociais, não há

que se falar em uma ordenação imóvel, alheia aos interesses coletivos, pois isso afron

tava a própria concepção de soberania popular que ia se reformulando aos poucos.

Desse modo, a quebra do mito do legislador foi sendo realizada lentam en

te, principalmente por intelectuais que não estavam vinculados aos movimen

tos revolucionários franceses de forma tão intensa. É nos pandectista alemães

que encon tram os u ma compreensão progressiva da lei9, baseada em um a dog

mática jurídica fortemente influenciada pela concepção de usos e costumes

 presentes no Di reito Romano.

Reconhecer o costume como fonte primária do Direito foi a porta de entra

da para as escolas sociológicas, as quais também pregavam a necessidade de se

encontrar, na consciência do povo, a vontade verdadeira e legítima da lei - em bo

ra sua base não fosse a história da nação, mas suas valorações contemporâneas.

Junto a esses movim entos desenvolveu-se a Escola Teleológica ou funcio-

nalista do Direito, na qual se verificou que toda norma possui um fim, isto é,

ela é produzida para alcançar determinado resultado pragmático. Há que se

investigar a finalidade que guia a elaboração legislativa e encont rá-la na n orm a

independente de seu enunciado. Neste pon to já se pode tirar duas conclusões: a primeira se refere ao modo

como o arrimo à vontade do legislador e o apego à letra da lei foram gradativa-

mente se transformando em uma concepção de substratos valorativos da coletivi

dade; a segunda demonstra que os métodos interpretativos vão se inserindo pouco

a pouco no labor jurídico, visando sempre a encontrar os significados da norma.

Pensar a lei em sua função teleológica e em sua origem histórica permitiu

a abertura do intérprete cios significados ocultos da norma , estudados de um a

maneira lógica, racionalizada e científica. Os valores e princípios em si, como justiça e dign idade humana, ainda não podem ser traba lhados como justif ica

ção de um a decisão, embora o jurista já perceba que existe algo além do texto, e

que este algo representa um conteúdo axiológico daquilo que é o Direito.

Por fim, o terceiro e último momento do raciocínio judiciário está inti

mamente ligado a um fato histórico que forneceu as provocações necessárias a

um a revolta jurídica: a Segunda Gue rra Mundial.

r f a i .e , Miguel. Lições preliminares de Direito , p.284.0 mestre ainda ensina que o termo pandectista “resulta do fato de, nessa obra de prodigioso lavor analítico e sistemático, terem os juristas

alemàes remontado, criadoramente, aos ensinamentos do  Digesto, ou Pandectas, que, como devem saber, é a coleção de textos de Direito Rom ano organizada pelo Imperado r Justin iano”.

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52 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

Em 1939 inicia-se uma das maiores campanhas militares da história, em

que, a extrema direita, liderada pelo nazismo alemão, trava sangrentas batalhas

com os países Aliados, resultando em milhões de m ortos e feridos. Além disso,

o hor ror dos campos de concentração atormen ta o mundo , escandalizado com

as atrocidades que se cometeu em favor da ideologia de predomínio de uma

raça e o extermínio dos impuros.

A comunidade jurídica, por sua vez, questiona-se como o primado da ra

zão - a lei - , poderia ter legitimado tal regime, conferindo-lhe sustentação legal

e validade. Como pôde o Direito ter consentido com tais regimes cruéis e in

tolerantes? Que m é este Direito que justifica o nazismo e o fascismo? Devemos

aceitar tal Direito?

 Na medida em que as leis regulam tais regimes polí ticos, os jur istas acor

dam para o fato de que a lei, vista objetivamente, é apenas um texto, e como

texto, pode dissertar sobre qualquer coisa que está ao alcance da linguagem e

da criatividade do intérprete.

A doutr ina positivista vigente à época, fortemente apegada à objetividade

da norm a, ao cientificismo, e ao afastamento das referências ao Direito Natural

como via de acesso aos valores transcendentais, transformou-se em um dos

responsáveis po r esses Estados justificados pela lei.Havia a necessidade de se promove r o reencontro do ordenamen to jurídico

com o ideal do justo , com um a ordem de valores que não permitisse que o Direi

to aceitasse e legitimasse um Estado daqueles moldes.

O trauma causado pela Segunda Guerra Mundial foi aos poucos sendo trans

formado em doutrinas que promoviam releituras do Direito Natural dos sé cs.

XVII e XVIII, pretendendo-se combater a frieza do positivismo, e permitindo ao

 juiz uma guarda última do justo que a ele antes não era confiada. Entre escolher

uma regra de Direito e uma regra de justiça, deve-se sempre optar pela segunda.Uma significativa reação foi realizada por Theodor Viehweg, filósofo ale

mão que desprezava a ordem jurídica baseada em um modelo axiomático-de-

dutivo, e pregava o retorno aos estudos tópicos, para pensar a decisão judicial

com o o encont ro do justo no caso concreto.

Foi também de grande importância a positivação dos chamados princí

 pios jurídicos e o desenvolvimento dos direitos e garant ias fundamentais do

homem. Por meio desses enunciados abertos e claramente axiológicos, ao juiz

é facultado flexibilizar os ditames legais e adequá-los de forma razoável às lides,sem se esquecer dos valores superiores que dete rminam o ord enamento jurídi

co, em especial, a dignidade da pessoa humana.

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Hermenêutica Jurídica 53

Assim, enco ntram o-nos em um mom ento em que a atividade herm enêu

tica é indispensável. O sistema jurídico reconhece, hoje, que da lei deve-se ex

trair o significado que lhe é mais justo ao caso concreto, mas não o diz exata

mente como fazê-lo, daí a importância do intérprete.

A concepção pós-moderna de abertura e flexibilização permitiu ao ho

mem não se cegar frente às reais dificuldades de se julgar sensa tamente um caso

concreto, mas também o atirou em um a luta perpé tua de visões retóricas.

Mais do que nunca, deparamo-nos em uma hermeneutização  do Direito,

em que todo o sistema jurídico deve ser interpretado a fim de que o sentido mais

razoável e justo da norma sejam filtrado e reconhecido como o sentido válido.

E quem pode dizer o que é jus to e razoável?

3. Método gramatical ou literal

Com o advento da Revolução Francesa em 1789, derruba-se o opressivo regime

monárquico absolutista que incomodava as aspirações burguesas e deixava à men

dicância a extensa maioria da população francesa. Era preciso então se assegurar de

que o Estado e suas estruturas políticas não ficassem vulneráveis a ação de elemen

tos arbitrários e individualistas, de forma a valorizar a democracia e a igualdade.A forma encontrada de se proteger o novo sistema estava na soberania das

Assembleias Legislativas. Por meio de um corpo plural, eleito pelos cidadãos

e que decidia por vontade da maioria, os espíritos mais autoritários se enfra

queceram e não conseguiriam, p or meio das Assembleias, realizar sua vontade

senão pelo voto da maioria.

O papel de elaboração da lei, guardado às Assembleias, foi então sacrali-

zado sob o manto da salvação do homem em face ao poder despótico. As leis

refletem toda esta luta em prol do coletivo, e o povo adere religiosamente assuas determinações.

Isso condiz com o que se chamou de culto à lei, expressão iluminista

cunhada, principalmente, com o advento do Código de Napoleão, em 1804,

obra máxima da racionalidade humana e salvaguarda de toda a nação.

Entretanto, não devemos nos olvidar, que a valorização da lei pressupu

nha também mecanismos de preservação e manutenção da mesma, de modo

que os ideais revolucionários não sucumbissem.

Para esses fins, a interpretação representava uma ameaça frente ao Código Napoleônico. Uma ciência que não se reverenciasse resoluta às novas regula

mentações jurídicas era vista com extrema desconfiança pela sociedade írance-

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54 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

sa, que temia ali uma volta ao absolutismo. Além do mais, por que haveria de

se realizar uma investigação subjetiva e personalista do texto legal, se a norma

e o Direito expressavam fielmente a Razão?

A obra do legislador, perfeita e completa, não pode ser interpretada, che

gou-se a afirmar. A verdade residia na sua leitura objetiva, cuja clareza fornecia

todas as fe rramentas necessárias às soluções das lides.

Dessa forma, foi desenvolvido o método interpretativo gramatical - com

clara influência da Escola Bíblica - , no qual se buscava o sentido literal do tex

to. O Código Francês, assim como as Escrituras Sagradas, eram obras divinas,

e como tais, não podiam ter seu sentido alterado. Ao homem, cabia apenas a

 percepção do texto tal como ele se apresentava.

 No limite, permitiam-se as considerações de ordem sintática, morfológica

e semânticas do enunciado da norma. De acordo com a corrente gramatical, a

linguagem era apenas um medium  de comunicação, sendo imparcial e objetiva

em sua essência.

As análises filológicas da lei pregavam ainda a univocidade dos termos

empregados nas expressões legais. Escondiam que a semântica nem sempre é

exata e que, muitas vezes, o mesmo vocábulo possui sentidos diversos.

Em adição, o desenvolvimento da ciência do Direito provocou o surgimento de uma linguagem própria. Houve uma adaptação da linguagem or

dinária às necessidades particulares da ciência jurídica. Os termos, portanto,

 poderiam ter um sent ido comum  e outro científico.

Surge, então, uma dúvida: como propagar a univocidade dos signos em

face da multiplicidade de sentidos dos termos legais?

Obviamente, aos olhos do iluminista, não se poderia admitir que o le

gislador era dúbio, nem ao menos dar espaço às investigações interpretativas

subjetivistas. Como resolver esse conflito? Uma concepção mais democráticado Direito, diria que a lei deve ser extraída da sociedade e, consequentemente,

afirmar sua linguagem, valorizando o sentido com um dos termos.

Todavia, o que ocorreu foi justamente o inverso. Por meio da ideia de

cientificismo e a sua conotação de racionalidade e superioridade, criou-se um

mecanism o de controle de sentidos da no rma, expresso em seu uso técnico.

Isso quer dizer, conforme nos leciona Warat, que o apelo ao técnico per

mitiu “referendar como legitimável somente aqueles usos da linguagem prove

nientes de prát icas insti tucionais específicas” ,0.

10 Introdução ao Direito, p.67.

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Hermenêutica Jurídica 55

O método gramatical oculta o trabalho subjetivo do intérprete ao pregar

a suficiência da lei e a remissão ao técnico. Esconde que há um ato de vontade

do sujeito ao interpretar o sistema normativo e tratá-lo como um ente claro

e unívoco cuja cientificidade garante a aplicação justa da lei e a soberania das

Assembleias Legislativas.

4. Método exegético e o espírito do legislador 

Já analisamos em que medida a Escola Literal propõe uma leitura do texto

normativo a partir das concepções napoleônicas de autossuficiência das leis e

respeito absoluto ao objetivamente estabelecido.

O método exegético concorda com todas essas premissas, com a parti cu

laridade de que reconhece como válido o sentido da norm a obt ido pela inves

tigação do espírito do legislador.

Cumpre-nos ressaltar ser corriqueiro o uso dos termos interpretação li

teral, gramatical ou exegética, para significar o mesmo método. A maioria das

obras jurídicas brasileiras traz a inte rpretação exegética como sinôn ima da lite

ral (ou gramatical) e trata, separadam ente, daquilo que se chama de espírito do

legislador (mens legislatoris) em oposição ao espírito da lei (mens legis). Não esposamos tal classificação. Optam os por trabalhar a mens legislatoris 

dentro da Escola Exegética como assim o faz Warat, dada a coerência histórica de

sua doutrina que trata aquela como um desenvolvimento do método gramatical.

Tanto no Direito vigente à época do séc. XIX, quanto na religião, buscava-

se conhecer a vontade da Autoridade Suprema por meio dos textos. No Direito,

estar-se-ia diante da vontade da Assembleia Legislativa (e do legislador em par

ticular). Na religião, ninguém menos do que Deus.

Por isso, há uma distinção entre o método gramatical com seu apego aosenunciados literais da lei e o método exegético que apura a vontade do legisla

dor, sem imped ir que os dois dialoguem (talvez daí o tr atamento igualitário e,

às vezes, confuso dado pela maior parte da dout rina ).

O próprio método gramatical deve ser utilizado como um estudo intro

dutório filológico da no rma que, a fim e a cabo, permite reforçar as descobertas

das intenções legislativas. Dessa forma, o papel do intérprete se torna um in

vestigar psicológico do ente abstrato comp reend ido como legislador.

Aqui a filosofia de Schleiermacher se encaixa como uma luva para aqueles que acreditam que o discurso só pode ser compreendido pela digressão à

mente de seu autor.

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56 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

Trata-se de um raciocínio, no mínimo, tentador, pois visa à conservação

da vontade original do sujeito em seu discurso. Ora, se tal mensagem foi pro

ferida por determinado autor, nada mais honesto do que preservar o sentido

desejado por aquele que a emanou!

Todavia, há que se considerar diversas circunstâncias em que tal correla

ção não é satisfatória.

Em primeiro lugar, precisamos notar que, muitas vezes, o legislador é

omisso em determinadas situações, sendo que a remissão ao seu pensamento

não será útil.

Em um segundo momento, teríamos de admitir que, se a intenção do

legislador é onde reside o sentido da norma, então o enunciado legal não é

 perfeito e pode es tar equivocado, o que promoverá o afastamento do método

literal e a quebra do culto à lei.

Um terceiro raciocínio exige que se estabeleçam critérios de pesquisa da

subjetividade, caso contrário, a hermenêutica não será um método, mas pura

discricionariedade do intérprete.

Por fim, seria necessário determinar quem exatamente deveria ter a sua

vontade interpretada, haja vista que o Parlamento é composto por u ma plura

lidade de m emb ros e cada um possui suas próprias intenções.Além do mais, o método exegético, apesar de seu nobre ideal, como todos

os outros métodos, não é isento de uma postura ideológica que visa à afirma

ção de determ inado valor.

De acordo com W ara t11, a ideologia que reina no método exegético é a

afirmação dos interesses da burguesia, a qual ascendeu socialmente com a Re

volução Francesa e passou a ocupar as cadeiras do Parlamento. A preservação

de seu pod er só pode se realizar quando se atribui ao legislador (leia-se burgu e

sia) toda a validade de sentidos da lei, e a mais ninguém. Na práxis ju rídica , o problema que essa metodologia acabou tendo que

enfrentar foi referente à identificação de quem é especificamente legislador,

quem deve ter o seu espírito descoberto.

Os trabalhos de elaboração da norm a implicam um a complexidade e di

versidade de atos intencionais que não se resumem a uma vontade única e

geral. A experiência moderna de Carlos Maximiliano nos mostra como isto

ocorre:

11 Ibidem, p.69.

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Hermenêutica Jurídica 57

Em um a das forjas da lei, no Par lamento, composto, em regra , de duas C âm a

ras, fundem-se opiniões múltiplas, o conjunto resulta de frações de ideias, amal-

gamadas; cada representante do povo aceita por um motivo pessoal a inclusão de

 pala vra ou frase, v isando a um obje ti vo par ticu lar a que o m esm o se pre st a; há o

acord o apa rente, resultado de profu nda s contradiçõe s. Bastas vezes a redação final

resulta imprecisa, ambígua, revelando-se o produto da inelutável necessidade de

transigir com exigências pequ enina s a fim de conseguir a passagem da ideia prin

cipal.

Se descerem a exum ar o p ensam ento d o legislador, perder-se-ão em um bá-

ra to de dúvidas maiores a inda e m ais inextr incáveis do q ue as resul tantes do co n

texto. Os mot ivos que ind uziram alguém a pro po r a le i, pod em não ser os mesm o

qu e levaram ou tro s a aceitá-la [. . .].12

Essa concorrênc ia de vontades e intenções não pe rmite o encontro com o

sent ido unívoco, o que fragiliza a metódica exegética.

Em posição oposta se coloca Neil MacCormick, professor da universidade

de Edinburgo, para quem a busca da tnens legislatoris não se consubstancia em

explorar um ente abstrato e imaginário, mas tentar compreender quais foram

os traços deixados faticamente pelo labor legislativo que pe rmitem extrair umainterpretação.

Q uan do a intenção do Parlamen to es tá em ques tão, isso inclui re la tór ios de

certas comissões, trabalhos de certos comitês e coisas do gênero que identificam

um cer to desvio e propõem poss íveis remédios para e le . A “ intenção do Parla

m ento ” exerce um papel adequa do na interpre tação das leis não p orqu e cons ista

em um es tado m enta l próp rio a a lguém e passível de ser descoberto, que é capaz

de explicar com especial autoridade as palavras usadas em um certo sentido. Aocontrário, é porque o legislador edita as leis em vernáculo, usando um registro

 particu lar; p o rque a to s racionais de le gis la ção se ap resentam ju n tos de u m a form a

coerente , tanto internam ente qu anto em re lação ao res to do s istema jur ídico .13

Historicamente, no Brasil Império, a Lei da Boa Razão obrigava os ma

gistrados a suspenderem o julgamento, quando em presença de controvérsias

acerca de um dispositivo, e se dirigissem ao Regedor para que ele efetuasse uma

12 Hermenêutica e aplicação do Direito , p.5.

13 Retórica e o estado de direito , p. 182.

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58 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

interpre tação autêntica e válida.14Tal situação, apesar de sua lógica interna, no

 presente desenvolvimento da separação dos Poderes e seus contornos constitu

cionais, faz-se tota lmente inviável.

Até mesmo porque , o Legislativo hodierno é extrem amen te plural, rechea

do de fisiologismos partidários e negociações de interesses que não permitem,

na maioria dos casos, uma célere legislação a respeito de um determinado

tema. Muitas vezes, não há ambiente político para a votação de uma matéria,

não podendo o Poder Judiciário aguardá-los para a resolução da lide.

Confo rme se analisará na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal bra

sileiro, já houve casos recentes em que o magistrado esperou por dois anos a p ro

dução legal de uma omissão legislativa vintenária, sem obter qualquer êxito.13

Uma criação que surgiu com arrimo na Escola Exegética foi o chamado

método genético. Trata-se da avaliação dos trabalhos legislativos prévios, atas

de reunião de comissão, discursos no Parlamen to e preâmbulos que explicam

os fundamentos da norm a em questão.

Apesar de constituir elemento interessante de interpretação, o método

genético promove uma confusão entre o espírito do legislador e a história da

lei, sendo de difícil precisão teórica. Muitos doutrinadores não consagram tal

método em suas classificações, muitas vezes inserindo seu raciocínio dentro da pesquisa da mens legistoris ou no método histórico.

Conforme já vimos, é extremamente difícil (quando não impossível) re

conhecer o sentido da lei a partir da pesquisa dos documentos e pronuncia

mentos dos legisladores e seus debates travados. A pluralidade de intenções

aliada aos acordos políticos realizados para a promulgação da lei impedem o

intérprete de precisar o sentido da norma com base em tais dados. Além do

mais, a arena política é recheada de intenções obscuras e de negociações, o que

esconde a real vontade do parlamentar. Não se deve menosprezar , ent retanto, que o material legislativo prévio

representa uma vasta composição de ideias que auxiliam, eventualmente, na

interpretação do texto normativo.

14“O Código Civil do Uruguai preceitua que, em surg indo dúvidas sôbre a interpretação ou apli

cação dos textos, o comuniquem os tribuna is ao Poder Executivo, a fim de que êste inicie peran te

as Câmaras uma exegese autêntica, ou novas disposições sobre o assunto; entretanto, nem por

isso ficam os magistrados libertados do dever impreterível de decidirem matéria da sua compe

tência, apesar do silêncio, obscuridade ou insuficiência das leis, representam , expõem a necessidade do reméd io legislativo; mas nao suspendem o julgame nto (arts. Io e 15).” m a x i m i l i a n o , Carlos.

 Hermenêutica e aplicação do Direito, p.68-9.

Ver capítulo 4, item 3.

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Hermenêutica Jurídica 59

Conforme pudemos verificar, a busca da interpretação autêntica resulta

na consagração de um ente abstrato que supostamente teria o direito de dizer

o legítimo e o ilegítimo. Entretanto, este ente inexistente não passa de uma jus

tificação dos anseios de uma classe determinada que arroga para si a validade

dos sentidos legais, não permitindo que tendências opostas se coloquem às

suas pretensões.

A proteção da mens legislatoris resulta no primado da submissão do intér

 prete aos di tames classistas dos parlamentares, os quais, dotados da soberania

 popular, ac redi tam ser os ún icos aptos a dizer o Direito.

Peter Hãberle, em sua obra  Hermenêutica constituc ionall6, prega a demo

cratização da interpretação constitucional na sociedade aberta e plural, ba

seada no reconhecimento de que todo aquele que vive a Constituição é seu

intérprete, não podendo ser admitido um sistema fechado de entes legítimos

a promover a sua interpretação. Deve-se encarar o tema da Constituição e da

realidade constitucional, favorecendo uma metodolog ia voltada ao atendimen

to do interesse público e do bem-esta r geral .17

 Não teceremos detalhes a respeito da tese habérl iana, mesmo porque ela

exige o aprofundamento das teorias constitucionais, entretanto, esposaremos

sua ideia de que o texto legal não pode ter a sua interpretação legitimada porapenas um ente ou alguns entes, quando, na verdade, a realidade demonstra

que diversos intérpretes serão afetados por ela e suas opiniões podem ser úteis

 para o alcance da melhor decisão.

Concluímos assim que, mais uma vez, a pretensa criação de um método

imparcial e equânime (o exegético) se revelou como uma forma de manuten

ção do status cjuo, a partir da mentalidade conservadora de manter o sistema

 jur íd ico tota lmente at re lado ao Parlamento e inibindo qualquer a to criativo de

entes externos à política legislativa.

5. Método lógico-sistemático

Os pressupostos da Escola da Exegese resultaram na aceitação pelo in

térprete do culto à lei, tanto em razão de seu valor gramatical quanto pela

 possibil idade de sua condução à mens legislatoris. Os métodos criados propor

16 A Hermenêutica constitucional — A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição 

 para a interpretação pluralista e “procedim ental” da Constituição.

17Ibid em,p .l2.

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60 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

cionaram o desenvolvimento de um sistema jurídico suficiente para solucionar

um a grande parte deis lides judiciais.

Entretanto, dois problemas persistiam na legislação: a existência de lacu

nas, vista como uma situação não legislada e que exige uma decisão; e as an

tinomias, em que uma norma dispõe de modo contraditório a outra sobre o

mesmo assunto.

Quando um cidadão necessita saber qual conduta tomar, o ordenamento

 jurídico não pode deixar de apresentar uma resposta, sob o argumento de que

o legislador nada dispôs sobre aquilo especificamente. Isso daria ao indivíduo o

 poder de decidir o que fazer, deixando o Direito ao livre-arbítrio dos homens e

enfraquecendo o Poder Legislativo.

Da mesma forma, não pode a legislação apresentar mais de uma regula

mentação com impactos incompatíveis para a mesma situação jurídica, sob

 pena de term os um confli to entre as próp rias normas e a conseqüente quebra

da unidade e força do ordenamento como um todo.

O método lógico-sistemático visa justamente a resolver esses dois pro

 blemas e a manter a int egridade e coerência da legislação, na medida em que

exige uma interpretação de cada norma particular em conjunto com o todo

do ordenamento. No caso da lacuna, a metodologia lógico-sistemática visará a encontrar uma norma no ordenamento que a preencha sob uma ótica

 pragmática. Já na antinomia, a metodologia avaliará as leis incompatívei s e

excluirá uma delas.

A leitura do Direito como um sistema lógico exige que cada artigo de lei

esteja em consonância com o ordenamento como um todo. A despeito de seu

conteúdo ser válido ou não do ponto de vista formal, o artigo só será aplicável

se estiver em h arm on ia com as demais disposições legais, caso contrário, outro

artigo igualmente válido, mas mais adequado e coerente, será aplicado.Isso nos remete à velha orientação retórica discursiva, na qual a parte con

forma o todo, e o todo conforma a parte. A relação dialética entre ambos exige

do intérprete um aprofundamento de sentidos e uma pesquisa nos substratos do

ordenamento para aferir se há, ou não, uma ru ptu ra que torne a norma incom

 patível.

Ressalta-se que a incompatibilidade é própria das antinomias, pois, ao

contrário do que se comumente propaga na doutrina, as antinomias não se

referem a uma dupla regulamentação em sentidos diversos, trata-se, antes,da existência de uma verdadeira incompatibilidade, como bem leciona Pe

relman:

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Hermenêutica Jurídica 61

Diremos que es tamos, num s is tema de di re i to, diante de uma ant inomia  

quando, em relação a um caso específico, existem no sistema diretrizes incom

 patíveis , às quais não se pode confo rm ar-se s im ultaneam en te , se ja po rqu e im

 põem dua s obrigações em sentido oposto, se ja p o rq u e um a p ro íbe o que a o u tra

 p e rm ite e não é poss ív el se co n fo rm ar a u m a sem vio lar a ou tra . As an tinom ias,

ass im com preendidas , não dizem respei to ao verdadeiro ou ao fa lso, não af i rmam

s imul taneamente duas propos ições cont rad i tór ia s , mas consi s tem em um a no r

ma única ou v ár ias no rm as cuja apl icação conduz, em dada s i tuação, a di re t rizes

inco m patív eis.18

Tendo-se em vista o problema das antinomias , diversas regras de interpre

tação foram criadas, positivadas nos códigos e enraizadas na cultura jurídica,

com o fito de resolver problemas práticos com o auxílio de regras simples e

claras: lei posterior derroga lei anterior, lei especial prevalece sobre lei geral, a

lei mais benéfica prevalece em favor do réu, entre outras.

Aparentemente, essa leitura lógico-sistemática resolveria os problemas da

antino mia elencando critérios objetivos para o afastamento de um a norm a em

favor de outra. Se uma lei diz que mata r cachorros é permitido, e outra, poste

riormente, estabelece o crime daqueles que matarem cachorros, basta aplicaro critério temporal para afastar a primeira e mais antiga e favorecer a mais

recente.

Todavia, a objetividade e imparcialidade que pre ssupõem as considera

ções do tipo temporal, hierárquica e outras não são suficientes para resolver

todas as situações de conflito entre normas, mesmo porque nem sempre há

um escalonamento de valores entre elas. Pode ocorrer, por exemplo, de uma

lei mais nova ser editada em contradição à outra mais antiga que lhe é hie

rarquicamente superior. Nesse caso, qual critério favorecer? A hierarquia oua cronologia?

Ainda que se estabelecessem regras  das regras de interpretação, o fato é

que as conexões sistemáticas existentes entre as normas de um ordenamento

 jur ídico não obedecem a razões puramente formais. Nem sempre o conteúdo

das leis permite estabelecer critérios precisos de qualificação e mediação, o que

 permitiria comparar umas com as outras.

Isso ocorre, principalmente, com as legislações do pós-Segunda Guerra que

foram inundadas de preceitos principiológicos e axiológicos, inviabilizadores

18 Lógica jurídica: nova retórica>p.54.

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62 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

de qualquer modelo sistemático e objetivo de interpretação. O pós-moderno

é recheado de aberturas e flexibilizações que não permitem o enquadramento

estrito da lei dentro de critérios formais orientados pela lógica tradicional.

Como resolver o conflito entre duas normas que fazem referência a dois

valores legítimos? Como sopesá-los e afastar um se ambos são válidos e positi

vados no ordenamento?

Podemos imaginar uma situação em que uma propriedade rural impro

dutiva é invadida por famílias para realização de cultura de subsistência. No

caso em tela, devemos valorizar a lei que reconhece a propriedade privada,

retirando as famílias, ou aquela que determina a função social da propriedade,

 permitindo sua instalação? E o pr incípio da solidariedade, se aplica?19

 Nessa es te ira , Robert Alexy em sua obra Theorie der Grundrechte20>

 promoveu uma leitura do Direito a partir de duas ideias-chaves: primeiro,

há de se diferenciar a norma do enunciado da norma; segundo, as normas

a partir de seu conteúdo material podem ser divididas em regras e princí

 pios.

As regras são norm as que são cumprida s - ou não -, em sua integralida-

de.21Por exemplo, se a lei determina a obrigação t ribu tár ia do cidadão de pagar

impostos, ao fazê-lo, concretiza-se a norma integralmente. Se o indivíduo nãodeclarar o imposto, a norma não foi concretizada totalmente. As regras são

cumprida s ou não. Não há meio termo.

Em havendo conflitos entre regras, pode-se resolvê-los pela aferição da

validade de cada uma das regras ou determinando-se que uma é a exceção

da outra. Por exemplo: uma lei reza que não é perm itido nadar em lagos. Pos

teriormente, edita-se uma lei que permite a realização de provas profissionais

de natação nos lagos. Há uma ant inom ia no caso em tela? Não, se enxergarmos

a segunda como a simples exceção da primeira. Nesse campo , Alexy faz menção ao uso das máximas jur íd icas como m o

dos de solução de conflitos, conforme já vimos. Por exemplo, lex posterior de- 

rogat legi priori , lex specialis derogat lexgenerali etc.

19O exemplo é simples e não trata de detalhes que podem auxiliar a resolver o caso, nem analisa

a legislação específica acerca do tema. Utilizamos o exemplo não como referência à realidadelegislativa brasileira, mas apenas porque ilustra de form a clara e didática os conflitos normativos

que podem advir de determinada situação.

20 a l e x y , Robert. /\ the oryo f constitutional rights. A obra foi traduzida para o português pelo professor Virgílio Afonso da Silva com o título de Teoria dos direitos fundamentais e publicada pela

Malheiros.

21 Ibidem, p.48.

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Hermenêutica Jurídica 63

Os princípios, por sua vez, sâo normas que exigem sua máxima realização

dadas as possibilidades legais e factuais.22 O princíp io da dignidade hum ana,

 por exemplo, nunca será plenamente concretizado, caso contrário, o mundo

será perfeito. Todavia, é exigida a realização de tal princípio dentro das possi

 bilidades jur íd icas e factuais.

Quando houver conflito entre princípios entra em cena a aplicação da

 proporcionalidade. Não entrando em detalhes da teoria de Alexy, a proporcio

nalidade implica um sopesamento dos princípios em jogo, e deverá estabelecer

um a relação de precedência entre eles em razão das circunstâncias particulares

do caso concreto. Tal relação de precedência, nas circunstâncias específicas, to

mará a forma de uma regra que favorecerá a aplicação de um dos princíp ios.23

Em out ro caso, sob um diferente contexto, a ordem de prevalência dos prin cí

 pios poderá ser alterada.

A doutrina de Alexy, trabalhada aqui de forma singela, demonstra que o

método lógico-sistemático não pode estar adstrito a uma visão formal da lei,

 pois o conteúdo da norma exige um avanço sobre o subjetivo para dali se ex

trair a racionalidade e coerência do sistema.

Outrossim, devemos nos lembrar que estamos estudando aqui uma sis-

tematicidade embasada na resolução de antinomias. O problema, entretanto,não se resume a elas, mas se estende sobre o conceito de lacuna e pode tamb ém

se confundir com a ideia do justo. Pergunta-se: o Direito justo não é lógico?

 Não negamos que o método lógico-sistemático seja válido quando pro

 põe uma leitura da parte com o todo e, nessa dinâmica, viabilize a coerência.

O ideal de um Direito harmônico e integral é legítimo e de bom grado. O

que se verifica é que a estrutura da norma, como a conhecemos hoje, exige

uma releitura daquilo que se considera como conexão-lógica entre os manda

mentos legais. Somente assim será possível imaginar um ordenamento amploe equilibrado, sem cair nas armadilhas ideológicas da completude do Direito

existentes no passado.

6.A analogia e as interpretações extensiva e restritiva

O sentido primeiro do termo analogia é o de semelhança, similitude. Na

doutrina jurídica tradicional, costuma-se tratar a analogia como u m procedi

21 Ibidcm, p.47.

23 Ibidcm, p.54-5.

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64 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

me nto lógico21que visa a preencher um a lacuna legal, por meio da aplicação de

um a no rma que regulamenta um a situação semelhante.

 Nesse sentido, Maria Helena Diniz conceitua a analogia como uma forma

de integração de lacunas “que consiste em aplicar a um caso não contemplado de

modo direto ou específico por uma norma jurídica, uma norma prevista para uma

hipótese distinta, mas semelhante ao caso não contemplado”25.

O emprego da analogia no Direito exige um a dup la investigação: prime i

ro, realiza-se a comparação entre a situação de fato não legislada e aquela que

 possui uma norma reguladora; pos teriormente, examina-se a ratio juris  desta

norma e a sua pertinência à situação lacunosa. Há, portanto, uma avaliação

de cunho empírico aliada a um juízo valorativo acerca do possível tra tam ento

 jur ídico idêntico das situações.

Ilustrativamente, podemos imaginar uma placa afixada em um parque

com os dizeres “proibido pisar na grama”. Se em dete rmin ado espaço do gra

mado começam a crescer rosas, poder-se-á facilmente interpretar, analogica-

mente, que não se deve pisar nas rosas também, pois há uma relação de simi

litude entre a grama e a rosa para os propósitos da razão da norma que é a

 preservação do ja rdim.

A similitude exigida pela analogia está vinculada tanto às característicasdaquilo que é comparado (grama e rosas), como também à razão de existência

da norma (preservação do jardim), aplicável às situações em exame.

Se, em vez de tomarmos as rosas que nascem no parque, verificarmos que

ali existe um coqueiro adulto, a analogia será inviável dada a própria incapaci

dade física de pisar em um coqueiro de larga proporção (ainda que seja deseja

da a preservação do coqueiro no jardim).

Por outro lado, caso comece a nascer capim no gramado, a relação

de similitude que se quebra não é a das características dos objetos passíveis de aplicação da norma, uma vez que capim e grama são próximos em

termos botânicos. O que se quebra no caso em tela é a similitude da razão

24 Utilizamos o termo lógico no caso em tela com o sentido de coerente, inteligente, não intentando

vinculá-la a uma lógica em sentido estrito. A anotação é válida uma vez que é tortuoso na doutrina o

 pos icionamento da analogia, seja no campo hermenêutico, retór ico ou lógico. Alguns a tratam como

uma forma de argumentação, outros como um raciocínio lógico, e outros, por fim, a inserem junto a

hermenêutica. De nossa parte, haja vista a vinculação deste trabalho aos métodos de interpretação da

lei e a própria positivação dos diplomas legais de que a analogia é uma forma de interpre tar a norma,optamos por inseri-la nos capítulos referentes aos métodos, o que não quer dizer que não reconheça

mos seu papel persuasivo-retórico ou sua relação com a lógica.

25Compêndio dc introdução ã ciência do Direito, p.457.

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Hermenêutica Jurídica 65

da norma (ratio juri$)>  pois não é benéfico para a preservação do parque a

 permanência do capim.

 Nesse aspecto, apresentamos uma visão da analogia estr itamente ligada ao

seu uso no Direito, haja vista que, na retórica moderna, a analogia é avaliada

apenas em função da similitude das relações existentes entre os elementos do

discurso (qualificados como foro e tema), e não dos elementos em si.

Um exemplo clássico de analogia está presente nos textos de Aristóteles:

“Assim como os olhos dos morcegos são ofuscados pela luz do dia, a inteligên

cia de nossa alma é ofuscada pelas coisas mais na turalm ente evidentes.”26

Como bem se pode observar, a analogia aqui existente é entre duas rela

ções: a dos olhos do morcego com a luz solar, e a do intelecto humano com

as coisas naturais. Independe neste caso a similitude entre luz solar e coisas

naturais, assim como olhos do morcego e intelecto humano.

Tal peculiaridade não invalida o que mencionamos anteriormente, posto

que a analogia é tratada de forma diferente nos diversos campos do saber. Os

 juristas, pa rticularm ente, in fluenciados pelos códigos modernos, enxergam a

analogia como um método interpretativo das lacunas a partir da pesquisa da

ratio existente na norma e das características dos fatos em exame.

Quando o art. 4o da Lei de In trodução ao Código Civil27reza que as lacunasda lei poderão ser solucionadas com o recurso à analogia, determina, explicita

mente, que ao detectar uma omissão, o jurista poderá preenchê-la a partir do

 previsto em uma situação similar. Trata-se de um expediente interpretativo.

A retórica moderna, apoiada em Perelman, assevera que a analogia só

ocorre entre realidades heterogêneas, por exemplo, elementos do mundo fí

sico e do mundo sensível, dificilmente podendo ser encontrada dentro da

mesma disciplina. Segundo tal retórica, não haveria analogia na interpreta

ção da lei dada que as situações comparadas pertencem ao mesmo domíniodo saber.28

Para o fim a que se destina este trabalho, notadamente os métodos

interpretativos jurídicos, não esposaremos a posição de Perelman, dada a

especificidade de seu sistema de classificação de argumentos e a própria

exigência do Direito que positivou o uso da analogia como um método

interpretativo.

26 Metafísica , Liv, 993 b apuei  p f .r k l m a n , Chaim.  Lógica jurídica: nova retórica, p.424.27 “Quand o a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os

 princípios gerais do direito.’'

28 Lógica jurídica: nova retórica, p.426-7; e r e u o u l , Oliver. Introdução ã retórica, p. 186.

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66 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

Posto isso, retornando ao uso da analogia jurídica, sua aplicação exige

duas condições: primeiro, o reconhecimento de uma lacuna; segundo, a exis

tência de uma situação similar normatizada.

A part ir do m om ento em que tais condições estão presentes, o uso da ana

logia se faz quase que de forma espontânea (às vezes até inconsciente), tendo

em vista o imaginário do jurista que privilegia o mítico primado da igualdade

 jur ídica e o da ident idade da razão.

O raciocínio é simples: se a lei exige uma determinada conduta em tal

situação, porque exigiria uma cond uta diversa em u ma situação semelhante?

O que está em jogo é a própria racionalidade do Direito como um todo,

 já que não se pode conceber uma justiça desigual nos casos em que a ratio 

 ju ris   é idêntica. Aqui, aplica-se o secular brocardo romano: ubi eadem legis 

ratio ibe eadem legis dispositio  (onde impera a mesma razão, impera a mesma

decisão).

Desse modo, a força da analogia vincula-se aos ideais de igualdade e racio

nalidade que habitam 110 imaginário do jurista, alocando-se em uma dimensão

idealista de um Direito justo e imparcial.

Entretanto, assim como toda moeda possui duas faces, a mesm a mola que

impulsiona a analogia também pode enfraquecê-la.De acordo com Olivier Reboul,“A analogia é sempre um pouco redutora ,

no sentido de anular tudo o que a relação exclui [...]. É desse mo do que se pode

refutar a analogia. Contesta-se que a semelhança de relações seja uma prova:

comparação não é razão”29.

Isso se torna claro em virtude da quebra do princípio da identidade na

aplicação da analogia. No m om en to em que se reconhece que dois objetos são

similares, também se reconhece que tais objetos são distintos. Se há distinção

entre eles, porque tratá-los como iguais?É a partir desse m om en to que passaremos a uma leitura da analogia sob o

enfoque retórico, em especial em vir tude de seu caráter persuasivo.30

Se tivermos duas situações idênticas, a pura subsunção lógico-formal da

mesma lei bastará a ambas. Por outro lado, se as situações forem próximas,

 parecidas, teremos que realizar um juízo de ponderação para saber se efetiva

mente a similitude é tal que justifique o emprego da mesma lei.

29 Introdução ã retórica, p. 186.

30 A rejeição que fizemos da classificação de Perelman para os fins deste trabalho jurídico, não

implica que seja negada a natureza retórica da analogia.

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Hermenêutica Jurídica 67

Dito juízo nào se apresenta aos olhos do sujeito como um método na

forma como é proposto pela he rmenêuti ca clássica. Ao contrário, o juízo ava-

liativo será retórico na med ida em que deverá justificar e dem ons tra r persuasi-

vamente po rque um a situação é similar a outra e merece o mesm o tra tamento

legal, quando diversos fatores são distintos.

Suponhamos que exista a norma A aplicável ao caso B e C seja lacunoso.

Se B tiver as características x, y, w  e z e C  tiver as características x yy, p  e z, será

 justificável a aplicação de A ao caso C? Ainda que a maior ia dos elementos seja

igual, será que p e w não podem representar um traço essencial de sua natureza

que os torne diametralmente distintos?

O juízo avaliativo será necessário para o inté rprete d em ons tra r e conven

cer acerca da adequação da analogia proposta, haja vista que, no limite, ne nh u

ma situação é idêntica a outra, p ode ndo elas ser mais ou menos similares.

Uma outra questão interessante ocorre quando se confronta a analogia

com a interpretação extensiva. Na prática, ambas são confundidas com fre

quência em razão da imprecisão terminológica com que são tratadas.

A interpretação extensiva é aquela em que os termos de uma nor ma têm o

seu sentido ampliacio, abarcando uma situação que aparentemente não estava

contida em seu sentido primeiro. É o contrário do que ocorre na interpretaçãorestritiva em que os termos do enunc iado normativo devem ser vistos de forma

 precisa e taxativa.

Tomemos como exemplo uma lei hipotética que isenta de pagamento de

tributos os automóveis de motor 1.0, 1.4 e 1.8. Nesse caso, como ficariam os

veículos 1.6?

Se tomarm os em conta a interpretação restritiva, os automóveis 1.6 esta

rão categoricamente excluídos da isenção proposta já que não constam do rol.

Porém, se empregarmos a analogia ou a interpretação extensiva alcançaremoso resultado inverso, isto é, os automóveis 1.6 deverão ser isentos de tributos

 pois estão em situação similar a dos demais veículos do rol.

Sob esses primas qual é então a diferença entre empregar a analogia e a

interpretação extensiva se o resultado é o mesmo?

A problemática aqui reside em distinguir o procedimento que estende o

sent ido da lei para um a situação lacunosa e aquele que aplica um a lei a um caso

similar lacunoso. As duas operações são próximas e, por isso, alguns dout rina-

dores afirmam que a inte rpretação extensiva é uma espécie de analogia.Em sentido contrário, favorável à distinção, o jurista italiano Francesco

Ferrara afirma:

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68 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

A analogia dist ingue -se da interpre tação extensiva.

De facto, uma aplica-se qua ndo um caso não é contem plado por u m a disposição

de lei, enquanto a outra pressupõe que o caso já está comp reendido na regulam enta

ção jurídica, en tran do no sen tido de um a disposição, se bem qu e fuja à sua letra.

A interp retaçã o extensiva não faz mais do q ue re con struir a vontad e legisla

tiva já existente, para uma relação que só por inexacta formulação dessa vontade

 pare ce exclu íd a; a analo gia , pelo contrá rio , est á em presença d u m a lacuna, d u m

caso não p revenido, para o q ual nã o existe um a vo ntad e legislativa, e proc ura t irá-

la de casos afins corr espo nd ente s.31

A distinção é válida mas encontra obstáculos. Não é fácil determinar

qu ando um sent ido fazia parte da vontade legislativa e deixou de constar na lei

 por equívoco e, por outro lado, quando houve uma omissão desejada. Afinal de

contas, entraremos no tortuoso campo da mens legislatoris e da mens legis.

 No exemplo que demos an te riormente, pod emos considerar que os auto

móveis de motor 1.6 não constavam da norma por pura falha legislativa, ou,

eventualmente, pode o legislador ter optado por não inseri-los no rol pois havia

uma razão para tal. Imaginemos, por exemplo, que tais veículos são fabricados

com componentes do exterior e que o governo possui razões políticas para preservar a indústria nacional. Isso seria um fator razoável para excluir tais veículos

da lista de isenção, sem, contudo, violar o prim ado da isonomia jurídica.

Dessa forma, percebe-se que a analogia e a interpretação extensiva se to

cam e, muitas vezes, não permitem uma identificação precisa a respeito do

raciocínio empregado. Isso não implicará prejuízo para o intérprete, dado que

as conseqüências são geralmente as mesmas e a utilização de uma ou outra fica

à margem de sua discricionar iedade e conveniência .32

7. Método histórico

A Escola Histórica nasceu na Alemanha pré-unificada sob os ensinamen

tos de Savigny, para quem o Direito só poderia ser explicado a par tir da história

do povo que o construiu.

“In terpretação e aplicação das leis”, p. 162-3.

32 É o que pode ocor rer no camp o do direito penal brasileiro no qual a analogia é proibida, masa interpretação extensiva não o e de forma clara, havendo grandes debates na doutrina acerca do

tema. Por outro lado, o Código de Processo Penal admite, expressamente, a interpretação exten

siva e a aplicação analógica em seu art. 3o.

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Hermenêutica Jurídica 69

O fato de a Alemanha somente ter publicado seu primeiro código em

 pr inc íp ios do séc. XX, conferiu a seus es tudiosos uma visão menos legalista do

que aquela apresentada pelos franceses da Escola Exegética.

O Direito Romano, largamente estudado pelos alemães, influenciou deve

ras a valoração que estes concederam aos usos e costumes como fonte do Di

reito. É a história de um povo que constrói e atribui sentido ao sistema jurídico,

não podendo este se descolar daquele.

O Direito, assim como o Estado, somente são explicados e justificados a par

tir da História que prescinde a ambos. Os costumes, mais do que meros hábitos,

traduzem a consciência coletiva da Nação que se quer ver refletida nas leis.

Quebra-se o fetiche do legislador como único ente autênt ico para falar em

nome da Nação. Seu discurso não é mais visto como lógico e perfeito, sendo

necessário o recurso a outras fontes para se revelar o Direito. A completude

do código vai aos poucos sendo percebida como uma tarefa inexequível face à

complexidade da vida.

Dessa forma, o método histórico prega um retorno do homem às suas

tradições para nelas encontrar o sentido de sua existência atual. É preciso en

contrar qual é o fio condutor que nos transporta do passado ao presente e nos

conduz ao futuro. Existe uma lógica, uma razão pela qual as coisas são de umaforma e não de outra, e este fundamento é histórico e deve ser evidenciado.

 Na medida em que o passado dialoga com o presente, faz-se necessário

realizar um juízo acerca da razão existente na criação legislativa pretérita e sua

adequação ao caso presente. A edição de uma lei sempre ocorre em um mo

mento cronológico anterior à sua aplicação e, portanto, deve-se investigar se

há uma linha histórica que sustenta estes dois momentos no tempo. Se não

houver, a aplicação daquela lei não fará mais sentido, pois sua razão originária

 já não é mais apropriada.Essa linha histórica, na doutr ina de Savigny, deveria ser entendida de acor

do com os sentimentos coletivos da Nação, os quais explicam e justificam o

sentido do Direito.

Apesar dos avanços aferidos por tal método, não se pode dizer que ele

tenha desamarrado a hermenêutica de seus traços exegéticos. Como já disse

mos, a percepção histórica permitiu a introdução de um novo elemento inter-

 pretativo, mas ainda não deixava que este se instalasse como uma força livre e

criativa, como sua dou trin a faria supor.Há uma comunicação muito forte entre as Escolas Exegéticas e Históri

cas, quando ambas concebem a interpretação como uma atividade realizável

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70 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

somente por meio do texto legal. A História, por mais que tenha significativa

importância, deverá ser encontrada unicamente pelo texto da lei, e nunca além

dele.

O próprio pai da escola, Savigny, considera que a hermenêutica deve ser

realizada por meio dos métodos literal, sistemático e histórico. A força do texto

exegético, portanto, continua presente, o que se perde é a força do legislador

com o única fonte autêntica de interpretação da lei.

Essa é a zona c inzenta a que se referiu Perelman, quando ressalta que nessa

escola ainda não há uma verdadeira liberdade e um novo raciocínio jurídico,

embora progressos existam.

O magistrado então, ao se deparar com a lei, deverá efetuar sua in terpre

tação literal e promover um diálogo desta com os sentimentos coletivos da

nação. Os valores do povo, seus usos e costumes, são razões de existência da lei

e devem ser tomados em consideração na investigação hermenêutica.

De acordo com Warat, existe aqui uma troca de fetiches. O que para a

Escola Exegética é o recurso à vontade do legislador, na Escola Histórica é

a remissão ao espírito do povo.

Desde logo se percebe que a base histórica d a escola é ideológica. Os fenômenos jur íd icos são pro dutos de um de te rmini sm o causa i, pensado i lusor iamente

com o o m elhor cam inho pa ra a comp reensão do presente e do passado . Por ou t ra

 par te , os aspecto s so cia is não sã o expli cados po r seus dete rm inan tes , m as rela

cionados metaf is icamente com o espír i to de um povo. A grande preocupação da

escola não é a de com preen der os confl itos sociais em um determ inad o m om ento,

mas l igá-los repressivamente com o passado. Assim o Direito é algo natural que

deve ser captado por a tos da intuição ( ideológica) . Daí porq ue os par t idár io s do

m étodo his tór ico cons iderarem que a le i não é jur isprud encia lm ente con s t ruída ,mas co mpreendida pe lo ju iz a pa r t ir do métod o h i s tór ico , ún ico adequad o p a ra

tal fin alida de.33

A ideologia do recurso à história impõe um determinismo e uma amarra

ao juiz que não pode contrariar os sentimentos coletivos do povo. O Direito

ainda é desprovido de qualquer poder de transformação, não pode atuar ati

vamente 110  construir da Nação, deve apenas aguardar o andar dos tempos e

reconhecer os usos e costumes que se formam no seio da sociedade sem a sua

33 Introdução ao Direito, p.73.

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Hermenêutica Jurídica 71

interferência. O método histórico apresenta uma postura passiva e nào ques

tiona as bases estruturais da norma, ainda as admitindo como texto que deve

ser aplicado.

Um passo mais imp ortante foi feito pelas concepções históricas de cunho

evolutivas. Para esse método, comumente chamado de histórico-evolutivo, a

lei elaborada deve aco mp anh ar as evoluções da sociedade. O conteúdo de uma

norma não deve apenas estar ligado ao passado que o prende e o determina,

deve antes, estar ligado à história que se constrói ao longo do devir.

Aparentemente, esse método revolucionaria a percepção hermenêutica,

 porém, também aqui havia um apego ao texto da lei que lhe impunha limites à

atividade de reconhecimento das mudanças sociais. Ainda que a nor ma deves

se ser entendida sob o prisma da consciência coletiva, a reverência à semântica,

à sintaxe, enfim, à filologia, criava empecilhos de ordem lingüística para a pes

quisa de sentidos da norma.

Os ideais da Escola Histórica foram trazidos para os códigos modernos

 por meio da in terpretação da lei com apo io nos usos e cos tumes. Isso não sig

nifica a consagração do método propostos por Savigny, com todas as suas pe

culiaridades, apenas admite-se a importância da historicidade do Direito e a

construção de valores culturais de uma nação ao longo dos anos. No direito brasileiro, a Lei de Introdução ao Código Civil em seu art. 4o prece itua que:

“Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os

costumes e os princípios gerais do direito.” Nota-se que o magistrado apenas

deve investigar os usos e costumes quando houver lacunas na lei, não o pod en

do fazer quando houver legislação expressa a respeito do tema.

A decisão judicial, vista sob o pr isma da jurisprudência, foi creditada por

muitos doutrinadores como uma das mais importantes tarefas da metódica

histórica, asseverando estes que a investigação das decisões judiciais conduz àapreensão dos m ovimentos de sentidos da historicidade da lei.

Apesar do raciocínio ter validade, isso é uma distorção da doutrina ori

ginária da escola de Savigny, na medida em que confunde a História com a

decisão jurídica em determinado momento temporal. Uma decisão do tribunal

não se confunde com os sentim entos coletivos da Nação a que o mestre alemão

fazia referência, ainda que possa haver uma coincidência eventual entre elas.

Tudo nos parece ser influência dos teóricos do sistema da common law,  em

que se verifica uma certa confusão entre o histórico e o judicial, haja vista aconstrução do Direito desprovido de uma extensa codificação e apoiada nos

 precedentes.

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72 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

Acreditamos, por fim, que a existência e o reconhecimento do históri

co são largamente difundidos e aceitos dentre a comunidade jurídica. Não há

como se negar valor aos usos e costumes, à tradição, aos precedentes judiciais

e trabalhos legislativos prévios.

Todavia, há uma dificuldade contemporânea em aliar o fórum da tradi

ção em que o homem se insere aos rápidos movimentos do pós-moderno. A

remissão ao passado é vista, muitas vezes, como uma amarra à evolução da

humanidade , ao passo que o mo der no se constrói com um a velocidade tal, que

não é possível prever a solidez de suas est rutu ras axiológicas.

É preciso que haja um diálogo mediado pelo intérprete, sem que este caia em

uma dicotomia reducionista que enxerga a decisão como uma opção entre passa

do ou futuro. Importante, nesse ponto, é enxergar os laços históricos e reconhecer

os movimentos éticos como proposto por Dilthey e Ranke, não se apegando aos

argumentos jur ídicos superficiais que refletem ideias precárias e frágeis.

8. Método teleológico

 Nos finais do séc. XIX, o jurista alemão Rudol f Von Iher ing escreveu as

obras  Der Kampf ums Rechte e  Der Zweck im Recht' \  nas quais realiza uma incisiva crítica ao m odelo lógico-dedutivo e apresenta uma concepção de Direito

com forte apego à finalidade de suas normas.

De acordo com Ihering o Direito nasce da luta cotidiana que a sociedade

trava em seu interior, sendo a lei uma conquista árdua do homem que visa à

 preservação da paz no seio da com unidade.

Desse modo, o Direito deve ser concebido a partir de sua realização práti

ca, do resultado que visa a produzir empiricamente. Contrapõe-se assim à or

dem de comandos abstratos que impregnava o pensam ento jurídico vinculadoà Jurisprudência Conceituai.

A norma jurídica não é um fim em si mesma, mas uma disposição que

conduz a uma finalidade. Esta finalidade, no limite, é sempre a da preservação

social.

A edição de uma lei não é um fenômeno ao acaso. Tudo aquilo que se faz

no Parlamento, faz-se com vistas a um resultado pragmático, um a conseqüên

cia no plano social. O texto legal é apenas uma referência para o intérprete que

deve encontrar em seu enunciado a razão prática que originou a elaboração

34Entre nós traduz idas como A luta pelo Direito e A finalidade do Direito por diversas editoras.

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Hermenêutica Jurídica 73

legislativa. Caso a interpre tação da lei não alcance tal fim, então o Direito será

ineficaz.

Para a teoria de Ihering, um componente que condiciona a teleologia da

lei são as condições sociais existentes em d eterminado mo me nto histórico. Por

exigir uma aplicação legal atrelada aos efeitos concretos na realidade, a inter

 pretação deveria necessariamente conhecê-las, sendo elas de três tipos: extraju-

rídicas, jur ídicas e mistas.35

Posteriormente, com base no método teleológico, surgiu a Escola da Ju

risprudência de Interesses, cujo expoente maior foi Philipp Heck, jusfilósofo

alemão que abraçou a concepção jurídico-pragmática.

Para essa escola, o Direi to é cons tru ído para a concretização de interesses,

vistos estes como desejos e aspirações existentes na sociedade. Desse modo,

toda no rm a também possui um interesse em seu bojo, sendo trabalho do juris

ta realizar um a hermenêutica de cunh o metodológico histórico que encontre o

sentido que orientou a lei, não como um a vontade subjetiva do legislador, mas

como seu elemento prático determinante , seu interesse causai.36

Todavia, constatou Heck que o encontro do interesse normativo e sua

aplicação pura e simples em determinada situação jurídica pode representar

um grave equívoco. Por isso, o papel do julgador passa a ser o de realizar umaconciliação entre os interesses presentes na norma e aqueles que estão em jogo

na disputa entre as partes. A decisão do magistrado deve se atentar à lei, mas

também aos interesses individuais dos litigantes, estejam eles ligados a fatores

econômicos, artísticos, culturais, religiosos, ou qualquer outro.

O jurista Pound, por sua vez, trabalhou densamente o sent ido da teleologia

sob um a perspectiva da sociologia empírica. Descobrir a finalidade da lei é uma

atividade relacionada a critérios empíricos verificados nos efeitos sociais prag

máticos. As necessidades e vontades da sociedade devem ser saciadas na legislação, a qual não pode ficar refém de especulações que impeçam a sua eficiência.

Essa concepção de fundo da norma é salutar para uma concepção de Di

reito como regulador e transformador social. O atuar pragmático da norma

deve produzir resultados, caso contrário, não passa de letra morta.

Dizer que há um fim na norma, significa ressaltar que existe um núcleo

de vontades e aspirações dentro dela que escapam muitas vezes ao texto. Se

' Para maiores detalhes ver: f e r r e ir a ,  Nazaré do Socorro Conte.  Da interpretação ã hermenêutica   jurídica: uma leitura de Gadamer e Dworkin.

36  p e s s ô a , Leonel Cesarino. A teoria da interpretação jurídica de Emilio Bett i: um a contribuição à 

história do pensamento jurídico moderno, p.26-9.

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74 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

tom arm os o exemplo já utilizado da placa “não pise na grama”, podemos nos

 perguntar: qual a sua finalidade? Para que existe tal no rma? Qual a sua razão

 prática?

A resposta mais provável para tal pergunta é a de que a ordem imposta

visa à preservação da grama, não perm itindo que ela seja pisoteada e destruída

 pelos transeuntes . Dentro dessa sua finalidade, pe rguntamos: será ilícito pisar

na grama para cortá-la e irrigá-la?

 Nesse caso, reconhecendo que a teleologia da norma é da manutenção do

 jard im, o corte e a ir rigação auxil iam tal consecução prática, não devendo ser

considerada como ilícita.

Até os dias atuais, o método teleológico goza de bom prestígio dentre os ma

gistrados que não se eximem de invocá-lo constantemente. A própria legislação

moderna contemplou a utilização de tal recurso hermenêut ico. Dentre nós, a Lei

de Introdução ao Código Civil reza em seu art . 5o que: “Na aplicação da lei, o juiz

atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum ”.

Apesar da vinculação do mé todo teleológico a valores nobres com o a pre

servação social e bem comum, nota-se que os conceitos de pragmaticidade e

finalidade expõem seu caráter político-interpretativo, na m edida em que a ve

rificação empírica de determinada norma sugere sua função transformadorana sociedade, cujas conseqüências e resultados dete rminam seu sentido.

A dificuldade que o método teleológico não responde é a problemática em

se encontrar uma forma de qualificar ou quantificar o interesse social que está

em jogo. As implicações políticas que o método teleológico traz em seu bojo

 permitem que d eterminada in terp re tação seja considerada válida em nome das

necessidades da sociedade.

Ora, ninguém irá negar que a lei efetivamente deve cumprir sua função

social. Mas que interesse social é esse? Quem é essa sociedade? Quem determina o que ela quer?

Toma-se constantemente o interesse próprio como se fosse o de toda a

sociedade, e isso requer que o magistrado esteja atento àquilo que Ferdinand

Lassale cham ou de “fatores reais de poder que regem uma nação”37, caso co n

trário, o Direito estará refém de uma luta entre setores sociais recheados de

finalidades pretensamente jurídicas e pretensam ente coletivas.

<7 A essência da Constituição, p. 17. Em sua investigação sociológica sobre o Direito e Constituição,Lassale conclui que a Lei Fundamental de um país está relacionada aos fatores de poder que a tuam

em sua construção, sendo que, dada a diversidade de classes e interesses, vence sempre aquele que possui a maior força.

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Hermenêutica Jurídica 75

9. Escola da livre pesquisa (libre recherche) e o métodocientífico

 Nas úl timas décadas do séc. XX, o jur ista francês François Geny constru iu

uma doutrina que visava a estabelecer, de forma razoável, uma integração en

tre os ditames da Escola da Exegese e as indagações propostas pelo método

histórico-evolutivo.

Geny cautelosamente reconheceu que o trabalho do intérprete ocorre

dentro de uma dinâmica aparentemente inconciliável: o Direito que deve a

tudo legislar, mas não consegue, e o juiz que não pode se esquivar de julgar

nem pode ser criativo.O mestre francês busca nas filosofias da natureza do homem a resposta

 pa ra essa problemática . O Direito deve ser pensado junto com a filosofia, a

moral, a religião e a ideia de justiça, por isso o jusnaturalismo possui especial

relevo em sua doutrina, que se assenta na necessidade de se pensar a lei como

uma criação racional do homem que visa a organizar a realidade fática com

valorações axiológicas e ideológicas.

Reconhece Geny a existência de uma dimensão subjetiva na formulação

das normas. Inclusive, sua formação pessoal na fé católica o leva a crer que oDireito deve, outrossim, ser legislado conforme a vontade divina.

 Não se tra ta de se conceber a lei com o um instrumento da fé, mas antes,

reconhecer que a moral subjetiva está presente na atividade hermenêutica , seja

qual for o agente interpretativo.

De acordo com o mestre francês, o Direito é formulado sob duas bases:

o dado (le donné ), e o construído (le construit). O primeiro consiste em todo o

universo objetivo da existência humana inserido na natureza. O construído,

 por sua vez, é uma cr iação que se faz sobre os pressupostos do dado.A norma jurídica, vista dessa forma, significa a constatação de uma reali

dade fática que exige a inserção de valores humanos para daí se emanar uma

estrutura legal.

A pesquisa sociológica é um trabalho cie pressuposto da criação da norma

que deve identificar e recortar da realidade aquilo que será concedido um juízo

de valor, podendo este ser feito com remissão à moral, aos costumes, à religião,

entre outras fontes.

As concepções de Geny só não se tornaram revolucionárias porque , aliadaà sua doutrina sociológica e ideológica, ele se mostra extremamente cauteloso

quando se trata de interpretação da lei. Para ele, o trabalho do jurista é aplicar 

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76 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

a norma jurídica da forma como ela está positivada, sem recurso à pretensa

vontade do legislador, nem às considerações histórico-evolutivas de se adaptar

a no rma aos ambientes sociais em formação.

A lei possui den tro de si um com ando fundamental que pode ser verifica

do po r meio da hermenêutica. O mé todo exegético, principalmente, diz aquilo

a que a norma se propõe (voluntas legis), e somente esta vontade é legítima.

Entretanto , sabe Geny que o Direito possui um a eterna inferioridade frente às

ciências da natureza, haja vista não conseguir estabelecer um sistema fechado,

completo e unívoco de conhecimento. Sendo assim, quando o intérprete se

deparar com uma lacuna no ordenamento, deverá primeiro aplicar os métodos

sistemático e histórico para que a unidade do ordenamento seja mantida.

A lei é exponenc ialmente a primeira e ma ior fonte do Direi to e assim deve

ser preservada, colocando-se em um segundo plano as demais fontes formais

(costumes, jurisprudência , dout rina e tradição) e informais (as concepções de

razão, mora l e Direito Natural).

Todavia, não encontrando o juiz resposta no sistema legal dedutivista e

suas fontes formais, deve o mesmo realizar uma livre pesquisa em torno dos

dados racionais e ideais. Por meio da investigação da moral, o juiz poderá for

mular um preceito que determine a solução do caso concreto. Trata-se de um aatividade legislativa restrita a um microcosmos do ordenamen to: a lacuna.

Cada fenôm eno socia l - diz Geny - já t raz em s i mesm o, no seu próp rio

desenvolvimento, a razão de ser de sua no rm a. O social , no seu bojo, con tém em

esboço a solução juríd ica que lhe é própr ia. A regra de direito não é algo de arb i

trário, imposto pelo legislador, mas, ao contrário, algo que obedece a uma ratio 

iurisy  o que quer dizer, à razão natural das cousas.  A natureza das cousas  implica

a apreciação de vários elementos, demográficos, econômicos, históricos, morais ,religiosos etc. O jurista, quando a lacuna é evidente, transforma-se, dessa forma,

em um pesqui sador do Di re ito , pa ra de te rminar a norm a próp r ia concernente ao

caso concreto, de co nfo rm idad e com a ordem geral dos fatos.38

O método científico, como é chamado o trabalho de pesquisa livre do Di

reito, representa um significativo avanço para a ciência jurídica na medida em

que trabalha com duas dimensões: o valor da lei e sua estabilidade, e a função

da ideologia e da mora l conscientemente inserida no Direito.

38 r e a l e , Miguel. Lições preliminares de Direito, p.287.

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Hermenêutica Jurídica 77

O que Geny não percebeu em sua teoria foi que as duas dimensões por ele

analisadas, a lei estrita e as valorações extrassistemáticas, não conseguem ser

tratadas de um a forma estanque como a proposta. A hierarquização do recurso

ao gramatical em superioridade ao ideológico, não funciona a partir de uma

avaliação objetiva da lei.

As lacunas que se encontram no ordenamento, muitas vezes não se referem

à ausência de uma norma aplicável ao caso concreto, mas sim, a um a desaprova

ção de cunho valorativo que impede o intérprete de aplicar tal dispositivo.

As ideologias não atuam apenas como forma de se complementar ou

 preencher os espaços vazios da lei, atuam antes na própr ia elaboração desta e

determinam o sentido da interpretação.

A importância da escola de Geny redunda mais na conscientização que

este promoveu das dimensões do discurso jurídico, do que em sua ousadia em

aplicá-las livremente.

Tanto é que a contemporaneidade, tendo concebido o trabalho da livre

 pesquisa como uma investigação herm enêutica da lei - e não só das lacunas

do Direito -, ainda se questiona até que pon to se deve favorecer o formalismo

legal ou deixar o intérprete se guiar por posições éticas. O Direito é Lei ou é

Moral? Lei e Moral são conciliáveis em um texto? No mesmo sentido, a dúvida fundamental da ob ra de Geny se tr ansfor

mou em um a das maiores indagações da ciência jurídica: como alcançar o Di

reito além da lei, mas por meio  da lei?

10. Método sociológico

O surgimento da sociologia trouxe ao debate jurídico novos elementos

de pesquisa da estrutura normativa, emprestando à metodologia jurídica ouso das ferramentas de investigação sociológica: observação, experimentação,

comparação de dados etc.

O esforço do jurista Diguit (influenciado por Max Weber e Durkheim) vai

ao encontro do Direito com a realidade fática e a força dos movimentos sociais.

Eu sou daqueles - diz Diguit - que pensam que o di re i to é m ui to m enos a

obra de um legis lador que o pro du to con s tante e espontâneo dos fotos. As leis po

sitivas, os códigos, po de m subsist ir intactos em seus textos rígidos; pou co im po rta;

 pel a força das co isas, sob a pressão dos fa to s e das necessid ades práticas se form a

constan temen te ins t i tuições jur ídicas novas . O texto é sempre o mesm o, mas fica

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78 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

sem força e sem vida; ou então , med iante um a exegese sutil se lhe dá u m sentido e

um con teúd o n os quais não havia pensado o legis lador quan do escreveu.39

 Na realidade social encon tra -se um repertór io de dados que dão sent ido a

norma, independente das intenções legislativas ou até mesmo do texto da lei.

0 culto à no rm a deve ser substitu ído pelo culto à realidade social, pois é nesta

que se produz o discurso jurídico.

Em contraposição à livre investigação da escola francesa, o método socio

lógico não transcende as dimensões metafísicas para encontrar uma resposta

interpretativa à lei. As normas jurídicas são extraídas do plano est rito do social,

referenciáveis por meio de constatações empíricas.

De acordo com Diguit, o Direito pode ser resumido ao fato social como

unidade completa de dados que perm ite deduzir a lei. Não adm ite o sociólogo

que tais dados sejam avaliados em term o de valores, ressaltando que o trabalho

 jur íd ico deve ser o de buscar nos métodos sociológicos a assimilação da justiça

com o dado real, nunca como um conteúdo valorativo subjetivo.

Essa empirização do Direito foi relativizada por Hariou, para quem a so

ciologia auxilia o labor jurídico, em vez de determiná-lo por meio do positivis

mo sociológico radical.Trabalhar o fato social é tarefa primordial do jurista que pretende conce

der à sua nor ma um sentido de validez democrática. Miguel Reale, em sua obra

Teoria Tridimensional do Direito, constatou que o Direito deve ser compreen

dido em três aspectos: normativo, fático e axiológico, e que estes não estão

separados um dos outros, mas coexistem numa unidade .40

A doutrina que o método sociológico desenvolveu foi fundamental para

desper tar os juristas a uma dimensão de pesquisa da realidade não muito clara

anteriormente. O que se tornou inviável, por outro lado, foi o uso isolado demétodos de experimentação na ciência do Direito, o que rapidamente foi tido

 pela doutrina como impraticável frente ao conteúdo ético das leis.

1I. Escola do direito livre (Freies Rechts)

O movimento de base sociológica que se expandia na Europa provocou

um grande impacto na mentalidade jurídica internacional, agora, consciente

39 w a r a t , Luis Alberto.  Introdução ao Direito , p.78.

40 Teoria tridimensional do Direito, p.64-5.

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Hermenêutica Jurídica 79

da vinculação do Direito com a realidade social e perante uma nova estrutu ra

normativa.

Outrossim, a Escola da  Libre Recherce ecoava por meio dos ensinamentos

de Geny, cujo sopro de romantismo científico dava asas cada vez maiores ao

operad or jurídico.

Foi nesse quadro que Erlich e Kantorowicz desenvolveram a chamada Es

cola do Direito Livre (Freies Rechts)  na qual, em linhas gerais, pregavam a li

 berd ade do julgador para , mediante um caso concreto, buscar no Direito Livre

a decisão mais justa, podendo a mesma estar de acordo ou não com os ditames

do Direito estatal vigente.

Dada a importânci a de tal Escola - que se refletirá principa lmen te qu an

do da análise dos métodos hermenêuti cos utilizados pela jurisprudên cia m o

derna -, deteremos-nos um pouco mais neste tópico e analisaremos deta

lhadamente o pensamento de Kantorowicz. Em sua obra  Der Kanip f um die 

 Rechtswissenchaf? \  publicada em 1906 sob o pseudô nim o de Gnaeus Flavius,

Hermann U. Kantorowicz descreve com lucidez e agudo poder crítico sua

concepção de Direito, comba tendo de form a assaz os mitos e ideais falaciosos

que habitam a ciência do Direito e a interpretação jurídica, pregando uma

visão transparente e honesta das verdadeiras relações e intenções existentesentre o intérprete e a lei.

Primeiramente, Kantorowicz chama a atenção para o ideal megalomaníaco

do Direito de a tudo querer legislar e a tudo querer resolver. Descreve o autor,

ironicamente, a frágil e ingênua situação do jurista que, fechado em seu escritó

rio e sentado de frente a seu ostentoso código, é subitamente chamado a resolver

um caso. Com o virtuosismo de um mestre, realiza espontaneamente uma dedu

ção lógica entre os ditames da obra estatal e o conflito existente e pronto! Caso

resolvido!42A situação narrada descreve um clássico mito presente no imaginário da

comunidade jurídica, existente em função mesma da sua criação. O próprio

Direito nasce a partir da ideia fundamental de um instrumento regulador das

relações sociais, o que exige um corpo legal de normas que contenha a previsão

abstrata de todas as situações passíveis de ocorrerem nesse meio social, assim

como a solução para os eventuais conflitos oriundo dessas relações.

41 Utilizamos a tradução para o italiano, k a n t o r o w i c z , Hermann U.  La lotta per la scienza dei 

 Diri tto .42 Ibidem, p.57.

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80 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

Entretanto, sabido é que tal pensamento não passa de um ideal persegui

do pelo legislador mas que nunca foi e nunca será realizado plenamente. Isso

 po rque , como já vimos, o Direito não consegue a t udo legislar, dada a finitude

e falibilidade do homem em face da infinitude do universo que o circunda. A

imprevisibilidade de algumas situações, assim como as mutações das relações

sociais e de suas valorações subjetivas, provocam imprecisões no o rde name n

to jurídico que somente são preenchidas ao longo do tempo, nunca de forma

espontânea e imediata.

Kantorowicz, nesse ponto, traça um paralelo entre a jurisprudência e a

teologia ortodoxa, concluindo que a primeira se encontra historicamente sob

forte influência da segunda, dada a sacralidade e perfeição conferida a seus

respectivos livros sagrados (código e Bíblia, respectivamente), cuja expressão

 provém da mais alta, jus ta e inquestionável autoridade (naquela o legislador,

nesta, Deus).43

Dessa forma, o autor alemão crê que é dever do jurista reconhecer a

finitude e imperfeição do Direito estatal, assumindo, por decorrência lógica,

a existência de suas lacunas. Kantorowicz se coloca em clara oposição aos

ditames cio famigerado art. 4o do Código Civil francês que permite a conde

nação do juiz por negação de justiça caso este se recuse a julgar em razão dosilêncio da lei.44

Ao mesmo tempo em que sustenta a imperfeição do Direito estatal, Kan

torowicz reconhece a existência de um out ro Direto, aquele que resolveu cha

mar de  Direito Livre (Freies Rechts). Em sua concepção, o Direito Livre é uma

releitura do Direito Natural no séc. XX, uma vez que se opõe ao Direito estatal

de contornos formal e legalista.

 Nesse ínterim, o mestre faz ques tão de afastar sua doutrina dos au tores

 jusna tura lis tas clássicos como Pufendorf, Wolff e Beccaria.45 Ent re tanto, não é preciso ao enunciar qual seria o conteúdo e onde exatamente residiria a fonte

de seu novo Direito Natural , o Direito Livre. Escreve o autor:

 II via ggia to re in paese stra niero si fa m ili a r izza con la língua , com la storia ,

com VartCy com gli usi e coi costu m i dei popolo: però n essuno sogna nean che d i apri- 

re soltanto i suo i codici. Essi vivon o t u tti secondo il libero -D irittoy secondo quello

43 Ibidem, p. 123.44 Art. 4o: “Le juge, qui refusera de juger, sou pretexte du siletice, de Vobscurité ou de Vinsufisance de 

la loi, pourra être pousuivi comme couplable de déni de justice.”

 La lotta per la scienza dei Dirittoy p.74.

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Hermenêutica Jurídica 81

che la n orm a di coloro che li circondano od il loro giud izio individ ua le fa apparire 

 D ir it to   /.../.

Per tal mo do il libero-D iritto afferm a la sua possente sfera d yazion e e vive indi-  

 penden te da quel lo statale. M a non cosi ques to da quello. II l ib ero -D ir it to è il terreno 

dal qua le nasce il D iritto-statale [...].46 

Verifica-se que o Direito Livre, segundo Kantorowicz, não se confunde

com o Direito positivo, devendo o segundo ser extraído do primeiro. Tendo

em vista a integralidade da obra e o excerto em especial, somos levados a crer

que para o autor, a par de sua imprecisão conceituai, o Direito Livre habita no

 próprio corpo da comunidade de homens, confundindo-se com seus valores,

costumes e as regras que daí advêm.47

Verificada a existência de um Direito anterior e fonte do Direito estatal,

cum pre ao jurista, e mais especificamente ao julgador, buscar as soluções dos

litígios tanto no seio do Direito estatal quanto, primordialmente, no seio do

Direito Livre, sob pena de cometer equívocos e injustiças.

Sendo assim, como se dá a relação entre Direito estatal e Direito Livre? Pode

haver contradição entre eles? Qu ando um deve prevalecer sobre o outro?

Para Kantorowicz, a verdadeira justiça está no Direito Livre. Ali residetoda a carga axiológica e ética da comunidade. Se o Direito estatal refletir o

Direito Livre, será também justo. Entretanto, há casos em que a norma estatal é

injusta e outros em que o legislador simplesmente se omitiu, deixando vazios.

Como resolver tais conflitos e lacunas?

Seguindo a dou trina clássica, a interpretaç ão jurídica é a disciplina apta

a solucionar tais problemas, destarte, o autor alemão passa a estudar os di

versos métodos interpretativos, em especial a analogia, a teleologia, a busca

Ibidem, p.79-80. Tradução livre do autor: “O viajante em país estrangeiro se familiariza com

a língua, com a história, com a arte, com os usos e costumes do povo, mas nenhum sonha, aomenos , em a brir o seu código. Esses vivem todos em conformidade com o Direito Livre, segundo

aquilo que a norma daqueles que o circundam ou o seu juízo individual faz parecer Direito [...].

De tal modo , o Direito Livre afirma a sua poten te esfera de ação e vive independenteme nte da que

le do Estado. Mas não o contrá rio. O Direito Livre é o terreno no qual nasce o Direito estatal.”

47 Quando o texto fala do Direito como ju ízo individual, para nós, está a se referir a manifestaçãoda norma da comunidade por meio de um de seus entes. É como se um ente da comunidade

(indivíduo) necessariamente expressasse o pensamento de toda a comunidade. Tal conceituação,

trazida à tona h odiernam ente, sofre sérias críticas em razão do elevado pluralismo da m ode rnida de, sendo difícil crer que haja efetivamente um Direito reconhecível no “espírito coletivo” de um

 povo, cu jo c on teúdo resultaria do somatório dos “espíritos individuais”, ou, ainda, cujo conteúdo

 pudesse ser enco ntrad o em cada expressão de cada “esp írito individual”.

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82 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

do espírito do legislador e as interpretações restritivas e extensivas. Ao fi

nal de sua pesquisa, conclui que, no momento da interpretação, aquilo que

conduz o intérprete a um determ inado resultado (enco ntro de sentido) não

é a razão ou a lógica dos métodos, mas a vontade e o interesse do próprio

intérprete.

A solução alcançada interpretativamente não é uma conclusão lógica de

um método racional, mas sim, uma vontade desejada pelo intérprete. Caso

contrário, como se justificaria a utilização da interpretação restritiva em de

trim ento da extensiva? Por que o intérprete escolhe uma ou outra? Quais seus

critérios? Se por definição, ambas levam a resultados díspares, por que solucio

nar o caso por meio de uma e não de outra?

A lucidez e o ceticismo com que Kantorowicz trata dos métodos interp re

tativos são exemplares para o desenvolvimento do Direito até então.

O autor chega a afirmar, ao discorrer sobre a interpretação teleológica,

que é fraudulenta a introdução da finalidade sob a máscara da teleologia pois

trata-se de uma ficção que não possui valor científico, já que esconde uma

mentira a serviço de falsos métodos ou interesses prát icos.18

O interesse do intérprete possui assim papel crucial na doutrina do Di

reito Livre. Segundo este, as interpretações destinam-se sempre a afirmar uminteresse específico, um querer do intérprete camuflado sob racionalidades

aparentemente lógicas (os métodos) que, ao final, podem alcançar resultados

que cont radizem, inclusive, à própria p roposição interpretada.

De acordo com o autor, o Direito não pode conviver com tais ins tru me n

tos falaciosos que m ascaram as vontades do sujeito. Os métodos interpretativos

devem ser rechaçados pelo julgador.

Sendo assim, surge então a pergunta: como resolver as lacunas e antino

mias da lei?Para o mestre alemão, uma vez detectada a lacuna, o indivíduo deve

 proceder a uma dogmática livre, p rocurando a resposta no seio da Freies 

 Rechts.

Em um primeiro momento, deve o julgador pesquisar se há solução no

direito consuetudinário. Caso este não apresente resposta suficiente deve pr o

ceder a uma razoável ponderação do caso como se legislador fosse, atingindo

uma decisão com base em seu senso de justiça ( Rechtsgefiihl).49

48 La loíta per Ia scienza dei Dirittoy p. 102.

49 Ibidem, p . 138.

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Hermenêutica Jurídica 83

É nesse momento que se torna célebre a doutrina da Escola do Direito

Livre, justamen te p or pregar a liberdade do julgador em proferir uma decisão

com base em sua própria consciência.

Talvez por isso, prevendo já as críticas que sofreria, Kantorowicz lança

seu raciocínio derrade iro: é correto dizer que o Direito Livre prega o recurso

à própr ia consciência do juiz para sentenciar e, isto, consequente mente , pode

levar à arbitrariedade e insegurança. Todavia, não é igualmente correto que,

tal com o as coisas estão, já não há a mesma a firmação da vontade do julgador

de forma camuflada por meio dos métodos interpretativos? O juiz já não

 julga conforme sua própria convicção manipulando interpretativamente as

leis?50

Destarte, segundo Kantorowicz, não há que se mergulhar nos métodos

hermenêut icos, mas sim, buscar, de fo rma transparente e clara, a decisão mais

 justa dentro do corpo do Direito Livre.51

Em um a das últimas linhas de sua obra, o auto r proclam a a síntese de seu

movimento em tons proféticos:

Verra, cosi, an che il temp o in cui il giu rista non p iii avrá bisogno di abbordare  

la legge com finz ion i, e d interp retazio ni artifiziose e costruzion i, pe r estorquene una norma , la quale potrà essere indep end entem ente trovata, dalla sua volontà, sve- 

gliata a vita in divid ua le.52

A postura ética do intérprete é fundamental para o autor alemão, pois

somen te o julgador honesto e transparen te de suas próprias convicções, estará

ciente de suas responsabilidades e apto a amadurecer o debate jurídico, cont ri

 buindo para o desenvolvimento secular do Direito.

Por fim, prega que o juiz deve sempre estar vigilante para que a sua decisão praeter legem não se transforme em decisão contra legem. Apesar de sua

dou trin a libertária, Kantorowicz é sensato o suficiente para reconhecer o valor

do respeito à lei, determinando que os ditames da norma devem sempre ser 

50 Ibidem, p. 140.

51 Ibidem, p. 141. “£  preferibile avvicinarsi alia giusta meta per la via diritta, anzichè per viottoli tortuosi, difjicil, pericolosi, sleali.”

32 Ibidem, p. 153. “Virá, assim, o tempo em que o jurista não mais necessitará abordar a lei comfingimentos e interpretações artificiosas, e construções para extrair-lhe um a norm a, a qual p o

derá ser encontrada inde pendentem ente, de sua vontade, acordada para a vida individual” (tra

dução livre do autor).

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84 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

observados, só podendo a lei ser quebrada em casos excepcionais em que haja

necessidade e manifesta injustiça unanim emente reconhecida pelos julgadores

de um t ribuna l.53

Como bem se pode observar, a doutrina de Kantorowicz não é radical

como se divulga. Suas considerações são ponderadas e refletidas, tendo como

 pri sma fu ndamental a honestidade do ato de julgar e a busca da justiça.

A transparência do operador é fundamental para o desenvolvimento do

Direito e, sem esta qualidade, ele nunca se tornará consciente da responsabili

dade que suas decisões trazem, prejudicando a busca do justo.

Interessa notar que o mesmo raciocínio desenvolvido por Kantorowicz

 permeia o am biente da retórica modern a, ainda que com traços diferentes.

De acordo com o professor emérito de Direito da Universidade de Edim-

 burgo, Neil MacCormick , as in terpretações sempre trazem dentro de si algum

valor ou objetivo velado. A aplicação de cada uma dessas formas de interpreta

ção gera argumentos , mais ou menos aceitos ou razoáveis, que devem favorecer

 para que o in té rpre te faça uma escolha em detrimento de out ra .

Ainda que reconheça que cada argumento tenha mais ou menos força, o

fato é que a decisão sobre qual o sentido correto é sempre uma decisão subje

tiva do intérprete. Nas palavras do professor:

[ ...] Por detrás da interpre tação l ingüística repou sa u m objetivo de preservar

a clareza e a precisão da l ingu agem legislativa e um princíp io de justiça que p roí

 be a recons trução jud ic ia l re troativa das palavras escolh id as pelo legis la dor. Por

t rás da interpre tação s is têmica repousa um princípio de racional idade fundado

no valor da coerência e da integr idade de todo o s is tema jur ídico. Por t rás da in

terpretação te leológico-avalia tiva repousa o respeito po r u m a de m and a de razão

 práti ca [.. .]. N o fina l o que deve pre vale cer é u m a questão que en volve sabedo ria prátic a e

senso de jus tiça nas c i rcuns tâncias par ticulares de um a d isputa p ar t icular re la tiva

a um a legislação específica.54

Mesmo que haja diversas peculiaridades que não nos permi te estabelecer

um paralelo preciso entre o pensamento de Kantorowicz e MacCormick, pod e

mos afirmar que seus estudos demo nst ram que, em última instância, a escolha

Ibidem, p. 139-40.

M Retórica e o estado de direito , p. 184-5.

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Hermenêutica Jurídica 85

do sentido do texto se dá de forma subjetiva, baseada principalmente no senso

de justiça de cada um. Não é a lógica intrínseca do a rgumen to que lhe confere

validade, mas sim, o reconhecimento do indivíduo de que tal argumento está

em consonância com a sua justa consciência.55

Retornando para Escola do Direito Livre, ao lado dos ensinamentos de

Kantorowicz, está a dou trin a do jurista Erlich para quem, em aper tada síntese,

a interpretação da lei significa uma compreensão sociológica do Direito que

investiga o sentimento do justo na realidade social. A decisão judicial deve se

mirar para a consecução deste fim, independente da norma jurídica.

Conforme visto e reafirmado por Erlich, a legislação não alcança a regu

lamentação de todo o universo de condutas e fatos sociais e, acima de tudo,

 pode não corre sponder às necessidades verificadas na praxisyem contraposição

às elucubrações políticas de parlamentares. Quando do seu encontro com a

lacuna, deve o intérprete realizar um juízo de valor que preencha este vazio,

conferindo segurança à sociedade.

A atividade do hermeneuta aqui é infinita. Pela primeira vez, nota-se a

existência de um juiz manifestadamente livre e criador para encontrar a me

lhor decisão ao caso concreto. O apego à pnvcisycomo a verdadeira reveladora

das necessidades de normatização, confere ao magistrado o poder de legisladorno âmbito da lide in casu.

A Escola do Direito Livre, conforme as linhas mestras de Kantorowicz e

Erlich, não passou despercebida na doutrina sem sofrer críticas.

A par das alegações de radicalismo e arbitrariedade que lhe foram con

feridas ao longo dos anos (alegações estas muitas vezes superficiais e injustas,

muito mais de cunho alarmista do que científico), percebe-se que se olharm os

densamente para tal escola, o mito do legislador perde toda a sua força para

ser substituído pelo fetiche do juiz justo. Vislumbra-se a figura de um julgadorcomo um ente imparcial que buscará aplicar a lei sempre pautando-se pelos

ditames da ética, da moral e dos anseios sociais.

A figura do legislador, muitas vezes desgastada e odiada pelo labor político, é

substituída por aquela de um carismático juiz que busca, acima de tudo, o justo.

Todavia, ao demonstrar o uso ideológico dos métodos interpretativos, o

Direito Livre se esquece de não ser o magistrado livre de convicções pessoais

S3 Advertimos para o fato de que MacCormick não prega o afastamento da in terpretação nemmesmo se filia remotamente à Escola do Direito Livre. Seus estudos estão engajados no campo

da retórica (da qual a interpretação é 11111 dc seus mome ntos de acordo com sua dou trina), sendo

certo que a simetria feita é restrita aos termos proposto s.

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86 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

e alheio aos anseios de setores sociais, a ponto de verificar o justo sem inter

ferências ideológicas próprias. Além do mais, não é o magistrado conhecedor

de toda a realidade social, a fim de poder extrair dali a decisão que seja mais

equânime aos olhos de sua comunidade (se é que tal consenso possa existir).

A finalidade extrema da Escola do Direito Livre é alcançar uma sinonímia

entre juiz e justo, ainda que de uma forma mais ou menos radical de acordo

com cada autor. Afinal de contas, não deve o Direito ser justo acima de tudo?

 Não é para isso que existe?

A Escola do Direito Livre acorda os intérpretes para esta dimensão apa

gada das leis pela Escola Exegética e o Estado Liberal. Entretanto, não se pode

olvidar que a insegurança jurídica e o excessivo subjetivismo, em que a Freies 

 Rechts  mergu lhou o Direito, expressavam uma necessidade de equilíbrio entre

o Direito Positivo e o Direito Natural.

Desprezar a atividade legislativa e não se conformar aos ditames da lei

significa desestruturar todo o alicerce do Estado de Direito e a separação de

 poderes.

 Nos EUA, a liberdade que o Poder Judiciário se arrogou foi tão grande

que se chegou a qualificá-lo de ditadura dos juizes. No Brasil, o movimento

chamado Direito Alternativo representa, em certa medida, um retorno à Escola do Direito Livre quando reconhece o papel criativo do magistrado e a sua

vinculaçâo à justiça mais do que ao Direito estatal. O movimento iniciado, a

 par de suas críticas, reflete menos a ir responsabi lidade judicial e mais uma va

lorização do justo face ao formalismo jurídico.

A discussão que se trava, e se carrega até hoje, é justamente entre os li

mites do legal e do justo. Quando o legal representa efetivamente o justo? Se

não houver concordância entre eles, qual deve prevalecer? Quem é apto para

 ju lgar se o legal é justo? Será o juiz o único intérpre te legítimo para avaliar estacorrelação? E os Poderes Executivo e Legislativo? Ficarão eles reféns do Poder

Judiciário?

 Nessas indagações, é a hermenêut ica quem possibil ita a com preensão de

fundo do discurso jurídico, deixando o intérprete numa posição mais cônscia

dos sentidos possíveis que pode atribuir ao caso. Essa atribuição, todavia, já

não é um reflexo de caráter lógico da hermenêutica, mas um juízo de valor que,

como pre tendem os demonstrar, insere-se no Direito por meio de ideologias ve

ladas na pretensa in strum enta lidade e imparcialidade do ato interpretativo.36

36 Kantorowicz já percebera tal relação de camuf lagem de sentidos pelos métodos já 110 início do

séc. XX. Entretanto , sua dou trina refere-se à vontade e ao interesse do inté rprete quando, hodier-

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Hermenêutica Jurídica 87

12. A tópica jurídica emTheodorViehweg

O método axiomático-dedutivo e o positivismo jurídico enfrentaram

grande insatisfação por parte da do utr ina alemã no início da década de 1950.

Mais precisamente em 1953, no ano em que é publicada a obra Topik u nd Ju- 

risprudenz, de Th eodor Viehweg, a qual se insere dent ro da linha vanguard ista,

 pregando um retorno ao estilo tóp ico-retór ico dos gregos e deixando de lado o

raciocínio lógico-formal para a resolução das lides.

Segundo Viehweg, as discussões jurídicas devem ser vistas como eternos e

infindáveis debates acerca da aporia da justiça, isto é, devem tentar r esponde r a

mais basilar das questões do Direito: o que é ju sto7.A fim de respondê-la, não basta se estabelecer um sistema dedutivo de

raciocínio nos moldes dos códigos modernos, comp rovadamente insuficientes.

 Na medida em que tal sistema está al icerçado sob uma premissa maior (lei),

se esta estiver equivocada ou for omissa, a conclusão estará necessariamente

comprometida. É preciso, portanto, empregar um outro raciocínio que esteja

livre dessas amarras, um pensar problematizador que busca no caso concreto

resolver o que é justo hic et nunc (aqui e agora).

 Nessa linha, a j urisprudência deve ser concebida como um procedimento de discussão de problemas, no qual a inventio  e os topoi  (pontos de vis

ta), devem predominar frente às premissas do tipo axiomática que amarram

a decisão e não permitem alcançar aquilo que é mais razoável e justo no caso

concreto.

Era preciso quebrar o modelo crítico-racionalista do sistema jurídico que

ainda predominava na Europa no séc. XX, visto com grande apreço pelo seu

ideal de acuidade e precisão. Seu ponto de partida era sempre um  prim um  

verutriy uma verdade absoluta, aceita por todos e que permitia deduzir logicamente as respostas possíveis. Dessa forma, não havia manobras de liberdade

ao intérprete, o qual devia apenas investigar a veracidade da premissa maior

fundam ental e, a par tir dela, realizar as deduções silogísticas necessárias.

Para Viehweg, esse raciocínio conduz necessariamente a uma degenera-

ção do humano, pois inviabiliza a criatividade e a reflexão do jurista que deve

curvar-se às conexões lógico-formais das premissas.

namente, p or meio do desenvolvimento da ciência e principalm ente da psicanálise, podem os efe

tuar a inserção de elementos do inconsciente do sujeito, traba lhar com a ideia de mitos e fetiches,

assim como dissecar as ideologias de uma forma mais precisa do que na época do autor alemão.

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88 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

Por outro lado, o mé todo retórico se insere nos domínios da argumentação,

um a técnica de pensar livre que opera com a maior ou menor verossimilhança

da conclusão alcançada. Busca-se um argumento sensato, razoável, ponderado,

cuja aceitação, por parte dos sujeitos participantes do discurso, qualifica-o como

a melhor decisão. A imaginação e a criatividade são levadas aos seus expoentes

maiores pois não há limites e bases estabelecidas a priori ao pensamento.

 No campo jurídico, há uma constante pre tensão de se alcançar um sistema

legislativo completo que permita a dedução das decisões judiciais, sem se ne

cessitar de recursos extrassistemáticos para resolver os casos concretos. Assim

se fez desde os primórd ios da Escola Exegética até o positivi smo mode rno , com

algumas poucas doutrinas discrepantes.

Viehweg é acintoso em suas críticas qu an do verifica que a ênfase posta so

 bre o sistema no mode lo dedutivista conduz uma seleção lógica de problemas

que este pode resolver. Sendo a dedução u ma operação formal, todo raciocínio

e conclusão desenvolvidos devem guardar consonância com o prim um verum ,

só podendo extrair sentidos dent ro de seus limites.

O Direito, visto como um g rande sistema axiomático, nega prestação juris-

dicional a diversas pretensões legítimas de justiça, única e exclusivamente por

que dito sistema (desenvolvido na forma do ordenamento jurídico) não consegue extrair de suas premissas (leis) uma solução adequada ao caso concreto.

Por outro lado, quan do se coloca a ênfase no problem a, permite-se que o

 jur ista escolha qual é o método que melhor so luciona aquele caso. Não há uma

vinculação prévia a um sistema hermético e rígido, mas sim, abertura para

aquele que lograr um a decisão justa prática.

Dessa maneira, o único modo de realizar o Direito é por meio de um

 pensamento tópico, cujo ponto de partida é o problema. Mas o que configura

um  problema?

Se si da il nom e de prob lema , e ciò è sufficiente ai nostri fin i>a qualsiasi ques

tione che comenta apparentem ente piü di um a risposta e si pressupone in modo ne

cessário un a com preension e pr ow iso ria y alia cu i st régua un qua lche cosa appaia in 

generale siccome qu estione che va presa sul serioygiu stam en te si andrà p oi alia ricerca 

di u m a risposta come soluzione.57 

51 v i e h w e g , Theodor. Tópica e giurisprudenza, p.32. A tradução italiana do alemão não é totalmen

te clara, sendo que op tamos pelo seguinte texto: “Se se dá o nom e de problema , e isto é suficiente

às nossas finalidades, a qualquer questão que aparentemente permita mais de uma resposta e

 pressuponha-se, necessariamente, um a compreensão provisória, na me dida de algo tomado em

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Hermenêutica Jurídica 89

Posteriormente, Canaris apresenta a ideia de que o problema é  uma ques

tão cuja resposta não é clara de antemão, e Juan Antonio Garcia dou trin a que

 problema é uma ques tão, mas com várias alternat ivas para seu tratamento, ca

 bendo ao sujeito uma eleição entre elas que redunde na solução.58

A despeito de uma conceituação apurada, podemos perceber que o Di

reito é uma ciência repleta de problemas, na medid a em que suas formulações

não preenchem de forma clara todo o campo de sua disciplina, dando espaço à

indagação. Isso ocorre pois o âmbi to de atuação da jurisdição - que é a própria

vida dos homens -, é sempre mais dinâmico e complexo do que a legislação

 presente no ordenamento.

A tópica, extremamente voltada à  práxis, revela que o Direito, como um

sistema axiomático, é imperfeito e lacunoso, demons trando assim a necessidade

de um raciocínio tópico pelos juristas, concebido como uma técnica dei pensiero 

che è indirizzata verso il problema.59

Viehweg considera que sua doutrina não está a desenvolver um método,

mas sim uma arte, um estilo de pensamento que não se prende a determinadas

regras fixas que atrofiam a criatividade do jurista, nem possui a natureza de um

 processo lógico rigorosamente verificável. A tópica, sob influência da retórica,

 busca a solução verossímil, mais aceita entre os sujeitos do discurso, e para talfim, não há como se estabelecer critérios de validação cientificamente objetivos.

Dessa forma, tendo visto que o melhor modo de se realizar o Direito é

 por meio da tópica, e esta atua pelo pens ar problemático, como se solucionam

efetivamente os conflitos?

A resposta está nos topoi.  Segundo a tradição aristotélica, tratam-se de

“punti di vista impiegabili in molti sensi, accetabili generalmente, che vengono 

adoperati a favore ou contro ciò che è opinabile e che possono condurre al vero”60.

Configuram-se assim como a rgumentos utilizados na discussão de um problema, visando a alcançar a solução deste.

O encontro do sujeito com os topoi  se dá a partir da inventioy a criação

livre de juízos, cujo limite é o próprio imaginário do sujeito e a aceitação do

argumento pela comunidade que os analisa.

sua generalidade como uma questão levada a sério, consequentemente se desenvolverá uma pes

quisa para a solução da reposta” (tradução livre do autor).

58 l e i t e , Georgc Salomão.  Interpretação constitucional e tópica juríd ica, p.56.59 v i e h w e g , Theodor. Topica e giurisprudenza,  p.31. A tópica seria uma “técnica de pensamento

direcionada ao problem a”.

60 Ibidem, p.20. Os topoi seriam “pon tos de vista empregados em diversos sentidos, aceitos geral

mente, que são adotados a favor ou con tra aquilo que se opina, e que possa conduzir a verdade”.

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Hermenêutica Jurídica 91

law   as regras de direito são extraídas a partir do tecido factual que é colocado

 perante o juiz. Não há vinculação prévia silogística, mas apenas uma verificação

de  precedents  (questões análogas já suscitadas e decididas) e a equity, princípio

orientador da justiça com base nos costumes locais e na sensibilidade social.

A obra Common law e tradition civiliste, dos au tores Fairgrieve e Watt, ofe

rece u ma análise sintética e densa das diferenciações de cunh o epistemológico,

lógico e filosófico entre esses dois grandes sistemas do direito moderno. Se

gundo tal obra, no direito romano-ge rmânico “le message épistémologique que 

diffuse le droit codifié est que la connaissance du droit [...] sacqu ier t néanmoins à 

travers celle des catégories organisées et des propositions abstraites”6'.

Por sua vez, a common law “se pense comme Jlux, étroitement dépendant  

des fa its dont il syindu it sans ordre apparent ”62, “nest ni ordre ni raison abstraite 

mais expérience”6*.  Conclui, em síntese, que “ Le common law est pragmatique 

et conséquentialiste là oü le droit codifié fa it appel au x principies abstraits et au  

raissonnement déd uct if 64.

Dessa forma, percebe-se a similaridade da tese esposada por Viehweg com

o raciocínio predominante na common law. A própria qualificação de hermét ico

que é dada pelo autor alemão ao sistema dedutivo confirma-se por Fairgrieve e

Watt quando proferem que existe uma ambição no direito codificado de consagrar um código da “razão universal”65, parceiro da ideologia iluminista e do

sistema de dominação presente na Europa continental nos séculos passados.

A razão codificada se apresenta, portanto , como um a razão apa rent emen

te neut ra e justa mas que apenas reforça o etnocent rism o e um obstáculo ideo

lógico ao conhec imento “do ou tro”66.

É por isso que a acuidade e a estabilidade que o sistema dedutivo de

monstrava foram tomadas por Viehweg como um atrofiamento da inteli

gência. Nessa perspectiva, o pensar tópico concede um a maio r liberdade ao

61 Common law e tradition civilest> p.25. “A mensagem cpistemológica que divulga o direito codi

ficado é que o conhecim ento do direito [...] se adquire po r meio daque las categorias organizadas

e proposições abstratas” (tradução livre do autor).

62 Ibidem, p.24.“se pensa como um fluxo, intimamente dependente dos fatos de onde é induzido

sem ordem aparente” (tradução livre do autor).

63 Ibidem, p.25. “não é nem ordem nem razão abstrata, mas experiência” (tradução livre do autor).

6-1 Ibidem, p.27.“a common law é  pragm ática e consequencialista, ao passo que o direito codificado apela para os princípios abstratos e o raciocínio dedutivista” (tradução livre do autor ).

65 Ibidem, p.34.

66 Ibidem, p.36.

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92 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

sujeito, mas ao m esm o tem po, exige dele uma formação mui to mais ampla a

fim de que ele descubra os argumentos possíveis dentro do contexto do caso

concreto.

Por isso mesmo, suas ideias foram recepcionadas na comunidade jurí

dica com grande cautela e receio, tomando cuidado para que o Direito não

se transformasse em uma anarquia-argumentativa desprovida de qualquer

controle.67

Institucionalmente, pode-se dizer que a tópica foi rejeitada pelo Direito,

mas o mesm o não pode se considerar quando se avalia o raciocínio jurídico de

senvolvido após a Segunda Guerra Mundial. É certo que as posições extrema

das de Viehweg foram relativizadas - assim como tod o o Direito no p ós- mo

dernismo -, mas o que é importante destacar, é que a inserção dos princípios

nos ordenamentos jurídicos exige cada vez mais um pensar tópico-retórico,

que conduz a um sopesamento de valores na aplicação desses princípios de

caráter aberto e flexível.

O dogmatismo tradicional não preza a resolução de controvérsias em

que haja a predominância de normas de cunho axiológico. Os valores, mes

mo diante do cientificismo moderno , ainda não conseguiram ser conceituados

nem revelar seu conteú do ontológico. Nessas indagcições, a retórica, vista como mediadora de juízos de valor,

confere ao operador de Direito mais do que lugares-comuns ou uma arte de

 persuasão. Permite, sim, o difícil traba lho de valoração de argumentos e p rin

cípios elementares na atividade jurídica hodierna.

Compactuamos com a necessidade de se estabelecer algo fixo, rígido, que

expresse os sentimentos de segurança e estabilidade que exigem um Estado de

Direito. Entretanto, a busca do justo, a mais legítima teleologia da lei, não se

amolda plenamente a esses parâmetros de inflexibilidade, o que concede umespaço para atuação da dialética e da retórica.

Perelman foi sábio ao nos m ostra r tais desafios e virtudes do pensamento

tópico mo derno . Recorremos às palavras do mestre:

67 Segundo o mestre português J. J. Gomes Canotilho: “A concretização do texto constitucional a

 partir dos topoi merece sérias reticências. Além de poder conduzir a um casuísmo sem limites, a in

terpretação não deve partir do problema para a norma, mas desta para os problemas. A interpretaçãoe uma atividade normativamente vinculada, constituindo a constitutio scripta um limite ineliminável

(Hesse) que não admite o sacrifício da primazia da norma em prol da prioridade do problema (F.

Mliller).” Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 1.212.

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Hermenêutica Jurídica 93

O recurso aos tópicos jur ídicos não se opõe nem um pou co à ideia de um

sistema de direito, mas, antes, à aplicação rígida e irrefletida das regras de direito.

Permite, ao contrár io, o desenvolvimento de argu m entos jur ídicos , de controvér

s ias , em que, tendo s ido evocados todos os pontos de vis ta , poderá ser tomada

um a decisão po nde rada e sa tis fa tória . C om o a segurança jur ídica é um dos valores

centrais no direito, que contribui para o respeito das regras de direito, dos prece

dentes, dos costum es e hábitos sociais, os pa rt idário s dos tópico s jurídicos jamais

 pode m perder de vis ta os inconvenientes da in certeza em m até r ia de dir eit o. D o

me smo mo do, como um a com unidade reg ida por regras de d i re i to é , ao mesm o

temp o, um a com un idad e l ingüís tica, supor-se-á que os term os ut il izados nos tex

tos legais deverão ser entendidos em um sent ido com um ente aceito, a me nos que

razões especiais justifiquem que dele nos afastemos.

Se é verdade que, graças aos tópicos jurídicos, o juiz dispõe de maior l iber

dade na interpretação dos textos legais , tornados mais flexíveis , essa l iberdade,

em vez de condu zir a arbi trar iedade, au m enta os meios inte lectuais de que o juiz

dispõe na busca de um a solução razoável, aceitável e equitativa.68

13. A lógica do razoável de Luis Recaséns Siches

Os movimentos contrários ao dedutivismo jurídico iniciados nos finais

do séc. XIX e consolidados após a Segunda Guerra Mundial, estavam expe

rimentando a tópica de Viehweg como uma revolução ao pensamento tradi

cional quando, quase que concomitantemente, depararam-se com a lógica

de Siches.

O mestre da lógica do razoável insistia na insuficiência do raciocínio físi-

co-matemático para a resolução dos conflitos legais, argumentand o que sendo

o Direito e as norma s jurídicas reguladores da vida hum ana , não poder iam elesserem interpretados por métodos que não respeitassem a lógica do próprio

hum ano , cuja materialidade valorativa e histórica é fundamenta l.

A lógica matemática apenas estabelece conexões formais, nexos causais

existentes nos fenô meno s da natureza, os quais o ser hum an o conhece e ex

 plica por meio da relação causa-efei to . Conforme já vimos em Paul Ricoeur,

esta explicação não é suficiente para se interpretar as ciências do espírito

(história, filosofia, psicologia etc.) que trabalham em uma dimensão axio-

lógica.

68 Lógica jurídica: nova retórica, p. 130.

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94 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

As leis da física, da geometria, e de todas aquelas ditas ciências da natureza

apenas conhecem os fenômenos e não permitem uma compreensão de sentido

daquilo que se analisa.

O Direito, por outro lado, ao reger as relações dos seres hum anos , apresen

ta em suas normas uma densidade axiológica e histórica que exige do sujeito a

realização de juízos valorativos subjetivos que realçam o aspecto hermenêutico

do Direito.

A norma jurídica não possui natureza formal e nem c i o menos pode ser

reduzida a uma estrutura objetiva. Ao contrário, seu conteúdo está intima

mente ligado ao subjetivismo daqueles que ela rege: “ Una norma jurídica es un 

 pedazo de vida humana objetivada  /.../  para compreenderia cabalmente, debe- 

remos analizarla desde el punto de vista de la índole y de la estructura de la vida 

human a.”69

A única forma de efetuarmos essa compreensão é por meio de um a lógica

material, uma lógica que lide com sentidos do ser humano , que perceba o que

são meios e fins e realize um balanceamento entre eles, apreenda as significa

ções da tradição e, por fim, possa apresentar uma decisão razoável.

Somente uma lógica do tipo vital e histórica consegue compreender o con

teúdo axiológico da lei e do Direito, realizando a correta transladação do conteúdodo texto da norma até a resolução do caso concreto. Esta operação não segue a

fórmula matemática de averiguação de nexos causais conforme já se pregava, com

maior timidez, desde Savigny.

A lei, como pedaço da vida humana objetivada, deve seguir também a

lógica do humano em sua interpretação e aplicação, pois tal lógica apresenta

um raciocínio que trabalha com o ambíguo, o dialético, o paradoxal, como é

 próprio da at ividade de encontro de sent idos da norma jurídica.

Cuando experimento que los métodos de la lógica tradicional son incapaces de 

darme la solución correcta de un problema jurídico, o que me llevan a un resultado  

inadamisible, fren te a esos métodos no opongo un acto de arbitrariedad , un capricho, 

sino que opongo un   “razonamiento ” de un tipo diferente, qu e es precisamen te el que  

nos po ne en co ntacto coti la solución correcta. Ese razo na m iento qu e nos hace enco n

trar lo que buscamos, la solución correcta, la solución justa, es la razón aplicable al 

caso. [...]

69 s i c h e s , Luis Recaséns. Nueva filosofia de la interpretación dei Derecho, p. 132. “Uma nor ma jurí

dica é um pedaço de vida hum ana objetivada [...] para com preendê-la precisamente, deveremos

analisá-la do ponto de vista da índole e da estrutura da vida hu man a” (tradução livre do autor).

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Hermenêutica Jurídica 95

 Esa ra zó n ju ríd ic a m ate ri al hab ra de ser a l f in y al cabo una especie d e la razón

vita l e h istórica .70

Siches acredita que, historicamente, o imperia lismo da razão matemática

tenha se instalado no Direito, em virtude de sua promessa em c um pri r alguns

dos maiores fins da atividade judiciária: a certeza, a imparcialidade e a estabi

lidade.

Ressalta, entretanto, que além desses valores, existe a necessidade maior e

incontestável da realização da justiça, que muitas vezes exige o desenvolvimen

to e a alteração das concepções jurídicas existentes.

De acordo com o filósofo, a lógica matemática, além de não permitir uma

aferição adequada e compreensiva como a lógica do razoável, ainda traz consi

go uma estabilidade rígida e mórbida, própr ia dos cadáveres que já não mais se

aventuram pelos novos caminhos que a vida nos oferece a cada dia.71

A ideia de Direito e vida é fundamental e decisiva para a doutrina de Si

ches. Não há que se falar de um sem o outro, e mais: não há como separá-los.

O processo de individualização e aplicação da lei é visto como um reviver da

norma, dando-lhe um sentido que pode, ou não, ser similar àquele que ante

riormente lhe haviam conferido.Mas o mais importante: trata-se de encon trar no conteúdo legal uma vali

dade viva e edificante de justiça de acordo com cada caso concreto.

Mas e a interpretação? Co mo ela é realizada pela lógica do razoável?

Para o autor, desde há m uito tempo, os juizes já interpretam razoavelmen

te a lei, sem ao menos darem-se conta disso. Os métodos hermenêuticos não

 possuem validade e legitimidade per si como sistemas teóricos de pensamento.

 Não se deve preferir a um ou outro método a priori, nem estabelecer hie

rarquias e privilégios entre eles. O direcional do juiz deve ser sempre a decisão justa, equânime, razoável. É este o objetivo do Poder Judiciário.

 Nesse sentido, qualque r método que satisfaça tais pretensões pode ser uti

lizado como justificativa da decisão alcançada.

70 Ibidem, p. 129-30. “Qu ando verifico que os m étodos da lógica tradicional são incapazes de me

dar a solução correta de um problema jurídico, ou que me levam a um resultado inadmissível,

frente a esses métodos não op onh o um ato de arbitrariedade, um capricho; antes, oponho um ra

ciocínio de um tipo diferente, que é precisamente aquele que nos põem em contato com a solução

correta. Esse raciocínio que nos faz enc ontrar o que buscam os, a solução correta, a solução justa,é a razão aplicável ao caso. Essa razão jurídica material deve ser, ao fim e ao cabo, uma espécie da

razão vital e histórica” (tradução livre do autor).

71 Ibidem, p.279-81.

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96 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

Inclusive, Siches prega uma posição favorável ao raciocínio indutivo e de

apelo à sensibilidade do julgador. O uso do razoável, diga-se de passagem, não

encontra claras delimitações e conceituação na obra do autor, mas encontra-

se na obra sempre associada à sensibilidade do justo que o intérprete possui.

Os próprios métodos herm enêuticos fun cionam apenas como justificadores a 

 posteriori de tais percepções axiológicas subjetivas.72

Frente a una determinada situación singular no podemos saber de antemao, 

es decir, antes de haber realizado una análisis a fondo de esa situación, cual sea el  

método interpretativo aconsejable. Por el contrario ,  para fo rm anos una ideia sobre 

el proced imiento de interpretación que deb am os aplicar a un caso concreto, es me- 

nester que a ntes haya mo s logrado for m a m os el juicio que con sideramos correcto, es 

necesario que haya mo s antecipado m enta lm ente el fallo qu e estim am os justo. Y en-  

tonces es solo a posteriori, es decir, después de h aberm os for m ad o ese juicio y cua ndo  

descubrimos cuál és el procedimiento m enta l que nos condujo a dicho juicio.7' 

A fatalidade inerente à doutrina de Siches está em tornar o Direito tão

 polissêmico e paradoxal como a própria visão de vida que o mesmo possui. Em

um a de suas passagens, busca contornar tal problemática garan tindo que a lógica do razoável não visa a que o juiz passe por cima do ordenam ento jurídico

ou desconheça a validade formal das normas. Pretende apenas que o intérprete

conheça m elho r o conteúdo do Direito positivo.74

Essa forte tensão entre a concepção do Direito como justiça material e a

sua necessária objetivação na norma não encontra traços precisos na obra do

filósofo. Pretende o autor, mais do que encontrar a harmonia perfeita, tornar

consciente um raciocínio de valores que até então se fazia desapercebidamente.

/2 Nota-se que há unia semelhança entre Siches e Kantorowicz na medida em que ambos asse

veram que o julgador, primeiramente, estabelece a sua decisão baseado em seu subjetivismo e

na “ideia do justo” para, posteriormente, encontrar um método interpretativo que o legitime

e justifique.

73   s i c h h s , Luis Recaséns. Nueva filosofia de la interpretación dei Derecho, p. 174. “Frente a uma de

terminada situação singular não podemos saber de antemão, isto é, antes de ter realizado uma

análise de fundo dessa situação, qual o método interpretativo aconselhável. Pelo contrário, para

formarmos uma ideia sobre o procedimento de interpretação que devemos aplicar a um caso

concreto, é mister que antes tenhamos alcançado formar o juízo que consideramos correto, é

necessário que tenhamos antecipado mentalmente a decisão que consideramos justa. E então,somente a posteriori, isto é, depois de termos formado este juízo, é quando descobrimos qual é o

 procedim ento mental que nos conduziu a tal juízo” (tradução livre do autor) .

74 Ibidem, p. 169.

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Hermenêutica Jurídica 97

Siches é extremamen te feliz ao ressaltar a necessidade de um a lógica volta

da para os valores, que não esteja presa à certeza e à validade positivista e ma te

mática. A lógica do razoável é uma obra per tinente e edificante, cujos alicerces

foram instalados, mas não c laramen te definidos e delimitados.

Quando o autor se pergunta: “;que quiere decir eso de la csolución satisfac- 

toria\ ±en qué sentido? Satisfactoria, ide que?” Sua resposta é:“satisfactoria desde 

el pu nto de vista estimativo, desde un punto de vista de valoración. Satisfactoria  

de lo que el orden jurídico considera como sentim iento de ju st ic ia ”75

Podemos perceber que o razoável a que Siches se refere não possui parâ

metros definidos, não está direcionado ou objetivado por qualquer critério que

não seja o seu fim mesmo. O razoável está amarrado àquilo que cada pessoa

entende como tal, o que deixa a atividade lógica presa à formação do ser hu m a

no dentro de sua tradição e temporalidade histórica.

Siches deu um passo saudável e impor tan te (mas pouco rigoroso) ao rein-

terpretar a lógica jurídica, permit indo ao juiz, de forma consciente, libertar-se

das amar ras do raciocínio matemát ico do séc. XIX, e direcionar a sua atividade

ao justo e ao razoável.

75 Ibidcm, p. 175. “O que quer dizer isso da ‘solução satisfatória? Em que sentido? Satisfatória de

quê?’ Satisfatória de um ponto de vista estimativo, de um ponto de vista de valoração. Satisfatória

daquilo que a ordem jurídica considera com o sen timento de justiça” (tradução livre do autor).

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CAPÍTULO 4

Estudos Interpretativos Jurisprudenciais

Após a pesquisa analítica acerca dos métodos interpretativos da lei, nada

mais vital do que realizar uma leitura de cun ho pragmático de tais métodos em

consonância com a jurisprudência dos Tribunais. Vale dizer, se é verdade que,

teoricamente, a hermenêutica se apresenta como um intrincado complexo de

meios de aferição de sentidos da lei, será que esta dimensão tamb ém é encon

trada nas interpretações realizadas pelo Poder Judiciário? Ou será que o labor

empírico oferece aspectos outros que não os abordados pela doutrina?

É importante ressaltarmos esses questionamentos pois o Direito, numa

acepção lata de sistema de normas que rege uma sociedade, não pode apresentar uma lógica e uma dogmática que se descole da realidade e vigore apenas no

imaginário dos juristas e acadêmicos. Como bem reza a doutrina norte-ame-

ricana, devemos orientar o Direito mais em u m sentido de law in action do que

law in books.

 Nesse compasso, a le itura da juri sprudência é fundamental para se ave

riguar como os magistrados têm interpretado a lei e se ela se amolda nos pa

râmetros metodológicos propostos. Poderíamos, evidentemente, pesquisar a

hermenêu tica sob a ótica da atividade dos advogados, promotores, pareceristase outros que atuam juridicamente. Todavia, é nas sentenças e acórdãos que

encon tramos, de forma cristalina, as diversas interpretações que medeiam de

terminado tema e, principalmente, encontramos a justificação do porquê da

 preferência por um sent ido da lei e não por ou tro.

O juiz, como ente imparcial, está livre para optar entre as diversas ver

tentes hermenêuticas, devendo, inclusive, fundamentar em termos jurídicos a

razão de sua decisão. Esse momento de esclarecimento é de extrema valia para

os estudos hermenêuticos, pois nele poderemos comprovar os juízos interpretativos realizados, tornando mais fácil o acesso aos elementos subjetivos que

nortearam o decisum.

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Escudos Interpretativos Jurisprudenciais 99

Foi com grande prazer que, além de encon tra rmo s um cam po fértil e vasto

de interpretações nas fundamentações de votos e acórdãos, também encontra

mos um a rica fonte de pesquisa nos debates travados entre os magistrados d u

rante as votações. Os diálogos entre mem bros dos Tribunais revelam, de forma

contundente, razões que, muitas vezes, não estão presentes em seus votos, mas

indicam os verdadeiros motivos que levaram a determinada decisão. Isso é sa

lutar para que se possa desmascarar a ativideide hermenêutica preconceituosa e

arbi trária que se esconde por detrás das cortinas dos métodos interpretativos.

Além da questão referente ao subjetivismo do intérprete, também preci

samos indagar se a própria atividade de decisão judicial, esta árdua tarefa de

sopesamento entre a abstração legal e a realidade fática não exige uma lógica

 própria que não é encontrada nos livros.

A aplicação do Direito é um terreno fértil e complexo, muitas vezes asso

ciado metaforicamente a um lamaçal, o que, apesar da conotação negativista

e pouco honrosa, reflete corretamente como é difícil se mover e se adensar no

mesmo até encontrar uma base sólida. Isso se faz mais presente na jurispru

dência dos Tribunais Superiores. O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tri

 bunal de Justiça têm a com pe tênc ia consti tucional de avaliar, respectivamente,

a constitucional idade e a legalidade das leis, tanto sob uma ótica pragmática docaso concreto quanto abstrata da lei em tese.

Essa competência amplia veementemente o horizonte hermenêutico, de

modo mais agudo, em relação à Corte Constitucional brasileira que lida com

direitos e garantias fundamentais do cidadão como a liberdade, a dignidade

da pessoa huma na e a igualdade, ou seja, direitos de conteúdo inconceituáveis

teoricamente e cuja concretização é sempre conflituosa.

Já se propôs que a atividade hermenêutica no Supremo Tribunal Federal,

em razão mesma dos direitos e princípios fundamentai s que investiga, é de umtipo especial, ou seja, que ali há uma metodologia diversa e que não se aplica

aos demais Tribunais. Não esposamos esta ideia. É certo que a matéria passiva

de interpretação na Corte Constitucional possui características próprias e, por

isso, exige um estudo particular. Todavia, como veremos a seguir, os métodos

interpretativos são instrumentos colocados à mão de qualquer intérprete, isto

é, valem para qualquer campo ou ramo do Direito, não podendo ser conside

rados específicos em razão do objeto em análise.

O fato de o Supremo Tribunal Federal interpretar a Constituição Nacional, cujo conteúdo muitas vezes assume características abertas e programáticas,

não torna o seu labor hermenêutico diferente das demais Cortes, ao contrário,

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100 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

reforça ainda mais as dimensões subjetivas e retóricas encontradas nos méto

dos interpretativos. Vale dizer que na jurisprudência do Supremo nâo há uma

hermenêutica diversa, mas uma hermenêutica mais aguda e evidente. Isso se

aplica também aos estudos feitos em relação ao intérprete. Qua lquer magis tra

do, independente da Corte em que atua, está sujeito às descobertas fenomeno-

lógicas em relação ao horizonte histórico, comunidade de preconceitos, entre

outros temas abordados. Não importa a autoridade judiciária que interpreta,

mas a mera colocação do sujeito como intérprete.

Sendo assim, para verificarmos como se inserem os métodos interpre tati

vos e as escolas hermenêuticas na concretização da lei, selecionamos algumas

 juri sprudências dos Tr ibunais que acredi tamos demonstrar de forma rica e

condensada as relações encontradas em nossos estudos anteriores, revelando

tanto a importância dos métodos no auxílio ao encontro do sentido, quanto

a necessidade da leitura do sujeito intérprete dent ro dessa atuação, desnu dan

do-o de suas vinculações pessoais e preconceituosas.

I .A união homoafetiva - REsp n. 820.475/RJ1

O debate acerca do reconhecimento dos relacionamentos homoafetivos pelo Estado tem-se arrastado durante alguns anos nos tribunais brasileiros.

 Nosso intui to neste capí tu lo é fornecer apenas o contex to jur ídico em que

se insere tal questão e realizar uma análise de como os tribunais a têm interp re

tado. Não visamos - de forma alguma - , realizar um juízo de valor a respeito

da questão de fundo, isto é, acerca da legalidade ou não da união homoafetiva.

Analisaremos e debateremos apenas os métodos interpretativos utilizados para

a decisão do caso.

 Nossos estudos se orientarão pelos votos e acórdão profer idos no REsp n.820.475/RJ, de relatoria do limo. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, julgado em

02.09.2008. Nâo se trata do pr imeiro acórdão a tocar no tema, nem o mais ino

vador, mas nele pode se encont rar de forma condensada as diversas variantes

interpretativas que se firmaram na jurisp rudênc ia ao longo dos anos.

Historicamente, a união estável foi reconhecida pela Constituição Federal

de 1988 no seguinte dispositivo: art. 226, § 3o “Para efeito da proteção do Es

tado, é reconhecida a união estável entre o hom em e a mulher como entidade

familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.

1STJ, Recurso Especial n. 820.475/RJ, rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, j. 02.09.2008.

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Estudos Interpretativos Jurisprudenciais 101

Em seguida, a Lei n. 9.278/96 regulamentou a relação prevista no supra

citado artigo: art. Io “É reconhecida como entidade familiar a convivência du

radoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com

objetivo de constituição de família”

Por fim, o Código Civil recepcionou a no rma constitucional nos seguintes

termos: art. 1.723. “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre

o hom em e a mulher, configurada na convivência pública, cont ínua e dur ad ou

ra e estabelecida com o objetivo de constituição de família”

Com base nessa legislação, durante muitos anos, diversos juizes e desem

 bargadores não conheciam dos pedidos de reconhecimento de un ião estável

homoafetiva por entenderem que tal pedido era juridicamente impossível,

dado o teor da legislação que expressamente determina a união estável entre “o

homem e a mulher”.

Essa decisão de cunho processual era acampada por uma interpretação

literal da norma que afastava de seu âmbito de aplicação os casais que não

se configuravam como “homem e mulher”, aferição esta que se dava apenas a

 partir da análise do gênero (masculino/ feminino ). Uma vez que a lei utilizava

a expressão “homem e mulher”, estariam afastadas as demais possibilidades

como “ho mem e home m” e “mulher e m ulhe r”2. No caso dos autos em análise, tanto o juízo de primeiro grau quanto o Tri

 bunal de Justiça do Rio de Janeiro entenderam dessa forma e não conheceram

do pedido. Vale dizer, não enfrentaram o direito material, pois consideraram

que processualmente estavam impossibilitados.

Em sede de recurso especial, tal alegação foi afastada, en ten dendo os mi

nistros, por maioria, que a legislação em questão não devia ser vista de m odo

a impedir que o juiz conhecesse da causa em função da ausência de amparo

legal. Ao contrário, ele deveria reconhecer a existência de uma lacuna na leie preenchê-la.

A falta de disciplina normativa das relações homoafetivas deixou de ser to

mada como um óbice ao conhecimento da prestação jurisdicional para ser vista

como um a lacuna da lei que deveria ser sanada.3

2Excluímos de nossa apreciação o juízo valorativo dos gêneros sexuais e a pluralidade de formas

que ele toma na sociedade mo dern a (transexuais, pansexuais, travestis etc.), pois o caso em ques

tão não contempla tal debate e, porque, po r ora, a ordem jurídica nacional exige que o cidadão sedeclare como “h ome m” ou “mulhe r” o que só perm ite as possibilidades tratadas.

3Voto do Min. relator, p. 9: “Nota-se que há um ma u hábito, de alguns juizes, de indeferir reque

rimen tos feitos pelas partes dizendo que o fazem ‘por falta de amparo legal'. Ao se interpre tar tal

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102 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

Então surg iu a questão: como preencher esse vazio legislativo?

Ora, po r meio da hermenêutica! E diversas interpretações vieram à tona.

O limo. Min. relator entendeu, primeiramente, que os dispositivos em

análise apresentavam um a permissão legal expressa à união estável entre o h o

mem e a mulher, o que não queria dizer que eles proibiam a união entre casais

do mesmo sexo.

Tratou-se da utilização do argumento a contrario sensu, ou seja, a reali

zação da interpretação inversa. Dito argumento se fundamenta na máxima de

que “aquilo que a lei não proíbe, é permi tido”4. Sendo assim, toda vez que um a

norma diz   alguma coisa, aquilo que ela não diz  pode ser considerado como

uma pretensão legítima, ainda que haja um a incompatibilidade lógica.

Sob este aspecto, o argumento a contrario sensu é   temerário, e seu uso

é visto com ressalvas pela doutrina. Sua aplicação indistinta exigiria que o

legislador normatizasse sempre aquilo que é permitido e aquilo que não é

 permitido, mesmo que um fosse conseqüência natural do outro . O legisla

dor seria obrigado a construir uma legislação-espelho, descrevendo o com

 portamento exig ido e tornando exp licitamente proibido o comportamento

contrário.

Sendo assim, as dúvidas que o argumento a contrario sensu esconde são:o legislador, ao não prever expressamente determinada situação, o fez porque

efetivamente não previu tal hipótese (lacuna)? Porque sabe, conscientemen

te, que ao não legislar, está permitindo o comportamento? Ou porque sabe,

conscientemente, que há uma incompatibilidade lógica com uma situação já

 prevista no ordenamento e, port anto, a legislação é dispensável?

Como bem se pode ver, a resposta à pergunta deve inevitavelmente in

vestigar o espírito do legislador, fazendo remissão à interpretação da Escola

Exegética (pesquisa da tnens legislatoris). No caso da união homoafetiva , deveríamos nos perguntar se o consti

tuinte, ao prever a união entre heterossexuais, simplesmente deixou uma la

cuna no ordenam ento em relação aos homossexuais ou op tou p or não prevê-

expressão como querendo significar que o indeferimento se deu por não haver previsão legal

daquilo que se requereu, a decisão obviamente estará a contrariar o disposto 110 art. 126 do CPC,

 pois, em tal caso, o ju iz deixará de decidir por haver lacuna na lei. A lacuna da lei não pode jam ais

ser usada como escusa para que o juiz deixe de decidir, cabendo- lhe supri-la pelos meios de integração da lei (Alexandre Freitas Câmar a, Lições de Direito processual civil, 10. cd., v. 1, p.30).

1Art. 5o, II, CF/88: “Ninguém será obrigado a fazer 011  deixar de fazer alguma coisa senão em

virtude de lei."

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Estudos Interpretativos Jurisprudenciais

la por acreditar que ali havia uma proibição lógica. Tal resposta só pode ser

encontrada na mens legislatoris com todas as dificuldades inerentes ao proce

dimento.

Todavia, regressando ao voto do recurso em tela, não foi só esse o argu

mento despendido pelo Min. relator. Aliás, o mesmo costuma ser utilizado

mais para fundamentar o reconhecimento de uma lacuna na lei e afastar a

questão processual do que para legitimar a união homoafetiva.5

De fato, a interpretação que fundamenta a decisão é aquela que se baseia

no uso da analogia com binada com u ma metodologia teleológico-sistemática.

O voto do limo. Min. Luis Felipe Salomão, que acompanha o relator, con

sidera que em virtude do art. 4o da Lei de Introdução ao Código Civil6, “ad

mite-se a integração mediante o uso da analogia, a fim de alcançar casos não

expressamente contemplados, mas cuja essência coincida com outros tratados

 pelo legislador”7.

Dessa forma, aos olhos do intérprete, a união estável entre homossexuais

e heterossexuais é igual em sua essência, o que perm ite a aplicação do instituto

a ambos, desde que preenchidos os requisitos legais.

Os votos não são minuciosos a ponto de descrever exatamente o que é

similar e o que é distinto na união estável em razão do sexo de seus membros, bem como não apresen tam qual a “essência” de tal ins ti tuto que permite o seu

reconhecimento para todos os gêneros de casais.

Todavia, o que se pode inferir, a par tir de alguns trechos, é que os julga

dores consideraram, em prim eiro lugar, o prisma da dignidade hum ana cons

titucional que deve nortea r todo o ordenam ento jurídico e, em segundo lugar,

a est rutura e requisitos impessoais presentes no inst ituto da união estável que

 permitem a sua conformação ao casal independente de sua opção sexual, o

que revelaria sua essência  (p. ex., o dever de respeito mútuo e a convivência pública e d uradoura).

Em outro aspecto interpretativo, partindo-se de uma metodologia siste

mática do ord enamento jurídico, consideraram os magistrados que o art. 5o da

Lei de Introdução ao Código Civil8exige do juiz o atendimento aos fins sociais

5 Fls.7-9.

6 “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os

 pr incípios gerais do Direito.”7 F1.34.

s “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem

comum.”

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104 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei

a que se presta a lei no momento de sua aplicação, sendo de interesse social o

reconhecimento jurídico da situação de fato exposta nos autos.

Assim sendo, o limo. Min. relator, acompanhado dos Ministros Luis Fe

lipe Salomão e Massami Uyeda, conheceu do recurso e deu-lhe provimento

determ inando o prosseguimento do feito nas instâncias ordinárias. Vale dizer,

não houve o reconhecimento direto da união homoafetiva dos requerentes,

apenas afastou-se a alegação de impossibilidade jurídica do pedido do juízo de

 primeiro grau , para que este analise novamente o caso e sentencie no âmbito

do direito material.

Por outro lado, vejamos os votos divergentes vencidos.

De acordo com os Ministros Aldir Passarinho Júnior e Fernando Gonçal

ves, a hipótese homoafetiva em questão não foi contemplada na no rma (método

literal) e, preservando-se a separação dos Poderes, o Judiciário nada pode fazer.

Em um segundo momento, opinam que a norma constitucional exige se

xos opostos para a configuração da união estável, não podendo a legislação

infraconstitucional ser interpretada de modo a afrontar a Magna Carta.9Res

saltam que para se declarar a união estável entre homossexuais é necessária

uma alteração da Constituição, e não uma interpretação da legislação infra

constitucional que altere seu sentido.Desse modo, combina-se o método literal com o sistêmico de modo a

realçar a superioridade hierárquica da norma constitucional e invalidar a in

terpretação da norma infraconstitucional que a contraria.

Tais argumentos, entretanto, somente foram acolhidos pela minoria, de