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PERRENOUD, Philippe. Escola e Cidadania: o papel da escola na formao para a democracia. (trad. Ftima Murad). Porto Alegre: Artmed, 2005.

PHILIPPE PERRENOUD

ESCOLA E CIDADANIAO PAPEL DA ESCOLANA FORMACO PARA A DEMOCRACIA

Traduo: Ftima Murad Consultoria, superviso e reviso tcnica desta edio: Fernando Jos Rodrigues da Rocha Professor Adjunto no Departamento deFilosofia da UFRGS.

PrefcioEste livro tem uma histria particular. O tema da cidadania deixou-me por muito tempo no indiferente, mas ambivalente. Como socilogo, eu s podia conhecer sua importncia como pano de fundo, em uma sociedade em que o vnculo social e a capacidade de viver em conjunto so cada vez mais dbeis. Mas me causavam, e ainda me causam, exasperao os efeitos do modismo e o aspecto encantatrio dos apelos a uma "educao para a cidadania". Como se fosse possvel, por um mero adendo ao currculo ou por um retorno boa e velha educao cvica, com um look um pouco retocado, tomar os seres humanos desejosos e capazes de viver em democracia. Liberdade, igualdade, fraternidade: certamente, esses so valores que se ensinam, mas no da boca para fora, entre a gramtica e a lgebra. Se a inteno que a escola retome seu papel de "cimento" da sociedade, faamos disso uma prioridade e asseguremos a, ela as injunes e os meios necessrios. Abordei esse tema aqui ou ali, entre outros, em conferncias ou artigos, sem projetar um livro. Foi um editor portugus, da ASA Editores, que localizou os textos em minhas pginas na internet1 e me props traduzi-las e agrup-las em uma pequena obra. Aceitei e incorporei uma introduo e uma concluso a esse conjunto. O livro foi lanado em 2002, sob o ttulo "A escola e a aprendizagem da democracia" (Porto, ASA Editores), com um prefcio de Luiza Corteso, da Universidade do Porto. Retomei e atualizei esses textos para a verso francesa, acrescentei alguns, aumentei um pouco a concluso. Agradeo a Barrigue por ter emprestado seu talento obra e redao de L'ducateur, revista do Sindicato dos Professores da Sua Romanda (SER), por ter autorizado a utilizao de cerca de 15 desenhos publicados nestas pginas. __________________ 1 Pginas pessoais: http://www.unige.chlfapse/SSE/teachers/perrenoud/ Laboratorie Innovation, Formation, Education http://www.unige.ch/fapse/SSE/groups/LIFE/

(LIFE):

vi Prefcio _____________ Franois Audigier, professor de didtica das cincias sociais na Universidade de Genebra, didata da geografia e da histria, bem como especialista europeu em educao para a cidadania e em educao para o direito, disps-se a escrever um posfcio substancial. Agradeo-lhe profundamente, pois sua leitura de didata, suas concordncias, seus cuidados, suas reservas enriquecem as palavras do socilogo, iniciam um debate que deve prosseguir e convidam o leitor a dele participar. Uma coisa certa: em um tema como esse, ningum pode ter o monoplio da razo.

SumrioPrefcio ......................................................................................................................................v Introduo A escola pode resgatar a cidadania? ...........................................................................................9 A escola somos ns ..................................................................................................................10 Ensinar algo mais? ...................................................................................................................11 Plano da obra ............................................................................................................................13 1. Aprendizagem da cidadania das boas intenes ao currculo oculto....................................19 A cidadania: de que aprendizagem estamos falando? ..............................................................20 Onde e como se aprende a cidadania? ....................................................................................24 O que a escola pode fazer? .......................................................................................................29 Cidadania e relao com o saber ..............................................................................................36 O que isso exigiria dos professores? ........................................................................................41 Temos escolha? ........................................................................................................................43 2. O debate e a razo: cidadania e saberes ..............................................................................47 Renunciar a um deus ex machina .............................................................................................47 Uma dupla ingenuidade ...........................................................................................................49 Fazer um inventrio .................................................................................................................50 Um problema de todos? ...........................................................................................................51 Formar para o debate e para a razo por meio dos saberes ......................................................53 3. Ciberdemocratizao: as desigualdades reais diante do mundo virtual da internet ............57 A escola em face das tecnologias .............................................................................................58 A desigualdade diante das ferramentas ....................................................................................60 A desigualdade diante da abstrao .........................................................................................62 Cidadania e redes .....................................................................................................................64

8 Sumrio __________ 4. Competncias, solidariedade, eficcia: trs reas de explorao para a escola ...................67 Competncias para todos .........................................................................................................68 Solidariedade de todos com todos ............................................................................................79 Agir dando o mximo de si ......................................................................................................84 5. As competncias a servio da solidariedade ........................................................................91 Fundamentar a solidariedade como valor e princpio tico .....................................................93 Compreender a solidariedade como base do contrato social ...................................................94 Aprender a lutar para ampliar a solidariedade......................................................................... 96 A educao para a solidariedade: uma utopia? ........................................................................97 6. A chave dos campos: ensaio sobre as competncias de um ator autnomo ........................99 Questionar a questo ou como resistir tentao do "politicamente correto? .....................100 Competncias transversais? ...................................................................................................107 Algumas competncias para ser autnomo ............................................................................113 Formar para uma prtica reflexiva .........................................................................................129 7. Fundamentos da educao escolar: desafios de socializao e de formao .....................133 Os desafios de socializao: preparar para enfrentar as contradies da vida coletiva .........135 Os desafios de formao: preparar para enfrentar a complexidade do mundo ......................142 Implicaes para os sistemas educacionais ............................................................................154 Concluso Uma educao para a complexidade e para a solidariedade como fundamento da democracia .............................................................................................................................155 Posfcio A educao para a cidadania em alguns de seus debates .........................................165 Franois Audigier Referncias .............................................................................................................................179

IntroduoA escola pode resgatar a cidadania? Nossas sociedades desenvolvidas no vo muito bem, sem falar da sociedade planetria, que se encontra em estado lastimvel: misria, desnutrio, desigualdades, dominaes, excluses e fundamentalismos diversos, barbries e regimes totalitrios em todos os cantos, guerras, trficos de armas e de drogas em larga escala, comrcio de mulheres e turismo sexual, poluio atmosfrica, esgotamento dos recursos naturais. Nada disso aconteceria, o que se diz e o que se ouve, se a escola "fizesse o seu trabalho": educar as novas geraes, torn-las "responsveis", dar-lhes o sentido da comunidade e da partilha, restaurar a proibio violncia. Quem no desejaria que escola fosse a redentora dos pecados da sociedade? preciso lembrar, no entanto, que a escola est na sociedade, fruto dela, de onde extrai seus recursos. Sua "autonomia relativa" no a torna um santurio margem do mundo, nem um superego. No se pode exigir que ela preserve ou inculque valores que uma parte da sociedade vilipendia ou s respeita da boca para fora. claro que, em uma sociedade dividida, temos o direito de incitar mais firmemente o sistema educacional a se situar do lado da cidadania e da comunidade, e no do cinismo e do individualismo, a trabalhar para desenvolver uma identidade e competncias cidads. No podemos exigir que o faa, alm de tudo, sem renunciar a nada. Se no levar em conta os limites da educao e a variedade de expectativas em relao ao sistema educacional, o hino cidadania mediante a escolarizao uma dupla hipocrisia, um discurso oco, uma forma ilusria de se livrar do problema real do vnculo social e do respeito s regras da vida em comunidade.

10 Philippe Perrenoud A escola somos ns Um sistema educacional no pode ser muito mais virtuoso que a sociedade da qual extrai sua legitimidade e seus recursos. Se nossa sociedade individualista, se nela todos vivem fechando os olhos s injustias do mundo, limitando-se a tirar o corpo fora, intil exigir da escola que professe valores de solidariedade que a sociedade ignora ou escarnece no dia-a-dia em suas mdias, em sua vida poltica, naquilo que se passa nos estdios, nas empresas, nos bairros. A incivilidade e a violncia aumentam. A dramatizao miditica, sem dvida, torna o fenmeno maior do que ,-mas ele real. No menos real que: O desemprego atinge mais de um quarto, s vezes mais da metade, dos ativos potenciais em certas reas das grandes cidades e em algumas pequenas cidades; muitas pessoas vivem em condies de habitao deplorveis, em cidades-dormitrio degradadas, isoladas, sem recursos culturais e nas quais os moradores no se sentem em segurana; as desigualdades so gritantes em nossas sociedades, em face da informao, da escola, do trabalho, da sade, da habitao, da justia, do tempo livre e at da morte. Nossas sociedades no dominam nem o desenvolvimento urbano, nem o emprego, nem as desigualdades. Ser que porque no temos nenhum poder sobre esses fenmenos? Ou porque os ricos no querem pagar o preo de uma sociedade mais justa e mais humana? hora de parar de se omitir: no se combater a violncia ou a delinqncia do contrato social fazendo exigncias irrealistas escola, aos assistentes sociais e mesmo polcia. Se a inteno combater esses fenmenos, preciso atacar suas causas. A anlise no nova, mas os governos que tentam a partir dela atacar os verdadeiros problemas deparam-se com a recusa das classes favorecidas, includas as classes mdias, que preferem mudar de bairro ou contratar vigias a oferecer aos poderes pblicos os meios legais e financeiros para uma preveno, para uma escolarizao, para uma incluso mais efetiva dos jovens dos bairros precrios. No coloquemos a escola na situao desesperadora dos assistentes sociais, que percebem que os mesmos que os contratam para fazer algo contra a pobreza fabricam-na por outras decises, em um sistema em que a mo direita ignora comodamente o que faz a mo esquerda. No se pode envol-

Escola e cidadania 11 ver a escola no combate pela cidadania se esse combate no se engajar em outras frentes, de forma plausvel e coordenada: emprego, imigrao, urbanismo, segurana, diviso das riquezas, acesso sade, seguridade, relaes norte-sul, estatuto das minorias, sistema judicirio e penal, etc.

ENSINAR ALGO MAIS? Se pretendemos que a escola trabalhe para desenvolver a cidadania, se acreditamos que isso no to bvio nem to simples, temos de pensar nas conseqncias. Isso no se far sem abrir mo de algumas coisas, sem reorganizar as prioridades e sem levar em conta o conjunto de alavancas disponveis: os programas, a relao com o saber, as relaes pedaggicas, a avaliao, a participao dos alunos, o papel das famlias na escola, o grau de organizao da escola como uma comunidade democrtica e solidria. Portanto, no bastaria substituir a instruo por uma educao moral invasiva, nomeando-a de "educao para a cidadania" para ser moderna. preciso agir em pelo menos trs registros: 1. Permitir a cada um construir os conhecimentos e as competncias necessrias para fazer frente complexidade do mundo e da sociedade; muitos alunos saem da escola desprovidos de meios intelectuais para se informar, para formar uma opinio, para defender um ponto de vista atravs da argumentao.

12 - Philippe Perrenoud 2. Utilizar os saberes para desenvolver a razo, o respeito maneira de ser e opinio do outro. Nada mais simples, aparentemente, pois a vocao dos saberes disciplinares tornar o mundo inteligvel e, assim, ajudar a domin-lo pela inteligncia, no pela violncia. Mas o enciclopedismo dos programas contraria esse projeto de emancipao. Para desenvolver a cidadania, preciso visar a uma cultura cientfica, em vez de uma acumulao de conhecimentos fragmentados; o desenvolvimento de uma postura reflexiva e de uma tica da discusso, em vez da submisso autoridade da cincia ou do professor; a formao duradoura, em vez do estmulo "decoreba" para se sair bem nos exames, os quais valorizam a quantidade de conhecimentos restitudos, e no a qualidade de sua apropriao. 3. Consagrar tempo, meios, competncias e inventividade didtica em um trabalho mais intensivo e continuado sobre os valores, as representaes e os conhecimentos que toda democracia, todo contrato social pressupe. Assim como a sociedade, a escola diz uma coisa e faz outra. Ela diz que deseja dar a todos uma formao de alto nvel, mas no busca os meios pedaggicos para isso. Ela diz que deseja desenvolver a razo, mas vai acumulando as aprendizagens que preparam para os estudos longos. Ela diz que deseja educar, mas passa o tempo todo a instruir. O problema das contribuies do sistema educacional democracia no ser resolvido com a introduo na grade horria de uma ou duas horas semanais de educao para a cidadania. Nenhum avano essencial ocorrer se essa preocupao no for inserida no cerne das disciplinas, de todas as disciplinas (Vellas, 1993, 1999). Talvez a inquietao quanto cidadania oferea escola uma oportunidade histrica de reforar a democratizao do acesso aos saberes e de levar a srio as intuies fundadoras da escola ativa e das pedagogias construtivistas. preciso aproveitar essa oportunidade e neutralizar os lobbies disciplinares e os defensores de futuras elites, que aceitam a educao para a cidadania com a condio de que ela no interfira na preparao para concursos e para a corrida aos estudos superiores. O debate sobre a educao para a cidadania depara-se com um velho problema: a escolaridade bsica est a servio de todos ou no passa de uma ampla propedutica para as futuras elites? Os debates contemporneos sobre a cultura geral, a seleo, os programas orientados para as competncias colocam, sua maneira, o mesmo problema.

Escola e cidadania - 13 PLANO DA OBRA Este livro no pretende propor uma receita, mas gostaria de compartilhar duas convices: A sociedade parte do problema e no pode transferir suas responsabilidades para o sistema educacional. Este no pode aceitar um mandato mais ambicioso se no obtiver novos meios e, sobretudo, se no deixar claro que no poder desenvolver fortemente a cidadania sem reorganizar as prioridades da formao bsica. Os textos reunidos aqui procuram colocar as ferramentas da anlise sociolgica a servio de uma viso da cidadania que se enraze claramente em uma escolha poltica. Caber a cada um encontrar pontos de concordncia e de discordncia. O que me interessa contribuir para. a reflexo e talvez para uma ruptura com a ladainha sobre a cidadania aps a qual cada um. volta a se dedicar s suas ocupaes, como se nada tivesse acontecido. O Captulo 1, "Aprendizagem da cidadania... das boas intenes ao currculo oculto", tenta esclarecer o conceito de cidadania em uma sociedade contempornea, dividida entre nacionalismo e conscincia planetria (Morin, 2000), na qual o pluralismo e o individualismo reduzem continuamente os valores comuns, aqueles que a escola poderia ter a misso de inculcar com segurana e legitimidade. No se pode exigir da escola um adestramento de espritos e de corpos incompatvel com os valores democrticos, assim como a defesa de valores que, na prtica, a sociedade vilipendia vista de todos. Supondo-se que a escola pode tudo, ela no teria como assegurar a educao para a cidadania por meio de uma disciplina especfica, uma ou duas horas de "catecismo cidado" perdidas na grade horria. O conjunto do currculo est em jogo. De que serve ensinar o respeito, a tolerncia, a cooperao se o sistema educacional pratica a segregao, a humilhao ou a competio? O currculo real funo do conjunto das experincias formadoras engendrada pela vida na instituio escolar no seu dia-a-dia. A educao para a cidadania , portanto, um problema de todas as disciplinas, de todos os momentos da vida escolar. Ela encontra seu nicho na relao pedaggica, no respeito s diferenas e esfera privada dos alunos, na avaliao, no sistema de aprovao, na seleo, na relao com as famlias, mas tambm no estatuto do questionamento e do debate em aula, na relao com o saber privilegiado por este ou por aquele professor, no tempo reservado para negociar com os alunos os contedos, as modalidades e a organizao do trabalho escolar. De que serve instituir um conselho representativo dos alunos se ele s pode

14 Philippe Perrenoud participar de discusses sobre bicicletas ou sobre o fumo no estabelecimento, se o essencial da ao pedaggica no negocivel? Em sntese, o Captulo 1 mostra que, se no queremos ficar apenas nas palavras, desenvolver a educao para a cidadania tem fortes implicaes para os programas, para as relaes e para os modos de vida e de deciso no mbito escolar. O Captulo 2, "O debate e a razo: cidadania e saberes", insiste em uma viso menos ingnua e menos marginal da educao para a cidadania. Esta conduz a situ-la no cerne das disciplinas, consideradas como o lugar de exerccio intensivo da aprendizagem da razo, do respeito aos fatos, da prudncia, da argumentao, da escuta, da busca paciente de um acordo sobre o que se deve pensar sobre o mundo. A cincia no suficiente para garantir a democracia; h pensadores loucos e cientistas que se vendem a quem oferecer mais. Entretanto, desenvolver a tica da busca e da discusso continua sendo a melhor aposta em um mundo onde o argumento de autoridade pesa cada vez menos, onde as pessoas instrudas querem compreender e ser convencidas por um raciocnio explcito, por observaes, pelo respeito a um mtodo. Para que as disciplinas coloquem-se a servio da cidadania, da aprendizagem do debate e da razo, preciso parar de sobrecarregar os programas, assegurando aos professores e aos alunos o direito e o tempo necessrios construo conjunta de uma parte dos saberes para debater, para confrontar vrias hipteses e para encontrar os melhores caminhos. No se avalia at que ponto o enciclopedismo dos programas priva os saberes escolares - nem tericos, nem prticos, segundo Astolfi (1992) - da histria das cincias, da controvrsia prpria pesquisa, desferindo-os como verdades absolutas a alunos que esto mais preocupados com os exames do que em adquirir conhecimentos que lhes sirvam como ferramentas de inteligibilidade do mundo. Como se v, a educao para a cidadania tem a ver com as pedagogias ativas e construtivistas, com a didtica das disciplinas, com a relao com o saber. No h nenhuma razo para confin-la a uma educao moral que, por sua vez, s teria sentido se houvesse um amplo consenso a propsito do que fazer ou no fazer. Hoje, o que mais necessitamos de uma tica, de uma capacidade de raciocnio fundada nos saberes, particularmente nos saberes provenientes das cincias econmicas, sociais e humanas, que ainda so os primos pobres do currculo. O Captulo 3, "Ciberdemocratizao: as desigualdades reais diante do mundo virtual da internet", aborda o problema de um ngulo que pode parecer marginal, embora esteja no cerne do problema: em uma sociedade complexa, ~ cidadania passa por meios intelectuais, aqueles que so necessrios

Escola e cidadania 15 para conceber as condies do contrato social, da reciprocidade, da responsabilidade, da solidariedade, mas tambm aqueles que permitem participar das decises e, portanto, compreender os desafios e defender um ponto de vista ou de interesses. A internet est mudando a escala dos fenmenos nas reas cientfica, comercial, miditica e tambm na poltica; no tanto porque todos os candidatos s diversas eleies dispem agora de um site na web, nem tampouco porque b frum de discusso passa a ser continental ou planetrio, no sentido de que hoje difcil cortar um pas do resto do mundo, como constatam os 'regimes totalitrios. No, o efeito poltico mais importante passa pelo acesso desigual s informaes e pelo domnio desigual de seu sentido e de suas implicaes. Mais cedo ou mais tarde, todos aprendero a "navegar" na internet ou a se corresponder por correio eletrnico do mesmo modo que todos, ou quase todos, aprenderam a falar por telefone. A desigualdade no est no uso bsico da ferramenta, mas na complexidade daquilo a que se tem acesso atravs dela, em geral de forma desordenada. Potencialmente, todos tm acesso s informaes estratgicas que se encontram na Internet; porm, elas so reservadas no apenas aos que sabem ler, comparar, registrar, encontrar informaes, mas tambm aos que dispem dos saberes necessrios para julgar sua confiabilidade e sua pertinncia, para fazer melhor uso dela. No basta colocar cada aluno diante de um computador conectado web para que se restabelea a igualdade dos cidados. A internet um excelente indicador das desigualdades intelectuais mais clssicas, alm de um agravante de suas conseqncias. O Captulo 4, "Competncias, solidariedade, eficcia: trs reas de explorao para a escola", atribui alta prioridade a trs reas de explorao complementares que esto diretamente relacionadas cidadania. evidente que certas competncias so condies para o exerccio lcido e responsvel da cidadania. 9s saberes no bastam; preciso aprender a utiliz-los para enfrentar a complexidade do mundo e para tomar decises, ou seja, para operar sua transferncia, sua mobilizao e sua contextualizao to seriamente quanto sua assimilao. Desse ponto de vista, as reformas curriculares que esto sendo empreendidas na Blgica, no Brasil, no Canad ou em Portugal, por exemplo, so favorveis cidadania, desde que, naturalmente, a linguagem das competncias no seja uma simples concesso ao esprito do tempo e a transposio didtica refira-se a prticas sociais, entre as quais as prticas cidads. preciso salientar que isso no conduz, de modo algum, a abandonar os saberes disciplinares, mas a conceb-las como ferramentas para compreender e dominar a realidade, e no como bases para os estudos superiores.

16 - Philippe Perrenoud A solidariedade um componente da cidadania. Aquele que no se sente tocado pelo que acontece com os outros no tem nenhum motivo para desenvolver seus saberes e suas competncias cvicas; vale mais a pena preparar-se para sobreviver na selva. No existe comunidade democrtica sem um mnimo de solidariedade, quer ela nasa de um simples clculo, quer ela repouse sobre valores humanos. O contrato social , antes de tudo, um contrato: um arranjo satisfatrio para as diversas partes, cada uma se preocupando legitimamente com seus prprios interesses, mas com viso e senso estratgico bastante amplos para compreender que a reciprocidade, a mdio prazo, uma vantagem, ainda que imponha obrigaes. Quanto eficcia do sistema educacional, ela a chave de tudo. Enquanto 20% dos jovens deixarem a escola confusos com a lngua escrita e com os saberes escolares essenciais, a cidadania estar ameaada. Um nvel elevado de instruo de todos no garante por si s a democracia, mas uma condio necessria.

O Captulo 5, "As competncias a servio da solidariedade", aprofunda a questo dos conhecimentos e das competncias necessrios para ajudar a tornar o mundo mais solidrio. Trs desafios de formao so identificados. O primeiro, "erigir a solidariedade como valor e princpio tico", parte do princpio de que a solidariedade no to bvia nem to simples, mas uma conquista contra a tentao do "Eu em primeiro lugar". O segundo desafio, "compreender a solidariedade como base do contrato social", diz que ela s pode ser o resultado de um raciocnio complexo, que recupera os fundamentos racionais de uma limitao das dominaes e das desigualdades como condio da vida coletiva. O terceiro desafio mais pragmtico: somente uma viso angelical do mundo levaria a crer que os ricos esto dispostos a

Escola e cidadania 17 compartilhar seus privilgios. Portanto, trata-se tambm de aprender a lutar para ampliar a solidariedade. O Captulo 6, "A chave dos campos: ensaio sobre as competncias de um ator autnomo", aborda um componente fundamental da cidadania: a formao de atores autnomos. Quando se procura ir alm das abstraes, quando se faz referncia no mais idia de autonomia, mas de prticas de autonomizao em campos sociais diversos, chega-se a saberes e a habilidades muito concretos, como os que permitem: a) identificar, avaliar e fazer valer seus recursos, seus direitos, seus limites e suas necessidades; b) criar e implementar projetos, sozinho ou em grupo, assim como desenvolver estratgias; c) analisar situaes, relaes, campos de fora de modo sistemtico; d) cooperar, agir em sinergia, participar de um grupo, compartilhar uma liderana; e) construir e promover organizaes e sistemas de ao coletiva de tipo democrtico; f) gerir e superar os conflitos; g) manejar as regras, utiliz-las e elaborlas; h) construir ordens negociadas para alm das diferenas culturais. A hiptese fundamental que somente atores autnomos podem construir uma cidadania vivel, conduzir negociaes que permitam conciliar diferenas e eqidade, bem pblico e projetos pessoais. O Captulo 7, "Fundamentos da educao escolar: desafios de socializao e de formao", examina de forma mais metdica as duas grandes misses da escola, procurando relacion-las e harmoniz-las. Para desenvolver a autonomia e a cidadania, a escola precisa de professores que sejam pessoas confiveis, mediadores interculturais, coordenadores de uma comunidade educativa, fiadores da Lei, organiza dores de uma pequena democracia, condutores culturais e finalmente intelectuais. Essas qualidades s se revelaro se forem explicitamente buscadas e desenvolvidas na formao dos professores. Ao mesmo tempo, se a escola pretende preparar os jovens para enfrentar a complexidade do mundo com seus conhecimentos e suas competncias, ela deveria privilegiar a figura do professor como organizador de uma pedagogia construtivista, garantia do sentido dos saberes, criador de situaes de aprendizagem, gestor da heterogeneidade e regulador de processos e de percursos de formao. Essas duas figuras so complementares e deveriam orientar na mesma proporo a formao dos professores. Uma breve concluso, "Uma educao para a complexidade e para a solidariedade como fundamento da democracia", examinar as relaes entre a escola e a democracia, mostrando que esta ltima ameaada no apenas pelos desvios, pelas incivilidades e pelas violncias cometidas pelos indivduos, como tambm pelas reaes de segurana que provocam essas agresses e, o que mais grave, pela tentao por parte de vrios pases de retomar

18 Philippe Perrenoud a um regime autoritrio, ou mesmo fascista, para enfrentar o medo e a precarizao da vida e do trabalho. preciso considerar seriamente a hiptese de que as transgresses e as violaes ao contrato social que alimentam o debate sobre a cidadania nada mais so do que sintomas de uma sociedade cada vez mais dual em um cenrio de globalizao e de reestruturaes econmicas brutais. Ser que o mundo governado por algumas multinacionais, por alguns imprios militarindustriais, por alguns pases totalitrios dispostos a tudo, por algumas redes mafiosas ou terroristas? O fato de se poder colocar seriamente essa questo enfatiza os limites da democracia e o risco de fazer da educao para a cidadania um novo pio do povo, uma forma de calar aqueles que denunciam a globalizao e que opem violncia midiatizada dos bairros desfavorecidos a violncia maior, ainda que seja mais silenciosa, do mundo econmico, a violncia das demisses, das concentraes industriais ou bancrias, das "leis de mercado", da explorao dos pases do Sul, do apoio a regimes ditatoriais para garantir o acesso ao petrleo e s matrias-primas. Enfim, e isto um convite ao leitor, temos de nos perguntar se a educao para a cidadania est altura dos mltiplos descaminhos que ameaam nossas frgeis democracias.

1Aprendizagem da cidadania... das boas intenes ao currculo oculto* H algo que se possa fazer para implantar a aprendizagem da cidadania nos ensinos fundamental e mdio? Antes de sobrecarregar o programa de educao inicial e continuada dos professores com novas misses, seria prudente responder a algumas perguntas: 1. Do que se trata? De que aprendizagem estamos falando? A cidadania uma questo de atitude, de saberes, de competncias, de valores, de identidade? Tudo isso ao mesmo tempo? E mais ainda? 2. Onde e como se aprende a cidadania? Que parcela cabe educao deliberada e socializao implcita? 3. Ser que hoje a escola tem um papel nisso, consciente ou involuntariamente, por meio do ensino ou do currculo oculto? 4. Poderia haver um maior domnio pedaggico e didtico sobre essa aprendizagem? Por quais caminhos? O ensino? A educao? A vida escolar? A organizao da sala de aula e do estabelecimento escolar? A relao pedaggica? 5. Que atitudes, saberes, valores e competncias isso exigiria dos professores? 6. Pode-se formar nesse sentido? Onde e como? ______ * Publicado em Gracia, J.-C. (dir.). ducation, citoyennet, territoire. Actes du sminaire de l'enseignement agricole. Tolouse: ENFA, 1997, p. 32-54.

20 - Philippe Perrenoud Essas perguntas questionam igualmente as finalidades da escola, os programas, o papel dos professores e a transposio didtica para alm dos saberes. Ao faz-las, inevitavelmente se levar mais tempo para obter respostas seguras. No faz-las condena a sucumbir aos efeitos do modismo. A CIDADANIA: DE QUE APRENDIZAGEM ESTAM OS FALANDO? Ser que se trata de aprender que todos pertencem a uma coletividade organizada, a uma nao? Que existem direitos e deveres? Que cada um est ligado aos outros membros por uma lei comum, expresso da vontade geral? Que existem, alm do conhecimento de valores comuns, leis e instituies - instruo cvica elementar -, uma obrigao de solidariedade, um contrato de coexistncia pacfica, a busca constante de um justo equilbrio entre liberdade e responsabilidade, entre autonomia e ingerncia? A cidadania tudo isso? Do que estamos falando exatamente? ... . A palavra, um pouco fora de uso, acaba de ser adaptada ao gosto da moda. O que ela significa? Para Le Robert, a cidadania "a qualidade de cidado", sendo este ltimo "na Antiguidade, aquele que pertence a uma nao, reconhece sua jurisdio, est habilitado a usufruir, em seu territrio, do direito de cidadania e tem de cumprir os deveres correspondentes". Nos tempos modernos, o sentido evoluiu e a palavra cidado designa uma pessoa "considerada como pessoa cvica". Caminha-se em crculo, muitos diriam. No, porque se, antes de 1781, cvico significa simplesmente "relativo ao cidado", esse conceito em seguida muda de sentido, passando a significar o prprio ao bom cidado. Dessa passada pelo dicionrio, o que se retm de mais importante, do ponto de vista da educao, que ter cidado constitui um estatuto ao qual esto associados direitos e deveres, definidos no mbito de uma nao como organizao da vida comum; para ser cidado, nesse sentido, era preciso conhecer a Constituio, as leis, as instituies. Para respeit-las, era preciso ainda aderir aos valores e s convices em que se fundamentavam. Assim, a cidadania no era uma obrigao. Podia-se viver sem ser cidado. Esse era o estatuto mais cobiado, no o nico possvel. Herdamos a cidadania de uma poca em que no se concebia que todos fossem cidados, ao contrrio. A democracia antiga limitava-se ao crculo restrito dos cidados, ningum desejava ampli-lo por uma preocupao de igualdade. A Revoluo Francesa mudou completamente os termos do problema ao pretender transformar cada um em cidado integral. Desde ento, no mais um privilgio ou uma verdadeira escolha. A cidadania outorgada automaticamente na idade da "maioridade civil", inicialmente aos homens au-

Escola e cidadania - 21 tctones, depois s mulheres e aos residentes, com uma tendncia ao rebaixamento da idade limite! Ela no pode ser recusada e s retirada em caso de grave infrao lei comum. Alm disso, a perda dos direitos civis reversvel. Assiste-se, desde ento, a uma inverso de perspectivas: se antes a cidadania s era outorgada aos que davam garantias suficientes de civismo, agora preciso preparar para ser bons cidados todos aqueles que se tornaro , ~ simples cidados" sem nada terem pedido. Quanto mais o crculo se amplia s classes populares e s pessoas nascidas em outros lugares, aparentemente menos se confia em sua educao familiar. Da o desafio de instruo e de socializao que ultrapassa a farru1ia e est na origem da educao cvica confiada escola. No mbito do Estado-Nao, que supostamente agruparia os cidados, a escola encarregada de form-los para esse papel, sendo inclusive o motor principal de sua extenso ao sculo XIX. No disso que se fala hoje quando se fala de educao para a cidadania? Esta no seria apenas uma expresso nova para rebatizar um projeto de instruo e de educao to antigo quanto a escola obrigatria? Por que essa expresso nova? Podemos sugerir trs hipteses complementares. A expresso "educao para a cidadania" serviria para: .." ., revigorar uma educao moral e cvica tradicional, que ficou um pouco em desuso durante dcadas, dando-lhe uma nova denominao; designar uma nova concepo da cidadania, mais formal, mais tica, mais ativa, mais planetria; enfrentar uma crise da cidadania, anunciada ou atual. A hiptese da crise evidentemente apoiada pelo discurso ambiente sobre o enfraquecimento do vnculo social, a violncia urbana, o racismo e as condies precrias de vida das periferias. Longe de ser o baluarte esperado, a prpria escola teria sido tomada pela desordem e pela violncia. Contra as anlises um pouco estreitas das mdias, as cincias sociais mostram que, freqentemente, a violncia dos alunos nada mais do que uma resposta situao da sociedade que os estigmatiza (Debarbieux, 1990; Defrance, 1992, 1993; Pain, 1992; Nizet e Herniaux, 1985). Em para seu bem, Alice Miller (1984) j havia identificado as razes da violncia na educao da criana. O ..contrato pedaggico e o contrato didtico so impotentes para reconstituir ~um contrato social mais global, porque eles o pressupem (Develay, 1996; Meirieu, 1996b). "Mesmo que isso seja verdade, no se pode negar tambm que as sociedades contemporneas enfrentam exigncias cada vez maiores. Hoje a questo promover a coexistncia em uma sociedade de pessoas pertencentes a diferentes etnias, nacionalidades e culturas, que no falam a mesma lngua, ,

22 Philippe Perrenoud que no tm os mesmos valores e os mesmos modos de vida. Ao mesmo tempo, o respeito s diferenas avanou e o aparelho estatal no tem mais como enquadrar todos no mesmo molde cvico. Se h um molde, ligado produo e comunicao de massa, este se organiza no mundo do trabalho, do consumo e do lazer, e no da participao para a vida coletiva. As fronteiras tornam-se tnues, os continentes organizam-se, a aldeia planetria tornase uma realidade. . O Estado-Nao no mais hoje em dia o "locus of control" da sociedade civil. Foi-se o tempo em que as comunidades polticas eram mais fechadas e dispunham dos meios de controle dos espritos e dos comportamentos que o Estdo atual j no possui, pelo menos nas democracias. Esse enfraquecimento do controle dos espritos decorre, em parte, do xito do projeto de instruir: o nvel de educao no permite mais doutrinar as massas; o Papa diz uma coisa e os Catlicos fazem outra; o chefe de Estado dirige-se a todos pela televiso, mas uma voz entre outras, entre dois comerciais, concorrendo com um talk show ou com um jogo em outros canais. '. Hoje sonhamos com uma cidadania livremente assumida, sem dotitrinao. Por muito tempo, a instruo cvica confundiu-se com a interiorizao intensiva e pouco crtica de alguns princpios morais e com a preocupao de desenvolver um respeito incondicional s instituies, ao trabalho, famlia, lei, acompanhado de uma identificao com a ptria, com uma viso muito nacionalista da histria e da geografia, com uma adeso ao colonialismo e, em certa medida, com o racismo e com o desprezo por outras culturas. At os anos 19301940, os manuais de leitura, assim como os de instruo cvica, eram catecismos mais ou menos laicos, dependendo do grau de separao da Igreja e do Estado. Aps a Segunda Guerra Mundial, iniciou-se uma evoluo, ligada, sem dvida, descolonizao e ao enfraquecimento - relativo do etnocentrismo dos pases ocidentais. A sensibilidade moderna fa-la de direitos humanos, de livre-arbtrio, de esprito crtico, de direito dos povos autodeterminao, de igual dignidade de raas, de culturas, de religies e de modos de vida; defende uma igualdade e uma civilizao planetrias. A escola um dos lugares aos quais se delega essa viso idealista da cidadania, e o pessoal do ensino contribui para isso. A educao para a cidadania est fortemente associada a uma nova concepo da sociedade civil. Ela emana do Estado, mas o toma como objeto. Assim, nos novos programas para as sries finais do ensino mdio, no captulo "Educao cvica", podemos ler: Nesse ciclo, os alunos tomam conscincia de que os princpios e os valores fundamentais so constitutivos da democracia. Eles descobrem que as instituies no esgotam os valores, que o direito, quando busca

Escola e cidadania 23 concretiz-los melhor, no satisfaz s aspiraes dos homens por mais justia, mais igualdade, mais liberdade. E isso que explica as tenses existentes entre o Estado como fiador do direito e a conscincia humana, ela mesmo sendo garantia de sua liberdade de exerccio em um regime democrtico; que mostra tambm a distncia existente entre os valores e a realidade; que permite, enfim, compreender o papel, paralelo ao do Estado, dos cidados, das associaes ou das organizaes nogovernamentais na efetivao dos valores. O exerccio do esprito crtico e a prtica da argumentao so privilegiados nas aes pedaggicas (Direction des Lyces et Collges, 1997, p. 45). I Falsidade e demagogia, diro os mais cticos, esperana de um mundo melhor, diro os idealistas. Mas, de fato, os programas mudaram e j no so mais utilizados - ou pelo menos no to abertamente como antes - a servio da formao de uma cidadania dcil. Em 1968, um texto como esse poderia ter emanado de uma corrente alternativa contrria ao Estado... Como revelou Martucelli, a escola nunca foi to democrtica; jamais, na histria, ela tratou to bem as crianas. Isso nos parece normal em relao ao nosso sentimento da infncia e s concepes da educao influenciadas por correntes que, de Rousseau ao construtivismo, passando pelos movimentos da escola nova, fazem da criana uma pessoa plena, que tem direitos e pensa pOF ela mesma. Portanto, somos sensveis s contradies entre nossos valores e ao fat{) de ainda existirem crianas maltratadas e alunos perseguidos ou petrificados por medo de punies. Isso no impede de ver que, a longo dos anos, a instruo abriu-se mais ao dilogo e passou a respeitar mais os alunos, e a vida escolar tornou-se mais participativa e menos fechada em um jugo de regras apoiadas em um enorme aparato repressivo. Que o retorno da regra e da represso no nos iluda: foram os adultos que criaram os problemas que hoje eles denunciam. Eles constituram a infncia e a adolescncia em idades protegidas. Desenvolveram os direitos e abrandaram as obrigaes e as sanes. E parecem arrependidos. A educao cvica foi, por muito tempo, assim como o conjunto da instruo escolar, uma violncia simblica assumida mais ou menos abertamente, com castigos corporais considerados legtimos, punies muito pesadas, zeros de comportamento, suspenses, expulses, tudo sem procedimentos de recurso. Atualmente, no existe mais a instituio todo-poderosa;~ola agora regida pelo direito civil, deve respeiJar a esfera privada das pessoas, seu direito de expresso, de livre associao. Um professor que bate, insulta ou humilha um aluno pode ser processado. Portanto, hoj~ no se trata mais de uma educao para a cidadania com base no r,nodelo ecleSistico ou militar. Alis, em nossos dias, mesmo os seminaristas ou os recrutas tm direitos...

24 Philippe Perrenoud fcil afirmar que a cidadania est "em queda livre'" -ou "em crise" e que aps exclamar" Mas o que faz a polcia?" diga-se" Mas o que faz a escola?". . Seria justo reconhecer que a concepo da cidadania mudou e, com isso, mudaram tambm os meios legtimos de educar e de instruir. Sempre que alguma coisa parece "degradar-se", temos de nos perguntar se a realidade mudou ou se foram nossas expectativas que aumentaram. Atualmente, estigmatiza-se a ignorncia em sociedades nas quais o nvel de instruo o mais elevado da histria. Pode ser tambm que em matria de cidadania nossas expectativas mudem mais rpido do que os comportamentos, o que nos levaria a ver uma degradao absoluta onde ela apenas relativa. . Da a considerar a escola responsvel por essa degradao um passo. Contudo, ela procurou isso: por fora de pretender preparar-nos para tudo, encerrando-nos em suas salas de aula por 10 a 20 anos de nossas vidas, ela cria expectativas ilusrias e autoriza a atribuir-lhe todos os problemas que a sociedade no consegue resolver. Essa anlise, porm, 1.Wl pouco apre?~ada. ONDE E COMO SE APRENDE A CIDADANIA? A escola no um Estado dentro do Estado, mesmo que se reconhea sua "autonomia relativa". Por isso, no se pode imputar a ela, sem qualquer outra forma de processo, uma eventual crise da educao cidad. Charles Pguy escreveu em 1904: A crise do ensino no uma crise do ensino; no h crise do ensino; jamais houve crise do ensino; as crises do ensino no so crises do ensino; elas so crises de vida; elas denunciam, elas representam crises de vida e elas prprias so crises de vida; elas so crises de vida parciais, eminentes, que anunciam e acusam crises da vida geral; ou, se preferirmos, as crises de vida gerais, as crises de vida sociais agravam-se, mis. turam-se, culminam em crises do ensino que parecem particulares ou parciais, mas que, na realidade, so totais, porque representam o conjunto da vida social; de fato no ensino que as provas eternas aguardam, por assim dizer, as mutantes humanidades; o resto de uma sociedade pode passar, falsificado, maquiado; o ensino no passa em absoluto; quandQ uma sociedade no pode ensinar, no , de modo algum, porque lhe falta eventualmente um aparelho ou uma indstria; quando uma sociedade no pode ensinar, porque essa sociedade no pode ensinar-se, porque ela tem vergonha, porque ela tem medo de ensinar a si prpria; para toda a humanidade, ensinar, no fundo, ensinarse; uma sociedade que no ensina uma sociedade que no se ama, que no se estima; e esse justamente o caso da sociedade moderna (publicado em 11 de outubro de 1904, em uma espcie de editorial intitulado "Para a volta", retomado em Charles Pguy, Cahiers VI, lI,

Escola e cidadania 25 Oeuvres en prose, La Pliade 11, p. 1.390, citado por Jacques Julliard, em Le Nouvel Observateur, n. 1.357,8-14 novembro 1990, p. 61). . "Quando uma sociedade no pode ensinar, porque essa sociedade no pode ensinar-se; porque ela tem vergonha, porque ela tem medo de ensinar a si mesma". Frase terrvel, mas que talvez seja a chave do problema: por que exigir que a escola seja mais virtuosa do que a sociedade que ela expressa? Isso no apenas injusto, absurdo. A tese de Pguy, entretanto, padece de ingenuidade sociolgica;..a soc~dade no uma pessoa, um campo de foras contraditrias. Uma sociedade no pode globalmente ter vergonha dela mesma, a no ser que forme um bloco. Em uma sociedade pluralista, coexistem todos os tipos de sentimentos, da plena adeso, mais ou menos interessada, ordem estabelecida, revolta explcita. Todavia, todos podem sentir vergonha de sua sociedade ou -por_sua.sociedade, o que no os leva a transmitir seus valores dominantes. Uma sociedade pluralista tem necessariamente mais dificuldade de ensinar do que uma escola monoltica. Ela tem de enfrentar escolhas difceis: ou ela autoriza que cada comunidade "se ensine" em circuito fechado, em uma rede educacional e escolar especfica, o que, com o tempo, ameaa a sociedade global de fragmentao ou de balcanizao; ou ela delega escola a misso de transmitir valores, gostos, princpios ticos que estp longe de constituir unanimidade, impondo a todos as orientaes do partido no poder; ou ela s ensina o que objeto de um consenso muito amplo em seu interior, isto , poucas coisas, alguns valores compartilhados, o respeito s suas diversidades, aos direitos humanos e ao princpio democrtico. Aquilo que Pguy interpreta como "medo de ensinar a si mesma" talvez seja simplesmente o reverso de uma oscilao-hesitao entre esses trs caminhos, nenhum deles satisfatrio: o primeiro, porque ameaa a prpria unidade da sociedade civil e produz guerras ou secesses; o segundo, porque afasta a escola de uma posio de neutralidade em relao aos diversos valores e ideologias que coexistem no seio de uma sociedade; o terceiro, porque permanece no plano abstrato e no prepara verdadeiramente para enfrentar a complexidade do mundo.

26 Philippe Perrenoud Deve-se aceitar o uso do vu? Proibir os partidos racistas ou antidemocrticos? Flexibilizar a obrigao de ir escola? Impor a deteco da Aids? Tolerar as manipulaes genticas? Descrirninalizar certas drogas? Autorizar o aborto ou a eutansia? Impor certas vacinaes ou tratamentos em nome do bem comum? Intervir nas guerras civis de pases prximos? Autorizar a prostituio? Controlar a internet? O respeito diversidade, aos direitos humanos e ao princpio democrtico no a resposta para tudo no mundo de hoje, pois a interpretao de princpios pode ser objeto de debates infindveis. Uma educao cvica assptica no ajuda muito a enfrentar os dilemas do mundo contemporneo. Uma educao cvica engajada, qualquer que seja a sua inspirao, recebida como doutrinao por uma parte das famlias... Sem ter necessariamente vergonha daquilo que ela , nossa sociedade j no sabe muito bem em que acreditar e o que deve transmitir sem reservas, no por falta de convico em cada um, mas pela inexistncia de convices compartilhadas em larga escala. Talvez no se tenha percebido com clareza suficiente o paradoxo da democracia: ela priva de certezas morais e filosficas simples, que se poderia considerar como "evidentes". As sociedades fundamentalistas ou totalitrias so menos vacilantes quando se trata de ensinar a si mesmas, mas a que preo? Pguy, de certa maneira, sonha com uma ordem antiga, ultrapassada. Essa nostalgia no desapareceu e inspira uma parte das lamentaes atuais. Em compensao, esse autor tem plena razo quando lembra que a escola no pode salvar a sociedade. Mesmo que a escola dedicasse a maior parte do tempo de estudo a educar para a cidadania, como ela poderia contrabalanar o que as pessoas vem diariamente sua volta e na televiso? Liberdade, igualdade, fraternidade: essas palavras figuram no fronto da Repblica e no programa da escola. Ora, o que se v? . A liberdade, componente maior dos direitos do homem, tambm, de maneira geral, a da raposa no galinheiro, a dos poderosos, dos que fazem a lei ou dispem dos meios para contorn-la legalmente. Liberdade de especular, de poluir, de comercializar armas, drogas, sexo, muitas vezes impunemente, graas a falhas na legislao ou no sistema policial e judicirio. . Vivemos em uma sociedade to vida de justia quanto impregnada de desigualdades, e algumas continuam agravando-se: desigualdades sociais diante da educao, da justia, do trabalho, da sade, do consumo, da participao nas decises; desigualdades persistentes entre os sexos, entre as classes sociais, entre as nacionalidades e as naes.

Escola e cidadania 27 O que a fraternidade na desigualdade? E como acreditar que somos todos irmos quando as agresses de uns a outros eclodem nas mdias: delinqncia econmica, fraude fiscal, trfico de influncia, uso indevido de bens sociais, desvio de recursos, reestruturaes industriais decididas em outro pas, transformaes tecnolgicas brutais, demisses em massa, atentados integridade das pessoas, violncias sexuais, discriminaes religiosas e raciais, arbitrariedades da polcia, terrorismo, intolerncia de seitas, ressurgimentos dos dios de extrema direita, explorao das crianas, dos imigrantes, do Terceiro Mundo? Evidentemente, fcil esboar um retrato apocalptico de nossa poca. Como contraponto, tambm podemos exaltar os progressos da cincia, a ampliao progressiva dos direitos da pessoa, o engajamento humanitrio de alguns, a criao artstica. Podemos lembrar ainda que os pases "relativamente democrticos" so bastante minoritrios no mundo, que em outros lugares bem pior: guerras locais ou civis, fome, genocdios, catstrofes ecolgicas, torturas, polcias polticas, ditaduras sanguinrias, novos fascismos, m fias, cls e tribos que desdenham totalmente do bem pblico, fundamentalismos obscurantistas, castas privilegiadas protegidas atrs de seus muros, contas na Sua alimentadas com a misria dos povos, desvio da ajuda ao desenvolvimento, campos de concentrao e outros gulags. Sem dvida, atualmente melhor viver na Frana do que na Bsnia, no Zaire ou na China. preciso admitir, no entanto, que na aldeia planetria absurdo pretender ignorar o que se passa fora de nossas fronteiras e insustentvel sugerir que nada temos a ver com isso. Entre a no-ingerncia nas guerras que ainda ameaam a exIugoslvia e o imperialismo poltico, econmico e cultural que sucedeu o colonialismo, as sociedades mais desenvolvidas tm uma enorme responsabilidade sobre os conflitos que assolam outras regies do planeta. No preciso enegrecer o quadro. Podemos at admitir que, sob certos aspectos, se a comparao tem sentido, h mais liberdade, igualdade e fraternidade nas sociedades democrticas do que jamais houve na histria. Que a violncia, as injustia, a discriminaes sejam menores do que nunca, isso interessa aos historiadores, mas os contemporneos no vem a evoluo, eles assinalam que isso est em contradio flagrante com os ideais proclamados hoje. Na Idade Mdia, liberdade, igualdade e fraternidade no eram valores afirmados, e a organizao feudal no pretendia uma comunidade democrtica. Em nossos dias, o que incomoda, mais do que os fatos to velhos quanto a vida em sociedade sua distncia de nossa viso ideal da humanidade.

28 Philippe Perrenoud Ser que as boas almas que denunciam os vcios e as contradies de nossa poca e que impem escola a moralizao da sociedade procuraram saber: 1. Por que a escola seria mais virtuosa, menos permeada de diferenas e contradies que o conjunto da sociedade? 2. Como ela poderia transmitir valores que so desmentidos dia aps dia na famlia, na rua, nas empresas, nas mdias? " preciso compartilhar, respeitar o outro, ajudar-se mutuamente", diz o professor. "Mas ento por que tem gente que morre de fome, que no tem trabalho, que padece na solido, que vive na misria ou que vai para a priso por seus ideais?", dizem os alunos. Como responder a isso? Que h ovelhas negras em todos os rebanhos? um pouco simplista, comparado com as chamadas dos jornais da TV. Em suma, a reflexo sobre a cidadania e sua aprendizagem no pode ser fruto do pensamento mgico, mas preciso admitir as contradies de nossas sociedades e no esperar que a escola as assuma sozinha. No jogo de polcia e ladro, todos os ladres descobertos antes de alcanar o objetivo so "pegos", mas eles tm uma esperana: se o ltimo ladro chegar ao objetivo sem ser preso, pode "salvar o bando". No jogo da sociedade, a escola no pode "salvar o bando". Ela s pode dar andamento, por seus prprios meios, s intenes e s estratgias educativas da sociedade. Pguy estava certo: temos de trabalhar sobre as crises da sociedade antes de denunciar as carncias da escola ou de jogar em suas costas novas misses impossveis.

Escola e cidadania 29 Dessa anlise, eu no concluiria pela total impotncia da escola. Se ela permeada pelas mesmas contradies que a sociedade, isso significa que tambm abriga foras favorveis aos direitos, justia, aos princpios de liberdade, de igualdade e de fraternidade. Resta saber o que ela pode fazer, que poder ela tem, concretamente. O QUE A ESCOLA PODE FAZER? Se ensinamos "o que somos", segundo uma frmula que convm tanto educao quanto sociedade, o primeiro recurso da escola seria o grau de cidadania dos professores. Ser que o profissional do ensino mais cvico, desinteressado, idealista e preocupado com o bem pblico do que a mdia dos adultos contemporneos? Quanto a isso, no temos dados concretos, apenas suposies. A escola est associada historicamente construo de Estados democrticos, libertao do homem pelo saber e pela razo, valorizao do pensamento e da expresso, do debate contraditrio, do respeito ao mtodo e aos fatos, da assimilao do patrimnio cultural. Se os professores de hoje escolheram esse ofcio em razo de uma afinidade com esses valores, possvel que se encontre nos estabelecimentos escolares um pouco mais de partidrios dos direitos humanos e dos ideais humanitrios do que em outros lugares; portanto, mais pessoas confiveis para desenvolver a cidadania, pessoas pouco suspeitas de praticar o "Faa o que eu digo, no faa o que eu fao". Se fosse para relativizar essa tese otimista, seria o caso de pinar esses professores pedfilos, sdicos ou racistas, ou ainda envolvidos em atividades ilcitas ou em movimentos antidemocrticos. Considerar que o pessoal do ensino no ipso facto mais virtuoso que os outros no significa dizer que seja menos! Basta reconhecer que, de maneira geral, o ensino apenas um job entre outros e que a virtude daqueles que o exercem provavelmente deve-se mais ao fato de pertencerem s classes mdias do que sua vocao pedaggica stricto sensu. Hoje as classes mdias encontram-se em uma posio moral relativamente confortvel. Elas gozam de privilgios, mas no tm de sujar as mos diretamente para mant-los, pois no esto nos comandos. No so as classes mdias que decidem as demisses em massa ou a no-produo de um medicamento mais eficaz ou de uma tecnologia promissora para no perder mercado. No so as classes mdias que apiam certas ditaduras por razes militares ou econmicas, nem so elas que mascaram o cinismo da razo de Estado com arroubos humanitrios. As classes mdias apiam - por meio de seu trabalho, de seu consumo, de seu voto - um sistema social que torna a

30 Philippe Perrenoud educao para a cidadania pouco confivel, mas fecham os olhos a isso. As classes mdias precisam ter boa conscincia e, quando isso j no to evidente, elas destinam alguns trocados para a pesquisa mdica, para a ajuda aos desempregados sem direitos ou para a fome no mundo. Ou amplificam mais ativamente o discurso sobre os direitos humanos e sobre a educao para a cidadania... Podemos apoiar-nos nessa boa conscincia e nessas boas intenes para transformar a escola. No sejamos ingnuos a ponto de acreditar que as classes mdias, portadoras desses valores, podem defend-los at o fim, isto , em ltima instncia, contra os seus interesses. Para educar verdadeiramente para a cidadania, necessrio, de fato, alterar substancialmente uma parte dos funcionamentos escolares institudos. Discutirei trs dessas alteraes: a apropriao ativa dos saberes e da razo crtica; a apropriao de um mnimo de ferramentas provenientes das cincias sociais; a prtica da democracia e da responsabilidade. A apropriao ativa dos saberes e da razo crtica Os saberes e a razo, infelizmente, no so uma garantia da tica: os ditadores, os gngsters, os especuladores, os torturadores, os fanticos mais odiosos no so todos brutamontes. O crime organizado e os totalitarismos apiam-se na cincia, na tecnologia e na razo estratgica, ao menos tanto quanto os defensores de causas humanitrias. Isso significa que a apropriao de saberes no interfere na aprendizagem da cidadania? Evidentemente no. pelo fato de no compreenderem o que ocorre com eles que os diminados e os desfavorecidos esto nessa situao. As mulheres e as crianas espancadas, os trabalhadores explorados, os desempregados, os imigrantes privados de direitos, os doentes jogados de um lado para o outro nos hospitais, os pequenos poupadores esmagados pelos grupos financeiros tm um ponto comum: seu capital cultural no suficientemente significativo e pertinente para lhes proporcionar os meios de se defender, nem mesmo para compreender os mecanismos que os fazem sofrer ou que precipitam sua excluso. A misria do mundo (Bourdieu, 1993) quase sempre acompanhada de uma privao intelectual, que , ao mesmo tempo, causa e conseqncia em um crculo infernal. Se a escola pretende educar para a cidadania, ela faria melhor se mantivesse suas promessas: proporcionar a cada um os meios para comandar sua

Escola e cidadania 31 vida pessoal e para participar da vida da comunidade. A educao participa da democracia, mas imaginar que isso se d atravs da instruo cvica seria contrariar o sentido histrico da escola obrigatria. De que serve aprender princpios cvicos ou detalhes da organizao do Estado quando no se consegue ler o texto de uma lei, preencher uma declarao de imposto ou captar o que est em jogo em uma eleio ou em um debate sobre a questo nuclear, a imigrao, a engenharia gentica ou a previdncia social? A educao cvica, como disciplina, apenas uma pequena parte da educao para a democracia, e esta ltima no se reduz transmisso de valores ou de conhecimentos sobre a organizao da comunidade. Ela passa antes pela construo de meios intelectuais, de saberes e de competncias que so fontes de autonomia, de capacidade de se expressar, de negociar, de mudar o mundo. Quando produz um fracasso, a escola no est educando para a cidadania! A excluso e a seleo so bem mais graves do que a ausncia de um curso de educao cvica (Vellas, 1993). No posso desenvolver aqui tudo o que diz respeito luta contra o fracasso escolar e s desigualdades sociais diante da escola. Insisto principalmente em uma conexo essencial: o fracasso escolar no um outro problema, o cerne do problema da educao para a cidadania, pois, embora no sejam condies suficientes, a apropriao de saberes e da escrita (Lahire, 1993) e a construo de competncias de alto Ilvel (Perrenoud, 1997a, 2000b) so condies necessrias. A apropriao de um mnimo de ferramentas provenientes das cincias sociais Um nvel intelectual elevado, reforado por uma slida conscincia moral, seria suficiente para garantir a compreenso e o bom uso dos mecanismos sociais? Talvez. Assim, um pesquisador de ponta em metalurgia ou em farmacologia, mesmo que at ento no tenha demonstrado interesse pela poltica ou por problemas sociais, tem meios de compreendlos'muito rpido se subitamente passar a se interessar por eles. Isso acontece porque ele tem uma grande capacidade de abstrao, de comunicao, de busca de informao e de assimilao de novos conceitos e de novos saberes. Conseqentemente, ele no ter dificuldade de compreender quem se beneficia com a inflao, como se opera a integrao europia, de que fonte bebem os movimentos de extrema direita, quais os riscos que oferecem os supergeradores ou de onde vem o rombo da previdncia social. Seria melhor no sonhar e agir como se todos os alunos tivessem atingido um nvel de formao tal, que o conhecimento da sociedade e de seus mecanismos viesse de algl.;lm modo "por acrscimo". Para os que no atingirem esse

32 Philippe Perrenoud nvel, que se situa sem dvida acima do nvel do bac*, seria sensato ensinar nas sries finais do ensino fundamental e no ensino mdio as bases do direito, da economia, da cincia poltica e da psicossociologia. Os saberes que permitem ser cidados so, em parte, de ordem centfica, porque os desafios geralmente so tecnolgicos. So ticos e filosficos na medida em que os dilemas e os conflitos de valores podem ser, de algum modo, relativizados pela razo e pela argumentao. Contudo, existe nos programas escolares um buraco negro: o conhecimento da sociedade. Este continua sendo o primo pobre, j que a educao cvica geralmente se limita s instituies e aos direitos da pessoa. Ora, nossa vida regida por leis, convenes, polticas industriais e financeiras dos Estados e das multinacionais, um sistema bancrio, seguros, enormes burocracias administrativas, hospitalares, cientficas, escolares, mecanismos de negociao entre parceiros sociais e sindicais, mquinas polticas das quais as elei':' es e as instituies so apenas a parte mais visvel. Onde se aprende a compreender esses mecanismos, ou simplesmente a descobrir sua existncia? Para que a escola tenha um papel mais relevante neS6e sentido, seria preciso transpor pelo menos dois obstculos importantes: As disciplinas dividem a grade horria como se estivessem em uma briga de faca; exceto a informtica. A economia e o direito conseguiram fazer uma tmida entrada no crculo fechado das disciplinas escolares tradicionais, sobretudo no nvel do ensino mdio geral ou profissionalizante. As cincias sociais e humanas no esto totalmente ausentes e so cada vez mais mobilizadas em histria, em geografia, em educao cvica, em filosofia e, s vezes, em literatura, mas sempre como figurantes, como esclarecimentos marginais, no como disciplinas autnomas. Supondo que o crculo fosse ampliado, haveria o risco no desprezvel de que os contedos fossem a tal ponto controlados e esterilizados, que esses ensinamentos se tornariam meras matrias de exame. Hoje, em quase todos os Estados democrticos, pode-se ensinar a teoria darwiniana da evoluo das espcies e falar do holocausto, do colonialismo ou das violaes aos direitos humanos, desde que estejam distantes no tempo... Ser que possvel conceber ensinamentos equivalentes sobre o funcionamento das sociedades contemporneas sem que as farm1ias e os grupos de presso "botem a boca no mundo" em nome da neutralidade da escola? No vou insistir mais sobre o currculo formal, a no ser para sugerir uma reverso de tendncia: a aprendizagem da cidadania passa pela adeso * N. de R.T. Exame prestado no final do ensino mdio francs,

Escola e cidadania 33 a valores e lei, pela reflexo sobre o que seria uma organizao ideal da comunidade, mas sobretudo pelo conhecimento realista dos mecanismos demogrficos, econmicos, polticos, psicossociolgicos ou jurdicos em ao, que sempre frustram nossos ideais. O trabalho sobre a complexidade e a abordagem sistmica so meios de romper as cortinas de fumaa e de no se deixar enganar por mitos. So as principais ferramentas para toda "reforma do pensamento" (Morin, 1995a e b). A prtica da democracia e da responsabilidade Os saberes no bastam, nem as belas palavras. Se a pessoa passa de 10 a 20 anos de sua vida na formao inicial e sai sem nenhuma prtica da democracia, de que vale falar em educao para a cidadania?

Os conselhos de classe, na linha de Freinet e da pedagogia institucional, ainda so prticas marginais. A participao dos alunos, mesmo os universitrios, geralmente um simulacro, uma forma de ajudar a compreender melhor as decises vindas de cima, e no de negoci-las. Pode-se dizer quase o mesmo da participao dos pais e at dos professores. A escola no uma empresa independente, que possa funcionar em auto gesto, sem prestar contas, sobrevivendo at que as leis do mercado a desautorizem. A escola no regulada por um mercado, nem controlada apenas por seus usurios, no pode mais ser comandada unicamente por seus assalariados, mas est sob a responsabilidade do Estado, como poder organizador e garantia da instruo de todos. Contudo, dentro desses limites, h brechas para avanar mais no sentido da democracia interna.

34 Philippe Perrenoud A aprendizagem da responsabilidade no exige estruturas complexas, porm passa pela confiana, pela delegao de poder, pela prtica do mandato e do contrato e por um amplo leque de oportunidades de assumir e de exercer responsabilidades, pequenas ou grandes. A educao para a escolha, o trabalho independente sob contrato, a individualizao dos percursos de formao, algumas formas de auto-avaliao, o interesse pelo projeto pessoal do aluno, a ampla oferta de opes e todas as formas de ensino mtuo e de auto-organizao estimulam a assumir responsabilidades individuais ou coletivas. Dentro da sala de aula, certas prticas, certos contratos pedaggicos, certas prticas de diferenciao pedaggica ou de gesto da classe avanam na mesma direo. Aqui tambm, seguindo a tradio da educao nova e das pedagogias ativas, cooperativas e institucionais, dispe-se de vrias ferramentas e dispositivos. Falta vontade de fazer uso deles e de transp-los, por meio de adaptaes aos nveis dos cursos, s faixas etrias e aos pblicos, sobretudo de professores, que apenas sabem quem Clestin Freinet, mas que seguramente jamais leram uma linha sobre a pedagogia institucional. Hoje essas prticas assustam menos e so mais comuns. Entretanto: elas esto longe de atingir o conjunto das salas de aula e dos estabelecimentos escolares; elas decorrem em parte de iniciativas individuais; elas no se inserem explicitamente em uma estratgia global de educao para a cidadania. preciso urgentemente buscar inspirao nas aquisies da pedagogia institucional (Oury e Vasquez, 1967, 1971; Oury e Pain, 1972; Oury e Pochet, 1979; 1mbert, 1976; Boumard, 1978). Fao referncia a esses trabalhos para desenvolver aqui um tema mais amplo, que poderia servir de fio condutor para aglutinar o conjunto de iniciativas complementares e de nveis de ao: a educao para a cidadania, assim como toda educao - diferentemente de um ensino -, passa por experincias de vida e de relao com o saber que tm efeitos formativos. Assim como a lngua, a cidadania se aprende na prtica! Se a escola favorece a aprendizagem da cidadania, a primeira cosa a fazer, portanto, tomar possvel e provavel, entre os alunos e os estudantes universitrios, o exerccio da cidadania, fundamento de uma postura tica e de competncias prticas passveis de serem transpostas ao conjunto da vida social. A aprendizagem da democracia passa pela experincia O currculo real apresenta-se como uma seqncia de experincias formadoras, fontes de aprendizagem, das quais uma parte foi ativamente

Escola e cidadania 35 provocada. Outras se fazem revelia dos professores ou, pelo menos, no intencionalmente. Nesse caso, fala-se de currculo oculto (Perrenoud, 1993b). Ningum vive durante 10 a 20 anos em uma coletividade sem aprender. um conjunto de saberes e de habilidades que permitam sobreviver, apropriar-se de um territrio, de um estatuto, de um papel e, se possvel, preservar sua autonomia e eventualmente exercer um certo poder. Em outro contexto, analisei o ofcio de aluno, tal como a escola o engendra (Perrenoud, 1994b). Esse ofcio facilita o funcionamento da sala de aula, como tambm produz fortes efeitos de socializao: ele prefigura, sob inmeros aspectos, a mistura de conformismo e de iniciativa que - em propores variveis - convm aos funcionrios de uma empresa, mas tambm aos cidados, aos membros de associaes e de organizaes diversas, aos consumidores e aos eleitores. Podemos definir uma "escola ideal", que possibilite o pleno exerccio do ofcio de aluno como prefigurao do ofcio de cidado? As escolas reservadas s elites funcionaram e ainda funcionam nesse esprito, mas elas participam da "infncia dos chefes". Certos estabelecimentos de jurisdio eclesistica ou militar dispem de recursos para formar, desde os primeiros anos de ensino ou das sries finais do ensino fundamental, "verdadeiros crentes", que talvez venham a se tornar padres ou professores, ou "verdadeiros soldados", em outras palavras, "arremedos de cidados". A prpria existncia dessas escolas mostra como seria ingnuo acreditar que todos os pais desejam para seus filhos a mesma educao para a cidadania, independentemente de sua posio social e de seu projeto. Alguns no esperam nada da escola, porque sua prpria participao na vida da comunidade marginal, e no vislumbram nenhuma melhoria para seus filhos, supondo que se coloquem tal questo. Outros, por uma razo inversa, no esperam mais da escola pblica: eles confiam na educao familiar ou delegam a tarefa a uma escola privada destinada s futuras elites, como quelas que os ingleses denominam, no sem um certo humor, de "public school". Podemos nos inspirar nessas escolas preparatrias s funes dirigentes para conceber um modelo de escola que prepare a todos para exercer suas responsabilidades na comunidade? Quanto aos valores de referncias, evidente que no. Em compensao, constata-se que, para forjar um tipo de homem ou de mulher, elas contam com recursos que no podem ser comparados com aqueles de que dispe a escola pblica, sejam meios materiais ou culturais. Essas escolas geralmente so internatos, o que lhes permite controlar todas as dimenses da vida de seus alunos. So lugares de socializao onde nada casual: usa-se uniforme ou, em todo caso, vestimentas codificadas, os emblemas e os ritos de filiao so incontveis, as refeies, os cuidados com o corpo, o sono e o lazer so enquadrados, um aparato disciplinar implacvel reconduz os recalcitrantes razo ou os exclui do estabelecimen-

36 Philippe Perrenoud to escolar. Em sntese, a escola aproxima-se de uma instituio total, no sentido de Gofman (1968), de uma instituio que se encarrega da totalidade da existncia material e moral dos indivduos que lhes so confiados. Esse retrospecto faz emrgir o paradoxo da escola pblica: Ela no poderia formar para a democracia e para o pluralismo por mtodos autoritrios e sectrios, por uma espcie de adestramento persistente, coerente, contnuo, de eficcia comprovada, mas cuja legitimidade como modelo de escola para todos pode e deve ser contestada. Ao mesmo tempo, ela no poderia ter controle sobre a aprendizagem da cidadania se esta se restringisse a alguns cursos mais ou menos convincentes sobre os direitos humanos. Como organizar uma socializao democrtica? Procurando organizar a escola como uma comunidade democrtica (Ballion, 1993, 1998). J de incio, esbarra-se em um obstculo importante: a maior parte das associaes ou instituies democrticas pede que seus novos membros tenham um mnimo de cultura prvia a respeito do direito ao voto, da liberdade de expresso, da eleio e do controle dos dirigentes, do direito de recurso, do respeito s minorias, da transparncia dos procedimentos e regras e de sua determinao, in fine, pelos prprios membros. Como implantar um funcionamento democrtico com crianas e adolescentes que no partilham essa herana mnima? Estamos diante do paradoxo reexaminado por Meirieu (1996a): como "aprender, fazendo, a fazer o que no se sabe fazer?". O que parece uma contradio lgica - como se poderia fazer o que no se sabe fazer? - encontra na realidade uma resposta pedaggica que, no entanto, requer uma gesto bastante sutil do apoio e da retirada do apoio das aprendizagens. Todo mundo sabe que se aprende a ler lendo, embora inicialmente no se saiba ler. Isso funciona porque esses "primeiros passos" - tambm se aprende a andar dessa maneira! - so acompanhados por um adulto que guia e corrige as falhas imepiatas do aprendiz, para tornar a ao possvel, e vai afastando-se medida que seu auxlio torna-se desnecessrio. A aprendizagem da democracia pelas crianas e pelos adolescentes s pode ser dessa ordem. Embora j seja possvel resolver mais ou menos o paradoxo quando ele se refere a uma didtica especfica, ainda se titubeia quando se trata de uma aprendizagem mais global. CIDADANIA E RELAO COM O SABER A democracia supe o debate e, portanto, tempo para pensar, para se expressar, para ouvir e compreender os pontos de vista contrrios e para

Escola e cidadania 37 buscar compromissos. Contudo, parece que a escola nunca tem tempo suficiente para fazer o que j tem de fazer. Muitos professores so favorveis a uma educao democrtica, mas com a condio de que ela no tire um minuto sequer de sua disciplina e no interrompa de modo algum o trabalho e o andamento do programa. Como se poderia aprender a democracia em alguns minutos por semana, enquanto o restante do tempo obedeceria a uma outra lgica? Se a escola educa para a cidadania pela prtica, essa prtica no pode ficar confinada a alguns momentos de regulao, como o caso de certas classes que "tm conselho" no fim de semana, quando todo mundo j est cansado demais para fazer algo. A democracia retarda as decises, aumenta o nmero de etapas, amplia o crculo de atores envolvidos e, por isso, torna o funcionamento menos eficaz, se que a eficcia consiste em tomar decises unilaterais rapidamente, para impor a todos e dizer aos cticos: "Eu sou o chefe, quem no est satisfeito que se retire". Nas empresas sequiosas de rendimento, o tempo de participao compete com o tempo de trabalho propriamente dito. No se pode ampliar as assemblias e o trabalho em comisso sem pr em risco a produtividade. A escola geralmente raciocina conforme o mesmo esquema: o verdadeiro trabalho o que se faz na sala de aula, e todo o tempo dedicado participao e ao exerccio da democracia parece subtrado do trabalho propriamente escolar. preciso reverter essa maneira de pensar: na escola, a participao na vida da turma ou do ensino um poder legtimo no presente e uma fonte indispensvel de aprendizagens para o futuro. Portanto, todas essas horas deveriam ser contadas como horas de trabalho no estabelecimento, na mesma condio que as horas de curso, de laboratrio, de estudos, de trabalhos prticos, de pesquisas in loco ou de trabalho no centro de documentao. Mas isso no suficiente. Como conseguir mais tempo? Transportando a aprendizagein da democracia ao campo do saber propriamente dito. Ser que isso possvel? A assimetria de papis, fundada na disparidade de saberes dominados por uns e outros, impede de considerar os membros de uma instituio escolar ou universitria como iguais, ao menos nesse aspecto. Mesmo que toda verdade cientfica seja uma construo social, difcil imaginar uma votao para decidir se o quadrado da hipotenusa igual soma dos quadrados dos lados de um tringulo retngulo ou para saber qual a data da revoluo chinesa. O problema no exclusivo da escola: em todas as organizaes, os especialistas, "os que sabem", tm muito mais peso no processo de deciso, s vezes confiscando-o abertamente, outras vezes de forma mais sutil e legtima, "dizendo o que possvel". Quando os economistas afirmam que o crescimento no pode ultrapassar 2% devido situao dos investimentos, da moeda e da balana comercial, de nada adianta "votar" por um crescimento de 6%, assim

38 Philippe Perrenoud como intil decidir que a cura da Aids ser encontrada em uma data definida. A cincia, ao enunciar as leis e as condies incontornveis da ao, tornase porta-voz da razo e do mtodo e faz calar as opinies contrrias enraizadas apenas no senso comum. Na escola, os professores so os especialistas ao mesmo tempo do saber a ser ensinado e, em princpio, dos procedimentos que se julgam adequados para uma apropriao eficaz. Nesses mbltos, eles podem provar ou demonstrar. O funcionamento democrtico no foi suspenso, mas ele atribui aos especialistas um peso tal, que os alunos podem ter a impresso de que no h mais nada a dizer. O que resta, ento, a negociar? O conjunto da organizao da vida ria sala de aula: horrios, espaos, regras e sanes, modos de cooperao e de regulao da coexistncia. Pode-se negociar tambm, ainda que isto seja ainda mais difcil, uma parte das escolhas pedaggics e didticas, assim como os modos de avaliao quando eles no so ditados por uma slida evidncia cientfica e quando a adeso ativa dos alunos to importante quanto a inteligncia do dispositivo. Os alunos so, sua maneira, "especialistas em didtica", pelo menos no que diz respeito sua prpria maneira de compreender e de aprender. No estgio atual das cincias da educao, sabe-se da diversidade de funcionamentos mentais e do absurdo que seria impor o mesmo modelo a todos, j que eles no tm o mesmo modelo cognitivo, a mesma forma de pensar os conceitos, de transitar do particular ao geral, do concreto ao abstrato, do simples ao complexo, do disciplinar ao interdisiplinar. No se justificaria; entretanto, limitar a aprendizagem da democracia ao que negocivel, objeto de um compromisso resultante de uma transao em que todos abrem mo de sua posio. O professor de fsica no pode transigir sobre a lei de Ohm, ou o professor de biologia sobre a estrutura do DNA. Mas isso no exclui o debate. Em uma sociedade que atribui um estatuto privilegiado especializao, aos saberes, ao mtodo cientfico e ao pensamento racional, o debate democrtico, quando incide sobre "a realidade da realidade" (Watzlawick, 1978, 1988), respeita os saberes dos especialistas. Isso no significa que ele no se realize, mas que todos aceitam curvar-se ao rigor dos fatos e das teorias, com uma condio: poder colocar as questes, expressar dvidas, verificar os dados e os raciocnios e ouvir vrios especialistas quando no existe consenso. Como lembra Bourdieu (1997, p.131):As reas cientficas, esses microcosmos que, sob um certo aspecto, so mundos sociais como os outros, com concentraes de poder e de capital, monoplios, relaes de fora, interesses egostas, conflitos, etc., so tambm, sob um outro aspecto, universos de exceo, um pouco miraculosos, onde a necessidade da razo instituda em graus diversos na realidade das estruturas e das disposies.

Escola e cidadania 39 o papel da escola, que constitui um mundo social como os outros, igualmente o de estabelecer dispositivos e de formar habitus favorveis ao exerccio da razo, ao desenvolvimento de uma relao racional com o saber, que exclui ao mesmo tempo o respeito incondicional e instantneo aos que sabem e a negao de uma legitimidade particular reconhecida aos que tm como ofcio produzir e/ou transmitir saberes. Sobre a questo nuclear, os riscos ecolgicos ou climticos, as doenas contagiosas, a comercializao de certos medicamentos ou, em um outro mbito, a poltica econmica ou a regulao de redes telemticas, o pblico, assim como os especialistas, tem o hbito de discutir. Como em um tribunal de jri confrontado com percias contraditrias, todos procuram ter uma opinio e debater o problema, na impossibilidade de poder remeter-se "cincia". Os saberes ensinados na escola poderiam, em parte, ser tratados desse modo. Em vez de enfatizar seu grau de certeza, seria prefervel apresentar um balano da situao e das teorias concorrentes, depois iniciar um debate, no para arbitrar as teses em questo, mas para identificar suas convergncias e divergncias. Isso pode ser feito desde o ensino mdio, mas principalmente no ensino superior. Ser que todas as oportunidades que surgem so aproveitadas? Podemos duvidar disso. O professor pode temer especialmente: desestabilizar os alunos que buscam respostas simples e verdades incontestadas; gastar muito tempo em alguns assuntos e no cumprir o programa; perder o controle do debate ou ser levado ao limite de seus prprios conhecimentos; passar uma imagem excessivamente realista das fragilidades da pesquisa. Esses diversos temores alimentam o desejo de avanar no texto do saber, sem se perder demais em debates incertos. No entanto, essas prticas tm um custo que raramente considerado: Elas reduzem as oportunidades de formao e de reflexo epistemolgicas, pois muitos alunos deixam a universidade munidos de alguns saberes com os quais tm uma relao pouco crtica ou restrita apenas metodologia de pesquisa, passando margem do debate filosfico, ideolgico ou propriamente epistemolgico. Elas privam da oportunidade de aprender a debater questes difceis de forma argumentada e concisa.

40 Philippe Perrenoud No ensino fundamental, os professores sentem-se ainda mais inclinados a pensar que os alunos "no so capazes" de ter distanciamento, que "muito cedo". Isso duvidoso, tanto do ponto de vista psicogentico quanto do didtico. O que paralisa alguns alunos justamente o sentimento - que a escola favorece ou pelo menos no desmente - de que o conhecimento flui naturalmente, evidente, incontestvel. Seria um alvio se, quando no se compreende ou no se aceita um saber, dissssemos que foram necessrias dcadas, ou mesmo sculos, para perceber e depois verificar aquilo que o professor expe agora como verdade. normal pensar que o Sol gira em torno da Terra e fundamental compreender que a astronomia foi construda contra o senso comum e no confronto de teses, com questes teolgicas e filosficas de fundo. O que parece evidente para Galileu vale para todos os campos do saber. O debate no a controvrsia pela controvrsia, um espao em que cada um pode dizer livremente que no est convencido, que tem dvidas, que no compreende os argumentos em favor de uma tese ou que no consegue compreender sua coerncia. No mtodo cientfico bem compreendido, o dilogo interior e o debate entre pesquisadores so motores essenciais do desenvolvimento dos saberes. A controvrsia indispensvel. O leitor ideal de um artigo adota a postura do amigo crtico, sem complacncia, que no procura depreciar, mas que so fecha os olhos a nenhuma falha de raciocnio, a nenhuma debilidade das observaes. Sem dvida, as pessoas so ambivalentes e, conforme o momento, almejam leitores severos ou leitores indulgentes, divididas entre o desejo de ver seu trabalho seriamente discutido - e, portanto, validado - e a expectativa igualmente intensa de no ter de refazer todo o trabalho. O que resta da postura crtica no ensino? Evidentemente, ela varia segundo as disciplinas, a idade dos alunos e a prpria relao do professor com o saber. Apesar dessas variaes, h uma evidncia: os programas no so feitos para favorecer o debate, apesar das magnficas declaraes de intenes, simplesmente porque so sobrecarregados demais e induzem os professores a privilegiar a transmisso eficaz de um grande nmero de conhecimentos em detrimento de uma construo comum em um procedimento de projeto e de debate. A avaliao caminha a par e testa a extenso dos saberes assimilados, em vez da capacidade de problematizar e de tomar distncia. As pedagogias que invocam o "conflito socio-cognitivo" defendem o debate de um ponto de vista didtico (CRESAS, 1987, 1991). De fato, de uma perspectiva construtivista, o desacordo e sua reduo progressiva em um quadro de cooperao que levam as pessoas a reestruturar seus conceitos e suas representaes (GFEN, 1996; Tozzi, 1997). Reunimos tambm as obras sobre o sentido dos saberes e do trabalho escolar (Develay, 1996; Bautier e

Escola e cidadania 41 Rochex, 1996; Charlot, Bautier e Rochex,1992; De Vecchi e Carmona-Magnaldi, 1996; Perrenoud, 1994b; Rochex, 1995; Vellas, 1996). Independentemente de suas virtudes didticas no mbito de cada disciplina, a experincia do debate de idias est na base de uma relao crtica com O pensamento - o seu e o do outro - e de uma cultura democrtica, ou seja, da cidadania. Mas ento... que peso tem uma argumentao a mais para as cabeas bem-feitas, em vez de bem cheias? irrelevante comparado ao horror do vazio que habita os autores de programas e os professores e louvvel preocupao que impele a todos a fazer demais para. estar seguros de estar fazendo o suficiente... Porm, mais cedo ou mais tarde, ser preciso compreender isto: "A formao do cidado na escola oculta-se no cerne da construo dos saberes" (Vellas,1993). O QUE ISSO EXIGIRIA DOS PROFESSORES? Todas as anlises e teses que apresentamos so altamente discutveis, e seria oportuno discutilas para chegar a um consenso provisrio antes de se questionar sobre as competncias e a formao dos professores. Contudo, como se trata da questo de que parti, vou prosseguir o raciocnio, embora esteja certo de que o leitor que no aderir s premissas no tem nenhuma razo para concordar com as concluses. De fato, a abordagem a partir do currculo real e da experincia de vida tem conseqncias enormes quanto ao papel do professor: 1. Isso diz respeito a todos. No h como delegar a aprendizagem da cidadania a alguns especialistas em cincias sociais ou em educao cvica. 2. Instaurar a democracia na sala de aula transforma profundamente a relao pedaggica e a gesto da classe. 3. A educao cidad opera-se no debate que fundamental instaurar na sala de aula a propsito dos saberes, ou seja, no campo da didtica das disciplinas. 4. Se o estabelecimento escolar torna-se uma comunidade democrtica, isso exige de todos os atores uma presena e uma participao mais sustentada. No mais possvel para um professor chegar, "dar suas aulas", ignorando o restante da vida escolar. 5. A gesto do estabelecimento escolar tambm se transforma, e todas e todos so chamados a assumir novas responsabilidades.

42 Philippe Perrenoud Uma evoluo nesse sentido exigiria dos professores novas competncias, mas, acima de tudo, uma nova identidade profissional, um engajamento diferente em seu ofcio e em seu estabelecimento de ensino, uma outra relao com o saber e com os alunos.

Est claro que acrescentar aos planos de formao algumas unidades de valor sobre a aprendizagem da cidadania no resolveria o problema. Para se tornar uma verdadeira formadora da democracia, a escola e os professores devem adquirir competncias e conhecimentos novos: Organizar uma escola como uma comunidade democrtica no um ato mgico; isso exige imaginao sociolgica e engenharia social, pedaggica e didtica para que a vida seja vivel, para que a experincia cotidiana seja, ao mesmo tempo, favorvel aprendizagem da cidadania pela prtica e compatvel com as outras tarefas da escola. Uma comunidade no um imprio, e sim parte de um conjunto; ela obedece a leis comuns e negocia sua autonomia. A aprendizagem da cidadania diz respeito tanto s instituies internas edificadas na esfera de autonomia quanto participao no sistema mais amplo do qual o estabelecimento de ensino faz parte.

Escola e cidadania 43 Instaurar o debate em torno do saber em construo uma competncia que est situada na encruzilhada da didtica e da gesto de classe e que tem como base, de um lado, uma cultura cientfica e epistemolgica e, de outro, uma familiaridade com as aquisies das pedagogias cooperativas e institucionais. Como se v, a formao de professores s pode enraizar-se em uma re-:flexo coletiva e em um debate exaustivo sobre a cidadania, associados a uma anlise regular das situaes educacionais, das prticas e dos ofcios em jogo, das culturas e dos funcionamentos institucionais, do peso das expectativas, dos valores e das estratgias das famlias. Se houver uma verdadeira evoluo, ela passar por uma tomada de conscincia por parte dos professores de sua parcela de responsabilidade e por uma tomada de poder na instituio, que teria como projeto a aprendizagem da cidadania pela cidadania escolar. A formao inicial pode sensibilizar para esses temas, preparar para esse debate, proporcionar ferramentas, mas as verdadeiras transformaes s podem vir de uma autotransformao, no mbito de uma dinmica e de um projeto de estabelecimento escolar. As estruturas de formao continuada podem, sem dvida, sustentar esse trabalho. Oferecer estgios sobre a cidadania no seria suficiente. Isso no significa que as aes devam permanecer meramente locais. O sistema tem a responsabilidade de favorec-las, de torn-las mais provveis, sem imp-las. No seria mau que ele difundisse modelos e relatos de prticas, que organizasse encontros, que desenvolvesse e difundisse ferramentas, que oferecesse acompanhamentos! TEMOS ESCOLHA? Podemos perguntar o que impulsionaria o sistema educacional a evoluir nesse sentido, tantos so os obstculos externos e as resistncias internas. A virtude? pouco provvel. Talvez a necessidade. O tema da Lei est na moda. Fico sempre um pouco desconfiado e crtico diante dessas palavras que parecem tornar simples e inteligveis fenmenos complexos, diversificados e parcialmente opacos. Vivemos em uma sociedade em que a Lei evoca ao mesmo tempo as "Tbuas da Lei" e o contrato social que est na base de uma Constituio republicana. Lei divina, lei humana, todos os nossos mitos criadores so evocados. Para o socilogo, a Lei (no singular) uma metfora forte - porque est ancorada em nossos mitos judaico-cristos e em nossa concepo do Estado de direito -, mas um pouco enganosa. A ordem social um arranjo negociado, sustentado por alguns

44 Philippe Perrenoud princpios de eqidade e de reciprocidade, porm construdo em grande medida por atores em busca de seu prprio interesse. A cidadania, em ltima instncia, depende menos da adeso a grandes princpios do que de uma razo prtica, de percepo do social como equilbrio instvel que deve ser permanentemente reconstrudo para que a vida seja vivel. Concordo com Develay (1996) ou Meirieu (1995a, 1996a) que a relao com o Saber e a relao com a Lei esto fortemente imbricadas, no apenas do ponto de vista filosfico, mas tambm do funcionamen