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ESCOLA DA MAGISTRATURA DO ESTADO DE RONDÔNIA EMERON REVISTA DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO ESTADO DE RONDÔNIA Edição comemorativa do decenário da sua instalação Ano 1996 - N° 01 Porto Velho - Rondônia

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  • ESCOLA DA MAGISTRATURADO ESTADO DE RONDÔNIA

    EMERON

    REVISTA DA ESCOLA DA MAGISTRATURADO ESTADO DE RONDÔNIA

    Edição comemorativa do decenário da sua instalação

    Ano 1996 - N° 01Porto Velho - Rondônia

  • REVISTA DA ESCOLA DA MAGISTRATURADO ESTADO DE RONDÔNIA

    Conselho EditorialDes. Dimas Ribeiro da Fonseca

    Juiz Alexandre MiguelJuiz Federal José Carlos do Vale Madeira

    DivulgaçãoCoordenadoria de Comunicação Social

    do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia

    Diagramação, Composição e CapaJosé Miguel de Lima

    Fotolito, Impressão e AcabamentoSetor Gráfico do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia

    RevisãoProfessor Mauro Carneiro de Freita~

    Doracy Leite Tavares

    EMERONEscola da Magistratura do Estado de RondôniaAv. Rogério Weber, 1872 - Fone (069) 224-3940

    CEP 78916-050 - Porto Velho - Rondônia

  • ADMINISTRAÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇADO ESTADO DE RONDÔNIA - BIÊNIO (1996-1998)

    PresidenteDes. ANTÔNIO CÂNDIDO DE OLNEIRA

    Vice-PresidenteDes. VALTER DE OLNEIRA

    Corregedor-Geral da JustiçaDes. EURICO MONTENEGRO JúNIOR

    COMPOSiÇÃO DO PLENO DO TRIBUNALDes. ANTÔNJO CÂNDIDO DE OLNEIRA

    Des. VAL TER DE OLNEIRADes. EURICO MONTENEGRO JÚNIOR

    Decano: Des. DIMAS RIBEIRO DA FONSECADes. ADILSON FLORÊNCIO DE ALENCARDes. ELISEU FERNANDES DE SOUZADes. RENATO MARTINS MIMES SI

    Des. GABRIEL MARQUES DE CARVALHODes. SEBASTIÃO TEIXEIRA CHAVES

    ESCOLADA MAGISTRATURA DO ESTADO DE RONOONIA .Diretor

    Des. DIMAS RIBEIRO DA FONSECA

    Vice-DiretorJuiz MARCOSALAORDINIZGRANGEIA

  • APRESENTAÇÃO

    Esta revista vem a lume, em seu primeiro número, como partedos festejos que marcam o decenário da Escola da Magistratura doEstado de Rondônia.

    Com ela se realiza uma aspiração dos alunos, professores edirigentes da EMERON. O seu espaço será destinado a trabalhosdoutrinários e de pesquisa no campo do Direito que visem a atualizaçãocultural daMagistratura.

    Esperamos que as divulgações subseqüentes se aprimorem emereçam o acolhimento de seus destinatários.

    Esses os nossos augúrios sinceros.

    Porto Velho, agosto de 1996.

    Des. Dimas Ribeiro da FonsecaDiretor da Escola da Magistratura de Rondônia

    EMERON

  • sUMÁRIo

    _ UM BREVE mSTÓRICO SOBRE A ESCOLADA MAGISTRATURA DO ESTADO DE RONDÔNIA

    Dimas Ribeiro da Fonseca 09

    - EMERON E JUSTIÇAEduardo Mayr 15

    - O JUIZ E O SERVIÇO JUDICIÁRIOSidnei Agostinho Beneti 2 5

    _ COISA JULGADA E INTERVENÇÃO DE TERCEIROSCândido Rangel Dinamarco 65

    _ CONTROLE DE CONSTITUICIONALIDADE NO BRASILSydney Sanches 95

    _ O INSTITUTO DA CONCILIAÇÃO E A REFORMAPROCESSUAL

    Fátima Nancy Andrighi 111

    - DANOS MORAISRenato Martins Mimessi 117

    _ DISCRICIONARIEDADE E CONCEITOSINDETERMINADOS NA CONSTITUIÇÃO .

    Nagib Slaibi Filho 127

    - RIGORISMO INÚTILDyrceu Aguiar Dias Cintra Júnior 141

    - AÇÃO MONITÓRIASulaiman Miguel Neto 153

    _ RECURSO ESPECIAL: PRESSUPOSTOS ECASOS DE CABIMENTO

    Cesar Rubens de Sousa Lima 161

    _ ÂMBITO DE INCIDÊNCIA DOS ASPECTOS PENAISDA LEI 9.099/95

    Sandra Aparecida Silvestre 175

  • UM BREVE mSTÓRICO SOBRE A ESCOLA DAMAGISTRATURA DO ESTADO DE RONDÔNIA

    Antes da promulgação da vigente Lei Fundamental, de 5 deoutubro de 1988, a novel Justiça do Estado criou e implantou a sua Escolada Magistratura.

    Participaram do projeto inicial os Desembargadores Clemen-ceau Maia, Cesar Montenegro, Aldo Castanheira, Dimas Fonseca e Euri-co Montenegro.

    A concretização do projeto adveio do trabalho desenvolvido peloDesembargador Eurico Montenegro, acolitado pelo eminente Desembar-gador Cristovão Daiello Moreira, do Tribunal de Justiça do Rio Grande doSul, entusiasta desse trabalho pioneiro.

    O então Presidente do Tribunal de Justiça de Rondônia, De-sembargador Clemenceau Pedrosa Maia, através da Resolução nO11, de20 de agosto de 1986, com aprovação unânime da Corte, publicou o atoadministrativo respectivo.

    De 1986 até o corrente ano, a Escola foi dirigida pelos Desem-bargadores Eurico Montenegro Júnior(198611991), Eliseu Fernandes deSouza (1992/1994) e Dimas Ribeiro da Fonseca (1994/1996), reeleito parao próximo biênio, tendo como Vice-Diretor o eminente Juiz de Direito"Dr.Marcos Alaor Diniz Grangeia.

    Desde a sua criação até os dias atuais, a Escola vem cumprindosua missão de difundir a cultura jurídica e aprimorar os Magistrados ron-donienses.

    O curso de preparação à judicatura realiza-se, anualmente,com regularidade, abrangendo o período letivo de março a dezembro decada ano.

    Nos vários encontros de estudos aqui realizados, a EMERONtrouxe ao Estado notáveis juristas e magistrados, tais como: Os MinistrosSydney Sanches, Sálvio de Figueiredo, Costa Leite, limar Galvão, PáduaRibeiro, Bueno de Souza, Vicente Cernichiaro, Gomes de Barros e Eduardo. Ribeiro; Os Desembargadores Cândido Dinamarco, Fátima Nancy, Mon-teiro de Barros, Rêmulo Leteriello e os eminentes juristas Galeno Lacer-da, Sérgio Ciscow, Emane Fidelis e Técio Lins e Silva.

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  • o corpo docente da Escola alterou-se no correr dos anos, massempre prevaleceu, na sua escolha, a especialização na disciplina leciona-da e a capacidade didática para ministrá-la.

    A seleção recai, de um modo geral, entre os magistrados daCapital, advogados militantes e Juizes Federais.

    O primeiro corpo docente foi constituído dos seguintes Magis-trados:

    Desembargadores: Antônio Cândido de Oliveira - João BatistaVendraminiFleury.

    Juízes: Roosevelt Queiroz Costa - Jamil Lourenço - Antônio IvanAthiê (Juiz Federal).

    Atualmente lecionam os seguintes professores:Desembargador - Gabriel Marques de CarvalhoJuízes de Direito: Roosevelt Queiroz Costa - Sansão Batis-

    ta Saldanha - Alexandre Miguel- José Carlos do Vale Madeira (JuizFederal) - Osny Claro de Oliveira Júnior - Marcos Alaor Diniz Gran-geia - José Jorge Ribeiro da Luz - Edson Jorge Badra (Procuradorde Justiça).

    O Curso de Preparação ao Ingresso na Magistratura diplomou128 (cento e vinte e oito) bacharéis, desde a instalação.

    A sua eficiência comprova-se pelo êxito de seus alunos nos con-cursos a que se submetem para a Magistratura, Ministério Público e De-fensoria Pública.

    Além do curso regular de preparação, outros foram ministradospara juízes recém-empossados, dando-se especial ênfase na elaboraçãotécnica de sentenças cíveis e criminais.

    De igual modo, a Escola, com o apoio da Presidência do Tribu-nal, promove sucessivos encontros regionais nas comarcas de maior ativi-dade forense.

    Nesses encontros de reconhecido proveito, os palestrantes sãoescolhidos entre os magistrados da região onde ocorre o evento.

    Os temas expostos e debatidos versam, quase sempre, sobreassunto de repercussão prática na vida judicante. As discussões são in-formais, em ambiente de ampla cordialidade, cujo êxito tem merecido oaplauso de todos.

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  • Atualmente vários juízes promoveram, com o apoio da Esco-la, cursos de aperfeiçoamento de serventuários, servindo como exem-plo.os realizados nas Comarcas de Pimenta Bueno, Rolim de Moura eJi-Paraná.

    Cumpre assinalar que, no decorrer dos dez anos de existênciada EMERON, em nenhum momento suas atividades se interromperam.

    Vê-se, a cada ano letivo, maior demanda dos cursos oferecidos,mercê da capacidade dos professores e diversificação do conteúdo pro-gramático.

    Todos os lidadores do Direito sabem que a Justiça brasileira, nosúltimos tempos, vem alcançando, na seleção de seus juízes, os mesmosobjetivos perseguidos pelas nações mais adiantadas, graças à inovaçãoConstitucional do art. 93, ~ 11,letra "c" do Código Maior.

    Nos festejos do decenário da Escola da Magistratura de Rondô-nia, todos reconhecem o quanto ela tem contribuído para a eficácia daprestação jurisdicional em nosso Estado.

    Desembargador Dimas Ribeiro da FonsecaDiretor da Escola da Magístratura de Rondônía

    EMERON

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  • EMERON E JUSTIÇA

    Eduardo MayrJuiz do Tribunal de Alçada Criminal do Rio de Janeiro

  • EMERON E JUSTIÇA

    Eduardo Mayr

    É uma grande honra poder participar deste evento tão significa-tivo que é o décimo aniversário da Escola da Magistratura de Rondônia,este cenáculo que reúne o Sonho com o Ideal, hoje sob a direção destapessoa inexcedível que é oDes. Dimas Ribeiro da Fonseca.

    A "nossa" EMERON - e o emprego do nós identifica-me comoum de seus ardorosos admiradores - nasceu sob o signo desta simbioseideal x realidade, e algumas reflexões se fazem necessárias sobre o signi-ficado destes dez anos de existência e dinamismo.

    Cogitou-se, pela primeira vez, no art. 144, I da Constituição daRepública Federativa do Brasil de 24 de janeiro de 1967, com as emendasnOsI, de 17 de outubro de 1969, e 7, de 13 de abril de 1977, da possibilida-de de se exigir, por lei, dos candidatos á magistratura, prova de habilitaçãoem curso de preparação específico. Seu artigo 144, VI previa que "a leipoderá estabelecer, como condição à promoção por merecimento, a partirde determinada entrância, ou de acesso aos Tribunais de Segunda Instân-cia, pelo mesmo critério, freqüência e aprovação em curso ministrado porescola de aperfeiçoamento de magistrados", redação da emenda nO1/69.

    Rondônia, pioneira em tantos empreendimentos, cuidou do esta-belecimento.da sua Escola antes mesmo que a Constituição atual, a Cons-tituição-Cidadã, prelecionasse em seu art. 93,11, "c", que a aferição domerecimento, nas promoções de magistrados, ocorreria "pelos critériosda presteza e segurança no exercício da jurisdição e pela freqüência eaproveitamento em cursos reconhecidos de aperfeiçoamento". No mes-mo art. 93, IV, insiste na "previsão de cursos oficiais de preparação eaperfeiçoamento de magistrados como requisitos para ingresso e promo-ção na carreira".

    Assim, é certo que Rondônia foi um dos Estados pioneiros queprocuraram, como exemplo admirável, efetivar os ideais da Carta Maiorantecedente, de 1967, para encontrar-se, quando do advento da de 1988,na situação ímpar de dispor de uma das mais antigas Escolas da nossa

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  • pátria, inclusive trazendo juristas de outros Estados para compartilhar comos magistrados rondonienses suas experiências e conhecimentos.

    Em excelente estudo sobre "O juiz como Agente de Realizaçãoda Justiça", o Desembargador Eliseu Fernandes de Souza, quando do 10Encontro de Magistrados dos Estados do Acre e Rondônia, há algunsanos, lembrava a conhecida afirmação - "quem só o Direito estuda, nãosabe Direito"- para destacar a universalidade dos conhecimentos que ha-verão que ser oferecidos ao novel Julgador, a fim de bem desempenhar asua missão de julgar, reconhecidamente árdua, tendo em vista que o "ma-gistrado precisa postar-se em plena integração com o fenômeno social,investindo-se da prerrogativa funcional de realização da justiça e melhoriada lei, suprindo-lhe as lacunas ou deficiências, a fim de que seja dada aresposta que o jurisdicionado ou a sociedade aguarda, de forma oportunae eficaz." Nada mais verdadeiro. Já nos idos de 1955, quando de sua aulainaugural dos cursos da Faculdade Nacional de Direito no Rio de Janeiro,o sempre lembrado San Tiago Dantas prelecionava que de nada adiantavao conhecimento dos institutos, havendo que se pensar na reorientação doensino - o que vale para a "nossa" Escola, eis que, antiteticamente, poder-se-ia também afirmar que "quem só sabe Direito, nem o Direito sabe" -"no sentido da formação do próprio raciocínio jurídico, em lugar do sim-ples conhecimento sistemático das instituições, correspondente à necessi-dade de pragmatizarmos, nos dias de hoje, a educação jurídica, despindo-a de seu caráter ornamental e descritivo."

    Deve-se reconhecer o Magistrado como um ser em permanen-te evolução, e a "sua" Escola haverá que ser um desaguadouro de suasdúvidas e perplexidades, para sua constante atualização e crescimentointelectual. A resistência às leis injustas começa nos juízes, e é induvidosoque o direito se abebera sobretudo na criação judicial. No campo dasidéias, é preciso questionar sempre, procurar pensar de uma maneira dife-rente daquela a que estamos habituados, substituindo nossos conceitos epreceitos (preconceitos?) por outros, caminhando, caminhando sempre.Em "A História de Fernão Capelo Gaivota", Richard Bach lembrava: "vêmais longe a gaivota que voa mais alto", e utilizando alguns tópicos, poder-se-ia dizer que a lei é uma criatura livre do seu criador, e está mais àmercê dos intérpretes, do que dos autores. O que a Escola da Magistratu-

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  • ra haverá que transmitir é sobretudo a certeza de que o Juiz não deve seruma figura estática, olímpica e altaneira, alheia ao mundo dos simplesmortais e infensa às idéias que possam, ainda que remotamente, provocarqualquer sacudidela indesejável no seu indefectível e fleumático "aplomb"-ao ponto de Carnelutti haver proclamado, certa vez, que os juízes, de tãoperfeitos que precisavam mostrar-se, haveriam que ser super-homens.Aliás, esta afirmação de Carnelutti tem o mérito de ressaltar que a funçãojudicial devería ser exercida não só por "super-homens", a fim de se evi-tar decisões injustas ou ambiguas, mas precisa também, e concretamente,ser exercida por homens de carne e osso - e sobretudo mente e espirito -porque só eles têm a indispensável interrelação com a tessitura do socialque os habilita a fazer justiça.

    Afigura-se evidente que não cabe ao Magistrado lançar-se comum programa legislativo próprio. Isto compete aos legisladores, integran-tes do Poder Legislativo, embora hodíernamente o Poder Executivo tam-bém tenha um papel relevante, competindo-lhe em muitos casos a iniciati-va do processo legislativo. Aos Magistrados, contudo, não competiria tão-simplesmente aplicar a lei que foi elaborada pelos outros poderes, de for-ma automática e fria e vinculados às vicissitudes da lei posta pelos demaispoderes. Se a lei não é boa, contém imprecisões, defeitos, obscuridades,se conflita com princípios que lhe são superiores, ou se é inconstitucional,não poderá atingir os objetivos alcançados pelo seu elaborador, por melho-res que tenham sido suas intenções. Não compete ao Magistrado corrigiros defeitos que comprometam sua eficácia legal, e, ao contrário, comoguardião do primado da lei, fonte da segurança de todas as liberdades egarantias individuais conquistadas ao longo de muitos anos de lutas dospovos, é ele obrigado a rejeitar e negar aplicação àquela que viole o orde-namento juridico nacional, preservando assim o Estado de Direito. Tam-bém, compete-lhe a busca da Justiça, que haverá que estar insita em todae qualquer decisão que venha a proferir, e é exatamente por isto que sefaz presente a balança na figura de Têmis. Não sem razão M. OswaldBaudot, na solenidade de investidura dos novos Magistrados franceses,afirmava,já na conclusão de seu discurso - publicado pelo então Ministroda Justiça francesa Peyrefitte, em seu livro "Por uma Justiça Moderna"que " ...para manter a balança entre o forte e o fraco, o rico e o pobre, que

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  • não têm o mesmo peso, é preciso que calqueis um pouco a mão do ladomais fraco da balança. Esta é a tradição capetiana. Examinai sempreonde estão o forte e o fraco, que não se confundem necessariamentecomo o delinqüente e sua vítima. Tende um preconceito favorável pelamulher contra o marido, pelo filho contra o pai, pelo devedor contra ocredor, pelo operário contra o patrão, pelo vitimado contra a companhia deseguros, pelo enfermo contra a previdência social, pelo ladrão contra apolícia, pelo pleiteante contra ajustiça".

    Há mitos que hão que ser desmitificados, e isto poderá vir a serfeito pela Escola da Magistratura, na medida em que ela interpenetraráneste campo multifacetado da vivência e do conhecimento dos Magistra-dos, levando-o progressivamente a uma como que "desradicalização" con-ceptual. Para melhor compreensão do que estou tentando transmitir, ater-me-e i a alguns dos princípios que nos são trazidos pelos bancos das Facul-dades de Direito, numa compilação que certamente não será completa,pelo que se roga desde já a compreensão e a "absolvição" do pacienteleitor.

    Inicio com os principios da unidade do ordenamento jurídico, daanterioridade do Estado, e o da validade e legitimidade do direito estatal.Afirma-se que o direito é substancialmente uno, a existência do Estado épressuposto para a existência das normas, e que o direito válido e legítimoé apenas o direito criado pelo Estado - o que não corresponde à realidade.Com o tempo, o Magistrado começa a compreender que existe uma pro-dução normativa paralela à do Estado, da qual ele participa ativamente, eque se revela em exteriorização de grupos sociais ou pessoas, ou mino-rias, que têm normas próprias de convivência. Estas normas são substan-cialmente idênticas às regras oficiais, mas por elas não são reconhecidas.Por exemplo, as normas vigentes na massa carcerária são diversas da-quelas dos encarceradores. Crime hediondo não será a extorsão medianteseqüestro, mas a delação de um companheiro. Outrossim, se o Estado éuma abstração, tendo surgido historicamente após o direito, só se o admiteanteposto a ele exatamente para dar legitimidade a suas próprias normas.É curial que o Estado é uma criação histórica dos que detêm a hegemoniana sociedade, e é por estes colocado a serviço de seus interesses. Naverdade, a legitimidade das normas sociais não se radica na estatalidade,

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  • mas no consenso dos membros das comunidades, que criam suas própriasregras de convivência.. Prossigo com o princípio do primado da lei. A principal fonte do

    direito seria a lei, ou seja, o conjunto de normas escritas que prevaleceriasobre as demais fontes, a doutrina, a jurisprudência e o costume, fontesestas só admitidas na medida em que a lei as aceitar. O costume e ajurisprudência seriam válidos apenas secundum legem e praeter legem,jamais contra legem. Aos poucos começa o Magistrado a perceber que,na realidade fática de seu quotidiano, todas as fontes do direito são váli-das, algumas até mesmo contra a lei, porque lhe temperam sua inclemên-cia - summum ius, summa iniuria. Os percalços em que se vê um Magís-trado consciente na aplicação da "legislação penal do terror", trazidospelas leis penais autoritárias -leis 8.072/90, 9.034/95 e outras - são conhe-cidos por todos.

    No que diz respeito aos princípios da racionalização do direito,da sistematização do ordenamento jurídico, e da sua plenitude, mistifica-se-os com esclarecimento de que a ordem jurídica estatal é racional, e, emsendo racional, a ordem jurídica forma um sistema que se autocompleta,que é pleno - isto é, a lei pode ter "lacunas", mas o direito, não. O magis-trado começa a compreender que a realidade não é bem assim. Emboratenha uma boa dose de racionalidade, a aplicabilidade do direito é sobretu-do emocional, intuitiva e prática. Nem o direito é racional, nem as deci-sões judiciais são racionais, plenamente, pois o direito não forma um siste-ma fechado ç coerente, mas é fragmentário, cheio de normas contraditó-rias, algumas nitidamente ilegais ou inconstitucionais, mas eficazes, por-que impostas pela autoridade. A ordem jurídica contém lacunas, certa-mente, algumas inclusive intencionais (que o digam os criminosos de cola-rinho branco ...)

    Quanto aos princípios da autonomia sígnificativa da lei, e da suaunivocidade significativa, há de se os igualmente desmitificar. O significa-do da lei nunca é autônomo, ele vem de fora e lhe é atribuído pelo intérpre-te, conforme seus interesses (lembrando uma conhecida passagem envol-vendo um "Justice" da Suprema Corte norte-americana, ao lhe ser ponde-rado que a lei dispunha diferentem,ente: "~The law ... well, the law! Thelaw is what we say the law is!" ("A lei ... ora a lei! A lei é o que nós

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  • dizemos que a lei seja!". O significado da lei é.heterônimo, evidentemen-te. Não pode ser unívoco, mas multívoco e plurívoco, comportando váriossignificados, todos eles verdadeiros, ainda que contraditórios. A verdadeda lei depende sobretudo de sua eficácia, isto é, dos efeitos que produz nomeio social.

    Poder-se-ia prosseguir ad libitum, destacando os princípiosda função explicitadora do jurista, e do referencial semântico da lei, emque se aprende e apreende que a função do intérprete seria a de "des-cobrir" o significado autônomo - e unívoco - da norma, devendo estesignificado corresponder a um fato, ou seja, ter um referencial semânti-co que se situe no mundo dos fatos, mas afigura-se evidente que a fun-ção do intérprete não é descobrir um significado, ou "o" significado, mascríar o sentido mais conveniente aos seus interesses. Isto é, á funçãodescobridora, sobrepõe-se a função criadora. Não há referencial se-mântico, na verdade. A lei não tem vontade própria, nem o legíslador atem, nem o próprio Estado. O referencial da lei é pragmático, dependen-te dos efeitos que causa no meio social, e da aceitação desses efeitos nomundo jurídico.

    Existe na verdade uma ideologia do direito (uso ideologia, nosentido de filosofia de conteúdo social), que o Magistrado pouco a poucoconscientiza e utiliza no plano de sua práxis. O próprio Magistrado é for-çado a impor-se opções - opções preferenciais pelos pobres e oprimidos,etc ... - procurando uma pacificação que não vai encontrar entre os inte-resses em litígio, nos feitos que lhe são trazidos para decidir. De um lado oMagistrado lê na Constituição Federal que "a ordem econômica, fundadana valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim asse-gurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, ob-servados os seguintes princípios: soberania nacional; propriedade privada;função social da propriedade; livre concorrência; defesa do consumidor;defesa do meio ambiente; redução das desigualdades regionais e sociais;busca do pleno emprego; tratamento favorecido para as empresas brasi-leiras de capital nacional de pequeno porte." Do outro, por exemplo, emcontraposição á função social da propriedade, a situação dos sem-terraque procuram um lugar para exercerem o mais rudimentar direito de so-brevivência - o de viver - sendo indigitados como quadrilheiros ou bando-

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  • leiras, processadas e presas e pressianadas para cantinuarem quais nô-mades vagando. à procura da "terra prametida".

    A Escala da Magistratura, a nassa avisa, não.pade ser um trans-missar "neutra" de canhecimentas, quando. a vida é plena de "desequilí-brias", a necessitar campensaçãa das distarções e das desigualdades sa-ciais. Os Juizes são.cama que campelidas a se pasicianarem idealagica-mente, e assim, assumirem seu papel histórico de verdadeiras "engenhei-ros saciais" (expressão. de Rascal Paund) de uma saciedade justa, não."caisificanda"a hamem pela usa sistemática e não. integrada de catega-rias "neutras", acríticas au redutaras. O Juiz que pretender ser anti-idea-lógica au a-idealógica na verdade será um aderente - um aderente à ide-alagia da pader representada pela "status quo", preacupanda-se apenascam a !!2!!1!!2..e a!B.. o.lvidando. o.dikaion e o. jus.

    A Escala da Magistratura é um cenáculo. para mo.strar que o.juiz não.é um mero "aprendiz de feiticeiro" do.Po.der. Transmitir a infar-mação. de que não.se trata de aprendizes, nem muita menas de feiticeiros,já é um segunda passa, um passa a mais na caminhada da Magistrada nasua realização plena de vida, padenda ao.final alhar para trás, para suassentenças, reconhecendo, como o poeta - "confesso que vivi". Uma vidade rupturas hermenêuticas, da pracura da justa e da equânime, na realiza-ção. plena da Justiça.

    Gostaria de destacar, ao.final, algumas reflexões sobre a sentidaética que entenda deva ser transmitido pela Escala da Magistratura. Inici-almente, a canscientizaçãa de que a verdadeiro Magistrada não.deve sim-plesmente vencer. Mas, sobretudo., deve canvencer. É par isto. que todadecisão. deve ser fundamentada com cuidada, com generosidade e camcarreçãa. A técnica, esta é adquirida pela exercício. canstante da judicatu-ra. Mas isto.de nada vale se não. estiver impregnada de ética, cama exte-riorização. de um caraçãa bem formado. O Magistrado haverá sobretudoque ser fiel à sua cansciência, primardialmente, e à lei. A seqüência cor-reta para que a seu trabalho seja desempenhada a pleno cantenta passaum pouco pela experiência "zen" da identificação. O Magistrado. é a "sua"magistratura, a sua sentença é ele próprio.. Co.mpreender, co.nhecer, amar,esta a ardem co.erente das tópicas, pois quem co.mpreender, passa a co-nhecer; e quem conhece, passa a amar, o que vale também para a própria

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  • Justiça, esta eterna incompreendida e desconhecida para o grande públi-co. O trabalho do Magistrado haverá que ser feito com entusiasmo. E istoé curial, pois entusiasmo vem de "en" mais "theos", ou seja: "estar emDeus". Por isto haverá a Escola de inspirar os Magistrados a trabalharsempre com entusiasmo. E, a derradeiro, incentivar o Magistrado de quepor vezes não basta apenas que seja feita justiça. É preciso também evitarque através da decisão judicial se cometam injustiças, pois a injustiça sobo manto da lei. e pela pena de um juiz - chega a ser abominável.

    Creio firmemente ser esta a missão e grandeza da EMERON.

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  • o JUIZ E O SERVIÇO JUDicIÁRIO

    Sidnei Agostinho BenetiDesembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

  • o JUIZ E O SERVIÇO JUDICIÁRIO*

    Sidnei Agostinho Beneti

    sUMÁRIO: 1. O juiz e o andamento dos processos: 1. O juiz e o pro-cesso; 2. Magistratura de massa e magistratura artesanal;3. O juiz gerente de produção; 4. Decisão e execução xornamentos e erudição; 5. Instrumentos à disposição do juiz;6. Instrumentos processuais; 7. Autos conclusos; 8. Falarpor último; 9. Expor no momento adequado; lO. Atenção àestratégia do caso; 11. Encadeamento tônico dos atos pro-cessuais; 12. Iniciativa pessoal do juiz; 13. Aprofundamentoda prova; 14. Dilema do "ir em cima" ou "dar tempo aotempo"; 15. Liminar x não liminar; 16.Aplicação não literalda norma processual; 17. A força da própria decisão; 18.Atribuição de ônus da prova; 19. Julgamento antecipado dalide; 20. Sentenças liquidas; 21. Exame de petições iniciais;22. Saneador e preliminares - lI. Instrumentos não pro-cessuais - Considerações gerais: 23. O "vale tudo" nãoprocessual; 24. A dignidade do Judiciário; 25. Autoridadespúblicas da comarca; 26. O Promotor e o Delegado; 27.Eqüidistância ostensiva; 28. Abuso de tecnicismo; 29. Deci-dir com conhecimento e segurança; 30. Atender e ouvir; 31.Tratamento do pessoal judiciário; 32. Não gritar; 33. Per-manecer na mesa de trabalho; 34. Aparência do Fórum e dolocal de trabalho; 35. Pontualidade das audiências; 36. Aten-dimento aos próprios interessados; 37. Aperfeiçoamento paraa própria jurisdição; 38. Dizer sim e dizer não; 39. A mulhere a família do juiz na comarca; 40. Ter convicção; 41: Des-pachos preparados pelo Cartório; 42. Carimbos e impressosde decisões - 11I.Casuistica complementar - Fazer & nãojazer; 43. Pessoalidade da casuística; 44. Evitar anulaçãode processos; 45. Não suscitar conflitos de competência;46. O "diga-diga", 47. Estudar ajurisprudência do caso; 48.

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  • Carga e descarga de autos; 49. Indeferimento de perguntasem audiência; 50. Dispositivos de sentenças e acordos; 5 I.Vistas ao Ministério Público; 52. Ler tudo; 53. Não adiaraudiências; 54. Reconsideração de decisões; 55. Procedi-mentos complicados; 56. Especificar provas; 57. Perícia edesignação de audiência; 58. Simplificação de atos de co-municação; 59. O telex; 60. O juiz auxiliar; 61. Conclusõessem data; 62. Questões correcionais nos autos; 63. Susten-tar na legalidade; 64. Decidir somente pelo que está nos'autos; 65. Questões simples x complexas; 66. Memoriaisdas partes; 67. Legalidade processual civil, criminal e demenores; 68. Menores e presos; 69. O Júri; 70. O Eleitoral;71. Designação de audiências para a mesma hora; 72. Nãoatrasar; 73. Não culpar funcionários; 74. Livro de registrode despachos; 75. Expor os artigos do Código; 76. Garan-tias de liminares de sustação de protesto; 77. Marcar audi-ências pessoalmente; 78. Estudo de autos para a audiência;79. Dias para despacho; 80. Portarias; 81. Consultas e ar-gumentação de advogados e partes - IV. Palavras finais:82. O nocionamento pessoal; 83. Encerramento.

    *Palestra aos Juizes Substitutos e de Investidura Temporária apro-vados no 1480 Concurso de Ingresso na Magistratura do Estado de São Paulo -

    maio de 1983.

    I - O JUIZ E O ANDAMENTO DOS PROCESSOS1. O juiz e o processo - Neste ciclo de palestras organizado

    pelo Tribunal de Justiça para os novos colegas compete-me falar sobreprocessamento de feitos.

    Devo fornecer a vocês - permitam-me tratá-los assim infor-malmente - algumas informações a respeito do que considero importan-te para fazer um processo andar, do que imagino útil como norma decomportamento processual e mesmo de conduta pessoal do juiz, paraalcançar o objetivo de levar os processos ao término o mais rapidamen-te possível.

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  • Sabemos que a magistratura pode ser vista por diversas formas.O juiz é, por exemplo, profissional incumbido de realizar ajustiça, em quepese, por vezes, o aparente esquecimento dessa verdade simples, devidoà abstração da função imposta pelo tecnicismo e o formalismo processu-al. Também pode ser focado como guardião das garantias constitucionais,como cidadão atuante na estrutura social, como aplicador da lei, comocritico da lei que aplica o discreto contomador de iniqüidades que a aplica-ção preguiçosa e não inteligente poderia acarretar, ou como agente deexigências de melhoria do sistema jurídico e social. Cada uma dessasmaneiras de ver o juiz leva a uma forma de ver a magistratura.

    Pode o juiz ser visto e analisado de vários pontos de vista, sob asvariáveis das necessidades do tempo, do meio e de suas condições pesso-ais, geradas na própria formação intelectual, social e moral.

    Mas não é do juiz visto por esses variados prismas que voutratar. Tratarei do juiz tendo em vista outro aspecto de sua atividade pro-fissional, ou seja, do Juiz enquanto funcionário incumbido de cuidar de umgrande número de volumes de papéis, que são os processos, mediante suaorganização e a organização do pessoal e material de que dispõe, à modado que ocorre com qualquer dono de empresa ou estabelecimento comer-cial, desde o maior herói empresário atual até o simples sapateiro, alfaiateou açougueiro; todos, como o juiz, são incumbidos de fazer andar e termi-nar o próprio serviço.

    É claro que para falar do juiz em função do processo terei de mereferir, e muito, ao juiz fora do processo, porque, como em qualquer ativida-de, também na magistratura o resultado do exercício profissional está inse-paravelmente ligado às condições pessoais do homem que a exerce. Mastudo o que vou expor visa, antes de mais nada, ao nocionamento básico donecessário a processar, julgar e terminar bem os processos, remetendo-osao arquivo com a prestação jurisdicional efetivamente entregue.

    2. Magistratura de massa e magistratura artesanal - A grandemassa de casos vindos a Juízo leva à necessidade de liquidar processosem grande quantidade. A magistratura, nos tempos modernos, tem de seadaptar à realidade da pletora de processos.

    Podemos ver nessa realidade dois tipos de processos e dois ti-pos de magistratura, com que temos igualmente de conviver: a magistra-

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  • tura de massa e a magistratura artesanal, Esta a magistratura do casoconcreto, do caso único, especial, determinado, cujos pormenores temosque verificar passo a passo, ponto por ponto, ao sabor das dificuldades eangústias dos singulares casos marcantes, que se destacam do volumegeral de processos. Aquela a magistratura da grande quantidade de situa-ções processuais repetitivas, que acabam ganhando relevância operacio-nal na razão direta do volume enorme de casos e pessoas envolvidas.

    Essa massa de trabalho precisa ser vencida, para que sobretempo para os processos das questões para as quais será necessário tra-balho artesanal,

    Temos duas magistraturas e temos de conviver com elas; temosde realizar a magistratura de massa e temos de realizar a magistraturaartesanal, organizando nosso trabalho para que os casos de massa nãotomem todo o tempo necessário à solução naturalmente demorada doscasos artesanais. Temos de ser bons profissionais no trabalho em série,para que possamos ser bons juízes-artesãos.

    A magistratura de massa é muito relevante, seus casos não sãomenos importantes. Sabemos que todos os casos são igualmente relevan-tes, notadamente diante da consideração da importância que têm para aspessoas nele envolvidas, para as quais um simples alvará de suprimentode idade para casamento relativo a problema próprio será muito mais gra-ve do que uma complicada ação reivindicatória referente a outrem. Masnão se pode perder tempo na magistratura de massa, que exige produçãoem série.

    Exemplo tipico de magistratura de massa são os processos deacidentes do trabalho nas comarcas em que existem em grande número,como São Bernardo do Campo, de que fui titular. Sempre considerei osacidentes de trabalho processos muito importantes, devido ao tipo de pes-soa que deles se socorre e à natureza do direito com que lidam.

    Pois bem, a despeito da prioridade que sempre dei ao serviçoem acidentes do trabalho, jamais permiti que sua quantidade estrangu-lasse minha jurisdição de São Bernardo; os processos foram tratadosem série, como jurisdição de massa, com quase todos os despachos emcarimbos ou impressos colocados pelo cartório e audiências marcadassomente para as segundas e sextas-feiras, quatorze em cada um desses

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  • dias, efetuadas em mesa ao lado da minha, em que realizava outrasaudiências da Vara. As sentenças de acidentes do trabalho eram profe-ridas depois, em casa, usando rascunhos impressos com espaço para olançamento da fundamentação do caso, de modo que os impressos abran-giam todo o campo possível de incidência das Leis 5.316/67 e 6.367/76,então aplicáveis. Sempre houve grande produção de audiências e sen-tenças de acidentes do trabalho, mediante a utilização de impressos, demodo a o setor não atrasar e a não prejudicar o andamento do restantedajurisdição.

    Duas magistraturas, a de massa e a artesanal. É preciso desta-car a magistratura de massa, para a qual o que importa é o juiz terminar earquivar logo o processo; é esse o objetivo nela.

    3. O juiz gerente de produção - Temos várias formas de dis-por do instrumental necessário a fazer terminar os processos.

    O juiz deve ser encarado como um gerente de empresa, de umestabelecimento. Tem sua linha de produção e o produto final, que é aprestação jurisdicional. Tem de terminar o processo, entregar a sentençae a execução. Como profissional de produção é imprescindível mantenhaponto de vista gerencial, aspecto da atividade judicial que tem sido aban-donado. É falsa a separação estanque entre as funções de julgar e dirigiro processo - que implica orientação ao cartório. O maior absurdo derivadodesse nocivo ponto de vista dicotômico é a alegação que às vezes algunsjuízes manifestam, atribuindo a culpa pelo atraso dos serviços judiciáriosao cartório que também está sob sua superior orientação e fiscalização.

    Como um gerente, o juiz tem seus instrumentos, assim como umfabricante os seus recursos. São o pessoal do cartório, as máquinas deque dispõe, os impressos. É o lugar em que trabalha; são os carimbos, ascadeiras, o espaço da sala de audiências e de seu gabinete; são a própriacaneta, a máquina de escrever, o fluxo de organização do serviço e algu-mas coisas imateriais.

    O juiz é como o empresário, para o qual tudo vale para atingir amaior produção. Valem a disposição para o trabalho, a dedicação por lon-go horário, o bom-nome, a seriedade de comportamento no ramo de ativi-dade e a imagem de organização oferecida a quem procura os serviços.Tudo para o juiz é instrumento de sua jurisdição, tudo auxilia a terminar os

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  • processos, da mesma forma que, para o industrial ou o comerciante, tudoo que tem na fábrica ou loja é instrumento de sua atividade industrial oucomercial.

    4. Decisão e execução x ornamentos e erudição - É impor-tante observar que o juiz não exaure seu dever sem fazer justiça. Devedecidir e executar, para, em seguida, validamente arquivar o processo.Isso é o que o jurisdicionado quer; para isso é que o Estado paga o apare-lhamento jurisdicional, inclusive os vencimentos do juiz.

    Ojuiz não é profissional instituído para tecer brilhantes conside-rações literárias, doutrinárias ou de erudição. Pode ele ter também co-nhecimento que o alce à condição de doutrinador, mas para isso, em prin-cípio, deverá procurar outros campos de atividade, que não ojurisdicional.Fará concursos, defenderá teses, exercerá atividade docente permitida.O processo, entretanto, não é destinado a esse tipo de preocupação, con-quanto a fundamentação seja sempre necessária. No processo, a tônicadeve ser decidir e executar, razão pela qual, aliás, é preciso pensar, emcada decisão, já na maneira de execução segura.

    Tem-se que decidir e executar. De nada adianta à parte ver abela sentença ornada de citações poliglotas e abstrata doutrina de sutisfilamentos. A parte quer saber do dinheiro dela; o réu criminal deseja verse recebeu a pena adequada ou foi absolvido; a vítima busca verificar sequem lhe causou dano foi condenado; o locador quer o despejo do inquili-no inadimplente. A prestação jurisdicional não se exaure no escrito dasentença, muitas vezes, aliás, incompreensível para o jurisdicionado devi-do ao palavreado técnico. Só se realiza a prestação jurisdicional com apraticização do decidido, simples fato, cuja beleza, para ojuiz, é mais sig-nificativa do que arranjos florais de extratos de livros pinçados no afoga-dilho das últimas horas - que geralmenie não provam cultura, mas sim-plesmente acesso a uma boa biblioteca, própria ou alheia.

    5. Instrumentos à disposição do juiz - O juiz possui váriosmeÍos para realizar o seu trabalho, os quais podem ser divididos em meiosprocessuais e meios não processuais.

    Os instrumentos processuais são os decorrentes da atuação dojuiz nos processos; os não processuais são os oriundos de outras fontesheterogêneas mas igualmente importantes: a organização, a postura, a

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  • atuação no Fórum e na sociedade, o modo de ser do juiz e da família, oaprimoramento cultural, a sua sensibilidade.

    Tudo importa para o juiz. Tudo deve estar em função da realiza-ção de seu objetivo que, para nós, aqui e agora, é terminar o processo.

    11 - INSTRUMENTOS PROCESSUAIS6. Instrumentos processuais - Trabalhar em processos, cader-

    nos escritos de papéis, é fato de extrema relevância para o juiz.O processo outorga direitos e deveres às partes e ao juiz. Esses

    direitos e deveres podem ser vistos como vantagens e desvantagens noaspecto que ora nos interessa, que é o de fulminar os processos.

    Sabemos que as partes têm várias vantagens; o advogado doautor medita muito tempo em qual a ação que proporá; o do réu planeja aestratégia no prazo de defesa. Quer dizer: as partes têm uma vantagem,que é a decorrente da iniciativa por elas planejada. Mas os juízes têmtambém vantagens, que devem pôr em campo, a serviço de fazer o pro-cesso andar e terminar.

    7. Autos conclusos - É vantagem trabalharmos com os autosconclusos, ou seja, fechados. "Conclusos" vem da palavra "claudere" quesignifica fechar. É a mesma raiz de "clausura", "enclausurado". Nós re-cebemos a realidade fechada na forma de um volume de documentos emcujos dados ninguém pode mexer depois que nos é entregue.

    O privilégio de trabalhar com base em realidade imóvel e docu-mentada é uma vantagem que as partes não têm. O advogado propõe aação e teme que no local o réu continue atuando, mudando as cercas,alterando o estado fático, de modo que se arrisca a narrar o que já ésuperado. O juiz trabalha com o que está no papel. Tudo está nos autos;enfoca a "realidade" que está no papel.

    8. Falar por último - Além disso, o juiz tem o direito de falarpor último, desencadeando a preclusão. Pensem no que isso significa: sa-bemos que quando falamos fechamos um ciclo.

    É claro que as decisões são sujeitas a recursos. A vidajudici-ária policiará, como ocorre em todos os atos da vida, o falar das deci-sões, por intermédio dos recursos. A vida judiciária, aliás, é uma reitera-da lição de humildade, porque ninguém nela, a rigor, dá a última palavra:

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  • o que se fala sempre poderá ser submetido a outrem que também nãofalará por último.

    O juiz, contudo, diante da posição das partes, quando fala, falapor último, no estado em que os autos estão. Se houver recurso, essedireito de falar por último será compensado pelo benfazejo exercício dehumildade que é o dever de processar o recurso. E o recurso estará sujei-to a outro recurso e a outras manifestações, mesmo fora dos autos, até aapreciação que é a que mais importa, a das partes, diante da qual possuemmaior relevância até os escritos da instância superior ou dos órgãos supe-riores da magistratura: o que mais importa é a apreciação dos destinatá-rios da jurisdição, entre os quais também se incluem os advogados, quesão juizes com direito adquirido a ser rigorosos com os juízes que semprelhes julgam os trabalhos.

    De qualquer forma, temos o direito de falar por último quando fala-mos: devemos usar desse direito, levando o processo até a situação em queadequadamente o exercitaremos produzindo a preclusão em seu beneficio

    9. Expor no.momento adequado - Não devem ser antecipadasquestões de mérito, questões de fundo, ou questões referentes ao queachamos que acontecerá depois de um despacho interlocutório. Não sepode deixar escapar o que pensamos, pois as partes podem distorcê-lo oupassar a agir em função dele. E, ao recebermos os autos conclusos paraoutra decisão, poderemos estar pensando de modo diverso, outros dadospoderão ter incidido e nosso pensamento poderá ter se alterado; poderánão ser mais o mesmo, mas outro, até o contrário.

    Nosso pensamento pode efetivamente alterar-se até chegar omomento apropriado de decidir. Conheci um magistrado que dizia que asua vida teve duas fases quanto a delitos de trânsito: a de pedestre, quan-do não dirigia, e, depois, a de motorista. Enquanto pedestre tinha umenfoque mais rigoroso relativamente aos motoristas, e quando motoristapassou a atentar mais às imprudências de pedestre. Todos mudamos umpouco quando temos questões jurisdicionais graves envolvendo familiaresou pessoas próximas e vemos como é o outro lado de questões tantasvezes já antes julgadas ...

    Se anteciparmos precipitadamente algum dado de nosso enten-dimento - ainda que em manifestação informal- poderemos depois mudar

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  • de idéia ao aprofundar o exame. Além de ficarmos em situação dificilante a expectativa criada, teremos, por nossa antecipação, induzido aspartes a erro.

    Não devemos nos precipitar; devemos deixar para falar no mo-mento adequado e, nesse instante, fazê-lo sem titubeios.

    10. Atenção à estratégia do caso - O processo é uma luta, éumjogo. É como o jogo de xadrez, em que obrigatoriamente se escolhea forma de encaminhar as peças desde a abertura. Já no despacho inici-al o juiz tem que examinar a petição inicial do processo e cogitar de umaestratégia.

    O despacho inicial já faz antever a forma da citação, já eviden-cia se caiu em nossas mãos questão mais complicada, de maior repercus-são ou relevância. Nós sentimos isso. Parece que até pelo jeito de o fim-cionário apresentar o processo percebemos suas características.

    Temos que estabelecer uma estratégia .para cada processo edirigi-lo como o jogador estabelece cada lance, pesando tudo, pesandonão só os atos que serão realizados, mas também o tempo que vai sernecessário a eles; pesando o comportamento previsível das partes, imagi-nando uma arena de guerra em tomo daquele processo e tentando ante-ver cada lance.

    11. Encadeamento tônico dos atos processuais - O modo maisseguro de manter jurisdição dinâmica, em que os processos realmenteandem depressa, estará na não fragmentação do procedimento. Cada atoprocessual deve entrosar-se com o anterior e o posterior. Cada despachodeve estabelecer o protocolo desse encadeamento, prevendo o ato se-guinte. E todo despacho deve ser tônico, deve apertar as partes, advoga-dos, funcionários e até o próprio juiz, no sentido da providência processualútil ao seguimento no caminho do fim do processo, que não deve jamaisser colocado em ponto morto.

    Os modelos constantes do "Burrinho'" dão idéia de comoestabelecer esse encadeamento tônico, que é garantia de andamentocélere dos processos e fator de facilidade de processamento, pois cada

    1 - Volume organizado pelo autor desta palestra, intitulado "Modelo de Despachos eSentenças", publicado pela Corregedoria Geral da Justiça em 1976, com várias reim-pressões,fornecido pelo tribunal aos juízes novos de cada Concurso.

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  • ato já contém o roteiro do que a ele deve se seguir, não deixando oprocesso parar.

    Deve-se fazer o processo andar automaticamente, até porqueenquanto ele anda o juiz não o tem de carregar. É o que ocorre com ojogador de futebol que faz a bola rolar mais do que ele tem de correr. Oencadeamento dos atos é, além disso, pedagógico, porque indica tambémaos advogados, funcionários e partes qual vai ser o próximo ato da cami-nhada processual.

    12. Iniciativa pessoal do juiz - O juiz não é funcionário quedeva viver recluso, fugindo do mundo, alheio ao tempo e ao meio, simples-mente receptáculo do que acontece ao redor, como sombra cativa dosprotagonistas da vida social.

    Não pode trazer para os autos o conhecimento pessoal, dizendo:"decidi o contrário à prova porque sei que aconteceu o contrário"; não éassim. Mas, uma vez iniciado o processo pelas partes, compete ao juizfazê-lo prosseguir, mantendo a iniciativa a respeito do que for necessáriopara a rápida solução do litígio, como consta dos arts. 125,11, e 262 docpc. E, por meio dessa iniciativa, pode fazer até mesmo com que dadosde conhecimento particular venham para os autos, sem demonstrar a exis-tência desse conhecimento pessoal e sem permitir que ele quebre a eqüi-distáncia exigível no processo - pena de incidir em suspeição.

    13. Aprofundamento da prova - Ojuiz pode manter a iniciativano andamento do processo por intermédio da determinação da prova ne-cessária, autorizado pelo art. 130 do CPC, atribuindo às partes o ónus deprovar algum ponto e alertando-as para a necessidade de trazer a provadecisiva c possível, sob pena de, não a trazendo, a om issão acarretar de-sequilíbrio do embate probatório em seu desfavor.

    Lembro-me de que certa vez tive de julgar uma desapropriaçãoíndireta muito difícil. A desapropriação direta geralmente não é difícil dejulgar, embora seja da maior relevância patrimonial. A indireta, ao contrá-rio, pode ser autêntica ação reivindicatória. No caso se tratava de saberse o título levado ao processo cabia no chão, cujas características, atémesmo quanto a dois riachos. não eram mais as do tempo do alegadodesapossamento. Acabei convertendo o julgamento em diligência, man-dando que trouxessem uma planta da região e determinei que o perito

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  • cotejasse com papel transparente o mapa daquele título que estavam tra-zendo, de tal forma que me permitisse ver através dos mapas se se trata-va de um título "voador" que não poderia aterrissar em lugar nenhum dosolo da comarca ou se o espaço estava reservado para ele no chão. Oembate probatório e o ônus que atribuí às partes me ajudaram muito aextrair conclusões que arrimaram a sentença. Tenho certeza de que semessa providência a sentença jamais poderia ser proferida, pois não haveriacomo vencer o impasse probatório.

    14. Dilema do "ir em cima" ou "dar tempo ao tempo" - Apre-senta-se para o juiz a cada momento e em cada tipo de processo umdilema que eu chamo de "ir em cima" ou "dar tempo ao tempo".

    É preciso que o juiz opte por uma das diretrizes a cada instante.Em cada tipo de processo esse dilema se coloca de forma peculiar. Geral-mente manifesto preferência por "ir em cima" da questão, mesmo em setratando daquelas que tradicionalmente são questÕes tidas como de "dartempo ao tempo", como as de família. Não estou convencido de que sedevam dar, como regra, prazos longos para questões de família; acho quese se der tempo ao tempo e ele não as decidir poderemos ter provocadoferidas não cicatrizáveis nos interessados e com o desprestígio decorrenteda omissão da providência judicial, último recurso existente para eles.

    Parece-me melhor, como regra, decidir, interferir na realidadesubjacente, ainda que também acarretando dores fundas, pela prática doato, mas com a vantagem de, com o controle da decisão e a evidência danão omissão, demonstrar o cumprimento do dever de decidir e o respeitoà invocação do direito ao processo.

    Mesmo quanto a liminares de busca e apreensão de filhos eliminares de afastamento do marido do lar, tenho optado preferencialmen-te por decidir de imediato. Examinada a idade do menor, vista a formaçãoda família, geralmente é possível antever o que será melhor para o anda-mento ulterior do caso e decidir.

    Naturalmente, devem a cautela e a ponderação das caracterís-ticas de cada caso presidir cada opção, especialmente nas questões defamília a que aludi.

    I S. Liminar x não liminar - A concessão de liminares como asdo mandado de segurança é ato extremamente importante, mas a negação

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  • delas também o é. Ambas podem definir o andamento do processo, encami-nhando-o no sentido da composição da lide ou frustrando-o no nascedouro.

    A liminar é o momento em que se conhecem a energia e a pru-dência do juiz, porque ao ensejo dela ele pensa sozinho; com argumentosunilaterais, situa-se no caso e faz as vezes da parte contrária, pensa tudoo que essa parte poderia estar dizendo. Mas uma vez situado no caso hápara o juiz uma certa tranqüilidade para uma decisão que vai ajudar aterminar o processo.

    Porque concessão ou negação de liminar é ato tônico; aperta aspartes, obrigando-as a agir em função do processo. Seja o que for quequiserem mudar no processo, as partes terão que documentar o conheci-mento dele peticionando contra o despacho. Com isso se abreviam osprazos, como, por exemplo, tornando prescindível a citação, pois, se con-cedida a liminar, o réu virá e contestará, não ficará esperando a chegadado oficial de justiça para executar a liminar que lhe é desfavorável.

    Não deve ojuiz arriscar, com a precipitação de concessão deliminar, o objetivo último do judiciário, que é realizar ajustiça. Chegando,entretanto, a posição de segurança razoável, deve dar a liminar. Ela podefazer bem ao caso, fazer andar o processo no sentido de melhor conheci-mento para decisão final. O mesmo se pode dizer da negação da liminar:se o requerente estiver convicto do direito que alega, ajudará o processo aandar depressa no sentido de chegar o momento da sentença, ocasião emque haverá todos os elementos para a segura apreciação do requerimento.

    16. Aplicação não literal da norma processual - É precisoque o juiz leia as leis processuais não só como estão escritas, como seriamlidas por pessoas simplesmente alfabetizadas, sem o aparelhamento técni-co especial da magistratura; ele tem de lê-las vendo muito mais.

    É preciso ler a lei processual adaptando-a a cada momento, poisse se fosse só ler o escrito da lei processual para aplicação maquinal edesinteligente não seria necessário o juiz, bastaria um computador. A leiprocessual deve ser dosada. Não deve ser feito apenas o que aparente-mente está claro nela; deve ser feito o necessário a fazer o processoandar e terminar com a entrega da prestação jurisdicional.

    Em certos campos como o processo civil é, em última análise,autorizado pela lei o que não é nulo. Se não houver nulidade decorrente de

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  • atuação não estritamente ao pé da letra da lei, e se essa atuação encurtaro processo, deve ela ser usada.

    Cito exemplo - e me desculpem por citar exemplos pessoais,mas só posso falar do que sei e o que sei mais é o que ocorreu comigo:havia em São Bernardo, quando assumi ajurisdição, muitas ações de de-sapropriação com audiência por designar; estudando os processos vi quea maioria não necessitava de audiência mas eu os tinha de sanear e preci-sava completar o ciclo do rito ordinário. Despachei, então, determinandoque as partes informassem se queriam produzir prova em audiência e jádispondo que, se não o quisessem, que fornecessem alegações finais es-critas, para que o processo fosse imediatamente julgado sem audiência.Ninguém pediu audiência e todos ofereceram alegações finais escritas, demodo que, mediante aplicação do art. 244 do CPC, pude julgar grandequantidade de processos sem encompridar a pauta de audiência, em Varaentão cumulativa, cujos processos criminais ocupavam enorme espaço nocalendário.

    Temos de usar o que não é nulo, ainda que não ajustado ao ex-presso na lei processual, desde que com razoável margem de segurança.

    17. A força da própria decisão - O juiz possui alguns poderesnão escritos em nenhuma lei, como o fato de decisão, inclusive a proces-sual. O fato da decisão possui força autônoma e pode ser usado paradesobstruir situações processuais complicadas.

    Deve-se usar a força do fato da decisão para fazer o processoandar. A questão de fundo de justiça nunca é meramente processual, deforma que ojuiz poderá, sem ferir ajustiça e agindo com prudência, afas-tar-se dos estritos termos da lei processual, a fim de fazer o processoseguir e chegar a ponto em que possa ser examinada a questão substanci-al de justiça.

    18. Atribuição de ônus da prova - Podemos também induziras partes à prática de atos processuais estabelecendo que quem não ofizer será prejudicado.

    Por exemplo: em processo de acidente do trabalho, se o INPSnão fornece esclarecimentos, não atende às requisições de informação dasituação previdenciária dos acidentados, bastará deixar claro em despa-cho que essa falta será interpretada em detrimento dele, pois detentor da

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  • prova, sentenciando-se fazendo de conta que a parte contrária provoutudo o que o INPS não trouxe aos autos. O mesmo ocorrerá em execu-ções que lidem com importâncias apuradas em conta-corrente, como asbancárias nos contratos de financiamento, diante das quais o financiadorconserva o controle documental do ocorrido na continuidade do negócio.

    19. Julgamento antecipado da lide - Deve-se utilizar prefe-rencialmente o julgamento antecipado da lide, só não o fazendo quandoimpossivel.

    Houve tempo em que o juiz "dava audiências", as quais eramtão poucas que se tomavam fatos marcantes. O extraordinário aumentodo volume dos casos e a não flexibilidade dos Códigos de Processo dadécada de 40 produziram inúmeras audiências e provocaram o alonga-mento das pautas.

    A decisão imediata do processo sob todas as suas modalidadespode ajudar o retomo à antiga regra, que ensejava ao juiz necessáriosmomentos de reflexão maior, livre dos inadiáveis e exaustivos compromis-sos públicos com as audiências.

    Deve-se julgar quando houver segurança, o que pode ocorrerem qualquer dos momentos processuais adequados. Se sobrevier o maiscedo possível, tanto melhor para a jurisdição, para as partes e para opróprio juiz.

    20. Sentenças liquidas - As sentenças devem ser proferidaslíquidas ou liquidáveis por mero cálculo do contador. É possível proferi-laslíquidas, mesmo no caso de o pedido ser ilíquido, se houver especial cuida-do com a produção de prova durante todo o transcorrer do processo, in-clusive formulando quesitos especiais e determinando ajuntada de docu-mentos que esclareçam quantidades e valores. Nunca proferi sentençaque exigisse liquidação por artigos.

    A experiência mostra que inúmeras sentenças ilíquidas já foramproferidas em processos em que havia elementos para a prolação de sen-tença líquida ou liquidável por cálculo. Tanto que na maioria desses casosé possível proferir sentença julgando a liquidação por artigos que se ins-taura, ao ensejo do julgamento conforme o estado do processo, que aliquidação por artigos, por seguir o rito ordinário, possui. Assim agi emdezenas de reclamações trabalhistas rurais na minha comarca de segunda

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  • entrância, Santa Cruz do Rio Pardo, em que recebi, ao assumir, muitosprocessos cujos números haviam sido expressamente deixados para a exe-cução mediante liquidação por artigos.

    21. Exame de petições iniciais - Nenhuma jurisdição funcionabem se o juiz não mantém o hábito de examinar detidamente todas aspetições iniciais, indeferindo as inaproveitáveis ou determinando o conser-to das simplesmente imperfeitas, de acordo com o art. 284 do Código deProcesso.

    Há nesse ponto três observações: não proferir mais de um des-pacho determinando sanação - se não sanada a falha, deve a inicial serindeferida a seguir; deve-se apontar precisamente a falha da inicial, nãobastando referência genérica a "emendar a inicial" - porque o advogadodo autor não saberá como atender ao comando; e não se use de extremorigor com as iniciais - será razoável subsistirem imperfeições.

    22. Saneador e preliminares - O saneador deve apreciar aspreliminares alegadas, limpando o processo. E deve também fazer o"indice" do que ficou para trás, em se tratando de processos complica-dos, como os de muitos réus, ou de ações de procedimentos dificeis,como usucapiões, divisões, falências, concordatas, prestações de con-tas e outras.

    Deve-se tomar cuidado especial, entretanto, em prever o queocorrerá no caso de reforma de decisão preliminar em agravo de instru-mento, porque essa reforma poderá prejudicar o andamento do processo.O ideal será uma de duas: decidir somente com absoluta certeza de con-firmação ulterior, ou decidir de modo a, no caso de reforma do decidido,vir o processo a ser julgado extinto em conseqüência do julgamento dorecurso.

    III - INSTRUMENTOS NÃO PROCESSUAIS - CONSI-DERAÇÕES GERAIS

    23. O "vale-tudo" não processual - Além desses meios pura-mente processuais temos meios não processuais que também têm impor-tância na obtenção do bom andamento do processo.

    São o "vale-tudo". Tudo vale para fazer o processo andar. Des-de a maneira como o juiz se comporta na sala de audiências, até o modo

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  • pelo qual manuseia o processo ou dele se desfaz, como no caso de ele ocolocar sobre a mesa ou o jogar num canto na presença das partes. Im-porta até o jeito de ele se vestir ou portar num churrasco, numa pescaria,no pagamento de suas obrigações.

    Tudo importa para que o processo ande, até porque tudo vaiinfluir na credibilidade do juiz e na própria força de suas decisões.

    24. A dignidade do Judiciário - O juiz deve zelar pela dignida-de do Judiciário. Esse ,,'elo, além de ser evidentemente necessário no as-pecto funcional, vai facilitar o próprio serviço.

    Será bom zelar por essa dignidade até do ponto de vista do pró-prio comodismo; ser digno ajuda a facilitar o trabalho.

    25. Autoridades políticas da comarca - O juiz deve tratar asautoridades da comarca com o respeito e a gravidade que o exercício doscargos pLiblicos por elas exige.

    Poderá discordar delas; poderá tê-Ias rés em processos, massempre se tratará de autoridades constituídas enquanto estiverem nocargo.

    O prefeíto, o vereador, o membro de partido é representante dacomunidade, é uma das suas forças. Se tivermos reparos a pessoas com-ponentes dessas forças será preciso não esquecer que esses reparos po-derão significar insatisfação com a sociedade que as gerou, isto é, comnosso próprio meio, com nosso País. E antes de mais nada será necessá-rio pensar que outros poderão discordar também de nós, dirigindo-nosreparos ao nosso modo pessoal ou jurisdicional de ser, formados pelo mes-mo meio, pela mesma sociedade.

    Importa não hostilizar o político local. Será importante manterbom relacionamento, mas evitando o surgimento de imagem pública deintimidade que permita à política local aparentar interferência na eqüidis-tância. Tratamento simples, formal, cortês, digno, limitado aos encontrosdecorrentes do exercício dos cargos ou da convivência social atenciosa,será o adequado.

    26. O Promotor e o Delegado - O promotor de justiça e odelegado de polícia geralmente são boas amizades do juiz na Comar-ca. Funcionários de carreira, como o juiz, relativamente a ambos nor-malmente não ocorrem os perigos de envolvimento que podem decor-

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  • rer da amizade próxima com as autoridades cuja investidura remonta àpolítica local.

    É bom, entretanto, não permitir confusões funcionais. Se a so-ciedade quisesse mistura de atribuições ou exigisse uniformidade depensamento entre os três profissionais, a lei não instituiria três cargos e oEstado não pagaria três vencimentos. Postas de lado as relações de ami-zade que se formam, sobretudo entre o juiz e o promotor, naturalmenteaproximados pela convivência no Fórum, e as respectivas famílias - ami-zade que me forneceu, entre tantos amigos, um compadre querido emPalestina, José Juarez Staut Mustafá, e um extraordinário amigo em SãoBernardo, Renato Augusto Romeiro Cézar' - é bom que cada qual cum-pra com o dever do respectivo cargo sozinho e sem interferir no cumpri-mento do dever do outro.

    A não confusão será importante para a credibilidade do juiz,assim como também o será para a do promotor e à do delegado.

    27. Eqüidistância ostensiva - Eqüidistância é uma forma decorreção pessoal que deve ser sempre posta em evidência. Mesmo se sedecidir com a impressão de que de uma forma ou de outra se estarábeneficiando uma das partes, essa impressão não poderá nunca passar àdecisão.

    Sempre temos que julgar com imparcialidade, mesmo quandoparecer até a nós mesmos que estamos sendo benevolentes. Existem ques-tões em que podemos formar em nós a impressão de benevolência, comoas de apressamento de um alvará simples ou de andamento de processosem litígio, cuja decisão não prejudique a ninguém. Mas mesmo nessescasos temos de conservar a imagem de tratamento e decisão imparciais enormais, ante as peculiaridades do caso, e não a de decidir ou apressarpara fazer um favor especial.

    Não podemos nos mancomunar com as partes, nem mesmo como que tem razão; se isso ocorrer, essa mesma parte, em outra oportunida-de, se vier a perder outra questão, vai achar que o juiz que antes com elase mancomunou agora o fez com a parte contrária. Temos que transmitir

    2 - Falecido, com a esposa Gilda, no dia 09.07.83, em acidente automobilístico cujasconseqüências arrebataram, depois, a filha mais velha do casal, Renata. Penosoregistro de saudade ao ensejo da revisão deste trabalho.

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  • a certeza de que sempre agimos como juizes, pesando imparcialmente osdireitos e dando a eles a solução adequada.

    28. Abuso de tecnicismo - O tecnicismo abstrato no Judiciárioé mal dos nossos tempos. Ele se revela sobretudo no direito processual,mas contamina também outros ramos do Direito. Em todos é nocivo, poisleva à preocupação de exposições densamente abstratas, que os destina-tários dajurisdição, as partes, não irão entender, de modo que ficarão coma idéia de não terem sido bem apreciados o caso e seus motivos.

    No direito penal esse tecnicismo mereceu candente ataque deNélson Hungria, em célebre conferência denominada "Os Pandectistasdo Direito Penal", que acompanha um dos volumes dos Comentários aoCódigo Penal. A leitura é obrigatória para quem quiser aprofundar-se nossegredos de ser bom juiz.

    O processo não é um maço de papéis fornecedor de dados paraconstrução de castelos de cartas, de raciocínios abstratos técnicos ou tira-das literárias. Existe para levar justiça às pessoas que estão com vidasenfiadas no meio de suas folhas, pessoas cujos rostos e sentimentos obom juiz deve saber ver por meio do instrumento técnico. Essas pessoasnão querem exibições de arquitetura técnica; querem justiça para os ca-sos concretos ..

    29. Decidir com conhecimento e segurança - Segurança paranão errar. Tomar cuidado para não errar; não "chutar". A responsabilida-de no decidir é o mínimo que se espera do juiz. Não se espera que o juizsaiba tudo; aguarda-se que ele saiba localizar o que não sabe e vá estudare aprender antes de decidir.

    Já houve ocasião, em Palestina, em que interrompi uma audi-ência, pedi licença para ir a minha casa ver um livro, porque achava quenão deveria decidir sem a consulta. Quando voltei houve surpresa, por-que se pensou que eu fosse voltar com um grosso volume de tratadoestrangeiro, mas voltei com o Curso de Direito Civil do Prof. Washing-ton Barros Monteiro, que sempre dá solução prática muito ponderada aproblemas concretos.

    30. Atender e ouvir - Isto é muito importante. Mas não ficarcom aquelas conversas ao pé de orelha, cochichos que se prestam a con-fusões e desconfianças.

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  • É preciso saber ouvir e dar atenção a quem nos procura, depreferência atendendo de portas abertas, normalmente, na sala de audiên-cias, falando naturalmente. Há sempre um jeito de fazer a pessoa falaralto, ou com voz normal, como numa conversa comum, afastando o peri-goso tom de segredo. Saibam ouvir. Muitas vezes quando a pessoa come-ça a falar já adivinhamos o fim. Mas é bom não cortar o ânimo da pessoaque veio falar. Pode ocorrer até que ela esteja sob pressão ou torturapsicológica em falar. Não se pode interromper essa pessoa, sob pena dedecepcioná-Ia e desiludi-la da Justiça.

    Os árabes dizem, e vi isso numa citação do rei Faissal, que o serhumano tem uma só boca e dois ouvidos, para ouvir mais e falar menos.Essa regra se aplica ao juiz. Saber ouvir muito é decisivo para dizer bem oDireito.

    Quando não se puder permitir prolongamento da conversa, deve-se deixar a pessoa expor um pouco e dizer que já está entendido, que já sesabe do que se trata, que será dada a maior atenção ao caso e outrasrespostas assim, mas sempre após ter ouvido atenciosamente uma boaparte do suficiente para inteirar-se do caso.

    31. Tratamento do pessoal Judiciário - É muito importantetratar bem os funcionários. O juiz não pode ficar fechado como se fosseum nobre - vã ilusão - um eremita ou uma pessoa que possa ser contami-nada pelo contato com os funcionários, advogados e partes. Mas essecontato não deve ser conduta capaz de gerar situações perigosas, de inti-midade ou aparência de intimidade comprometedora.

    Mais: a imagem da sala de audiências como local de brincadei-ras, de falar mal da vida alheia, de fofocas, sussurros e gargalhadas atra-palha o andamento dos processos. A parte vem para uma audiência, vê oquadro e vai achar que aquilo não é sério. Também é preciso tomar cuida-do com as piadas, sobretudo as mais fortes. É preciso não permitir o quevá além de uma certa formalidade cordial.

    O juiz deve ser um chefe e, às vezes, um amigo, seguro. Masum amigo sempre juiz, qualidade inseparável que ojuiz forçosamente con-serva em todos os lugares e ambientes, e de que não pode jamais sedesvencilhar para ficar somente como o amigo - termo que alguma vez, seinvocado sozinho, parecendo afetivo, poderá esconder sinonímia com cúm-

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  • plice em atos e segredos aos quais o bom juiz, mesmo amigo, não deve seagregar.

    32. Não gritar - Não se deve gritar. O juiz manda apenas nosfuncionários, e manda geralmente por escrito, de modo que manda mes-mo é na caneta dele, com a qual fala em silêncio.

    O juiz não pode gritar com ninguém. Só deve dar ordens legais epela forma apropriada.

    É bom, também, quando coisas se complicam, acertar a voz enão permitir nela aflição indicativa de perda de serenidade. Em uma audi-ência, por exemplo, se o juiz perder a calma, ninguém mais a controlará.

    É interessante lembrar que há juízes que passam toda a vidasem gritar e sem problemas porque sabem fazer-se respeitados. Semprehá alguma forma de agir melhor do que esbravejar.

    33. Permanecer na mesa de trabalho - O juiz em sua sala,sentado àmesa de trabalho, soma à força institucional a natural tendênciaao acatamento do que provém de quem está nesse lugar e nessa posição.

    É bom ojuiz ficar sempre no seu lugar. É sempre arriscado sairda mesa, ir à porta, discutir no corredor. Não saindo do lugar, ficandosentado, ele tem naturalmente o respeito dos outros. Ali tem o juiz maisconforto psicológico e melhores condições para tomar providências; tema campainha para chamar os funcionários e, se surgir perigo, é para alique acorrerão em socorro. Se algo tiver de lhe acontecer, que ocorra emseu posto, em sua mesa, cumprindo o dever.

    Naturalmente haverá ocasiões de ir ao cartório, à cadeia públi-ca, ao juizado de menores e a outros locais, para instruções ou para ativi-dade correcional. Mas no trabalho judicial público tipico no Fórum seráinteressante que se conserve à mesa de trabalho.

    34. Aparência do Fórum e do local de trabalho - Quem vemao Fórum tem noção intuitiva das coisas certas. Sabe que uma casa deveser limpa e que o local de trabalho deve ser organizado. Sabe por exem-plo, que um bom pedreiro deve sempre lavar as ferramentas antes de asguardar, que a boa mãe demonstra cuidados na aparência dos filhos eassim por diante.

    Quem vai ao Fórum e vê tudo sujo, com documentos amontoa-dos, tocos de cigarros jogados, processos no chão, a mesa do juiz com

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  • papéis espalhados, não vai confiar em um juiz, um representante da lei,que convive com tudo tão desorganizado.

    Achará que ele não leva nada a sério, a começar do própriolocal de trabalho. E naturalmente, passará a questionar os atos dele ema-nados.

    35. Pontualidade das audiências - Organizar a pauta preven-do para não haver atrasos é um dever. Submeter partes, testemunhas eadvogados a demoras absurdas é evidentemente criar problemas, além deser desumanidade.

    Temos várias Varas em São Paulo que nunca atrasam os horá-rios das audiências, o que prova que o controle do horário é possível,assim como é possível não atrasar processos. Há colegas que nunca atra-saram nenhum processo.

    A organização da pauta de forma a não atrasar o início dasaudiências é instrumento de credibilidade do Juízo'. É preciso saber dosara pauta e para isso existem várias diretrizes; cada juiz deve escolher asua. Por exemplo, se houver certeza de permanência do juiz auxiliar naVara, que possa fazer audiências concomitantemente com o titular, seráconveniente marcar a audiência presumivelmente mais demorada para oinício do expediente e ficar com ela; se não houver, será melhor marcá-lapara as 15 ou 16 horas, para que se realize quando os despachos já termi-naram, o público diminuiu e a audiência poderá se prolongar até maistarde, sem acarretar o atraso das demais.

    36. Atendimento aos próprios interessados - Toma vulto hojeem dia o hábito de ojuiz não atender os interessados, sob o fundamento deterem eles advogados,

    O melhor é não seguir essa regra. Os interessados têm o direitoa contato com o juiz, ao menos de início, embora esse direito possa vir aser suprimido posteriormente se se tomarem inoportunos, repetitivos ouquiserem sustentar pessoal e verbalmente os argumentos processuais.

    Às vezes o atendimento do próprio interessado é de relevo paraa localização de problemas correcionais que os advogados nem sempretrazem ao juiz. Por isso o atendimento deve ser feito pessoalmente pelojuiz, não se recomendando a delegação pura e simples a outrem ou aoutorga a funcionários do poder de barrar o acesso ao juiz, com risco de

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  • os barradores serem os contra quem viriam os barrados reclamar.37. Aperfeiçoamento para a própria jurisdição - Cadajuris-

    dição tem os seus problemas e é preciso saber trabalhar com eles. Seregião rural, tem-se que conhecer problemas de terra; se industrial, tem-se que saber assuntos negociais, societários e de acidentes do trabalho. Ojuiz precisa aperfeiçoar-se preparando-se antes de mais nada para a suajurisdição. Na grande São Paulo, no crime, será necessário dominar decor o relativo de roubo, latrocinio, furto e lesões corporais culposas notrânsito e saber, na prática, o que fazer com menores infratores perigosos,por exemplo.

    Sendo juiz da grande São Paulo, a realização de curso de pós-graduação em direito agrário ou internacional em nada auxiliará a jurisdi-ção. Servirá apenas para brilho intelectual abstrato, desligado da proble-mática judiciária profissional, ou para aperfeiçoamento relevante visandoa carreira universitária. Mas para a melhoria da jurisdição seriam reco-mendáveis outros cursos, aparentemente não relacionados com a Justiça,como relações humanas, organização e métodos, etc.

    Há regiões com problemas chamados de terra, que preocu-pam muito, mas que têm lineamentos que ensejam processamento e jul-gamento seguros. Por exemplo, nelas não se pode dar muito tempo àspartes, senão elas ficarão alterando a realidade subjacente ao caso,empurrando cercas, derrubando matas, mudando caminho e assim pordiante; se foi feita a perícia depressa, essas questões se esvaziarão comobolhas de ar.

    Quem está em região de problemas de terras tem de estudar ajurisprudência relativa a eles, saber quando cabe exceção de domínio,quando devem ou não devem ser concedidas liminares, como lidar comprocessos incidentes, levando-os todos ao ponto em que possa ser pro-ferida decisão única para todos - porque em princípio não será bomsentenciar parceladamente esses processos, correndo o risco de julgarextinto um deles e depois sobrevir a nulidade dos atos praticados nosdemais, devido à reforma da sentença de extinção pelo Tribunal; porisso será geralmente melhor juntar os processos, colocar tudo em um sópacote e julgar na unidade de um só momento e, se possivel, de umaúnica sentença.

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  • 38. Dizer sim e dizer não - O juiz deve dominar a arte de dizersim e dizer não. Ambas as palavras são dificeis, variando fungivelmente ograu de dificuldade segundo a ocasião.

    Mas é preciso que o juiz saiba dizê-Ias sem criar atritos, semdemonstrar animosidade, sem provocar problemas, resguardando-se. Hápessoas que negam o que lhes é pedido e o interlocutor não sai magoado.O tirocínio de tratamento das pessoas pelo juiz deve atentar a isso.

    39. A mulher e a/amitia dojuiz na Comarca - ODes. EdgardMoura Bittencourt reserva um capitulo para a "mulher do juiz'" no livrosobre o juiz. Ela é tão importante para a tranqüilidade da Comarca que jáimaginei seria bom devesse, como o marido, fazer concurso ...

    O mesmo se diga da família, especialmente dos filhos. Compor-tamento simples, vida austera, respeitadora das leis e das pessoas, sem seprevalecer do cargo do chefe da família, são fatores fundamentais para otrabalho do juiz na Comarca.

    Será também irreparável mal a mulher ou os filhos do juiz des-denharem a cídade da Comarca. A repercussão desse desdém na popula-ção fará preferível que o juiz, com a família, mude de Comarca.

    40. Ter convicção - A convicção pessoal a respeito das deci-sões é elemento de extrema relevância para o juiz. As partes sentem opulso do juiz pela convicção que evidencia.

    A convicção se produz pelo conhecimento do direito, da vida, dacultura e do estudo dos casos. A segurança é imprescindível na vidajudici-a!. Forma-se o hábito da convicção e passa-se a conviver com ele. Deve-se, por isso, cultivá-lo como se cultivam as grandes árvores: começando dehumilde posição de dúvida metódica que submete tudo, mesmo as coisasmais simples, á meditação e á pesquisa e chegando posteriormente á alturado conhecimento aperfeiçoado. Nessas alturas o saber estará em aparenteparadoxo: consistirá no conhecimento do desconhecimento, isto é, saber oque não se sabe, para isolá-lo e ir estudá-lo antes de decidir ou dizer.

    41. Despachos preparados pelo Cartório - É imprescindívela qualquer jurisdição moderna que os despachos de rotina venham para amesa do juiz já preparados pelo Cartório, datilografados, impressos ou3 -Atua/mente, havendo váriasjuízas na magistratura de São Paulo, seria mais adequado

    tratar do "cônjuge" do juiz.

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  • carimbados. O juiz os examinará antes de assinar e, se forem inadequa-dos, tirará a folha, ou riscará o que foi preparado e lançará outro despachoa mão ou novamente datilografado, mediante ditado na sala de audiência.

    É o caso da magistratura de massa de que falei de início. Deci-sões repetitivas não são para serem pessoalmente escritas pelo juiz. De-vem vir já prontas, atuando o cartório segundo as instruções do juiz. Ori-entar o cartório para grafar os despachos também é "decidir". Decidirpessoalmente não significa "escrever" de próprio punho nos autos.

    Mas é preciso sempre verificar se os despachos preparadospelo Cartório estão certos. Jamais deve o juiz assinar o expediente "emcruz", por mais que confie nos funcionários que os tenham preparado.

    42. Carimbos e impressos de decisões - O mesmo ocorre comimpressos e carimbos. Não é admissivel modemamente, na quantidadeatual de serviço, que o juiz tente escrever tudo pessoalmente. Se o fizernão escapará ao atraso de serviço por mais que trábalhe. E passará a sercriticado, exibirá pouca produção quando pretender juiz auxiliar para aVara, trilhará a triste sina do juiz marcado pela reclamação constante doserviço.

    Por mais que seja culto, por mais que seja homem de bem, pormais que decida bem os casos a que efetivamente se dedique, certamenteterá sua vida jurisdicional cercada de problemas que podem ser evitadosmediante organização simples do serviço no aspecto gerencial, imprescin-divel à magistratura de massa, para que tenha o tempo necessário à dedi-cação artesanal.

    Confira tudo, entretanto, antes de assinar.

    IV - CAsuíSTICA COMPLEMENTAR - FAZER & NÃOFAZER

    43. Pessoalidade da casuistica - Há uma casuística que todojuiz segue e que ajuda a formar a credibilidade da própria jurisdição, cola-borando para o bom andamento e para o encurtamento da vida dos pro-cessos.

    Exponho o meu sistema, a minha casuística, apenas como lem-brete pessoal de casos. Pensem, meditem bastante e cheguem às própri-as. Se imaginasse que algum de vocês, juizes de direito, iria receber tudo

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  • o que estou falando como dogma, decididamente nada lhe diria, pois o juiznão deve ser repetidor de idéias alheias. É preciso que cada juiz tenhasuas próprias diretrizes.

    Toda regra é pessoal. É preciso usar de prudência antes de che-gar a uma. É preciso ouvir juizes mais antigos, consultar os autores espe-cíficos, observar o modo de ser da comarca. É preciso perguntar. Semprehá alguém que conheça o assunto; é preciso aconselhar-se com ele -ainda que para não aceitar o conselho ... Émelhor confessar ignorância ainterlocutor adequado do que arriscar o direito alheio com ignorante deci-são presunçosa.

    Destacarei alguns pontos de minha casuistica pessoal de fazer enão fazer.

    44. Evitar anulação de processos - É nocivo anular proces-sos. Mas cheguei a ver comarca em que houve a anulação de 16 proces-sos de ofício pelo mesmo colega às vésperas da promoção - todos elesprocessos recebidos para sentença. Imaginem a confusão implantada nacomarca.

    A anulação de um processo criminal pode levá-lo à prescrição;a de um cível levará alguém ao desespero. Só se anula um processo quan-do absolutamente necessário; tenta-se salvá-lo, o que geralmente é possí-vel, ainda que, certamente, seja mais difícil. Mas o bom juiz se conhece nodifícil, não no fácil que a todos nivela por baixo; ninguém pode pretenderser juiz para julgar somente separações consensuais ou despejos por faltade pagamento de réus revéis ... Perdoem os exemplos.

    45. Não suscitar conflitos de competência - Em toda a mi-nha carreira nunca suscitei nenhum. As partes norrnalmente não estãointeressadas em quem é o juiz que julga. Basta que seja honesto, impar-cial. As partes querem a sentença e a execução. É para isso que oEstado nos paga.

    Além disso, há o aspecto prático. Suscitar um conflito é tãocomplicado como sentenciar. E se eu proferir uma sentença e o Tribunaldepois me julgar incompetente, para mim o processo não voltará nuncamais, ao passo que, se eu suscitar um conflito e depois o Tribunal entenderque eu é que sou competente, terei de enfrentar novamente o mesmoprocesso, o que já não farei sem aborrecimento.

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  • É muito penoso e mais complicado trabalhar em processo doqualjá nos imaginamos desligados.

    46. O "diga-diga" -Não mandar ninguém dizer inutilmente. Isso éóbvio. Atrasa o desfecho, irrita as partes e advogados, atrai para o juiz apecha de preguiçoso e acarreta complicações para o procedimento, pois cadamanifestação nova das partes colocará novas questões no processo, as quaisterão de ser relatadas e enfocadas, a despeito de constarem por vezes debreves linhas no meio de páginas, em posição de fácil esquecimento.

    47. Estudar a jurisprudência do caso - Sem a jurisprudênciado caso às vezes nada se pode decidir com seriedade.

    E, o que é mais grave, às vezes a jurisprudência se afasta muitodo sentido literal da lei, criando ciladas consideráveis para o julgador queapenas lê a lei ou a doutrina acadêmica.

    Vejam-se, por exemplo, as diretrizes jurisprudenciais surgidasno âmbito do compromisso de compra e venda, da extensão do direito àdefesa criminal, da exigência de perigo concreto na contravenção de dire-ção perigosa e tantas outras e avaliem-se os riscos do esquecimento dasconclusões jurisprudenciais. A jurisprudência é o próprio direito em suavivência progressiva.

    48. Carga e descarga de autos - Convém receber os proces-sos que tenham de ser levados para casa mediante carga no livro de car-gas. E ao retomo é bom exigir a baixa no ato da devolução ao funcionário.

    O livro de cargas ao juiz deve ser conservado na sala de audiên-cias para que nele se façam as cargas dos processos que não possam serdecididos no Fórum e por isso sejam retirados. O bom controle de retiradade processos pelo juiz fornece marca de organização, além de evitar dis-sabores no caso de carga de processo e esquecimento de descarga pelocartório.

    49. Indeferimento de perguntas em audiência - Há formassimples e não agressivas de indeferir perguntas inadequadas ou imperti-nentes em audiência. A descoberta dessas formas nos casos concretos éuma arte característica do juiz tranqüilo, que infunde respeito e confiançaàs partes e advogados.

    Pode-se ponderar o haver a testemunha já respondido, até me-diante a leitura do trecho anterior. Podem-se rememorar os limites proba-

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  • tórios da demanda, mostrando que a questão se situa fora deles. Pode-seformular a repergunta capciosa ou tendenciosa de forma a torná-Ia ade-quada. Pode-se mesmo perguntar o que teria de ser indeferido, se nãotrouxer prejuízos, para evitar incidente de fazer constar a pergunta, o quetoma pelo menos tanto tempo quando formulá-Ia e consignar a resposta.

    Acima de tudo, entretanto, deve-se evitar o uso do termo "inde-firo" diante da pergunta, sem rebuços, à face do advogado, porque essetermo, por mais técnico que seja, desencadeia inevitável carga emotivaque muitas vezes pode levar a incidentes desagradáveis, notadamente seaplicado várias vezes para indeferimento de perguntas do mesmo advoga-do.

    50. Dispositivos de sentenças e acordos - Cuidado com osdispositivos de sentenças. Existem dispositivos que, se forem lançadoserrados e não houver recurso, ninguém conseguirá executar.

    a mesmo ocorre com os acordos, cuja redação deve ser bemverificada pelo juiz pessoalmente, inclusive do ponto de vista da liquidaçãofutura para execução.

    51. Vistas ao Ministério Público - Devem ser dadas vistas aoMinistério Público apenas quando necessárias, sem prodigalidade.

    Ao Promotor de Justiça, pela natureza de suas funções, serálícito partir de ponto de vista diferente do do juiz, ou seja, o da legalidadeestrita, de modo que as reiteradas vistas poderão ensejar a colocação noprocesso, por dever de ofício, de sucessivas questões novas, que, depois,o juiz terá de decidir uma a uma. a risco acentua-se diante da possibilida-de de substituição de profissionais, pelos mais diversos motivos, levando ànatural diversidade de pontos de vista.

    Por isso também será de boa norma examinar com cuidado ascotas do Ministério Público antes de as acolher, banindo-se a aplicaçãoindiscriminada de carimbos de despachos "nos termos da cota".

    Ressalvem-se, contudo, os casos de juízes e promotores muitoafinados por proficua convivência, cujas orientações muitas vezes pas-sam a ser uniformes e são fator de bom trabalho judiciário. Em SãoBernardo, ao cabo de algum tempo de convivência, o promotor e eu,embora jamais tentássemos um influir no pensamento do outro, expú-nhamos praticamente as mesmas coisas, sem nenhum contato prévio,

    51

  • fornecendo segurança aos jurisdicionados e ensejando andamento céle-re aos processos.

    Outro inconveniente de sucessivas vistas ao Ministério Públicoserá o truncamento do procedimento e a provocação dos mesmos malesjá ressaltados quanto ao "diga-diga".

    52. Ler tudo - Tudo o que for escrito no processo deve ser lidopara que se possa responder a cada alegação.

    Não se pode omitir nada. As omissões são um dos pontos quemais acarretam inconformismo razoável dos advogados e das partes.

    53. Não adiar audiências - Não adiar audiências pelo adianta-do da hora ou devido a incidente de menor relevância, superável na lógicado processo.

    O adiamento é humilhante para a Justiça e para o Juiz e provo-ca prejuízos sensíveis às partes, testemunhas, advogados e serviço car-torário.

    54. Reconsideração de decisões - Cuidado ao reconsiderar.A reconsideração de decisões, próprias ou de outros juízes, deve

    ser precedida da maior reflexão. Quanto a decisões próprias, o melhor é"considerar" bem, antes de decidir, para não ter de "re-considerar". Areconsideração deve ser ato não correntio, o que a tomará - antítese sin-gular - ato de humildade orgulhosa.

    Além disso, às vezes é melhor não reconsiderar, ainda que ojuizse convença do desacerto da decisão anterior. Há situações de erro quenão acarretam prejuízo irreparável às partes; nelas será preferível fazer oprocesso a