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Érica Negreiros de Camargo Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado Tese de Doutorado Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo Área de concentração: Hábitat Orientadora: Profa. Dra. Suzana Pasternak São Paulo 2007

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Érica Negreiros de Camargo

Casa, doce lar:

o habitar doméstico percebido e vivenciado

Tese de Doutorado

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo

Área de concentração: Hábitat

Orientadora: Profa. Dra. Suzana Pasternak

São Paulo

2007

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À minha mãe,

Ao Rainer,

A Leo,

Por eles serem o meu lugar; a minha casa

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Antes de mais nada…

Esta pesquisa, tal como a minha casa, contém muito de mim, da minha

alma e da minha dedicação; e está pronta para receber bem os amigos e todos aqueles

que venham visitá-la com alegria no coração. Com isto, cito Roberto DaMatta, que

tão bem versou sobre essa arte de “receber”:

“Um livro é como uma casa. Tem fachada, jardim, sala de visitas, quartos,

dependência de empregada e até mesmo cozinha e porão. Suas páginas iniciais,

como aquelas conversas cerimoniais que antigamente eram regadas a guaraná

geladinho e biscoito champanhe, servem solenemente para dizer ao leitor (esse

fantasma que nos chega da rua) o que se diz a uma visita de consideração. Que

não repare nos móveis, que o dono da morada é modesto e bem-intencionado, que

não houve muito tempo para limpar direito a sala ou arrumar os quartos. Que vá,

enfim, ficando à vontade e desculpando alguma coisa...” (DaMatta, 2000; p. 11).

Ah, sim! A música e a poesia que encontrarão aqui foram especialmente

providenciadas para entreter as visitas. Pois, fiquem à vontade, que a casa é sua!

Érica

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Agradecimentos

Este é o momento de lembrar de todas as pessoas que, de alguma forma, contribuíram para que este trabalho fosse feito. Dentre essas pessoas há algumas que sequer sabem de sua imensa contribuição. Porque suas palavras e feitos muitas vezes estiveram apenas na minha memória, enquanto ecoavam na minha postura de investigação, nas inúmeras escolhas que tive que fazer, na forma de contornar as dificuldades; e que, por isso, devo-lhes meus agradecimentos. Há outras que estiveram constantemente ao meu lado, dando suas opiniões, criticando, sugerindo, acrescentando; a quem, por isso, também devo meus agradecimentos. E há aquelas pessoas que, com suas histórias de vida a mim presenteadas de forma tão sincera e generosa, não só ajudaram a dar corpo a este trabalho, mas, de fato, são a sua alma. A essas, também, devo meus tão sinceros agradecimentos.

Dessas pessoas, nomeio aquelas que considero representantes de uma lista extensa, a cujos componentes devo dizer muito obrigada.

Muito obrigada...

À minha orientadora, Professora Susana Pasternak, que, antes de mais nada, acreditou no meu projeto; e que esteve à disposição para ajudar a moldá-lo e redirecioná-lo sempre que foi preciso.

Ao querido Rainer, marido, conselheiro, enfermeiro, revisor, editor e rei da paciência...

A Leo, filho querido, que acompanhou de perto as atribulações de uma mãe doutoranda, sempre com comentários alegres e encorajadores. E que ainda criou a linda capa deste trabalho.

À minha mãe, que, além de mãe, foi enfermeira, revisora, conselheira, orientadora; e correspondente direta com Santo Antônio.

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À minha irmã, Anamaria, e à D. Carminha, pela preocupação, no momento em que minha saúde mandou um aviso de “calma”.

Às amigas Ana Maria Lacerda, pelos livros que vieram em tão boa hora; Maria Celeste Wanner, pelas dicas para a defesa; Monika Krugmann, pelos esclarecimentos lingüísticos; Célia Gomes, pelo carinho e pela torcida.

Aos amigos Mônica e Marcos Percário, pelo acompanhamento carinhoso e alegre que tornou essa fase mais leve de ser levada.

Ao amigo e Professor Isaías Neto, pelos conselhos, e por ter participado do começo desta história, lá atrás, ainda no mestrado.

Ao Marcus Ramos, pela linda foto da capa.

Ao Thomas Henke, por ter feito a ponte entre um dos entrevistados.

Ao Dr. Aldrighi, muito mais que meu médico, amigo sempre disponível.

À Professora Yvonne Mautner, pelas valiosas dicas de condução do discurso final dadas em minha Qualificação, e pela generosa dedicação e disponibilidade em me receber em sua casa, e emprestar livros, sempre que precisei.

À Professora Eda Tassara, pelas utilíssimas sugestões de organização do discurso final, dadas em minha Qualificação.

Aos professores Celso Lamparelli, Maria Ruth Amaral de Sampaio e José Lira, por terem jogado luz no percurso metodológico que tive que percorrer até chegar aqui.

Ao professor Massimo de Felice, cujo foco contemporâneo de ver o habitar veio trazer equilíbrio a uma visão, talvez, demasiado tradicional, para os dias em que vivemos.

À querida Professora Ecléia Bosi, cujos ensinamentos sobre História Oral foram fundamentais não só para o registro das entrevistas que trago aqui, mas para a compreensão da importância de se conhecer um fato sob a ótica de quem o viveu.

E, principalmente, ao entrevistados, cujas identidades me comprometi em não revelar: obrigada, de coração!

Ainda gostaria de agradecer ao apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico – CNPq –, cujo auxílio foi essencial para a realização deste

trabalho.

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Resumo

O objetivo desta investigação foi analisar o tema Hábitat, especificamente no sentido

de como o lugar do habitar doméstico é percebido e vivenciado por seus habitantes,

em termos tanto objetivos – das relações estabelecidas com a fisicalidade da moradia

–, quando subjetivos – das questões pessoais específicas que intervêm nessas relações.

Como instrumento para esta investigação, foram tomados depoimentos de pessoas a

respeito das relações que estabelecem no e com o espaço de suas moradias, os quais,

embasados em abordagens teóricas pertinentes ao tema, definiram a linha condutora

da análise. Para a investigação, estabeleceram-se cinco dimensões, através das quais

foram examinados os particulares processos de atribuição de significados ao habitar

doméstico; sejam elas: a casa física, usos objetivo e subjetivo da casa, privacidade e

intimidade domésticas, o cotidiano doméstico e o lugar do habitar doméstico. Estas cinco

dimensões permitiram entender que o habitar doméstico é algo tão amplo quanto a

própria vida do indivíduo, não se dando isoladamente ou independente das

interferências externas, as quais permeiam a vida cotidiana doméstica. Ao lado disto,

é o caráter da particularidade do habitar doméstico que o legitima como uma prática

do indivíduo per se.

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Abstract

In this study, the author investigates the home environment in the sense of how a

private dwelling is perceived and experienced by its users, both in objective terms,

regarding physical usage, and subjective terms, regarding individual issues that

influence this usage. To carry out this investigation, the author interviewed

individuals regarding relations they hold within and with their dwellings. A literature

review on this subject combined with data collected via interviews provided the

framework for this investigation. The author defined five dimensions through which

private dwellings can be examined, and through which particular meanings are

attributed to one’s home: the physical house, objective and subjective uses of the dwelling,

domestic privacy and intimacy, private everyday life, and the place of private dwelling. These

five dimensions help us understand that the home dwelling is as broad as our life and

does not take place apart from, and regardless of, external interferences, which

permeate one’s private, everyday life. Moreover, it is the singularity of private

dwelling, in terms of how it is perceived by each dweller, which renders private

dwelling an individual’s act per se.

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Lista de figuras

Parte I – O habitar doméstico

Figura 1 Diagrama da origem etimológica da palavra “habitar”, segundo referência de Heidegger, p. 22

Parte II – Dimensões do habitar doméstico

Capítulo 1 ‐ A casa física

Figura 2 Sistema de segurança instalado no portão de edifício em São Paulo, p. 47

Capítulo 3 – Privacidade e intimidade domésticas

Figura 3 O personagem Folke (do filme “Histórias de Cozinha), em seu posto de observação, observa Izak em sua cozinha, p. 119

Figura 4 Aviso na porta do quarto de um pré-adolescente: necessidade de estar a sós, p. 123

Figura 5 Vista da fachada de loja de decoração em São Paulo, p. 131

Figura 5.1 Detalhe do cartaz: o que se vendem não são produtos, mas as sensações que eles proporcionam, p. 131

Figura 6 Exemplo de planta de apartamento lançado na década de 1980 em São Paulo trazendo o padrão tipológico setorizado (setores representados em cores diferentes), p. 135

Figura 7 Interior do trailer de Marly: cozinha, p. 136

Figura 8 Interior do trailer: sala de visitas (à frente) e quarto dos filhos (ao fundo), p. 136

Figura 9 Fundos do trailer: área de serviço, p. 136

Figura 10 Zona íntima: explicitação formal da privacidade doméstica, p. 138

Figura 11 Quarto: sobreposição de funções: dormir, vestir, trabalhar, ouvir e tocar música, ver televisão, p. 139

Figura 12 Área de serviço: intimidade não revelada a estranhos, p. 148

Capítulo 5 – O lugar do habitar doméstico

Figura 13 Cena do filme “Mon Oncle” (1958) [...], p. 180

Figura 14 Esquema apresentado por um site brasileiro de vendas de equipamentos para a instalação de “cinema em casa”, p. 210

Parte III – Casa: um lugar sagrado?

Figura 15 O habitar doméstico e a experiência do sagrado, p. 236

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Sumário

Introdução.............................................................................................................10

Parte I – O habitar doméstico................................................................................20

Parte II – Dimensões do habitar doméstico...........................................................36

Capítulo 1 ‐ A casa física................................................................................................38

Capítulo 2 ‐ Os usos objetivo e subjetivo da casa.........................................................64

Capítulo 3 – Privacidade e intimidade domésticas .....................................................104

Capítulo 4 – O cotidiano doméstico............................................................................149

Capítulo 5 – O lugar do habitar doméstico .................................................................164

Parte III – Casa: um lugar sagrado? .....................................................................230

Considerações finais............................................................................................260

Notas ...........................................................................................................................268

Referências bibliográficas e obras consultadas ..........................................................273

Apêndice – Transcrição das entrevistas......................................................................290

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Introdução

A) Gênese da questão

Antes de falar especificamente do objeto de investigação deste trabalho,

considero apropriado traçar o caminho que me conduziu a ele. A pesquisa aqui

apresentada deriva de questões inquietantes com as quais me deparei ao longo da

minha pesquisa de mestrado (Camargo, 2003)1. Na época, investiguei a evolução

tipológica dos espaços habitáveis de apartamentos de dois dormitórios lançados na

cidade de São Paulo nas décadas de 1980 e 1990, assim como as relações funcionais

estabelecidas nesses espaços domésticos. O objetivo daquela pesquisa não era a

proposição de novas soluções projetuais, mas uma avaliação diagnóstica da adequação

do desenho dos espaços habitáveis às funções de uso do habitar doméstico,

considerando, no cenário observado, as transformações dos modos de vida nas

últimas décadas do século 20, para as quais contribuíram a modificação dos grupos

familiares e o largo uso de novas tecnologias – especialmente de novas mídias – nas

funções do habitar doméstico.

Como observa Suzana Pasternak, a família mudou. Nas últimas décadas

do século 20, o habitante das metrópoles parece ter tendido a viver sozinho ou a se

agrupar em tipos familiares que diferem da família nuclear burguesa estabelecida nos

séculos 18 e 19. E as transformações dessa família privatizada passaram a criar novas

demandas de moradia (Taschner, 1997; p. 243; 253). Ou, lembrando o ponto de vista

de Manuel Castells sobre o consumo de mídia combinado ao desempenho das tarefas

domésticas, temos hoje um ambiente audiovisual com o qual interagimos constante e

1 Apresentada em março de 2003 na FAU-USP.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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automaticamente, funcionando, mesmo, como um “tecido de nossas vidas” (Castells,

2000; p. 358-359).

Diante da constatação de uma realidade doméstica em constante

transformação, outra verificação, aparentemente antagônica à primeira, veio a partir

da observação dos usos dos espaços domésticos: a apenas relativa incorporação dessa

contemporaneidade dos modos de viver ao habitar doméstico. Por um lado, as novas

configurações dos grupos familiares e os efeitos das novas tecnologias sobre o

cotidiano doméstico, que alteram, por exemplo, os padrões de sociabilidade entre os

membros do grupo doméstico e a relação público/privado, são incontestáveis.

Entretanto, em meio a essa contemporaneidade, traços de flagrante tradicionalidade

ainda fazem parte do atual habitar doméstico, sendo que o maior ou o menor grau

com que ela é incorporada ao uso dos espaços habitados, assim como à própria

percepção desses espaços, é uma questão específica de cada usuário ou grupo de

usuários.

Um exemplo disto seria o rigor formal com que ainda são tratadas as salas

de visitas de hoje. A despeito do pouco tempo deixado pela vida agitada de São Paulo

para o “receber” em casa, constatei que, na maioria dos casos observados2, as salas

permaneciam decoradas como verdadeiros cenários, montados e guardados para

serem admirados por eventuais visitantes, refletindo, assim, uma certa

tradicionalidade tanto na percepção quanto no uso desse cômodo. Como lembra

Roberto DaMatta, a respeito da casa brasileira,“o ritual de receber uma visita tinha (e

ainda tem) requintes quase barrocos, pois significa abrir o espaço da casa para um

estranho” (DaMatta, 2000; p.52).

Ao lado das “transformações” e “permanências” verificadas de forma não

uniforme nas relações do habitar doméstico – ainda que se tratando de contextos

socioeconômicos tão semelhantes, como foi o caso de minha pesquisa de mestrado –,

passou-me a ser especialmente arrebatadora a constatação da impossibilidade de se

empregar um único discurso quando se pretende analisar os usos dos espaços

domésticos ou as próprias concepções dos usuários a respeito seus espaços. Com isto,

concluí que a adequação do espaço habitado aos modos de vida ali praticados só é

verificada através das efetivas relações cotidianas que se dão no e com o espaço

habitado; ou, conforme a reflexão do Professor Celso Lamparelli, “nenhuma das 2 Como estudo de caso, tomei um edifício de apartamentos de dois dormitórios na cidade de São Paulo para investigar as relações de usos aplicadas ao espaço habitado de cada apartamento.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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soluções espaciais é totalmente adequada, pois as necessidades, expectativas e

aspirações com relação à moradia manifestam-se a partir do ato de morar”3.

B) Justificativa

A partir dos fatos observados, surgiu a reflexão de que a análise das

relações do uso do espaço doméstico deve estar conectada à observação de uma

necessidade prioritária – e sujeita a julgamentos particulares de cada usuário ou grupo

de usuários –, que é a do bem-estar doméstico; a necessidade, muitas vezes difícil de

descrever, de nos sentirmos acolhidos, abraçados, por nossas casas. Mantendo-me,

assim, na questão do habitar doméstico, proponho, aqui, enfocar as relações

estabelecidas no e com o espaço doméstico sob o ponto de vista daquele(s) que

habita(m) domesticamente um determinado lugar. Para isto, levo em consideração

tanto os aspectos concretos da relação de fisicalidade com o lugar habitado, quanto os

que envolvem questões menos objetivas e palpáveis, tais como os valores, as

influências socioculturais, as memórias e referências de domesticidade vividas no

passado, etc.: componentes aplicados individualmente, ou pelo grupo doméstico, às

suas práticas diárias do habitar doméstico.

Com isto, acrescento a consideração de Peter King, segundo a qual ao

mesmo tempo em que a questão do Hábitat deve ser tratada como um tema de

interesse social – “um bem”, em um nível coletivo –, devemos estar conscientes de

que este tema também envolve a consideração de que cada habitação encerra o

espaço no qual, individualmente, praticamos nossa privacidade, e através do qual

buscamos atingir nossos próprios objetivos. Segundo vê o autor, desconsiderar a

habitação como o local do indivíduo, por excelência, seria uma má percepção – ou a

não observação – da função existencial do habitar doméstico (King, 2003; p. 81, 82).

3 Esta reflexão advém das longas discussões sobre o tema habitar doméstico, juntamente com o professor C. Lamparelli, durante o curso de sua Disciplina AUH-5704 - Metodologia Aplicada à Arquitetura e ao Urbanismo, em 2003, na FAU-USP.

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C) Objetivo

Uma vez definido o foco a ser dado ao tema Hábitat, estabeleço como

principal objetivo desta investigação analisar a questão do habitar doméstico segundo

o modo como esse habitar é percebido e vivenciado por seus usuários. Procuro, assim,

identificar as necessidades, expectativas e aspirações que acompanham o

entendimento individual de bem-estar doméstico, assim como os mecanismos formais

e emocionais que são aplicados cotidianamente nas relações estabelecidas nos e com os

espaços privados da habitação, na busca subjetiva desse bem-estar.

Para isto, baseei minhas reflexões na análise de entrevistas e de dados

teóricos pertinentes ao tema, buscando identificar entre os aspectos universais,

socioculturais e individuais levantados ao longo desta investigação, aqueles através

dos quais se dá a atribuição dos significados particulares tanto ao espaço habitado

domesticamente, quanto ao próprio ato de habitá-lo.

É importante ressaltar que a análise que aqui proponho não tem como

objetivo estabelecer padrões definitivos para o entendimento das relações entre

moradores e suas casas. Isto porque analisar o habitar doméstico sob a ótica do

“habitante”, tendo como instrumento seus depoimentos a respeito de suas relações

com o espaço habitado, implica considerar esse habitar doméstico nos aspectos

próprios e particulares de cada entrevistado, levando-se em consideração toda e

qualquer impressão relatada por eles – sejam essas impressões baseadas em fatos reais

ou produto de sua imaginação; sejam coerentes ou contraditórias em relação às suas

atitudes como moradores.

D) Metodologia de pesquisa

Para a elaboração do processo metodológico e das etapas desta pesquisa,

tive, como principal referência, o texto do Prof. Celso Lamparelli, “Metodologia

Aplicada à Arquitetura e Urbanismo” (Lamparelli, 2000). Uma vez estabelecidas as

especificidades que definiram o objeto da pesquisa, o processo de investigação voltou-

se, inicialmente, para o levantamento dos elementos já conhecidos, segundo três

aspectos – tal como propõe Lamparelli (ibidem, p. 23): o prático da experiência –

resultado de observações empíricas e do conjunto de impressões pessoais quanto ao

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habitar doméstico; o científico – obtido com a pesquisa prévia realizada para o

Mestrado; e o da reflexão filosófica – ao retomar reflexões sobre os aspectos

anteriores, com a formulação de hipóteses a respeito do caráter de especificidade que

define o habitar doméstico – aspectos, que passariam a serem investigados na etapa

seguinte. Uma vez constatada a insuficiência de conhecimento para responder as

questões surgidas do desdobramento da problemática em torno do tema habitar

doméstico, foi desenhada uma estratégia metodológica voltada, ao mesmo tempo, ao

preenchimento sistemático das lacunas abertas na etapa anterior, e o gradual trajeto

do conhecido para o desconhecido, cujas etapas descrevo a seguir:

a) Revisão bibliográfica. Considerando que a idéia de habitar

doméstico envolve uma relação entre aspectos que se interpenetram e compartilham

significados, não há como explicitá-los e defini-los sem que se busquem os seus

referenciais teóricos específicos. Assim, nesta etapa foi feito um levantamento da

produção bibliográfica que pudesse subsidiar as questões desde o início levantadas.

b) Elaboração do quadro de referência com as questões que surgiram para iluminar a problemática. Do conjunto de questões teóricas – pertinentes ou

não ao recorte estabelecido –, foram adotadas algumas para “iluminar” a questão do

habitar doméstico proposta. É nesta etapa que, por exemplo, o conceito do habitar

universal é adotado no sentido de ter seus aspectos aplicados ao habitar doméstico.

Pressupostos teóricos como este – ou como o da casa como campo do emocional e da

subjetividade, ou ainda, da casa como local de interação entre o físico e o emocional

– serviram para indicar direções para a continuidade das investigações.

c) Coleta de dados e informações: pesquisa de campo. Com o intuito

de investigar as relações do habitar doméstico sob o prisma do morador, iniciei a

etapa de coleta de depoimentos, realizada através de entrevistas. Inicialmente, foram

feitas algumas entrevistas-piloto, com o objetivo de definir a linha de conduta das

entrevistas a serem aplicadas imediatamente a seguir. O critério de escolha das

pessoas a serem entrevistadas levou em consideração o requisito de pertencerem a

diferentes contextos econômicos, profissionais, culturais e sociais.

Como resultado das entrevistas-piloto, percebi a dificuldade com que se

obtém depoimentos a respeito de impressões subjetivas sobre o habitar doméstico;

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pois, ao se colocar “a casa”, como tema da entrevista, inevitavelmente, os

entrevistados – talvez, sugestionados pelo fato de a entrevistadora ser uma arquiteta –

passavam a falar das características físicas de suas casas. Empiricamente, observei que

ao nos vermos fisicamente afastados da nossa casa – em uma viagem, por exemplo –,

passamos a pensar nela não mais, exclusivamente, como um invólucro com estas ou

aquelas características físicas, mas como um lugar que abriga outras relações, além das

objetivas. Assim, percebi que mudar a perspectiva das narrativas, no sentido de focar

as experiências do habitar doméstico de uma posição distanciada do contexto

imediato das relações objetivas com os espaços habitados, seria uma forma de fazer

com que os entrevistados passassem a relatar impressões pessoais e subjetivas relativas

às suas experiências de habitar doméstico.

Assim, passaram a compor um grupo de vinte e um entrevistados pessoas

que, por alguma razão, estavam na iminência de deixar suas casas; ou que, por razões

profissionais, estavam constantemente hospedadas em hotéis; ou que deixaram uma

forma convencional de moradia e passaram a experimentar formas alternativas de

morar; idosos que deixaram suas casas para viver em asilos; jovens que moravam em

pensões para estudantes; ex-moradores de rua; profissionais de circo que vivem em

barracas ou em trailers. Esses entrevistados tiveram suas identidades preservadas

através de nomes fictícios.

A condução das entrevistas foi realizada de maneira a obter impressões

sobre o habitar doméstico de cada entrevistado. Cabe observar que, para a obtenção

dos depoimentos, não houve direcionamento das perguntas no sentido de serem

aplicadas especificamente a cada aspecto que me propunha a investigar. Pelas

próprias razões que justificam esta pesquisa, os entrevistados tiveram a liberdade de

falar do que, pessoalmente, lhes parecia mais relevante, em termos de sua relação com

seu habitar doméstico. Uma vez informada e aceita a proposta dos depoimentos,

deixei que os entrevistados assumissem o direcionamento do discurso, e as perguntas

propostas não foram mais do que ênfases ou estímulos a o quê já desejavam dizer.

Assim, ainda que, em algumas vezes, tivesse proposto questões, visando explorar

determinado assunto que considerava relevante, os entrevistados só as responderam

se – e na medida que – o desejaram.

Neste sentido, os depoimentos foram determinantes para a definição da

linha condutora da pesquisa, pois a maior freqüência com que alguns desses aspectos

surgiram nos depoimentos indicou sua relevância e pertinência ao objeto estudado,

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tornando-se meu critério de escolha das dimensões do habitar doméstico que

passaram a conduzir minha investigação, as quais introduzo resumidamente mais

adiante, ao descrever, no item E), o “Desenvolvimento em capítulos” deste trabalho.

d) Coleta de dados para o embasamento teórico. O acervo de

depoimentos fez surgir uma série de questões desconhecidas, as quais, consideradas

pertinentes ao objeto em questão, deram origem a “novas lacunas” a serem

preenchidas com embasamento teórico. As etapas que se seguiram foram de busca

por esse embasamento, acompanhada de consecutivas avaliações quanto à

confirmação ou o descarte de hipóteses como pertinentes à elaboração de uma linha

lógica do discurso e o conseguinte aprofundamento dos conceitos buscados

anteriormente.

e) Etapa final. Este, que é o estágio final da pesquisa, teve como foco a

elaboração do discurso final. Para isto, a passagem do “concreto focalizado” – o

habitar doméstico – para o “concreto pensado” – o modo como esse habitar é

percebido e vivenciado por seus usuários, considerado no conjunto das dimensões

investigadas – envolveu a definição operacional dos conceitos propostos, de modo a

seus atributos serem identificados e distinguidos nos objetos empíricos anteriormente

considerados (Lamparelli, ibidem; p. 30). Dito de outra forma, esta etapa consistiu da

elaboração do discurso final, por meio da aplicação apropriada dos conceitos

desenvolvidos, os quais vêm para subsidiar a análise dos dados e informações obtidos

nas entrevistas.

E) Desenvolvimento em partes

Parte I: O habitar doméstico

Antes de entrar na questão do habitar doméstico propriamente dito,

apresento aqui algumas considerações teóricas a respeito do conceito de habitar, no

sentido de ampliar o seu significado mais corriqueiro e entendê-lo como a própria

forma como estabelecemos a nossa existência no mundo. Neste sentido, inicio esta

discussão trazendo algumas notas – ainda que breves, por este não se constituir o foco

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desta pesquisa – sobre o conceito universal e humano do habitar trazido por Martin

Heidegger – “o estar dos mortais sobre a Terra”; o “permanecer instalado, em paz, em

um lugar” (Heidegger, 1971, I) –, as quais me pareceram iluminadoras para o

entendimento dos aspectos do habitar doméstico que virão a seguir.

A seguir, procuro mostrar em que sentido os aspectos conceituais do

habitar, como prática universal e essencialmente humana – e até por esta razão –,

podem ser verificados, também, nas atividades e relações cotidianas que ocorrem no

espaço privado da moradia. Para isto, proponho passarmos a trabalhar com o

conceito de habitar de Norberg-Schulz, que o vê como uma atividade que implica uma

relação significativa de identificação e pertencimento entre o ser humano e um

determinado lugar (Norberg-Schulz, 1985; p. 13). Com isto, passamos a entender o

habitar doméstico como resultado da distinção, no mundo público, de um

determinado lugar para a prática do habitar no nível do privado e do pessoal. E o

cenário onde essa prática acontece, afastada do habitar público e da intrusão de

estranhos, é a casa, ou o lar.

Parte II: Dimensões do habitar doméstico

Considerando-se a proposta de analisar a questão do habitar doméstico

segundo o modo como ele é percebido e vivenciado por seus usuários, os depoimentos

colhidos para este propósito foram determinantes para a condução da linha desta

investigação e para a maneira com que o habitar doméstico passa a ser abordado a

partir daqui. Uma vez sendo inúmeras as concepções particulares do habitar

doméstico refletidas nas escolhas, julgamentos e impressões relatados nas entrevistas,

a freqüência com que determinados aspectos foram mencionados serviu de fator

revelador da importância e pertinência de alguns deles ao objeto investigado. E foi a

maior recorrência desses aspectos nas falas dos entrevistados que definiu o critério de

escolha das cinco, entre as inúmeras dimensões do habitar doméstico mencionadas,

que passaram a compor minha investigação – sejam elas apresentadas nos seguintes

capítulos:

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Capítulo 1 – A casa física

A casa, como entidade física, é vista como o local que elegemos para nos

recolher do mundo público, para praticar o nosso habitar em segurança e

privacidade. Contudo, uma vez considerada a sua inserção nesse mundo, obtemos da

casa física não só o apoio e a proteção frente às hostilidades desse mundo, mas

também, um meio de nos tornamos familiarizados como ele, obtendo, assim, a base

de que precisamos para habitá-lo.

Capítulo 2 – Usos objetivo e subjetivo da casa

A partir das reflexões sobre a casa física, vemos que se o habitar doméstico

implica a materialidade da casa – uma vez que é exatamente a sua condição de abrigo

fisicamente palpável que precisamos para o habitar –, implica, também, a interação

dessa materialidade com aspectos da alma, do espírito, da memória, das emoções do

indivíduo; o que faz com que a casa física passe a incorporar um significado subjetivo

para aqueles que a habitam.

Capítulo 3 – Privacidade e intimidade domésticas

Procurando relacionar as questões do habitar universal com a vida privada

doméstica e os próprios sentidos de privacidade e intimidade que ela encerra,

definem-se esses conceitos, analisando-os em seus diferentes aspectos, sem deixar de

considerar os fatores históricos e culturais que podem explicar sua evolução e a

maneira como hoje se apresentam. A partir desses referenciais teóricos, estabeleço a

correspondência entre eles e os depoimentos coletados.

Capítulo 4 – O cotidiano doméstico

Mantendo-nos, ainda, na questão da vida privada doméstica, o cotidiano

praticado diariamente nessa privacidade é, por um lado, apresentado como aquela

parte de nossas vidas que não nos é marcante por nenhum motivo especial; e por

outro lado – e até por este motivo – passa a ser analisado como uma forma

importante de confiança, e fonte de estabilidade emocional, que funciona como um

meio tanto restaurador físico e emocional, quanto preparador para as próximas

incursões pela vida pública.

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Capítulo 5 – O lugar do habitar doméstico

Aqui, passo a observar a esfera do habitar doméstico, considerando-a não

como localidade que é meramente destacada do espaço geral, mas que, ao incorporar

as especificidades que lhe atribuímos ao habitá-lo, adquire, para nós, o sentido

específico de lugar. Para definir o aspecto que confere ao local habitado o sentido de

lugar, são examinadas diferentes abordagens teóricas sobre este conceito – lugar –,

buscando enfatizar as que permitem uma relação com a idéia do habitar doméstico

trazida nos depoimentos dos entrevistados.

Parte III: Casa: um lugar sagrado?

Pela análise dos dados e informações obtidos nas entrevistas, esta

amparada pelo embasamento teórico e pela aplicação dos conceitos desenvolvidos,

justifica-se uma reflexão sobre o sentido de lugar sagrado, muitas vezes atribuído ao

lugar habitado, e de como este sentido pode ser (re)definido através do próprio

habitar doméstico que ali praticamos diariamente. Aqui, são discutidas algumas

considerações sobre este sentido.

Considerações finais

Nessa seção, teço algumas considerações deixadas por esta investigação e

sugiro possibilidades de aplicação e desdobramento deste trabalho em futuras

pesquisas.

Apêndice

Nessa seção estão transcritas as íntegras das entrevistas utilizadas neste

trabalho.

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Parte I

O habitar doméstico

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Parte I

O habitar doméstico

O habitar: breves notas teóricas

Para nos aproximarmos do tema habitar doméstico, sugiro, antes, uma

investigação – ainda que breve – do próprio conceito de habitar, em seu sentido mais

amplo; que vá além de seu significado mais corriqueiro. Conforme nos fala Christian

Norberg-Schulz, estamos acostumados a definir o habitar como sendo “ter um teto

sobre nossas cabeças e um certo número de metros quadrados à nossa disposição”; ou

seja, entendemos o conceito de habitar “em termos materiais e quantitativos”

(Norberg-Schulz, 1985; p. 12). Para ampliar a visão deste conceito, recorro,

inicialmente, ao pensamento de Martin Heidegger, e sua análise da essencialidade do

conceito de habitar, identificado pelo autor como a ”maneira como os homens fazem

seu caminho desde o nascimento até a morte, sobre a Terra, sob o céu”. Este

caminhar seria “o aspecto fundamental da habitação, enquanto permanência humana

entre o céu e a terra, entre o nascimento e a morte, entre a alegria e a dor, entre a obra e

a palavra”4. Considerando este “Entre multiforme” – rico em transformações, em

aspectos diferentes – como sendo o mundo, esse mundo pode ser visto como a própria

“casa que habitam os mortais” (Heidegger, 1982)5.

4 As palavras “entre” não estão grifadas no original. 5 As referências deste parágrafo estão na conferência “Hebel – O Amigo da Casa”, pronunciada por Heidegger em 1957. In: http://www.heideggeriana.com.ar/textos/hebel.htm.

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Por entender que na medida em que respeitamos a natureza da linguagem,

será ela a nos falar da natureza das coisas6, Heidegger propõe uma reflexão

etimológica para estabelecer a relação do conceito de habitar com a idéia de construir.

Nessa análise, vemos que o termo “buan”, do antigo alemão, de onde descende o

“bauen” – construir –, significa permanecer, residir. Vemos, ainda, que estes significados

também são atribuídos ao termo “wuon”, do antigo saxão, e à palavra gótica “wunian”,

dos quais descende o “wohnen” – morar, em alemão. Heidegger dirá, no entanto, que

é o termo “Wunian” que explica mais claramente como se experimenta este

permanecer, uma vez que “Wunian” significa estar satisfeito, em paz: “ser levado à paz,

permanecer em paz”. Ao mesmo tempo, a palavra “Friede” – paz –, que tem como

origens “das Frye” e “fry”, traz em seu significado o preservar da injúria, da ameaça; o

resguardar, o cuidar (Heidegger, 1971; I)7.

Fig. 1 Diagrama da origem etimológica da palavra “habitar”, segundo referência de Heidegger.

A relação entre o habitar e o cuidar, ou preservar, também pode ser

verificada através do que nos diz Hannah Arendt, ao refletir sobre o conceito de

cultura. Arendt assinala que a origem romana deste conceito traz consigo o espírito do

6 Para Heidegger, ainda que o homem aja como moldador e dono da linguagem, é a linguagem que nos fala sobre a natureza de uma coisa, impondo-se, assim, como um mestre sobre o homem (Heidegger, 1971, I). 7 Conferência “Construir, Habitar, Pensar”, proferida por Heidegger em 1951, no Simpósio sobre o Homem e o Espaço, em Darmstadt, Alemanha, 1951.

bbuuaann

pprreesseerrvvaarr rreessgguuaarrddaarr

CCUUIIDDAARR

ppeerrmmaanneecceerr eemmPPAAZZ

ppeerrmmaanneecceerr

rreessiiddiirr

bbaauueenn ((ccoonnssttrruuiirr))

FFrriieeddee ((ppaazz))

ffrryy

ffrryyee

wwuuoonn

wwuunniiaann

wwoohhnneenn ((mmoorraarr))

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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cultivar, do habitar, do tomar conta, do criar e do preservar, estando a palavra cultura

essencialmente relacionada ao “trato [carinhoso] do homem com a natureza, [...] até

que ela se torne adequada à habitação humana”8 (Arendt, 1992; p. 265). Assim, se –

como vimos com Heidegger – o conceito de habitar se relaciona ao

ser/estar/ficar/permanecer do homem sobre a Terra, a preservação e o cuidado – que

vemos, agora, com Arendt – visam a viabilidade deste mesmo

ser/estar/ficar/permanecer.

Ainda segundo Heidegger, o verdadeiro cuidar consiste não apenas em

não prejudicar esse algo cuidado, mas em ser algo que acontece quando resguardamos

aquilo que é protegido na sua própria essência, com seus próprios valores e

princípios, e o livramos, ou libertamos, das “ameaças” contra o “estado de paz”.

Tomando os dois sentidos de construir – o construir como cuidar (em latim, colere

cultúra) e o construir como levantar edifícios (ædificare) –, Heidegger dirá que ambos

compõem o verdadeiro sentido de construir, ou seja de habitar, do “estar sobre a

Terra”; sentido que se torna explicitado pelo autor como sendo a própria experiência

vivida cotidianamente por nós; aquela que nos é habitual (Heidegger, 1971; I).

A partir destas considerações teóricas, ampliamos o conceito de habitar no

seu significado mais corriqueiro, passando a entendê-lo como a própria forma como

estabelecemos a nossa existência no mundo. Assim, o sentido do habitar que nos

servirá de meio para nos aproximarmos do tema habitar doméstico pode ser sintetizado

como a experiência cotidiana de se estar em um lugar, rodeado de proteção,

resguardado, em paz; livre, em sua essência, de qualquer ameaça contra essa paz.

O local físico do habitar e o habitar doméstico

Para passarmos dos aspectos conceituais do habitar, como prática universal

e essencialmente humana, para a análise de como esses aspectos são verificados nas

8 Arendt ressalta que é graças à concepção romana – e não grega – que o significado e o conteúdo de cultura que temos em mente ainda hoje estão relacionados ao ato de tornar a natureza um lugar habitável para as pessoas e de cuidar dos monumentos do passado. Os gregos, por sua vez, com seu espírito baseado não na preservação, mas nas artes de fabricação, “não sabiam o que é cultura, pois não cultivavam a natureza, mas, em vez disso, arrancavam do seio da Terra os frutos que os deuses haviam ocultado dos homens” (Arendt, 1992; p. 266).

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atividades e relações cotidianas que ocorrem no espaço privado da moradia,

proponho começarmos por localizar esse habitar universal; ou seja, considerá-lo como

o vê Norberg-Schulz, como uma atividade que implica uma relação significativa de

identificação e pertencimento entre o ser humano e um determinado meio. Para o

autor, o habitar tem como propriedade de sua essência “a insolúvel unidade entre

vida e lugar” (Norberg-Schulz, ibidem; p. 13).

Contudo, antes de partirmos para esta nova abordagem do habitar,

lembremos, ainda, que o próprio Heidegger traz o conceito universal do habitar do

homem – seu “caminho desde o nascimento até a morte, sobre a Terra, sob o céu” –

para o plano concreto da habitação, ao dizer que as construções que fazemos para

habitar – nossas cidades, aldeias e casas – agregam a experiência desse caminhar

(Heidegger, 1982). Com isto, podemos passar a estabelecer a relação desse habitar

como existência – do “estar-no-mundo”, dos mortais – com a experiência dessa

existência, agora, em um determinado lugar fisicamente localizado nesse mundo;

sendo que, conforme ressalta Heidegger, a segunda experiência só é possível sobre a

base dos aspectos que envolvem a primeira (Heidegger, 1927; p. 56).

Esta relação se faz no sentido de que esse habitar amplo, universal, é

constituído de “orientação” e de “identificação” em relação ao meio habitado, tal

como o vê Norberg-Schulz. Ou seja, é quando sabemos onde estamos e como estamos,

que experimentamos a existência em todos os seus significados (Norberg-Schulz,

ibidem; p. 7). O filósofo Otto F. Bollnow também chega a esta relação, partindo da

ligação entre o caráter universal do habitar humano e sua relação com um ponto

espacial específico. Colocando-nos como sujeitos de nossa experiência no espaço, o

autor proporá que, como seres viventes de forma concreta que somos – tal como nos

são dados, em função do nosso corpo, os conceitos, igualmente concretos, de acima e

abaixo, à frente e atrás, à direita e à esquerda –, tomamos esse ponto específico em que

habitamos como “ponto zero”, ou seja, como nossa referência em relação ao espaço

mais amplo em que habitamos em termos universais (Bollnow, 1969; p. 58).

Contudo, há que se estabelecer uma distinção em relação ao

entendimento desse lugar específico no espaço, a que se refere Bollnow. De um lado,

há os lugares onde permanecemos apenas temporariamente; e de outro, há, este sim,

o lugar, ou posição, constante em relação a quaisquer situações casuais – o lugar a

que “pertencemos”, como dirá o autor; do qual nos afastamos periodicamente para

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experimentar nossa existência no “mundo vasto”, e ao qual retornamos para

reencontrar a referência espacial a que estamos enraizados, numa alternância que o

autor chamaria de “dinâmica fundamental da vida humana”. Enfim, é a esse lugar

específico no espaço que Bollnow se refere quando diz que o homem não pode viver

apenas em mundo vasto, pois “perderia todo o apoio”. Segundo o autor, é mediante

“um centro de tal índole” que o homem se torna enraizado no espaço (Bollnow,

ibidem; p. 58-59, 117).

Voltemo-nos, ainda, à idéia do habitar, como o nosso caminhar diário, de

que nos falava Heidegger. Segundo vê Norberg-Schulz, é justamente esse fato de

estarmos “sempre a caminho” que nos possibilita escolher tanto um lugar, quanto um

determinado tipo de companhia para nós. E é ao nos assentarmos em determinado

lugar, que nos encontramos a nós próprios, estabelecendo, assim, nosso próprio estar-

no-mundo. A partir destas considerações, o autor dirá que há quatro modos de habitar,

interrelacionados em seus aspectos essenciais: o habitar natural, o habitar coletivo, o

habitar público e o habitar privado (Norberg-Schulz, ibidem; p. 13)9.

O primeiro modo de habitar descrito por Norberg-Schulz, o habitar natural,

seria aquele que implica a “domesticação” do meio natural onde se dá esse habitar.

Ainda que hoje em dia sejam raras as ocasiões em que o homem passe a viver em um

meio ambiente que já não tenha sido previamente “construído”, o autor argumenta

que mesmo um lugar que “já existe” também deve ser entendido em termos do

desbravamento, ou seja, no sentido de que ainda há a questão original da busca por

uma base sólida em um determinado meio para se avançar, com segurança,

desbravando outros meios.

Os outros modos de habitar ocorreriam quando estivesse superada a fase

do “desbravamento” do meio onde nos instalamos. Viriam, então, as formas básicas

de relacionamento humano. O meio no qual, então, nos instalamos passa a funcionar

como uma espécie de local de intercâmbio, tanto de produtos, quanto de idéias ou

sentimentos. Norberg-Schulz lembra-nos que, desde os tempos antigos, o espaço

urbano tem sido o palco dos “encontros dos homens”, sendo que “encontros” não

significam, necessariamente, “acordos”, mas, sim, o contato entre seres humanos,

envolvendo toda a diversidade pertinente a esses homens. Assim, o espaço urbano

seria “essencialmente, um lugar de descobertas, uma miríade de possibilidades”. Nele,

9 A descrição dos quatro modos de habitar, a seguir, consta de Norberg-Schulz, ibidem; p. 13.

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“o homem ‘habita’, no sentido de experimentar a riqueza do mundo”. Este segundo

modo de habitar seria o habitar coletivo.

Mas, o nosso “estar sempre a caminho” implica a condição, dentro da

imensa variedade de possibilidades que temos no meio coletivo, de fazermos certas

escolhas. E, quando essas escolhas são feitas de forma a atender determinados

padrões de acordos estabelecidos, experimentamos uma forma mais estruturada de se

estar junto a alguém do que um mero encontro. Neste caso, estaríamos falando, de

fato, de “acordos”, os quais implicariam interesses ou valores em comum. E para que

um acordo possa acontecer, como assinala o autor, há que haver um lugar – um lugar

no qual os valores comuns possam ser acolhidos e expressados. Tal lugar pode ser,

geralmente, reconhecido em uma instituição ou um edifício público; e o modo de

habitar para o qual ele serve pode ser chamado de habitar público – no sentido de se

referir a algo partilhado pela comunidade.

No entanto, considerando que escolhas também são de natureza pessoal, e

que a vida de cada pessoa tem seu curso particular, Norberg-Schulz leva-nos a concluir

que o habitar também compreende a escolha de um “pequeno mundo” para nós

mesmos, para onde nos retiramos e onde experimentamos o recolhimento de que

necessitamos para o desenvolvimento de nossa própria identidade. Assim, o autor

passa a falar do habitar privado, referindo-se àquelas ações que ocorrem nesse nosso

“pequeno mundo”, afastadas do convívio social e da intrusão de estranhos. E o

cenário onde esse habitar privado tem lugar é a casa – ou o lar –, onde

experimentamos a chamada “paz doméstica”, e onde reunimos e expressamos as

memórias que constituem nosso “mundo pessoal” (Norberg-Schulz, ibidem; p. 13, 91).

Desta forma, passamos ver o habitar, que vimos definido mais amplamente

por Heidegger como prática universal e essencialmente humana, relacionado à noção

trazida por Bollnow, da existência de um ponto de referência fixo que nos apóia em

nossa existência no mundo, com o qual estabelecemos uma relação de

pertencimento, e ao sentido que Norberg-Schulz dá a esse ponto, como sendo o nosso

“pequeno mundo”, designado por nós para ser o lugar aonde nos retiramos e onde,

recolhidos e em paz, nos desenvolvemos como indivíduos (Norberg-Schulz, ibidem; p.

7, 13).

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O habitar doméstico e o preservar da vida interior

Conforme vimos, a passagem da abordagem do conceito de habitar amplo

e essencialmente humano para o habitar privado – ou habitar doméstico, como passarei a

chamá-lo – dá-se no sentido de que, ao mesmo tempo em que, como seres humanos

inseridos no mundo, habitamos natural, coletiva e publicamente, também habitamos

em nosso espaço físico pessoal e privado. É na privacidade nesse âmbito físico,

recortado do vasto mundo exterior, que nos recolhemos para nos preservarmos e

desenvolvermos como indivíduos.

Neste momento, lembremos da relação estabelecida por Heidegger entre o

habitar e o cuidar, quando afirma que “o caráter fundamental do habitar é esse

cuidar e preservar” algo na sua própria essência, livrando-o das “ameaças” contra o

“estado de paz” (Heidegger, 1971, I). Contudo – e, de certa forma, contrapondo-se a

este entendimento autêntico do preservar –, isto não significa que passamos a

considerar o habitar doméstico como uma prática à parte em relação ao meio em que

nos inserimos como habitantes, ou seja, algo que se dá de forma estanque e

independentemente das condições encontradas do mundo exterior. Ao contrário, o

fato de o homem designar, dentro do mundo em que está inserido como habitante

(onde habita natural, coletiva e publicamente), um local para se recolher e habitar

privadamente implica uma relação espacial desse meio com seu habitar doméstico;

sendo que esse habitar doméstico não ocorre, senão de acordo com as condições do

meio em que está inserido. Esta relação, assim como o significado do habitar privado

como lugar de recolhimento para o indivíduo, podem ser percebidos através das

palavras de Norberg-Schulz:

“Para participar do mundo em que estamos inseridos, temos que deixar nossas

casas físicas e, no mundo, escolher um caminho. Uma vez cumprida nossa tarefa

social, nós nos recolhemos de volta em nossas casas para recuperarmos nossa

identidade pessoal. A identidade pessoal é, portanto, um componente do habitar doméstico.” (Norberg-Schulz, ibidem; p. 89).

É neste sentido que o habitar doméstico não deve ser pensado sem que

consideremos a conexão entre a vida que se dá no mundo exterior e a vida que

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buscamos preservar desse mundo, no nosso mundo privado e pessoal do habitar

doméstico.

Neste sentido, nos são úteis algumas reflexões de Alceu Amoroso Lima

(1955) e Marshall Berman (1987) que, ao mesmo tempo em que falam da

contribuição do mundo exterior à constituição da nossa vida privada – aquela que

partilhamos cotidianamente com quem queremos, e que buscamos preservar em

nossos ambientes domésticos – falam, também, da importância da preservação da

vida interior em relação aos modos de habitar coletivo e público.

Ao afirmar que nossa vida interior não é o pólo oposto ao mundo

exterior, mas a própria vida exterior – contudo, “transfigurada, transcendentalizada,

colocada no plano dos valores supremos, impregnada de eternidade” –, Amoroso

Lima dirá que é o mundo exterior que existe para o mundo interior, e não o

contrário. Contudo, o autor considera imprescindível estabelecermos a distinção

entre a vida social e a vida interior – nossa “vida pessoal” –, esta que tampouco seria

“um refúgio dos mutilados ou dos impotentes”, mas, sim, o ápice de tudo o que

pudemos receber da vida exterior, da vida psicológica e da vida social: “um

aperfeiçoamento, não uma evasão, ou uma mutilação” (Amoroso Lima, ibidem; p. 17,

58). No entanto, dirá o autor, a esfera pública, tanto no âmbito das coisas, quanto

das relações sociais, só tem essa qualidade de proporcionar o desenvolvimento de

nossa vida interior, na medida em que não perdemos o controle sobre a vida social.

Pois, se a deixamos transbordar de suas “margens naturais” e passamos a ser “escravos

de seus encantos ou de sua força”, a vida social deixa de ser um mecanismo para

nosso aperfeiçoamento e passa a tolher-nos a vida interior, a absorver-nos e a dominar

nossos hábitos. Por subverter a hierarquia natural dos valores, este processo

representaria, enfim, uma ameaça à própria vida interior (Amoroso Lima, ibidem; p.

58, 59). Assim, é essa vida interior, à qual Amoroso Lima se refere como composta de

valores perenes, essenciais, “sobrenaturais” (Amoroso Lima, ibidem; p. 17, 18) –, que

buscamos preservar na intimidade privada do nosso espaço doméstico.

Berman, por sua vez, em seu amplo painel sobre a modernidade, também

estabelece a conexão entre nossa vida interior e o mundo exterior, enfatizando o

poder da esfera pública de ingerir-se na esfera privada. Para o autor, o ambiente da

modernização, com suas tendências econômicas e sociais, exercem incessantemente

uma força transformadora – para o bem ou para o mal – tanto sobre o mundo que

nos rodeia, quanto sobre "as vidas interiores dos homens e das mulheres que ocupam

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esse mundo e o fazem caminhar” (Berman, ibidem; p. 330). Segundo Berman, se, por

um lado, esse processo de modernização é algo que nos “explora e atormenta”, por

outro, ele “nos impele a aprender e a enfrentar o mundo [de ‘incertezas e agitações

constantes’] que a modernização constrói, e a lutar por torná-lo o nosso mundo”:

para que nele não apenas possamos sobreviver, mas, de fato, nos sentir em casa

(Berman, ibidem; p. 94; 330).

Contudo, ao concluir sua análise, Berman aponta para os perigos da

avidez com que as transformações do contexto desse mundo moderno em que nos

inserimos penetram na esfera privada do habitar, assim como para a necessidade de

preservarmos a vida que vivemos na intimidade do ambiente doméstico. Ao se referir

aos “que são mais felizes na tranqüilidade doméstica” como aqueles que, “talvez”,

sejam os mais vulneráveis aos demônios que acediam esse mundo”, o autor dirá da

necessidade de nos esforçarmos desesperada e heroicamente para que essa vida

privada – “infinitamente bela e festiva, mas também infinitamente frágil e precária” –

seja preservada; ainda que nossa tentativa possa vir a falhar (Berman, ibidem; p. 330,

14).

Em sua entrevista, Márcio, 41 anos, diretor de teatro, contou‐me que, ao deixar

Curitiba, sua cidade natal, em busca das excitantes possibilidades do mundo cultural

da cidade de São Paulo, que julgou ser onde estaria seu futuro profissional, deparou‐

se com a força do espaço público da metrópole, tanto para influir no seu

enriquecimento pessoal, quanto para o absorvê‐lo, a ponto de sufocá‐lo. Contou‐me

que o alívio da opressão que o mundo público exercia sobre sua vida interior se deu,

justamente, através da busca pelo “equivalente” ao habitar doméstico que deixara

em Curitiba. Só então, pôde voltar a experimentar o perceber‐se e construir‐se, como

indivíduo:

“A dificuldade, ao me mudar pra São Paulo, foi justamente que se o espaço público era infinitamente mais estimulante pra minha construção pessoal, pra invenção de mim mesmo, a falta do espaço privado quase me matou... Mesmo! Demorei muito tempo para resgatar algo que, no Paraná, eu nem percebia que tinha; algo preciosíssimo, que é o senso de poder crescer num espaço. Porque eu sinto que tem uma coisa da gente se construir no espaço em que mora... [...] o espaço público das ruas engarrafadas, lugares deteriorados, urbe que não flui, começou a deixar de ser um estímulo e passou a me oprimir. Depois de morar em

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dois ou três lugares diferentes, literalmente, fui em busca do equivalente ao meu apartamento em Curitiba, que por sua vez era o equivalente ao apartamento onde eu tinha passado a adolescência – espaço que foi o primeiro que permitiu essa construção [...]” (Márcio)

O habitar doméstico como uma micro‐cultura

Partindo das reflexões acima, retomo especialmente a consideração de

Norberg-Schulz, que vê o habitar doméstico como um processo que envolve escolhas

de natureza pessoal e particular, constituindo, assim, o “pequeno mundo” privado do

indivíduo ou grupo de indivíduos que o constituem. Considerando-se que cada

habitar doméstico tem, como resultado do conjunto de valores e padrões de

comportamento desse(s) indivíduo(s), um caráter também particular e específico,

proponho considerar o conjunto das relações estabelecidas no e com o habitar

doméstico como uma espécie de micro-cultura – proposta que passo a esclarecer a

seguir:

Comecemos por examinar a relação feita por Amos Rapoport (1969) entre

o conceito de “necessidades básicas” e as questões formais e culturais da moradia.

Rapoport dirá que quase todas essas necessidades, ou a maior parte delas, envolvem

julgamentos de valores e, portanto, escolhas – sendo, assim, de natureza cultural10.

Assim, as decisões/escolhas – sejam elas formais ou funcionais – com relação à

moradia estariam submetidas ao contexto cultural de quem as define e sujeitas à

definição do que essas culturas consideram como principal componente de uma visão

de mundo. Se, por um lado, cada contexto cultural específico poderá destacar um

determinado aspecto – como, por exemplo, o conforto, ou utilidade, ou religião, etc.

– como principal componente de sua visão de mundo, e as decisões/escolhas, então

realizadas, estarão submetidas a essas visões, por outro lado, cabe ressaltar que até

mesmo a definição de conceitos que consideramos corriqueiros e familiares, como,

por exemplo, o de utilidade ou de conforto, será menos óbvia do que se supõe – não

10 Rapoport esclarece, em nota, que o conceito de necessidades básicas, desenvolvido por ele e usado neste livro, encontra posição similar em Lefèbvre, La Terre et L’évolution Humaine (Paris: La Renaissance du Livre, 1922; p. 287 ff). (Rapoport, ibidem; p. 60).

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apenas na idéia que se faz do que é confortável (ou útil), mas mesmo na busca expressa

por essas sensações (Rapoport, ibidem; p. 60-62).

Buscando definir a experiência do conforto, por exemplo, Witold

Rybczynski pondera que se o conforto fosse algo objetivo, deveria-nos ser possível

medi-lo – o que é, segundo ele, mais difícil do que parece. Pois “é mais fácil saber

quando sentimos conforto, do que por quê” (Rybczynski, 1996; p. 230).

Considerando o contexto cultural como influenciador das escolhas e

decisões que envolvem as questões formais e funcionais do espaço do habitar

doméstico, assim como o modo como esse habitar é percebido e vivenciado por

aqueles que ali habitam, cabe justificar a proposta feita anteriormente – de considerar

o contexto das relações do habitar doméstico como uma espécie de micro-cultura –, o

que procuro fazer, agora, através de algumas reflexões teóricas sobre o próprio

conceito de cultura. O sociólogo David Chaneyi observa que cultura não é um termo

neutro, ou auto-evidente, mas que, sim, foi desenvolvido através de uma grande

sobreposição de reflexões teóricas, levantamentos descritivos e relatórios

etnográficos11; passou a fazer parte da teoria social, mas também a ser aceito no

discurso acadêmico como um recurso para o entendimento das diferenças e

transformações nos modos de vida, tornando-se uma das principais bases conceituais

do pensamento social da era moderna (Chaney, 2002; p. 7-8).

O conceito de cultura, ainda conforme Chaney, refere-se ao fato de haver

maneiras distintas de se fazerem determinadas coisas – como se realiza um

determinado trabalho manual, como se cozinha e como se come, o que se espera do

comportamento das crianças, etc.: maneiras estas que, normalmente imbuídas de

força moral12, geralmente mantidas através de tradições e reproduzidas ao longo de

gerações, caracterizam um determinado grupo social e constituem o elemento central

da identidade desse grupo. Representando um grau de vida em grupo que precede, e

é mais fundamental, que a própria experiência individual (Chaney, ibidem; p. 8).

11 Em um estudo clássico sobre a cultura, Kroeber & Kluckhohn (1952) encontraram 164 definições para cultura dentro da literatura antropológica e social. Após esse trabalho ter sido lançado, muitas outras definições foram formuladas, sendo que ainda não há um consenso, afirma Richard Seel (2000). 12 O termo “moral”, aqui utilizado por Chaney, é entendido como o “conjunto das regras, preceitos etc. característicos de determinado grupo social que os estabelece e defende” (segundo definição do Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, 2001).

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Segundo definição da UNESCO, “Cultura pode ser considerada como o

variado conjunto de características espirituais, materiais, intelectuais e emocionais de

uma sociedade ou grupo social, e que engloba, além de arte e literatura, estilos de

vida, modos de convivência, sistema de valores, tradições e crenças.”13

Segundo o antropólogo Clifford Geertzii, cultura representa “um sistema

de concepções herdadas, expressas de forma simbólica, através das quais as pessoas

comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento sobre a vida, assim como

suas atitudes perante ela” (Geertz, 1973; Apud Coolen and Ozaki, 2004). E para o

geógrafo Milton Santos, além de ser a herança dessas relações profundas entre o

homem e o seu meio, cultura é, também, “um reaprendizado” dessas relações, a

forma de comunicação do indivíduo e do grupo com o universo (Santos, 2004; p.

326). Na mesma direção de Santos, a antropóloga Mary Douglasiii vê cultura como

algo que não é estático, mas criado, afirmado e expresso constantemente (Douglas,

1985; Apud Seel, 2000; p. 3). E, ainda, reafirmando o critério de entendimento de

cultura como uma constante atualização de padrões das relações entre as pessoas e o

meio em que habitam, a antropóloga Eunice Ribeiro Durham também se refere à

cultura como o contínuo processo de "criação, transmissão e reformulação” do

ambiente habitado pelo homem – ambiente este, que é artificialmente elaborado, e

que está em constante transformação (Apud Homem, 1996; p. 17)14.

Para Henny Coolen e Ritsuko Ozakiiv, ainda que não possa ser observada,

a cultura é percebida através de manifestações tanto “latentes” quanto “explícitas”.

Sendo um sistema de significados compartilhados, ela cria valores e normas, os quais

são incorporados às atividades cotidianas – o que pode, parcialmente, justificar as

ações das pessoas, suas escolhas e julgamentos em relação ao habitar doméstico,

como, por exemplo, preferências por determinadas características em suas casas, ou a

opção por usar o espaço doméstico de determinada maneira (Coolen e Ozaki, 2004).

Ainda que não haja uma verdade única sobre a definição de cultura, pode-

se elaborar, aqui, um entendimento substanciado a partir de idéias-chave contidas nas

reflexões acima. Assim, apreende-se o termo cultura como um conjunto partilhado de

valores e padrões de comunicação entre indivíduos de um determinado grupo, assim 13 Definição a que se chegou na Conferência Mundial sobre Políticas Culturais (MONDIACLUT), ocorrida na Cidade do México (26/jul-6/out/1982). In: http://www.jura.ch/acju/Departements/DED/OCC/Documents/pdf/Unesco.pdf. 14 Maria C. N. Homem (1996) refere-se ao “Texto II”, de Eunice Ribeiro Durham, citado por Antônio Augusto Arantes (1984).

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como de entendimento desse grupo em relação ao seu meio. Preservados e

transmitidos ao longo do tempo, esses valores e padrões estão em contínuo processo

de criação e reformulação, através das relações cotidianas estabelecidas entre os

indivíduos desse grupo.

Volto, agora, à consideração inicial, de que cada habitar doméstico tem,

como resultado do conjunto de valores e padrões de comportamento do(s)

indivíduo(s) que o constitui(em), um caráter também particular e específico. Esse

conjunto de valores e padrões de comportamento, aplicado à prática do cotidiano

doméstico, ao mesmo tempo em que norteia as escolhas formais e funcionais desse(s)

indivíduo(s) em relação ao seu espaço doméstico, particulariza e especifica as relações

estabelecidas por eles nesse e com esse espaço. É por considerar que essas

especificidades passam a servir de meio de identificação do indivíduo, ou grupo de

indivíduos, com seu habitar doméstico e a propiciar a forma como esse habitar é

percebido e vivenciado por eles, que passo a considerar o contexto das relações do

habitar doméstico como uma espécie de micro-cultura.

E aqui retomo o fato característico e significante da cultura apontado por

Rapoport, que é a escolha, ou a solução específica para determinadas necessidades.

Segundo a análise do autor, se aceitamos que o abrigo é uma necessidade básica – “e

até isso pode ser questionado”, dirá –, então, a “forma da casa depende de como

‘abrigo’, ‘moradia’, e ‘necessidade’ são definidos pelo grupo usuário”. Essa definição

reflete-se em diferentes interpretações dadas a conceitos como o de “lar”,

“privacidade”, “territorialidade”, etc. Da mesma maneira, se aceitamos, como

necessidade básica, a proteção contra as intempéries e ameaças humanas ou animais,

a maneira como esta proteção é atingida sairá de uma gama de escolhas, limitadas por

fatores físicos, psicológicos e culturais. Esta impossibilidade de generalização do

modo como as pessoas procuram atender às suas necessidades em relação ao habitar

doméstico significa que os mesmos objetivos podem ser atingidos de muitas maneiras

diferentes; e que o modo como as coisas são feitas poderá ser mais importante do que

o quê se faz (Rapoport, 1969; p.60-61).

Sob a ótica destas considerações, pode-se verificar o fato de que espaços

domésticos, ainda que inseridos em contextos socioeconômicos bem semelhantes,

poderão expressar, através de seu habitar doméstico, inúmeros modos de viver,

surpreendentemente particulares e distintos. Isto pode ser observado em um edifício

habitacional multifamiliar, onde, na maioria das vezes, as unidades habitacionais são

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projetadas com intenções arquitetônicas semelhantes, se não idênticas (Camargo,

2003; p. 78-95). Ainda que se trate de grupos usuários inseridos em faixas de renda

relativamente equivalentes, e que esses grupos partilhem não só o mesmo bairro, mas

a mesma tipologia de habitação, suas particulares escolhas e julgamentos, resultados

de valores e significados específicos de cada grupo usuário, especificam a linguagem

estandartizada de seus apartamentos, convertendo o que era padrão em um mundo

particular, diferenciado e único.

Como bem observa Yi-Fu Tuan, mais útil do que entendermos a casa

como local natural ou físico, ou mesmo como um ambiente físico pura e

simplesmente construído, devemos começar pelo conceito de que “[casa] é uma

unidade de espaço organizada mentalmente e materialmente para satisfazer as – tanto

reais quanto percebidas – necessidades básicas biosociais das pessoas e, além disso,

suas mais altas aspirações político-estéticas” (Tuan, 1991; p. 102. Apud Cresswell,

2004; p. 109). E, ainda, para David Morleyv, a função e o significado da casa variarão

em função do contexto em que esse habitar estiver inserido (Morley, 2000; p. 29).

Partindo-se dos argumentos de Tuan e Morley, pode-se associar a idéia do

habitar doméstico enquanto micro-cultura ao exemplo específico, trazido por este

último, de ser uma função da casa a de “local de resistência”, no caso de o habitar

doméstico estar inserido em um meio (público e coletivo) socialmente hostil. Tal

como descreve Bell Hooks, diante da condição dos negros, como habitantes de uma

sociedade que mantém posturas racistas15, a construção de um habitar doméstico

“autônomo”, em termos de sua cultura negra – um “black home” –, é “crucial para o

desenvolvimento de qualquer ‘comunidade de resistência’ mais abrangente”. Embora

frágeis ou pouco substanciais (ainda que seja uma cabana rústica ou um barraco),

observa a autora, esses espaços privados têm uma dimensão política, no sentido de

serem o lugar onde, historicamente, seus habitantes sempre puderam afirmar-se e

apoiar-se uns aos outros, restaurando, pois, sua dignidade danificada no mundo

exterior (Hooks, 1990; p. 47; Apud Morley, 2000; p. 29).

...

15 Especificamente, a autora refere-se à condição discriminatória experimentada pela população negra nos Estados Unidos.

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Antes de considerar concluída a especificação do habitar doméstico em

relação ao habitar universal, considero importante deixar ressaltados três aspectos do

habitar doméstico que puderam ser inferidos das considerações vistas neste capítulo.

Primeiro, o fato de que este modo de habitar é algo tão amplo quanto a própria

existência do indivíduo. Isto, no sentido de que ele não se dá isoladamente, ou

independente das interferências do mundo mais vasto em que nos inserimos como

seres mortais – as quais não apenas permeiam nossa esfera doméstica, mas se tornam

parte de nossa vida cotidiana privada, muitas vezes enriquecendo-a e aprimorando-a,

muitas vezes oprimindo-a e sufocando-a. Segundo, que é justamente o caráter de

“entidade privada” do habitar doméstico, de cujo respaldo nos valemos para a

preservação de nossa vida interior, que legitima este modo de habitar como o habitar

do indivíduo per se. E terceiro, o que leva em conta o caráter da particularidade do

habitar doméstico – e o fato que daí decorre –, de que esse habitar pode ter muitos,

quase que incontáveis, significados particulares para cada indivíduo (ou grupo de

indivíduos) que habita domesticamente.

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Parte II

Dimensões do habitar doméstico

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Parte II

Dimensões do habitar doméstico

A partir do que vimos a respeito do habitar doméstico, partamos para a

proposta feita, inicialmente, para este trabalho, ou seja, analisar o habitar doméstico

segundo o modo como ele é percebido e vivenciado por seus usuários: proposta que

leva em consideração o fato de o habitar doméstico ser uma prática que, sim, está

inserida em um determinado contexto sociocultural; contudo, que porta os

significados particulares da “micro-cultura” que ele próprio encerra. Considerando a

importância dos depoimentos registrados para a maneira com que essa análise passa a

ser conduzida – isto, pelo fato de as impressões, opiniões e escolhas presentes nas

falas dos entrevistados representarem suas concepções particulares, ou do próprio

grupo doméstico a quem pertencem, a respeito do habitar doméstico –, foi a maior

recorrência com que determinados aspectos foram mencionados nessas entrevistas

que serviu como fator revelador de sua relevância e pertinência ao objeto investigado,

definindo, assim, o critério de escolha das cinco, entre as inúmeras dimensões do

habitar doméstico, as quais passo a abordar a seguir: a casa física, os usos objetivo e

subjetivo da casa, privacidade e intimidade domésticas, o cotidiano doméstico e o lugar do

habitar doméstico.

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Capítulo 1 ‐ A casa física

“O coração que tem fé não gosta de vagar sem uma moradia. Ele necessita de um ponto fixo para onde retornar, ele quer uma casa de verdade.” (Vesaas, 1971. Apud Norberg-Schulz, 1985, p. 12)

Na parte anterior, procurei conectar o habitar, como prática universal e

essencialmente humana, à relação específica e significativa de identificação que

estabelecemos com o meio em que o praticamos. Ao tratar esse meio como um ponto

de referência física em relação ao mundo vasto – mundo este, que habitamos em um

sentido amplo e universal –, cheguei especificamente ao lugar que, em nosso errar

pela Terra, designamos como nosso “pequeno mundo” (Norberg-Schulz, ibidem; p. 13

e Bollnow, 1969; p. 58), para onde nos recolhemos para praticar um modo de habitar

que se caracteriza por seu caráter individual e privado – o nosso habitar doméstico.

Passemos, agora, a analisar em que sentido nós nos servimos da

instrumentalidade desse lugar como propiciadora do nosso habitar doméstico.

Comecemos por considerar a observação de Otto F. Bollnow, segundo a qual, para

que possamos viver “com sossego” nesse “lugar fixo no espaço” e que, de fato,

experimentemos o pertencimento e o enraizamento a esse lugar, ele não deve ser

compreendido como um “simples ponto”, de onde meramente partem nossos

caminhos para o mundo. Será preciso que ele possua uma “extensão” por onde

possamos nos mover “livres e despreocupados”, e onde possamos encontrar apoio

firme, segurança e paz. Relacionando Saint-Exupéry (1948) – “são necessários muros

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sólidos de contenção, sem os quais não se pode viver”16– e Heidegger17 – “a paz […]

em que se vive está relacionada com o entorno do domínio do habitado” – Bollnow

concluirá que para habitar em paz, tornam-se imprescindíveis “o teto e os muros

protetores”, através de cuja presença um mero local de abrigo torna-se casa, em seu

“sentido autêntico” (Bollnow, ibidem; p. 121-122).

Na mesma direção de Bollnow, atribuindo o caráter da materialidade ao

lugar do habitar doméstico, Christian Norberg-Schulz dirá que esse habitar tem suas

condições satisfeitas pelo espaço organizado e pela forma construída – os quais,

juntos, constituem o lugar concreto do habitar. Por meio das funções arquitetônicas

desse lugar – a casa construída – estabelecemos com ele uma relação de

“incorporação” e “admissão” do nosso habitar. Ou seja, o meio físico que habitamos

passa tanto a incorporar os significados que lhe atribuímos através de nossas ações

diárias, quanto a permitir que essas ações, de fato, aconteçam em seu espaço

(Norberg-Schulz, ibidem; 7, 15, 25).

Também David Chaney refere-se a esse espaço concreto como propiciador

e provedor do modo como se dão as relações cotidianas do habitar do homem. Para o

autor, o habitar doméstico implica um espaço concreto; sendo que a forma física com

que esse espaço é estruturado representa “literalmente, a forma do habitar doméstico

ali praticado”, em termos de códigos de usos e funções desse espaço, atribuições de

significados e valores partilhados por seus habitantes, etc. (Chaney, 2002; p. 74-75).

Assim, como continuação natural do que vimos na Parte I, nesta primeira

dimensão do habitar doméstico a ser abordada – a casa física –, passo a enfocar o

habitar doméstico como algo materializado e localizado no espaço físico da casa; sendo

que a investigação que proponho aqui, terá o sentido não de especificar a natureza

física desse espaço – segundo as contingências arquitetônicas que envolvem este tema

–, mas de entendê-la como o “âmbito espacial”18 do habitar doméstico: seja ela uma

casa convencional, um apartamento na cidade, um flat, um asilo para idosos, um

trailer, ou até mesmo uma tenda de circo.

Antes, porém, cabe um esclarecimento quanto ao termo “casa”, que

passarei a utilizar a partir de agora. O Professor Celso Lamparelli costuma definir

16 Apud Bollnow (ibidem; p. 121). 17 Em “Construir, Habitar, Pensar” (1971). 18 Expressão usada por Bollnow (ibidem; p. 121).

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claramente os termos casa, moradia e habitação19: “casa é o objeto material construído,

com características físicas e localização próprias”; “moradia é a casa habitada, onde se

exercem as potencialidades da casa e se recebem as contribuições dos moradores; é

insuficiente com relação à infra-estrutura externa (água, eletricidade, etc.)”. Já na

habitação, há “o extravasamento das interações da moradia”, envolvendo o contexto

externo, como a vizinhança, escolas, clubes, mercados, etc.: é o “meio que ‘aceita’ a

relação dos moradores e interage com eles”. No caso desta pesquisa, em que investigo

as impressões particulares de indivíduos sobre seu habitar doméstico, verifiquei, nas

entrevistas realizadas, que quando as pessoas pretendem se referir ao espaço físico no

qual se dão as relações privadas desse habitar – sejam elas físicas ou emocionais –, a

palavra corriqueiramente usada é “casa”: “lá, em casa...”; “casa, pra mim, é...”, etc.

A palavra “casa”, no contexto que envolve não apenas a sua condição de

matéria física, mas a percepção subjetiva advinda da experiência de habitá-la,

encerraria a conotação de “lar”, no sentido que damos a esta palavra na Língua

Portuguesa. A etimologia ajuda-nos a entender a relação dos sentidos das palavras

casa e lar:

Lar do Latim lar,aris. m.: Casa, interior da casa, chaminé, fogão. Lara, ae. f.:

ninfa, mãe dos lares ou deuses da casa (Cretella e Cintra, 1953)

Casa do Latim casa,ae. f.: choupana (ibidem)

A palavra casa passou a ser utilizada e difundida pelo latim vulgar com o

significado de morada, ao invés da palavra domus, us, que tem o mesmo significado, no

Latim clássico20

Diferentemente do que ocorre em outras línguas, nas quais tanto

coloquialmente quanto academicamente se estabelece a distinção entre as idéias de

casa física e lar, por alguma razão, na Língua Portuguesa, optamos por nos referir ao

nosso lar, usando a palavra casa. Ao longo de minha pesquisa, encontrei

freqüentemente, na literatura de Língua Inglesa, a distinção entre as palavras

“residence” ou “house”, para designar “casa”, no sentido da edificação concreta, e

19 Estas definições foram discutidas em sala de aula, quando do curso da disciplina “AUH-5704 – Metodologia Aplicada à Arquitetura e ao Urbanismo”, ministrada na FAU-USP, pelo Professor Celso Lamparelli, no segundo semestre de 2003. 20 Fonte: Museu da Língua Portuguesa, São Paulo, 2007.

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“home”, referindo-se ao conceito de “lar”, a moradia percebida subjetivamente. Robert

Giffordvi, especialista em psicologia ambiental, afirma (em inglês) que o conceito de

casa [home] é tão diferente do de residência [residence], que é possível que algumas

pessoas nem vivam, de fato, em casas, embora sempre tenham vivido em suas

residências. E com isto, afirma: “casa é realmente onde está o coração” (Gifford,

1997; p. 196).

“A house is not a home.”21 (Gifford, ibidem; p. 194)

Assim, ainda que pecando por não empregar o termo academicamente

mais adequado, mas visando a coerência com a proposta deste trabalho, de investigar

as impressões particulares de indivíduos sobre seu habitar doméstico, optei por

utilizar a palavra casa, querendo, com isto, aproximar-me da definição de Lamparelli

para habitação, mas, ao mesmo tempo, enfatizar o contexto particular e emocional

com que utilizamos esta palavra quando nos referirmos ao espaço onde praticamos

nosso habitar doméstico.

Em sua entrevista, Marly, 46 anos, proprietária de circo, explicita os sentidos tanto de

referência física, quando de apoio psicológico, encontrados no recolhimento do seu habitar

doméstico, praticado como sua família em seu trailer – sua “casa”. Esta descrição contrasta

com a da casa que comprou apenas como investimento, ou a do apartamento que pretende

ter como apoio em suas periódicas estadias em São Paulo: a esses dois espaços, diferente do

que sente em relação ao seu trailer, Marly não atribui o significado de lugar elegido como seu

“pequeno mundo” (para usar o termo de Norberg‐Schulz):

“A sensação que você tem, quando você não tem o trailer, é que você perde o referencial. Já aconteceu algumas vezes, de ter algum acidente com o trailer, ou você precisar fazer uma manutenção, ter que levar pra fábrica, ficar de uma a três semanas sem o trailer... é horrível, você perde seu chão, é uma coisa muito engraçada... Eu imagino as pessoas que têm suas casas alagadas por um temporal, têm a mesma sensação22. Porque você pode ir aonde for na

21 “Um casa não é um lar”. 22 No momento desta entrevista, havia uma comoção mundial em torno da tragédia causada pelo Furacão Katrina, no litoral do sul dos Estados Unidos (em 29 de agosto de 2005). Na região metropolitana de New Orleans, cidade mais afetada pelo furacão, como conseqüência da afluência do Lago Pontchartrain, mais de 80% da cidade foi inundada, mais de um milhão de pessoas foram obrigadas a deixar suas casas, e cerca de 200 mil casas ficaram debaixo d'água. In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Furac%C3%A3o_Katrina.

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cidade, mas você sabe que vai voltar e vai pro seu canto. [...] Então, quando você não tem isso, você fica perdida, sem saber onde é o seu referencial. [...]. E eu percebo isso, também, nos filhos. Os meus dois foram criados no circo [...]. A gente, às vezes, saía pra algum lugar, daí eles falavam ‘ai, mãe, estou louco pra ir pra casa’: a casa era o trailer. [...] Hoje, eu tenho uma casa, na minha cidade, no Paraná. Mas, quase nunca vou pra lá: uma vez a cada sete meses – é uma espécie de casa de férias. No ano passado, eu só fui duas vezes pra lá. É uma casa muito grande, tem 1200m2 – eu acho muito grande! Na verdade, eu comprei essa casa para o meu filho morar porque ele tinha passado no vestibular e queria morar em Cascavel, pra conhecer. Então, comprei a casa, pensando no futuro, como um investimento. Por causa de mim, não, porque eu estou super‐satisfeita no meu trailer. Eu gosto da casa, claro, quando eu estou lá, estou super‐bem. Eu não tenho dificuldade de me adaptar; mas prefiro muito mais morar no trailer. [...] Mas, agora, já mudei meus planos. Vou vender aquela casa e comprar um apartamento em São Paulo. [...] Mas não é pra eu ficar morando no apartamento; se eu tivesse alguma coisa pra fazer em São Paulo, uma entrevista, ou uma reunião, e ficasse tarde pra vir pro circo, claro que eu iria dormir no apartamento. Mas – pra você ver – eu tenho muitos amigos em São Paulo, e, quando vou jantar fora, eles sempre me convidam pra eu dormir lá, pra eu não voltar tarde da noite. Mas eu prefiro voltar, quero ir pro meu canto. Na quinta‐feira, mesmo, era meia‐noite e meia, quando eu saí de uma churrascaria com uns amigos. Uma amiga disse ‘você vai dormir lá em casa’. Mas eu preferi voltar pra cá. E o apartamento dela é enorme, tem um quarto de hóspedes, mas eu prefiro voltar para a minha referência de lar, minha casa, meu espaço.” (Marly)

Assim, considerando a casa como entidade física que acolhe o habitar

doméstico, voltemos à idéia lançada anteriormente, de que nem esse habitar, e,

portanto, tampouco a casa, estão situados isoladamente do âmbito maior, onde

existimos como seres vivos. Sendo assim, a propriedade da casa de nos acolher física e

psicologicamente não implica a total abstração desse meio; o que nos leva a

considerar duas formas de observar essa inserção da casa no mundo: a casa como

proteção frente ao mundo e a casa como meio de identificação com esse mundo.

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A casa como proteção frente ao mundo

“A vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada no regaço da casa.” (Bachelard, 2003; p. 26)

Para falarmos da casa como proteção, retomemos a relação do habitar –

prática universal e essencialmente humana – como a condição de se estar em paz,

livre de ameaças contra essa paz, que já vimos estabelecida por Heidegger. É baseado

nesta relação, que Bollnow conecta a condição de estrutura física da casa ao caráter

de provedora de proteção e preservação da paz. Nas palavras do autor, “prover essa

paz ao homem é a missão suprema da casa” (Bollnow, ibidem; p. 123). Baseado na

visão de Heidegger, do habitar como algo que envolve o preservar, o resguardar,

Bollnow reúne o fato de estarmos inseridos no contexto do habitar geral e de termos

a capacidade de estabelecer limites “visíveis” e “imediatos” para o nosso habitar

privado. Com isto, desenvolve dois conceitos que considera nitidamente separados: o

do “espaço exterior” – “grande, geral” – e o do “espaço interior” – “especial, privado”,

ou seja, o espaço físico da casa.

O espaço exterior seria aquele onde praticamos nossas atividades coletivas

e públicas e onde, dirá o autor, “há resistências a serem vencidas e adversários dos

quais se defender”; seria o espaço dos “perigos”, onde se está “à mercê de tudo”. Por

outro lado, o “espaço interior” – a própria casa habitada – seria o refúgio do espaço

exterior (Bollnow, ibidem; p. 122) – seja dos rigores das intempéries, do assédio de

quem não desejamos, da agressão física, ou de algo menos concreto, porém não

menos invasivo à nossa vida interior, tal como nos resultariam os encantos e a força

da vida social, dos quais vimos falar Amoroso Lima. Esse espaço, segundo vê

Bollnow, funcionaria como um âmbito de tranqüilidade e paz; um lugar destinado ao

retiro e ao relaxamento, no qual podemos prescindir do “constante alerta ante uma

possível ameaça”. Segundo vê o autor, a privação desse espaço interior e uma

existência apenas no espaço exterior implicaria uma vida de eterna fuga, na qual o

homem seria um eterno perseguido23 (Bollnow, ibidem; p. 122).

23 Mais adiante, veremos que essa dissociação entre o lá fora – no mundo e o aqui dentro – em casa não é tão distinta como propunha Bollnow, e que a permeação do mundo público sobre o âmbito doméstico, e vice-versa, tem sido uma característica marcante da contemporaneidade.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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O entrevistado Sr. Felipe, 78 anos, aposentado e morando com mais dois irmãos,

também idosos, teve as condições extremamente precárias de sua habitação

denunciadas por vizinhos à Promotoria do Idoso24. Incapacitados, pela idade e pela

situação financeira, de exercer as mais básicas atividades domésticas, como cuidar da

alimentação, da higiene e da manutenção da casa, Felipe e seus irmãos viviam à

mercê da sorte, de favores de vizinhos e da comunidade religiosa que freqüentavam.

Transferidos para um asilo de idosos, passaram a ter acesso à estrutura da instituição

– a um abrigo seguro, à assistência médica, alimentação adequada, higiene, etc. Em

sua entrevista, Felipe vê a mudança de sua casa para o asilo como algo que lhe

trouxe segurança e garantia de uma vida adequada à sua condição de idoso. Em

comparação à vulnerabilidade – de fato, física – em que vivia, Felipe afirmou: “Isso caiu do céu”.

[Como era a casa em que o senhor morava com seus irmãos?]

“Era espaçosa...Tinha dois cômodos de três por quatro, mais a cozinha, que era do mesmo tamanho. [...] Isso caiu do céu... Eu sempre fui uma pessoa feliz, graças a Deus. Mas sabe o que acontece? Lá, onde a gente morava, tinha que fazer tudo: fazer comida, lavar roupa, ir no mercado, pagar aluguel, esses programas todos da vida diária. Um irmão meu que cozinhava, eu não tenho jeito pra cozinha. Eu só sabia fritar batata, mas arroz e feijão, eu não sabia fazer. Mas é um problema... até, digamos oitenta anos (no meu caso, ainda podia)... mas depois fica tudo mais difícil. O meu irmão, que mora aqui também, já tem oitenta... nós estamos literalmente aposentados [risos]. E na minha casa, a gente fazia tudo, e eu ainda trabalhava de reformar sofá. E aqui, não; a gente não precisa se preocupar com nada. A gente senta na mesa de manhã, uma funcionária traz o café, outra o pão, as enfermeiras trazem o remédio, tudo na hora certa; no almoço, a mesma coisa, e na janta, a mesma coisa. Até dez horas da noite, tem gente tomando remédio aqui. Tem tudo na hora certa: é roupa lavada, cama, tudo, de um modo geral. Quando a gente veio pra cá, deixou as nossas roupas lá, e eles doaram roupas pra gente. Meu armário não cabe mais nada de roupa – se você quiser, eu mostro. Para quem precisa, as arrumadeiras trocam a roupa de cama todo dia; por exemplo, para esse senhor que divide o quarto comigo e com o meu irmão, que usa fralda descartável, e para todas as pessoas na situação dele. Elas trocam colcha, travesseiro, o que precisar... isso é muito bom. E para os que estão melhores, como é o nosso caso, trocam uma vez por semana.” (Sr. Felipe)

24 Órgão do Ministério Público do Estado de São Paulo.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Buscando uma contextualização histórica para a concepção, trazida por

Heidegger – e aqui desenvolvida por Bollnow –, de ser o espaço interior da moraria

um refúgio frente a um mundo exterior de ameaças –, o arquiteto Iñaki Ábalos

propõe que um dos seus fundamentos seria o fato de o tema casa ter surgido nos

primeiros escritos de Heidegger no período pós-guerra. O autor estaria fortemente

envolvido com as implicações da violência do mundo público sobre o privado; com o

efeito das manifestações da exterioridade e da realidade artificial do cosmopolitismo,

as quais, chegando através das tecnologias industrializadas e dos meios de

comunicação, assumiam, pelo autor, o caráter de algo nocivo, uma ameaça à

autenticidade do habitar doméstico. Além disto, Heidegger estaria imbuído da

“própria intenção de auto-exculpação de sua participação do nazismo” (Ábalos 2000;

p. 51, 52).

Esta contextualização histórica torna-se estrategicamente interessante, uma

vez que nos serve de motivo para questionar em que termos, nos dias de hoje, a

concepção de casa como proteção frente às ameaças do mundo exterior pode ser

aplicada. Para isto, seria o caso de verificarmos – ainda que brevemente, por não ser

este o objetivo a que se propõe este estudo –, em que medida sentimos o espaço

exterior como uma ameaça. O cientista político Paulo Sérgio Pinheirovii afirma que o

que consideramos uma ameaça à segurança e à paz – a violência interpessoal, o crime,

o uso de drogas, etc. – está estreitamente relacionado a uma questão real e atual, que

é a da desigualdade, tanto material quanto social e racial. Pinheiro observa que nesse

contexto se insere particularmente o Brasil, que, juntamente com os Estados Unidos,

possuem as mais altas taxas de homicídio por 100 mil habitantes por ano25: “A

combinação de desigualdade e pobreza extrema é sempre explosiva”26 (Pinheiro; In

Glassner, 2003; p. 12, 13 [prefácio]).

Por outro lado, ao investigar as razões de haver tanto medo na sociedade

americana – e, ao mesmo tempo, quais desses medos teriam ou não fundamento – o

sociólogo Barry Glassner desenvolve várias hipóteses, as quais se referem às ações de

um tipo sensacionalista de mídia, de políticos oportunistas, ou mesmo de

25 Respectivamente, as taxas nesses dois países são 8,22 e 25; enquanto que a da Alemanha, última da lista, é de 4,86 (Pinheiro; in Glassner, 2003, p. 12 [prefácio]). 26 Aqui, trata-se do prefácio que Pinheiro escreve para o livro “Cultura do Medo” de Barry Glassner (2003).

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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organizações da sociedade civil, os quais, baseados no poder que têm sobre a opinião

pública e no interesse no aumento da ansiedade e do medo das pessoas, postergam

problemas cruciais em favor de uma ênfase desproporcionalmente grande em outras

questões de periculosidade relativa. A partir do efeito dessas ações, Glassner aponta

para o fato de estarmos vivendo o que chama de uma “Cultura do Medo” (Glassner,

2003). Por ver muitas similaridades entre as sociedades americana e brasileira, em

termos de violência urbana, Pinheiro considera a análise de Glassner decisivamente

relevante para o debate público e a pesquisa em nosso país (Pinheiro, ibidem; p. 14).

Como exemplo da aplicabilidade desta análise à questão brasileira,

bastaria que verificássemos o modo sensacionalista como os principais meios de

comunicação tratam a questão da violência urbana. Segundo a socióloga Elizabeth

Rondelliviii, os meios de comunicação funcionariam como “macrotestemunha social”,

interferindo no fato violento, dramatizando e exagerando em sua cobertura; o que

levaria a uma visibilidade também exagerada da violência pelo público27. Baseado em

dados do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito

e Tratamento do Delinqüente (Ilanud), o sociólogo e cientista político Túlio Kahnix

afirma que entre 1997 e 1998, 10% das notícias policiais do jornal Folha de São

Paulo e do Jornal do Brasil abordavam seqüestros; sendo que a escolha do tema das

páginas policiais é, de fato, um fator influenciador da relação do leitor com a

violência.

O editor brasileiro do livro “Cultura do Medo” (Glassner, ibidem) cita o

caso do jogador de futebol uruguaio, Diego Alfredo Lugano que, contratado pelo São

Paulo Futebol Clube, mudou-se com sua família de Montevidéu para São Paulo e

“trancou-se” em seu apartamento, “de onde só sai – e sozinho – para dirigir a pouca

distância que o separa do estádio do Morumbi, um dos bairros nobres, mais ricos e mais seguros

da cidade. ‘Depois do que vimos todos os dias na televisão desde que chegamos, não deixo mais ninguém sair de casa’, diz Lugano.’” (Nota do editor. In Glassner, ibidem, contracapa).

27 A afirmação foi feita durante o debate, ocorrido em junho de 2000, por ocasião do lançamento do livro “Linguagens da Violência” (Elizabeth Rondelli; Rocco, 2000). In: Folha on line: http://www1.folha.uol.com.br/folha/eventos/palestra_linguagem_violencia_20000613.htm.

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Uma reportagem do jornal O Estado

de S. Paulo sobre a falta de segurança de se

morar em condomínios – cuja manchete era

“Cuidado: o ladrão pode estar dentro do prédio”28 –

traz uma tabela contendo uma série de “regras”

para orientar os moradores a se prevenirem

contra assaltos. A tabela alerta para

“necessidades” como a de guaritas blindadas,

muros altos, um compartimento acoplado ao

portão para a entrega de pizzas ou encomendas,

e para a importância do “maior número

possível de equipamentos de segurança” no

prédio. Um detalhe deve, aqui, ser observado:

além da Polícia Civil, os dados dessa tabela têm

como fonte o Sindicato das Empresas de

Segurança Privada, cujo interesse em reduzir a

sensação de temor e ansiedade da população

em relação à violência pode ser questionado.

Fig. 2 Sistema de segurança instalado no portão de edifício em São Paulo. Foto: O Estado de S. Paulo, 18/07/04.

Segundo o pesquisador Luis David Castielx, o fato de a extremada e

onipresente violência nas grandes e médias cidades brasileiras ser generalizadamente

conhecida faz com que as populações – não necessariamente as de alta renda –,

assustadas, procurem a proteção através de esquemas e equipamentos de segurança

particular que estejam a seu alcance. O risco urbano, para essas pessoas, estaria

instaurado em uma espécie de “mapa imaginário”, no qual certas regiões, bairros,

ruas, em determinados horários, teriam a marca de “ameaçadores” (Castiel, 2003).

O entrevistado Reginaldo, 43, consultor de empresas, contou‐me da probabilidade de

ter que deixar o Brasil, a trabalho, e mudar‐se com a família para Portugal. Ainda que

goste da casa e do bairro onde mora em São Paulo, a possibilidade de morar com

segurança o faz considerar a possibilidade de mudança de país com entusiasmo:

“Tem todo um lado de adaptação, eu sei que não é simples. Mas, eu gosto de Portugal, [...] e a segurança é um negócio muito importante pra mim. Eu ando na rua

28 In: Jornal O Estado de S. Paulo, caderno Cidades, 23, mai, 2004.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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de madrugada, no centro da cidade, e não me sinto inseguro, aquilo é maravilhoso. No meu bairro, em São Paulo, por exemplo, por mais sossegado que seja, meu filho já foi assaltado na esquina de casa – tiraram o tênis dele, jogaram ele no chão. Na minha casa, eu tenho um cachorro, como segurança. O meu cachorro já me salvou umas três vezes de ser assaltado, eu saindo do carro e abrindo o portão.” (Reginaldo)

Cabe, agora, a ressalva de não ser o propósito desta pesquisa o

aprofundamento nas investigações dos aspectos que determinam a percepção do

espaço exterior como uma ameaça, mas, apenas considerar este contexto para

justificar a concepção da casa física como instrumento de proteção contra as ameaças

e os perigos do mundo:

A entrevistada Analu, 24 anos, musicista, deixou sua cidade, no interior do estado de

São Paulo, para vir dar aulas de piano na capital. Em seu depoimento, ela conta do

choque vivido em relação à degradação social do centro da cidade, região onde

mora, e de como seu apartamento passou a ser reconhecido como um refúgio em

relação a essa realidade:

“Eu acho que o primeiro impacto são as imagens que a gente vê, mesmo, né, as diferenças entre interior e capital […]: criança na rua, com oito anos, fumando craque, aquele monte de gente jogada, você tem que pular os corpos pra poder entrar no seu apartamento. Isso, realmente, foi bem chocante, assim, deu um certo medo. Então, nos primeiros três meses, eu quase não saía – só pra trabalhar. Às vezes, eu preferia ficar lá, colocar um som, ouvir. Muitas vezes, eu ficava limpando o apartamento o dia todo – que eu tenho uma neura com limpeza e organização, que é muito grande – só pra não sair. [...] Então, no começo, se eu não fosse trabalhar, eu, realmente, não saía. Não saía pra ir num cinema, não saía pra nada. Saía pra ir no mercado, porque tinha acabado comida em casa, então saía. Mas, era tudo bem, bem estranho, mesmo. Daí, ele [o apartamento] foi‐se tornando, mesmo, o meu refúgio.” (Analu)

Nos 1980, a consultora de marketing Faith Popcorn previu uma tendência

dos habitantes dos grandes centros urbanos de se voltarem para o interior de suas

casas, fosse em busca de proteção contra a violência e agressões experimentadas no

espaço exterior ou da preservação da paz e da intimidade, diluídas no modo de vida

estressante das grandes cidades (Popcorn, 1992). Esse movimento de retração e

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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recolhimento aos ambientes domésticos, chamado por Popcorn de Cocooning29, é

descrito no trecho abaixo, onde a autora aplica sua própria definição de para o termo,

na qual se pode identificar o sentido de casa como entidade que provê a preservação

física e emocional frente às agruras que enfrentamos ao habitar o mundo vasto “lá

fora”:

“Definimos [cocooning] como o impulso de nos voltar para dentro, quando estar

lá fora simplesmente se torna difícil e assustador demais; pôr uma concha de

segurança à sua volta, de modo a não ficar à mercê de um mundo egoísta,

imprevisível – aqueles assédios e agressões que vão desde garçons rudes e poluição sonora aos ‘crack-crime’[30], recessão, e AIDS. Cocooning tem a ver com se ilhar

e se defender; com paz e proteção, aconchego e controle – uma espécie de hiper-ninho.” (Popcorn, ibidem; p. 27, 28).

Ao lado de uma contextualização concreta e atual, podemos considerar,

como referência para o conceito de casa como entidade concreta, protetora do corpo

físico e também da vida interior, a visão fenomenológica de Gaston Bachelard,

segundo a qual, por mais variados que sejam os tipos de habitação humana, em

termos geográficos e etnográficos, há que considerá-la como a “concha inicial em toda

a moradia”; “o germe da felicidade central, segura, imediata” (Bachelard, 2003; p. 24).

Em sua poesia da casa, Bachelard nos faz reconhecer tanto uma casa universal quanto

a nossa própria casa como a “cabana”, o “ninho”, com os cantos onde gostaríamos de

nos encolher, “como um animal em sua toca” (Bachelard, ibidem; p. 47).

Neste sentido, serve-nos como ilustração a narrativa “A Construção”, do

escritor Franz Kafka (1995), através de cuja trama, pode-se aventar a hipótese de que

o autor se utiliza, literariamente, do conceito de casa física, que abriga (ou, no caso,

uma “toca”), como metáfora frente às suas angústias e necessidade de preservação

física e emocional31. Aqui, Kafka assume o personagem de um animal, habitante de

29 Cocooning: Algo relativo a um casulo (“cocoon”), no sentido de prover proteção ou sensação de segurança. In: Encarta World English Dictionary, 1999. 30 Crimes cometidos por usuários de craque para alimentar seu vício. 31 O editor informa, na contra-capa do livro que contém “A Construção”, que no período em que Kafka produz esta narrativa – 1923 –, um ano antes de sua morte, o autor, tuberculoso, vivia momentos de grande desespero, os quais se refletem em escritos de seu diário pessoal, datados de um ano antes: “devastação, impossibilidade de dormir, impossibilidade de velar, impossibilidade de

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uma toca subterrânea, determinado a tornar sua moradia o mais segura possível

contra os perigos do mundo exterior. Nas constantes inspeções por sua “construção”,

o animal vive raros momentos de regozijo e paz, ao perceber quão protegido está pela

solidez de sua moradia e como os recursos construtivos engenhosos utilizados por ele

dissimulam quaisquer vestígios de que lá habita. Mas, esses sentimentos logo são

substituídos por noites inteiras em vigília, na angústia de pensar na possibilidade de

ter essa paz e essa proteção, que julga imprescindíveis, perturbadas por algum invasor:

“Instalei a construção e ela parece bem-sucedida. Por fora é visível apenas um

buraco, mas na realidade ele não leva a parte alguma, depois de poucos passos já

se bate em firme rocha natural. Não quero me gabar de ter executado

deliberadamente essa artimanha, o buraco era muito mais o resto de uma das

várias tentativas frustradas de construção, no final porém pareceu-me vantajoso

deixá-lo destapado. [...] A uns mil passos de distância desta cavidade localiza-se,

coberta por uma camada removível de musgo, a verdadeira entrada da construção,

ela está tão segura quanto algo no mundo pode ser seguro, certamente alguém pode

pisar no musgo ou empurrá-lo para dentro, nesse caso a construção fica aberta, e

quem tiver vontade [...] pode invadi-la e destruir tudo para sempre. Estou bem

ciente disso, e mesmo agora, no auge da vida, não tenho uma hora de completa

tranqüilidade, pois naquele ponto escuro do musgo eu sou mortal e nos meus sonhos

muitas vezes ali fareja, sem parar, um focinho lúbrico. [...]

Vivo em paz no mais recôndito da minha casa, e enquanto isso o adversário, vindo de algum lugar, perfura lento e silencioso seu caminho até mim. (Kafka, ibidem; p.

63-64)

[...]

Mas a coisa mais bela da minha construção é o seu silêncio. [...] Lá eu durmo o

doce sono da paz, do desejo pacificado, do alvo atingido de possuir uma casa. [...]

Pobres andarilhos sem casa, nas estradas do campo, nas florestas, [...], entregues aos estragos do céu e da terra! (Kafka, ibidem; p. 65-66)

[...]

E se acontecesse um grande ataque, que projeto de entrada poderia me salvar? [...]

um ataque realmente grande eu preciso tentar rebater com todos os recursos do

suportar a vida”, escreve Kafka.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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conjunto da construção e todas as forças do corpo e da alma – isso é evidente. [...]

Sem dúvida esses sentimentos são provocados pela própria entrada, onde cessa a

proteção da casa, mas é também a construção dela que particularmente me

suplicia. Algumas vezes sonho que a reconstruí e modifiquei totalmente, rápido,

com forças gigantescas, numa única noite, sem ser notado por ninguém, e que ela

agora é indevassável; o sono em que isso acontece é o mais doce de todos; quando desperto, lágrimas de alegria e redenção ainda cintilam na minha barba.” (Kafka,

ibidem; p. 72-73).

A casa como meio de identificação com o mundo

Como vimos, sendo o habitar doméstico uma atividade inserida no

contexto do mundo exterior, buscamos no espaço físico da casa a proteção contra as

agressões e os desgastes físicos e emocionais com que nos deparamos ao habitar o

mundo exterior. Em casa, na esfera privada do habitar, encontramos a paz e a

segurança necessárias para o nosso desenvolvimento como indivíduos, como vimos

falar Norberg-Schulz.

Por outro lado – e ainda considerando a inserção do habitar doméstico no

âmbito geral –, o mesmo autor dirá que o se recolher ao espaço privado da casa não

implica um isolamento tal, que o mundo exterior se torne esquecido. Ao contrário,

na medida em que habitamos o espaço público, reunimos em nossa casa física

lembranças, em forma de coisas, que elegemos como representantes de nossas

experiências no mundo lá de fora, e as quais trazemos para o nosso habitar doméstico.

Manipulando-as e convivendo diariamente com elas – ao comer, dormir, conversar e

nos entreter –, essas coisas passam a fazer parte de nossa vida privada e nós passamos

a perceber seus significados como experiências já interiorizadas. Assim, ao entrarmos

em casa e encontrarmos aquelas coisas que trouxemos do mundo lá de fora, com as

quais já estamos tão familiarizados, sentimo-nos, enfim, em casa. É neste sentido que

Norberg-Schulz afirma que por meio da casa física, experimentamos ser parte do

mundo (Norberg-Schulz, ibidem; p. 89, 91):

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“Sem os frutos ‘sagrados’ do céu e da terra, o lado de dentro permaneceria ‘vazio’.

A casa e a mesa recebem e reúnem, e tornam o mundo ‘perto’. Habitar em um

casa, portanto, significa habitar o mundo.” (Norberg-Schulz, ibidem; p. 9)

Para caracterizar a identificação estabelecida, por meio da casa física, entre

nós, habitantes, e o mundo em que estamos inseridos, Norberg-Schulz recorre à

linguagem literária do autor norueguês Tarjei Vesaas. Ao descrever, em um de seus

contos, o retorno de um jovem lenhador à sua casa, vindo de um dia de trabalho na

floresta, Vesaas dirá que ele “não chega a um lugar diferente do mundo, repleto de

significados, mas a um mundo interior em harmonia com o mundo exterior” (Vesaas, 1971;

Apud Norberg-Schulz, ibidem; p. 12)32.

Ao falar da forma como estabelecemos com nossa casa e com a paisagem

que a rodeia uma “comunicação silenciosa que marca nossas relações mais profundas”, Ecléa

Bosi nos lembra que “mais que um sentimento estético ou de utilidade, os objetos nos dão um

assentimento à nossa posição no mundo, à nossa identidade” (Bosi, 2003; p. 441, 442):

“Sons familiares da água da torneira, dos talheres nos pratos, dos passos no chão,

do relógio, do martelo, da vassoura, compõem o ambiente acústico familiar que se integra no da rua” (Bosi, ibidem; p. 445)

O depoimento de Amélia, 64 anos, aposentada, sobre um incêndio, ocorrido em sua casa, o

qual destruiu grande parte de seus objetos de uso diário e o acervo de lembranças de cinco

décadas de trabalho como artista de circo, ilustra a dimensão do significado, para ela, dos

objetos reunidos em sua casa, como acervo da memória de suas experiências vividas no

mundo lá fora:

“A minha vida pegou fogo: minhas coisas e minhas fotos de cinqüenta anos de trabalho. E eu, vendo aquilo, não me conformava, eu só fazia chorar. Não salvou nada: os eletrodomésticos foram todos, a televisão murchou. Minha máquina de costura dava até pra ser aproveitada, mas eu chamei um rapaz e disse: ‘pode levar tudo!’, de desgosto... Só as coisas da cozinha, eu consegui salvar, porque o fogo não

32 Norberg-Schulz considera importante salientar que Vesaas não descreve o meio ambiente da floresta como um lugar em especial. Ele a apresenta como um “típico meio que encontramos em muitos lugares, o qual tem relação com muitos seres humanos” – qualquer lugar que possa ter seu significado identificado como familiar para um leitor estrangeiro, tal como é a floresta para os noruegueses (Vesaas, 1952. Apud Norberg-Schulz, 1985, p. 11).

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chegou na cozinha. Eu tinha algumas peças de ouro numa caixinha de jóias no quarto fatídico – nada de muito valor, sabe, mas muito importante pra mim. Essa caixinha derreteu junto com o ouro, não consegui separar nada. Muita coisa os bombeiros também levaram, né? Foram os primeiros a entrar lá! O fogo fez uma limpeza na minha vida; foi horrível. De todos os eventos que eu tive na vida, esse foi o maior.”

(Amélia)

Em um contexto extremo, tal como o que ocorre com internos em

instituições como manicômios, prisões e conventos, o sociólogo Ervin Goffman falará

da “deformação pessoal” decorrente do fato de o indivíduo ser destituído das coisas

que possui, às quais atribui o “sentimento do eu”; e da “grande mutilação” desse “eu”

que decorre da impossibilidade de se estabelecer quaisquer vínculos pessoais com o

espaço e os objetos onde e com os quais se habita (Goffman, 1974; p. 27, 29). Em um

processo em que se desfazem as ligações com o habitar público e, ao mesmo tempo, se

impede a prática cotidiana de um habitar doméstico acolhedor da individualidade, ao

admitir um interno, a instituição, após muito provavelmente ter feito o indivíduo

despir-se [literalmente] de seus bens individuais, providencia algumas substituições

por coisas padronizadas, cujo objetivo é justamente neutralizar a individualidade

dessa pessoa. E, mesmo esses objetos de uso pessoal, fornecidos pela instituição

(ainda que um simples lápis), deverão ser substituídos antes de terem sua vida útil

encerrada – ou revezados com outros usuários, como pode ocorrer com dormitórios,

em conventos –, de modo a seu usuário não estabelecer com eles, quaisquer tipos de

identificação pessoal. Segundo o autor, as ordens religiosas souberam avaliar as

conseqüências, para o eu, da separação das pessoas e seus bens. Neste sentido é clara

a Regra Beneditina (Goffman, ibidem):

“Para dormir, devem ter apenas um colchão, um cobertor, uma colcha e um

travesseiro. Essas camas devem ser freqüentemente examinadas pelo abade, por

causa da propriedade particular que aí pode estar guardada. Se alguém for

descoberto com algo que não recebeu do abade, deve ser severamente castigado. E

para que esse vício de propriedade particular possa ser completamente eliminado,

todas as coisas necessárias devem ser dadas pelo abade: capuz, túnica, meias,

sapatos, cinto, faca, caneta, agulha, lenço e tabuletas para a escrita. Assim, é

possível eliminar todas as queixas de necessidades. [...].” (“The Holy Rule of Saint Benedict”, cap. 55. Apud Goffman, ibidem; p. 28)

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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...

Assim, retomando os aspectos essenciais do habitar doméstico, que vimos

descritos na Parte I – a experiência cotidiana de se estar inserido no “pequeno

mundo” pessoal, experimentando o acolhimento e a paz dessa esfera privada, com a

qual nos identificamos e à qual nos sentimos pertencentes –, e, ao mesmo tempo, não

perdendo de vista os aspectos que interligam os modos de habitar natural, coletivo e

público (também descritos anteriormente), passamos a ver a casa onde habitamos

como uma estrutura física que, como descreve Peter Kingxi, nos permite tanto nos

retirar, quanto sermos parte constituinte de uma sociedade. Nas palavras do autor, a

casa é descrita como um conceito que “conecta a paz interior de um indivíduo com o

barulho e o turbilhão do mundo vasto” (King, 2004; p. 87, 88).

Reiterando os aspectos da inserção da casa no contexto do mundo

exterior, poderíamos, ainda, associá-la à análise, feita por Milton Santos, segundo a

qual o lugar habitado seria a tradução pragmática das ações do mundo exterior, “do

qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas” (Santos, 2004; p.

322). Se, como já vimos, a incorporação dos aspectos do mundo exterior torna a casa

o meio para a nossa atuação no mundo, ao mesmo tempo, as condições segundo as

quais nos inserimos neste mundo serão condicionantes da forma como passamos a

habitar domesticamente. Isto se justificaria pelo fato de que, através do modo como

habitamos, buscamos ser aceitos pelo meio em que nos inserimos. Como coloca

Clare C. Marcusxii, os motivos que nos levam a alugar ou comprar uma determinada

casa para morar, além de serem determinados por nossas possibilidades econômicas,

por suas características físicas, localização e nível de conservação do imóvel, também o

são pelo papel simbólico desse imóvel como uma expressão da identidade social que

queremos comunicar a esse meio. Assim, dirá a autora, nossa casa passa a funcionar

como um veículo de comunicação, um display para informar aos nossos vizinhos,

convidados – e até a nós mesmos – quem e como somos, que posição ocupamos na

sociedade, nossos valores, etc. (Marcus, 1997; p. 9).

Pertencente à quarta geração de uma família circense, Amélia sempre teve, ao longo

de sua história doméstica, uma estreita ligação e identificação com a forma nômade

de habitar dos artistas de circo. Dependendo diretamente das comunidades dos

locais onde o circo se instalava para viabilizar essa forma de habitar – para o

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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fornecimento de água, e até mesmo para o uso de instalações sanitárias –, Amélia

relata o conflito experimentado por ela e pelos artistas, devido ao preconceito dessas

mesmas comunidades em relação aos hábitos das pessoas de circo, por as

considerem sujas, promíscuas e marginais em relação ao convívio social – e, por isto,

pouco confiáveis.

A solução para obter a aceitação dos meios onde se instalava veio da percepção de

que, ao lado do preconceito em relação aos artistas de circo, as pessoas nutrem uma

grande curiosidade em relação à sua vida privada: como vivem, como se relacionam

em família, como são suas casas. Percebendo a relação entre satisfazer essa

curiosidade e obter a aceitação das comunidades, Amélia, que descreve sua barraca

como “até bonitinha, com cara de casa”, passou a convidar as pessoas dos locais para

conhecer seu espaço privado. Com isto, valia‐se do papel da casa, descrito por

Marcus como vitrine da identidade social que queremos comunicar, buscando, assim,

ser aceita pelo meio em que se inseria. Uma vez constatado pelas pessoas das

comunidades locais que a forma de habitar de Amélia e dos outros artistas

reproduzia formalmente a de uma casa convencional, os artistas passavam a ser

vistos como pessoas “normais”, ou seja, como eles. Com isto, estabelecia‐se uma

identidade com essas pessoas, de cujo apoio dependia não apenas o trabalho de

Amélia, mas seu próprio modo de habitar:

“[...] E já chegava na cidade, sendo mal visto. Hoje é bem visto, já não é como antigamente. Porque, às vezes, na frente desse circo que chegou, passou um que ficou devendo isso, devendo aquilo, fez uma sujeitada. Então, o que vem atrás sofre as conseqüências. [...] Geralmente, a gente chegava nas cidades à noite. [...] Aí, eu arrumava as coisas no armário, ia lá fora, pegava tijolo, calçava – não podia ficar direto no chão porque quando chovia, mesmo que você fizesse a vala, sempre minava água. Então, tinha que pôr os tijolos em baixo, pra calçar. Ficava até bonitinha, com cara de casa! O armário de caixote, uma mesa com o fogão jacaré, as outras malas; armava a cama. A gente usava muito umas malas de madeira: você chegava, esvaziava, virava, elas já tinham as prateleiras, e virava o armário. A tampa era a mesa: colocava os pés, assim, e já montava. As camas tinham que ser de casal, pra facilitar. A gente tinha uns cavaletes e nesses cavaletes punha as tábuas em cima, e punha o colchão. Às vezes, eu falo que eram até melhores do que as camas que a gente tem agora. Tinha até berço de armar; tinha cortina, que separava o quarto da cozinha – não era assim tudo aberto – era tudo legal!... Tô te falando, era uma casa, mesmo!

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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A gente tinha tudo, tudo. O fogão não era desses convencionais, sempre era fogão‐jacaré, ou um fogareiro elétrico, ou um fogão de lenha que a gente fazia lá mesmo, atrás da barraca. Isso dependia da necessidade, e do que tinha. Só sei que a gente se virava e fazia comida. [...] A gente também pegava água lá. Muita gente boa via a dificuldade da gente e deixava a gente tomar banho: ‘toma um banho aí!..’. Aí, eu tomava banho, dava banho nas crianças, levava um pouco d’água, e vinha embora. [...] Mas, às vezes, a gente chegava num lugar, não tinha nem água. Eu tinha latões, e tinha que levar cheios d’água. E, às vezes, a gente já vinha de uma cidade que não tinha água, também. Teve uma cidade na Bahia, que eu cheguei – era umas sete horas da noite, não era muito tarde. Aí, bati numa casa: ‘Oi, boa noite. A senhora podia me arrumar um pouco d’água? – Eu não dou água pra gente de circo’. E, plá, bateu a porta. [...] É... as pessoas têm mania de falar que o pessoal do circo dorme tudo junto, mora tudo junto, aquela confusão toda. E elas são sempre são curiosas. Então, eu fazia questão, mesmo, que eles viessem na nossa casa, pra ver que não era assim; que era igual à vida deles; a única diferença era que a gente viajava, e cada hora estava num lugar. Mas cada um tinha sua casa, sua cama, a individualidade. Aí, eles começavam a achar a gente normal, como eles, e a tratar melhor.” (Amélia)

Aplicando-se ao espaço da casa as definições de Amos Rapoport de

“comunicação não-verbal” e significado do ambiente construído, vemos que essa

comunicação informa o significado do ambiente doméstico – construído e habitado –

às pessoas que nele e com ele interagem. Partindo-se da observação do uso atribuído

ao espaço da moradia – idéia que originou todo este estudo –, vemos que as ações

cotidianas passam a ocorrer de acordo com a interpretação da “leitura” do espaço

doméstico, e do entendimento das pessoas sobre as normas, ou “propostas de

comportamento”, fornecidas por esse ambiente – o que pode ser visto como uma

forma de “comunicação não-verbal” (Rapoport, 1990; p. 181 e Rapoport, 1976; p.

10).

Mas, se, por um lado, a forma construída do espaço habitado afeta o

comportamento e os modos de vida de seus usuários, temos que a linguagem formal

do espaço habitado é, por sua vez, a incorporação física dos padrões de

comportamento de seus habitantes – incluindo-se, aí, seus desejos, motivações e

sentimentos (Rapoport, 1969; p.16). Como afirma David Morley, a casa não apenas

abriga ou provê um contexto background para sentimentos como segurança,

privacidade, intimidade, conforto, etc.; ela, além disto, incorpora estes sentimentos à

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sua estrutura física. Referindo-se à análise feita por Sivi Norve sobre práticas do

habitar doméstico, Morley aponta para a observação da autora, de que embora hoje

em dia, as pessoas, de fato, construam suas casas muito menos freqüentemente do

que faziam no passado, ainda que no sentido figurativo, nós ainda fazemos nossas

casas. Em uma prática descrita pela autora como “criativa”, ainda construímos,

equipamos nossas casas; damos-lhe cores, mantemos-na, e organizamos seus padrões

de fisicalidade; damos funções e expressão aos cômodos. Neste sentido, Norve dirá

que se falhamos na efetividade deste processo, ou seja, de criar algo diferente para

nós, outros arranjos para a estrutura física que nos foi deixada, essa moradia “não

será uma casa [home] propriamente dita, no sentido geral do termo” (Norve, 1990; p.

52. Apud Morley, 2000; p. 24).

Yi-Fu Tuan também nos fala que no mundo moderno não construímos

mais nossas casas, tal como nas sociedades pré-letradas e de camponeses. Segundo vê,

os rituais e cerimônias, próprios do ato de construir – quando se pensava ocorrer, ali,

a “construção de um mundo” – diminuíram sensivelmente, sendo que o que

permanecem são “gestos pouco significativos de assentar a pedra fundamental e de

telhar”. Contudo, ainda que, talvez, de forma não tão rígida e ostensiva como no

passado, o ambiente construído no mundo moderno ainda mantém a função de

informar. Ou seja, continuamos a sofrer o impacto direto do espaço arquitetônico

sobre os nossos sentidos e sentimentos; nosso corpo ainda responde aos aspectos da

fisicalidade desse espaço (Tuan, 1983; p. 129, 130). Ou seja, Tuan também vê o meio

ambiente construído “como uma linguagem”. E, partindo dos sentidos de “interior” e

“exterior” como “intimidade” e “exposição” – ou “vida privada” e “espaço público” –,

o autor vê a casa, enquanto estrutura arquitetônica construída, como algo que tem a

capacidade de “definir e aperfeiçoar a sensibilidade [...,] aguçar e ampliar a

consciência” sobre as diferenças destes sentidos, tornando mais nítida, para os seus

usuários, a distinção da “temperatura emocional” entre eles (Tuan, 1983; p. 119-120).

Às considerações acima pode-se acrescentar a concepção de Milton Santos,

segundo a qual a materialidade seria um componente imprescindível do espaço; isto,

na media em que nada fazemos que não seja a partir dos objetos que nos cercam.

Neste sentido, a materialidade funcionaria ao mesmo tempo como uma “estrutura de

controle, um limite à ação, e um convite à ação”33 (Santos, ibidem; p. 321).

33 Está claro que a reflexão de Santos se baseia no universo muito mais abrangente, que é o espaço

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Ao se mudar de Curitiba para São Paulo, o entrevistado Márcio34 percebeu como a

forma de seu novo apartamento não permitia que ele praticasse o seu hábito da

leitura. Foi necessária uma combinação entre a forma construída e um re‐

agenciamento espacial, o qual lhe trouxe a impressão de estar em seu antigo

apartamento, para que Márcio passasse a perceber, da sua nova casa física, a

permissão formal para praticar sua leitura:

“[...] no começo, eu tive um grande problema com esse apartamento. Eu sempre li muito, quando eu morava em Curitiba. Mas, muito mesmo! Isso, pra mim, era – é – vital. E, não sei por quê, isso, aqui, não rolava; eu simplesmente não conseguia. Daí, eu saquei que o que eu não tinha era um espaço pra ler, como eu tinha lá [no antigo apartamento]. Era angustiante... Aí, eu fui tentando, comprei uma luminária e uma poltrona super‐parecida com a que eu tinha em Curitiba; punha a cadeira aqui, mudava pr’ali..., encostei na parede: aí, não sei, a forma como a luz entrou e iluminou aquele canto me fez encontrar aquela referência que eu tinha perdido, e eu passei a curtir aquilo. Eu reencontrei o meu espaço pra ler... Agora, eu leio feito louco.” (Márcio)

A forma como buscamos, através de intervenções criativas, o respaldo da

fisicalidade de nossas casas para, através das relações cotidianas que estabelecemos

nela e com ela, atendermos nossas necessidades, expectativas e aspirações em relação

ao habitar doméstico, dá sentido à afirmação de Santos, segundo a qual o lugar

habitado seria o “teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da

ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da

criatividade” (Santos, ibidem; p. 322). E ainda é neste sentido que aplico a análise de

Witold Rybczynski, de que “o bem-estar doméstico é muito importante para ser

deixado a cargo dos especialistas”. Segundo o autor, esta questão diz e sempre disse

respeito àqueles que, de fato, ali habitam – seja a família, seja o indivíduo

(Rybczynski, 1996; p. 236).

O entrevistado Lúcio, engenheiro, 61 anos, passou a infância e a juventude mudando‐se, com

sua mãe, de hotel para hotel, só tendo passado a morar em um lugar fixo depois de adulto e

geográfico. Ainda assim, se consideramos o espaço do habitar doméstico um “sub-conjunto” do espaço analisado por Santos, esta visão é perfeitamente aplicável à análise da casa física e dos aspectos da dinâmica do cotidiano doméstico que nela se insere. 34 Apresentado na Parte I.

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casado. Perguntei‐me se – se é como nos diz Bachelard, que em cada nova morada, retornam

as lembranças das antigas, e que nos reconfortamos ao reviver nossas “lembranças de

proteção” domésticas (Bachelard, ibidem; p. 25) –, que reflexos haveria, no habitar doméstico

de uma pessoa adulta, cujas referências de espaço físico doméstico da infância e da

juventude foram uma série de quartos e lobbies de hotéis? Sua entrevista revelou que,

devido a essa dinâmica de habitar, dois aspectos passaram a ser impressos no ideal de habitar

doméstico de Lúcio, já em sua maturidade.

O primeiro é o fato de suas referências domésticas estarem menos relacionadas aos quartos

onde dormia, e mais à permanente interação com o espaço público que o morar em hotel lhe

permitia – experiência que tem como metáfora a predileção pelos corredores desses hotéis.

Isto se traduziu na necessidade de uma clara penetração visual do mundo exterior no espaço

físico doméstico. O outro aspecto é o fato de as constantes mudanças de espaços domésticos

o terem levado a atribuir a alguns poucos objetos pessoais, carregados de significados e

experiências incorporadas, a condição de algo permanente, sua referência. Ao longo dos

anos, esses objetos passaram a ter a tarefa de atribuir a cada moradia a referência pessoal

que Lúcio necessita para se sentir “em casa”. Como disse ele, “hoje, minha casa é a minha mochila”.

“[...] A gente [ele e sua mãe] não criava vínculo com o espaço. A gente criava vínculo era com as coisas da gente – dentro daquele espaço. A única coisa que eu carregava comigo – objeto particular – era uma caixa, onde eu tinha algumas coisinhas. O vínculo que a gente tinha, tanto eu como a minha mãe, que morava comigo, eram as coisas da gente, que a gente dispunha nos lugares onde ficava; [...] Meu vínculo era uma caixa que eu carregava, e o que eu tinha dentro – esse era o meu vínculo. [...] Isso tudo reflete em mim até hoje, porque a casa, material, não representa nenhum vínculo pra mim. O vínculo está nos objetos que eu ponho lá. [...] Hoje, a minha casa é minha mochila. [...] Esse desprendimento das coisas, eu aprendi na marra, porque, quando meu pai morreu, todos os outros parentes, meus irmãos mais velhos, cada um veio pegar uma coisa. Imagine, eram os maiores... [...] O que eu tinha meu? Uma bolinha de gude, isso ou aquilo... aquilo era meu, ninguém mexia! E eu podia ir com aquilo pra qualquer lugar do mundo! Com a minha caixa, eu me sentia bem e estava em casa. [...] os hotéis, pra mim, como criança, eram grandes! Tinham corredores onde eu podia correr. Eu nem ligava pro quarto – o quarto era pra dormir! O bom era o corredor – o corredor era o importante!! [...] Um monte de gente pra bater papo, falar com um, falar com outro... A noção de corredor, em hotel, é uma coisa espetacular! [...] Você se fecha numa caixa porque você quer, não é? É necessário ter visão, olhar longe – adoro ver a extensão!” (Lúcio)

****

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Já o entrevistado Christian, 52 anos, sul‐africano naturalizado brasileiro, e professor de inglês

para estrangeiros na Arábia Saudita, segue um projeto de vida que prioriza alternar

livremente o lugar (país) onde habita – algo como uma ampliação espacial do ideal de habitar

de Lúcio. Morando em um conjunto habitacional para estrangeiros, reconhece que vive, em

sua opção de habitar doméstico, uma proximidade muito maior, do que geralmente é a opção

das pessoas, entre os modos de habitar público e privado. Contudo, o fato de essa opção

condizer com seu ideal de habitar – não estar preso a quaisquer lugar ou pessoas para ser

livre para conhecer o mundo, aprender novos idiomas, experimentar novas culturas –, não

obsta a que Christian reconheça o que chama de “algo parecido com um quarto de hotel”

como seu lugar de recolhimento do meio coletivo, quando quer ou sente necessidade; e

onde, apoiado nas coisas trazidas do mundo exterior e na rotina privada, encontra sua

“concha” – a qual, apesar de chamar apenas de uma “ilusão de casa”, é, de fato, seu

“pequeno mundo”, onde fica em paz – a sua casa.

Os trechos a seguir são parte da entrevista concedida por Christian via e‐mail:

“[...] eu vivo no que eu poderia considerar equivalente a um hotel cinco estrelas, e tenho refeições todos os dias, então, não posso reclamar. [...] No momento, moro em algo parecido com um quarto de hotel, um de muitos enfileirados numa infinidade de corredores, ocasionalmente contendo um refrigerador de água, e todos, no final, dando num centro de recepção. [...] Eu acho que meu espaço é como uma concha, algo no qual eu posso me recolher, mas não um refúgio, onde eu me escondo da vida e das pessoas. Eu, simplesmente, gosto dessa vivência periférica. [...] Eu gosto de me sentir cercado de pessoas, enquanto que permaneço mantendo minha distância delas [...]. [...] Eu comprei um pequeno aparelho de som pra mim, que já virou parte da mobília. Eu também comprei um piano elétrico, e isso se provou particularmente um fator de bem‐estar. Junto com as outras peças do mobiliário do meu quarto, eu criei, agora, a ilusão de casa, a qual, combinada com um sortimento de after‐shaves no armário do meu banheiro, ajuda a aumentar a intimidade de minha privacidade. Ler também ajuda.” (Christian)

...

Seja uma ou outra a forma como olhemos para a casa como localidade

física inserida no mundo em que habitamos, ela tanto deverá ser o refúgio de que

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precisamos para viver nossa vida física e interior em paz e em segurança, como

também o lugar através do qual estabelecemos vínculos e meios de atuarmos nesse

mundo. Ao encontramos na casa física essas condições para desenvolvermos nosso

habitar doméstico, passamos a não mais poder prescindir dela. Neste sentido,

podemos nos referir a Hannah Arendt, quando diz que nós somos seres

condicionados – ou seja, temos a propriedade de tornar imediatamente condição da

nossa existência tudo aquilo com que entramos em contato, seja por meios

espontâneos ou intencionais. Segundo a autora, além das condições naturais nas

quais recebemos a nossa vida sobre a Terra – “e, até certo ponto, a partir delas” –, é

de nossa natureza criar novas condições que, por mais variadas e de diversas origens

que possam ser, terão a mesma força condicionante de nossa existência que têm as

“coisas naturais”. Assim, a própria realidade do mundo, sua objetividade, ou seja, seu

caráter de coisa ou objeto, também passam a impor sobre a existência dos homens,

seus próprios autores, essa força condicionante (Arendt, 1997; p. 17).

Se aplicamos esta análise à questão da casa física – “no sentido de lugar

tangível possuído na terra por uma pessoa” (Arendt, ibidem; p. 80) –, temos que, na

medida em que designamos essa casa como nosso “pequeno mundo” – sendo ele

tanto o abrigo contra “a hostilidade dos homens e a hostilidade do universo”, como

dirá Bachelard (ibidem; p. 27), quanto a base para que possamos habitar esse mundo –,

criamos com esse local, e com todas as coisas e memórias que nele reunimos, por as

considerarmos propiciadoras desse habitar, uma relação de necessidade.

A entrevistada Maria, profissional do showbiz, filha de uma família de imigrantes italianos,

viveu sua infância em uma casa partilhada por seus pais, irmãos, tios e primos, além do avô,

dono da casa. Essa experiência incluiu ter de partilhar o quarto de dormir com seus pais até

os doze anos de idade. Por isso, o sentido de casa, para ela, sempre envolveu a necessidade

de um espaço físico em que ela pudesse sentir‐se acolhida e o qual pudesse reconhecer como

seu. Quando, aos doze anos, mudou‐se com a família para uma outra casa, Maria pôde, pela

primeira vez, experimentar o seu próprio espaço privado, o qual identifica não simplesmente

como um quarto, mas como um “palacete”. A mesma relação vai ocorrer mais tarde, com um

apartamento alugado, onde passou a morar só: para Maria era, de novo, “um palácio”. Era,

enfim, o seu “pequeno mundo”; um lugar onde – diferente das casas da infância – ela podia

habitar tranqüilamente, e para onde tinha vontade de voltar.

Na busca pela experiência de bem‐estar não vivida nas casas de sua infância, tornaram‐se

importantes referências as experiências de hospedagem em hotéis, ao longo de sua carreira,

nos quais podia ver suas necessidades mais imediatas prontamente resolvíveis, e

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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experimentar uma organização espacial a qual sempre fora precária na sua vida doméstica.

Através do depoimento de Maria, podemos perceber as formas através das quais acabamos

de examinar a casa física. Ao falar da necessidade do acolhimento físico do espaço habitado,

assim como da forma como incorpora ao seu habitar doméstico as coisas e experiências

trazidas do mundo público, e de como não pode delas prescindir para viver seu bem‐estar

doméstico, Maria exemplifica, com sua experiência pessoal, a relação estabelecida com o

mundo através de seu habitar doméstico:

“[...] O primeiro lugar que eu morei, com vinte e um anos, era uma “vaga” alugada – um colchão no chão – em Copacabana, no Rio de Janeiro. Então, qualquer coisa, pra mim, era muito melhor do que aquilo que eu tinha quando criança. [...] Aí eu tive um apartamento alugado pequenininho, um estudiozinho, que você não entrava na cozinha – só entrava o seu braço na cozinha. [...] Eu tenho uma amiga famosa que, na época, a gente estava convivendo muito. E ela teve em casa, e fez um teste, sabe aqueles testes de revista? E ela ficou muito impressionada porque deu, naquele teste, que a minha relação com a casa era ótima, que eu estava em paz com a minha casa. E ela disse, ‘nossa, mas é um lugar tão pequeno’. E eu falei, ‘mas, pra mim, é um palácio! É tudo o que eu preciso’. [...] eu conheci um lugar des‐lum‐bran‐te, que eu queria pra minha casa. [...] Era um hotel [...] em Santa Mônica. É lindo! E a luz do lugar é tudo que eu pedi na vida. Quando você entra no banheiro, você dá de cara com uma pia, uma bancada bonita, toda iluminada, o espelho super‐iluminado, e à sua direita, você enxerga uma porta de vidro Blindex, que é o chuveiro, e uma porta com veneziana de madeira, e lá dentro é o lugar onde você faz pipi. À esquerda tinha uma banheira, e tinha uma janela. Dessa janela, você abria a veneziana e dava pra assistir à televisão que estava lá no quarto. E é uma coisa muito bacana, porque foi a primeira vez que eu vi esse espaço organizado, sem estar tudo no olho. Eu estou querendo repetir esses conceito aqui em casa, na reforma que eu vou fazer. Porque é organizado e é confortável. [...] Então, esses hotéis que abraçam a gente – tanto no conforto íntimo, quanto na praticidade – sempre foram os hotéis que eu achei mais interessantes, e que me senti mais em casa. Às vezes, eu não queria voltar pra casa, mesmo porque era muito mais gostoso! Por exemplo, eu mesma não sabia o quanto a organização do espaço era importante, e como a minha capacidade administrativa era um zero à esquerda. Porra, na minha infância, eu não aprendi como lidar com boneca – eu não podia –, eu não sabia qual a hora de brincar, a hora de fazer dever de casa; dever de casa era pra fazer o dia inteiro, não podia fazer outra coisa, entendeu? Eu não sabia...” (Maria)

...

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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A partir das reflexões dos autores citados e das entrevistas com pessoas

com diferentes experiências do que se pode chamar de casa física, podemos inferir

que se o habitar doméstico implica a existência de uma casa, considerada no seu

aspecto físico, qualquer que seja ele, implica também a interação dessa materialidade

com aspectos da alma, do espírito, da memória, das emoções do indivíduo – o que faz

com que a casa passe a incorporar um significado emocional e subjetivo. A seguir,

procurarei apresentar os detalhes desses aspectos.

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Capítulo 2 ‐ Os usos objetivo e subjetivo da casa

“Quem é que às vezes não se lembra da casa, às vezes feia, onde nasceu e brincou menino, repetindo o poeta: ‘A minha casa, a minha casinha, não há casa como a minha?’” (Freyre, 2004; p. 316-317)

Até agora, havíamos considerado a casa como o local físico que elegemos

para nos recolher do mundo (onde praticamos os modos de habitar natural, coletivo

e público) para praticar o nosso habitar em privacidade. Inserida no contexto do

mundo exterior, consideramos a casa como a estrutura através de cuja materialidade

obtemos o apoio, o ponto de referência, em relação às nossas experiências no mundo

lá fora. A partir da consideração de que ainda que encerrando um espaço privado, a

casa, como entidade física, está sujeita às condições do âmbito geral em que está

inserida, passamos, também, a vê-la não só como a segurança e a proteção frente às

hostilidades do mundo, mas, também, como um meio de nos tornamos

familiarizados como esse mundo, obtendo, assim, a base de que precisamos para

habitá-lo.

Ao lado dessas considerações, pudemos tomar o habitar doméstico como

uma atividade que envolve as inter-relações que estabelecemos em e com nossa casa

física – a qual, dada à sua condição material, poderíamos, mesmo, chamar de objeto

casa. Envolvidos por essa estrutura física e cercados dos objetos que trazemos do

mundo exterior e nela inserimos, encontramos apoio no nosso dia-a-dia doméstico;

sentimo-nos, enfim, em casa.

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A materialidade permite a espiritualidade e a emocionalidade

O habitar doméstico é uma atividade que evolve mais do que o simples ato

de nos inserirmos em um invólucro físico segundo as condições que, objetivamente,

permitem e definem o modo como permanecemos lá. Para explorar esta questão

tomemos, inicialmente, a visão de Bruno Zevi sobre a arquitetura. O autor nos diz

que, ao analisarmos a arquitetura, temos, por hábito, fixarmo-nos apenas no que nos

é tangível, no que, objetivamente, “faz trabalhar os nossos instrumentos e detém a

nossa vida”. Diante da forma concreta, passamos a considerar que o espaço surge

como uma oposição a essa fisicalidade, ou melhor, que “o espaço seria um ‘nada’ –

uma pura negação do que é sólido”. Com isso, ignoraríamos o fato de que o espaço

age sobre nós, exercendo poder sobre o nosso espírito. Assim, Zevi nos alerta para o

fato de o espaço interno da arquitetura não ser apenas uma cavidade vazia, ou uma

“negação de solidez”. Ao contrário, ele seria, em todos os sentidos e, especificamente,

no sentido da integração do homem com esse espaço, uma realidade vivida, onde

atuariam concomitantemente a vida e a cultura, os interesses espirituais e as

responsabilidades sociais (Zevi, 1966; p. 189-190, 212).

Para o autor, esse conteúdo seria o aspecto principal do “fato

arquitetônico”. Na arquitetura, diferentemente do que ocorre com a pintura, ou a

escultura – as quais contemplamos e revivemos psicológica e visualmente –, a quarta

dimensão não seria uma qualidade própria do objeto, mas sim um “fenômeno

totalmente distinto e concreto”, que requer ser experimentado diretamente para ser

conhecido. Seria através da interação com esse espaço arquitetônico vivenciado, que

ele atuaria sobre nós, e que, assim, desenvolveríamos nosso julgamento sobre a

arquitetura: ela nos será bela se nos sentimos atraídos por seu espaço interior, se esse

espaço “nos subjuga espiritualmente”; e arquitetura feia seria aquela cujo espaço

interior “nos aborrece e nos é repelente” (Zevi, ibidem; p. 21, 29, 30).

Considerando-se que Zevi se refere, naturalmente, não apenas ao

conteúdo do espaço interior da moradia, mas da arquitetura, como um todo,

podemos aqui especificar sua análise, no sentido de aplicá-la à questão do habitar

doméstico, através da própria definição de habitação, segundo o “Dicionário da

Arquitetura Brasileira” (Corona e Lemos, 1972; p. 462):

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Habitação Lugar no qual se habita. Constitui em arquitetura o abrigo ou

invólucro que protege o homem, favorecendo sua vida no aspecto material e

espiritual.

Para a pesquisa proposta aqui, que se volta à questão do hábitat, a

revelação do conteúdo desse espaço interior estará nas ações praticadas no espaço da

moradia, nas relações estabelecidas entre os usuários no e com o espaço doméstico, ou

seja, no próprio cotidiano doméstico. Assim, como uma continuação natural do

capítulo anterior, neste, o enfoque dado ao habitar doméstico passa a ser através da

percepção da casa, por seus habitantes, como algo mais do que a estrutura física na

qual se abrigam das ameaças do mundo exterior; ou ainda – se considerada uma

contextualização mercadológica –, como algo mais do que um objeto que é

consumido pelo seu valor estético, ou de liquidez, ou pelo status social atribuído ao

seu consumidor.

Neste sentido, poderíamos passar a falar do que Peter King (2004) define

como uma “simbiose” entre as estruturas objetivas que encerram a casa física e as

atividades que desempenhamos – privadamente – dentro dela. Ou seja, de um lado,

temos a casa como objeto físico: reconhecível e passível de avaliação objetiva, segundo

critérios concretamente verificáveis, tais como, por exemplo, o projeto arquitetônico,

suas relações de espaço e uso, os materiais utilizados, os padrões de construção, etc.

De outro lado – porém apoiado nessas condições objetivas –, está, o habitar

doméstico, com todas as ações e interações de caráter particular e individual que

envolvem essa atividade, as quais, como observa King, pelo seu caráter íntimo, ficam

praticamente fora de monitoramento (King, ibidem; p. 60, 176).

Ao afirmar que o habitar doméstico seria “ambos: a performance da

tecnologia – de coisas trabalhando para nos manter – e o ato de esquecê-la”, King

explica que, ao fazermos uso da estrutura e de toda a tecnologia que encerra o

ambiente doméstico, o que buscamos esquecer é justamente essa tecnologia que tanto

desempenha por nós (King, ibidem; p. 59). É, por exemplo, graças à vedação física de

nossas casas, que obtemos o isolamento do mundo ao nosso redor – o qual podemos,

de certo modo, graduar segundo nossa conveniência, ao abrirmos ou fecharmos

nossas portas e janelas; é em camas, que são objetos que inserimos em nosso espaço

privado, que repousamos e nos restauramos física e emocionalmente para voltarmos

ao mundo exterior. E, como observa King, é justamente quando constatamos alguma

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falha desse funcionamento, ou seja, quando a performance do objeto casa e toda a

estrutura física que ela encerra deixa de cumprir com seu papel de propiciador para

atingirmos nossos objetivos em relação ao habitar doméstico, que retomamos a

consciência do complexo funcionamento dessa estrutura em favor de nosso bem-

estar. Uma simples goteira já nos mostra quão dependentes nós somos, mesmo da

mais simples tecnologia; “ficamos impotentes diante de uma maçaneta quebrada”

(King, ibidem; p. 69).

Segundo vê King, este seria o ponto do habitar doméstico onde,

justamente, uma série de entidades prosaicas da estrutura física que abriga e uma

série de aspirações e auto-percepções daquele que é abrigado por ela – estas não

necessariamente conectadas ao mundo real – passam a operar simultaneamente, o

que só é possível devido ao funcionamento da habitação de forma adequada. Para o

autor, é através desse processo, que se torna, então, possível ao morador conceber em

sua imaginação questões que vão muito além do nível cotidiano prático e concreto,

no qual se insere em sua casa física (King, ibidem; p. 39, 59). Assim, podemos resumir

a “simbiose” de que nos fala King desta forma: é justamente o recolhimento que a

estrutura física de nossa casa – palpável, avaliável – nos proporciona, que nos permite

praticar o habitar doméstico como uma atividade privada e íntima, e portanto,

insondável.

É neste sentido que a análise de King é apropriada para a investigação

proposta aqui. Ao lado da consideração de que o habitar doméstico implica a

existência de uma casa física, o que pretendo verificar é em que aspectos essa

condição concreta do habitar físico propicia aos habitantes relações tais, que vão além

das materialmente evidentes; que envolvem os aspectos não palpáveis do habitar

doméstico, como os da alma, do espírito, do sonho, da memória, das emoções do

indivíduo – aspectos que fazem com que a casa, em sua objetividade concreta, passe a

incorporar um significado subjetivo para quem a habita.

Este enfoque parte da observação dos depoimentos colhidos, nos quais se

verifica que, mesmo quando os entrevistados se voltam ao relato de aspectos da

interação objetiva com a materialidade de suas casas, suas falas estão sempre

profundamente associadas a considerações emocionais e psicológicas que envolvem

essas experiências objetivas – tenham elas sido vividas na casa atual ou em antigas

moradas; tenham sido duradouras ou breves. Muitas vezes, passa-se um longo período

da vida buscando-se reencontrar, em novas casas, as boas impressões que um habitar

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doméstico da infância deixou marcadas no íntimo de uma pessoa – ou, tentando-se

evitar reviver alguma experiência doméstica especialmente dolorosa.

A entrevistada Maria35, ao relatar sobre suas relações com os espaços físico das casas

onde morou, exemplifica a interferência emocional nas lembranças que

permaneceram, dizendo: “eu tenho essa experiência: nenhuma lembrança acontece sem ter um forte apelo emocional. Então, é muito provável que eu faça uma descrição da minha casa, da casa minha interna” [*]36. O relato das experiências em

relação ao espaço concreto habitado – forma, tamanho, usos de determinados

lugares, como é o caso da varanda de sua antiga casa –, ou mesmo em relação à

interação com essa fisicalidade, se confunde com emoções que pouco têm a ver com

essa fisicalidade:

“Na verdade, eu não saberia dizer como era essa casa que eu vivi quando eu era pequena porque, na minha lembrança, ela tinha dimensões que eu sei que são desproporcionais, hoje. [*] Da casa física, o que eu lembro, o que eu gostava muito era de uma varanda, que minha mãe diz que tinha treze metros de comprimento por seis de largura. Era imensa, um salão. E eu lembro que ela tinha um azulejo hidráulico preto e branco, que fazia um desenho muito bonito, e um gradil verde – meu avô pintava tudo de verde e ocre, sempre; e eu gostava muito daquela varanda; até hoje eu adoro varanda. Deve ter a ver com essa relação. Se eu pudesse escolher – e pagar pela minha escolha – eu faria muita coisa com azulejo hidráulico, como naquela varanda. Já tentei fazer na minha casa de campo, mas a relação custo/benefício não valia a pena. [...] Eu lembro de uma casa escura, sim, mas que tem um quintal muito aberto. O quintal, eu lembro que era de tijolo. Aquele tijolo marrom, aquele que dá aquele limozinho. E eu adorava isso. [...]. A área que as mulheres estendiam as roupas era uma área muito grande que, de noite, não tinha roupa estendida. Era ao ar livre, era céu aberto. [...] a noite era o momento mais legal. [...] e sempre teve essa relação com o céu, espaço aberto, liberdade. [...] aí eu tive um quarto, e eu lembro que a coisa mais adorável, pra mim, era dormir no chão, eu saía da cama pra dormir no chão, com a janela aberta. Porque meu grande barato era olhar as estrelas. Eu adorava olhar pro céu e sentir que minha cabeça não tinha um teto em cima dela. Então, a minha relação com casa foi sempre aquela que

35 Apresentada no Capítulo 1. 36 Esse trecho do depoimento insere-se onde se encontra o sinal [*], no depoimento a seguir.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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eu pude exercer – minha mãe sempre foi muito restritiva. Óbvio que, na vida adulta, eu sempre procurei espaços generosos, iluminados – eu preciso disso. [...] Depois, eu aluguei um quarto na casa de uma mineira. E era muito engraçado porque, de novo, eu ia pro chão pra poder enxergar uma réstia de céu entre os prédios, e aí eu sabia se o dia estava bom ou não estava. Porque até a luz que incidia nos prédios – como era tudo muito cinza, porque dava pra área interna dos prédios – eu sacava se estava um pouco mais forte, um pouco mais fraca, mas não dava pra sentir como estava o dia. Só se eu ficasse encolhidinha no chão. E eu fazia isso. Olhar o céu sempre foi um grande barato pra mim.” (Maria)

Pode-se especular que a dificuldade que enfrentamos ao tentar distinguir

os aspectos palpáveis e não palpáveis de nossa moradia reside na possibilidade de o

habitar doméstico envolver a forma mais íntima, nos sentidos tanto físico quanto

anímico, de envolvimento que podemos estabelecer com uma estrutura material.

Buscando fundamentar esta suposição, podemos começar com a visão de

David Chaney (2002), segundo a qual a interação, em princípio física, estabelecida

com a casa e com os objetos que nela reunimos, além de – como vimos anteriormente

– atuar como uma forma de ligação do mundo exterior com o mundo privado,

acontece, também, no sentido contrário, uma vez que traduzimos e transformamos

esses elementos oriundos do meio exterior em experiências pessoais (Chaney, ibidem;

p. 68). A esta consideração pode-se acrescentar a observação de King, que vem no

sentido oposto à de Chaney. Para King, supor a casa apenas como um bem de

utilidade material tem o efeito de “despersonalizá-la” e de vê-la “como um objeto que

pode ser medido por medidas comuns”, de acordo com valores econômicos e não

humanos – um objeto com “um fim em si próprio” –, o que faz com que a função

mais pessoal da casa, que seria a de “guardar valores pessoais” seja destruída (King,

ibidem; p. 60, 86, 87).

O próprio autor, Peter King, ao relatar o momento em que, com o

falecimento de sua mãe, se viu, juntamente com seus irmãos, diante da tarefa de

esvaziar a casa onde ela morara. Conta que, à medida que os objetos que pertenceram

à mãe eram retirados, como um processo de “des-animação”, tornava-lhes cada vez

mais difícil a localização das memórias que sempre estiveram ali. Aquele espaço,

inicialmente “cheio das suas coisas, tal como fora até a última vez em que a vira”,

tornava-se, aos poucos, um lugar “frio e antisséptico”. Como afirma King, se, por um

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lado, nesse processo, o espaço crescia em possibilidades de uso – “a casa de nossos

pais tornava-se, agora, mais uma casa [..., que] poderia ser habitada por qualquer um”

– para ele e os irmãos, aquele espaço “encolhia-se”, pois deixava de ser um lugar

significante para ser uma simples concha com capacidade de abrigar mais um habitar

– “... qualquer habitar” (King, ibidem; p. 154-155).

Outro depoimento é-nos extremamente ilustrativo de como o sentido

anímico do habitar doméstico torna-se amalgamado à estrutura material da casa

habitada, a ponto de não podermos distingui-los com o passar dos anos. Ao descrever

a casa de seus avós, onde viveu durante grande parte de sua infância, o escritor José

Saramago exprime a força com que o habitar essa casa marcou seu desenvolvimento

individual, e como o fato de ela não mais existir em nada diminui sua percepção

como o “casulo” físico e emocional que abrigou a formação do homem. Homem que,

hoje, revela, através da memória, a existência de uma casa subjetiva – que em muito

pouco poderá corresponder à real casa física. Ou seja, o que se tem, nas palavras do

autor, não é apenas um retrato da casa física, em si, mas o significado pessoal daquela

estrutura, recheada de objetos – por sua vez, também carregados de significados

pessoais. Com isto, Saramago descreve o vazio deixado pela casa, juntamente com

seus objetos, ao serem “despersonalizados” (para usar o termo de King) por seu tio:

“[...] desapareceu num montão de escombros [...] aquela [casa] que durante dez ou

doze anos foi o lar supremo, o mais íntimo e profundo, a pobríssima morada dos

meus avós maternos, Josefa e Jerónimo se chamavam, esse mágico casulo onde sei

que se geraram as metamorfoses decisivas da criança e do adolescente. Essa perda,

porém, há muito tempo que deixou de me causar sofrimento porque, pelo poder

reconstrutor da memória, posso levantar em cada instante as suas paredes brancas,

plantar a oliveira que dava sombra à entrada, abrir e fechar o postigo da porta e a

cancela do quintal onde um dia vi uma pequena cobra enroscada, entrar nas

pocilgas para ver mamar os bácoros, ir à cozinha e deitar do cântaro de esmalte esborcelado a água que pela milésima vez me matará a sede daquele Verão.

(Saramago, 2006; p. 15-16)

[...]

A construção era do mais tosco que então se fazia, térrea, de um único piso, mas

levantada do chão cerca de um metro por causa das cheias, sem nenhuma janela

na frontaria cega, nada mais que uma porta em que se abria o tradicional postigo.

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Tinha dois compartimentos espaçosos, a casa-de-fora, assim chamada por dar para

a rua, onde havia duas camas e umas quantas arcas [...]. À noite, apagando o

candeeiro de petróleo, sempre se podia distinguir pelas frinchas do telhado o cintilar

de uma estrela vagabunda. [...]. Além das camas e das arcas, havia na casa-de-fora

uma mesa de madeira em branco, isto é, sem pintura, de pernas altas, com um

espelho velho, embaciado e com falhas na película de estanho, um relógio de capela

e outras bugigangas sem valor. (Muito mais tarde, já tinham passado há muito os

meus quarenta anos, comprei num antiquário de Lisboa um relógio semelhante que

ainda hoje conservo, como algo que tivesse ido pedir emprestado à infância). [...].

Por cima da mesa, na parede branca, como uma galáxia de rostos, era onde se

reuniam os retratos da família: [...] Estavam ali como santos no num altar, como

peças de um relicário colectivo, fixos imutáveis. A cozinha era o mundo. Havia

duas camas, uma mesa que bamboleava no chão irregular e que de cada vez era

preciso calçar para que não bandeasse, duas cadeiras pintadas de azul, a lareira

com a ‘boneca do lar’ ao fundo, uma figura vagamente antropomórfica, de

contorno sumário, que desapareceu, como todo o resto, quando o tio Manuel, o

mais novo dos tios maternos [...], ficou com a casa depois de morrer a avó, para

levantar no seu lugar uma construção hedionda para qualquer pessoa de mediano gosto [...].” (Saramago, ibidem; p. 83-85)

Com essas considerações, passamos a entender o papel da estrutura física

da casa além do seu aspecto primeiro, o de abrigar o nosso habitar doméstico, mas

também de abrigar todas as coisas e objetos de grande importância e significado para

nós que nela inserimos. Esse reunir de coisas e objetos vindos das mais variadas

origens, portando os mais distintos significados, e que até então estavam dispersos no

mundo, resultaria em um só contexto, qual uma “colagem” – como diria King

(ibidem; p. 60) – de significado pessoal, específico e particular para nós, o qual não só

apóia o nosso habitar doméstico, mas é, mesmo, confundido com ele.

Ao descrever o modo como mobília sua casa, com objetos usados, Analu37 torna

patente a imagem das coisas a compor a sua colagem pessoal:

37 Apresentada no Capítulo 1.

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“[...] a minha casa, ela é assim: a minha mãe é costureira, então, muitas coisas que tem em casa, é ela que fez. Então, assim: eu moro longe dos meus pais fazem cinco anos, vai fazer seis. Então, eu gosto dessa coisa que a minha mãe tem, de fazer as coisas pra mim, porque, pra mim, eles tão ali. [...] E as coisas de casa... é assim: os meus móveis é tudo cada um de uma cor, cada um de uma coisa – porque desde que eu saí de casa, eu saí pras vizinhança lá, da minha mãe: ‘olha, quem tem fogão pra dar, quem tem mesa pra dar, me dá aí, porque eu vou morar fora e não tamo com grana pra comprar nada, agora’. Então, a primeira mesa que eu tive era mesa bem antiga, mas bem fortona, assim; que a mesa já veio de um bazar, que já tinha sido de não sei quem. Beleza, a mesa. As cadeiras, meu pai sempre mexeu, também, um pouco com madeira, então era assim, uma cadeira era uma mais alta, outra era mais baixa, em tons diferentes. [...] O sofá – o sofá, eu arrumei um sofá há uns dois anos, que era de um amigo meu. O pai dele fez esse sofá – que eles moravam na Inglaterra [...]. Aí, ele era todo molenga, as almofadas tavam lá, era aquele tecido até hoje, depois de vinte anos, e tal, o sofá já era de uma república... aí eu falei ‘meu Deus, esse tecido vai ter que sair daqui. Não pode ficar, não adianta nem benzer, nossa... não.’ Aí, a minha mãe, com a arte dela, da costura, ela renovou, então, o sofá. Meu pai parafusou todo ele, reforçou, a minha mãe fez novas almofadas, com tecido novo. Com o tecido que sobrou da reforma desse sofá, a gente fez uma cortina pro quarto, com um varão; simplesona, assim – deu um nozinho, lá, e ficou o máximo. É um verde, um verde bacana.”

(Analu)

Mas, se ainda considerarmos a casa habitada em sua materialidade,

podemos aplicar a ela, tanto quanto aos próprios objetos que nela inserimos e que

compõem o nosso habitar doméstico, a consideração de Ecléa Bosi, segundo a qual...

“Ainda que a sociedade queira, de todos os modos, mostrar que os objetos têm valor

em si mesmos, é o sujeito, o causador histórico do valor dos objetos: somos nós que

damos alma aos objetos, transformando sua neutralidade em apoio à nossa identidade.” 38

38 Dito pela professora Ecléa Bosi durante o curso PST5720 – Cultura e Memória Social, ministrado no segundo semestre de 2005, no Instituto de Psicologia da USP.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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É no sentido que Bosi dá ao processo de atribuição de valores aos nossos

objetos, ocorrido ao longo da história de nosso convívio com eles, que podemos

considerar a própria casa física como um objeto que vê transformado o modo como é

percebido por seus usuários, através do seu uso, ao longo do tempo. Quer dizer, uma

vez tomada pelo uso, a casa, como objeto geometricamente mensurável e

comercialmente avaliável, passa a ter sua objetividade estrutural animada pelos

significados pessoais que nela projetamos através da prática cotidiana do nosso

habitar doméstico (Camargo, 2001; p. 174). Como dirá King, o habitar doméstico

transforma a casa, tal “como a alma anima o corpo” (King, ibidem; p. 60).

Ao passarmos a habitar uma nova casa – ainda um objeto comum para nós,

por não termos agregado a ela nossos significados e valores pessoais –, começamos a

incorporamos à sua estrutura física nossas escolhas, em termos de funcionalidade,

conforto, privacidade, estética, convenções espaciais, etc. Além disso, essa casa passa a

se revestir de novas dimensões referentes às nossas necessidades, expectativas e

aspirações em relação ao habitar que passamos a nela praticar. Passando a funcionar

como um “amplificador” de nossos valores pessoais (King, ibidem; p. 77), o objeto

concreto da etapa anterior à sua ocupação tem seu significado transformado.

Passamos a vê-lo não mais exclusivamente através de suas características geométricas,

como uma “caixa inerte” (Bachelard, 2003; p. 62), ou como uma simples commodity39.

Com isto, transforma-se, também, a percepção da experiência de habitá-lo.

Sob a ótica fenomenológica de Bachelard, essa transformação é descrita

como o processo através do qual o espaço habitado passa a ser vivido em um nível que

ultrapassa a sua positividade. Isso ocorreria quando o lugar que encontramos para

abrigar nosso habitar privado passa a ser, de fato, habitado, vivido, fazendo, assim,

revelar-se a “essência da noção de casa”. Na medida em que isto acontece, dirá o

autor, trazemos para nossa casa nossas lembranças de domesticidade, juntamente com

todos os valores de sonhos já experimentados no curso da história de nossas moradas

passadas; trazemos, também, nossos esquecimentos e nosso inconsciente. É nesse

momento que nossa imaginação passa a funcionar como um sensibilizador dos

limites do espaço geométrico. Construímos “paredes” imaginárias, “com sombras

impalpáveis”, reconfortando-nos com tais “ilusões de proteção”. Ou, inversamente,

também podemos sentir-nos amedrontados diante dos mais grossos muros e “duvidar

39 Commodity: qualquer produto produzido em massa. In: Houaiss, 2001

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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das mais sólidas muralhas”. Com isto, nossa casa passa a existir para nós, seres

abrigados, não apenas no sentido linear do dia-a-dia, no curso da história de sua

existência. Em uma relação de eterna dialética, passamos, assim, a vivê-la

simultaneamente “em sua realidade” e – através do pensamento e dos sonhos – “em

sua virtualidade” (Bachelard, ibidem; p. 20, 24, 25).

E, ainda segundo Bachelard, na medida em que a casa se torna mais

complexa, com um maior número de recantos e nichos – um porão e um sótão,

cantos e corredores –, nossas lembranças encontram “refúgios cada vez mais bem

caracterizados”. Assim, ao habitarmos nossa casa, passamos a reconhecer seus

benefícios que vão além da realidade concreta e presente; sendo que, para o autor, de

todos os benefícios da casa, o “mais precioso” é o de abrigar nossos devaneios e de

nos proteger ao sonhar; permitir que sonhemos em paz (Bachelard, ibidem; p. 26, 27-

28).

Não surpreende que tais qualidades da casa tenham inspirado poetas em

várias épocas:

Deserta a casa está... Entrei chorando De quarto em quarto, em busca de ilusões!

Por toda a parte as pálidas visões! Por toda a parte as lágrimas falando!

Vejo meu pai na sala, caminhando, Da luz da tarde aos tépidos clarões,

De minha mãe escuto as orações Na alcova, aonde ajoelhei rezando.

Brincam minhas irmãs (doce lembrança!...)

Na sala de jantar... Ai! Mocidade, És tão veloz, e o tempo não descansa!

Oh! Sonhos, sonhos meus de claridade!

Como é tardia a última esperança!... Meu Deus, como é tamanha esta saudade!...

(José Bonifácio, o Moço [poeta romântico brasileiro (1827-1886)]. Soneto) (Bonifácio, 1962) 40

40 Bonifácio, 1962. Apud www.unesp.br/vestibular/pdf/provap_jul03.pdf.

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Como a ave que volta ao ninho antigo, Depois de um longo e tenebroso inverno,

Eu quis também rever o lar paterno, O meu primeiro e virginal abrigo:

Entrei. Um Gênio carinhoso e amigo,

O fantasma, talvez, do amor materno, Tomou-me as mãos, – olhou-me grave e terno,

E, passo a passo, caminhou comigo.

Era esta sala... (Oh! Se me lembro! E quanto!) Em que da luz noturna à claridade,

Minhas irmãs e minha mãe... O pranto

Jorrou-me em ondas... Resistir quem há-de? Uma ilusão gemia em cada canto,

Chorava em cada canto uma saudade.

(Luís Guimarães Júnior [poeta parnasiano brasileiro (1845-1898)]. Visita à Casa Paterna)41

Eu cheguei em frente ao portão, meu cachorro me sorriu latindo Minhas malas coloquei no chão, eu voltei

Tudo estava igual como era antes, quase nada se modificou Acho que só eu mesmo mudei, eu voltei

Eu voltei, agora pra ficar, porque aqui, aqui é o meu lugar Eu voltei pras coisas que eu deixei, eu voltei

Fui abrindo a porta devagar, mas deixei a luz entrar primeiro Todo meu passado iluminei, e entrei

Meu retrato ainda na parede, meio amarelado pelo tempo Como a perguntar por onde andei e eu falei

Onde andei não deu para ficar, porque aqui, aqui é o meu lugar

(Roberto Carlos [compositor e cantor brasileiro (1941-)]). O Portão (gravada em 1976)42

Considerando a casa habitada o lugar do cultivo da alma, Clare C. Marcus

propõe a seus leitores o “exercício” de investigar como eles cultivam sua alma dentro

das próprias casas (Marcus, 1997, p. 281). Ao falar de sua própria experiência

41 Sonetos e Rimas. In: Guimarães Júnior. Sonetos e Rimas. Apud www.unesp.br/vestibular/pdf/provap_jul03.pdf 42 In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Roberto_Carlos.

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doméstica, a autora torna patente as considerações de Bachelard vistas acima. Através

de seu depoimento, a autora tanto nos fala da espiritualidade que leva à percepção da

casa como o lugar de preservação da vida interior, quanto nos faz recordar a

importância da fisicalidade dessa casa como meio de estarmos em contato com o

mundo lá fora – aspectos do habitar domésticos já abordados anteriormente:

“Para mim, significa ter um lugar e um tempo para reflexão para a minha

imaginação estar livre. Sentar-me sozinha em frente a uma lareira, sentindo seu

calor, observando a dança das chamas, o brilho das brasas, o dom da árvore

lentamente se transformando em luz – esta é uma hora e um lugar para a alma.

Sentar embaixo de um abacateiro no meu jardim, meus olhos apreciando as

samambaias e as azáleas, os seixos arredondados pelo oceano, e uma pequena

estatueta de Buddha; […]. Eu acho que meu jardim é preeminentemente um lugar

para a minha alma – um lugar que não tem nada a ver com projeção do ego ou status social, mas tem tudo a ver com um anseio por reconhecer a conexão com

tudo, com o anima mundi, com a alma do mundo.” (Marcus, ibidem; p. 281)

Assim, é dessa forma que a casa “realmente habitada” de que nos fala

Bachelard trará patente a diferença entre um “objeto protocolar”, tal como Bosi o

descreve – aquele que a moda valoriza, que não se enraíza nos interiores, que tem

garantia por um ano e que não envelhece com o dono, mas se deteriora –, e aqueles

objetos com os quais estabelecemos laços ao longo da história dos nossos habitares

domésticos; os quais, “mais que da ordem e da beleza, falam à nossa alma em sua

doce língua natal”. Segundo a autora, “as coisas falam, sim”, e não há porque exigir

palavras de uma “comunhão tão perfeita” (Bosi, 2003; p. 441, 442).

A este respeito, Otto F. Bollnow lembrará da sensação de estranhamento e

frieza que jovens casais têm em relação à sua primeira casa e aos objetos que

adquirem. Essa sensação só se desfaz à medida em que, lentamente, essas coisas –

inclusive a casa – são assimiladas pelo uso prolongado, pela adição paulatina de mais

objetos, ou pela eliminação de outros, e também, pelo desgaste resultante do uso.

Deste modo, a casa não seria apenas a expressão do homem, mas também o reflexo

de um longo passado – e nisto inclui-se tudo o que há de história nela. Ao longo do

tempo, os próprios sinais do uso, até mesmo as leves deteriorações, adquiriam valor

positivo para nós (Bollnow, 1969; p. 141). Como bem afirma Bosi, ...

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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“O espaço que encerrou os membros de uma família durante anos comuns, há de

contar-nos algo do que foram essas pessoas. Porque as coisas que modelamos

durante anos resistiram a nós com sua alteridade e tomaram algo do que fomos.” (Bosi, ibidem; p. 443)

Ao mobiliar sua casa com objetos usados, Analu se dá conta da história impregnada

em cada um desses objetos, e se sente estimulada a, no curso da história de seu

habitar doméstico, também ela passar a agregar a sua história a esses objetos. Em

uma perfeita representação da “simbiose” entre a fisicalidade das estruturas

objetivas que apóiam o cotidiano e o seu significado subjetivo, de que nos fala King,

Analu fala da importância de esses objetos serem suficientemente resistentes para

continuarem incorporando as “energias” que ela passa, agora, a neles depositar

através do uso em seu habitar doméstico:

“[...] cada coisa que eu adquiro, às vezes, eu penso de benzer. Porque já veio de uma outra história e vai começar uma nova história. Eles tiveram em outras casas, com outras vivências. Mesmo essa cama que eu comprei agora – pô, ela é de 1940! Quanta coisa não rolou, quanta gente, de repente, já chorou em cima dela, já sorriu, né, fez milhões de filhos, teve uma noite boa ou ruim de sono... de repente é válido benzer... ou passar um bom pano com lutra‐móvel [risos], jogar umas pétalas de rosa... Porque eu acredito mesmo nisso, que cada coisa tem seu histórico; como a minha casa – ela é composta por coisas que foram de outras pessoas, elas tão vibrando ali, também. [...] Tudo que eu pego é usado, mas eu gosto de olhar assim: eu quero que o negócio dure mais cinqüenta anos. Já viveu cinqüenta, então, agora, vai viver mais cinqüenta. Essa coisa de móveis da casa Bahia, que você bota a mão e faz nhec, nhec, nhec, parece que aquilo não vai receber nem energia nenhuma na convivência com ele [risos]; ele não tá capacitado pra isso [risos]. Se começar a mandar muita coisa ali, ele vai começar a despencar, não agüenta [risos]! Móveis, é uma coisa que eu sempre desejo ter. Eu gosto muito de coisas antigas porque eu acredito mesmo nessa coisa de elas trazerem coisas pra dentro, energeticamente, outras vibrações. E, ao mesmo tempo, também, são móveis que vão resistir a experiências novas. Minhas panelas também têm uma super‐história porque é de quando meu pai e minha mãe casou. Isso, já tá com trinta e seis anos, acho. Então, são tudo panelas, nem falo antigas, porque são velhas, mesmo. Mas, são fortes, são resistentes, eu gosto.” (Analu)

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A casa como abrigo de relacionamentos

Diante do que vínhamos falando, é preciso ressaltar que o propósito do

processo de reunir objetos na casa habitada não é simplesmente o de acumular coisas.

Isto porque, tão importante quanto as coisas e objetos que possuímos guardados em

nossa casa é com quem nela os partilhamos. É neste sentido que King afirma que

muito do que temos em casa como querido não são apenas posses, mas relações

afetivas. Para o autor, uma função chave da casa seria “abrigar aquelas coisas e aqueles

seres que amamos e queremos ver protegidos” (King, ibidem, p. 60). De forma

semelhante, Chaney afirma que o que conta como casa, para qualquer pessoa, é

definido por conexões emocionais – “a casa é onde está o coração” (Chaney, ibidem; p.

59).

Referindo-se à carta escrita por Sigmund Freud a sua noiva, Martha

Bernays, na qual ele elabora uma lista dos objetos que considera “essenciais” para o

“‘pequeno mundo de felicidade’” que pretendem construir, Peter Gay afirma que a

casa é vista por Freud como um refúgio, um repositório de memórias, uma fonte de

prazer; e que tudo isto viria permeado pela afeição (Gay, 1984; p. 441-442). As

palavras de Freud, transcritas por Gay, revelam o entendimento do primeiro em

relação aos objetos domésticos: alguns, como “testemunha[s] para o trabalho sério

que é manter uma casa”, e outros, menos solenes, com o dom de revelar “o amor à

arte, o apreço a amigos de quem se gosta de lembrar, a cidades que se viram, a horas

que se gosta de trazer de volta à mente” (Freud, 1960. Apud Gay, ibidem).

Assim, podemos dizer que a importância do contexto que criamos e de

que nos cercamos para habitar privadamente – o próprio ambiente doméstico

constituído de nossa casa física, dos seres, e das coisas que valorizamos – reside no

quê e quanto ele significa para nós. O livro “Lembranças por Metro Quadrado”, foi

escrito por Regina Rodrigues (2003)43 para documentar as memórias afetivas

relacionadas ao seu habitar doméstico vivido ao lado da família, desde criança até o

momento em que, adulta, deixou a casa dos pais. Através das lembranças, ora

referentes à fisicalidade dos apartamentos onde viveu, ora às relações familiares ali

43 De publicação independente.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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estabelecidas, a autora reconhece o papel dos relacionamentos com familiares e

amigos estabelecidos, ao longo dos anos, como a própria alma do lugar habitado:

“Mamãe era a alma da casa. O bom humor e alegria eram seus instrumentos de

agregação. Na nossa casa [...] o tom era de alegria. Os parentes, os amigos dos

filhos, netos e bisnetos eram sempre bem-vindos. Muitos primos passaram grandes

temporadas em nossa casa, estudando, trabalhando, resolvendo problemas. E havia lugar para todos, na casa e no coração.” (Rodrigues, 2003; 137-138)

Conheci a entrevistada Dona Lorena, 78 anos e aposentada, quando ela morava em

uma casa que fica defronte à minha. Um grande Ipê Amarelo na calçada, assim como

as flores do jardim, das quais ela cuidava diariamente como muita dedicação, foram

plantados por ela ao longo dos quarenta anos em que viveram nessa casa – ela, seu

marido e os dois filhos. Na época em que a conheci, havia uma placa de “VENDE‐SE”

fixada ao seu portão. Viúva, os filhos casados, e ela morando sozinha, foi com grande

tristeza que, resolveu ceder às argumentações dos filhos para que vendesse a casa e

se mudasse para um apartamento: seria “mais seguro” para ela. Além disso, a venda

da casa seria uma maneira de ajudar financeiramente aos filhos. Ao se mudar para o

atual apartamento, D. Lorena contou‐me que deixar sua casa significava, também,

deixar para trás o período mais feliz de sua vida: período em que, em sua memória,

misturam‐se lembranças do grande amor que vivera ao lado do marido, da felicidade

ao ver os filhos crescer, da própria realização profissional, do convívio constante com

a família – e, principalmente, o fato de tudo isto ter sido vivido e partilhado naquela

casa.

Mesmo estando fisicamente instalada em seu novo apartamento, D. Lorena

permanece, até hoje, emocionalmente conectada à antiga casa, o que não permite

que seu novo espaço doméstico seja – como nas palavras de Bachelard –

sensibilizado com a “essência da noção de casa” (Bachelard, ibidem; p. 25). Como

prova de que a eventual segurança física que o morar em um apartamento pudesse

oferecer em relação à sua antiga morada – argumento utilizado pelos filhos para

convencê‐la a mudar‐se – não é a condição suficiente para que ela pudesse passar a,

de fato, habitar seu novo abrigo, o qual não consegue sentir como acolhedor de suas

memórias e referências de domesticidade, D. Lorena, enfim, ainda não habita

realmente sua nova casa:

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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[Depoimento gravado:] 44

“[...] Deixe eu pensar, já estou esquecendo... Eu tenho aí as fotos. Era menor, a frente não era assim, a garagem era lá no fundo, era completamente diferente. Mas, bonita... tinha um terraço bonito na frente... O meu marido tinha um amigo que era engenheiro da Prefeitura. [...] E ele que trouxe as plantas da minha casa, na frente. Coisas bonitas, nos vasos que ele mandou fazer. [...] Esse amigo tinha um filho que chamava Cícero. E o meu marido botou o nome do nosso filho de Cícero porque ele adorava esse rapaz. Então, foi assim que nós começamos a nossa casa. Não tinha nada na rua. Na frente tinha uma árvore, o meu filho andava com um estilingue, sabe? Não tinha nada... Aí, domingo à tarde, assim, domingo de manhã, tinha um tronco enorme no chão. Aí a gente sentava ali porque não tinha nada! Nada, nada. [...] Então, querida, eu fui – eu acho – uma pessoa muito feliz na minha casa, na minha vida. Lá eu recebia meus amigos, minha família – tinha sempre alguém lá. Eu sempre gostei muito disso. Pra mim, isso que é casa! Eu tive um trabalho maravilhoso, que eu adorava! Meu marido, um marido especial. Meus filhos, minha família, tinha meus irmãos que eu adorava. Então, eu fui muito feliz naquela casa.

Olha as coisas que eu tenho aqui em casa! Olha isso aqui: quando o meu irmão foi para a Itália, ele fez um curso de cerâmica... olha isso que ele fez pra mim [mostra um objeto de cerâmica com a forma da letra “L”, de “Lorena”]. Quer ver mais uma coisa? Venha aqui! [tira algo do armário] Isto, quando meu filho nasceu, o Edson – quantos anos faz? Quarenta e tantos! – aí, eu fiquei em casa, de licença do trabalho. [...] Um dia, eu estava em casa, aí um menino do Instituto45 veio em casa: ‘Dona Lorena, o seu Jaques falou pra senhora fazer o favor de ir lá no Instituto, que ele quer falar com a senhora’. Eu falei, ‘nossa, que será?...’. Fiquei com medo, né, vai que eu fiz alguma coisa errada. Aí, eu fui lá, entrei na sala dele. Aí, ele entrou, e veio com isso aqui na mão [mostra um brinquedo de bebê]. [...] E me deu isto aqui! [risos]. Então, são coisas que a gente tem e lembra, né?...”

[Frases ditas por D. Lorena e anotadas posteriormente:]

“Eu, meu marido e meus filhos fomos muito felizes naquela casa.”

44 Pelo fato de a presença do gravador causar grande constrangimento à entrevistada, apenas parte de seu depoimento foi registrada em gravação. Outra parte deu-se em forma de uma conversa informal, da qual algumas frases foram anotadas posteriormente ao nosso encontro. 45 Lugar onde D. Lorena trabalhou.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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“Eu fiquei muito triste, chorei muito quando decidi vender a casa: porque aquela casa é a minha vida.”

“Aqui é tudo muito pequeno, não cabe nada. Tive que deixar minhas plantas. Toda vez que eu penso nisso, choro [lágrimas].”

“Esse carrinho de chá, eu e o meu marido fomos muuuito felizes com ele. Essa louça foi o meu marido que me deu de presente, quando nós éramos noivos. É muito duro ter que vender essas coisas todas porque não cabem nesse apartamento [lágrimas], mas, fazer o quê?”

“Tudo isso é muito triste. Eu tenho ido à minha psicóloga e ela já me disse que, se eu tive uma vida tão boa, eu tenho que ficar feliz. Agora, eu sei que tudo isso passou, é passado.”

“Eu vendi a casa, comprei esse apartamento, e o resto do dinheiro, eu dei pros meus filhos. Tem um que não tem a cabeça no lugar e não vai bem nos negócios. Eu tinha que ajudar.” (D. Lorena)

A propósito da rejeição do velho por parte da sociedade industrial, Bosi

comenta que, diferente do que ocorre em relação à criança, na qual “o adulto

‘investe’ para o futuro”, em relação ao velho, age-se com “duplicidade e má fé”. Se,

por um lado, “a moral oficial prega o respeito ao velho” por outro, quer que o velho

ceda seu lugar aos jovens, o que pode ser verificado no interior das famílias, com a

cumplicidade dos adultos voltada a manejar e imobilizar os velhos com cuidados

“para ‘seu próprio bem’”; “em privá-los da liberdade de escolha, em torná-los cada vez

mais dependentes, ‘administrando’ sua aposentadoria, obrigando-os a sair de seu

canto, a mudar de casa” – experiência que a autora qualifica como “terrível para o

velho”. (Bosi, ibidem; p. 78). Segundo Bosi, o desenraizamento seria uma “condição

desagregadora da memória”. Isto porque ter um passado é um direito da pessoa que

deriva desse enraizamento. Assim, privar o velho das lembranças – muitas delas,

talvez as mais importantes, guardadas no espaço físico da casa que é

“despersonalizada” e transformada em capital – seria, como afirma Bosi “um dos mais

cruéis exercícios da opressão econômica sobre o sujeito” (Bosi, ibidem; p. 443).

Especialmente, em relação aos haveres pessoais dos velhos, Yi-Fu Tuan

dirá que eles têm uma importante participação na definição do sentido do eu, uma

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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vez que já estão muito cansados para fazê-lo através de projetos e ações, interações

sociais ou visitas a lugares que poderiam trazer-lhes lembranças carinhosas. Assim,

através das coisas possuídas – objetos aos quais estão emocionalmente apegados [e aí,

podemos incluir o próprio objeto casa] – o sabor das experiências vividas no passado

permanecem pairando sobre eles (Tuan, 1983; p. 207).

A entrevistada D. Antônia, uma dona‐de‐casa de 77 anos, descreve um drama

parecido com o que viveu D. Lorena. Nos últimos dois anos, as duas pessoas com

quem D. Antônia – uma dona‐de‐casa de 77 anos – dividia o seu espaço doméstico

faleceram: seu marido e sua mãe. Agora, morando sozinha, à semelhança do que

ocorreu com D. Lorena, D. Antônia enfrenta a insistência do filho para que venda a

casa, em que vive há trinta anos, e se mude para um apartamento. Mulher

entusiasmada com a vida, D. Antônia confessou, em seu depoimento, que “nunca”

chora; mas que, se tiver que deixar sua casa, “com certeza”, vai chorar. As falas de D.

Antônia revelaram como as ações e os relacionamentos ali estabelecidos – desde a

busca e a adaptação à nova casa, passando pelos trinta anos de convívio familiar, até

o momento em que as presenças do marido e da mãe foram substituídas por

lembranças de relacionamentos – passaram a compor sua própria experiência de

habitar sua casa, e quão penoso será desprender‐se dela para vendê‐la. Assim,

diante do argumento do filho – “esta casa é muito grande para a senhora” – poder‐

se‐ia questionar: com que critério se avalia o tamanho de uma casa? Seria, mesmo, a

casa de D. Antônia grande demais, considerando‐se todas a experiências ali vividas e

guardadas?

“[...] a gente acabou ficando com esta [casa] porque eu gostei da rua e o meu marido se encantou com o morro que tinha aí atrás. Era um morro que ia até o fim do terreno. Aí, ele construiu a garagem e fez o caramanchão. [...] eu achei que ele [o marido] teve muito sossego. Ele se distraiu fazendo o caramanchão, arrumando a garagem; fez um quarto pra guardar as bagunças da casa... E eu achei que ele acabou gostando muito daqui, viu? [...] Os meus netos também aproveitaram muito esta casa porque eles moravam em apartamento, então adoravam vir pra cá. Eles brincavam, passavam o dia inteiro brincando aqui. [...] Eu acho que eu vou ficar muito triste [se precisar deixar a casa]. Olha, eu vou dizer: eu nunca choro, mas seu eu sair daqui, eu tenho certeza que eu vou chorar. Afinal, são trinta anos aqui! Mas o meu filho acha que a casa ficou muito grande pra mim, que não é bom eu morar sozinha, e que é melhor eu me mudar para um apartamento. Ele já até mandou uma corretora avaliar a casa. Eu não sou mais tão

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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jovem – eu já tenho 77 anos! – mas, por enquanto, eu me sinto, ainda, muito bem... solta! Eu fico totalmente segura, não tenho medo nenhum de dormir aqui. Eu já falei pra ele, mas ele não entende, não vê isso – ele se preocupa, né?” (D. Antônia)

****

O depoimento da entrevistada D. Dalma, 72 anos, aposentada e moradora de uma

instituição para idosos, é, também, uma testemunha da mescla dos sentidos físico e

emocional – este último formado por lembranças de relacionamentos – que as

memórias de uma casa onde se morou pode conter:

“[Que lembranças a senhora tem da casa da sua infância?]

Eu sempre morei com meus pais, sempre. Sou descendente de italianos. Éramos cinco, meus pais e nós três. [...] Nós morávamos no interior do Paraná. Eu me lembro muito dessa casa: levantávamos cedo, tinha aquele quintal imenso, com muita fruta. Carambola, romã, jabuticaba, até limão! No tempo das frutas, a gente ia comer lá no pé – as que caíam no chão, já não prestavam... que coisa boa! [...] Naquela época era muito bom porque as casas eram grandes. Na frente era o jardim, e depois era o pomar. A casa era simples – de tijolo, mas era simples. O mais bonito dessa casa é que ela tinha uma varanda em toda a volta. A cerca da varanda era alta, meu pai fez um portão branquinho, nossa, a casa era linda! Tudo simples, mas com muito capricho. Aquelas toalhinhas de crochê, as cortininhas... Eu me lembro de uma despensa – acho que era do tamanho deste dormitório – só para os mantimentos. Minha mãe fazia uma quantidade de doce em calda, pão, frutas, e depositava tudo ali. Minha mãe era de um capricho impressionante! E eu acho que eu herdei isso: vai lá ver o meu guarda‐roupas! Detesto roupa, assim [faz um gesto], enrolada, iihh...não, comigo não! [...] ...Mas a minha mãe era muito caprichosa, fazia trabalhos manuais, aquele crochê miudinho... que mão divina!” (D. Dalma)

****

Outra entrevistada, D. Paulina, 85 anos, também vive em uma instituição para idosos.

Após perder o marido, com quem viveu por mais de seis décadas, resignou‐se ao fato

de “lá fora” não ter “mais significado nenhum”, e mudou‐se voluntariamente para o

asilo. A perda do amor de sua vida fez com que ela renunciasse ao ânimo de viver, e,

com isto, à própria casa onde viveram – uma vez que essa casa, que participara

ativamente, com sua fisicalidade, de sua vida ao lado do marido, tornava‐se, então,

vazia, des‐animada, refletindo apenas lembranças de um tempo feliz irrecuperável.

Ou, como traduz King, sua casa deixou de ser um espaço de carinho e partilha e se

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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tornou um espaço de lacunas – “uma casca vazia, em vez de um ninho quente” (King,

ibidem; p. 152).

Conforme observa Tuan, sobre a morte do companheiro de uma vida, pessoas idosas

podem não querer sobreviver por muito tempo diante de tal perda; mesmo quando

dispõem de condições materiais para continuar vivendo. Isto, devido ao fato de elas

terem aprendido a ver na pessoa amada o seu lugar de repouso; tendo passado a, de

fato, morar no amor de outrem. O ser amado adquiriu para essas pessoas o sentido

de verdadeiro lar (Tuan, ibidem; p. 154) – o que representa o maior grau de mescla

entre as idéias de habitar doméstico e relacionamentos ali estabelecidos.

A respeito de quando a entrada de alguém em uma instituição é voluntária, como no

caso de D. Paulina, Ervin Goffman observa que essa pessoa “parcialmente já se

afastara de seu mundo doméstico [..., que é] algo que já tinha começado a definhar”

(Goffman, 1974; p. 25). Ao refletir sobre sua atual moradia, D. Paulina ainda procura

tornar racional a conformidade diante da saudade e do vazio que permanece em sua

alma, mas, o tom de sua voz e o ritmo de suas palavras, deixam transparecer um

estado de espírito de permanente melancolia em relação ao seu atual habitar.

“[...] Sabe, eu acho que meu lugar é aqui, porque lá fora não tem mais significado nenhum. [...] Sabe porquê? Eu gostava muito do meu marido, e ele de mim; a gente viveu muito bem. Ficamos casados durante 62 anos. Eu casei com 17 anos. Se Deus não o tivesse levado, estaria com ele até hoje. Eu gostava muito de cuidar da minha casa e, principalmente, de cuidar dele. Quando ele se foi – por causa de uma pneumonia, ele faleceu em quatro dias –, a terra me faltou debaixo dos pés. Aí, olhava para um lado, para o outro, e não tinha mais ele. Eu não queria de jeito nenhum continuar na nossa casa. Tinha sido muito bom lá – eu morreria de tristeza. Eu sinto que, agora, minha casa é aqui – eu me sinto feliz aqui. É claro que não é como a casa da gente – e nem pode ser! Mas, se Deus me colocou aqui, eu tento me sentir bem de uma outra forma. Tem pessoas que moram aqui, que são revoltadas, mas elas têm que entender isso: têm que entender que a vida da gente acabou!” (D.

Paulina) ***

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O entrevistado Reginaldo46 contou‐me que, devido ao seu trabalho, como consultor

de empresas, passa “90%” de seu tempo longe de casa, inclusive fora do país.

Explicou que esse fato o faz sentir muita falta do bem‐estar experimentado no

espaço doméstico, em companhia de sua família. Nos poucos momentos que pode

partilhar dessa relação, Reginaldo traz referências dos hábitos domésticos e da

própria casa da infância, quando a família se reunia para jantar, projetando essas

referências nas atuais relações estabelecidas em sua casa. Ainda que a realidade seja

outra, e que ele não possa estar reunido como sua família constantemente, como

fazia seu pai, as práticas domésticas do passado estabelecem uma conexão entre seu

habitar doméstico atual e o tempo de uma domesticidade já experimenta e que

deixou saudades. Desta forma, como dirá Marcus, Reginaldo “reacende a conexão

espiritual” com o habitar doméstico encontrado pela primeira vez, na casa da

infância (Marcus, ibidem; p. 253):

“[...] Como eu passo a vida inteira fora, e sou muito apegado aos meninos, então, quando eu chego, quero ficar com eles o máximo de tempo que eu posso. E aí, também tenho que curtir minha casa, que eu não tenho durante todo o tempo. Eu acho que é porque eu venho de uma família muito grande. E sempre moramos em casa, numa casa muito grande. Somos sete irmãos, quatro mulheres e quatro homens. A gente sempre jantava junto, na casa dos meus pais. Meu pai não era um homem formal, muito pelo contrário. Mas, no jantar, ele gostava de estar junto com todo mundo. Eu também gosto de jantar junto com a minha família, eu trouxe isso na minha vida, é um negócio que me faz bem.” (Reginaldo)

A seguir, dois exemplos poéticos demonstram a associação do espaço físico

da casa às referências de relações afetivas ali estabelecidas, assim como a transferência

emocional e a atribuição de qualidades subjetivas ao espaço, resultantes dessas

relações. No primeiro exemplo, através de seus versos, Pablo Neruda (1999) atribui à

casa a personalidade de sua amada, trazendo imagens poéticas que traduzem os sons,

cores e movimentos das ações de seu cotidiano doméstico: “Tua casa ressoa como um

trem ao meio-dia”. Como recurso para transmitir sua intensa admiração à vibrante

natureza da mulher, e ao ânimo que ela empresta ao espaço em que habita, o poeta

atribui poesia aos fatos corriqueiros percebidos do dia-a-dia – “A luz azul do muro

conversa com a pedra”– enquanto apresenta, de forma a descrever o pulsar da casa, uma

seqüência de ações praticadas pela mulher: “Sobes, cantas, corres, caminhas, desces (...)”. 46 Apresentado no Capítulo 1.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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XXXVIII

Tua casa ressoa como um trem ao meio-dia, zumbem as vespas, cantam as caçarolas,

a cascata enumera os feitos do orvalho teu riso desenvolve seu trinar de palmeira.

A luz azul do muro conversa com a pedra,

chega como um pastor silvando um telegrama e, entre as duas figueiras de voz verde,

Homero sobe com sapatos sigilosos.

Somente aqui a cidade não tem voz nem pranto, nem sem-fim, nem sonatas, nem lábios, nem buzina

mas um discurso de cascata e de leões,

e tu sobes, cantas, corres, caminhas, desces, plantas, coses, cozinhas, pregas, escreves, voltas

ou te foste e se sabe que começou o inverno.

(Neruda, 1999; p. 52)

XXXVIII

Tu casa suena como un tren a mediodía, zumban avispas, cantan las cacerolas,

la cascada enumera los hechos del rocío, tu risa desarrolla su trino de palmera.

La luz azul del muro conversa con la piedra, llega como un pastor silbando un telegrama

y entre las dos higueras de voz verde, Homero sube con zapatos sigilosos.

Sólo aquí la ciudad no tiene voz ni llanto, ni sin fin, ni sonatas, ni labios, ni bocina,

sino un discurso de cascada y de leones,

y tú que subes, cantas, corres, caminas, bajas, plantas, coses, cocinas, clavas, escribes, vuelves o te has ido y se sabe que comenzó el invierno.

(Neruda, 1999; p. 52)

No segundo exemplo, de Fernando Pessoa, as emoções vividas pelo poeta,

quando criança, em dias de seu aniversário, são descritas de modo que a casa da

família se torna algo vivo, também a saldá-lo e a fazer parte das emoções relembradas.

Sem mais esperanças para sua vida, no momento em que se percebe distante dessa

casa e da felicidade que ela incorporava, a casa reaparece, nos versos de Pessoa,

enfeitada para representar toda a sua nostalgia, por ele não poder novamente viver os

dias felizes de antes.

ANIVERSÁRIO

No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos, Eu era feliz e ninguém estava morto.

Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos, Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,

De ser inteligente para entre a família, E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo, O que fui de coração e parentesco.

O que fui de serões de meia-província, O que fui de amarem-me e eu ser menino,

O que fui – ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui... A que distância!...

(Nem o acho...) O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa, Pondo grelado nas paredes...

O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),

O que eu sou hoje é terem vendido a casa, É terem morrido todos,

É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos... Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!

Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez, Por uma viagem metafísica e carnal,

Com uma dualidade de eu para mim... Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui... A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,

O aparador com muitas coisas – doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado –, As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração! Não penses! Deixa o pensar na cabeça!

Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus! Hoje já não faço anos.

Duro. Somam-se-me dias.

Serei velho quando o for. Mais nada.

Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...”

(Pessoa, 1972; p. 379)

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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A casa como espaço do individuo

Toda essa análise sobre a transformação da percepção da casa habitada

sugere uma relação de reciprocidade entre a pessoa e a casa habitada. Se, por um

lado, ao usarmos a casa como local físico do nosso habitar privado, atribuímos valores

ao seu caráter de objeto comum, por outro lado, mais que simplesmente uma

estrutura física, a casa passa a ser percebida por nós, que a habitamos, como uma

entidade particular e única, capaz de acolher nossa subjetividade, e nos oferecer apoio

emocional; onde, enfim, encontramos conforto, no sentido lato da palavra:

Conforto do Latim conforto,as,avi,atum,are: animar, confortar, consolar

(Cretella e Cintra, 1953)

Segundo Witold Rybczynski, o termo tem em sua raiz latina, confortare, o

sentido de fortalecer ou consolar – significado que se manteve durante séculos. E é

neste sentido que ele também é usado na teologia: o “Comforter” (consolador) era o

Espírito Santo, em inglês. O autor conta-nos que, ao longo do tempo, ao termo

acresceu-se o sentido jurídico e que, no século XVI, “comforter” era alguém que havia

sido cúmplice de um crime (Rybczynski, 1996, p. 34). Se buscamos o termo cúmplice

no dicionário, vemos que ele significa aquele “que possibilita, favorece, concorre na

realização de algo” (Houaiss, 2001) – o que confirma o sentido de “apoio” dado ao

termo. Ampliada tempos depois, segundo Rybczynski, essa noção foi para pessoas e

coisas que precisassem de uma certa satisfação, ainda que sem exageros. E só no

século XVIII, este sentido estendeu-se, passando de algo apenas conveniente para se

referir a algo que proporcionasse “o sentido de bem-estar físico e de prazer”

(Rybczynski, ibidem). Considerando especificamente a esfera doméstica, e antes

mesmo de começar a discorrer sobre o conforto como um “novo modo de vida

doméstica” proposto pela burguesia industrial47, Tomás Maldonado irá referir-se ao

conforto como uma “função compensatória”, a busca pelo restauro – tanto físico

quanto psicológico – da energia que despendemos no “mundo hostil externo do

trabalho” (Maldonado, 1996; p. 249-250).

47 Tema que abordaremos no capítulo seguinte.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Considerando os sentidos de conforto vistos acima, podemos entender a

consideração de Bachelard, de que a casa, que funciona física e espiritualmente –

tanto por nos manter protegidos das imprevisibilidades do mundo, quanto por

acolher os nossos sonhos, ao longo de nossas vidas –, seria o nosso “grande berço”,

sem o qual viveríamos dispersos pelo mundo (Bachelard, ibidem, p. 26). Bollnow

ainda acrescentará a essa concepção que até mesmo no momento em que mais

estamos indefesos – ao dormirmos – a casa deve ser de tal forma acolhedora, “digna

de confiança”, que o homem possa entregar-se a ela sem reservas (Bollnow, ibidem; p.

169).

Da entrevistada Analu, em relação ao seu apartamento:

“[...] E aí, a casa é isso, assim. Ela comporta momentos de alegria, de tristeza, de dúvidas, de angústias, de medo... e ela me protege, mesmo. Eu tenho ali, com meu refúgio; tipo assim, graças a Deus, eu tenho esse ponto pra voltar, sabe?” (Analu)

****

Ao contrário de Analu, Lucélia, 67 anos, atualmente morando em uma instituição

para idosos, não percebia sua antiga casa como um lugar de apoio e consolo

emocional diante de suas carências pessoais. Quando entrevistada, havia três meses

que Lucélia havia sido encaminhada por um Promotor de Justiça para o asilo. Apesar

de afirmar ter uma casa, seu encaminhamento fora resultado da denúncia da própria

filha, pelo fato de ela ter passado a viver dormindo e mendigando nas ruas. Vivendo

em condições habitacionais muito precárias, em meio a um desajuste familiar, e

dividindo o ínfimo espaço doméstico com mais sete pessoas – segundo informações

da instituição –, embora Lucélia não aponte claramente as razões pelas quais passou

a viver na rua, deixa claro o grande desconforto ao estar em sua casa. Quanto a isto,

Robert Gifford dirá que nem sempre um morador de rua é uma pessoa sem casa;

sendo que o que ocorre, muitas vezes, é que, por essa casa não prover nenhum

senso de segurança, identidade, conexão, acolhimento e harmonia em relação ao seu

morador, ela passa a ter muito pouco, ou nenhum, significado para ele. Assim, alguns

moradores de rua se vêem “separados” de suas casas – algumas vezes por sua

própria escolha, algumas vezes, não (Gifford, 1997; p. 197). Assim Lucélia relata o seu

drama:

“Eu morava com a minha filha, cinco netos e meu genro. Minha filha é mãe solteira. Ela mora com o Cezinha e tem dois filhos dele. Também tem o Rafael, que é do [nome inaudível], que ela morou pouco tempo junto, saiu grávida e eu cuidei dela.

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Depois tem o [nome inaudível], que é filho do Zé Roberto, que morreu e está no céu, com Deus... [...] O pai da minha filha [...] morou comigo só um ano [...]. Eu tive ela, com quinze dias, ele foi embora. Aí, eu fiquei sozinha com a minha filha; trabalhando, minha cunhada tomando conta. [...] Depois, eu morei com o [nome inaudível] sete anos e sete mês. [...] Depois, ele começou a dar de beber [...]. Ele ficou agressivo, deu um soco aqui na minha mão, que levantou todos os dedos, remontou todos os nervos, e a mão inchou. [...] Aí, eu larguei, deixei ele. Ele ficou na casa e eu levei minha filha e a mudança pra casa da minha tia, lá no Pico do Jaraguá. [...] Eu não ficava em casa... não sei porque... chegava de manhã, já tinha vontade de sair, pra passear. [...] Eu me sinto mal em casa. De manhã, eu tenho que sair, conversar com as outras pessoas, tomar um cafezinho na padaria, todo mundo me quer bem, e assim eu levo a vida.” (Lucélia)

****

Em seu depoimento, Maria conta que foi em alguns hotéis em que se hospedou, no

início de sua carreira, “antes mesmo de ter tido a oportunidade de ter uma casa, de ter um espaço”, onde passou a se sentir “muito mais em casa” do que na própria

casa. Assim, pelo fato de esses hotéis representarem a estrutura física e o significado

subjetivo do habitar doméstico nunca experimentados antes, algumas dessas

experiências de hospedagem tornaram‐se não apenas referências formais – tal como

vimos no capítulo anterior –, mas referências de conforto emocional, as quais Maria

procurou atribuir a suas próximas moradas, buscando nelas reproduzir a mesma

experiência de sentir‐se “abraçada” pelo espaço habitado:

“[...] já teve momentos em que eu não queria voltar pra casa porque o lugar onde eu estava [algum hotel] era mais gostoso e era mais a minha cara. Ou era tudo que um dia eu queria conquistar. Porque a minha casa era mais triste. [...] Então, esses hotéis que abraçam a gente, tanto no conforto íntimo, quanto na praticidade [...] sempre foram os hotéis que eu achei mais interessantes, e que me senti mais em casa.” (Maria)

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Assim, podemos conectar a noção de conforto, como a vimos aqui – no

sentido de animar, fortalecer, consolar – à idéia de casa como amparo ao seu

morador, frente às adversidades do mundo exterior. O sentido de estarmos em paz,

na tranqüilidade de nossa casa – de não necessitarmos da eterna vigilância, tal como

quando estamos lá fora à mercê das adversidades do mundo – é, aqui, associado por

Bollnow a um relaxamento das relações objetivas e intencionais que estabelecemos

com a estrutura concreta de nossa casa e com o espaço físico que ela define. Esta,

segundo Bollnow, seria justamente a condição prévia para que o indivíduo se

amalgame a seu espaço doméstico, permanecendo “introduzido, abraçado e apoiado”

por ele (Bollnow, ibidem, p. 260-261). Uma vez incorporados os sentidos de

segurança, identidade, pertencimento e acolhimento em relação à casa – e,

naturalmente, sem que com isto ignoremos a sua fisicalidade –, dificilmente

incorremos no risco de nos concentramos apenas na casa como estrutura física, ou de

considerá-la um objeto com um fim em si próprio.

O entrevistado Rui, 65 anos, aposentado, trabalhou durante 34 anos para uma

empresa aérea como comissário de bordo e instrutor de comissários em vôos

internacionais – trabalho que o obrigou a estar, constantemente, longe de sua casa,

ou de seu “útero”, expressão que utiliza para definir sua casa. Em sua entrevista, Rui

dedica‐se a justificar tal expressão, mostrando o sentido de estar amalgamado ao

lugar do habitar doméstico, onde vive com a esposa, e descrevendo a sensação de

estar longe dele:

“Depois de uma temporada fora, a sensação de voltar para casa é de como se eu voltasse ao útero, porque o útero é tudo aquilo que você tem como proteção: você vem dali, você nasce dali. Então, a ausência fora de casa é exatamente você estar em uma barriga de aluguel; não é o seu útero: desculpe‐me a metáfora, mas é exatamente a sensação... Você não está no seu útero, você não está na tua casa, na tua proteção, naquilo que você domina, envolvido pelas coisas e pelas pessoas que você conhece e estima. Estar longe dessas coisas, em um quarto de hotel, é estar em um ambiente que não é o seu ambiente – é um ambiente de aluguel. É transitório; você está em trânsito. Eu não sei de outras profissões, um caixeiro viajante... quem viaja por profissão, eu tenho impressão de que tem essa mesma sensação.” (Rui)

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Numa visão psicanalítica da relação estabelecida entre o homem e o

espaço de sua habitação, o psicólogo Alvino Augusto de Sáxiii observa que a habitação

é “o território psíquico do indivíduo” (Sá, 1988; p. 31). Isto, pois, ao nos

relacionarmos com o espaço habitado, esse espaço passa a oferecer-nos as coisas e os

fenômenos equivalentes a referenciais internos, nos quais nos projetamos, com os

quais nos identificamos. Através dessa “relação contínua e profundamente projetiva”,

afirma o autor, o indivíduo passa a ver e a sentir o espaço e aquilo que nele acontece,

através de seus conteúdos psíquicos”. E o faz, por um lado, projetando “sua própria

estrutura psíquica” na estrutura física do espaço; por outro, espelhando-se “nas forças,

nas direções, nos acontecimentos” – ou seja, no tempo desse espaço – o seu próprio

tempo, encontrando, aí, equivalentes para os seus dinamismos internos, seus próprios

impulsos, conflitos e necessidades. E essa projeção reflete-se na própria percepção que

o morador tem desse espaço, na forma como ele a interpreta e a vivencia (Sá, ibidem;

p.25-26).

Ao considerar que seu “conceito de moradia” se desenvolveu em função de suas

“experiências ciganas”, o entrevistado Lúcio48 tem como prioridade a alteração

constante do ambiente em que habita: “Se eu tenho uma determinada estrutura de morar, e essa estrutura não muda, eu acho que fico maluco.” Nos hotéis em que

passou a infância e a juventude, Lúcio não se conectava aos quartos, mas à

possibilidade de estar em contato com o mundo e suas constantes alterações – o que

acabou se tornando um ideal de habitar cultivado ao longo de sua história de

moradias. Por representar uma restrição a esse ideal, o vínculo com a casa física não

corresponde às suas expectativas de habitar. Com isto, Lúcio justifica o fato de se

abstrair do interior do apartamento onde mora – da decoração, das “divisõesinhas”,

como ele fala. O desejo de um apartamento “com muita vista, num lugar alto, de onde [...] pudesse ver o mundo” seria a tradução formal dos valores que Lúcio

aprendeu a cultivar ao longo de sua história de moradas. Seu depoimento torna

válidas as considerações de Sá, que vimos acima, assim como a de Gifford, segundo

as quais, a forma e a estrutura de nossa casa devem ir ao encontro de nossas

necessidades psicológicas (Gifford, ibidem; p. 196):

“Eu comprei esse apartamento e nem vi o que tinha dentro. [... A minha mulher e eu] Contratamos um decorador, que botou tudo abaixo e fez tudo do jeito que ele quis.

48 Conforme apresentado no Capítulo 1, Lúcio passou a infância e a juventude mudando-se, com sua mãe, de hotel para hotel, só tendo passado a morar em um lugar fixo depois de adulto e casado.

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Claro que ele pediu a opinião da gente, mas eu não participei da escolha disso ou daquilo. [...] Então, qual seria o meu ideal de apartamento? Seria um penthouse aberto, com muita vista, num lugar alto, de onde eu pudesse ver o mundo. Eu não gosto de divisõezinhas, eu não gosto de nada disso. O meu apartamento de São Paulo é cheio de divisõezinhas, mas não fui eu que fiz! Mas, se você me pergunta, se eu fosse fazer um apartamento pra mim, a vista seria essencial! O quê, de lá, eu consigo ver, como um observatório. [...] a vista é 99% do apartamento! Não interessa o que tem dentro! Eu gosto de uma coisa ampla – aí, sim – onde eu possa me situar. Se eu pegasse um apartamento de cinqüenta metros quadrados, eu queria ele totalmente aberto, sem parede, sabe? É assim que eu me sentiria bem. Eu aluguei, uma vez, um apartamento na Praça Roosevelt. Era um kitchenette. Olha só: tinha um banheiro, uma cozinha – que eu mal usava, mas esquentava o café – e uma sala grande, uma sala bárbara. Aquele apartamento era uma porcaria, mas a praça, na frente, que era legal.” (Lúcio)

Ao falar da mútua interação entre a casa física e aqueles que a habitam,

Marcus afirma não ter dúvidas de que, de algum modo, todos nós dispomos no

ambiente físico doméstico mensagens do inconsciente sobre nós mesmos. Segundo

afirma a autora, como somos incapazes de compreender tudo aquilo que encerramos

em nossa psique, precisamos colocar essas coisas para fora, para que possamos

contemplá-las – “tal como precisamos ver nosso corpo físico em um espelho”

(Marcus, ibidem; p. 15). Na mesma direção de Marcus, King afirma que...

“Nossa casas falam por nós, sobre como somos, e sobre nós para os outros; se formos

honestos, elas também nos dirão quem e o quê nós queremos ser. As casas,

portanto, também podem ser vistas como um espelho que erguemos para nós mesmos” (King, ibidem; p.78).

Ao descrever o momento em que passamos a habitar um novo espaço, O

geógrafo Tim Cresswellxiv dirá que a forma de tornarmos esse espaço, a princípio

anônimo, em um lugar significativo para nós – o “nosso lugar” – é fazer com que esse

espaço passe a “falar algo de nós” (Cresswell, 2004; p. 2). E isto acontece quando

passamos a dispor as coisas que possuímos – e que trazem consigo todo o significado

que nelas depositamos –, pintamos as paredes da cor que nos faz sentir bem,

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organizamos o espaço da maneira que, ao longo da nossa história doméstica,

passamos a entender a forma ideal de nos relacionarmos com ele, etc. Assim, ao

mesmo tempo em que a incorporação dos aspectos do mundo exterior torna a casa o

meio para a nossa atuação do mundo – tal como vimos no capítulo anterior, essa

mesma incorporação, aliada aos significados que atribuímos ao espaço doméstico,

transforma esse espaço. Ao absorver esses significados, nossa casa incorpora, de fato, a

história, o tempo, do nosso habitar doméstico, passando a falar, fisicamente, de nós,

seus habitantes.

A entrevistada Marly49 torna patente as considerações teóricas de Marcus, King e

Cresswell, ao descrever o processo de personalização do seu espaço doméstico – seu

trailer –, através do qual, as soluções formais adotadas por ela passam a refletir não

apenas sua relação com o espaço físico habitado, mas também seu espírito, sua

personalidade, seus valores – expressos por seus desejos, necessidades e aspirações

–, em relação a esse espaço:

[Mostrando o trailer...]

“[...] eu comprei o trailer zero, quer dizer, você manda fazer o trailer e escolhe tudo, do jeito que você quer. Como eu moro assim há vinte e cinco anos, e já sei das minhas necessidades, [...]. [...] Eu queria um quarto em cima porque eu tinha dois meninos, então aqui ficou sendo o quarto deles; o meu é do outro lado. Embaixo das camas ficam as gavetas, onde ficam as roupas. Nesse armário, eles punham televisão, o vídeo, o som. Aí, a gente vai escolhendo, por exemplo, no original, não tem esses armários, só que eu adoro bagulho, então mandei colocar. [...] A cada dois, três anos, eu troco tudo: aqui [na sala de jantar] era tudo diferente, outra cor, outro estofado. Agora já enjoei, tô achando tudo muito colorido. [...] Aqui [no sanitário, mostrando o desnível da soleira do boxe do chuveiro], a original era um pouquinho mais baixa, mas eu mandei levantar para quando eu estou muito cansada, dá pra fazer tipo uma banheirinha, sabe? A televisão, eu pus no meu quarto – eu detesto televisão na sala porque não dá pra conversar. Quando os meninos eram pequenos, eu era obrigada a colocar, pra eles poderem ver. Agora que eles se

49 Apresentada no Capítulo 1.

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mudaram, aboli a televisão na sala. É horrível, você estar almoçando e vendo a notícia de alguém matando não sei quem, o mundo caindo... [...] E, sabe, a pessoa suja é suja em qualquer lugar, e a pessoa limpa é limpa em qualquer lugar. Se a pessoa é limpinha, mesmo que a casa seja em cima de chão batido, é bem varridinha, bem limpinha.” (Marly)

Ao escrever sobre a filosofia da decoração de interiores, Mario Praz usou a

palavra Stimmung – atmosfera; impressão de intimidade e aconchego provocada por

um aposento e por sua decoração – para descrever a...

“característica de interiores que está menos relacionada à funcionalidade do que à

maneira como o aposento expressa a personalidade do seu dono, o modo como reflete sua alma” (Praz, Interior Decoration; p. 50-55. Apud Rybczynski;

Apud; p. 55)50.

Considerando isso, Rybczynski, estabelece uma distinção entre

“aconchego” e “arrumação”. Para justificar seu pensamento, o autor dirá que se

ambos tivessem o mesmo significado, as pessoas gostaria de morar “casas estéreis e

impessoais” como aquelas vemos nas revistas de arquitetura e decoração. Para o

autor, nesses cômodos artisticamente produzidos e fotografados, o que falta é

justamente “a marca dos moradores” (Rybczynski, ibidem; p. 33).

A entrevistada Analu traduz, com suas palavras, o sentido de Stimmung experimentado em sua casa:

“[...] eu gosto de tudo organizado e tudo limpo, mas também não gosto daquela casa que parece casa de boneca, que não mora gente. Então, eu acho que a movimentação das coisas é importante, a troca de lugar. Ou mesmo, se eu li um livro, deixar esse livro lá, porque ele tá tendo um dinamismo ali. [...] Agora, eu mudei tudo: tirei a tv da rack e passei pra mesinha. Então, quem freqüenta em casa, a gente começou a ver tv, agora, tudo espalhado pelo chão. Que em casa tem uma movimentação bem grande, assim, de amigos. Que eu gosto muito de morar sozinha e de ficar sozinha. E também gosto muito da movimentação que

50 Não foi encontrada referência à publicação da citação de Praz feita por Rybczynski.

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acontece naturalmente. Eu atribuo o fato de as pessoas gostarem de vir em casa, e de ficar, porque elas se sentem bem ali; e elas falam isso. [...] Eu gosto desse ponto, e ali eu me sinto bem. E ali eu estudo, ali eu trabalho, ali eu reúno meus amigos, a gente toma cerveja, a gente ouve um som, a gente toca, a gente dança – o vizinho de baixo reclama, daí, a gente pára – e amanhã começa tudo de novo.” (Analu)

****

Já o entrevistado Pedro, 50 anos, artista plástico e professor, vive a insólita situação

de chamar de sua casa o lugar em que passa apenas alguns fins de semana durante o

ano. Há alguns anos, mudou‐se de São Paulo, sua cidade natal, com a qual se diz ter

desencantado ao longo do tempo, e cujo caos passou a fazer‐lhe mal. Construiu, em

Florianópolis, o que considera seu “projeto” ideal de habitar doméstico, descrito por

ele como sendo morar em um lugar que seja afastado da nocividade do caos urbano,

reunindo no mesmo espaço físico sua casa e seu estúdio. No entanto, por estar ainda

preso profissionalmente a São Paulo, Pedro permanece a maior parte do seu tempo

morando em um flat alugado nessa cidade. Impossibilitado de estar no “pequeno

mundo” que designou para o seu habitar privado, Pedro recusa‐se a se sentir em casa no flat; e o faz, recusando‐se a personalizá‐lo com objetos e memórias,

mantendo‐o despersonalizado, da forma como o recebeu. Com isso, Pedro percebe‐

se revivendo a experiência doméstica da juventude e da adolescência, quando não

considerava seu o quarto que partilhava com a avó e, por isso, se recusava a deixar lá

quaisquer que fossem as marcas de sua personalidade. Ainda na juventude, a

experiência de, finalmente, passar a ter o próprio espaço privado – seu quarto e, ao

mesmo tempo, seu local de trabalho – tornou‐se o modo ideal de habitar doméstico

sempre perseguido por Pedro.

No depoimento de Pedro, percebe‐se claramente que o esforço para se manter

estranho ao próprio espaço habitado, assim como a determinação de não

estabelecer quaisquer interações mais íntimas com ele, tem, como objetivo, o

prevenir‐se do risco de se reconhecer nesse espaço, e, como isto, criar conexões

emocionais com um modo de habitar que, racionalmente, recusa. Contudo, se por

um lado, essa recusa de estabelecer vínculos com o espaço habitado impede que

Pedro se disperse de seu ideal de habitar, ela também o impede de perceber esse

espaço – onde, de fato, vive –, como uma base para um habitar harmonioso tanto em

relação às ações privadas praticadas privadamente ali, quanto em relação ao mundo

em seu redor – seu trabalho, a cidade em que vive –, o que resulta em um conflito

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interno e no prejuízo à preservação de sua vida interior – fato que é experimentado

com grande dificuldade por Pedro:

“Pra começar, isso que está aí, eu não considero casa51. E eu faço questão de que seja assim. Não quero estabelecer nenhum vínculo com essa coisa que está aí. Eu passo cinco dias da semana aí; eu sei, não tem lógica nenhuma. [...] Antes desse flat que eu estou agora – faz uns seis meses que me mudei –, eu fiquei durante dois anos aqui pertinho, praticamente a uma quadra de distância de onde eu estou agora. Lá ilustrava até melhor a espécie de vínculo que eu estabeleço com essa coisa que está aí, que eu nem chamo de casa... eu durmo lá, não vivo um tempo lá. Do jeito que eu entrei no apartamento, praticamente foi o jeito mantido, ele ficou assim. Eu coloquei uma cama; comia de pé, atrás de um balcão; nem um banco; eu não queria me sentir bem, alguma coisa assim. [...] Essa situação que é curiosa. Aqui entre nós, eu estou me acabando nessa situação. [...] Agora, eu pago um preço por estar aqui, nesta situação, nesta condição. Eu acho que isso me ajuda a entender porque nesse apartamento, até há dois anos atrás, eu não tinha nenhuma cadeira pra sentar, pra fazer as minhas refeições sentado. Eu não queria, eu me recusava. Nesse flat que eu estou agora, eu melhorei um pouquinho a minha condição. Eu já posso comer sentado. Mas não tem um objeto meu lá. Do jeito que eu entrei, está; só tirei o que me incomodava. [...] Por outro lado, eu não trouxe nada que eu goste pra colocar no lugar; é como se eu não pudesse fazer isso. É como se tivesse que passar mal naquele local. Eu acho que eu preciso, na verdade, de um aviso, de uma sinalização. Eu tenho impressão que essa situação, esse incômodo, é como uma tabuleta piscando, me dizendo: ‘olha, não relaxe, fique atento, e saia disso aqui o quanto antes. Não perca, ou não se esqueça, do seu objetivo maior’. Até pra eu tomar uma atitude – aí eu começo a conjecturar: ‘se eu passo mal aqui, eu não posso ficar aqui, vou ter que tomar uma atitude. Eu não posso demorar tanto tempo pra resolver voltar pro meu canto’. Agora eu tenho uma casa do jeito que eu sempre sonhei lá em Florianópolis. O que eu ganho aqui, eu invisto nessa casa que está lá, que eu pouco uso. Mas tem lá a oficina, tem tudo aquilo que eu preciso. É como se eu estivesse investindo no meu futuro, que eu espero que não esteja tão lá na frente. [...]

51 Pedro refere-se ao flat que aluga em São Paulo.

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Pensado bem, eu poderia viver melhor aqui. Porque, de fato, não tem lógica – já que eu estou aqui, a lógica me diz isso: ‘você está aqui, cara, então, por que não ficar melhor? Por que não se estabelecer, não se sentir melhor nesse espaço?’ [...] Veja só que curioso: Eu tinha um quarto que, durante muitos anos, na casa dos meus pais, eu dividi com a minha avó; que eu não considerava meu. Eu não decorava esse quarto, eu não tinha coisas minhas, era muito pouco. Eu não colocava coisas na parede, como fazem os garotos. Não que eu não pudesse, mas eu não queria. Eu só fiz isso quando morreu a minha bisavó – ela ocupava um quartinho na edícula da casa, nos fundos da casa. [...] aos dezessete anos, tive oportunidade de ocupar esse quarto. Aí aquele espaço foi meu. E já era o meu local de trabalho, onde eu desenhava, já era o meu estúdio. Era um pequeno cômodo – tinha um banheirinho do lado –, acho que não tinha três metros por dois. O que eu fiz? Eu me mudei pra lá, literalmente, e coloquei a minha cama no teto. Eu passei os caibros entre uma parede e outra, pus o estrado, uma escadinha, e dormia num vão de sessenta centímetros. Ficava encaixado, não podia levantar, que batia a cabeça na parede. E ali eu trabalhava, dormia; ali eu fazia absolutamente tudo. E dali eu fui pra rua. Quando eu fui morar sozinho, aluguei um apartamento, e esse apartamento era apartamento e oficina, absolutamente tudo junto. [...] Durante muitos anos, eu carreguei objetos, que eram referências, desde esses quinze, dezessete anos. Aquele pincel que gastou, acabou o pêlo. Mas foi o pincel que eu comprei lá, usei lá, eu guardei durante muitos anos. É uma peça que eu não considero de valor, nesse plano estético, mas ela guarda outras coisas, carrega consigo umas tantas referências. E eu ainda faço isso. Agora, estou me preparando para uma nova guinada na minha vida. Eu preciso retomar o que eu considero o ideal de vida. Eu preciso voltar pra lá. Não sei quando isso vai acontecer, talvez eu leve dois, três, quatro anos; não pode demorar muito porque eu também sei que não resisto muito a essa situação, a essa coisa aqui.”

(Pedro) ****

Quando entrevistada, Júlia, 26 anos, morava em um pensionato para moças. Recém‐

formada, e ainda sem um emprego fixo, Júlia deixara a casa dos pais, no interior, para

fazer um curso preparatório para concurso em São Paulo. Contou‐me do grande

conflito que enfrentava em relação à sua nova moradia, onde, por sentir sua

privacidade constantemente invadida pelos mecanismos de vigilância estabelecidos

pela direção do pensionato, sentia‐se impedida de perceber o espaço habitado como

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seu espaço privado. Não encontrando meios de obter desse espaço o consolo e o

suporte de que necessitava, diante da ansiedade e da pressão psicológica sentida por

ainda não ter obtido um emprego, Júlia eventualmente ainda buscava o acolhimento

e o apoio domésticos na casa dos pais, com a qual conservava atados os laços

emocionais, e onde – ainda que não pretendesse voltar a morar – continuava

chamando de “minha casa”:

Ainda que vivendo o conflito de não se sentir acolhida pelo espaço onde habitava no

pensionato, Júlia via essa forma de morar como a única financeiramente viável para

permanecer em São Paulo estudando e se preparando para um concurso. Uma vez

que essa moradia lhe exige um tal esforço emocional e físico, a ponto de não ter a

paz necessária para dormir bem à noite, Júlia passou a interiorizar a noção de que

essa situação deveria ser provisória – algo com o qual seu compromisso não deveria

ser emocional, apenas funcional. E, para contornar a falta de acolhimento que

esperaria de uma casa, recusa‐se, à semelhança de Pedro, a estabelecer qualquer

vínculo emocional com seu quarto, não levando para lá qualquer objeto que lhe

pudesse dar a impressão de tê‐lo personalizado e aceito como sua casa:

“[...] No meu quarto tem uma cama, um lavabinho, uma escrivaninha e um guarda‐roupas. Pra mim, é uma coisa muito provisória – eu não me sinto nem um pouco à vontade lá. Eu não trouxe nada da minha casa52 pro meu quarto. As únicas coisas que eu trouxe foram as roupas e livros – só o essencial. Nem um porta‐retrato. Outro dia eu estava pensando nisso, no meu quarto não tem nada que seja a minha cara. Aliás, ele está exatamente do jeito que era quando eu entrei. Os livros ficam dentro do armário, então, não tem nada visível que mostre que aquele quarto é meu. E o pior é que a maioria do tempo, eu passo lá, estudando. Dentro dos quartos, tem umas imagens de santos. Só no meu quarto, deve ter umas três. Eu até pensei em tirar. Mas, se a Madre sabe que você tirou, ela manda colocar. O que é um absurdo, porque a partir do momento em que você aluga um quarto, é como se estivesse alugando uma casa, ela não tem o direito de interferir, e ela interfere.” (Júlia)

Quanto a nos vermos refletidos no nosso espaço habitado, Marcus ainda

acrescenta que, como nossa auto-imagem se transforma com o tempo, nós também

transformamos o espaço que habitamos, podendo, por exemplo, nos desfazer de

coisas que não mais refletem quem somos, e adquirir outras que correspondam às

52 Casa dos pais.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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nossa atual realidade interna. Portanto, nosso espaço doméstico torna-se uma espécie

de cenário no qual nossa auto-imagem é projetada através de objetos móveis que

controlamos. Conforme afirma Marcus, “tal como a exploração do self, a organização

interna da casa está freqüentemente em um processo de tornar-se” (Marcus, ibidem; p.

57).

A entrevistada Maria diz: “eu não consigo pensar numa casa, seja ela qual for, separado do conceito de como eu sou neste momento da minha vida”. A grande

privação do exercício do domínio de um espaço pessoal, vivida nas casas de sua

infância e juventude, teve como grande efeito, na história de suas moradas, a busca

por esse espaço. Um espaço onde, conforme ela descreve, pudesse exercer o seu

“auto‐re‐conhecimento”, onde se visse, com pessoa, ali “refletida”:

“[...] o sentido de casa, pra mim, sempre foi uma coisa muito especial. [...] Eu sentia uma necessidade absurda de reconhecer a minha própria energia impregnada em algum canto! [...] Eu não consigo pensar numa casa, seja ela qual for, separado do conceito de como eu sou neste momento da minha vida. [...] Então, eu acredito que todas essas vivências determinem muita coisa, porque eu acho que as escolhas da gente – estéticas, arquitetônicas – são, na verdade, um espelho de escolhas internas. A gente materializa um jeito que está aqui dentro. Eu posso te dizer que espaço, pra mim, é muito importante. E eu percebo que ele é um espelho de como eu estou por dentro. Quando minha casa tá muito bagunçada, eu estou bagunçada por dentro, estou com preguiça. Quando minha casa tá bem bacana, com tudo harmonioso, os móveis legais, tudo oferecendo de uma maneira generosa, um ambiente agregador, é porque eu estou assim por dentro. Quando eu estou confusa, o meu espaço pessoal fica extremamente confuso, e eu tenho vivenciado até hoje esse tipo de relação com casa. [...] eu tive muito medo de alugar apartamentos maiores e não ter dinheiro pra pagar, aquelas coisas, né? Cada vez que a minha casa ia aumentando um pouquinho aceitando um espaço maior dentro de mim. Eu tinha que me sentir merecedora; se não, ficava esquisito eu me dar uma coisa que eu não podia segurar. Eu vim de uma coisa muito restrita. [...]

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então dá pra entender que eu não consigo pensar numa casa, hoje em dia, sem levar em consideração, antes de qualquer coisa, a necessidade humana de me ver refletida no ambiente – tanto do ponto de vista físico, quanto do de status, quanto do energético.” (Maria)

O habitar doméstico sob o prisma da subjetividade

Todas as considerações que vimos até agora nos levam à confirmação de

que a questão do habitar doméstico envolve além da abordagem física, uma

abordagem subjetiva – ou melhor, uma abordagem baseada na subjetividade (King,

ibidem; p. x, 7). Por isto, talvez convenha, aqui, uma breve referência à distinção entre

as formas subjetiva e objetiva de se observar o mesmo fato, uma mesma experiência –

no caso, aqui, a experiência do habitar doméstico. Segundo o filósofo Thomas Nagel

(1996), a diferença básica entre essa duas visões é que, objetivamente, temos uma

“visão externa do universo, que abstrai a posição que nós mesmos ocupamos dentro

dele”. Neste sentido, transcendemos o nosso ponto de vista particular e somos

capazes de aceitar a insignificância de nossa própria existência, ou do compromisso

com todas as especificidades de nossa vida pessoal. Enquanto que, se olhamos sob o

ponto de vista subjetivo, ou seja, de nossa inserção, como indivíduos, neste mundo,

passam a ser absolutamente fundamentais todas as particularidades de nossa vida

pessoal, assim como o compromisso que diariamente renovamos com elas. Neste

sentido, passamos a não mais poder conceber o mundo sem aquelas estruturas que

construímos e julgamos sólidas53 – e aí podemos incluir a nossa própria estrutura

doméstica e a própria vida doméstica vivida privada e cotidianamente. Como afirma

Nagel, a visão subjetiva está localizada bem no centro de nossa vida cotidiana (Nagel,

ibidem, p. 300)54.

53 De que nos fala Berman (1987, p. 330, 14). 54 Conforme explica Nagel, sob um ponto de vista externo – objetivo –, nosso nascimento poderia parecer “um acidente”, nossa vida “carente de sentido”, nossa morte “insignificante”. Mas, quando observamos o mesmo fato sob o ponto de vista interno, pessoal, pensar que poderíamos sequer ter nascido parece-nos “inimaginável”. Nossa vida, nesta visão subjetiva, é-nos “monstruosamente importante”, e nossa morte “catastrófica”. A questão, dirá Nagel, é que objetivamente, não importa que pessoas, em particular, existam. Por outro lado, isto se choca com o sentido que temos de nossa inserção no mundo. Pois, subjetivamente, sentimo-nos, e aos que amamos, como pertencentes a este

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Em uma visão ampla, objetiva, King dirá que ainda que cada casa possa ser

vista como parte componente de uma grande estrutura habitacional de um país, há

que se considerar que, particularmente, ela ainda será o lar de uma determinada

pessoa, ou de um grupo de pessoas. Assim, sob o foco da subjetivamente, a

abordagem que se faz da casa é a de local do habitar do indivíduo; das tomadas de

decisões no nível pessoal, no qual, esse indivíduo, ao assumir o controle de seu

espaço habitado, através do uso desse espaço, cria ambientes de viver pessoais,

individualizados, constituindo o que passa a chamar de minha casa (King, 2003; p. 81,

82).

Exemplos da forma subjetiva com que casa é percebida podem ser

observados em ocasiões extremas de grandes catástrofes climáticas, ou causadas por

acidentes – enchentes, deslizamentos, desabamentos, incêndios, etc. – que venham a

ameaçar a estrutura física de casas. Nesses casos, a despeito de questões objetivas, tais

como a urgência de se controlar as conseqüências desses eventos – em níveis, muitas

vezes, de saúde pública, ecológico, social, ou urbano –, seus moradores poderão

resistir veementemente a determinações de órgãos de Defesa Civil para que

abandonem em suas casas. Deixar a casa terá, aí, significados subjetivos e particulares

para cada morador, os quais poderão envolver desde a incerteza de não ter onde se

abrigar, passando pela possibilidade da perda do imóvel e chegando, finalmente, a

razões ligadas à própria percepção emocional em relação à casa habitada. Neste

último sentido, deixar a casa poderá significar deixar à própria sorte uma existência

diária amalgamada a cada canto dessa casa, ou cada objeto componente dessa

história doméstica, ou a lembrança de cada fato ali ocorrido. Sair será deixar para trás

a estrutura física que, impregnada de valores de proteção, é o apoio e o consolo da

própria existência ali experimentada.

...

Assim, por tudo o que se falou sobre a íntima interação entre a casa física

e nós, como indivíduos e seus usuários, podemos compreender mais claramente as

razões pelas quais é tão difícil traçarmos uma distinção precisa entre o objeto casa –

aquele que encontramos no mundo para abrigar nosso habitar privado e adquirimos lugar; assim, a última coisa que nos ocorre é ver o mundo de um modo em que o nosso nascimento se torne desprovido de valor (Nagel, ibidem; p. 300, 305-306).

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

103

(compramos, alugamos, etc.), tal como uma mercadoria – e essa mesma casa, já no

momento em que a transformamos no nosso espaço habitado, o qual, com sua

materialidade, acolhe nossos corpos e nos oferece os meios de pormos em prática

nossa vida diária privada, liberar nossos sonhos e de preservarmos nossa vida interior

– e que, por isso, tem para nós um significado particular. Ao transformarmos nossa

casa física em um espaço habitado, passamos a percebê-la como uma entidade única

que acolhe nossa subjetividade, que nos apóia física e emocionalmente. Na nossa

casa, projetamos nossos valores pessoais, nossas necessidades, aspirações e desejos,

passando, assim, a nos ver refletidos nela. Trazemos para ela significados não

mensuráveis, nossas lembranças e sonhos, os quais, incorporados à sua fisicalidade,

apegados a cada canto seu, a cada objeto que ali colocamos, passam a dar alma ao

nosso espaço habitado. Nossa casa passa, enfim, a falar – aos outros e, especialmente,

a nós – de nós mesmos, da dinâmica de nossas vidas, de nossa história.

Portanto, se o habitar doméstico é a atividade que praticamos no objeto

físico casa, é ela que, com suas paredes e portas, nos proporciona isolarmo-nos do

mundo ao nosso redor, quando assim o desejamos ou necessitamos. Ou, dito em

outras palavras, é ela que nos proporciona os sentidos de privacidade e intimidade –

dimensões tão importantes para a nossa subjetividade e, ao mesmo tempo, tão

representativas dela –, as quais procurarei discutir a seguir.

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Capítulo 3 – Privacidade e intimidade domésticas

“Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é

(E se soubessem quem é, o que saberiam?)” (Pessoa, 1972; p. 363)

No item anterior, observamos o processo em que, através do habitar

doméstico, vemos nossa casa libertar-se do caráter objetivo de objeto comum inserido

no mundo, e tornar-se, através dos valores pessoais que ao longo do tempo, nela

projetamos, algo subjetivamente fundamental para a nossa existência. Através do

habitar doméstico, praticado cotidianamente, e responsável por essa transformação

do significado da casa, ainda precisamos contar com sua estrutura física, assim como

também solicitamos o apoio das coisas que trazemos para o “nosso pequeno mundo”.

E, acima de tudo, para isto, desejamos estar a sós ou em companhia daquelas pessoas

com quem escolhemos estar ao lado. Ou seja, para habitarmos domesticamente,

precisamos de privacidade.

Considerações conceituais

O direito à privacidade e à intimidade domésticas é algo tão fundamental

ao indivíduo, que, desde 1948, é reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos

Humanos55, assim como é amparado pela Constituição da República Federativa do 55 Segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na

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Brasil56, tendo-se tornado, também, um dos mais importantes direitos da era

moderna57. Ao analisar a qualidade de “asilo inviolável do indivíduo”, atribuída à

casa pela Constituição Brasileira, o Professor de Direito Constitucional José Afonso

da Silvaxv afirma estar, aí, reconhecido o “direito fundamental” do indivíduo “a um

lugar em que, só ou com sua família, gozará de uma esfera jurídica privada e íntima que terá que ser respeitada como sagrada manifestação da pessoa humana” (Silva, 2004; p. 204).

Buscando explicitar conceitualmente vida privada e intimidade, Silva nota

que, nos termos da Constituição, os dois conceitos são dificilmente distinguíveis. Em

última instância, eles se relacionariam na medida em que a vida privada “integra a

esfera íntima da pessoa”, sendo ela o “repositório de segredos e particularidades do

foro moral e íntimo do indivíduo” (Silva, ibidem; p. 206, 207). Por isso, o autor

prefere usar a expressão genérica e ampla “direito à privacidade”, abarcando, neste

sentido, todas as manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade,

consagradas pelo texto constitucional. Para melhor explicitação do que considera o

direito à privacidade, Silva ainda ressalta o fato, sempre lembrado na doutrina, de ter

o juiz americano Cooly, em 1873, identificado privacidade como o direito de ser

deixado tranqüilo, em paz; de estar só: “the right to be alone” (Silva, ibidem; p. 205).

Ao descrever os mecanismos de vigilância do pensionato de freiras para moças, onde

mora, a entrevistada Júlia58 explicita sua consciência sobre os direitos de privacidade

que vê sendo desrespeitados:

“[...] Você tem zero de privacidade. Nem dentro do seu quarto você pode ficar sossegada, que, qualquer coisa, a Madre vai lá e bate na porta. Outro dia, uma menina estava doente e não foi trabalhar. A Madre esmurrava a porta da menina, gritando ‘você é preguiçosa, vai trabalhar!!’. Foi chocante! Antigamente, ela até

sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a proteção da lei.” In: Página Oficial da Declaração Universal dos Direitos Humanos: http://www.unhchr.ch/udhr/lang/por.htm. 56 Título II; Cap. I; Art. 5º.; Inciso X - “São invioláveis a intimidade, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”; Inciso XI - “A casa é o asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.” In: Constituição da República Federativa do Brasil (2004). 57 In: “Privacy and Human Rights, 1999: An International Survey of Privacy Laws and Practice”. In: Global Internet Liberty Campaign http://www.gilc.org/privacy/survey/. 58 Apresentada no Capítulo 2.

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entrava no quarto das meninas, sem elas saberem – porque ela tem a chave. Agora, ela não entra mais porque uma menina reclamou com a Madre Superiora. Isso é invasão de domicílio, não pode! Ali é um quarto, mas a partir do momento que eu pago, é como se fosse uma casa, um apartamento, que a gente aluga. [...] Mas, muitas das fiscalizações nem vêm da Madre, mas das próprias pensionistas. [...] Tem uma senhora que mora lá há vinte e cinco anos, e ela é uma fiscal da Madre, que entrega tudo que a gente faz. [...] O telefone [que fica no corredor], a gente não pode fazer ligação, só receber. Também, nem dá pra falar no corredor, porque toca o telefone, sempre vem a cacoeta ver pra quem é a ligação, e quanto tempo você fica no telefone. E se a Madre pega a gente no telefone, fica falando: ‘filhinha, desliga, filhinha!’ [...]. Eu também sinto falta de poder receber alguém pra poder conversar – você tá longe de casa, não conhece muitas pessoas... Mas aqui é tudo muito proibido...” (Júlia)

No campo da psicologia socio-ambiental, Robert Gifford aponta para a

definição de privacidade de Irwin Altmanxvi como, provavelmente, a melhor já

desenvolvida. Segundo Altman, privacidade é “o controle seletivo do acesso à

intimidade de uma pessoa, ou ao grupo desta pessoa” (Altman, 1975; p. 18. Apud

Gifford, 1997; p. 172, 173). Para Gifford, “controle seletivo” implica um acesso tanto

garantido quanto evitado. Ou seja, ter privacidade não é meramente viver em

reclusão em relação ao mundo exterior e excluir as pessoas de nosso convívio íntimo,

mas ter o poder de optar entre interagir socialmente – ou prazerosamente –, partilhar

informações pessoais com quem desejamos, e interromper o fluxo dessas informações

quando queremos (Gifford, ibidem; p. 173-174); ou, como ainda dirá Peter King, é

isolarmo-nos de olhares indesejados, assim como daqueles que achamos que nos

impedirão de atingir nossos objetivos particulares (King, 2004; p. 41).

Alan Westinxvii, que define privacidade como sendo “o desejo das pessoas

de escolher livremente sob que circunstâncias, e até que ponto, elas querem se expor

– e a suas atitudes e comportamento – para os outros”59, dirá que não ter esta

59 Westin é autor da obra, considerada “seminal”, "Privacy and Freedom" (1967), na qual traz essa definição de privacidade. In: Global Internet Liberty Campaign: http://www.gilc.org/privacy/survey/. As considerações de Westin trazidas a seguir, por Robert Gifford, constam de Gifford, 1997; p. 182-183.

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liberdade de escolha faz-nos sentir “desesperados” (Westin, 1967. Apud Gifford,

ibidem; p. 180).

A seguir, vejamos alguns depoimentos que testemunham, em contextos

particulares, a necessidade de privacidade experimentada no habitar doméstico:

Morando em um cômodo de um conjunto habitacional para estrangeiros na Arábia

Saudita, o entrevistado Christian60 dá a sua própria concepção de privacidade e

justifica sua opção de habitar doméstico através de considerações sobre a

importância dessa privacidade para ele. Seu depoimento ilustra não só o conceito de

privacidade formulado por Altman e Gifford, como também a definição de Westin:

“[...] Se eu quisesse, eu poderia me inscrever para uma vila, a qual eu poderia, então, dividir com outra pessoa, onde eu teria mais espaço, uma garagem e uma cozinha. No entanto, eu prefiro viver neste distanciamento da humanidade, uma vez que ele me permite transitar entre grandes grupos de pessoas, com quem posso interagir, ou as quais posso ignorar, no meu lazer. Eu gosto de poder desaparecer num espaço totalmente individual e, depois, reaparecer num lugar comum, quando eu sinto necessidade. Morar num quarto de hotel cria um ‘efeito telescópio’, no sentido de que eu posso ajustar minha proximidade a outras pessoas a qualquer hora, de acordo com minhas necessidades, enquanto que dividir uma vila me impediria essa flexibilidade e, portanto, em última instância, atrapalharia minha liberdade. [...] Eu conheci algumas pessoas aqui que gostariam de me conhecer melhor, mas me vi inventando desculpas para não deixar que isso acontecesse. Eu gosto de me sentir cercado de pessoas, enquanto que permaneço mantendo minha distância delas – e há uma fonte infinitamente renovável aqui.” (Christian)

****

A proprietária de circo, Marly61, também expressa sua necessidade de privacidade

em relação às famílias dos outros circenses com quem partilha o mesmo terreno; e

descreve, assim, os mecanismos utilizados para estabelecer e preservar o que chama

de “individualidade” – termo que, no contexto, pode ser entendido como

“privacidade”:

60 Apresentado no Capítulo 1. 61 Apresentada no Capítulo 1.

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“[...] no terreno, nós instalamos nossos trailers e carretas mantendo uma certa distância um do outro, de modo a manter nossa individualidade. Mas, mesmo assim, você ainda pode escolher ficar com aquele vizinho ou não. [...] No meu circo, eu respeito muito a individualidade de cada família. Desde que eu montei o circo, eu digo sempre: se eu tiver fazendo um churrasco na minha casa, hoje, e não convidar meu vizinho, ele não vem; ele só vem se eu convidar. Porque você tem que respeitar; a pessoa, às vezes, não quer que esteja todo mundo junto. Quando é pra todo mundo, aí convida todo mundo.” (Marly)

O entrevistado Aristides, fotógrafo, 43 anos, optou por se mudar para um município

fora do perímetro urbano de São Paulo, cerca de 80 Km de onde trabalha, para ter

mais privacidade:

“Eu moro há dois anos na minha casa atual. Eu morava no Jaguaré, numa avenida; isso eu não quero nunca mais. Tinha muito prédio em volta, não tinha privacidade nenhuma. Queria morar num bairro mais afastado da cidade, melhor.” (Aristides)

Considerações culturais

Em termos culturais, Gifford observa que as diversas formas de se praticar

a privacidade, entre diferentes culturas, podem sugerir que em uma cultura se

necessite de mais privacidade que em outra. Contudo, o autor explica que o que

ocorre é que, ainda que pessoas de diferentes culturas possam ter necessidades

similares de privacidade, as diferenças culturais passam a expressar não tanto a

quantidade de privacidade que é desejada – e praticada –, e mais o modo como ela é

obtida em cada cultura. Como exemplo, Gifford cita a forma como os ciganos

percebem e praticam sua privacidade doméstica. Segundo os preceitos ciganos,

privacidade é um “conceito de duas mãos”: um não bisbilhota o outro trocando de

roupa ou praticando atividades, por assim dizer, da natureza; e, no entanto, a pessoa

que procura privacidade tem a responsabilidade de evitar os lugares e horas em que

outros poderiam facilmente observar essas atividades privadas (Gifford, ibidem; p.

179, 180).

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Segundo o ponto de vista dos ciganos, a prática dos gadjés (não ciganos)

de construir paredes e portas é um insulto aos outros, pois sugere que eles não

respeitariam sua privacidade. Por outro lado, dirá Gifford, as portas e janelas são uma

tentação ou um desafio ao interesse alheio, uma vez que sugerem que há algo

escondido por detrás. O autor conclui que, neste caso, privacidade seria um estado de

espírito, porque envolve – e até mesmo requer – cortesia, tato, reserva, e respeito

diante de uma vida não vedada por paredes (Gifford, ibidem; p. 180).

A observação de Gifford com respeito às formas culturalmente diferentes

de se obter a privacidade também pode ser verificada em nosso próprio país,

conforme as diversas influências culturais que prevalecem em cada região. Referindo-

se aos modos de morar de povos de regiões longínquas, como a fronteira Amazônica,

José de Souza Martins afirma que mesmo as “mudanças profundas” ocorridas ainda

recentemente na mentalidade dessas populações não implicaram grandes

transformações em seus costumes e tradições. Apesar da assimilação de modos de

vida de uma “origem urbana e remota”, trazidos juntamente com as mercadorias que

se instalam de forma destoante nos interiores domésticos, Martins dirá que, de

alguma forma, os costumes desses povos longínquos se mantêm (Martins, 2002; p.

692). Assim como permanecem seus hábitos de preservação da privacidade e

intimidade domésticas.

Descrevendo as casas dos povoados daquela região fronteiriça, Martins

dirá que estando elas com a porta da rua quase sempre aberta, configuram uma

espécie de extensão da rua: “como se o interior da casa devesse estar sempre exposto ao olhar

dos de fora e à luz que ilumina lá dentro” (Martins, ibidem; p. 694)62. Voltando-se ao

interior dessas casas, o autor nota que um corredor vai da porta aberta da sala até a

cozinha – lugar voltado à conversação com os não-estranhos (mas, não

necessariamente parentes): “lugar dos que podem ir entrando, bastando gritar o costumeiro

‘Ó de casa!’” (Martins, ibidem; p. 695).

Esse padrão, no entanto, não significa um descuido com a privacidade de

certas atividades praticadas no interior da casa. Apenas, o que deve ser preservado, e

os códigos para essa preservação, é que se alteram (Martins, ibidem; p. 694). Há, pois,

uma demarcação no interior da casa quanto à gradação do caráter de intimidade da

atividade ali praticada. Assim, se a frente da casa se configura uma extensão a céu 62 Aqui, o autor acrescenta que em sertões como o do Nordeste e do Centro-Oeste brasileiros “é assim há muito”: uma forma de morar que ainda hoje persiste (Martins, 2002; p. 694).

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aberto do cômodo da frente, haverá, por outro lado, a proteção do lugar mais íntimo

da casa, que é o quarto do casal. Esse cômodo, muitas vezes chamado “camarinha”,

ou é desprovido de janela ou, quando ela existe, está sempre fechada63. Assim

descreve Martins esses cômodos e o “feixe de significados e definições” que envolvem

a preservação da intimidade que neles tem lugar (Martins, ibidem; p. 696, 698):

“É um cômodo escuro para evitar o olhar intruso dos visitantes que eventualmente

se atrevam a mirar o interior do aposento, fato em si considerado ofensivo ao dono

da casa. A escuridão da camarinha tem por objetivo proteger a intimidade do

casal, escondendo do curioso objetos, panos manchados, coisas enfim que possam denunciar a intimidade, expô-la à curiosidade dos outros.” (Martins, ibidem; p.

698)

Ainda se referindo a cenários e regiões remotas, cujos hábitos e costumes

da vida privada trazem uma remanescente cultura colonial, Martins conta que, ao ser

recebido como hóspede em uma “casa de pau a pique e chão de terra batida” na

divisa dos estados do Maranhão e Pará, ali, pôde instalar sua rede num quarto, ao

lado da sala. Tal como no “quarto de alpendre” das casas bandeirantes, a função

daquele quarto era acolher os estranhos à casa, sem lhes dar acesso ao interior, em

cujos cômodos – como a cozinha – só se entra com o convite do dono (Martins,

ibidem; p. 696).

A correspondência dos cenários de que nos fala Martins pode ser

verificada através de relatos de viajantes estrangeiros que passaram pelas várias regiões

do Brasil entre os séculos XVI e XIX e deixaram registradas as suas impressões. A

seguir, o relato do botânico Auguste de Saint-Hilaire em viagem pela região de Minas

Gerais, no século XIX:

“(referindo-se ao pouso numa fazenda)

‘Apresentei-me em Ocubas, sob os auspícios do intendente, e não podia esperar

senão boa recepção (...). Deram-me um pequeno quarto abrindo para fora. Em

geral é numa peça separada do resto da casa que se agasalha o estrangeiro; desse

63 Carlos Lemos nota que o uso desses cômodos, já presentes no agenciamento das antigas residências coloniais, estaria relacionado a antigos condicionamentos culturais, remotamente ligados aos costumes mouros (Lemos, 1989; p. 77).

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modo evita-se-lhe o trânsito pelo interior da casa e ele não pode ver as mulheres.’ Arredores de Conceição do Mato Dentro, MG, 1817. Auguste de Saint-Hilaire,

Viagem pelo Distrito dos Diamantes e litoral do Brasil, p. 52.” (Apud

Bruno (B), 2001; p. 178).

A casa física como o terreno da privacidade

Podemos dizer que, independente das condições de propriedade em

relação ao nosso espaço habitado, para que lá possamos praticar nosso habitar

doméstico, sempre atribuiremos a esse espaço o caráter de privado, confidencial:

aquele espaço que conterá nossas ações cotidianas de caráter íntimo, e que, por esta

razão, queremos manter fora do monitoramento externo, afastadas do conhecimento

público. Neste sentido, vemos o espaço habitado domesticamente – seja ele próprio,

alugado, permanente ou provisório – como o terreno, por excelência, da privacidade.

Com relação a isto, vejamos o que diz a entrevistada Júlia, ao tecer planos

de alugar um apartamento para experimentar a privacidade que não tem no

pensionato onde mora:

“[...] Se der certo um trabalho que eu tenho em vista, o ano que vem eu quero sair de lá [do pensionato] e alugar um apartamento. Mas vou ter que dividir [o aluguel] com uma outra pessoa porque não tem como morar sozinha aqui em São Paulo, por enquanto – é muito caro... Mas eu vou querer um quarto só pra mim. Eu quero escutar o meu som mais alto, ou estudar... eu quero o mínimo de privacidade, e acho que um quarto só pra mim é o ideal.” (Júlia)

Otto F. Bollnow cogita a possibilidade de se atribuir o ato de

estabelecermos barreiras físicas de acesso à nossa casa, mais do que à insegurança e ao

medo – ainda que isto também seja considerável (tal como vimos quando falamos da

casa física como proteção frente às hostilidades do mundo exterior) –, mas à

necessidade de protegemos nossa esfera íntima. Independentemente de toda a

ameaça exterior, seria, de fato, a necessidade de estar só, consigo mesmo, o que

moveria o homem a se retirar para sua casa e a se fechar nela (Bollnow, 1969; p. 145).

Tal como afirma King, é difícil controlar o que vai por trás de portas fechadas; isto,

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provavelmente, só seria possível removendo-as – o que significaria remover o próprio

propósito da casa (King, 2004, p. 176).

Ao nos fecharmos para aqueles com quem não desejamos partilhar nosso

habitar privado, experimentamos a possibilidade de praticar nossas ações de cunho

mais íntimo – sem que tenhamos que justificá-las em público, perante padrões

estabelecidos de comportamento.

Neste sentido, Bollnow observa que o homem adquire um determinado

modo de ser que é especificamente praticado no espaço concreto e privado da casa

(Bollnow, ibidem; p. 260). E, ao se referir à “implacabilidade” e à “impenetrabilidade”

da intimidade doméstica, a qual não pode ser vista, a não ser através do filtro criado

pelo ato de se mostrar a casa, King dirá que é justamente esse ato que faz com que o

que permitimos expor ao público seja distinto do que realmente se faz em

privacidade. Só podemos ver como as outras pessoas moram e são em suas casas,

segundo o que elas nos permitem ver – quando elas nos permitem. Avançarmos além

disso, seria destruir o habitar doméstico, cujo ritmo seria inevitavelmente afetado pela

nossa presença – ou seja, como observa King, ainda assim, não conheceríamos o

verdadeiro habitar doméstico dessas pessoas (King, 2004, p. 40, 41). Nas palavras do

autor, ...

“O que fazemos em nossas pequenas caixas de tijolos, procuramos manter privado,

e queremos partilhar apenas com aqueles que conhecemos bem. O que vai por trás

de portas fechadas, de fato, não diz respeito à observação pública. [...] E, sabemos disto, precisamente, porque todos nós vivemos essa experiência.” (King, 2004; p.

ix)

Todos nós já vivemos a experiência de vermos nossa privacidade doméstica

invadida por visitas indesejadas, ou por pessoas com as quais não desejamos partilhar

nossa intimidade, e cuja presença ameaça as bordas do que desejamos ser conhecido

por estranhos ao nosso convívio doméstico. A certa altura, precisamos fechar a

cortina que se abre aos olhos dos estranhos à nossa domesticidade e sermos

novamente envolvidos por nossas paredes, nossos cheiros, sons e objetos.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

113

O entrevistado Rui64 traduz essa sensação, ao descrever o fato de precisar receber

um técnico em seu banheiro para consertar um problema de vazamento:

“Este é o meu banheiro – por sinal, fizeram um buraco no teto para consertar um vazamento do apartamento de cima. Aqui são as minhas coisas – é o meu banheiro. Tudo azul – parede, toalha... E o indivíduo que veio consertar o teto pisa com pé sujo no meu tapete. Isso agride o meu espaço físico; vê a minha intimidade no meu banheiro, vê o meu quarto, as minhas coisas, o meu boxe de tomar banho, onde eu fico nu, o meu vaso sanitário... Dá vontade de perguntar pra ele, rápido, ‘quando é que você termina? Quando é que você vai embora? Quando é que você vai sair do meu apartamento?’ Ele é um invasor. Ele, num computador, seria um vírus.” (Rui)65

****

E o entrevistado Lúcio66 refere‐se à sua experiência de morar em flat – que ele não

quer repetir por sentir sua privacidade invadida:

“[...] eu já acho que morar em flat, não dá mais. É uma invasão muito grande, você não tem privacidade nenhuma. Aquilo é propriedade sua, mas cada dia é um estranho que entra, tem a chave, você não pode deixar uma carteira, um laptop em cima da mesa [...]." (Lúcio)

Como metáfora para entendermos a privacidade que queremos ver

praticada em nossas casas, podemos trazer a concepção de Bollnow, que fala da porta

e da janela como elementos da casa que estabelecem a conexão entre “o mundo de

dentro” e o “de fora”, sendo que com missões bem distintas. A porta, com seu caráter

“semi-permeável”, agiria como certos recipientes que conhecemos de experiências

químicas, cujas paredes deixam passar livremente um solvente, enquanto retém os

elementos nele dissolvidos. Assim a porta permitiria o acesso dos que pertencem

e/ou pactuam com a intimidade da casa, excluindo os estranhos, os quais só teriam

acesso com consentimento expresso dos primeiros (Bollnow, ibidem; p. 143).

“Para os amigos e convidados, tudo. Para os estranhos... a proteção!” (Kaufmann,

1976; p. 17)

64 Apresentado no Capítulo 2. 65 Apresentado no Capítulo 2. 66 Apresentado no Capítulo 1.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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O entrevistado Hermes, 58 anos, comissário de bordo aposentado, refere‐se à sua

casa como o “último reduto” – lugar da sua família, das pessoas que “mais ama, que têm mais importância nesse mundo”, e que, por esta razão, deve ser preservada das

pessoas que não partilham do que ele chama de “essa unidade”:

“[...] Eu sempre digo: ‘Só vem à minha casa quem eu quero’. Isso, para continuar essa mesma convivência. Você não convida qualquer um, por respeito pela sua casa.” (Hermes) Tendo passado um tempo em Angola, a trabalho, partilhando com colegas uma

habitação fornecida pela companhia, Hermes relata a estratégia de escolha do seu

quarto, de modo a poder sua intimidade apenas com o único colega com quem tinha

amizade:

“[...] Éramos seis pessoas em um apartamento de três dormitórios, [...] todos da empresa, todos conhecidos – conhecidos não, você sabia quem era: ‘Oi, tudo bem,

tal...’ Mas, no começo, eu só conhecia melhor o Rui. Então, como eu e ele chegamos antes, pegamos o único quarto que casualmente só tinha duas camas. Então, a gente fez lá o nosso mundo. Passava a chave na porta e era o nosso mundo.” (Hermes)

A semi-permeabilidade do espaço privado proporcionada pela porta,

conforme elabora Bollnow, também pode ser considerada em relação à janela.

Contudo, enquanto a porta estabelece a permeabilidade em relação à presença física

de quem desejamos ou não em nosso espaço privado, a janela incorpora a

possibilidade de “ver sem ser visto”, a qual Bollnow considera um “princípio

fundamental de um cuidadoso asseguramento da vida”. No entanto, haverá

momentos em que sentimos a necessidade de aumentar a impermeabilidade de

nossas janelas, sendo que, especialmente à noite, quando nos encontramos na casa

iluminada, expostos aos olhares do estranho (que poderá, quem sabe, olhar a partir

da obscuridade, sem ser visto), sentimo-nos inseguros e fechamos nossas cortinas

(Bollnow, ibidem; p. 147-148)67.

Se, por um lado, a implacabilidade de nossa intimidade doméstica em

relação a pessoas estranhas é (ou deveria ser) controlada por nós, por outro lado, no

67 Nesta passagem, Bollnow faz, em seu livro, uma referência direta à estética modernista, reafirmando a importante função da casa física como preservadora da privacidade de seus habitantes – ainda que seja uma característica do estilo arquitetônico adotado “o abrir a casa ao mundo exterior por meio de superfícies amplas de vidro” (Bollnow, ibidem; p. 48).

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

115

interior de nossas casas, em relação às pessoas com quem partilhamos nosso espaço

doméstico – e proporcionalmente ao nível de relacionamento/parentesco que

estabelecemos com elas –, de certa forma, também procuramos exercer o controle

sobre as ações que consideramos privadas. Quanto ao sucesso dessa tentativa, muitas

questões entram como determinantes, tais como fatores físicos do espaço habitado e

aspectos socioculturais e psicológicos das pessoas que partilham o mesmo espaço

habitado.

Estes fatores poderão, por exemplo, definir o que consideramos razoável

em termos de densidade populacional no espaço doméstico em que vivemos. A

experiência de partilhar um espaço doméstico com um número de pessoas maior do

que nossos padrões consideram aceitáveis envolve, segundo aponta Gifford, aspectos

circunstanciais que acarretam efeitos tanto emocionais –normalmente negativos –,

quanto comportamentais. Em tais circunstâncias, a presença dos outros faz-nos

experimentar sensações de coibição de nosso comportamento; sentimos um

desconforto e uma interferência sobre nossa fisicalidade que fazem com que não

sejamos capazes de atingir nossas expectativas particulares (Gifford, ibidem; p. 145).

Os efeitos emocionais destas circunstâncias envolverão reações negativas

em relação às outras pessoas em volta e à própria situação de falta de privaciade68.

Ainda segundo Gifford, as principais reações comportamentais a uma situação de

superpopulação têm o caráter de assertividade: protesto, expressão da opinião;

determinação para permanecer no local apenas o mínimo necessário para concluir as

atividades que têm que ser realizadas ali; fuga psicológica, ou seja, permanecer no

local, mas buscar dessintonizar-se da situação; abandono do local; ou, ainda,

adaptação, quer dizer, tentar a melhor maneira possível de se lidar com a situação,

seja pela busca de melhor interação com as outras pessoas, seja pela tentativa de fazer

o espaço físico o mais confortável possível (Gifford, ibidem; p. 145).

Muitos desses efeitos podem ser exemplificados através dos depoimentos dos

entrevistados Alencar e Maria, que descrevem as experiências de terem suas

privacidades e intimidades invadidas devido a uma circunstância de superpopulação

experimentada em seus espaços domésticos:

68 Referindo-se a estudos sobre superpopulação, Gifford ressalva que reações positivas em relação a essa situação, aparentemente, só ocorrem quando se acredita ter conseguido lidar com ela (Gifford, ibidem; p. 145).

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Alencar, 35 anos, professor de educação física, descreve sua “angustiante” situação

atual, em que, após ter vivido uma falência nos negócios, precisou deixar seu

apartamento e passar a morar, com a esposa e três filhos, em um quarto, no

apartamento dos pais. A impossibilidade de estar a sós com sua esposa, o estresse

causado pela, a “intromissão direta” de seus pais sobre seus assuntos pessoais e sua

rotina doméstica e a percepção de uma real ameaça ao seu casamento são assim

descritos por ele:

“[...] E hoje eu tô vivendo de favor, num quarto, na casa da minha mãe – eu, minha esposa e mais três filhos. Um quarto, mesmo; um quarto de verdade! Minha mãe emprestou um quarto da casa dela. É um apartamento grande, no Itaim, daqueles antigos, então você tem um espaço bom. Ele é grande, o pé‐direito é grande, bem antigão. Então, comporta uma cama de casal com um colchão king size, uma cama de solteiro – uma bicama –, que fica grudada na minha, o espaço da cômoda, a poltrona, e o colchãozinho que a gente põe pra menorzinha... [...] Eu tenho uma menina de oito anos – é o que eu acho o mais difícil de lidar: do seu lado, da cama de casal, né? –, um menino de cinco anos, e uma menina de um ano e meio. Agora, o que menos eu tenho é privacidade. [De que forma a privacidade lhe faz falta?]

Na educação dos meus filhos, sem nenhuma intromissão de terceiros; numa conversa com a minha esposa, sem nenhuma intromissão; na hora de comer... Porque, agora, divide‐se tudo; então, você tem que estar de acordo com o ritmo da casa – que não é mais minha. A intromissão da minha mãe – minha esposa não consegue fazer uma discussão saudável comigo, que tem alguém por perto... disfarçando, sabe? Sempre tem alguém. Sei lá, eu tô na cozinha conversando com a minha esposa, entra a minha mãe, ou o meu pai... Então, eu acho que é isso que incomoda mais o dia‐a‐dia, principalmente da minha esposa: ela não poder andar em casa à vontade, de repente, a porta aberta, meu pai passa no corredor... essas coisas que... É uma intromissão direta, mesmo. [...] Eu só fico angustiado de ver as crianças crescendo e a gente não ter espaço pra namorar, não ter espaço pra conversar, então, isso me angustia. [...] Eu acho que o que segura mais, agora, são as crianças. Se não, já tinha cada um ido pra um canto. Então, é uma fase complicada... nós estamos falando de um ano e oito meses. [...]

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no final da semana, se tá chuvoso, você não tem o que fazer. E, aí, começam as agressões verbais. [...] à noite, tá aquele calorzão, cê quer dormir de porta aberta, não, tem que fechar a porta porque tem a passagem do corredor, pro banheiro, então não pode.” (Alencar)

****

A entrevistada Maria69 refere‐se às circunstâncias de superpopulação vividas na casa

de sua infância e pré‐adolescência, com a falta de um espaço físico onde pudesse

exercer sua individualidade sem que estivesse cercada das pessoas da família. É

devido a essas circunstâncias que Maria justifica a importância que passou a dar, em

sua vida, a um espaço privado: “Eu sonhava em ter uma casa, eu sonhava em ter um quarto pra mim. Eu queria ser interna num internato só pra ter um canto meu”. Ter

partilhado o mesmo quarto com seus pais, na infância, faz Maria, agora, refletir sobre

não apenas a sua falta de privacidade – cujos efeitos psicológicos levaram muito

tempo para serem absorvidos – mas, sobre a falta de privacidade de seus pais – o

que, também, pareceu incomodá‐la.

“Eu nasci na casa que o meu avô construiu. [...]. A minha mãe nasceu nessa casa e eu nasci nessa casa. Óbvio que, a princípio, ela atendia às necessidades do meu avô. Ele não imaginou que fosse ter oito filhos [...]. E cada filho que casava, passava um tempo do casamento nessa casa, até fazer um pé‐de‐meia e poder sair pra sua própria casa. No caso da minha mãe [com três filhos] e da minha tia, irmã dela [com dois filhos], elas casaram e ficaram com meu avô até ele morrer. [...] Isso, na prática, significava que eu não tinha um espaço pra mim. Eu nasci e fiquei dormindo, de zero a doze anos, no mesmo quarto do meu pai e da minha mãe. Isso provocou coisas muito interessantes – interessantes, hoje, que já estão resolvidas pra mim. Mas, eu tinha muito medo, quando eu ouvia um homem falando baixinho e de vagar. Depois eu fui sacar que isso podia ter a ver com meu pai verificando se eu estava dormindo ou não, pra transar com a minha mãe. A privacidade deles era zero. Porque o que separava o quarto de um corredor – que, na verdade, era um corredor pra todos os quartos daquela ala – era uma cortina. Então, a vida sexual deles deve ter sido uma grande merda. […] Uma coisa que, com certeza, deve ter me marcado muito – não só na casa, mas em tudo na minha vida – é a necessidade de privacidade e de espaço. Aquela coisa de não poder ter pesadelo porque, de repente, dava grito e acordava o avô […]. E essa

69 Apresentada no Capítulo 1.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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coisa de estar dormindo muito junto com pai, com mãe, isso era, pra mim, era desesperador.” (Maria)

****

Tal como Maria, que percebe a importância da privacidade para as pessoas com

quem partilhava a casa – no caso, seus pais –, a entrevistada D. Dalma, 72 anos70,

também se preocupou com o fato de sua presença estar perturbando a privacidade

de sua irmã e seu cunhado, em cuja casa passou a morar quando, após uma certa

idade, não teve mais condições de morar sozinha. A sensação de estar interferindo

nas atividades privadas da casa fez com que D. Dalma a decidisse deixar para passar a

morar em um asilo para idosos:

“[...] eu passei a morar com uma das minhas irmãs, que é casada, porque ela começou a ficar preocupada. Ela disse, ‘já que você não quer mais ninguém, sozinha você não vai ficar’, aí eu fui pra casa dela. [...] Mas, com o tempo, eu passei a sentir certas dificuldades porque a minha irmã não é muito jovem, meu cunhado sofreu um derrame – não que tenha tido seqüelas, mas ele se tornou uma pessoa mais difícil. Então, eu pensei por muito tempo numa maneira de ficar mais... separada. Também para dar mais liberdade pra minha irmã agir. [...] Eu diria que, às vezes, não é que eu estava atrapalhando, mas ela ficava assim, talvez, constrangida, entende? Quando chegou nesse ponto, em que eu achei que seria melhor eu ficar, de novo, separada, eu tenho impressão que deu certo. Pra ele, meu cunhado e, de uma certa forma, pra mim. [...] Agora, eu dou tranqüilidade pra ela, eu também sei que ela está mais à vontade: sabe lá, não é? Às vezes, eu poderia estar tirando um pouco da liberdade deles. Se bem que eu sou muito discreta, procuro entender as coisas, colaboro, mas nunca é cem por cento, não é?” (D. Dalma)

Ao partilharmos o mesmo espaço doméstico com alguém, abrem-se alguns

canais de informações íntimas, o que faz com que, naturalmente, partilhemos com

essa pessoa não apenas o mais corriqueiro das funções do dia-a-dia doméstico, mas

coisas mais profundas, relacionadas a nossos sentimentos, e ainda, questões voltadas à

nossa própria vida corporal. Essa pessoa tanto poderá presenciar nossas tristezas, 70 Apresentada no Capítulo 2.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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nossas ansiedades pessoais, nossos devaneios, etc., quanto o momento em que

acordamos de manhã, ou quando saímos do banho, ou quando passamos o dia na

cama, indispostos, por um problema de saúde. No entanto, no instante em que um

de nós deixa de partilhar a mesma casa, ainda que possamos permanecer grandes

amigos, alguns desses canais de informação sobre nossa intimidade, que foram

abertos por ação do convívio cotidiano doméstico, tornam-se mais controlados, e

ficamos mais alertas quanto ao que expomos.

O espirituoso filme Histórias de Cozinha71 caracteriza, de um lado, a

dificuldade de alguém, estranho à intimidade de uma casa, conhecer, objetivamente,

a realidade cotidiana que acontece ali. Por outro lado, confirma a força do convívio

dentro do espaço doméstico para a abertura dos canais de intimidade entre as pessoas

que partilham o mesmo cotidiano. A história se passa no contexto do pós-guerra,

quando um dos propósitos industriais era dar ao homem moderno uma vida mais

confortável. Em 1950, um Instituto criado na Suécia para estudar a eficiência das

casas desenvolve estudos e testes de modelos de cozinhas, visando poupar às donas-de-

casa centenas de quilômetros de passos por ano. Decidindo expandir seus trabalhos e

estudar uma grande concentração de homens solteiros em uma remota parte do país

vizinho, a Noruega, o Instituto envia ao local uma delegação de pesquisadores para

observar as ações de vários desses noruegueses, voluntários para a experiência.

Por vários dias, cada observador

deve, disciplinadamente, sentar-se em uma

altíssima e intimidadora cadeira, em um

canto da cozinha de seu hospedeiro,

registrando graficamente cada movimento,

sem interferir em suas ações e tarefas de

cozinhar, lavar, comer, etc. Como regra

para os técnicos, há a terminante proibição

de estabelecer qualquer tipo de interação

com a pessoa observada, para que um

Fig. 3 O personagem Folke (do filme Histórias de Cozinha), em seu posto de observação, observa Izak em sua cozinha.

71 Título original: Salmer fra kjøkkenet; Noruega, Suécia, 2003. In: http://www.kitchenstories.de/; http://www.webcine.com.br/filmessi/kitchsto.htm; http://carteles.metropoliglobal.com/paginas/ficha.php?qsec=peli&qid=1660966160; http://videodetective.com/home.asp?PublishedID=99843; http://www.reelingreviews.com/kitchenstories.htm

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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possível envolvimento pessoal não venha a atrapalhar a objetividade da pesquisa.

Um observador, Folke, tem problemas com seu hospedeiro, Isak, que

pensa em não mais participar do estudo, mas que, muito relutantemente, concorda

que o observador entre e se instale em sua cozinha. O óbvio incômodo por que passa

Izak, ao ser observado por um estranho em suas atividades na cozinha, faz com que

ele improvise uma outra cozinha em seu quarto, no andar de cima, onde passa, longe

do olhar de Folke, a cozinhar e a comer – e a observar seu observador, através de um

buraco no piso.

Com o tempo, ainda que sem a troca de uma só palavra entre os dois,

ficam claros o relaxamento da postura impassível do técnico e o progressivo descuido

de Izak em esconder suas atividades na cozinha. Folke passa a olhar Izak como uma

pessoa solitária, e ele próprio também se sente só em sua função. O fim da

hostilidade, e o primeiro sinal de interação, acontecem quando Folke, percebendo

que acabara o cigarro de Izak, oferece-lhe seu próprio maço, atirando-o sobre a mesa.

Logo, será a vez de Izak dizer, ainda que secamente, “hora do café” (por dias, Folke

“cobiçara” o café que Izak tomava algumas vezes por dia). Lentamente, as barreiras

entre os personagens caem e aqueles primeiros contatos, mais formais, dão lugar a

uma abertura da intimidade e a uma relação de cumplicidade entre eles (uma vez que

ambos sabem das restrições que envolvem a pesquisa) – e à conseqüente perda da

objetividade do trabalho de observação do cotidiano doméstico de Izak.

A privacidade doméstica e o habitar

Mas, em que termos a privacidade que necessitamos ter preservada em

nossas casas estaria relacionada ao habitar como ação essencial do indivíduo – ao “ser

um ser humano”, ao “cuidar”, ao “permanecer preservado, em paz, em um lugar”,

que vimos através de Martin Heidegger? Esta conexão pode ser estabelecida a partir

da retomada da noção da esfera privada como condição da nossa existência – tal

como pudemos ver através de Hannah Arendt (1997; p. 80), quando tratamos da casa

física72 –, assim como da própria concepção de privacidade de Arendt.

72 Capítulo 1.

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Conforme vimos anteriormente, da mesma forma que habitamos coletiva e

publicamente, necessitamos, também, em nosso “estar sempre a caminho”, de um

habitar doméstico, no qual, retirados do mundo público, afastados do convívio social

e da intrusão dos que não consideramos suficientemente íntimos, possamos praticar

nosso habitar de acordo com nossas escolhas pessoais e privadas. Detendo-se nesta

esfera privada, Arendt ressalta a importância de ela permanecer oculta, preservada, à

sombra da publicidade (Arendt, ibidem; p. 81). Isto, pois – em suas palavras –, “há

muitas coisas que não podem suportar a luz implacável e crua da constante presença

de outros, no mundo público”. Enquanto que ao mundo público apenas se expõe o

que é considerado “relevante”, “digno de ser ouvido”, dirá a autora, as ações da nossa

vida privada e íntima devem permanecer resguardadas, “à meia luz” (Arendt, ibidem;

p. 61).

Contudo, Arendt ressalta que isto não significa que as questões privadas

sejam irrelevantes. Ao contrário, assuntos extremamente relevantes – como o amor,

por exemplo – só sobrevivem na esfera privada. Diferente da amizade, dirá a autora, o

amor, quando trazido a público, “morre ou, antes, se extingue” (Arendt, ibidem; p.

61)73. Assim, Arendt confirma a importância, para a nossa existência, da privacidade

de “um lugar só nosso, no qual podemos nos esconder”, o que considera o único

modo eficaz de garantirmos a preservação do que está – e deve permanecer – à

sombra. E aqui, é interessante a nota da autora, referindo-se à “forte conotação de

sombra e treva” que carregam as palavras grega e latina que designam o interior da

casa – megaron e atrium. Nossa esfera privada seria, pois não só nosso “único refúgio

seguro contra o mundo público comum” e tudo o que nele ocorre, mas também

nossa garantia de controle sobre o fato de sermos vistos e ouvidos; ou seja, sobre o

que consideramos que pode ser exibido e/ou partilhado no mundo comum, e o que

deve ser ocultado (Arendt, ibidem; p. 80-81).

Outro aspecto da privacidade doméstica, igualmente importante para

estabelecermos a conexão com o habitar como ação essencial do indivíduo, é o fato de

73 A esta consideração de Arendt, pode-se atribuir um caráter extremamente particular e íntimo, pelo fato de ela própria ter vivido, à sombra do conhecimento público, seu grande amor por Heidegger. Segundo escreve Rüdiger Safranski, biógrafo de Heidegger, ... “Heidegger impunha as regras desse relacionamento e Hannah os cumpriu. O mais importante era absoluto segredo. Não apenas a mulher dele mas ninguém na universidade e na pequena cidade deveria saber de nada. [...] Hannah submetia-se aos arranjos para meu amor nunca te causar nenhuma dificuldade além do que tem de ser” (Safranski, 2005; p. 176).

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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que nos fala Gifford, de ser a privacidade uma parte importante do nosso sentido de

self, ou seja, da nossa identidade. Gifford justifica sua posição, através do estudo de

Alan Westin sobre a privacidade (1967). Como afirma Westin, “às vezes, não é fácil

dar sentido a tudo o que acontece conosco, se ainda estamos no espaço público”,

sendo, então, na privacidade que encontraremos o tempo e o espaço para refletir

sobre o significado dos eventos, absorvê-los de acordo com nossa percepção de

mundo, e formular para eles respostas consistentes com nossa auto-imagem. É, ainda,

em privacidade que refletirmos sobre o progresso de nossas vidas, sobe quem

realmente somos, sobre como nos relacionamos com as outras pessoas e como

deveríamos nos relacionar (Westin, 1967; Apud Gifford, ibidem; p. 181, 182-183).

Outro aspecto não menos importante da privacidade trazido por Westin é

o fato de ela funcionar como veículo de liberação emocional. Freqüentemente,

sentimos mais emoção do que nos é permitido demonstrar socialmente. É nos

momentos em que afloram tais sentimentos, que precisamos de um lugar em

privacidade para deixá-los fluir (Westin, ibidem. Apud Gifford, ibidem; p. 183). E que

melhor lugar do que a nossa casa poderemos querer para chorar à vontade, amargar

uma decepção, ou liberar sentimentos mais positivos e excitantes, como lembra o

próprio autor, fazendo caretas para nós mesmos no espelho, cantando alto loucas

canções?

Como exemplo para as considerações acima, Westin traz uma experiência

que muitos poderão ter vivido, que é a de nos apaixonarmos por alguém com quem

vivemos uma nova relação. Segundo Westin, mesmo nos prazerosos momentos

iniciais deste sentimento, é comum que tenhamos a sensação de que, enquanto

adentramos essa nova relação, estamos “perdendo-nos de nós mesmos”. Enquanto

uma parte de nós deseja intensamente a intimidade deste novo relacionamento, a

outra parte poderá, freqüentemente, necessitar de solidão e reserva, para que, assim,

possa refletir se “isto é realmente para mim”, ou se entrar nessa relação maravilhosa

não irá alterar meu sentido de identidade [,meu senso de eu] de um modo que eu não

deseje que aconteça. Assim, mesmo considerando as mais agradáveis e prazerosas

experiências que possamos viver em nosso habitar lá fora, não raro, precisamos dar

“um passo atrás” e avaliar – em privacidade – o que elas realmente significam para

nós (Westin, ibidem. Apud Gifford, ibidem; p. 182).

Privacidade está, também, relacionada ao desenvolvimento das crianças e

do modo como elas aprendem a se adaptar a um espaço privado. Gifford observa que,

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embora existam poucos estudos quanto à necessidade de privacidade das crianças, é

certo que elas necessitam de intimidade física; sendo que, à medida que elas crescem,

também crescem suas necessidades de reserva, de estar a sós. O conflito entre a

necessidade de privacidade e a falta de autonomia para buscá-la onde bem se quer

encontraria um pico na pré-adolescência, nas idades entre oito e doze anos.

E é nesse momento que a criança buscará

estar a sós em seu quarto – o que, segundo

o autor, deveria ser entendido pelos pais

como o desenvolvimento de sua

necessidade de privacidade. Mais adiante,

na adolescência, esta compreensão deveria

ser estendida para o fato de o adolescente

necessitar não apenas da solitude em seu

quarto, mas também de, ali, poder

desfrutar de uma intimidade privada com

seus amigos (Gifford, ibidem; p. 183, 184).

Fig. 4 Aviso na porta do quarto de um pré-adolescente: necessidade de estar a sós.

Clare C. Marcus aponta como uma significativa função dos esconderijos

que criamos quando crianças, o exercício de experimentar um lugar em privacidade.

Sejam esses lugares uma cabaninha, ou um canto protegido por um móvel, ou um

esconderijo no quintal. Tenham esses esconderijos sido “achados” ou construídos,

escreve Marcus, todos eles servem a propósitos sociais e psicológicos semelhantes: são

lugares nos quais a separação dos adultos foi buscada, onde as fantasias podiam ser

praticadas, e onde o próprio ambiente podia ser moldado de acordo com as

necessidades de seus usuários (Marcus, 1997; p. 24, 25).

Os entrevistados Christian e Maria74 falam da relação com esses espaços de suas

infâncias:

“Espaços confinados tiveram sua parte em minha vida, mas mais quando eu era bem jovem, como meio de criar um espaço separado e, talvez, uma identidade. Ser chamado para dentro para jantar, eu lembro que era terrível, porque você era forçado a abandonar aquele recém‐criado espaço pessoal, para voltar ao espaço comum, rotineiro da casa da família, e a todas as suas associações e significados de autoridade.” (Christian)

74 Apresentados no Capítulo 1.

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****

“Durante o dia, todos os lugares eram ocupados, a minha mãe lavava roupa num lugar, lavava louça no outro, e reclamava... A casa toda era cheia de gente que entrava e saía... A área que as mulheres estendiam as roupas era uma área muito grande que, de noite, não tinha roupa estendida. Era ao ar livre, era céu aberto. Eu, na verdade, esperava o dia passar pra chegar a noite. [...] Qual era a minha distração? Eu pegava uma bacia daquelas que minha mãe usava pra lavar roupa, e ia sozinha, depois do jantar, botava água na bacia, e ficava com a mão batendo na água e olhando o céu. Eu via a lua refletida na água, achava que ela estava mais perto de mim porque estava na bacia, e não no céu. Mas eu gostava de olhar pra ela no céu. Era o meu lugar.” (Maria)

É aí, segundo analisa Marcus, que se dá o início do ato do habitar privado,

ou do reconhecimento da necessidade humana de reivindicar um espaço, um lugar

para si próprio no mundo. É assim que começamos a desenvolver a relação que

estabeleceremos, quando adultos, com nossas casas: de estarmos no lugar em que nos

sentimos o mais à vontade possível para sermos nós mesmos, onde não precisamos

erguer quaisquer fachadas. A autora ainda observa que um lugar para se experimentar

o sentido de privado não tem, necessariamente, que ser secreto (Marcus, ibidem; p.

24). Sob este prisma pode ser vista a busca do adolescente pelo seu pequeno mundo

privado – o seu quarto –, onde ele, ainda inserido no mundo familiar, poderá estar à

vontade para exercer sua individualidade.

A entrevistada Maria descreve o momento em que consegue atender à sua

necessidade de privacidade, quando, aos doze anos, muda‐se, com os pais, para uma

casa onde não mais precisa partilhar o mesmo quarto com os pais, passando,

finalmente, a ter seu próprio quarto:

“[...] E quando nós mudamos da casa do meu avô, porque ele morreu, ninguém tinha grana pra sustentar uma casa sozinho, então, foi todo mundo morar junto. E eu fiquei, pela primeira vez, com o quarto de empregada. Mas era o meu quarto, pela primeira vez, o meu quarto – que, pra mim, era um palacete! Porque eu podia fumar, eu podia soltar pum, eu podia experimentar um bando de coisas que eu desconhecia de mim mesma. Até aí, eu não sabia a minha necessidade de nada. O que era dormir, o que era acordar, eu não sabia nada disso. Então, é fundamental pra mim... o auto‐conhecimento, o auto‐reconhecimento, está totalmente ligado ao espaço. [...] Eu

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acredito que o seu filho, a minha filha, que sempre tiveram o quarto deles, nunca vão experimentar esse tipo de coisa que eu experimentei. Mas eles vão saber de uma coisa que eu também sei, que é a necessidade de brigar com alguém, e ter um quarto pra se trancar.” (Maria)

Privacidade e intimidade domésticas: breve contextualização

histórica desses conceitos

As concepções de privacidade e intimidade domésticas não se

apresentaram sempre da maneira como até aqui foram apresentadas. Elas

percorreram uma longa trajetória até chegar aos termos segundo os quais hoje as

conhecemos. A Bíblia já fazia inúmeras referências a esses conceitos; além do fato de

que, ao longo da história, tais conceitos sempre terem estado relacionados ao

contexto e ao meio em que foram assumidos.

“Meu povo habitará em mansão serena, em moradas seguras, em abrigos tranqüilos. (Isaías, 32:18)

Não se constituindo objetivo deste trabalho investigar esta evolução

conceitual, atenhamo-nos a alguns aspectos da história que se refletem no que, hoje

em dia, conhecemos como privacidade e intimidade domésticas, e na forma como

usamos nossas casas para obtê-las.

Vejamos a explicação do significado de privacidade trazida por Arendt,

que, para isto, se volta à raiz do termo privado, localizada na consciência política greco-

antiga. Segundo nos conta a autora, dada a importância atribuída à esfera pública

pelos antigos gregos, ter uma vida privada significava viver em um estado de privação

“de [se] ser visto e ouvido por outros”, ou seja, ser privado de realizar algo que fosse

“mais permanente que a própria vida”. Um homem nessas condições, ou seja, sendo

que o que quer que ele fizesse permanecesse sem importância ou conseqüência para

os outros, era “como se não existisse” (Arendt, ibidem; p. 68).

Assim, viviam uma vida privada, fora das vistas alheias, os escravos e as

mulheres – não só por serem “propriedades de outrem”, mas também pelas funções

corporais que desempenhavam, as quais, meramente voltadas à subsistência do

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indivíduo e à preservação da espécie, não eram dignas de adentrarem a polis. Arendt

considera “impressionante” que, desde os primórdios da história até os nossos

tempos, aquilo que sempre foi considerado indigno de ser mostrado em público – e,

por isto, escondido na privacidade –, foram os aspectos corporais da existência

humana, estes ligados à necessidade do processo vital; ao fato de termos

“necessidades” – no seu sentido original, “de sermos carentes pelo fato de termos um

corpo” (Arendt, ibidem; p. 55; 82-83).

A observação de Arendt pode ser verificada, no contexto brasileiro, através

do comentário do arquiteto Francisco S. Veríssimo e do historiador William S. M.

Bittar que, referindo-se à história do setor íntimo da casa brasileira, observam que até

mesmo os nomes dos aposentos básicos que constituem esse setor – quarto, banheiro

– trazem, ainda hoje, “significados ambíguos que podem mesmo gerar olhares espantados,

risos abafados ou sorrisos marotos se pronunciados indevidamente em locais e horários inadequados”75 – isto, ainda que considerada a evolução desses aposentos, que

passaram da “sombria e abafada alcova colonial, com urinóis e jarras como banheiro, aos

aposentos do século XIX, de requintado mobiliário, ou aos verdadeiros cenários de culto ao corpo” dos dias de hoje (Veríssimo e Bittar, 1999; p. 88).

Retomando a concepção da vida como “uma questão pública”, à qual

Witold Rybczynski se refere como ainda vigente na Idade Média, o autor estabelece

uma relação entre o desconhecimento da intimidade doméstica e a falta de

consciência da própria individualidade, o que se faz refletir no próprio uso da casa.

Na casa medieval, os cômodos não tinham funções específicas; o mesmo cômodo que

servia, pela manhã, como local de trabalho, ao meio-dia, com a retirada do atril, e o

posicionamento de uma mesa, tornava-se uma sala de refeições. Mais tarde,

desmontava-se a mesa, e o banco era usado como sofá, em uma espécie de sala de

estar, a qual, ao fim do dia, virava quarto de dormir. Conforme escreve Rybczynski,

“assim como as pessoas [da Idade Média] não tinham uma forte consciência de si, elas

também não tinham um quarto próprio”. Aliás, acrescenta, é muito improvável que

antes do século XVII, alguém tivesse o seu próprio quarto, onde pudesse ficar a sós

(Rybczynski, 1996; p. 32, 48).

75 Dentre alguns sinônimos de “sanitário”, segundo Houaiss (2001), estão: latrina, aparelho, banco, cafoto, cagatório, cambrone, casa-comum, casinha, cloaca, comua, dejetório, gabinete, necessária, patente, privada, quartinho, reservado, retreta, secreta, sentina, etc.

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Apenas após o declínio da “vasta e gloriosa esfera pública” (Arendt, ibidem;

p. 61), e o surgimento, somente há “duzentos ou trezentos anos atrás”, do sentido

moderno de termos como “autoconfiança”, “auto-estima”, “melancolia” e

“sentimental” – conforme John Lukacs (Apud Rybczynski, ibidem; p. 48)76 –, é que se

pôde observar a “emergência de algo novo na consciência humana: o surgimento do

mundo interno do indivíduo, do próprio ser e da família”. Conforme Lukacs,

“enquanto as pessoas da Idade Média tinham pouca autoconsciência, o interior de

suas casas era vazio, incluindo os salões dos nobres e dos reis. Os móveis internos das

casas surgiram junto com os móveis internos das mentes” (Lukacs; ibidem). Ou seja,

como afirma Rybczynski, mais do que uma simples busca pelo bem-estar físico, a

evolução do conforto doméstico tem origem no conceito de casa como “um ambiente

para o aparecimento da vida interior” (Rybczynski, ibidem; p. 48).

É neste contexto que Arendt afirma que somente a era moderna veio a

descobrir quão rica e diversificada pode ser a esfera privada nas condições da

intimidade, e que, se por um lado, a distinção entre o privado e o público parece

coincidir – nas palavras da autora – “com a oposição entre a necessidade e a liberdade,

entre a futilidade e a realização e, finalmente, entre a vergonha e a honra”, por outro, não é

verdade que somente o que diz respeito às necessidades do corpo, o fútil e o

vergonhoso, tenham o seu lugar adequado na esfera privada (Arendt, ibidem; p. 82,

83).

Na visão de Tomás Maldonado, o surgimento dessa “mudança sutil e

progressiva na sensibilidade”, que passou a alterar os modos de ser, as preferências, e a

própria imaginação coletiva e individual das pessoas, foi parte essencial de um novo

modelo de vida proposto pela burguesia industrial, que passava a estabelecer não

apenas uma nova ordem familial – mais coesa –, mas, simultaneamente, as mudanças

em relação ao espaço da habitação dessa família. Assim, os espaços vivenciais

“abertos”, “fluidos”, “imprecisos” que abrigavam a família tradicional passavam a dar

lugar a habitações com “espaços fechados”, articulados em um sistema de funções

rigidamente fixadas, onde a nova família nuclear burguesa passaria a morar

(Maldonado, 1996; p. 249).

76 Lukacs, “Bourgeois Interior”, p. 622. Não foi encontrada referência à publicação da citação de Lukacs feita por Rybczynski.

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Segundo Maldonado, a nova proposta de habitar doméstico tinha como

objetivos fixar essa família em um lugar definido; abrigá-la de intrusões externas,

vinculá-la, pois, a um interior doméstico. No entanto, ressalta o autor, para se

estabelecer esse novo modo de habitar, além da criação de um espaço fechado para a

habitação, foi necessário que esse novo espaço passasse a promover um “novo ideal de

vida doméstica”, cujos conteúdo e forma, definidos pela burguesia, passariam a ser os

de uma vida centrada na privacidade, na “atmosfera da privacidade” – contudo, uma

privacidade que, além de levar em conta os valores espirituais tradicionais referentes à

interioridade, passava, também, a se basear em uma estrita regulação das coisas

materiais, que passavam, então a ser produzidos em escala industrial. Surgia, assim,

um novo conceito de conforto experimentado no espaço doméstico, o qual viria

relacionado ao uso dos novos objetos e móveis da casa, aos novos meios de relaxação,

aos procedimentos de higiene pessoal, advindos dos novos avanços industriais. Tais

práticas abririam, assim, o caminho para a prática privada de uma sensibilidade – e

sensualidade –, diferentes das de até então experimentadas (Maldonado, ibidem; p.

250).

O historiador inglês Joseph Bronowski, ao se referir aos mentores da

Revolução Industrial, dirá da “simples crença” em que se baseavam: “a boa vida é

mais do que a decência material; mas deve se basear na decência material.” (Apud

John H. Lienhardxviii)77. É neste ponto que a história da privacidade e da intimidade

domésticas mescla-se com a evolução do sentido de conforto doméstico – evolução

que, concordarão tanto Maldonado quanto Rybczynski, só pode ser observada no

contexto da produção, em escala industrial, das coisas que passaram a estar associadas

a esse conforto.

Ao afirmar que “as coisas da burguesia são os veículos para a sensibilidade

burguesa”, o historiador Peter Gay refere-se à abrangência desta convenção, segundo

a qual a aspiração ao conforto doméstico passou a estar relacionado ao desejo de um

lugar para abrigar tanto os objetos quanto as emoções e a intimidade doméstica (Gay,

1984; p. 441).

77 Em palestra apresentada pelo professor Lienhard no encontro da ASME (Sociedade Americana dos Engenheiros Mecânicos), em Arlington, Texas, em fevereiro de 1999. In: http://www.uh.edu/engines/powersir.htm.

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A entrevistada Maria descreve, assim, seu esforço em adquirir objetos que viessem a

compor a intimidade de sua casa:

“[...] Aí, eu tive um apartamento alugado pequenininho, um estudiozinho, que você não entrava na cozinha – só entrava o seu braço na cozinha. Tinha um fogão Semer três bocas... Puxa, eu lembro, não tinha dinheiro pra nada! O primeiro dinheiro que eu tinha, eu comprei uma geladeira – azul, GE. E essas coisas eram de uma alegria...”

(Maria)

****

Já o entrevistado Christian, ainda que vivendo em “algo parecido com um quarto de hotel” (tal como já relatado no Capítulo 1), constata que a incorporação de objetos

pessoais faz com que esse cômodo passe a ser percebido por ele como um lugar de

sua privacidade e intimidade; como, de fato, sua casa:

“[...] Eu comprei um pequeno aparelho de som pra mim, que já virou parte da mobília. Eu também comprei um piano elétrico, e isso se provou particularmente um fator de bem‐estar. Junto com as outras peças do mobiliário do meu quarto, eu criei, agora, a ilusão de casa, a qual, combinada com um sortimento de after‐shaves no armário do meu banheiro, ajuda a aumentar a intimidade de minha privacidade.”

(Christian)

Referindo-se à carta escrita por Freud à sua noiva, contendo a lista das

coisas com que sonha para seu “pequeno mundo de felicidade” (já mencionada no

Capítulo 2), Gay ressalta que ninguém apontaria para Freud como um típico

representante do ideário burguês. No entanto, seu arrebatado catálogo constitui-se de

uma “pura convenção burguesa’; sendo que o conforto doméstico, não apenas na

mente de Freud, mas na de milhares de outras, está relacionado à idéia de um lugar

para o amor. Com trechos da carta de Freud, Gay apresenta, assim, a “encantadora

fantasia” sobre a domesticidade:

“‘[...] dois pequenos quartos’, para eles e para seus convidados; uma chama

sempre pronta para se preparar refeições; aposentos com ‘mesas e cadeiras,

camas, espelhos, e um relógio’; e tapetes; sem falar de ‘uma boa cadeira para

uma hora de aconchegante devaneio.’ [...] Ele [Freud] ainda encontrou muito

mais a que aspirar: ‘a biblioteca e a pequena mesa de costura e a luminária.

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[...]’. ‘Deveríamos colocar nossos corações em coisas tão pequenas?’, Freud

pergunta; e responde que sim, devemos; ‘e sem apreensões’.” (Gay, 1984; p.

441-442)78

Ao associar a um casal que se amou – e que, agora, se separa – as coisas

que os dois possuíam, as quais compunham a identidade do seu “lar”, o compositor

Chico Buarque exemplifica, em sua poesia, a relação proposta por Gay, de estar a

idéia do conforto do espaço doméstico – conforto proporcionado pelas coisas que a

ele incorporamos – relacionada ao sentido de ser esse lugar, um lugar para se viver o

amor em privacidade:

Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim Não me valeu

Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim! O resto é seu

Trocando em miúdos, pode guardar As sobras de tudo que chamam lar As sombras de tudo que fomos nós

As marcas de amor nos nossos lençóis As nossas melhores lembranças

[...]

(Chico Buarque. Trocando em Miúdos)

Em relação ao “moderno encantamento com as ‘pequenas coisas’”, Arendt

refere-se à sua representação clássica, o “petit bonheur” do povo francês – que floresceu

no século XIX –, e à sua influência, através dos anos, da arte de ser “feliz entre

‘pequenas coisas’”. Em um contexto perfeitamente aplicável aos dias de hoje, a autora

dirá que a rápida industrialização, que se encarrega de destruir e repor objetos

constantemente, poderá fazer-nos ver o espaço doméstico – compreendido entre

quatro paredes, e povoado por coisas às quais se dedicam “cuidado e ternura” – como

“o último recanto puramente humano do mundo” (Arendt, ibidem; p. 61-62).

78 Referência utilizada por Gay: “18 de agosto de 1882”, Briefe, 1873-1939, ed. Ernst L. Freud, 1960; p. 29 (não há referência ao local de publicação).

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Fig. 5 Vista da fachada de loja de decoração em São Paulo.

Fig. 5.1 Detalhe do cartaz: o que se vendem não são produtos, mas as sensações que eles proporcionam.

Um manual, escrito e publicado no Brasil em meados da década de 1970,

que se propunha fornecer “todas as informações necessárias à instalação de uma

moradia”, exemplifica as considerações de Arendt quanto à abrangência do sentido

burguês da felicidade experimentada no recolhimento privado do espaço doméstico,

sendo esse estado de satisfação propiciado e apoiado nas “pequenas coisas” que são

inseridas nesse espaço, justamente para esse fim. A autora do manual, que cito a

seguir, orienta os leitores – ao se mudarem para uma nova casa –, a nela construírem

um “cantinho feliz”; onde, apoiados em objetos estimados, passem a experimentar

não apenas o aconchego e a paz, mas também o isolamento, tanto físico como

emocional, dos fatos indesejados do mundo exterior. Isto, notará sua a autora, já será

suficiente para proporcionar ao morador a experiência do “contentamento” em sua

“pequena ilha de paz”:

“Escolha um recanto de sua casa, um cantinho tranqüilo, onde você possa

concentrar todos os seus confortos prediletos, para que fiquem todos à mão. Sentado

numa poltrona cômoda, sem nem precisar levantar-se, você terá ao seu lado, uma

mesinha, com uma luz amiga para a leitura, o telefone e os catálogos próximos [...],

um rádio, um cinzeiro. E se é leitor masculino e fuma cachimbo, que este fique à

mão. E se usa óculos para ler, que deixe sempre ali, no seu cantinho particular, um

par de óculos sobressalentes [...]

[...]

cercado de todas as suas pequenas comodidades, você talvez ainda precise de um

ponto de apoio, uma ‘tábua de salvação’ para certos momentos, para proteger seu

intervalo feliz: um objeto qualquer de madeira, enfeite ou cinzeiro – caso a

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mesinha que concentra suas comodidades seja de vidro, metal ou acrílico. Para

quê? Para você tocar, como tábua de salvação, para isolar, quando o rádio ou o

jornal que você está ouvindo ou lendo despejar suas desagradáveis notícias – ou

mesmo quando um pensamento inquietante atravessar o seu espírito, tentando

invadir sua pequena ilha de paz, de um metro quadrado.

– Como? Quer dizer que o contentamento pode caber em um metro quadrado? Apenas?” (Kaufmann, 1976; p. 197-198)

Privacidade e intimidade domésticas no Brasil: breve

contextualização histórica

Cabe observar que não se trata, aqui, de refazer o trabalho já feito por

grandes arquitetos e historiadores da habitação no Brasil, cujas obras já nos trazem a

evolução do conceito de habitar doméstico brasileiro, assim como as aplicações

práticas desse conceito no espaço físico da habitação, seja enfocando específicas

regiões do país, seja particularizando suas análises em torno de setores específicos da

habitação. Cabe aqui continuar considerando o fato de que as concepções de

privacidade e intimidade domésticas não se apresentaram sempre da maneira como

hoje as conhecemos. E que a forma como elas foram sendo adotadas ao longo da

história tem reflexos no modo como hoje as pomos em prática. É no sentido de

identificarmos esse reflexos que retomamos, aqui, alguns aspectos históricos dessa

evolução.

Assim, partamos das transformações do habitar doméstico que vimos

acima, descritas por Maldonado, Rybczynski, Gay e Arendt. Tais transformações

propagaram-se lentamente, partindo das residências burguesas para as classes médias,

até tornarem-se um modelo para as classes menos abastadas (Maldonado, ibidem; p.

249-250). No Brasil, esses novos modos de morar foram especialmente divulgados

com a presença da Corte, entre 1808 e 1821. Incorporando soluções arquitetônicas

que levavam em consideração as solicitações de higiene, conforto e intimidade

doméstica propagadas pela burguesia européia, esses novos modos de morar tiveram,

como tradução brasileira, um novo padrão de habitação – e de preservação da

privacidade e da intimidade domésticas –, o qual passou a exercer influência sobre as

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antigas moradias patriarcais e percorreu uma via social semelhante à de seus países de

origem.

Descrevendo o interior do velho sobrado urbano do século XVIII e

primeira metade do século XIX – um modelo ainda “ortodoxamente patriarcal” –,

Gilberto Freyre dirá que em oposição a uma ou duas salas, localizadas sobre a rua e

voltadas para o recebimento das visitas, ficava “o resto da casa – alcovas e corredores

– quase sempre fechado no escuro”, “como no interior de igreja”. Segundo o autor,

nesse modelo de residência, a luz só entrava por essas salas da frente e “um pouco

pelo pátio e pelas frinchas das janelas ou pela telha-vã dos quartos. Evitava-se o sol.

Tinha-se medo do ar” (Freyre, 2004; p. 323). Tendo verificado isto nos sobrados do

Rio de Janeiro, o explorador francês Louis de Freycinet79 atribui essa “má

distribuição de peças”...

“[...] ao fato de a família passar a maior parte do tempo dormindo, sem precisar de

luz; ou então olhando a rua pelas grades das janelas, vendo quem passava, através

dos postigos; e uma vez por outra recebendo visitas. Não precisava senão de sala de

visitas – que noite de festa se iluminava toda – e de alcovas escuras, que favorecessem o sono” (de Freycinet, 1827; I, p. 179. Apud Freyre, ibidem; p.

323).

À medida que o século XIX avançou, as lições de “bem viver” propagadas

pelas elites no século anterior passaram a ser incorporadas ao setor íntimo das casas

mais modestas, e os quartos arejaram-se (Veríssimo e Bittar, ibidem; p. 90). Como

observa o historiador Nelson Schapochnik, essas dependências, providas, agora, de

venezianas, cortinas e portas com bandeiras envidraçadas, “ganharam um perfil

absolutamente distinto das velhas alcovas”; passaram a contar com a renovação do ar

e a insolação, o que produziu efeito no controle sobre os fluxos de odores e

luminosidade (Schapochnik, 1998; p. 509). Ainda no século XIX, buscando

acompanhar o restante da habitação, que já apresentava cômodos equipados com

produtos que a Revolução Industrial passara a colocar no mercado em larga escala, o

setor íntimo das casas também se valorizou. Surgiram o quarto de vestir, os

79 Em expedição científica no Brasil em 1817. In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Louis_Claude_de_Saulces_de_Freycinet.

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toucadores, o quarto de banho – um equipamento de melhor qualidade tanto

material quanto formal (Veríssimo e Bittar, ibidem).

A influência dos modos de morar da burguesia européia, incorporados

pelos palacetes da burguesia paulistana a partir de meados do século XIX, também foi

exercida sobre as moradias de padrões inferiores. Segundo nota Carlos Lemos, esses

palacetes, ainda que constituíssem apenas 4% das construções residenciais

paulistanas, na passagem do século XX, tiveram enorme influência nos projetos

residenciais, especialmente por trazerem a “novidade do ‘zoneamento’ das funções

domésticas”. Como descreve Lemos, ...

“aglutinavam[-se] as atividades básicas de serviço, de repouso e de lazer, ou de estar

em três zonas distintas, segundo uma regra de circulação, aquela que exigia acesso de uma a outra sem que fosse preciso passar pela terceira” (Lemos, 2003; p. 94-

95).

Essa interindependência, acrescenta Lemos, fazia-se mais fácil através de

um novo compartimento – o vestíbulo –, um espaço distribuidor das circulações: de

“onde subia majestosa a escadaria em demanda aos dormitórios, à zona íntima do repouso

familiar” (Lemos, 2003; p. 95). Tal linguagem setorizada passou a influenciar o

projeto dos primeiros apartamentos surgidos na cidade de São Paulo, nas primeiras

décadas do século XX, voltados, inicialmente, ao uso da classe média. Lemos observa

que o projeto desse “novo” formato de moradia tendia substituir “em tudo, [...] a casa

isolada, não a casa modesta de gente pobre, mas o palacete da classe abastada. [...] que tivesse o máximo de conforto aliado ao mínimo de promiscuidade” (Lemos, 1976; p. 161).

Não cabendo, aqui, o aprofundamento no vasto campo da evolução

tipológica, assim como dos hábitos e usos da casa brasileira no que concerne aos

aspectos da preservação da privacidade e da intimidade que nela têm lugar, resta,

contudo, ressaltar que alguns dos aspectos do uso atualmente atribuído ao setor

íntimo da casa – no que diz respeito tanto ao apoio ao desenvolvimento psicológico

do indivíduo, quanto à preservação de sua intimidade doméstica – têm suas raízes

fincadas ao longo dessa evolução.

A este respeito, observa-se o que Roberto DaMatta considera como

“clássica”, a “rigorosa gramática de espaços” da casa brasileira. Citando viajantes

estrangeiros que aqui estiveram no século XIX, o autor menciona, por exemplo, ter

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chamado a atenção do comerciante inglês John Luccock, em texto produzido entre

1808 e 1818, um aspecto que – dirá DaMatta – “até hoje continua sendo um dado

permanente de nossa sociedade”: o da “nossa clássica divisão em sala de visitas e sala

de jantar, com rígida separação dos quartos (que eram, então, alcovas) e varanda”

(DaMatta, 2000; p. 50).

Considero, então, cabível apontar para a verificação a que cheguei em

minha dissertação de mestrado – em que analisei a recente evolução tipológica dos

apartamentos voltados à classe média, na cidade de São Paulo80 –, de que a totalidade

da produção analisada ainda esteve marcada pelo partido (ainda que adaptado à

escala reduzida desses apartamentos) da tradicional tripartição das habitações

burguesas – em setores social, íntimo e de serviços. Não havendo mais área disponível

para o extinto vestíbulo, a função de distribuir as circulações para cada setor passa a

ser assumida por pequeninas áreas de circulação posicionadas no centro da planta e

na entrada81 (Camargo, 2003; p. 77).

Fig. 6 Exemplo de planta de apartamento lançado na década de 1980 em São Paulo trazendo o padrão tipológico setorizado (setores representados em cores diferentes) (Camargo, ibidem; p.79).

Os trechos de depoimentos a seguir são exemplos de como são atreladas

ao conceito de privacidade e intimidade domésticas não só uma configuração

setorizada da casa, mas a conexão com os objetos e aparelhos que dão apoio ao

caráter de privado e íntimo das atividades praticadas nos espaços da habitação:

80 Especificamente, foi analisada a evolução do projeto de apartamentos de dois dormitórios lançados pelo mercado imobiliário na cidade de São Paulo, nas décadas de 1980 e 1990. 81 Esta última, a depender da disponibilidade de espaço, é incorporada diretamente à área da sala.

Legenda

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O entrevistado Alencar lamenta ter perdido a privacidade que tinha em seu antigo

apartamento, tendo que passar a morar com a família na casa dos pais:

“[...] pra mim, a minha casa sempre foi as minhas coisas; o meu canto, a minha cama, a minha televisão, o meu banheiro... [...] [Meu ideal seria] Voltar a ter minha residência: com os quartos das crianças, uma suíte, com a sala, com os banheiros... Eu morava num apartamento em Moema, tinha um padrão razoável, não era um padrão baixo. Era um apartamento com dois quartos – dois dormitórios, né?” (Alencar)

****

A entrevistada Marly descreve a setorização de seu trailer, associando‐a ao

mantimento do que chama de “individualidade” (ver figuras 7, 8 e 9):

“[...] Eu queria um quarto em cima porque eu tinha dois meninos, então aqui ficou sendo o quarto deles; o meu é do outro lado. [...] [...] Aqui, eu tenho tudo. Olha: eu tenho quarto, sala, cozinha, banheiro, uma varanda, tenho plantas, máquina de lavar roupa, tudo de acordo com as minhas necessidades. As pessoas não precisam de mais do que esse espaço pra viver. E, na companhia [de circo], cada família também é assim, com a sua individualidade.” (Marly).

Fig. 7 Interior do trailer de Marly: cozinha.

Fig. 8 Interior do trailer: sala de visitas (à frente) e quarto dos filhos (ao fundo).

Fig. 9 Fundos do trailer: área de serviço.

****

Sala de jantar

Quarto dos filhos

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O entrevistado Rui fala da necessidade de preservar suas atividades privadas, o que

consegue graças à distribuição espacial setorizada de seu apartamento:

“[...] Esse apartamento lhe dá essa possibilidade. [Se] Você [é uma visita de cerimônia] fica contido na sala. E o local de necessidade seria o lavabo. Fora isso, você não tem acesso – nem à cozinha, nem a cheiros, nada. O meu quarto é o último, então tudo o que acontece aqui, não chega som lá. [...] No outro apartamento, [...] não tinha essa separação, e eu tinha um monte de reuniões do trabalho que iam até à uma hora da manhã; e era um inferno pra minha esposa, que ficava lá no quarto. Da sala, você via parte do meu quarto. Então, invadia a intimidade. E este se tornou completamente funcional nesse sentido. Então, é essa identidade que você tem, que te faz bem, que você se sente protegido. [...] Aqui você tem a cozinha, que está totalmente isolada. [...] A empregada fica aqui, também protegida... não só pela porta do banheiro dela, mas também por essa porta [que separa a área de serviço da cozinha]. [...] Tem o banheiro da minha mulher, com a banheira dela, os cremes e as tranqueiras dela... não tem nada a ver comigo. Aqui é a salinha onde a gente assiste televisão. E esse é um quarto pra hóspedes; com televisão, vídeo cassete. A gente não recebe muitos hóspedes, mas a gente quer ter – o dia que quiser convidar alguém, tem onde acomodar – um quarto só pra isso. E aqui é o nosso quarto. Veja a distância que está da sala! Este é o meu banheiro [...] aqui são as minhas coisas – é o meu banheiro. Tudo azul – parede, toalha...” (Rui)

Além da influência da setorização burguesa dos espaços domésticos, fatos

como o empenho na estilização e na própria personalização dos cômodos voltados à

intimidade, fazendo adequar-se mobiliário e decoração de acordo com a moda – tal

como vimos descrever o entrevistado Rui –, já eram verificados nas primeiras décadas

do século XX (Veríssimo e Bittar, ibidem; p. 93; Schapochnik, ibidem; p. 498).

Referindo-se à “emulação e imitação arrivista dos hábitos eurófilos” que

caracterizavam a organização dos espaços domésticos brasileiros do início do século

XX, Shapochnik chama os quartos individualizados de “templos da privacidade”, os

quais são, aqui, descritos pelo autor:

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138

“[...] O triunfo do culto à individualidade e privacidade se desdobrava na

saturação de marcas inscritas no dormitório, agregando a cada um dos objetos os

traços da personalidade do ocupante. Leitos individuais, guarda-roupas,

penteadeiras, mesas cômodas, cadeiras, escrivaninhas e sofá; objetos decorativos,

funcionais e devocionais; peças do vestuário, roupas de cama e banho adornadas

como monogramas, materializavam a identificação de um domínio privativo.” (Shapochnik, ibidem; p. 509)

A partir dos anos 50, o conceito americano de casa

como um espaço utilitário e racional passa a ser,

ainda que lentamente, absorvido, tanto no que diz

respeito ao agenciamento do espaço doméstico,

quando na decoração desse espaço, com móveis

produzidos em larga escala e voltados à praticidade

do uso específico para cada cômodo. Veríssimo e

Bittar apontam, ainda, para o surgimento, na

setorização das residências da classe alta, de uma zona

íntima composta pelos quartos, banheiros e, às vezes,

uma pequena sala íntima, em um modelo compacto,

relativamente independente do setor social.

Conforme ressaltam os autores, mais uma vez, um

Fig. 10 Zona íntima: explicitação formal da privacidade doméstica. (Fonte: Veríssimo e Bittar, ibidem; p. 94)

formato adotado pela classe alta, de ideologia dominante, irá paulatinamente passar

às demais classes (Veríssimo e Bittar, ibidem; p. 94).

A partir da segunda metade dos anos 60, o grande adensamento das

cidades e a conseqüente valorização do metro quadrado dos terrenos, em um

processo de especulação imobiliária que se estenderia pelas próximas décadas,

levaram à conseqüente redução da área útil das habitações. Acompanhando essa

tendência, sentida especialmente nos apartamentos voltados à classe média82, o setor

íntimo – quartos e sanitários – também teve sua área útil diminuída e o uso do seu

espaço racionalizado. Já com armários embutidos, e mobiliados com móveis

planejados para o melhor aproveitamento de seu espaço, é a partir dos anos 70 – e,

principalmente, nos anos 80 –, que os quartos, paradoxalmente, passarão a

apresentar a sobreposição de um número cada vez maior de funções. 82 Ver Camargo, 2003; p. 66.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

139

Mesmo que relacionadas à privacidade do

interior das residências, a qual só é dada

conhecer aos íntimos da casa, as atividades

abrigadas pelos quartos deixaram de ser

apenas as ligadas ao recolhimento e ao

sono – uma característica freqüente nos

quartos, ainda hoje. Alterando-se, por

algumas horas do dia, a finalidade

original desse cômodo, dá-se lugar a outras

atividades, como o estudo, o lazer –

principalmente ligado aos aparelhos

eletroeletrônicos – ou o trabalho.

Fig. 11 Quarto: sobreposição de funções: dormir, vestir, trabalhar, ouvir e tocar música, ver televisão.

Assim, a cama e o guarda-roupa passam a conviver com móveis e equipamentos

específicos para a função que se pretende dar ao quarto, tais como televisão,

computador, aparelhos de som e/ou de DVD, e até mesmo bicicleta ergométrica

(Camargo, ibidem; p. 91).

...

Já o sanitário, reduto cuja privacidade exigida para o seu uso remete aos

primeiros significados da vida privada – de sermos carentes pelo fato “vergonhoso” de

termos necessidades corporais (Arendt, ibiddem; p. 83) –, teve seu papel, na casa

brasileira, profundamente transformado ao longo dos anos. Novamente os autores

Veríssimo e Bittar lembram do fato de esse cômodo simplesmente não existir no

interior das primeiras habitações brasileiras, e raramente serem encontrados espaços

equivalentes nas áreas exteriores. O que havia era a substituição desses

compartimentos pelo “banheiro portátil” – urinóis e outros recipientes –, de cujo

esvaziamento se encarregavam os escravos (Veríssimo e Bittar, ibidem; p. 99).

Tampouco o banho era praticado do modo e com a freqüência que hoje

conhecemos. Nos relatos de estrangeiros sobre suas estadias no país, não se

encontram muitas referências ao asseio corporal nas casas onde se hospedaram, a não

ser – como se refere Saint-Hilaire em relato de 1817 – sobre o hábito dos brasileiros

de lavar “os pés com água quente” antes de se irem deitar (Saint-Hilaire, 1975; p. 97;

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Apud Bruno (B), 2001; p. 36). Não apenas era o hábito do banho algo não praticado

assiduamente, mas também, não raro, sua prática encontrava críticas:

“...Lavar a carne é desgraça

em toda parte do norte, porque diz que dessa sorte

perde a carne o sal, e graça: e se vós por esta traça lhe tirais ao passarete

o sal, a graça, e o cheirete, um pouco a dúvida topa. Se me quereis dar a sopa,

dai-me com todo o sainete...

...As damas que mais lavadas costumam trazer as peças,

e disso se prezam essas são damas mais deslavadas...

...De que serve pois andar lavando antes que mo deis?

lavai-vos, quando sujeis, e porque vos fiquei o ensaio,

depois de foder lavai-o, mas antes não laveis...”

(Matos, 1981; p. 285-286; Apud Veríssimo e Bittar, ibidem; p. 99)

Por mais que nos pareçam estranhos hábitos de tão pouca atenção à

higiene e ao asseio do corpo, sua lenta modificação esteve relacionada à nossa

colonização, feita por europeus de pouca informação e influências de preconceitos

religiosos. Assim, notam os autores, como não existia o hábito, não havia o aposento

destinado a esse fim (Veríssimo e Bittar, ibidem; p. 100).

Também a ausência de tecnologia voltada para as funções sanitárias

contribuíram para a lentidão da instituição de hábitos – que hoje nos parecem tão

corriqueiros – como o de retirarmo-nos, em privacidade, para tomarmos um banho

ou usarmos o vaso sanitário. Conforme atesta a arqueóloga Tania Andrade Lima, foi

só no século XIX, com a disseminação de retretes e criados-mudos e o seu

confinamento às áreas íntimas das casas da nossa burguesia, que ocorreu a

“privatização e higienização” das atividades ligadas a esses apetrechos. Através do uso

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das tampas e portinholas é que – conforme nota a autora – as camadas mais

favorecidas passaram a isolar o mau cheiro no interior dos aposentos, estando, assim,

livres “do contato direto com o conteúdo dos urinóis” (Lima, 1995, p. 56).

Contudo, há que se considerar a questão determinante para a instalação

de um cômodo fixo, voltado exclusivamente ao banho: conforme aponta Siegfried

Giedion, só após se poder contar com um suprimento regular de água corrente, é que

o banheiro deixou sua condição “nômade” para adquirir uma “condição estável” nos

espaços das habitações (Giedion, 1948; p. 686). Mas, ainda conforme o autor, será

apenas no final do século XIX o surgimento – nos Estados Unidos – do modelo de

“banheiro compacto americano”, composto de banheira, pia e vaso sanitário,

dispostos em um espaço mínimo. E isto só ocorreu, na medida em que foi possível

alinhar toda a tubulação hidráulica para a instalação das peças sanitárias em uma

mesma parede (Giedion, ibidem; p. 699).

Foi a partir do século XX, contando com a introdução no mercado de

uma gama de produtos voltados à construção e acabamento dos sanitários, à higiene,

e à estética, que esse setor passou a incorporar o programa das residências –

primeiramente, das classes mais abastadas. Segundo observam Veríssimo e Bittar, foi

apenas na década de 1930 que as residências médias passaram a ter o banheiro como

parte integrante de seu programa, assim como os edifícios de apartamentos, que

passam, aí, a contar com um banheiro privativo para cada unidade habitacional

(Veríssimo e Bittar, ibidem; p. 103-104).

A valorização do corpo e da higiene íntima, assim como a liberação dos

costumes e o relaxamento de certos tabus, fizeram o banheiro, a partir do último

quarto do século XX, descolar-se de suas funções originais e adquirir um novo status

no espaço doméstico. A partir dos anos 60, o surgimento da “suíte” deu ao setor

íntimo a possibilidade de atender à necessidade da família, de mais um banheiro

(Veríssimo e Bittar, ibidem; p. 95), assim como possibilitou ao casal o uso de um

banheiro privativo. Usado como atrativo diferenciador pelas imobiliárias, ainda que a

construção de um segundo banheiro representasse um custo mais alto do que o da

média dos outros cômodos, o fato de o apartamento não contar com o conforto de

uma suíte passou, a partir dos anos 80, a significar uma importante perda no

potencial de venda – ainda que esse conforto já viesse comprometido pelas mínimas

dimensões impostas aos usuários (Camargo, ibidem; p. 74).

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Contudo, deve-se ressaltar que, mesmo com a profunda modificação do

papel do banheiro no contexto da privacidade do habitar doméstico brasileiro, há

milhares de pessoas, moradoras de locais onde não há saneamento básico, que ainda

utilizam o banheiro nas sua formas mais primitivas. O quartinho fora de casa, ou a

“moita” e o “banho de rio”, como lembram Veríssimo e Bittar, continuam sendo

muito mais utilizados do que o homem urbano das classes médias e alta podem

imaginar (Veríssimo e Bittar, ibidem; p. 106).

Em duas pesquisas realizadas – em 2001 e 2003 – pelo núcleo de

pesquisas Nomads83 sobre as atuais relações de usos dos espaços domésticos no Brasil,

e particularmente na Região Sudeste, propôs-se a pergunta “o que esse espaço [o

banheiro] não tem e que eles [os entrevistados] gostariam que tivesse”. A freqüência

das respostas “uma banheira”84 e “vista para uma paisagem bonita”85 sugeriu aos

pesquisadores a tendência ao desejo de se permanecer no banheiro por mais tempo

do que o habitual; e da crescente diminuição do seu caráter de espaço estritamente

voltado à higiene, passando a ser visto como um lugar para relaxar, onde, para isto,

deve-se permanecer por mais tempo.

Em outra pesquisa, esta realizada em 2006, por uma agência de

publicidade e uma empresa especializada em opinião de mercado – ambas em São

Paulo86 –, com o objetivo de conhecer o comportamento dos consumidores, propôs

aos seus entrevistados as seguintes perguntas: “Qual a importância do banheiro para

você?” e “O que significa para você este espaço da sua casa?”. Confirmando os achados da

pesquisa anterior, as respostas indicaram uma forte tendência a se atribuir ao

83 Núcleo de Estudos de Habitares Interativos – Universidade de São Paulo (http://www.eesc.usp.br/nomads/). O perfil dos entrevistados foi de pessoas entre 16 e 35 anos, com curso superior completo ou em andamento, e com renda familiar mensal acima de vinte salários mínimos; metade morando em casas, e a outra metade, em apartamentos; compõem os seguintes grupos domésticos, por ordem de porcentagem da amostra: família nuclear (maior porcentagem), casais sem filhos, pessoas vivendo sós, famílias monoparentais e pessoas sem vínculo conjugal ou parentesco coabitando. In: http://www.eesc.usp.br/nomads/epesquisa/index.htm#. 84 71,49%, na pesquisa realizada em 2001 e 65, 09% nesta pesquisa realizada em 2001. 85 56,38%, na pesquisa realizada em 2001 e 53,06% na mesma pesquisa, realizada em 2003. 86 A pesquisa foi realizada por Rino Publicidade (http://www.rino.com.br/primeira.php) e Club de Pesquisa (http://www.rino.com.br/pesquisa/). Foram realizadas 300 entrevistas pessoais com auxílio de vinte questionários abertos e um estruturado. A amostra de entrevistados, composta por pessoas casadas de classe média, compôs-se de 45% de homens e 55% de mulheres, com idades entre vinte e cinco e sessenta anos.

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banheiro significados que o afasta de suas funções originais. A partir de afirmações

propostas para serem ou não aceitas pelos entrevistados, 95% das mulheres e 91%

dos homens entrevistados concordaram que o banheiro “é o lugar onde a privacidade

é mais garantida – não se tem que dar satisfação de nada”. Espaço onde “o tempo é

usado em seu próprio benefício”, é no banheiro que, ao se banharem, se cuidarem, se

olharem no espelho, relaxarem, as pessoas “se sentem únicas”, “diferenciadas”, e se

permitem avaliar os próprios defeitos e qualidade. O sentido de local da privacidade,

por excelência, dado ao banheiro é confirmado na medida em que 87% das mulheres

entrevistas e 84% dos homens concordam com a afirmação “[O banheiro] é onde

consigo ter um tempo para mim, me sinto à vontade; é um momento só meu.”

Algumas frases destacadas pela pesquisa confirmam os novos significados

atribuídos ao banheiro, tais como lugar de tranqüilidade para se relaxar, onde se pode

liberar as emoções e experimentar a sensualidade sem tabus; um local para uma

renovação física e emocional :

“[O banheiro] É um espaço para estar comigo mesma, decidir, sentir toda a minha

impaciência. Preciso dessa pausa. Sempre tranco o banheiro.” (mulher)

“Passo muito tempo no banheiro lendo jornal todas as manhãs. Porém tomo banho

e me arrumo rapidamente. Uso o banheiro para ler, fumar com privacidade.” (homem)

“É no banheiro que eu descarrego minhas tensões, que gosto de ficar sozinho.

Sozinho não, comigo.” (homem)

“Enfim, no banheiro é o momento onde ‘brinco’ de mulher menina, deixo a

‘executiva’ pra lá.” (mulher)

“É a intimidade total. Você está sozinho. Pode ter as sensações que quiser. Não

tem censura.” (homem)

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O caráter de privativo atribuído ao banheiro é explicitado pelo entrevistado Rui que,

tendo trabalhado como comissário de bordo em vôos internacionais, afirma que “em trinta e quatro anos de vôo, nunca” usou “o sanitário do avião para defecar; só pra fazer xixi!”. Ao mesmo tempo (como mencionado anteriormente), refere‐se ao

grande incômodo, quando teve, em seu banheiro, uma pessoa estranha para fazer

um conserto:

“[... Ele] vê a minha intimidade no meu banheiro, vê o meu quarto, as minhas coisas, o meu boxe de tomar banho, onde eu fico nu, o meu vaso sanitário...”

(Rui) ****

A entrevistada Júlia refere‐se à falta de privacidade do banheiro do pensionato onde

vive:

“[...] O banheiro é coletivo e o vaso e os chuveiros ficam no mesmo ambiente; [...]. E as paredes das cabines não vão até o teto. Ou seja, nem aí, dá pra ter privacidade.” (Júlia)

****

O entrevistado Hermes refere‐se ao momento de utilização do banheiro, na casa

partilhada com colegas de trabalho, em Angola, como o único momento de

verdadeira privacidade:

“[...] Como eram vários homens, na hora do banho – no banheiro –, de fazer a barba, era quando você estava com você.” (Hermes)

****

Marly descreve a preocupação com a preservação da privacidade do banheiro de seu

trailer, ao modificar a posição da janela:

“[...] Por exemplo, a janela do banheiro ficava em baixo, na altura de uma janela normal. E aí, quando você ia usar o vaso ou tomar banho, tinha sempre que fechar a janela para as pessoas de fora não verem. Aí, eu fui à fábrica e falei que aquela janela tinha que ser alta. E aí, todos os trailers passaram a ter a janela do banheiro alta.” (Marly)

****

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Não dispondo de trailer com banheiro e morando em barraca, a também circense

Amélia87 descreve seus mecanismos de preservação das atividades de fisiológicas e

de higiene corporal – especialmente das mulheres e crianças. É interessante notar

que, após a entrevista, Amélia ainda relatou que o espaço interno da barraca, numa

espécie de setorização do espaço privado, era dividido com cortinas de tecido que

separavam os quartos – setor íntimo – da cozinha, sendo que, da mesma forma, uma

divisão entre o quarto do casal e das crianças ainda era devidamente providenciada:

“[...] Eu lavava as fraldas e não gostava de varal do lado de fora porque o povo passava, o circo não tava armado ainda, e via aquele varal – aquilo, pra mim, era pavoroso! Então, eu fazia um varal dentro da barraca, e ali pendurava as fraldinhas. [...] Banho era na bacia. A barraca é fechada, é uma casa, ninguém entra, então não tinha problema. Você tinha, lá, o seu quarto dividido88, se precisava, tomava banho. E, também, o circo sempre teve um banheiro comunitário. Os adultos usavam aquele banheiro. As crianças usavam em casa. Eu não deixava minhas crianças – eu achava que não era legal, uma fossa, sabe? Eu tinha sempre um urinol pra elas, depois eu jogava naquele banheiro comunitário. Porque as crianças, quando iam ficando mocinhas, já iam ficando com vergonha de passar com o urinol, aí, eu dizia ‘deixa que eu levo’; punha um pano por cima, e levava lá. Lavava bem lavado e punha em baixo da cama de novo. Quando tinha uma casa no fundo do circo, e tinha banheiro do lado de fora – antigamente era assim –, às vezes a dona deixava a gente usar, principalmente as mulheres. [...] Muita gente boa via a dificuldade da gente e deixava a gente tomar banho: ‘toma um banho aí!...’. Aí, eu tomava banho, dava banho nas crianças, [...]. Os homens se viram, eles estão sempre na rua, no bar, então eles ocupam lá. As mulheres sempre arrumavam uma casinha pra não precisar ocupar o banheiro do circo. Os homens, pra tomar banho – normalmente, em posto de gasolina tem banheiro comunitário –, eles iam tomar banho lá; não dava muito trabalho, mulher é que era mais difícil.” (Amélia)

87 Apresentada no Capítulo 1. 88 Aqui, Amélia refere-se à setorização, feita por cortinas, do interior de sua barraca.

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Em oposição à intimidade buscada no interior das residências, há o setor

social, presente na arquitetura residencial brasileira desde as primeiras casas

construídas, ainda no século XVI. Tratado com rigor formal, essa é a área que, “na

ausência dos terreiros de engenho, das varandas rurais ou urbanas ou jardins, faz a

transição entre o exterior (mundo) e o interior (doméstico)” (Veríssimo e Bittar,

ibidem; p. 90). Lembrando do termo “formalistas” a nós, brasileiros, atribuído, pelo

viajante norte-americano Thomas Ewbank, quando de sua visita ao Brasil, em 1845,

DaMatta lembra que “as visitas sempre foram um capítulo especial de nossa vida

social, existindo um espaço nas casas só para elas: as salas, ou salas de visitas”.

Segundo o autor, por significar abrir o espaço da casa para um estranho, o ato de

receber envolvia – e ainda envolve – “requintes quase barrocos” (DaMatta, ibidem; p.

52). Assim descreve os hábitos de receber dos brasileiros no século XIX:

“Nas casas dos pobres, assim como na dos ricos, existe sempre uma peça

denominada sala, que dá para o exterior. É aí que se recebem os estranhos, e se

fazem as refeições, sentados em bancos de madeira em torno de uma mesa comprida.” (Saint-Hilaire, 1975. Apud DaMatta, 2000; p. 51).

A tradução formal para a transição entre o que se pretende – ou não –

mostrar aos olhares estranhos, nas residências atuais, de espaços mais racionalizados,

ainda se encontra na ubíqua “sala de visitas”, a qual – a despeito das cada vez mais

reduzidas dimensões, especialmente nos apartamentos de classe média (ver Camargo,

2003) – freqüentemente é arranjada em “dois ambientes”: o de jantar e o de estar.

Decorada de acordo com o nível socioeconômico e cultural dos moradores – seja com

móveis caros e objetos de design sofisticado, como os encontrados nas salas dos mais

abastados, seja com a estante de verniz exageradamente brilhante, que disfarça o

compensado de má qualidade e o vaso com flores artificiais das habitações de baixa

renda, tal como descreve Ermínia Maricato (1999; p. 1) –, a sala tem, como

propósito, menos do que acolher a intimidade dos donos da casa, impressionar os

visitantes e transmitir a eles a “melhor” imagem daquela moradia (Veríssimo e Bittar,

ibidem; p.57; Camargo, ibidem; p. 83).

Já quanto ao setor íntimo da casa brasileira, é possível verificar-se a

distinção, trazida por Arendt, entre as questões que são da vida pública e aquelas que

se mantém – e que devem assim continuar – preservadas no interior no espaço

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privado da casa. Se, por um lado, o setor social da casa está conectado às questões que

dizem respeito às influências do habitar no mundo exterior à esfera doméstica – uma

vez que funciona como filtrador dessas influências, traduzindo-as e adaptando-nas à

vida doméstica – por outro lado, adentrar o setor íntimo dessa casa implica penetrar

no “desconhecido universo velado, preconceituoso, repleto de símbolos e tabus

raramente revelados a visitantes, elementos estranhos ao seio da família” (Veríssimo e

Bittar, ibidem; p. 88). Assim, lembram-nos os autores de que para penetrar nesse

recôndito da casa, é necessário que sejamos autorizados por seus moradores, pois,

com isto, poderemos estar desvendando seus segredos mais ocultos (Veríssimo e

Bittar, ibidem).

Em seu livro de lembranças sobre as moradas de sua infância e juventude,

Maria Regina descreve com eram estabelecidas as relações formais de transição entre a

esfera doméstica o mundo exterior:

“Nas poltronas sem braço do hall eram recebidas as pessoas que vinham trazer

alguma encomenda, receber alguma coisa ou visitas rápidas que não faziam parte da intimidade. Não passavam do hall.” (Rodrigues, 2003; p.39)

O entrevistado Rui refere‐se ao uso da sua sala de visitas:

“[...] daqui da sala, se você é uma visita de cerimônia, você não entra no meu apartamento – fica isolado aqui. Uma coisa é você ter a pessoa a quem você dá a liberdade de entrar, e a outra é aquela pessoa que você mantém isolada. Então, você consegue separar o que é amigo do que é visita. O amigo, você deixa entrar, invadir; não tem segredo, não tem mistério. [...] E o local de necessidade seria o lavabo. Fora isso, você não tem acesso – nem à cozinha, nem a cheiros, nada.” (Rui)

Considerando-se que, na sala, se exige um certo grau de

convencionalismo, em termos da produção do espaço físico, para que o cômodo seja

aceito e agrade, segundo os padrões não apenas dos moradores, mas também dos

visitantes convidados a entrar, devendo, para isto, manter-se o mais bem arrumada e

conservada possível, será muito mais difícil a identificação de traços de intimidade

doméstica nesse cômodo – a não ser por um jornal lido ou um par de chinelos

descuidadamente esquecidos ali – do que nos quartos, ou mesmo na cozinha e na

área de serviço (Camargo, ibidem; p. 90). Como bem observam Veríssimo e Bittar, é

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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no setor de serviços de uma casa que se pode apreender muito da intimidade de seus

moradores. Pois é nesse setor que se revelam mais claramente os hábitos da casa,

“sem a máscara utilizada pelos atores quando desempenham seus papéis no setor

social”.

Estaria aí a raiz da tradição de

só se entrar pela cozinha aquele que é da

casa – a quem, portanto, lhe será dado ver

aquilo que – por sinal – já conhece

(Veríssimo e Bittar, ibidem; p. 107).

Fig. 12 Área de serviço: intimidade não revelada a estranhos.

...

Assim, pudemos observar, através deste breve levantamento, a

permanência de alguns aspectos que ainda hoje englobam o entendimento de

privacidade e intimidade domésticas. Ao mesmo tempo em que as práticas biológicas

da vida humana permanecem até hoje no terreno obscuro da privacidade (para usar

os termos de Arendt), a intimidade doméstica ainda é relacionada à preservação de

nossas particularidades subjetivas – do desenvolvimento de nossa identidade, da

liberação de nossas emoções, do cultivo de nossas relações afetivas. Essas

particularidades ainda encontram no nosso espaço doméstico – em ambientes

específicos e povoados de, também específicos, objetos – o local para serem

experimentadas e cultivadas.

[...] Eu quero uma casa no campo

Do tamanho ideal, pau-a-pique e sapé

Onde eu possa plantar meus amigos

Meus discos e livros E nada mais

(Zé Rodrix e Tavito). Casa no Campo

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149

Capítulo 4 – O cotidiano doméstico

Procuramos, até aqui, relacionar as questões do habitar com a vida privada

doméstica e o próprio sentido das idéias de privacidade e intimidade que ela encerra.

Consideramos esses conceitos em seus diferentes aspectos, inclusive históricos e

culturais, os quais podem explicar sua evolução e a maneira segundo a qual hoje os

conhecemos. Mantenhamo-nos, ainda, na questão da vida privada doméstica. E

retomemos a função da casa física, não apenas como abrigo contra as intempéries,

mas – como bem nos lembra Maria Cecília N. Homem –, como espaço que abriga...

“uma série de atividades relativas à sobrevivência ou à manutenção do corpo e do

espírito, no domínio do privado, isto é, aquelas atividades que devem ocorrer na intimidade, fora das vistas do público ou de estranhos” (Homem, 1996; p. 23)

... as quais constituem o que chamamos de nosso cotidiano doméstico.

O cotidiano doméstico: a importância da insignificância

O sociólogo David Chaney vê o cotidiano como a realidade das

experiências habituais – o “normal”; ou seja, aquilo que está lá, que consideramos

garantido, ou que podemos executar sem que seja necessária uma grande atenção

específica. Pelo próprio caráter de normalidade, ou seja, por ocorrer, geralmente, nos

mesmos específicos territórios e horários, entre pessoas voltadas à mesma rotina

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(Chaney, 2002; p. 10), o cotidiano seria a parte de nossas vidas que não nos é

marcante, por nenhum motivo especial.

Mas, em que sentido, então, algo que consideramos não especial poderia

ter importância em nosso habitar doméstico?

Henri Lefèbvre diz que ainda que o cotidiano possa parecer um conjunto

modesto de atividades – se considerado o conjunto de produtos e de obras dos seres

vivos –, ele, no entanto, constitui “uma primeira esfera de sentidos”, um terreno em

que a ação produtora (criadora) se antecipa a novas criações. Para o autor, o cotidiano

estaria associado à imagem de um “trampolim”; um terreno, que é um “movimento

composto de variados momentos (necessidade, trabalho, gozo [...], passividade e

criatividade [...])”, através do qual, necessariamente, lançamo-nos para realizar o

possível – ou, “a totalidade dos possíveis” (Lefèbvre, 1969; p. 26). Passemos, através

de algumas considerações teóricas a respeito da cotidianidade, aplicá-las ao conjunto

de práticas que constituem o habitar doméstico cotidiano – a “normalidade” da vida

vivida diariamente na esfera privada do habitar –, para, então, voltarmos à noção de

“trampolim” trazida por Lefèbvre.

Para aplicarmos a idéia de normalidade, associada ao cotidiano, à rotina de

atividades vivida diariamente na esfera privada doméstica, podemos começar por

dizer que o espaço doméstico poderia ser tomado como um dos territórios de que nos

fala Chaney, no qual se estabeleceriam diariamente, sem variações marcantes,

determinadas atividades praticadas, geralmente, pelas mesmas pessoas – sendo essas

pessoas, neste caso, as que partilham o mesmo espaço doméstico. Então, podemos

reformular a pergunta feita anteriormente. O que significa para nossas vidas o

praticar diário de uma rotina em nossas casas? A resposta a esta pergunta poderia

começar a ser dada com outra pergunta: por que este algo irrelevante, que fazemos

quase automaticamente em nossas casas todos os dias, nos faz falta quando estamos,

por alguma razão, impossibilitados de fazê-lo, ou quando enfrentamos alguma

situação que nos impeça de praticá-lo normalmente?

Paradoxalmente, a resposta pode estar justamente no fato de vermos o

cotidiano como algo irrelevante – e esperarmos que ele assim permaneça. Para

Chaney, embora o dia-a-dia esteja presente de forma nada marcante para nós,

devemos vê-lo não como um conjunto de atividades, propriamente dito, ou mesmo

como uma estrutura de rotinas, mas como um modo de atribuir a estas atividades

significado pessoal. E é justamente por isto que aquilo que é previsível, conhecido e

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vivenciado tão intimamente por cada um de nós, ao qual aplicamos as nossas próprias

fórmulas de interação com o meio em que nos inserimos, torna-se, em determinadas

circunstâncias, desejado, ou até mesmo necessitado. Quer dizer, o que vivemos

cotidianamente, esperamos continuar vivendo; queremos que as coisas aconteçam

sem novidades, para que, confiantes daquilo que as conhecemos e controlamos,

possamos atingir o bem-estar da forma que nos é particularmente mais familiar.

Chaney propõe que é essa normalidade do cotidiano que provê nossas vidas de

ordem e estabilidade (Chaney, ibidem; p. 11). Da mesma forma, como afirma

Christian Norberg-Schulz, o cotidiano vivido em nossas casas, ao nos apoiar como

uma base por nós já conhecida, passa a representar o que é contínuo em nossa

existência (Norberg-Schulz, 1985; p. 89).

É neste contexto que podemos relacionar a casa e o cotidiano doméstico

ao conceito de “segurança ontológica”, descrito por Anthony Giddens como uma

forma muito importante de confiança, enraizada em nosso inconsciente, na

continuidade de nossa auto-identidade e na constância dos ambientes em que nos

vemos social e materialmente inseridos. Para o autor, tal sentimento de segurança

seria um fenômeno emocional, mais do que cognitivo, e estaria intimamente

conectado à influência do hábito e à previsibilidade das rotinas (aparentemente)

menores da vida diária e (Giddens, 1990; p. 92, 98). É neste sentido que o conceito

de segurança ontológica pode ser relacionado ao conjunto de práticas e atividades

que compõem nosso cotidiano doméstico. O autor ainda acrescenta que quando, por

alguma razão, tais rotinas são quebradas, somos tomados de ansiedades, e até mesmo

os aspectos que estão muito firmemente sedimentados em nossa personalidade

podem ser alterados, ou mesmo desaparecer (Giddens, ibidem; p. 98).

Isto pode se justificar pelo fato de que, desde os primeiros cuidados que

recebemos na infância já se atribui uma grande importância à seqüência das rotinas –

um processo que, na personalidade adulta, resulta numa ligação muito próxima entre

os sentimentos de confiança e segurança ontológica. Desta forma, como afirma

Giddens, a rotina passa a ser experimentada como algo “psicologicamente relaxante”

(Giddens, ibidem; p. 97-98).

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No depoimento sobre duas fases distintas de sua vida, a entrevistada D. Dalma89

exemplifica a segurança ontológica em relação às experiências domésticas cotidianas

da infância e a posterior perda do sentido de ordem e continuidade quando a família,

ao se mudar para uma cidade diferente, tem o ritmo do habitar doméstico

drasticamente alterado:

“[...] Eu sempre morei com meus pais, sempre. [...] Éramos cinco, meus pais e nós três. [...] Nós morávamos no interior do Paraná. Eu me lembro muito dessa casa: levantávamos cedo, tinha aquele quintal imenso, com muita fruta. Carambola, romã, jabuticaba, até limão! No tempo das frutas, a gente ia comer lá no pé – as que caíam no chão, já não prestavam... que coisa boa! A gente limpava tudo, varria, tirava aqueles montes de folhas, punha dentro de um saco, meu pai também ajudava. Minha mãe ficava na cozinha e meu pai, antes de sair para o serviço, pegava água do poço pra minha mãe, pra não ficar muito pesado pra ela. Eu, por ser a mais velha, depois de voltar da escola e fazer lição, dava uma mãozinha pra ela, servicinho simples, nada de pesado. Lavava uma louça, varria uma casa. [...] Eu acho que fiquei naquela casa até uns dez, onze anos. Aí, meu pai recebeu um convite para trabalhar com o irmão dele aqui, em São Paulo, e ele achou muito vantajoso – de fato, ele pegou bons serviços. E aí mudamos pra São Paulo. No começo, nós sofremos demais. Pra começar, a casa que meu tio disse que já estava pronta pra gente morar, quando chegamos, disse que o inquilino não tinha saído, e nos deixou assim, sem ter pra onde ir. Vou te contar, foi a maior decepção. Nós sofremos muito. Ficamos, não lembro quanto tempo, com uma tia, irmã da minha mãe. Ela acomodou as coisas dela, para caber as nossas, foi um horror! E se não tivesse essa irmã da minha mãe, onde nós teríamos ido parar? Nós éramos crianças, eu, que era a mais velha tinha uns dez, onze anos!! Nossa, foi sofrimento demais... porque tudo aquilo que era bom da outra casa, nossas coisas, nossa vida – mesmo simples –, parecia que tinha acabado! Meu pai trabalhando tanto, perguntava pra um, pra outro, pra meio mundo, pra procurar uma casa. A muito custo, ele arrumou, num sobrado, na Vila Clementino. A senhora estava alugando o subsolo, e meu pai falou ‘nós vamos pra lá, provisoriamente’, porque não podia mais ficar com minha tia, coitada. E ela era enfermeira do Hospital das Clínicas, também tinha uma vida de sacrifício, levantava de madrugada... foi um horror!” (D. Dalma)

****

89 Apresentada no Capítulo2.

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A circense Marly90 fala da necessidade, percebida também pelos filhos, de voltar ao

ambiente doméstico que lhes é conhecido, à tranqüilidade e a segurança emocional

experimentada no lugar e na forma de praticar o habitar que lhes é familiar:

“[...] você pode ir aonde for na cidade, mas você sabe que vai voltar e vai pro seu canto. Você quer voltar pra o seu lugar de descanso, pra onde estão suas coisas. [...] E eu percebo isso, também, nos filhos. Os meus dois foram criados no circo [...]. A gente, às vezes, saía pra algum lugar, daí eles falavam “ai, mãe, estou louco pra ir pra casa”: a casa era o trailer. Os dois já saíram de casa. O de 18 anos é palhaço, já comprou o trailer dele e mora aqui do lado. O mais velho, agora, mora no Paraná, está estudando. Por ele, estaria aqui, mas ele também quer terminar os estudos. Então, por enquanto, ele está lá. Mas, na semana que vem, mesmo, ele vem pra cá, pra passar duas semanas. Nas férias, nos feriados prolongados, ele está sempre aqui, no circo, no trailer.” (Marly)

Partamos, então, da necessidade de estarmos inseridos em um ambiente

onde percebemos o sentido de continuidade – tanto em relação à noção que temos

de nós mesmos, quanto em relação às pessoas, espaços e coisas com os quais nos

relacionamos. Com isto, podemos propor que é o fato de estarmos inseridos na

rotina que leva a essa continuidade, assim como num contexto onde o que se espera é

não haver o inusitado, que dá espaço ao que realmente é relevante para nós, em

termos de habitar doméstico – como a possibilidade de estarmos em privacidade e

intimidade com nós mesmos ou com quem desejamos, refletindo sobre nossas vidas,

cultivando a nossa individualidade, fazendo o que queremos, sem que para isso

precisemos nos justificar perante a opinião pública.

O que fazemos com o nosso cotidiano doméstico é, num primeiro

momento, o utilizarmos como um meio restaurador: uma vez certos da segurança,

privacidade e intimidade, relaxamos nossos corpos e nossas emoções; e em seguida,

como meio preparador para as nossas próximas incursões pela vida pública. É na vida

diária doméstica que podemos fazer uso do que já vimos Gaston Bachelard apontar

como o “benefício mais precioso” da casa, ou seja, a possibilidade de sonhar em paz,

de termos abrigados os nossos devaneios e nosso sonhar (Bachelard, 2003; p. 26).

Isto, não para que escapemos indefinidamente do mundo real; mas, sim, a

90 Apresentada no Capítulo1.

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intimidade do cotidiano doméstico trabalha para que, ao darmos vazão aos desejos e

à fantasia, criemos meios emocionais de implementar nossos planos para a próxima

incursão pública.

Como observa Peter King, a própria intimidade, que não é apenas

possibilitada, mas, de fato, estimulada pela privacidade doméstica, é também

praticada de maneira não especial, corriqueira, normal. No entanto, se, por alguma

razão, não podemos mergulhar na “complacência” de nossas casas, se não podemos

perceber essa confiança no nosso próprio habitar doméstico, há algo de falho no

caráter básico desse habitar, que é o de servir como “ferramenta” para atingirmos

nossos objetivos (King, 2004, 174). Segundo o autor, as agruras encontradas na

vivência do mundo estranho à nossa intimidade doméstica não desaparecem

simplesmente porque voltarmos para casa; o que proporciona nosso restauro

emocional e físico é o reencontro com a própria vida doméstica, e com tudo o que ela

nos traz em termos de continuidade e constância. (King, ibidem; p. 178).

Essas considerações são verificadas no depoimento do entrevistado Reginaldo91 que,

há quinze anos viaja a trabalho, ficando, por vezes, longos períodos hospedado em

hotéis, privando‐se do cotidiano doméstico:

“[...] eu passo quatro, seis meses [longe de casa, trabalhando] numa empresa, [...]. Dali a quatro meses, vou pra outro – isso, quando eu não tenho dois, três projetos ao mesmo tempo, em cidades diferentes. Nesse caso, eu fico dois dias num lugar, dois dias num outro; na outra semana, fico dois num outro... Aí, você tá dormindo numa cama hoje, se arruma lá, amanhã você já tá mudando. Então, eu sinto, mesmo, é falta de casa [...] o que mais me agrada nela [sua casa] é o quintal, que não é grande, mas é um lugar muito gostoso. Tem uma parte coberta e uma descoberta. Eu gosto de ficar ali sentado lendo um jornal, conversando, junto com a minha esposa. Tem um cachorro... É um lugar agradável – disso eu sinto uma falta louca!... Então, por mais que eu já trabalhe há quinze anos nessa atividade, eu ainda sinto essa falta. Aí, quando eu estou em São Paulo, eu fico mais em casa. Em casa, nos fins de semana, ou eu estou nesse quintal, fazendo um churrasquinho, ou eu estou na sala, com a família, vendo uma tv, um jornal – eu adoro jornal, tanto de televisão, como de papel.” (Reginaldo)

91 Apresentado no Capítulo 1.

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Relatando sua experiência de estar trabalhando em Portugal, hospedado há dois

meses em um hotel, Reginaldo fala da tentativa, não totalmente bem‐sucedida, de

estabelecer um cotidiano “doméstico” restaurador das forças gastas pelo trabalho. O

fato de ter que sair do hotel para jantar é visto como um incômodo a esse descanso.

Reginaldo compara essa situação com o momento em que sua esposa esteve em

Portugal, visitando‐o, com a qual ficaram hospedados em um flat. O ritual diário de

chegar do trabalho e encontrar a esposa à sua espera e o momento de cozinharem

juntos passaram a atribuir à situação um caráter de constância e continuidade que

Reginaldo passou a associar com o sentir‐se em casa:

“[...] Quando eu chego à noite, pra relaxar, costumo fazer uma caminhada [na academia do hotel], tomo um banho, e vejo televisão, assisto a um jornal [...]. Quando eu volto, o que é que tem pra fazer? Ou você vê televisão, ou lê um livro, ou trabalha. E ainda por cima, eles não servem nada à noite, aí eu tenho que jantar fora. Isso, pra mim, é muito ruim: ficar saindo, ter que ficar procurando outras coisas. Quando a minha esposa foi me visitar lá, nós ficamos num flat muito gostoso. Aquilo era bom: você estava em casa... Eu chegava, ela estava ali, aí a gente fazia uma comidinha....”

(Reginaldo)

A canção a seguir exemplifica o processo de vivência da normalidade

cotidiana doméstica, muito familiar a todos nós, a qual, ao mesmo tempo que acolhe

os hábitos mais corriqueiros e pouco significantes, como lavar o rosto pela manhã,

vestir-nos para mais um dia de trabalho ou tomar o café da manhã, propicia ao

indivíduo refletir sobre sua vida e preparar-se para mais um dia no mundo exterior.

Quero cantar pra você Segunda-feira de manhã

Pelo seu rádio de pilha tão docemente E te ajudar a encarar esse dia mais facilmente

Quero juntar minha voz matinal Aos restos dos sons noturnos

E aos cheiros domingueiros que ainda bóiam Na casa e em você

Para que junto com o café e o pão se dê O milagre de ouvir latir o coração

Ou quem sabe algum projeto, uma lembrança

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Uma saudade à toa Venha nascendo com o dia numa boa

E estar com você na primeira brasa do cigarro No primeiro jorro da torneira

Nos primeiros aprontos de um guerreiro de manhã Para que saia com alguma alegria bem normal

Que dure pelo menos até você comprar e ler

O primeiro jornal

(Sueli Costa e Abel Silva. O primeiro jornal)

Uma vez a normalidade e a previsibilidade do cotidiano doméstico

funcionando como pano de fundo para reflexões a respeito de nossas vidas, é a partir

dessa neutralidade que nos preparamos para tomar decisões criativas e

transformadoras, estas sim, consideradas à luz da esfera pública, relevantes ao curso

de nossas vidas. Lembremos, aqui, de Hannah Arendt que, ao mesmo tempo em que

fala da necessidade da preservação à meia luz da (aparente) irrelevância do que é

privado, aponta para o fato de que a percepção de algo como real, relevante, está

totalmente condicionada à “existência de uma esfera pública na qual as coisas possam

emergir da treva da existência resguardada” (Arendt, 1997, p. 61).

O deixar e o voltar ao cotidiano doméstico

A imagem de “trampolim” que Lefèbvre atribui ao cotidiano faz com que

retomemos a questão da vida vivida cotidianamente em nosso ambiente doméstico e

passemos a vê-la como um meio de atingirmos o possível – e o real de que nos fala

Arendt. Para Lefèbvre, a qualidade do cotidiano de proporcionar recuperação “rápida

e fugaz” do enfraquecimento resultante de esforço diário está na cotidianidade do

íntimo. Mas é necessário que, sempre que possível, estabeleçamos uma justificativa

para esta cotidianidade. E é justamente o romper com o cotidiano – a partida – que

lhe servirá de álibi (Lefèbvre, ibidem, p. 169, 170).

Clare C. Marcus vê as incursões que fazemos pela esfera pública, ao

deixarmos temporariamente nossas casas, como uma maneira de desenvolvimento

íntimo. Segundo a autora, sem uma “viagem”, ou uma passagem gradual – geográfica

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ou psicológica – de um estado para outro que consideremos mais desenvolvido,

poderá haver estagnação, frustração, enfraquecimento. Segundo a autora, gostemos

ou não, todos nós temos que deixar nossos lares, experimentar aventuras, riscos,

perigo, excitação, para nos encontrarmos. E ainda que o eu que procuramos não

esteja literalmente lá fora, estará internamente, “como semente ou sonho”, precisando

se realizar através dessas experiências que nos permitimos viver lá fora (Marcus, 1995,

p. 279).

Em Novembro, novela autobiográfica do jovem Gustave Flaubert, o autor

ilustra o quanto o cotidiano do colégio interno lhe serve de pano de fundo e, ao

mesmo tempo, de catapulta de sua alma para mundos inquietantes:

“E quando terminava o serão e todos estávamos deitados em nossos leitos brancos

com cortinas brancas, e o mestre-escola passeava só em todos os sentidos pelo

dormitório, era o momento em que me concentrava ainda mais em mim mesmo,

escondendo com volúpia no meu peito esse pássaro que batia as asas e me infundia

o seu calor! Demorava sempre muito para adormecer, escutava soarem as quatro

horas, quanto mais lentas elas transcorriam, mais feliz me sentia; parecia-me que

elas me empurravam para o mundo, cantando, e saudavam cada momento da minha vida, dizendo: ‘Para fora! Para fora! Ao futuro! Adeus! Adeus!’” (Flaubert,

2000; p. 40).

Marcus vê o espaço doméstico como o ponto pivô dessas viagens – o

começo e o fim. Se, por um lado, deixá-lo por um período faz com que nos

desenvolvamos através das experiências da vida, voltar é confortarmo-nos, novamente,

na estabilidade e na força do que a autora chama de “centro tranqüilo do nosso ser”.

Da mesma forma, nunca deixar o lar é evitar riscos, recusar-se a crescer (Marcus,

ibidem).

Em um longo depoimento, ao falar de seu ideal de habitar doméstico como sendo a

combinação, no espaço físico da casa, das rotinas tanto doméstica quanto de seu

trabalho como artista plástico, o entrevistado Pedro92 exemplifica, como o cotidiano

gerado dessa combinação parece estabelecer um sentido de ordem e estabilidade

que considera essencial tanto à sua atividade profissional, quanto ao próprio habitar

92 Apresentado no Capítulo 2.

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doméstico, que, em última instância, se mesclam. Ainda que afirme ser

“extremamente caseiro” e detestar viajar, Pedro descreve sua necessidade de

pequenas saídas, antes e depois do ciclo diário de atividades, como se a rápida ida à

praia ou os “quinze minutos” de contato com o mundo exterior lhe inspirassem a

criar e justificassem a retomada à sua cotidianidade doméstica:

“[...] eu sempre entendi a minha casa, como também o meu estúdio. Durante muitos anos foi assim. Eu sempre tive as duas coisas, em partes distintas, mas na mesma casa. Eu sempre vivi desse jeito. Pra mim, uma casa é assim: quando eu tenho o meu espaço de trabalho acoplado a ela. Só é casa se for desse jeito. [...] Porque eu sou extremamente caseiro. Eu preciso de uma casa. [...] É uma coisa curiosa: eu preciso de quinze minutos de gente por perto, mas só quinze minutos. Depois eu quero voltar para casa, pra minha rotina. Quando eu vivia na Granja, eu vivia dentro de um condomínio, e quando acabava o meu expediente diário, cinco, seis horas da tarde, eu tinha esses quinze minutos. Pegava o carro, sumia, ia pro centro da Granja, pra mim já era suficiente: Chegar no mercado, ver as pessoas, pronto, e voltava. Em Florianópolis, eu imaginava que pudesse manter esse ritmo – como, de fato, oferece. Então, eu fui para um canto de Florianópolis, que é uma área rural, na verdade. No final da rua, você atravessa as dunas e está na praia. [...] [a respeito da antiga casa, em São Paulo:] Eu morava com a minha família. Isso não atrapalhava, mas eu também sou uma pessoa que não divide as coisas muito bem. Minha mulher, na época, trabalhava fora e eu ficava com as crianças. Eu não só morava ali, trabalhava ali, mas cuidava da casa e das crianças. Minha filha, pequenininha, já ficava comigo dentro da oficina. Cresceu comigo dentro da oficina, que era a própria casa, num corpo só. [...] Eu detesto viajar, não gosto de viajar. Fala‐se muito isso – acho que um pouco é chavão, talvez outra parte seja verdade –, de que seria importante para a criação, referências diferentes, mundos diferentes, situações diferentes. Comigo não funciona assim. Eu só consigo fazer alguma coisa – não sei se criativa ou não – a partir de um cotidiano bem firmado, estabelecido – e isso, na minha casa, que é também a minha oficina. Eu dependo disso. Se você me tirar do meu cotidiano, eu não consigo fazer nada, não faço. Aliás, até pela natureza do meu trabalho. Depende muito da repetição, da constância. Imagine o seguinte: eu tenho lá minha escultura, estou concebendo, desenhei, faço uma primeira versão, um primeiro modelo desse projeto. Claro que entre o que foi pensado anteriormente e o que foi materializado,

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já tem uma grande diferença. Você está saindo de duas para três dimensões, novas portas aí se abrem. Eu costumo muito trabalhar desse jeito: depois do primeiro modelo tridimensional, eu realizo um série de versões com pequenas diferenças, nos seus vários aspectos formais. E eu só consigo trabalhar essas variantes com um cotidiano bem firmado. Se eu não tenho um cotidiano, eu não consigo isso. Eu tenho que acordar às seis e meia, sete horas da manhã, eu não tomo café, só tomo água. Estando lá [em sua casa Florianópolis], eu dou um pulo até a praia, olho o mar, dou bom dia, volto, me enfio na oficina, meio‐dia eu paro para comer alguma coisa ... Tem que ter essa rotina. Eu só consigo processar – talvez não seja nem a criação, mas o processo do trabalho... enfim, a materialização do trabalho depende de uma rotina. E isso, eu só tenho dentro da minha casa – que é a minha oficina. [...] Mas, também faz parte desse processo, uma convivência pacífica com as coisas que eu faço em casa. De repente, é a lata de lixo, que eu pego e levo pra fora, ou uma antena que quebrou, e eu vou gastar meia hora consertando – não me irrita, não me incomoda, faz parte.” (Pedro)

A respeito das afeições simples pelo lugar habitado e pelas atividades

comuns que nele praticamos, Yi-Fu Tuan afirma ser essa satisfação “um sentimento

cálido positivo”, mas que, contudo, pode facilmente ser interpretado como uma

acomodação ao mesmo cenário e uma “falta de curiosidade para com o mundo lá

fora” (Tuan, 1983; p. 176). À consideração de que a “amplidão” experimentada lá

fora está normalmente associada ao sentimento de “liberdade” (Tuan, ibidem; p. 6),

acrescente-se a observação de Marcus, segundo a qual deixar sempre o lar significa

rejeitar alguns aspectos do eu que residem lá e que precisam ser abraçados. O segredo,

segundo a autora, seria encontrar o equilíbrio e reconhecer quando partir, quando

ficar. E é com a maturidade que aprendemos que os dois são necessários – partir e

ficar, perigo e segurança, movimento e tranqüilidade, lá fora e em casa (Marcus,

ibidem, p. 279).

No caso do entrevistado Hermes93, aposentado há dois anos (no momento da

entrevista), e tendo trabalhado por trinta e quatro anos como comissário de bordo e

instrutor de comissários em uma empresa aérea, segundo ele, o fato de estar

93 Apresentado no Capítulo 3.

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constantemente viajando foi um aspecto que sempre lhe dera muito prazer, em sua

profissão. Contudo, voltar para casa e para o convívio diário com sua família era

igualmente prazeroso. Seu depoimento expressa como ele percebe esse equilíbrio

entre o estar fora e o retornar para a normalidade da casa:

“[...] Por isso que eu te digo que quando eu chegava de um vôo, era sempre gostoso.

[...] Eu ia para os lugares que eu gosto, fazia compras pra minhas filhas... Mas era

muito gostoso quando você voltava. A mesma alegria que você tinha quando saía era

a de quando você estava voltando. [...] Era gostoso, uma coisa era decorrência da

outra: eu pensava ‘eu vou, vou fazer o que eu gosto, trabalhando, ganhando meu dinheiro, vou comprar alguma coisinha pra elas [esposa e as filhas], e vou voltar.’ Hoje eu sinto uma falta muito grande, não do vôo em si, mas de ir lá, passear: ‘Puxa vida, se eu tivesse lá, eu compraria isso, ou aquilo... em Miami é mais barato, em Nova Iorque... seria legal.’ Mas, agora [com a aposentadoria], é muito gostoso

porque eu estou mais tempo na minha casa, então você fica curtindo a suas coisas,

fazendo minhas coisas. Não grandes coisas, mas – eu gosto de dizer – eu sou

jeitozinho pra fazer minhas coisas em casa. Então é gostoso.” (Hermes)

E ainda com relação à partida da esfera privada, esta cotidianamente

vivenciada – e, portanto, fonte de certeza e confiança –, para o desconhecido a ser

desvendado na esfera pública, é interessante a analogia feita por Agnes Heller, em sua

abordagem filosófica do conceito de casa: Assim como a maioria das formas musicais

ocidentais retornam, concluindo, à chamada “home key”94, como uma forma de

resolução estética, assim também, Heller refere-se à consciência de um ponto fixo no

espaço como parte integral da vida cotidiana média: uma posição firme a partir da

qual nós partimos e para a qual retornamos no momento apropriado. E tal posição

firme seria a casa. Desta forma, a idéia de voltar para casa deve ser entendida como

retornar ao que conhecemos, ao que estamos acostumados, aonde nos sentimos

salvos e aonde nossas relações emocionais são as mais intensas (Heller, 1981; p. 239;

Apud Morley, 2000; 24).

94 O home key, segundo o musicólogo Leonard Ratner, é a premissa inicial de que partem certas forma musicais, como, por exemplo, a sonata. O próximo tema, que segue à premissa inicial, viria para contestar o primeiro. Mas, no final da exposição musical, cederá à home key, restabelecendo a premissa inicial. Nessa reconciliação, a home key incorpora o tema da segunda premissa, mostrando uma união dos dois temas (Ratner, 1966; p. 240. Apud Chamberlin, 2007).

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É assim que o entrevistado Aristides95 traduz, em seu depoimento, de um lado, a

busca pelo desenvolvimento através das experiências da vida, de que nos fala Marcus

– até como forma de contestar o que é conhecido e propor inovações, tal a adição de

um novo tema à música do habitar (para utilizarmos a analogia de Heller. E de outro

lado, fala da segurança ontológica em relação à sua casa como ponto de retorno,

como vimos por Giddens:

“Eu sou mergulhador, faço fotos submarinas; eu já cheguei a passar dois meses fora [...]: participei de uma expedição com a equipe de Cousteau nas Ilhas Fiji. Nessas viagens, eu já dormi em banco, na areia, em barraca, em rede; durmo no chão, na cama; já fiquei sem tomar banho vários dias, por não ter condições de tomar banho, mesmo! Uma vez fiz um trabalho [...] que era uma iconografia do descobrimento do Brasil. Fiquei numa aldeia Pataxó durante 28 dias. Foi uma experiência gostosa. [...]. [...] Eu sinto falta de coisas novas. Se não tiver coisas novas no meu dia‐a‐dia, se a minha vida começar a ser todo dia aquilo lá, aí, acho que não dá. Mas também é bom pensar que a casa tá lá, ela vai ficar ali, e eu sei que eu vou voltar.” (Aristides)

Refletindo sobre a noção de casa como o lugar onde se dá o dia-a-dia, e

que, sendo esse cotidiano doméstico uma base, em cujo caráter de continuidade

familiar apoiamo-nos, Norberg-Schulz pergunta “por que, então, temos que nos jogar

no mundo, quando possuímos a proteção e o suporte de nossas casas?” Como

resposta, o autor simplesmente nos lembra da tarefa social que temos que cumprir no

mundo exterior, fazendo-nos lembrar que nossas vidas não se resumem ao ambiente

de nossas casas, mas, sim, que cada um de nós tem sua participação em um sistema de

interações que acontecem em um mundo baseado em valores que partilhamos na

esfera pública. Para cumprir nossa tarefa social, temos que deixar nossas casas e

escolher um caminho. E quando cumprida, retornamos à nossa casa para

recobrarmos nossa identidade pessoal – sendo esta o próprio conteúdo do habitar

doméstico (Norberg-Schulz, 1985, p. 89).

A fala da entrevistada Analu96 exemplifica o sentido de retorno à casa para o

reencontro com nós mesmos, para o recobro de nossa identidade, como nos falam

Norberg‐Schulz e Marcus.

95 Apresentado no Capítulo3. 96 Apresentada no Capítulo 1.

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“[Minha casa] É um lugar que eu gosto, mesmo, de voltar pra lá. Assim, eu fico contente que eu vou acabar o meu trabalho e vou voltar pro meu canto.” (Analu)

Assim, vemos que através do habitar doméstico praticado cotidianamente

e da interação íntima e privada que estabelecemos em e com nossas casas, buscamos

restaurar-nos do habitar praticado no mundo público: relaxando, libertando nossa

subjetividade, cultivando nossa alma, aliviando-nos física e espiritualmente.

Ampliando a afirmação de King que vimos há pouco, se não podemos obter do nosso

habitar doméstico o restabelecimento e a preparação para a realidade da esfera pública

(conforme vimos falar Heller), há algo falho no modo como se dá a prática do nosso

cotidiano doméstico.

Isto pode ser verificado através do depoimento do entrevistado Alencar97, que vimos

anteriormente relatar seu desespero em relação à falta de privacidade doméstica

para um relacionamento saudável com a sua família. Ao elaborar seu conceito ideal

de “casa”, Alencar inclui a importância de se perceber inserido na constância de um

ambiente de condições físicas que propiciam o estar à vontade, o convívio traqüilo

com a família, a reflexão, enfim, a restauração física e emocional. A perda do

controle da privacidade em relação às interações pessoais com sua esposa e filhos e

da autonomia sobre o espaço doméstico98 fazem com que Alencar passe a maior

parte do seu dia no trabalho, evitando voltar para casa, privando‐se, assim, do

convívio familiar e da própria normalidade cotidiana. Isso faz com que ele se veja

impedido de perceber sua casa como lugar de restauro e de preparação:

“[Casa] É o nosso quartel general, né, onde você comanda tudo, onde você põe as idéias em dia; sossego, reflexão... e o descanso, também; repouso p’rum novo dia... tranqüilidade. Mas, também, pra mim, a minha casa sempre foi as minhas coisas; o meu canto, a minha cama, a minha televisão, o meu banheiro... É ficar à vontade, de bermudão, tal, sem incomodar ninguém. [...] Eu tive que abrir mão de muita coisa e perdi muitas referências. Eu queria chegar em casa e ter tranqüilidade. Achar o meu livro que tava lá – já não tiraram do lugar; aquele filme de DVD que você tem, que você quer chegar e assistir à vontade... esse dia‐a‐dia que você só valoriza depois que você não tem ele. Então, acaba faltando

97 Apresentado no Capítulo 3. 98 Tal como vimos Alencar relatar no Capítulo anterior.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

163

muita coisa. Mas, o fato é que eu me apeguei mais ao trabalho. Então, eu fico muito pouco lá. Eu saio às sete horas da manhã, quando eu volto, é onze horas da noite. Então, é a pousada, agora; um lugar que eu vou pra dormir e tomar banho.” (Alencar)

...

Com isto, pudemos ver o caráter de essencial ao habitar do recolhimento

vivido cotidianamente em nossas casas – essencial, no sentido de ser a partir das

práticas domésticas que, na “simbiose” entre a realidade concreta do espaço habitado

e o significado subjetivo que obtemos dessas práticas, recobramos nossas forças físicas

e emocionais para retornarmos ao habitar nas esferas coletiva e pública: como se, de

um lado, o habitar privado e, de outro, os habitares coletivo e público, dependessem

um do outro para serem vividos plenamente.

A partir do sentido restaurador e preparador do habitar doméstico

praticado cotidianamente, retomemos a consideração, já feita anteriormente, de que

esse habitar privado não se dá isoladamente, mas sim, segundo a condição de inserido

em um mundo mais amplo. E retomemos, ainda, a consideração de que esse ato de

habitar privadamente se dá na medida em que destacamos desse mundo vasto uma

localidade física, a qual passa a abrigar não apenas nossas relações físicas que ali

passam a ocorrer cotidianamente, mas também as espirituais que passam a dar “alma”

ao nosso espaço habitado. E é justamente através desse investimento pessoal, e de

relações estabelecidas diariamente no espaço habitado ao longo do tempo, que esse

espaço deixa sua condição de mera localidade, destacada do espaço geral, e adquire a

qualidade de lugar, como veremos no próximo capitulo.

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164

Capítulo 5 – O lugar do habitar doméstico

Home [casa]: Um lugar de habitar; [...] a casa da própria pessoa. [...] Um lugar, região, ou estado ao qual se pertence, no qual estão centradas as afeições de uma pessoa, ou onde ela encontra repouso, refúgio, ou satisfação [...]. (The Oxford Universal Dictionary, 1955)

Vimos o sentido de cuidado e preservação do habitar doméstico. Vimos,

também, que, à medida que praticamos esse habitar, nosso espaço doméstico

incorpora os valores e significados que trazemos para ele, o que o faz adquirir o

caráter de particular e único para nós, seus habitantes. Com isto, pudemos falar da

existência em privacidade que buscamos na proteção de nossas casas e da – embora

aparentemente irrelevante, porém, profundamente importante – experiência do

cotidiano doméstico, a partir da qual obtemos o restauro físico e emocional das

experiências do habitar público e coletivo e a preparação para novas incursões ao

mundo exterior.

Neste capítulo, passo a observar a esfera do habitar doméstico,

considerando-a não como mera localidade destacada do espaço geral, mas como

espaço que, ao incorporar as especificidades que lhe atribuímos ao habitá-lo, adquire,

para nós, o sentido específico de lugar. Para isto, proponho relembrarmos o sentido

do habitar doméstico, visto no início deste trabalho, como uma atividade que implica

o estabelecimento de uma relação significativa entre o homem e um determinado

meio tal como vimos definir o arquiteto Christian Norberg-Schulz (Norberg-Schulz,

1985; p. 13). Considerando lugar como um termo concreto para meio, o autor dirá

que o habitar envolve o ato de identificação e o sentido de pertencimento a um

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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determinado lugar. Lugar, para Norberg-Schulz, “é, evidentemente, uma parte

integrante da existência (Norberg-Schulz, 1985; p. 13 e Norberg-Schulz, 1984; p. 6).

Nesta análise, irei além dos aspectos do habitar doméstico abordados até

agora – os quais nos fizeram vê-lo como um processo localizado fisicamente, em que,

através da vida cotidiana praticada em privacidade, experimentamos o sentido de

pertencimento a esse local e buscamos nele a preservação de nossa vida interior

(sozinhos, ou ao lado das pessoas com quem o partilhamos). Para abordar o processo

de atribuição da condição de lugar à esfera habitada domesticamente, minha análise

deverá, mais adiante, ser ampliada, no sentido de também considerar o habitar

doméstico um processo que se insere no contexto geral do mundo contemporâneo.

Ao analisar a relativa permeabilidade deste processo aos aspectos da esfera pública,

procurarei trazer alguns aspectos que envolvem o próprio tratamento teórico

tradicionalmente atribuído ao lugar do habitar doméstico. Para isto, serão úteis

algumas considerações a respeito do conceito de lugar e sua distinção do sentido de

espaço – idéias que, como observa Anthony Giddens, muitas vezes são empregadas

como sinônimos uma da outra (Giddens, 1984. Apud Giddens, 1990; p. 18).

Observando que o sentido de espaço dado pela literatura pós-iluminista

sempre esteve relacionado ao desenvolvimento de leis e generalizações científicas, o

geógrafo Tim Cresswell observa que, para tal abordagem, as pessoas tiveram que ser

retiradas de cena, sendo o espaço visto como algo intangível e vazio. Neste contexto,

em que a hierarquia dos valores científicos não dava lugar para o particular, as

considerações sobre o lugar ficavam relegadas à “mera descrição” (Cresswell, 2002; p.

12 e Cresswell, 2004; p. 19). Segundo o teólogo Philip Sheldrakexix, em uma conduta

científica em que se priorizavam os aspectos universais e gerais sobre os particulares e

locais, assim como as definições abstratas e o conhecimento objetivo sobre os

aspectos originados da própria experiência humana, a natureza era vista como “uma

realidade moralmente neutra, sobre a qual poderíamos impor o que quer que

escolhêssemos”, e lugar era visto apenas como uma compartimentação desse ‘espaço

“natural”’ (Sheldrake, 2002; p. 6).

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A experiência do lugar sob o prisma da Geografia Humanista

A redescoberta do lugar tem suas raízes nos anos 1970, no trabalho

seminal de geógrafos humanistas que, inspirados por filosofias do significado,

incluindo-se a fenomenologia e o existencialismo, buscaram o sentido da natureza

geográfica do estar-no-mundo. Foi desta forma que geógrafos como Yi-Fu Tuan99 e

Edward Relph100 buscaram inserir as pessoas em seu campo de análise, fazendo-o

através do foco na noção de lugar. Ou seja, ao invés de abstrações sobre o espaço

geométrico, a questão central desse projeto passou a priorizar a experiência da

imersão humana no lugar, envolvendo, assim, a consideração de que ser humano é estar

‘em um lugar’” (Cresswell, 2002; p. 12). Segundo escreveu o filósofo do lugar Edward

Caseyxx, “viver é viver localmente, e conhecer é, antes de tudo, conhecer o lugar onde

se está” (Casey 1996, p.18; Apud Cresswell, 2002; p. 12).

No início dos anos 1980, Norberg-Schulz, ao criticar a abordagem da

ciência em relação ao lugar, escreveu que lugar é “mais do que uma localização

abstrata”; implica “uma composição de coisas concretas com substância material,

forma, textura e cor”. Para o autor, o princípio da ciência, segundo o qual se parte de

algo concreto para abstraí-lo e chegar ao “conhecimento neutro ‘objetivo’”, implica a

perda das experiências concretas da vida diária, as quais deveriam ser a real

preocupação do homem, em geral, e dos planejadores e arquitetos em particular. Para

escapar a esse impasse, é que Norberg-Schulz aponta a abordagem da fenomenologia,

ou seja, o “retorno às coisas”, em oposição às abstrações e construções intelectuais

(Norberg-Schulz, 1984; p. 6-7).

Tuan, por sua vez, ao estabelecer uma relação entre os conceitos de espaço

e lugar, dirá que embora ambas as idéias não possam ser definidas uma sem a outra,

espaço é um conceito “mais abstrato” do que lugar; e que a transformação daquilo que

começa como “espaço indiferenciado” se dá, justamente, com a experiência humana,

“à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor”. Essa experiência dar-se-ia

através das diversas maneiras com que percebemos e construímos a realidade

vivenciada, podendo estas maneiras variar entre os sentidos mais diretos e passivos –

o olfato, o paladar e o tato –, a percepção visual ativa e a simbolização, que é feita

99 “Espaço e Lugar” (1983; originalmente publicado em 1977); “Topophilia” (1990). 100 “Place and Placelessness” (1976).

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167

indiretamente (Tuan, 1983; p. 6, 9). Ao nos movermos, mudarmos de um lugar para

outro, experimentamos o espaço em suas direções; ao tocarmos e manipularmos

coisas, experimentamos o “mundo de objetos” que aí se forma. Através de

movimentos, freqüentemente dirigidos para – ou repelidos por – objetos e lugares,

podemos experimentar o espaço pela localização relativa desses objetos e lugares, ou

ainda – de uma forma mais abstrata –, “como a área definida por uma rede de

lugares” (Tuan, 1983; p. 13-14).

Tuan observa que, freqüentemente, nossa mente vai além das evidências

sensoriais, sendo as emoções e os pensamentos os responsáveis por dar “colorido a

toda [essa] experiência humana” (Tuan, 1983; p. 18, 9). Ao observar que a

dependência visual do homem para organizar o espaço é incomparavelmente maior

do que a dos outros sentidos, o autor apontará para a audição e o olfato como

sentidos que contribuem para a ampliação e o enriquecimento da percepção do

espaço. O som, por exemplo, “dramatiza a experiência espacial”, dá vida ao espaço.

Os cheiros, por sua vez, podem contribuir para a atribuição de uma “personalidade

estimulante” a um ambiente construído, tornando-o distinto, fácil de ser identificado

e lembrado (Tuan, 1983; p. 18, 13-14). Com isto, tomo, aqui, a distinção estabelecida

por Tuan entre espaço e lugar, segundo a qual, na medida em que adquire definição e

significado, o espaço transforma-se em lugar (Tuan, 1983; 151). E, para que o lugar

atinja uma realidade concreta para nós, a experiência que estabelecemos em relação a

ele tem que ser “total”, ou seja deve envolver todos os sentidos, incluindo-se “a mente

ativa e reflexiva” (Tuan, 1983; p. 20).

Pelas palavras de Ecléa Bosi, a seguir, podemos entender como as

experiências sensoriais que vivemos, ao longo do tempo, em relação a um local

contribuem para que ele adquira, para nós, um sentido de lugar. Impressões táteis,

sonoras, além das visuais, conferem a cada lugar com que convivemos ao longo de

nossas vidas uma identidade própria, num conjunto de referências que guardamos

internamente, formando o que Bosi chama de “mapa afetivo e sonoro” (Bosi, 2003;

p. 444):

“Outro dia, caminhando para o viaduto do Chá, observava como tudo havia

mudado em volta, ou quase tudo. O Teatro Municipal, repintado de cores vivas,

ostentava sua qualidade de vestígio destacado do conjunto urbano. Nesse momento

descobri, sob meus pés, as pedras do calçamento, as mesmas que pisei na infância.

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168

Senti um grande conforto. [...] As pedras resistiram e, em íntima comunhão com

elas, os meninos brincando nos lances da escada, os mendigos nos desvãos, os

namorados junto às muretas, os bêbados no chão.

[...]

Ouvi outro dia a cantilena do comprador de roupa velha, quando amanhecia.

Soube que se tratava do filho do judeu da minha infância, imitando o sotaque e a

cantilena do pai. Sons que desaparecem, que voltam, formam o ambiente acústico

dos bairros. As pedras da cidade, enquanto permanecem, sustentam a memória.

Além desses apoios temos a paisagem sonora típica de uma época e de um lugar.

[...] O espaço sonoro compartilhado é um bem comum, mesmo os diminutos sinais

que compõem suas mensagens são vitais para seus habitantes. Por que definir o espaço privado só em termos visuais?” (Bosi, ibidem; p. 444,

445)

É interessante a abordagem da Lucy Lippardxxi que, ao enfatizar a

inerência do sentido de lugar à sua localização – tal como já vimos abordando –,

procura estabelecer a conexão entre essa experiência localizada e o efeito do que

chama de “ressonância interna” que se produz a partir dessa experiência. Esse efeito

se daria a partir da vivência “interna” em localizações que nos são conhecidas e

familiares. A esses locais, descritos pela autora como uma sucessão de camadas

“repletas de histórias humanas e memórias”, vemos conectadas a nossa própria

história, nos sentidos temporal, pessoal e político. Nas palavras da autora, “o lugar

está latitudinal e longitudinalmente inserido no mapa da vida de uma pessoa”

(Lippard, 1977; p. 7; Apud Cresswell, 2004; p. 40).

Ao propor o tema “quanto demora para se conhecer um lugar?”, Tuan

observa que o “‘sentir’ um lugar” não é algo instantâneo, mas sim, um processo que

leva tempo; um processo que resulta de um conjunto singular de experiências, em sua

maioria “fugazes e pouco dramáticas”, as quais repetimos cotidianamente ao longo

dos anos. Para o autor, conhecer um lugar envolve uma mescla específica dessas

experiências, o que faz com que esse lugar seja “registrado” em nosso corpo em uma

espécie de “conhecimento subconsciente” (Tuan, 1983; p. 203). É na medida em que

o espaço se torna inteiramente familiar para nós, que ele é percebido como lugar

(Tuan, 1983; p. 83):

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“Com o tempo uma nova casa deixa de chamar nossa atenção; torna-se confortável e discreta como um velho par de chinelos.” (Tuan, 1983; 203)

A associação entre a percepção de um determinado local como lugar e as

ações nele praticadas habitualmente, ao longo do tempo, também é explorada por

David Seamonxxii, conforme aborda Cresswell: na análise de Seamon, quando uma

seqüência de movimentos utilizados para completar uma determinada tarefa101 é

mantida por uma considerável duração de tempo, é chamada de “rotina tempo-

espaço”. Partindo-se desta idéia e passando-se a considerar não mais uma, mas muitas

rotinas tempo-espaço, ocorridas em uma determinada localização, Seamon afirma que

essa combinação de movimentos produzirá um intenso sentimento de lugar, assim

como de pertencimento ao ritmo de vida desse lugar (Seamon, 1980. Apud Cresswell,

2004, p. 34). A partir das considerações de Seamon, Cresswell destaca a sugestão do

autor de lugares serem constituídos a partir de uma base cotidiana, ou seja, das ações

cotidianas praticadas pelas pessoas (Cresswell, 2004, p. 34).

O entrevistado Rui102 exemplifica essas considerações, ao descrever o sentido de

lugar estabelecido em relação a certos locais, dada a freqüência com que já se

relacionou ou relaciona com eles, e com os quais tem uma longa relação de

familiaridade, incluindo‐se, aí, a própria casa:

“[...] nós costumamos ir [de férias] a Poços de Caldas. E ficamos sempre em hotel; mas é em um hotel! E de preferência, no mesmo quarto. [Por quê?] Porque você se identifica com ele. Você, à noite, anda pelo apartamento sem acender a luz; você sabe como é que regula a água quente do chuveiro... Então, prefiro passar as férias em um lugar que eu já conheça. Assim como fazíamos em Paris. Ficávamos sempre no mesmo hotel, de onde a gente já pegava o metrô para fazer todos os passeios. Um hotelzinho pequenino, mas dali a gente domina completamente: você consegue dominar o tempo, ou seja, você tem a idéia do tempo que você leva para fazer qualquer programa. [...]

101 O autor qualifica essas atividades de “pré-conscientes”. Ou seja, atividades habituais que, em geral, são realizadas automaticamente, como, por exemplo, lavar a louça ou dirigir até o trabalho e voltar para casa (Seamon, 1980; p. 55. Apud Cresswell, 2004; p. 34). 102 Apresentado no Capítulo 2.

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Isso eu tomo como exemplo do caminho conhecido no seu lar; de andar de noite, no

escuro, sem acender uma luz – eu não acendo uma lâmpada à noite no meu

apartamento. Eu sei quantos passos tem; não é que eu conte, mas eu tenho o

sentido da distância. Tem uma prateleirinha ali, que todo mundo me pergunta se eu

nunca derrubei: Não, porque eu sei que ela existe.” (Rui)

Considerando a relação de permanência com o local como importante

elemento para a constituição da idéia de lugar, Tuan volta-se especificamente às

experiências que temos com os objetos e coisas desse local como um meio mais

estável de percepção do sentido de lugar. Diferentemente do que ocorre com as

relações que estabelecemos com outros seres humanos, vulneráveis às suas fraquezas

biológicas e suas instabilidades emocionais, dirá o autor, as coisas e os objetos “são

resistentes e confiáveis” (Tuan, 1983; p. 155).

Um exemplo do que nos fala Tuan é a experiência vivida por um casal de

arquitetos. Contaram-me que, ao se mudar para Angola, a trabalho, alugaram uma

casa. Após o período estipulado pelo contrato de trabalho naquele país, onde

também tiveram sua primeira filha, voltaram ao Brasil. Três anos depois, mudaram-se

novamente para Angola, para mais uma temporada profissional. Ao, novamente,

procurar uma casa para alugar, deram com a casa em que haviam morado, vazia, para

ser alugada. Disseram que foi com grande emoção que se perceberam em casa, ao

entrar no quarto que pertencera à filha, ainda bebê, e encontrar pendurado no

mesmo lugar onde haviam deixado o móbile escolhido por eles, três anos atrás:

“parecia que a gente tinha voltado pra casa!”, disseram.

Contudo, Tuan acrescenta à sua análise que sem a presença das pessoas

certas, tanto as coisas como os lugares perdem seu significado, sendo que a

permanência nesse lugar poderá até ser motivo de tristeza e irritação, ao invés de

conforto. Ao afirmar que muitas vezes o lugar são as próprias pessoas com quem nele

convivemos – “um ser humano pode se aninhar em outro” – o autor lembra de Santo

Agostinho que, com a morte de seu amigo de infância viu sua cidade natal tornar-se

motivo de sofrimento:

“Sem ele, tudo que fizemos juntos tornou-se uma experiência insuportavelmente

dolorosa. Meus olhos continuam procurando-o sem achá-lo. Odeio todos os lugares

onde costumávamos nos encontrar, porque eles não podem mais me dizer: ‘Olhe, aí

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vem vindo ele’, como faziam antes.” (Augustine, Confessions103. Apud Tuan,

1983; p. 155)

A relação entre a percepção de lugar e os relacionamentos que estabelecemos em

determinado local é descita pela entrevistada D. Antônia104, ao falar de seu quarto,

após a morte do marido:

“[...] Eu não gosto tanto [do meu quarto]. Eu acho triste. Depois que o meu marido morreu, ficou triste.” (D. Antônia)

****

Tal como vimos quando tratamos das relações emocionais que estabelecemos com

nossas casas, e do processo de des‐animação que ocorre quando da não mais

presença da(s) pessoa(s) que davam vida a uma determinada casa, lembro, aqui, a

entrevista de D. Paulina105, que, com a morte do marido, não suportou continuar

morando na casa que partilharam por 62 anos:

“[...] Quando ele se foi [...], a terra me faltou debaixo dos pés. Aí, olhava para um lado, para o outro, e não tinha mais ele. Eu não queria de jeito nenhum continuar na nossa casa. Tinha sido muito bom lá – eu morreria de tristeza.” (D. Paulina)

Observando que, ainda que as sensações e percepções de um local como

lugar sejam passíveis de serem experimentadas em um espaço desprovido de forma

arquitetônica, Tuan considera que elas são aperfeiçoadas quando experimentadas em

um espaço construído – ainda que “uma simples choça rodeada por uma clareira” –,

aumentando-se, aí, a capacidade de tais sensações e percepções serem definidas e

transformadas em algo concreto (Tuan, 1983; 114). Ao mesmo tempo em que

podemos associar ao espaço aberto a idéia de “algo que permite movimento”, um

lugar seria, então, o resultado da pausa deste movimento, praticada em uma

localização. A partir da segurança e estabilidade do lugar, reconhecemos a

“amplidão”, a “liberdade” e “a ameaça do espaço”. E, no sentido oposto, estando

inseridos no mundo vasto, temos consciência da proteção e do amparo do lugar

(Tuan, 1983; p. 6).

103 Augustine. Confessions, livro 4, 4:9. 104 Apresentada no Capítulo 2. 105 Apresentada no Capítulo 2.

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No intuito de ampliar essa abordagem, observe-se o que diz Relph a

respeito da não necessidade de esse espaço concreto, catalisador das sensações que

levam um local a ser percebido como lugar – do qual vimos falar Tuan –, estar

restrito a uma localização. Buscando escapar de noções que possam limitar o sentido

de lugar à simples condição de local, Relph menciona, como exemplo para a sua

abordagem, o relatório feito pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss em sua primeira

viagem à América Latina, no qual o antropólogo elabora o sentido de estar em casa,

percebido no próprio navio, durante sua viagem:

“Era o oposto de ‘viajar’, no sentido de que o navio parecia, para nós, não tanto

como um meio de transporte como um lugar de residência – um lar, de fato, diante do qual a natureza apresentava-se diferente todas as manhãs.” (Lévi-Strauss,

Apud Relph, 1976; p. 29)106.

Da modo semelhante à pecepção de Lévi-Strauss, o navegante Amir Klink,

ao relatar sua viagem solitária à Antártica em seu veleiro, refere-se à embarcação como

a sua “tão confortável e querida residência ambulante” (Klink, 1992; p. 109).

Assim, não considerando a localização como uma condição necessária ou

suficiente para explicar a profunda importância do lugar para a existência humana,

Relph tampouco considera suficientes uma lista de características normalmente

associadas à idéia de lugar: sua propriedades físicas, o sentido de comunidade que

“supostamente” tem origem em um lugar, o de tempo que envolve o processo de

apego a um lugar, ou mesmo o valor do “enraizamento” em relação a esse lugar. Para

Relph, nenhum desses aspectos seriam suficientes para explicar “o sentido básico de

lugar”, ou seja, a sua “essência” (Relph, 1976; p. 43. Apud Cresswell, 2004; p. 22, 23).

Surge, então, como questão a ser investigada, essa essência da experiência do lugar.

Considerando essência aquilo que faz alguma coisa ser o que ela é, Cresswell afirma

que mais importante do que nos questionarmos como é um lugar, a abordagem a ser

dada seria o que faz de uma determinada localidade um lugar? – o como e o porque de

serem os lugares importantes para as pessoas (Cresswell, 2004; p. 23). Tal indagação

equivaleria à questão proposta por Tuan: “O que dá identidade e aura a um lugar?”

(Tuan, 1983, p. 4).

106 Referência trazida por Cresswell, 2002; p.13.

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Ao descrever sua fazenda, “o Não Me Deixes”, no sertão do Ceará, a

escritora Raquel de Queiroz fala da secura implacável do sertão nordestino e do

enraizamento, processado durante os mais de duzentos anos em que se deu a

experiência de sua família – incluindo a sua própria experiência – em relação a esse

lugar. Analisando o seu sentimento de apego ao contexto sertanejo, Queiroz

reconhece desconhecer a razão que lhe inspira tamanha complacência por “estas

terras [tão] ásperas”, na mais pura carência do que chama de “conforto e da

civilização, da boa cidade com suas pompas e as suas obras”. Buscando uma

explicação para seu questionamento, a escritora baseia-se não (apenas) na

materialidade da experiência, mas em algo que a transcende: “Não sei, Mistério é assim:

está aí e ninguém sabe. Talvez a gente se sinta pura, mais nua, mais lavada. E depois a gente sonha” (Queiroz, 2000, p. p. 167, 169). Vejamos, pois, a descrição de Queiroz, a partir

da qual espero poder jogar um pouco de luz sobre a questão da essência do lugar

levantada Relph e Tuan: o que faz de uma mera localidade um lugar?

“Chegam os amigos de visita pelo sertão e nos seus olhos leio o espanto, e quando

não o espanto, pelo menos a estranheza: que é que nos prenderá nesta secura e

nesta rusticidade? Ou nos meses que precedem a secura, [...] as águas torrenciais, os

caminhos desfeitos, as várzeas alagadas, qualquer comunicação interrompida.

Tudo tão pobre. [...] Aqui a gente tem apenas o mínimo, e até esse mínimo é

chorado. Nem paisagem tem, no sentido tradicional de paisagem. Fins das águas e

começos de agosto, o mato já está zarolho. E o que não é zarolho é porque já secou.

[...]

E a água, a própria água, não dá a impressão de fresca: nos pratos-d’água

espelhantes ela tem reflexos de aço que dói nos olhos.

[...]

Não, aqui não há por onde tentar a velha comparação, a clássica comparação dos

encantos do campo aos encantos da cidade. Aqui não há encantos.

[...]

Por que tanto carinho por estas terras ásperas? Não sei, Mistério é assim: está aí e

ninguém sabe. Talvez a gente se sinta pura, mais nua, mais lavada. E depois a gente sonha.” (Queiroz, ibidem, p. 167-169).

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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...

Seamon aponta como uma das mais originais contribuições de Relph para

o entendimento do sentido de lugar, sua discussão sobre a dialética do sentido de se

estar inserido em um lugar – “insideness” – e do seu oposto, ou seja, de se estar

separado ou alienado em relação aos aspectos que constituem a experiência de lugar –

“outsideness” (Relph, ibidem; p. 51-55. Apud Seamon, 1996).

A concepção do sentir-se inserido em um lugar, nota Seamon, implica as

idéias de se “estar aqui e não lá; seguro, ao invés de ameaçado; envolvido, ao invés de

exposto, à vontade, ao invés de estressado” (Seamon, 1996). É interessante notar a

semelhante análise feita por Tuan, quando estabelece a distinção entre o que chama

de “espaço aberto” e “espaço fechado”. Ao mesmo tempo em que este autor relaciona

o conceito de espaço aberto à idéia de liberdade, esta idéia vem associada a um

aspecto negativo, que é a condição de se estar “exposto e vulnerável”. Se, como já

vimos, o espaço aberto, para Tuan, sugere o futuro e convida à ação, por outro lado,

nesse espaço não há “caminhos trilhados nem sinalização [...,] nem padrões

estabelecidos que revelem algo”. O espaço aberto seria como “uma folha em branco

na qual se pode imprimir qualquer significado”; e o espaço fechado, um meio

“humanizado”, “um centro de valores estabelecidos”, enfim, um “lugar” (Tuan, 1983;

p. 61).

Talvez, aqui, seja possível associarmos a distinção feita por Tuan entre

“espaço fechado” e “espaço aberto” à feita por Roberto DaMatta entre “casa” e “rua”,

no momento em que este último afirma não ser possível “transformar a casa na rua e

nem a rua na casa impunemente”. Se, para DaMatta, o que definiria casa – “espaço

de calma, repouso, recuperação e hospitalidade” –, seria o “calor humano”, ao

mesmo tempo, vemos o “espaço fechado” de Tuan também relacionado o ao sentido

de espaço “humanizado”. A rua, por outro lado, definida de forma precisamente

inversa por DaMatta, seria um lugar de perigos: local onde “cada um deve zelar por si,

enquanto Deus olha por todos” (DaMatta, 2000; p. 55).

Ao falar do simbolismo da casa especificamente na sociedade brasileira,

DaMatta lembra que do termo “casa” descendem “casamento, casadouro, casal” –

termos que denotariam atos racionalmente coerentes com o espaço da morada. Para

o autor, “ser posto para fora de casa” implicaria, por outro lado, algo violento, uma

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vez que, se deixamos de “estar em casa”, passamos a estar “privados de um tipo de

espaço marcado pela familiaridade e hospitalidade perpétuas que tipificam aquilo que

chamamos de ‘amor’, ‘carinho’ e ‘consideração’” (DaMatta, ibidem; p. 54, 55). É neste

contexto que o autor considera tão “importante e altamente sombrio” o ritual em

que, pela primeira vez, uma menina ou um menino saem sozinhos para a rua,

passando a estar expostos a “todos os perigos e tentações que recheiam aquele

espaço” (DaMatta, ibidem; 59-60).

Voltando à abordagem trazida por Relph, em relação à percepção de lugar,

sobre os sentidos de se estar inserido (“insideness”) ou separado (“outsideness”), segundo

analisa Seamon, o ponto fundamental dessa discussão para a vida humana seria o fato

de que, através dos diferentes graus de intensidade nos sentidos tanto do “insideness”,

quanto do de “outsideness”, diferentes lugares adquirem diferentes identidades para

diferentes pessoas. Através desta concepção, Relph estabelece uma relação direta

entre a intensidade do “insideness” e o sentimento de identidade em relação a um

lugar. Dizendo de outra forma, quanto mais profundamente inserido em um lugar

alguém se sente, mais forte é a sua identidade com esse lugar (Seamon, 1996). Ou,

ainda, como recapitula Cresswell, referindo-se à discussão de Relph e à proposta de

Seamon sobre a freqüência da prática diária de nossas “rotinas tempo-espaço”: é

através da prática das atividades diárias que passamos a conhecer um lugar e a nos

sentir parte dele (Cresswell, 2004, p. 34). A partir disto, é possível estabelecer uma

relação direta entre a intensidade do sentido de “insideness” e os sentidos de

doméstico, acolhimento, pertencimento e identidade.

Mais uma vez considerando Tuan – e tal como vimos quando tratamos do

retorno ao cotidiano privado –, vemos que, segundo o autor, a vida humana

constitui-se de um “movimento dialético” entre os estados de refúgio e aventura, ou

de dependência e liberdade. Desta forma, dirá Tuan – e aqui proponho uma possível

correspondência à proposta de Relph quanto a diferentes lugares adquirirem

diferentes identidades para diferentes pessoas –, tanto é possível experimentarmos o

sentido de lugar em um espaço aberto, quanto é possível que, inseridos “na solidão de

um lugar protegido”, venhamos a experimentar a “presença obsessiva” do espaço

exterior (Tuan, 1983; p. 61). E aqui, ainda penso ser viável considerarmos a idéia de

“espaço aberto”, trazida por Tuan, não apenas restrita ao sentido literal, de local

desprovido de paredes e teto que o delimitem, mas também como uma metáfora para

o local que é desprovido dos aspectos humanos específicos que o fazem ser

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experimentado como lugar. Assim, usando a expressão inversa da usada por Tuan

para descrever “espaço fechado”, proponho que o “espaço aberto” teria o sentido de

local desumanizado.

Ainda em relação à dialética proposta por Relph, dentre as categorias

relacionadas a “insideness” e “outsideness” desenvolvidas pelo autor, duas delas

interessam-nos, em particular, pelo fato de estarem diretamente relacionadas à

questão do habitar doméstico, e cuja descrição de Seamon (1996; p. 2) apresento a

seguir:

- O insideness existencial: Sentido mais intenso da experiência de lugar,

seria a condição de imersão profunda em relação a esse lugar – condição que pode ser

relacionada corriqueiramente aos atos de encontrar-se em casa, de estar em meio à

própria comunidade e/ou região; ou seja, de se ver inserido em meios relacionados

ao sentimento de apego e pertencimento e identidade.

- O outsideness existencial: Oposto ao sentido de insideness, este conceito

refere-se à percepção de estranhamento e alienação, tal como o que sentimos ao

recém-chegarmos a um lugar, ou quando alguém, após ter estado longe de seu lugar

de nascimento, retorna e se sente um estranho pelo fato de o lugar não ser mais o

mesmo que conhecera. Neste sentido é que Seamon se refere ao sentimento de

opressão do meio sobre o indivíduo, o qual pode ser experimentado na forma de

nostalgia.

Um sentido de desencantamento em relação à sua cidade, São Paulo, fez com que o

artista plástico Pedro107 passasse a experimentar nela um sentido de outsideness

existencial e a deixasse para morar em outra cidade:

“O problema passou a ser São Paulo. Eu não gosto mais de São Paulo. Pra mim, São Paulo se descaracterizou, não é mais a cidade que eu conheci lá, há trinta anos atrás. Eu sou paulistano, nasci nesse meio. É uma cidade muito suja, muito caótica, com pessoas feias, com pessoas porcas – é o que é, em função dessa situação toda, que você sabe melhor do que eu. Meu projeto de morar não está mais aqui em São Paulo. Há uns seis anos atrás – eu ainda morava aqui em São Paulo, e a escola já estava me absorvendo muito – vivia uma situação de tamanho estresse, que eu tive um treco na escola, passei mal. Apesar de ainda estar morando [...] aqui em São Paulo, nessa época, eu já não estava vivendo do jeito que eu gostaria. Resolvi me

107 Apresentado no Capítulo 2.

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desfazer de tudo. Vendi as poucas coisas que eu tinha, dei tchau pra todo mundo aqui, e fui tentar minha sorte lá [em Florianópolis].” (Pedro)

A decisão de se mudar de São Paulo para Florianópolis, para Pedro, vem

acompanhada da consciência da necessidade do um sentido de familiaridade, de

continuidade, em relação ao modo como sempre entendeu e praticou seu habitar

privado. Não conseguindo mais perceber estes sentidos em São Paulo, Pedro buscou‐

os em uma nova cidade. Contudo, apesar de o que considera sua verdadeira casa

estar, agora, em Florianóplis, Pedro continua trabalhando em São Paulo – o que

constitui um profundo conflito em relação à sua necessidade de continuidade e

enraizamento para estabelecer o verdadeiro sentido de insideness existencial em

relação ao lugar em que habita:

“[...] eu sou extremamente caseiro. Eu preciso de uma casa. [...] Meu projeto de morar não está mais aqui em São Paulo. [...] Eu não conhecia Florianópolis, mas eu gosto de praia, eu gosto de montanha, eu gosto de estar afastado, e, ao mesmo tempo, próximo. É uma coisa curiosa: eu preciso de quinze minutos de gente por perto, mas só quinze minutos. Depois eu quero voltar para casa, pra minha rotina. Quando eu vivia na Granja [São Paulo], eu vivia dentro de um condomínio, e quando acabava o meu expediente diário, cinco, seis horas da tarde, eu tinha esses quinze minutos. Pegava o carro, sumia, ia pro centro da Granja, pra mim já era suficiente: Chegar no mercado, ver as pessoas, pronto, e voltava. Em Florianópolis, eu imaginava que pudesse manter esse ritmo – como, de fato, oferece. Então, eu fui para um canto de Florianópolis, que é uma área rural, na verdade. No final da rua, você atravessa as dunas e está na praia. Mas é no meio do mato, entre dois morros. E meu projeto de morar passou a estar todo lá. [...] Eu me sinto um caixeiro viajante. Eu vou pra lá [Florianópolis] – três, quatro dias – eu levo pelo menos dois dias pra entender o ar que eu respiro. E aqui, eu não quero entender. Então, a situação é incômoda.” (Pedro)

A sensação de estranhamento, particularmente em relação a um lugar com

o qual já nos identificamos anteriormente em nossa cidade, bairro ou rua, é analisada

por Bosi, especificamente quanto às transformações de sua disposição espacial da

paisagem urbana – disposição esta que, pelo fato de, antes, ter tornado “inteligível

nossa posição no mundo, nossa relação com outros seres, o valor do nosso trabalho,

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nossa ligação com a natureza”, com sua transformação, abalam-se esses vínculos, os

quais se tornam, para nós, lembranças em forma de carência (Bosi, ibidem; p. 451):

“Os velhos lamentarão a perda do muro em que se recostavam para tomar sol. Os

que voltam do trabalho acharão cansativo o caminho sem a sombra do renque de

árvores. A casa demolida abala os hábitos familiares e para os vizinhos que a viam há anos aquele canto de rua ganhará uma face estranha ou adversa.” (Bosi,

ibidem).

Ao descrever o lugar onde morou dos quatro aos dezoito anos de idade,

Regina fala das referências de convívio com o local. Primeira experiência da família

em um edifício de apartamentos, a infância de Regina, vivida nos anos 1960, no

bairro de Nossa Senhora de Copacabana, no Rio de Janeiro, têm como marco a

localização do prédio – “uma localização privilegiada” – segundo lembra seus pais

dizerem: uma vista que “nunca seria prejudicada”; de um lado, uma bela e tranqüila

praça, de outro, um colégio, “o morro e muito verde”. Hoje, adulta, ao voltar a esse

lugar, Regina percebe que suas referências de menina já não correspondem à

realidade, e que aquele não é mais o lugar onde morou, que nada tem a ver com

aquele lugar que ela guarda na lembrança:

“Eu gostava de olhar o morro e, lá de cima, uma construção que se parecia um

castelo, fonte de muita fantasia. Era o castelo do meu príncipe encantado.

A Praça [...] era muito bonita. Nada do que se pareça com o resta dela

atualmente. Eram muitos espaços gramados, canteiros bem cuidados. Um lago,

cujo formato lembrava o número oito, era atravessado por uma pequena ponte. No

lago havia muitos peixinhos e em certas épocas pegávamos girinos com as mãos e

depois os jogávamos de volta à água. [...] Todos nós aproveitamos muito a

pracinha. Os menores, costumávamos freqüentá-la de manhã, depois de concluídos

os deveres da escola.

[...]

Quando era hora de voltar para casa, mamãe aparecia na janela da sala de visita

e tocava uma campainha de prata, cuja alça era uma cobra ou algo parecido.” (Rodrigues, 2003; p. 13, 17)

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179

...

Um ponto-chave que envolve a questão da experiência de lugar sob o

prisma da Geografia Humanista é a forma como se dá essa experiência em termos da

“autenticidade”. O sentido do autêntico aplicado por Relph à análise das relações

estabelecidas com o lugar é um desdobramento da concepção de Heidegger em

relação ao habitar. A casa, no sentido do “autêntico” de Heidegger, estaria amarrada à

idéia de uma “casa centrada [...,] habitada por alguém firmemente ancorado ao lugar”

(Ábalos, 2000; p. 51). Essa casa, conectada aos seus habitantes através do tempo e da

memória, seria, para eles, seu refúgio frente ao mundano e ao superficial

experimentados na exterioridade – exterioridade esta, que seria sempre concebida

como nociva e “inautêntica” (Ábalos, ibidem; p. 50-51).

O entrevistado Hermes108, aposentado como instrutor de comissários de bordo,

ainda que tenha vivido uma experiência bastante instável, em termos de localidade,

devido à sua profissão, que o levava a estar por longos períodos longe de casa em

vôos internacionais, exemplifica o sentido de autenticidade na percepção do lugar

habitado, quando estabelece uma distinção entre o que era estar fora, a trabalho, e o

que era voltar para sua casa e retomar o convívio com a família. Ao mencionar as

referências de preservação do convívio privado doméstico trazidas de sua infância, e

de como procurou transmiti‐las na educação dada a suas filhas, Hermes expressa a

importância que atribui à idéia de continuidade que diz sempre ter procurado

imprimir a seu habitar doméstico:

“Todo vôo pra mim era uma coisa super prazerosa. Eu ia feliz da vida. Mas a minha casa era o meu último reduto. É a minha família, as pessoas que você mais ama, que têm mais importância nesse mundo. Eu sempre digo: ‘Só vem à minha casa quem eu quero.’ Isso, para continuar essa mesma convivência. [...] eu tenho a pretensão de achar que as minhas filhas foram criadas e orientadas, e que só vão me trazer pessoas que vão continuar essa unidade. É coisa da minha mãe. Ela é paulista, meu pai é alemão. Os meus amigos – mas, amigos mesmo – iam pra minha casa, minha mãe fazia almoço, jantar, lanche, então era gostoso lá. Eu sou a mesma coisa. Eu quero que todo mundo venha aqui, eu quero confusão aqui, aniversário...” (Hermes)

108 Apresentado no Capítulo 3.

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Assim, o sentido de autenticidade em relação a um lugar é estabelecido,

por Relph, como uma atitude de genuíno e sincero compromisso com a identidade e

o sentido de pertencimento a esse lugar. Se, por um lado, experimentar o sentido de

insideness existencial em relação a um lugar implica uma “atitude autêntica” em

relação a esse lugar (Cresswell, 2004; p. 44), por sua vez, uma atitude inautêntica em

relação a um lugar é, nas palavras de Relph ,...

“essencialmente, a ausência do sentido de lugar, uma vez que isso envolve a não

consciência dos significados profundos e simbólicos de lugar e a não apreciação de

suas identidades. É meramente uma atitude que é socialmente conveniente e

aceitável - um estereótipo aceito sem críticas, uma estética intelectual que pode ser adotada sem um envolvimento real.” (Relph, ibidem; p. 82. Apud Cresswell,

2004; p. 44).

Lembremos do profundo sentido de autenticidade e pertencimento do entrevistado

Rui em relação ao seu habitar doméstico, expressado pela metáfora utilizada por ele,

segundo a qual seu apartamento seria o seu “útero”, em contraposição a um quarto

de hotel, que seria “uma barriga de aluguel”:

“[...] a sensação de voltar para casa é de como se eu voltasse ao útero, porque o útero é tudo aquilo que você tem como proteção: você vem dali, você nasce dali. Então, a ausência fora de casa é exatamente você estar em uma barriga de aluguel; [...] Estar longe dessas coisas, em um quarto de hotel, é estar em um ambiente que não é o seu ambiente – é um ambiente de aluguel. É transitório; você está em trânsito.” (Rui)

Fig. 13 Cena do filme “Mon Oncle” (1958), no qual seu diretor Jacques Tati satiriza o processo de imposição massificada de um suposto moderno conceito de conforto, cujas regras estéticas e funcionais, em voga com as inovações tecnológicas vigentes no contexto pós-guerra, são adotadas por uma família de classe média. O “moderno” passa a interferir desastrosamente nos relacionamentos estabelecidos no e com o ambiente doméstico/familiar, e a tornar os moradores deslocados em suas próprias casas.

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...

Explorando o sentido de outsideness, oposto ao de inclusão, identidade e

pertencimento em relação a um lugar, podemos relacionar as idéias deste conceito ao

termo grego µέτοικος, “metoikos”. Na Grécia antiga, o termo referia-se à pessoa que,

apesar de livre, não gozava de plenos direitos de cidadão na polis em que residia109:

“qualquer estrangeiro residente, incluindo-se escravos libertados”110. Enquanto que

oikos – οἶκος –, quer dizer “residência”, “residir”, meta pode, aqui, ter os sentidos

tanto de “mudança” quanto de “em meio a”. Os dois sentidos possíveis, implícitos na

palavra, referem-se a “aquele que muda seu lugar de hábitat” e a “aquele que vive em

meio a”, sendo que neste último sentido há uma distinção que deve ser notada:

habitar em meio a um povo não é o mesmo que pertencer a um povo. Seja um ou outro

o sentido considerado, ambos refletem a realidade do imigrante – uma pessoa que se

mudou de um determinado lugar para viver em meio a estranhos111.

Observemos a relação da palavra “estranhamento” usada, acima, para

descrever o sentimento de outsideness existencial. Além dos sentidos utilizados mais

corriqueiramente na Língua Portuguesa para o termo “estranhar” – “surpreender-se”,

“assombrar-se em função do desconhecimento”, ou “não se adaptar”, “sentir-se incomodado”;

“ter sensação desagradável diante de (uma nova realidade)” 112 – observa-se que o termo

“estranhamento”, no Dicionário Houaiss, aparece como sinônimo de

“distanciamento”, ou de “repulsão”, “desgosto”, “enjeitamento”. Uma rápida

observação na etimologia da palavra “estranho” revela a sua origem latina:

109 O status de estrangeiro na Grécia antiga, ainda que de definição não muito clara, era atribuído aos povos cuja língua era ininteligível para eles (tais como os persas e os egípcios). Mas também podia ser atribuído aos próprios gregos que falassem dialetos diferentes, ou com um sotaque diferente. Na polis, os gregos e os não-gregos eram diferenciados perante a lei. Enquanto que um grego era considerado um homem livre, os estrangeiros e os bárbaros não só estavam sujeitos ao preconceito social, como também não gozavam de proteção legal. Ainda que devessem prestar serviço militar, não serviam à marinha, a não ser em tempos de emergência. Tampouco lhes era permitido ter terras, a não ser através de autorização especial a qual lhes poderia atribuir o direito à compra de uma casa ou o estabelecimento de um santuário para a adoração de suas divindades. Era apenas através de suas associações privadas que essas pessoas podiam reunir-se com outras do mesmo culto para preservar suas identidades distintas. In: “The American Forum for Global Education”. In: http://www.globaled.org/nyworld/materials/greek2.html. 110 In: Encyclopedia Britannica Online. In: http://www.britannica.com/ebc/article-9372000. 111 In: http://en.wikipedia.org/wiki/Metics. 112 In: Houaiss, 2001.

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extranèus,a,um, “que é de fora”. De fato, na Língua Espanhola, o termo “extraño”, além

dos sentidos que conhecemos para o nosso “estranho” – ou seja, “raro”, “chocante”,

“insólito”, “excepcional”, etc.113 –, tem também sua aplicação com o sentido de

“estrangeiro”, “forasteiro”. Em espanhol, como sinônimos para o termo “extrañamiento”,

tem-se “deportação”, “desterro”, “exílio”, “expulsão”114. E, curiosamente, o termo

“extrañar”, em espanhol, também é usado com um sentido que não temos em

Português: o de um sentimento doloroso de falta de algo importante para nós, do

qual estamos temporária ou permanentemente afastados – o nosso “sentir saudade”.

Aqui cabe a espirituosa observação da jornalista Joan Kron (1983; p. 22),

quando lembra que no filme “E.T.”, seu diretor Steven Spielberg demonstrou em 118

minutos “algo com que alguns grandes pensadores das ciências sociais vêm tentando

demonstrar nos últimos quinze anos: a primazia da ‘casa’” [tal como pode ser

experimentada no sentido de lugar com o qual nos identificamos ao qual sentimos

que pertencemos]. Sentindo-se assustado e só em uma Terra alienígena, E.T. deseja

desesperadamente conectar-se com seu planeta para que venham buscá-lo e levá-lo de

volta: “– E.T. phone home...”115. Diante de uma emoção fundamentalmente humana

experimentada pelo personagem – o sentimento de estar só, assustado, vulnerável,

longe do seu lugar –, o único antídoto para tais sentimentos é a sua casa/planeta.

...

Todas essa considerações levam à conexão, várias vezes verificada nas

entrevistas aqui realizadas, entre o sentido de habitar doméstico e o de se perceber

inserido tanto na casa, quanto na cidade, na região, ou no país em que se vive. Os

sentimentos de identidade e pertencimento que fazem com que nossa casa seja

percebida como um lugar, para nós, podem, muitas vezes, corresponder aos mesmos

sentimentos que nos fazem sentir inseridos – aceitos, abraçados – no país, na cidade

ou na comunidade em que habitamos. Por outro lado, é exatamente o fato de se

conhecer a experiência do insideness existencial que viabiliza o seu oposto, quando nos

vemos em uma situação de estrangeiros – seja uma criança pequena que, após passar

113 In: Houaiss, 2001. 114 In: Diccionario de Sinónimos y Antónimos, 2005. In: http://www.wordreference.com/espt/. 115 Frase proferida pelo personagem E.T., que ficou mundialmente conhecida, no filme “E.T. the Extra-Terrestrial”, do diretor Steven Spielberg, de 1982.

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uma tarde brincando na casa do amigo e é convidada para ficar para o jantar, de

repente, à mesa, em meio a um ritual diferente do que vivencia diariamente com sua

família, sente-se melancólica e quer voltar para sua casa, para o que lhe é familiar;

sejamos nós, adultos, que, quando estando em um país estranho por um tempo

considerável, buscamos, mesmo inconscientemente, referências que nos “devolvam”

o sentido de insideness: uma música, uma comida, um cheiro, uma rotina social

qualquer. Sem isto, sentimo-nos não acolhidos intimamente, saudosos do sentimento

de “estar em casa”.

Tuan afirma que o lugar pode ser percebido em diferentes escalas: se, de

um extremo, “uma poltrona preferida é um lugar”, de outro, “toda a terra” o é. A

pátria estaria situada entre esses dois extremos, e a intensa afeição que temos por ela é

“uma emoção humana comum”. Aliás, para o autor, quanto mais laços estabelecemos

com determinado lugar, mais forte será o vínculo emocional com esse lugar (Tuan,

1983; p. 165; 175). O termo “topofilia” – “difuso enquanto conceito, e vívido e

concreto, enquanto experiência pessoal” – foi desenvolvido por Tuan para designar

os laços afetivos entre pessoas e lugares, (Tuan, 1990; p. 4). Ao explicar o apego que

desenvolvemos em relação a um lugar, Tuan aponta para certos referenciais que

encontramos em nossa pátria, tais como monumentos, templos, locais que contam a

história desse lugar – e aqui, eu ainda acrescentaria traços da natureza como alguns

acidentes geográficos, um certo rio, o mar, a vegetação – como “sinais visíveis” que

funcionam como ampliadores do sentimento de identidade e intensificam a

consciência e a lealdade das pessoas em relação a um lugar (Tuan, 1983; p. 176).

Neste sentido, suponho ser possível estabelecer uma analogia entre os

“sinais visíveis” da pátria (cidade, região, ou comunidade) de que nos fala Tuan e os

aspectos físicos do nosso espaço doméstico também como catalisadores do

sentimento de identidade, cuidados e pertencimento. Isto nos remeteria a

considerações já feitas em capítulos anteriores sobre os elementos que compõem a

nossa casa física – tanto os que “já estavam lá”, quanto os que foram introduzidas ao

longo do tempo de nossa moradia. Tais elementos seriam os “sinais visíveis” do

espaço doméstico, sobre os quais aplicamos nossas experiências, e nos quais

encontramos apoio na nossa rotina doméstica; seriam catalisadores da percepção do

espaço em que moramos como um lugar – o nosso lugar – ao qual pertencemos, com o

qual estabelecemos nossa identidade, no qual podemos experimentar o insideness

existencial.

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A entrevistada D. Antônia descreve assim o sentimento de apego e pertencimento à

sua casa:

“[...] Eu gosto muito daqui. Eu vou ser muito honesta: eu sou muito caseira; eu até acho que eu sou exageradamente caseira! Sabe, eu adoro passear, ir ao supermercado, a um restaurante com os meus netos, com o meu filho e a minha nora, tudo isso eu gosto. Mas, chega uma hora que eu quero é a minha casa. Chegar, pôr o chinelo e ficar à vontade. Também, se eu não sair, tá tudo bem; eu tô na minha casa, tá tudo bem.” (D. Antônia)

****

Perguntei ao entrevistado Sr. Felipe116, 78 anos, morador de um abrigo para idosos,

se ele se lembrava de sua casa de infância. Em sua resposta, ao lado de uma breve

menção ao tamanho da casa, Sr. Felipe dedicou sua fala às lembranças do bairro que

morou e das relações familiares e com os vizinhos estabelecidas ali – como se a casa,

em sua memória, fosse, não mais uma edificação. Como se o lugar e as pessoas do

lugar é que fossem a própria casa:

[O senhor lembra da sua casa de infância?]

“Bom, eu nasci em São Paulo. Eu sou tão paulista, que nasci no Jardim Paulista! Quando eu era menino, minha casa era espaçosa, porque no início eram nove filhos, minha mãe e meu pai. No Jardim Paulista, na rua Caconde. Agora, só tem gente rica lá. Naquela época, tinha muita chácara, até pasto de vaca tinha. Aí, tinha papai e mamãe, e os vizinhos, umas pessoas muito boas... Nossa família toda sempre foi sociável, de gente educada, caridosa; sempre fizemos o que estava ao alcance em benefício do próximo. Eu só tenho boas recordações, com os pais, com os irmãos. Éramos pessoas sociáveis.” (Sr. Felipe)

Retomemos as considerações quanto ao sentimento de apego e identidade

em relação à nossa Pátria, nossa cidade, nosso bairro ou comunidade – sentimentos

estes, que, através de “sinais visíveis”, de que vimos falar Tuan, se tornam ainda mais

intensos. Muitos poetas e escritores já falaram dos seus sentimentos de apego em

relação à terra natal – seja ela o país, a cidade, ou a região onde nasceram. Algumas

músicas e depoimentos do compositor Caetano Veloso ilustram esses sentimentos.

116 Apresentado no Capítulo 1.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Nascido na cidade de Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, o

compositor muitas vezes relacionou, em suas músicas, o apego às suas cidade e região

e os sentimentos de identidade e pertencimento em relação a elas, à importância do

convívio, não só próprio, mas de toda uma comunidade, com um rio, o Subaé

(localizado a 300 metros da cidade):

Onde eu nasci passa um rio Que passa no igual sem fim

Igual sem fim minha terra Passava dentro de mim

Passava como se o tempo Nada pudesse mudar Passava como se o rio

Não desaguasse no mar

O rio deságua no mar Já tanta coisa aprendi

Mas o que é mais meu cantar É isso que eu canto aqui

Hoje eu sei que o mundo é grande E o mar de ondas se faz

Mas nasce junto com o rio O canto que eu canto mais

O rio só chega no mar Depois de andar pelo chão

O rio da minha terra Deságua em meu coração

(Caetano Veloso . Onde eu nasci passa um rio)

A contaminação das águas desse rio foi denunciada apaixonadamente pelo

compositor:

Purificar o Subaé Mandar os malditos embora

[...] Os riscos que corre essa gente morena

O horror de um progresso vazio Matando os mariscos e os peixes do rio

Enchendo o meu canto De raiva e de pena

(Caetano Veloso . Purificar o Subaé)

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A seguir, mais dois exemplos de expressão poética do sentimento de apego

à pátria, tendo como exacerbadores “sinais visíveis” da terra querida. Tom Jobim

descreve o apego à sua cidade, Rio de Janeiro, ao admirá-la em um sobrevôo pela baía

de Guanabara. E Amir Klink descreve o momento em que, após mais de um ano

passado sozinho a bordo do veleiro Paratii, entre o inverno antártico, e o pólo norte,

retorna ao lugar de partida: a cidade de Paraty, onde vive com sua família:

Minha alma canta

Vejo o Rio de Janeiro

Estou morrendo de saudades

Rio, seu mar

Praia sem fim

Rio, você foi feito pra mim

Cristo Redentor

Braços abertos sobre a Guanabara

Este samba é só porque

Rio, eu gosto de você

[...]

Rio de sol, de céu, de mar

Dentro de um minuto estaremos no

Galeão

[...]

Aperte o cinto, vamos chegar

Água brilhando, olha a pista chegando

E vamos nós

Aterrar...

(Antonio Carlos Jobim. Samba do avião)

****

“[...] ‘O Brasil à proa. Que linda é a terra que eu vejo!’

Terra azul, como um sonho à distância, que pouco a pouco vai ganhando

contorno, detalhes e torna-se verde.

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[...] Todas as ilhas que eu conhecia tão bem, ao redor, nos mesmos lugares. Um

pequeno ponto escuro vinha à proa. [...] Um veleiro. [...] Ainda segurando os

binóculos me apoiei no mastro para ver quem estava a bordo.

A Cabeluda no leme, um gesto com os braços para cima, algo nas mãos, me

atiraram uma lata de cerveja e uma laranja brasileira que eu agarrei no ar. Os

dois maiores presentes que já ganhei na vida.

[...] Ao passar a ponta Grossa de Paraty, eu vi, ao fundo, distante, o recorte branco

das casas da cidade contra a serra. A matriz e as palmeiras imperiais que marcam Paraty. À esquerda, o nosso canto, a baía de Jurumirim.” (Klink, ibidem; p. 219-

220).

Às considerações sobre os “sinais visíveis” da pátria, Tuan acrescenta que

outros meios, independentes de um contexto tão explícito, podem, ainda, levar-nos a

uma intensa afeição pela pátria. Para o autor – e aqui, novamente, é possível

estabelecer uma analogia com a relação que mantemos com nossas casas e as

referências subjetivas que dela temos – uma profunda afeição, ainda que

subconsciente, pode formar-se a partir dos sentimentos de familiaridade e

tranqüilidade em relação a um lugar; por termos, ali, garantidos os meios para a nossa

sobrevivência; a certeza de termos alimentação e segurança. Sentimentos que são

embalados por recordações de sons, perfumes, de atividades praticadas em conjunto

com outras pessoas do lugar. Como diria Tuan, “prazeres simples acumulados através

do tempo” que tornam afeições simples como essas difíceis de serem explicadas

(Tuan, 1983, p. 176).

Das inúmeras vezes em que esteve longe de sua casa, ao longo de sua vida

profissional, o entrevistado Hermes destacou um momento em que viveu profunda

carência da relação restauradora estabelecida com sua casa. Por quarenta dias,

permaneceu a trabalho em Angola, durante a época em que o país se encontrava em

guerra civil, sofrendo não as conseqüências diretas da guerra, mas os efeitos desse

contexto. O convívio direto com a morte, a falta de segurança, a carência das

condições básicas de abastecimento e higiene, a escassa possibilidade de

comunicação com a família tornava o habitar de Hermes em Angola ainda mais

distante das referências restauradoras do habitar doméstico. Naquele momento,

referências materiais, itens de mantimentos que sua esposa lhe enviava

semanalmente, que o remetiam à vivência em seu país Brasil, passaram a se revestir

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de domesticidade e a estabelecer a ponte que o reconfortava daquela experiência

conflituosa de habitar, naquele cenário de carência doméstica:

“[...] Tinha dias que não tinha comida porque não tinha gás. Então, a gente comia aquelas batatinhas feitas há não sei quantos anos. Você ia fazer o café, fazia com papel higiênico. Coisa assim boba, básica. E a gente ficava pensando que na sua casa você não tinha esse de problema. Nós esperávamos com ansiedade a caixa com mantimentos que era mandada em um vôo semanal pra gente. As nossas esposas compravam pra gente: bolacha, macarrão, arroz, leite condensado – aquelas coisas de brasileiro, sabe? – Vinham umas latinhas de Coca‐Cola. Você não sabe como era bom Coca‐Cola... uma latinha pequena... nossa! Parece bobagem, mas, naquela hora, parecia que a gente estava em casa! Nessa situação, te dá uma saudade desgraçada.”

(Hermes)

Em um depoimento sobre a época em que fora obrigado a exilar-se em

Londres nos anos 1960-70, devido à ditadura militar instalada no Brasil, o

compositor Caetano Veloso relata os aspectos de uma relação inautêntica não apenas

com aquela cidade, mas, de um extremo, com um país, com o qual não se sentia

comprometido nem emocional, nem cultural, nem politicamente; e de outro

extremo, com o próprio habitar doméstico, que não lhe servia como porto tranqüilo

para o descanso e o restauro. O compositor relata a experiência de ter a melancolia

metoika vivida naquele momento, por um lado, exacerbada, ao ouvir uma música que

lhe transportou mentalmente para o Brasil, e por outro, pela emoção de ver

traduzida, naquela canção, sua vontade de novamente experimentar o sentido de

“insideness” – de voltar a sentir-se em casa em seu país117:

“‘Na janela da casa onde estou morando tem uns gerânios que já estão secando por

causa do outono. Meu coração está cheio de um ódio opaco. As crianças inglesas

são belas e agressivas. A rainha Elizabeth está pedindo aumento de salário. Eu não dependo disso tudo. Nada disso depende de mim.’” (Trecho de Carta ao Pasquim,

Londres, 1969)118

[...]

117 A entrevista a seguir foi transcrita da fita VHS “Circuladô Vivo”, 1992. 118 Este trecho foi escrito por Caetano Veloso, enquanto morava em Londres e trabalhava como correspondente do jornal Pasquim – mais importante jornal de oposição à ditadura militar dos anos 1960-70. O trecho citado é, na entrevista aqui transcrita, lido pelo próprio Caetano.

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“Londres era a cidade da moda, na época. Era Carnaby Street, King’s Road, e

mini-saia, Beatles e Roling Stones... Swinging London!”

[…]

“Pra ser sincero, eu não era feliz. Eu não sentia aquilo muito como uma

experiência maravilhosa para mim, e não tava feliz com aquilo. Achava belo,

achava importante, sentia que era forte. Mas eu tava exilado, pô, [...] tinha medo

de tudo, não conseguia dormir, precisava tomar valium... em Londres.... E Londres

é um lugar chato – aquela chuvinha, aqueles tijolinhos intoleráveis, aqueles papéis

de parede abomináveis...”

[...]

“O Roberto [Carlos] telefonou lá pra casa e avisou que ia [...]. E foi uma coisa

incrível porque a gente ali, né, exilado, longe do Brasil... [...] E ele pegou o violão e

disse [...] ‘Vou cantar uma [canção] pra você ver, eu acho que você vai gostar.’ E cantou ‘As Curvas da Estrada de Santos’ – que é tão bonita, né? E aquilo

ouvido naquela hora foi... eu chorei tanto, me acabei de chorar... Por isso que o Roberto [...] quando voltou pro Brasil, ele fez ‘Debaixo dos Caracóis’... Por

causa desse dia.... [...] Ele voltou pensando em mim e fez uma música [para mim],

o que foi maravilhoso que ele tivesse feito porque demonstrou solidariedade e me

deu carinho [...]”:

Um dia a areia branca

Seus pés irão tocar E vai molhar seus cabelos

A água azul do mar

Janelas e portas vão se abrir Pra ver você chegar

E ao se sentir em casa Sorrindo vai chorar

Debaixo dos caracóis dos seus cabelos Uma história pra contar

De um mundo tão distante Debaixo dos caracóis dos seus cabelos

Um soluço e a vontade De ficar mais um instante

As luzes e o colorido Que você vê agora

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Nas ruas por onde anda Na casa onde mora

Você olha tudo e nada Lhe faz ficar contente Você só deseja agora Voltar pra sua gente

[...] Você anda pela tarde

E o seu olhar tristonho Deixa sangrar no peito

Uma saudade, um sonho

Um dia vou ver você Chegando num sorriso

Pisando a areia branca Que é seu paraíso

(Roberto Carlos. Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos)

Referindo-se à identidade que estabelecemos com nossa pátria, Stuart Hall

dirá que a partir de memórias e histórias contadas sobre a nação e imagens que dela

são construídas, estabelece-se a ligação entre seu passado e seu presente, produzindo-

se sentidos que mantemos sobre essa nação. Uma cultura nacional seria, pois, um

“discurso[119] – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas

ações quanto a concepção que temos de nós mesmos”. Ao nos identificarmos com

esses sentidos, estabelecemos uma identidade com a pátria (Hall, 2003; p. 50-51).

“Sentir-se em casa”, dirá o filósofo contemporâneo Vincent Descombes, é

uma questão menos geográfica e mais de “retórica de território”. Ou seja, estamos em

casa quando nos sentimos à vontade em relação aos códigos das pessoas com quem

partilhamos nossa vida; quando podemos nos fazer entender sem muita dificuldade e

conseguimos seguir a lógica do pensamento das pessoas sem que sejam necessárias

longas explicações – isto, pelo fato de premissas conhecidas serem partilhadas e

mutuamente assumidas. Por outro lado, diz Descombes, o “país retórico” de uma

pessoa termina no momento em que seus interlocutores deixam de compreender as

119 Discurso: série de enunciados significativos que expressam formalmente a maneira de pensar e de agir e/ou as circunstâncias identificadas com um certo assunto, meio ou grupo. In: Houaiss, 2001.

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razões que levam às suas atitudes, sejam de desaprovação ou de entusiasmo em

relação a algo (Descombes, Apud Augé, 1995, p. 108)120.

Afirmando que é na língua falada em um país onde “verdadeiramente

reside a nacionalidade”, Eça de Queirós escreve, com humor, que...

“Um homem só deve falar, com impecável segurança e pureza, a língua da sua

terra: - todas as outras as deve falar mal, orgulhosamente mal, com aquele acento

chato e falso que denuncia logo o estrangeiro.

[...] Não, minha senhora! Falemos nobremente mal, patrioticamente mal, as línguas dos outros”.121

A canção a seguir traz, com igual bom-humor, o sentimento de

patriotismo, estabelecido tanto em relação aos aspectos geográficos, históricos e

culturais que constroem a identidade com um país, quanto aos códigos partilhados

com as pessoas conterrâneas, incluindo-se a própria língua falada. Aspectos que

constituem o sentimento de que o nosso país é o nosso lugar, a nossa casa:

Quando Cabral descobriu no Brasil o caminho das Índias

Falou ao Pero Vaz para Caminha escrever para o rei Que terra linda assim não há

Com tico-ticos no fubá Quem te conhece não esquece

Meu Brazil é com S.

O caçador de esmeraldas achou uma mina de ouro Caramuru deu chabu e casou com a filha do Pajé

Terra de encanto, amor e sol Não fala inglês nem espanhol

Quem te conhece [...]

E pra quem gosta de boa comida aqui é um prato cheio Até Dom Pedro abusou do tempero e não se segurou

Oh, natureza generosa Está com tudo e não está prosa

Quem te conhece [...] 120 Referência trazida por David Morley, 2000; p.17, 48. Não foram encontradas referências sobre a publicação de Descombes. 121 Eça de Queirós: "A Correspondência de Fradique Mendes", 2a Parte (Correspondência: Carta a Madame S.). In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Correspond%C3%AAncia_de_Fradique_Mendes

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Na minha terra onde tudo na vida se dá um jeitinho Ainda hoje invasores namoram a tua beleza

Que confusão veja você No mapa-múndi está com Z

Quem te conhece não esquece Meu Brazil é com S.

(Rita Lee e Roberto de Carvalho. Brazil com S)

No mesmo sentido do que nos fala Descombes, ou seja, quando a mútua

compreensão entre as pessoas de um determinado meio permite o sentimento de se

estar em casa, Agnes Heller também afirma que para que esse entendimento

aconteça, não são necessárias informações anteriores; não são necessárias notas de

rodapé, e com poucas palavras, muito pode ser apreendido. Heller ainda ressalta que

morar em uma casa, seja ela uma nação, uma comunidade ou família, requer que

sejamos aceitos, bem-vindo, ou pelo menos, tolerados nessa comunidade. Uma pessoa

pode até dizer “esta é a minha casa”, mas, se os outros membros da família,

comunidade, etc. não a vêem assim, ela, de fato, não estará em casa (Heller, 1995; p.

6. Apud Morley, 2000; p. 17).

Assim, a relação de sentir-se em casa, estabelecida nos termos do que

sabemos já subentendido, também está constantemente relacionada à construção do

nós – pessoas que pertencem ao lugar – e do eles – pessoas que não pertencem ao

lugar (Cresswell, 2004; p. 39).

Referindo‐se à discrepância de comportamento das pessoas de um determinado

bairro, em relação ao seu próprio, a entrevistada Maria122 expressa o sentimento de

não pertencimento àquele meio específico, razão pela qual considera acertada a

decisão de não ter‐se mudado para lá, à certa altura de sua vida:

“[...] Eu pensei em vender este [apartamento] aqui, mas pra comprar uma casa em Alphaville. Hoje em dia, quando eu penso nisso, dou graças a Deus de não ter dado certo, porque eu não dou certo com aquele lugar. É outro comportamento. E tem isso: os bairros, as casas, os prédios, têm muito a ver com o comportamento das pessoas.” (Maria)

****

122 Apresentada no Capítulo 1.

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A experiência da entrevistada Júlia123, de ter deixado a casa dos pais, numa cidade do

interior, para morar em São Paulo, em uma pensão extremamente restritiva, traduz‐

se em um sentimento de profunda carência em relação às referências de aconchego

e domesticidade que traz da casa dos pais, assim como das relações sociais vividas

em sua cidade, cujos códigos ela não encontra em São Paulo – o que torna sua

experiência duplamente desprovida de um sentido de lugar.

“[...] E São Paulo é uma cidade muito difícil porque as pessoas são muito individualistas, ninguém ajuda ninguém. Na primeira semana, aqui, eu me senti muito sozinha, muito longe de casa. [...] Mesmo adorando São Paulo e as opções culturais que tem aqui, nos fins de semana eu sinto necessidade de voltar pra casa dos meus pais... é uma delícia voltar. Eu gosto muito da minha casa... eu gosto muito da minha cidade. Lá é muito diferente daqui. Você tem amigos, esse aconchego, essa coisa de falar ‘vou dar uma passada na sua casa, tá?’, ou ‘passa aqui, na minha casa’... aqui não tem! Aqui ninguém faz isso, ninguém dá uma passada na casa do outro. Aqui, as pessoas combinam de se encontrar num tal lugar. Ficar em São Paulo no fim de semana é meio solitário, meio triste, ainda mais nesse lugar que eu estou. As meninas viajam, e ainda por cima, você não pode convidar uma amiga de fora pra te visitar. Na minha cidade, os amigos ficam indo na casa dos outros o tempo todo, é muito divertido.” (Júlia)

A relação entre casa/nação e rua/país estrangeiro de que vínhamos

falando também pode ser vista no sentido de que confiamos em quem conhecemos. O

desejo pela segurança da casa é experimentado, na esfera de uma nação, na busca pela

interação com as pessoas que partilham conosco suas origens e seus componentes

sociais, econômico e culturais, as quais, por esta razão, consideramos “mais confiáveis

do que ‘estrangeiros’” (Kristeva, 1993; p. 3. Apud Morley, ibidem; p. 31). No contraste

entre casa e rua, descrito por DaMatta, o autor dirá do desconforto de situações em

que nos sentimos vulneráveis e precisaríamos contar com pessoas em quem

confiamos para expressar nossas necessidades, tais como quando ficamos doentes

num meio desconhecido, ou quando desmaiarmos na rua. O autor observa que

“nada pior de que ter de fazer uma necessidade fisiológica na latrina pública”. E,

123 Apresentada no Capítulo 2.

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“pior que tudo isso”, acrescenta DaMatta, “é, evidentemente, morrer fora e longe de

casa” (DaMatta, ibidem; p. 59).

Os depoimentos do entrevistado Rui e sua esposa tornam patente as considerações

em relação à confiança de estarmos em meio a pessoas que partilham conosco as

mesmas referências de país, cidade ou domésticas, e de como esse sentimento de

confiança está relacionado ao próprio sentir‐se em casa:

[Rui:] “[...], quando se tem um mal‐estar, a vontade que se tem, não é de voltar para o hotel, e sim de voltar para casa. [...] Uma vez, eu estava fazendo baseamento em Los Angeles124, estourou um canal de um dente. Foi na época da greve de aeroviários e aeronautas no Brasil [...]. Eu com febre, num quarto de hotel, não tinha como voltar... [...]. Como eu tenho pavor de dentista, jamais iria a um dentista lá, que eu não conheço. A minha angústia pelo fim da greve, para que chegasse um avião, eu poder ir para casa, e para o meu dentista era impressionante!”

[Esposa:] “É desesperador. Eu tenho umas enxaquecas e o único remédio que cura é Cibalena. Um vez, eu estava em Los Angeles [acompanhando o marido], me deu uma enxaqueca que durou quatro, seis dias, e eu acabei com meu estoque de Cibalena. E aí, tinha que tomar aquelas porcarias de lá que não resolvem nada. Tudo que a gente pode comprar sem receita, não resolve. Quase que desmaiava na rua.”125

[Rui:] “Então, essa é a saudade de casa. A falta é não só da sua casa, mas do seu bairro, daquilo que você domina. Os animais irracionais demarcam seu território. Nós, os pretensos racionais, também marcamos o nosso território, a toca onde você dorme e o seu território, que é onde você faz a compra; qual a farmácia que fica aberta 24 horas; que horas abre a padaria, como é o nome do dono da padaria, qual o horário que tem o melhor chapeiro para você comer um sanduíche gostoso; onde tem seu borracheiro, o posto de gasolina aonde você vai, que você confia – esse é o

124 Devido aos vôos para Tóquio, feitos com escala em Los Angeles, Rui explicou-me que alguns comissários, como ele, eram escalados para permanecer em Los Angeles por períodos de três meses anuais. Permaneciam hospedados – ou “baseados” – em um hotel naquela cidade, onde havia a troca de tripulação, para eventuais substituições de comissários para o vôo, caso algum dos tripulantes escalados fosse, por alguma razão, impedido de voar. 125 É interessante notar que o medicamento a que ela se refere, genericamente, é o ácido acetilsalicílico, que pode ser adquirido em qualquer farmácia do mundo, sem necessidade de receita médica. No entanto, a relação de confiança em algo que já conhece a faz acreditar que não haveria nenhum medicamento estrangeiro que pudesse resolver seu problema tão bem quanto o trazido do Brasil.

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seu território. Eu tenho uma feira, aonde a gente vai nos sábados de manhã, que fica onde eu morava. Eu fiz feira lá durante 20 anos e todos os caras de todas as barracas nos conhecem. Até hoje eu volto lá porque eles não me vendem produtos que não estejam em boas condições. Eles dizem ‘não, hoje você não vai levar isso, você vai levar aquilo.’ Então, essa é a nossa casa.” (Rui)

Segundo vê Cresswell, o apego e as conexões que estabelecemos em

relação a um lugar podem libertar-nos de pensar nesse lugar, em termos dos aspectos

racionais que, em circunstâncias em que não houvesse tais conexões afetivas,

poderiam atribuir-lhe outra forma de serem percebidos. O pensar nesse lugar, como

vivência cotidiana, está em um mundo diferente daquele que é o pensar em um lugar

– seja uma casa, uma cidade, ou um país – que eventualmente possa ter problemas.

Neste caso, não se trata tanto da qualidade das coisas e do ambiente, em um contexto

global, mas de um aspecto segundo o qual nós, individualmente, escolhemos para

olhar para eles: o quê decidimos enfatizar e o quê decidimos qualificar como não

importante (Cresswell, 2004; p. 11).

O entrevistado Rui expressa a noção de apego à sua cidade, São Paulo, quando a

compara com Paris. Enquanto esta última, da qual gosta muito, é vista,

racionalmente, como uma fonte muito maior de entretenimento e qualidades do que

a segunda, é na primeira, a sua cidade, que Rui encontra o acolhimento à sua

subjetividade. E, para expressar tal impressão, ilustra seu depoimento misturando as

idéias de país, cidade e casa:

“[...] Então, voltar para casa é a sensação de voltar‐se para dentro de si próprio. É sentir‐se protegido. Veja bem, quando você está de férias, você pode estar no melhor lugar do mundo. Por exemplo, Paris, que é um lugar que eu gosto muito. Não tem comparação entre Paris e São Paulo: o que você usufrui de Paris e o que você usufrui de São Paulo, na minha opinião, lá é muito melhor do que aqui. O rio Sena é muito melhor do que o rio Tietê. Mas, quando você chega no Brasil, em São Paulo, você está no seu São Paulo: 'ai, que saudades que eu estou da minha casa, da minha

cama, do meu colchão, do cheiro do meu lençol...’. A minha cama é diferente!” (Rui)

No livro de Queiroz, no qual ela descreve os rituais nordestinos vividos no

preparo da comida em sua casa no Não Me Deixes, o pensar em um lugar

enriquecido pelas histórias ali contidas – e em particular, pelos rituais culinários ali

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vividos, ricos de interações pessoais, inseridas no mesmo contexto, a vivência

sertaneja – é, em uma analogia à proposição de Cresswell, libertar-se de pensar na

experiência da escassez e de dificuldades. O pensar nesse lugar, como vivência

cotidiana doméstica – tal como a escritora pensa no Não Me Deixes – está em um

mundo diferente daquele que é o pensar em uma região de grande pobreza e

dificuldades:

“Por que tanto carinho por estas terras ásperas? Não sei, Mistério é assim: está aí e

ninguém sabe. Talvez a gente se sinta pura, mais nua, mais lavada. E depois a gente sonha.” (Queiroz, 2000, p. 167-169).

****

A vida aqui só é ruim Quando não chove no chão

Mas se chover dá de tudo Fartura tem de porção

Tomara que chova logo Tomara, meu Deus, tomara

Só deixo o meu Cariri No último pau-de-arara

[...] Quem sai da terra natal

Em outros cantos não pára Só deixo o meu Cariri

No último pau-de-arara.

(Venâncio / Corumba / J. Guimarães. Último Pau-de-arara)

...

Retomando a abordagem conceitual de lugar, sob o prisma da Geografia

Humanista, como uma forma fundamental do estar-no-mundo, ou, como resume

Cresswell, “um centro de significados, um campo de cuidados, que forma a base para

as interações humanas” (Cresswell, 2004; p. 50, 49), Relph apontará como um

problema, no contexto contemporâneo, para a dificuldade cada vez maior das pessoas

de se sentirem conectadas ao mundo através de um lugar com o qual se identifiquem

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e ao qual se sintam pertencentes. Uma crescente inautenticidade das relações com os

lugares se daria, segundo Relph, devido a uma série de processos, tais como a

ubiqüidade das comunicações e cultura de massa, a crescente mobilidade das pessoas,

o grande mundo dos negócios, assim como imposições de grandes autoridades

centrais. Tais processos encorajariam, “direta ou indiretamente” o que Relph chamou

de sentido de “placelessness” (em português, algo como “ausência de lugar”), definido

pelo autor como:

“um enfraquecimento da identidade dos lugares, a ponto de eles não apenas serem

todos fisicamente parecidos, mas proporcionarem sensações parecidas e oferecem parecidas e insípidas possibilidades de experiências.” (Relph, ibidem; p. 90. Apud

Cresswell, 2004; p. 44).

O crescimento em escala mundial dos meios de viagem/turismo seria

particularmente visto por Relph como uma das causas da diluição do autêntico

sentido de lugar. Uma estrada, um supermercado, um aeroporto, impostos a uma

localidade por vias não necessariamente comprometidas naturalmente com ela – mas,

como diria Giddens, por influências sociais bem distante dela (Giddens, 1990; p. 19)

–, seriam exemplos desses lugares sem identidade com aos quais a vida moderna

passou a estar cada vez mais comprometida (Relph, ibidem; p. 90. In Cresswell, 2004;

p. 45).

Para Relph, os conceitos de casa e lugar estão para as idéias de

envolvimento, comprometimento e enraizamento, assim como a mobilidade e a

transitoriedade modernas estão para um sentido de inautenticidade e ambigüidade

moral. E é com os recursos do sentido de enraizamento que envolve o conceito lugar,

que Relph vê a resolução deste potencial problema, ou seja, da mobilidade

contemporânea. O próprio relato de Lévi-Strauss, que vimos anteriormente

interpretado por Relph, torna-se, segundo este prisma, um meio de sugerir que

mesmo as pessoas que mais imprimem o caráter de mobilidade a suas vidas não são

automaticamente sem-lugar, já que elas são capazes de criar raízes em um período

notavelmente curto de tempo. Nas palavras de Relph, ...

“ter raízes em um lugar é ter um ponto seguro para, a partir dele, olhar o mundo lá

fora; [ter] uma posição própria na ordem das coisas, na qual nos agarrarmos

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firmemente, e um significante apego espiritual e psicológico a um local em particular.” (Relph, ibidem; p. 38. Apud Cresswell, 2002; p. 14).

Para a entrevistada Amélia126, que passou quase cinco décadas da sua vida

acompanhando os circos com os quais trabalhava, o lugar do habitar doméstico

nunca foi geograficamente fixo. O circo é um lugar móvel. E é nesse lugar móvel que

o circense estabelece suas raízes; é a ele que o circense pertence:

“Eu sou a quarta geração circense na minha família. Eu nasci, me criei, casei no circo. Nós éramos nômades. Quando eu nasci, ninguém morava no circo. Morava‐se em pensões, os melhores ficavam em hotéis. Depois, evoluiu um pouco e passamos a morar no circo, em barracas de lona – eu ainda era pequena. Eu tanto me lembro de morar hotéis, em pensões, como quando a gente foi morar em barraca. Pra nós, era a mesma coisa – tanto fazia morar na barraca, quanto no hotel. Porque a mulher do circo já nasce naquela vida, e a criança já vê ao outras mulheres vivendo aquela vida, então ela já está dentro do seus habitat.” (Amélia)

A seguir, Amélia descreve o momento em que deixa de viajar com o circo e passa a

ter um habitar localmente fixo, o que, no entanto, parece nunca ter cortado de vez

as raízes com o caráter nômade, de espaços dispersos, do modo de habitar de antes:

“Foi difícil me adaptar a essa vida mais parada – aliás, eu sinto falta das viagens até hoje [risos]. [...] A minha primeira moradia foi num trailer, num terreno baldio que um amigo tinha; e ele deixou a gente colocar o trailer lá. [...] o meu marido viajava com o circo Orlando Orfei, nessa época. [...] Eu parei em Campinas, fiquei com as crianças estudando e ele viajava. [...] E lá, a gente já se arrumou: fizemos um banheiro lá. A gente não tinha móveis, era só o trailer. Então, eu deixei o trailer pra dormir. E lá tinha um barracãozinho de madeira jogado, que eu resolvi fazer minha cozinha lá. Limpei, já tinha uma mesa, que eu aproveitei. Aí uma vizinha disse que ia jogar um sofá fora, e perguntou se eu não queria: ‘claro que eu quero’, eu disse. E já tinha um sofá – não importava se fosse bom ou não; o importante é que já tinha alguma coisa. E aí, eu ia ajeitando e ficava bom. E a minha filha do meio é uma dona‐de‐casa formidável, garças a Deus. Ela que arrumava tudo.

126 Apresentada no Capítulo 1.

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Depois, eu passei a morar em casa, mesmo. Dois quartos; comprei um sofá usado... Mas nunca perdeu a cara do circo: minha casa, eu acho que é sempre bagunçada. A minha filha sempre fala ‘mãe, você não esquece do circo, mesmo!’” (Amélia)

****

Vivendo no que chama de “equivalente a um hotel” para profissionais estrangeiros

na Arábia Saudita, o entrevistado Christian127 reflete sobre a razão de ele próprio e

muitos estrangeiros nesta mesma situação, mesmo estando tão distantes de suas

referências de habitar doméstico, sentirem‐se, de certa forma, enraizados, em casa,

naquele país. O que, a princípio, poderia ser um fator de efeito metoiko sobre esses

estrangeiros, que deixam seus países e referência para trabalhar em um lugar de

hábitos e regras sociais tão estranhas a eles é, por outro lado, segundo vê Christian, a

própria razão do enraizamento dessas pessoas. Referindo‐se especificamente à sua

condição de estrangeiro na Arábia Saudita, Christian vê, por um lado, o habitar em

um contexto sociocultural de restrições. Por outro, há a convivência com outros

estrangeiros, propiciada e regulamentada por uma instituição que segrega (o

“hotel”), cujos espaços físicos, regras e horários definidos propiciam o

estabelecimento de contatos e interações entre os moradores – num contexto que

Christian compara a um colégio de adolescentes. Sob este ponto de vista, ele supõe

serem as relações de cumplicidade e amizade advindas deste contexto de

comunidade o que devolve a essas pessoas o sentido de pertencimento a um meio

humanizado (para usar o termo de Tuan), a uma comunidade – sentido este, que

avalia como perdido nas grandes cidades, nas quais essas pessoas estariam imersas

em relações marcadas pela ausência de lugares à qual se refere Relph, ou, ainda, nas

palavras de Tuan, inseridas “na solidão de um lugar protegido” (Tuan, 1983; p. 61):

“[...] Mas veja, o termo ‘quarto de hotel’ é, talvez, mal interpretado, uma vez que a palavra ‘hotel’ significa um espaço comum de lazer, onde pessoas, mais do que nunca, preferem a companhia de suas famílias e parceiros(as). Neste caso, é o fato de elas estarem longe de suas famílias e companheiros(as) que cria a dinâmica de se fazer amigos. [...] Muitos dos que deixam a Arábia Saudita voltam – alguns, até mesmo, depois de cinco anos. Eu sempre me perguntava se isso é por causa do dinheiro, mas então, me ocorreu que deve ser outra coisa. Já que a maioria das pessoas, especialmente nos países de primeiro mundo, vivem vidas relativamente isoladas, o constante contato que se tem aqui – ainda que seja

127 Apresentado no Capítulo 1.

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200

opcional – cria a sensação de convivência. As pessoas tomam o café da manhã, almoçam e jantam juntas; elas se encontram no salão do café. Freqüentemente, alguém compra um computador novo, uma câmera, um instrumento musical, e convida os outros para ver, caindo de volta nos padrões de interação humana que eram comuns durante a adolescência. Como alguém se reajustaria a viver numa comunidade ‘normal’, depois disso é o que todos se perguntam! Aqui, arquitetura é definitivamente instrumental no sentido de formar padrões de interação. Naturalmente, há vários graus de proximidade, dependendo da idade, interesses e experiências profissionais comuns – o que, portanto, dá uma variedade de pessoas, entre as quais se pode escolher os amigos. [...] eu estava conversando com uma enfermeira amiga minha, [...], e nós estávamos discutindo as razões pelas quais é difícil para os estrangeiros, como nós, que estiveram na Arábia Saudita por vários anos, se adaptar de volta aos seus países de origem, que, no caso dela, era o Canadá, mas que poderia ser qualquer lugar. A vida, aqui, em nossas residências, muitas vezes, é comparada ao voltar à escola. Ocorreu‐me que isso poderia ser por causa das figuras da autoridade e outros fatores de repressão que há aqui. Nós moramos num país que proíbe o divertimento. Você não pode namorar, beber, ouvir música, etc. Isto é imposto pelo próprio governo. Isto, portanto, precisa ser apoiado pelas pessoas para quem você trabalha, que são, em última instância, responsáveis por você, portanto, a autoridade elevada ao quadrado. Para sua própria segurança, você mora em um compound (interprete como instalações de internato)128. Nesses compounds, para aqueles que não são casados, são segregados, portanto, nada de sexo, apenas tsunamis de testosterona: de volta ao pátio da escola! Agora, de repente, se voltamos para o Canadá ou qualquer lugar: nós não estamos mais limitados pelo mesmo tipo de autoridade, não vivemos mais em pequenos círculos conspiratórios. Não há mais empatia, não mais fofocas, não mais coletividade, atividades comunitárias. Há apenas um apartamento onde você vive por sua conta, cozinha para você, e faz tudo o mais por sua conta, ou com uma outra pessoa. Você ganhou sua liberdade, mas você também perdeu um certo espírito comunitário, criado de uma resistência ou desobediência à autoridade, e os laços que acompanham tudo isso. Você percebe que foi projetado no mundo selvagem – de novo!” (Christian)

128 “Compound”: um grupo fechado de edifícios para a segregação ou restrição de um grupo particular de pessoas. In: Encarta, 1999.

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201

A re‐elaboração contemporânea do conceito de lugar

Se, por um lado, os sentidos de identidade, enraizamento e pertecimento,

atribuídos ao conceito de lugar pelos geógrafos humanistas, os fizeram ver as

“autênticas” relações com o lugar diante de uma constante ameaça – representada

pela mobilidade moderna e pela cultura de massa, concepções mais recentes vieram

agregar novas idéias à concepção de lugar, que passa por uma reformulação sob o

prisma justamente dessa mobilidade contemporânea e das influências da abrangente

globalização por que passa o mundo contemporâneo. Assim, procuro, a seguir,

estabelecer uma relação entre algumas elaborações teóricas que abordam a

transformação da idéia tradicional de lugar e o foco proposto para este capítulo, ou

seja, o sentido do lugar do habitar doméstico. Minha intenção, ao trazer diferentes

olhares sobre o entendimento de lugar relacionados a questões contemporâneas que,

tradicionalmente, seriam vistas como incompatíveis com o conceito autêntico e

localizado de lugar, é não de invalidar as considerações vistas até agora, mas,

simplesmente, de enriquecer o acervo de idéias que ilustram a questão do lugar do

habitar doméstico. Nem todas as considerações teóricas que passo a mencionar estão

respaldadas em entrevistas. Porém, a opção por apresentá-las deveu-se à intenção de

abranger questões importantes que envolvem o tratamento teórico do sentido de

lugar no contexto contemporâneo como um todo, as quais têm reflexos diretos no

modo como praticamos nosso habitar doméstico.

Comecemos com a análise do etnólogo Marc Augé, para quem, ainda que

reconhecendo a multiplicação, no mundo contemporâneo, de espaços onde as

pessoas apenas “coexistem ou coabitam, sem que vivam juntas” – tais como os

espaços de circulação (estradas, rotas aéreas), de consumo (shopping centers,

supermercados), e de comunicação (telefones, faxes, televisão, internet) –, esses

espaços, chamados por ele de “não-lugares” (“non-places”) não teriam a conotação

negativa do sentido de “placelessness” de Relph. “Não-lugares” seriam apenas

localidades caracterizadas pelo “temporário”, pelo “efêmero” – locais desenraizados e

marcados pela mobilidade das pessoas; locais, portanto, onde histórias particulares e

tradições não são relevantes (Augé, 1995. Apud Cresswell, 2002; p. 16-17 e Cresswell,

2004; p. 45-46).

Diante dos fatos da contemporaneidade que “desenraizam” o sentido de

lugar, Augé aponta para a necessidade de um repensar radical sobre a abordagem

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

202

antropológica tradicional, cujo foco estaria na idéia de uma cultura localizada no

tempo e no espaço, e cuja noção de lugar estaria convencionada na idéia de uma

“sociedade ancorada, desde tempos imemoriáveis, na permanência de um solo

intacto”. Para o autor, tais lugares estariam, agora, perdendo a importância para os

“não-lugares” (Augé, ibidem; p. 44 e 31-43. Apud Cresswell, 2002; p. 17 e Morley,

2000; p. 173).

Assim, nesta re-elaboração do conceito de lugar, passaria a ser essencial a

consideração do fator mobilidade: as pessoas não são mais simplesmente deste ou

daquele lugar, dirá Cresswell (2002; p. 17). Como observa o teórico Edward Said,

“ninguém, hoje em dia, é puramente uma coisa”. Rótulos de nacionalidade, sexo ou

religião, na visão de Said, não passam de pontos de partida, os quais são rapidamente

deixados para trás, se acompanhados da real experiência em relação a novos lugares.

Naturalmente, pondera Said, não se pode refutar a persistência da continuidade das

tradições, a resistência das habitações, das línguas nacionais e das geografias culturais;

contudo, para o Said, parece não haver mais razão, exceto o medo e o preconceito,

para que se continue insistindo nesta separação e distinção.” (Said, 1994; p. 90. Apud

Cresswell, 2002; p. 17).

Numa visão que também reflete a realidade moderna da mobilidade das

pessoas, Milton Santos estabelece uma comparação com as relações estabelecidas com

o lugar em uma situação anterior:

“O sujeito no lugar estava submetido a uma convivência longa e repetitiva com os

mesmos objetos, os mesmos trajetos, as mesmas imagens, de cuja construção

participava: uma familiaridade que era fruto de uma história própria, da sociedade

local e do lugar, onde cada indivíduo era ativo.

Hoje, a mobilidade se tornou praticamente uma regra. [...] Os homens mudam de

lugar, como turistas ou como imigrantes. Mas também os produtos, as mercadorias, as imagens, as idéias. Tudo voa.” (Santos, 2004; p. 327-328).

O entrevistado Christian vê o apartamento em que vivia no Brasil, antes de se mudar

para a Arábia Saudita, como um reflexo do estilo móvel de vida, que o faz não se fixar

em um lugar por muito tempo. A opção por morar em lugares (apartamentos,

pensões, quartos) alugados, e não morar em uma casa própria é vista por Christian

como a forma de habitar doméstico que viabiliza seu projeto de vida

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“[...] De um ponto de vista, minha casa129 em São Paulo era funcional: um espaço autônomo olhando além do próprio presente dele para um ponto invisível no futuro. Seu mobiliário, essencial e esparso, refletiam o estilo de vida itinerante do seu ocupante [...]. Ao mesmo tempo, ele possuía um significado denotativo, mais do que a variedade conotativa incorporada no conceito tradicional de ‘casa’ da minha infância, com suas memórias e associações ligadas por um senso de continuidade. Casa, em São Paulo, representava um conceito móvel, viajando através do tempo, e eliminando referências, mais do que as acumulando.” [...] Acabei de chegar da África do Sul, onde estive de férias. Lá, de uma forma tradicional, todas as pessoas que eu visitei vivem suas vidas isoladas em suas casas isoladas. Suponho que, em algum estágio, é importante tomar a decisão sobre se viver na própria ‘caixa’ vale a chateação em relação à manutenção e à constante despesa que envolve o ter uma propriedade. Pessoalmente, eu prefiro a liberdade que vem com não possuir minha própria casa, ou melhor, morar numa casa que eu não possua. De novo, isto está conectado ao estilo de vida e trabalho que me levam para lugares diferentes em volta do mundo, tornando impraticável possuir uma casa, exceto, talvez, como um investimento.” (Christian)

Conectando a mobilidade moderna à idéia de “testerritorialização”, Santos

lembra que esta idéia está normalmente relacionada aos sentimentos de

“estranhamento” e “perplexidade”, os quais experimentamos ao perceber que o nosso

conjunto de memórias e experiências, criadas em função de outro meio, pouco nos

servem na orientação da vida cotidiana. Contudo, lembra-nos Santos, neste mundo

do movimento, nosso sentido de residência ainda persiste: “O homem mora talvez

menos, ou mora muito menos tempo, mas ele mora”. Passada a primeira impressão

de espanto e atordoamento, afirma o autor, o espírito torna-se alerta, refaz-se e

reformula a idéia de futuro a partir de um novo do entendimento da realidade que o

cerca. Quando esse processo é percebido, o anterior “processo de alienação” em

relação ao novo meio, vai dando lugar a “um processo de integração e de

entendimento”. É a partir daí que, nas palavras do autor, “o indivíduo recupera a

parte de seu ser que parecia perdida" (Santos, ibidem; p. 328-329).

A noção de deslocamento (desconexão) sugere uma prévia experiência de

casa como lugar (Mayxxiii, 2000, p. 748. Apud Cresswell, 2004, p. 116): ultrapassar os

129 A palavra, em inglês, utilizada por Christian para se referir ao seu apartamento é “home” – a qual foi traduzida, aqui, por “casa”.

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limites da residência faz com que se inclua nesta percepção um sentido de

pertencimento ao que normalmente descrevemos como nosso lugar. Através de

alguns depoimentos, percebe-se que estar longe de casa, ou de não perceber o meio

em que se está como seu lugar, mais do que a falta da casa (cidade, país) como

localidade física específica, envolve a necessidade de voltar a se sentir inserido em um

contexto de referências pessoais previamente experimentadas, através das quais era

possível perceber-se envolvido física e emocionalmente pelo sentido de (seu próprio)

lugar.

Retomo, aqui, a experiência narrada pelo entrevistado Márcio130, diretor de teatro,

que se mudou de sua cidade, Curitiba, para trabalhar em São Paulo. Essa experiência,

examinada, agora, sob o prisma das idéias de “testerritorialização”, “estranhamento”

e “perplexidade”, torna patente não só a análise de Santos, mas também as Tuan e

Relph, que vimos anteriormente, quanto às experiências nos espaços exterior e

interior e dos sentidos de insideness e outsideness existencial. O espaço público da

grande metrópole que, a princípio, fascinou Márcio pela miríade de possibilidades e

vivências socioculturais oferecidas, tornou‐se opressor e responsável pela busca do

que ele julgava ter deixado em sua cidade, em termos de acolhimento da

subjetividade através do habitar privado. O sentimento de “outsideness” vivido no

espaço exterior em São Paulo não encontrava um oposto em um meio privado. O

reencontro com o que Márcio considerava deixado em Curitiba e a percepção de ter

sido “aceito” pela cidade de São Paulo deram‐se através do estabelecimento de um

sentido de lugar no novo espaço habitado, para o quê Márcio buscou – e continua

buscando – retomar, em São Paulo, as experiências espaciais e sensoriais que

remetem ao sentido de identidade e enraizamento trazidos na memória de seus

habitares domésticos praticados em sua cidade natal, ao longo de sua vida.

(Revejamos alguns trechos da entrevista de Márcio:)

“Em São Paulo, no início, eu tive um período de cigano, por alguns meses, e fui‐me desesperando sem perceber que eu estava me perdendo de mim mesmo. Aí, o espaço público das ruas engarrafadas, lugares deteriorados, urbe que não flui, começou a deixar de ser um estímulo e passou a me oprimir. Depois de morar em dois ou três lugares diferentes, literalmente, fui em busca do equivalente ao meu apartamento em Curitiba, que, por sua vez, era o equivalente ao apartamento onde

130 Apresentado na Parte I.

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eu tinha passado a adolescência – espaço que foi o primeiro que permitiu essa construção [...]. [...] Eu acho que eu busquei uma distribuição dos cômodos igual à de lá. Acabei encontrando um apartamento em que, ao entrar, achava uma cozinha no mesmo lugar que tinha lá, uma sala idem, dois quartos dispostos quase como lá, etc. Esse, aqui, era menor, mas a sensação era que eu entrava no de lá. As janelas recebiam luz na mesma relação que lá, com vista para montanhas que também lembravam a Serra do Mar no Paraná, e em um bairro que lembra Curitiba. Aliás, a Zona Oeste daqui, tipo Sumaré, Vila Madalena, Pompéia, tem um ar que parece que eu estou lá. Eu lembro que antes de eu ‘me achar’ no espaço daqui, em uma visita que eu fiz a Curitiba, eu vi o meu antigo apartamento... de longe, porque já tinha sido vendido. As janelas estavam iluminadas e, aí, eu fiquei angustiado; ele me parecia a chave de um reencontro com algo perdido, um estado do passado ou qualquer coisa assim. Eu percebo que não era bem nostalgia... E agora eu entendo, porquê bastou reencontrar esse equivalente pra eu desencanar. Aliás, foi só aí que eu me mudei de corpo e alma para São Paulo, que adotei a cidade como minha. O externo encontrou um correspondente com um espaço interno, em dois níveis. [...] É curioso, porque, agora, mesmo aqui em São Paulo, eu estou planejando mudar para um lugar que tenha uma área aberta ao ar livre, que tenha ou um quintal, ou uma sacadona, um terração, alguma coisa assim. Agora, acho que é a minha busca da infância. A minha família sempre esteve ligada à área rural, e eu passei a infância convivendo com isso. Em uma certa altura da minha vida, tudo o que eu não queria era continuar com isso, então eu negava de todas as maneiras. Eu queria me manter longe daquilo. Agora, que eu percebo que não tem mais ‘perigo’, estou procurando reencontrar aquelas sensações. Que louco, né?” (Márcio)

****

O relato da musicista Analu, ao vir de uma cidade pequena para morar em São Paulo,

começa por descrever o profundo sentimento outsideness em relação ao contexto

social degradado com que se deparou na cidade grande, do medo de sair às ruas, e

até mesmo em relação à mudança do formato do habitar doméstico, que tanto lhe

causou estranhamento: antes uma casa e uma vida típicas do interior; agora, um

apartamento no centro da metrópole. Parte do relato abaixo, vimos no capítulo

referente à casa física, quando falamos da proteção que buscamos em nossa casa. A

outra parte refere‐se ao momento em que, passado o estranhamento inicial, Analu

cria, através do habitar doméstico em seu apartamento, relações de pertencimento e

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identidade, no que Santos chamaria de uma nova via de orientação e entendimento

dessa realidade em que agora se vê inserida:

“Eu acho que o primeiro impacto são as imagens que a gente vê, mesmo, né, as diferenças entre interior e capital. [...] Isso, realmente, foi bem chocante, assim, deu um certo medo... Então, nos primeiros três meses, eu quase não saía – só pra trabalhar. [...] Daí, ele [o apartamento] foi‐se tornando, mesmo, o meu refúgio. É um lugar que eu gosto, mesmo, de voltar pra lá. [...] No interior, eu morei sempre em casa, casinha mesmo, interior, aquela coisa... a última casa que eu morei foi uma casa extremamente antiga. O chão era tijolão, mesmo. Daí, vir pra São Paulo foi a minha primeira experiência em apartamento. Assim: você não tem quintal, você não pode fazer barulho – já começou a ser vetado um monte de coisa. Eu lembro que o primeiro dia que eu fiquei em casa, eu comecei a ficar louca porque eram vários sons: tocava interfone, campainha, telefone fixo, que até então eu não tinha, e o celular... Aí, eu falei, ‘Deus, nossa, me ajuda!’. Às vezes tocava o interfone, eu ia pro telefone, tocava o celular, eu ia pra campainha... uma coisa louca! Mas, agora, esse apartamento, eu acho que eu acabei adaptando ele como um refúgio, e isso perdura até hoje, porque é um espaço bacana – é um apartamento antigo: é um quarto, sala, cozinha, banheiro. Ele tem a minha cara, mesmo. Quem chega, quem me conhece, fala assim “pô, é a tua cara”... o clima, a energia, a distribuição das coisas. E ele é muito silencioso, ele é espaçoso... eu gosto – gosto dali.” (Analu)

A evolução do pensamento em relação à experiência do lugar, tanto no

que se refere à localidade imediata da casa, quanto, numa escala mais abrangente, no

sentido de pertencimento a uma vizinhança, bairro, cidade ou país, vêm sendo

analisada por muitos autores contemporâneos. Em seu livro “Home Territories: Media,

Mobility and Identity”, David Morley (2002) trabalha em cima de estudos

contemporâneos da Geografia Cultural que focam as transformações e

desestabilizações causadas pela ação das influências de um contexto de globalização131

131 Ao se referir ao termo “globalização” como “um complexo de processos e forças de mudanças” (Hall, 2003; p. 67), Stuart Hall traz a definição de Anthony McGrew, segundo o qual globalização “se

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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na percepção do sentido de lugar. Com base nesses estudos, que segundo o próprio

Morley, “insistem na necessidade de se repensar o sentido de lugar”, assim como das

idéias tradicionais de casa (home), pátria e nação, o autor investiga o papel da

constante mobilidade e das novas tecnologias e formas de comunicação na vida

cotidiana das pessoas. Para o autor, a ação dessas tecnologias estaria conectada tanto a

uma transgressão dos limites do habitar doméstico, na medida em que o mundo

público é “trazido” para dentro do privado, quanto, simultaneamente, ao

estabelecimento da coerência de uma “experiência social mais ampla” (Morley, ibidem;

p. 3).

A respeito dessa ampliação da experiência social, podemos observar a

comparação, feita por Giddens, das relações sociais em função de espaço e lugar

estabelecidas antes e depois do advento da modernidade. Enquanto nas sociedades

pré-modernas, nota Giddens, espaço e lugar eram amplamente coincidentes – ou seja,

as dimensões espaciais da vida social eram dominadas por atividades localizadas e pela

presença física –, com a modernidade, o desenvolvimento das tecnologias de

comunicação passou a promover relações entre pessoas “ausentes”, ou seja,

localmente distantes de qualquer situação de interação cara-a-cara, e os locais passam

a ser completamente penetrados por influências sociais bem distantes deles, assim

como configurados nos termos dessas influências. O espaço, como observa Giddens,

passou a ser “arrancado” do lugar. Ocultadas pela “‘forma visível’ do local”, essas

relações distantes passaram a determinar a natureza desse local, o qual, dirá Giddens,

tornou-se cada vez mais “fantasmagórico” (Giddens, 1990; p. 18-19 e Giddens, 1991; p.

187-188).

Na mesma direção de Giddens, John Tomlinsonxxiv aponta para a casa de

uma família (ocidental) atual como um lugar onde, ainda que as relações de

intimidade cara-a-cara ainda sejam a norma, em um agudo contraste com a casa pré-

moderna, a sua equivalente atual vem-se tornando cada vez mais, e de várias

maneiras, o local para interações à distância. Dentre essas maneiras, Tomlinson

aponta como “mais notáveis” as tecnologias de comunicação com as quais as casas

modernas passaram a contar corriqueiramente, tais como a televisão, o videocassete,

o telefone e, nas casas mais abastadas, computadores conectados via rede mundial

refere àqueles processos, atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e experiência, mais interconectado.” (McGrew, 1992. Apud Hall, ibidem; p. 67).

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com distantes localidades. É desta forma que Tomlinson caracteriza a casa moderna

como “aberta para o mundo” (Tomlinson, 1999; p. 53).

Ainda com referência a Giddens, Shaun Mooresxxv, estudioso das

implicações das novas mídias na vida cotidiana contemporânea, também vê o lar

moderno como “um lugar fantasmagórico”, na medida em que, através dos vários

tipos de mídia eletrônica, eventos e realidades de origens distantes do local de onde

os observamos – nossa casa – invadem radicalmente a realidade localizada do

cotidiano doméstico (Moores, 1996; p. 24. Apud Morley, ibidem; p. 9). Seria, ainda,

neste sentido que Fred Dewey se refere-se abrangência dos meios de comunicação

digital:

“[...] condições de contato que abrangiam continentes ou milhares de milhas

tornam-se comuns entre trinta milhas, dez milhas, meia milha, e entre cômodos em uma só casa.” (Dewey, 1977; p. 274).

Em um processo de mediatização das comunicações, o qual, como vê Paul

Virilio, atinge “o espaço íntimo, a própria natureza da domiciliação” (Virilio, 1999; p.

79), a casa deixou de ser apenas o tradicional local das interações pessoais e privadas

– e autênticas, como via Relph. Como ressalta o sociólogo David Chaney, com todas

as novas tecnologias – como o rádio e a televisão, os vários meios de se ouvir música,

o computador pessoal e a revolução no transporte, inaugurada pelo automóvel

particular – a cultura pública, de fato, instalou-se na esfera cotidiana do habitar

doméstico (Chaney, 2002; p. 15, 57). E na mesma direção de Chaney, Morley dirá

que dada uma sorte de inovações tecnológicas, os limites entre o ambiente doméstico

e o mundo exterior tornaram-se muito mais “porosos” em ambas as direções (Morley,

ibidem; p. 97).

Seguindo em sua análise, Chaney afirma que muitas das inovações de

marketing de facilidades de lazer e consumo de produtos trabalham para “privatizar”

ou “individualizar” o ato de consumir, o qual passa a, cada vez mais, ser praticado no

espaço físico da casa, tornando, assim, o habitar doméstico cada vez mais uma “forma

social de mediação entre as esferas pública e privada” (Chaney, ibidem; p. 57). É neste

contexto que Morley também se refere à casa como “um ponto nodal” através do qual

se estabelece “um fluxo complexo de pessoas, mercadorias e mensagens” (Morley,

ibidem; p. 172).

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

209

O processo de privatização da cultura pública ou, nos termos aqui

abordados, da penetração da cultura pública na esfera privada doméstica, ao qual se

referem Chaney e Morley, é exemplarmente ilustrado pela proposta da consultora de

marketing, Faith Popcorn: o Cocooning (no sentido de ninho, de local para o

recolhimento) – tendência, verificada pela autora no final dos anos 1980, do retorno

das pessoas ao acolhimento e segurança de suas casas132. Segundo Popcorn, no

entanto, esse recolhimento doméstico deveria ser não só propiciado, mas apoiado

pelas mais variadas possibilidades de consumo de objetos e serviços, a fim de tornar o

estar em casa o mais seguro, confortável e prazeroso possível. No livro “The Popcorn

Report” (1992), as advertências da autora apontam para a importância de profissionais

da área de marketing trabalharem “juntos e mais eficazmente” com o intuito de tornar

a vida “mais fácil para o consumidor” (Popcorn, ibidem; p.144); isto, no sentido de

não mais esperarem que os consumidores fossem ao seu encontro, mas, ao invés

disso, de eles alcançarem os consumidores em seus próprios “cocoons”. Nas palavras da

autora, “a entrega a domicílio irá tornar-se não um serviço a mais, mas um modo de

vida”; “A casa-cocoon será o local do futuro shopping center” (Popcorn, 1992; p. 30,

164-165).

Na prática, essa tendência de transferir para o espaço físico da habitação o

consumo de produtos e serviços foi viabilizada e incentivada pelas possibilidades

tecnológicas de interações não face-a-face. A presença cada vez maior de mídias

eletrônicas passou a ser indispensável na composição do “cocoon” – ou, como na visão

de Castells: “combinada com o desempenho de tarefas domésticas [...], [a mídia] é a

presença de fundo quase constante, o tecido de nossas vidas” (Castells, 2000; p. 358).

Através do consumo de dispositivos inteligentes de transmissão de dados, o próprio

consumo da informação propiciou a transferência para a esfera privada doméstica de

atividades que, tradicionalmente, eram praticadas no espaço público, tais como

realizar de operações bancárias, fazer compras, ir ao cinema, etc.

132 Conforme vimos no Capítulo 1, Popcorn cunhou o termo “Cocooning”, justamente referindo-se à tendência dos moradores das grandes cidades de se voltarem às suas casas, seja por razões de segurança, ou pela busca de paz, proteção, aconchego e controle, diluídos no dia-a-dia estressante do habitar público (Popcorn, 1992; p. 27-29).

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

210

Fig. 14 Esquema apresentado por um site brasileiro de vendas de equipamentos para a instalação de “cinema em casa”. Neste site, encontra-se o texto: “Um sistema de Cinema em Casa possibilita-lhe desfrutar os seus filmes favoritos em sua própria casa, mas com o impacto e o envolvimento a que está habituado a assistir no seu cinema público preferido.”133

...

Retomemos, rapidamente, o ponto em que nossa análise migrava do

tradicional conceito localizado de lugar, desenvolvido pelos geógrafo humanistas, para

uma visão mais atualizada, segundo a qual, a mobilidade contemporânea desloca o

sujeito, sendo que o lugar passa a estar desconectado das inter-relações presenciais.

Nas visões de Giddens e Tomlinson, se os locais mais íntimos da modernidade – os

espaços do nosso habitar privado – podem ser contrastados com as moradias das

sociedades pré-modernas, em termos de seu relativo grau de “abertura para o mundo”

[como vimos por Giddens (1990; p. 18-20)] – em particular, considerando-se o uso

cotidiano das tecnologias domésticas de comunicação (Tomlinson, ibidem; p. 108) –,

ao mesmo tempo, os autores fazem algumas observações a respeito dessa “abertura”, a

qual acompanha a transformação do tratamento teórico dado ao lugar e,

conseqüentemente, ao lugar do habitar doméstico, como vemos a seguir:

Segundo vê Giddens, o que acontece não é simplesmente que as

influências localizadas são absorvidas pelas relações impersonalizadas dos sistemas

abstratos. Em vez disto, o próprio “tecido das experiências espaciais” é que se alterou,

reunindo proximidade e distância de um modo que encontra poucos paralelos nas

épocas anteriores (Giddens, 1990; p. 140). Contudo, o autor observa que, mesmo

133 In: http://www.angelfire.com/film/homecinema/#up.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

211

que as localidades tenham passado a ser completamente penetradas por influências

distantes e muitos aspectos da experiência midiatizada tenham sido incorporados à

nossa conduta diária, “todo mundo ainda continua a viver uma vida local, e [que] as

restrições do corpo asseguram que todos os indivíduos, a todo momento, estejam

contextualmente situados no tempo e no espaço” (Giddens, 1991; p. 187-188).

Observando este mesmo contexto, Tomlinson nos lembra que a

conectividade que estabelecemos através das tecnologias de comunicação não apenas

dá suporte à noção de proximidade, mas coloca sua própria marca no modo como

passamos a entender “‘estar perto’ no sentido global”. Estar conectado passa, agora, a

ser entendido de uma forma muito específica. Isto, pois, passamos a considerar a

proximidade como algo que convive simultaneamente com “uma indestrutível e

teimosamente persistente distância física entre lugares e pessoas no mundo”, a qual,

entretanto, na visão do autor, as transformações tecnológicas e sociais da globalização

não fizeram desaparecer (Tomlinson, ibidem; p. 4).

Para Santos, a globalização não só não anula a corporeidade, mas leva ao

redescobrimento dela. Segundo escreve o autor, ...

“O mundo da fluidez, a vertigem da velocidade, a freqüência dos deslocamentos e a

banalidade do movimento e das alusões a lugares e a coisas distantes, revelam, por

contraste, no ser humano, o corpo como uma certeza materialmente sensível, diante de um universo difícil de apreender.” (Santos, ibidem; p. 313-314).

Moores refere-se ao conceito de “privatização móvel” (“mobile

privatisation”), desenvolvido pelo historiador Raymond Williamsxxvi, como sendo um

modelo moderno de estilo de vida que, ainda que centrado na casa, é baseado na

crescente mobilidade moderna, através de mudanças e viagens, e na abrangência dos

meios de comunicação, reunindo, assim, duas tendências da cultura contemporânea

aparentemente contraditórias (Moores, 2000; p. 4-5) – privacidade e mobilidade.

“Privatização móvel”, seria pois, a forma pela qual os consumidores desses meios de

comunicação “visitam” distantes localidades (via som e imagem) sem que para isto

tenham de deixar o conforto e a “segurança ontológica” de suas casas (Williams,

1996; p. 26. Apud Morley, ibidem; p. 9). É neste sentido que o aparelho de televisão

estaria, para Williams, incluído na mesma categoria de tecnologias à qual pertence o

carro e o avião – tecnologias, como descreve Moores, projetadas para transportar os

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indivíduos a destinos (físicos simbólicos ou imaginários) bem além do limites da casa

ou da vizinhança, combinando privacidade com mobilidade (Moores, 1996; p. 365,

336. Apud Morley, ibidem; p. 149).

Tais tecnologias de comunicação, incorporadas ao cotidiano doméstico,

funcionariam como “mecanismos de desacomodação”, uma vez que seriam poderosos

possibilitadores do “escape”, pelo menos através da imaginação, de indivíduos ou

grupos familiares (Morley, ibidem; p. 149-150). Morley lembra-nos da consideração do

pesquisador de mídia Anders Johansen (1997), segundo a qual se ir ao cinema é

como entrar em um mundo de sonhos à parte da existência comum, a localização da

televisão na casa seria parte profundamente importante da “experiência televisual no

tempo da vida cotidiana”. Através da transmissão da televisão na casa, a

simultaneidade do cotidiano doméstico com os fatos externos está mais fortemente

estabilizada do que jamais esteve, uma vez que aquilo que está longe é feito para ser

sentido tanto “bem aqui” em nossa casa, onde nos sentamos para assistir à televisão,

quanto “agora” (Johansen, 1997; Apud Morley, ibidem; p. 182).

Como ainda observa Morley, o atual processo rotineiro e banal de

consumo de informações e imagens de lugares distantes, faz com que,

paradoxalmente, esses lugares distante se tornem tão familiares para nós, nas suas

formas genéricas e pasteurizadas – tais como se apresentam no mundo midiatizado do

consumidor –, que seríamos capazes de pensarmos com certa familiaridade em certas

localidades, como as ruas de Nova York ou as savanas africanas, sem nunca termos

estado lá (Morley, ibidem; p. 14-15). O que equivaleria dizer que – como afirma

Tomlinson – a experiência da modernidade global, para a maioria das pessoas, é

sentida não viajando, mas ficando em casa, contudo, experimentando o des-locamento

que chega até elas. Dito de outra forma, embora a mobilidade seja um importante

aspecto da modernidade global como um todo, a experiência que é mais

verdadeiramente global é, talvez, a experiência da localidade sendo atropelada pela

penetração das forças globais e redes de comunicação. É neste ponto que reside a

distinção entre literalmente viajar para lugares distantes e “viajar” até eles ao falar ao

telefone, através do computador ou assistindo à televisão (Tomlinson, ibidem; p. p. 9,

119, 150-151).

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Sobre a abrangência das tecnologias de comunicação, Virilio vai mais

longe, ao relacioná-la à dissipação da oposição “intramuros”/“extramutos” e à

superação dos limites do aqui ou lá, no que eles podem ter de mais concreto e

“objetivo”, que é a sua materialidade. Para o autor, passamos a assistir a um “fenômeno

paradoxal em que a opacidade dos materiais de construção se reduz a nada” (Virilio,

ibidem; p. 9). Segundo a visão de Virilio, ...

“Privado dos limites objetivos, o elemento arquitetônico passa a estar à deriva, a

flutuar em um éter eletrônico desprovido de dimensões espaciais, mas inscrito na

temporalidade única de uma difusão instantânea. A partir de então, ninguém pode

se considerar separado por obstáculo físico ou por grandes ‘distâncias do tempo’,

pois com a interfachada dos monitores e das telas de controle o algures começa aqui

e vice-versa. [...] À antiga ocultação público/privado e à diferenciação da moradia

e da circulação sucede-se uma superexposição onde termina a separação entre o ‘próximo’ e o ‘distante’ [...].” (Virilio, 1999; p. 10-11).

Se seguimos o raciocínio de Virilio e o desdobramos até à esfera do

habitar doméstico, estaríamos, acaso, considerando que passamos por um processo de

superação do sentido de lugar do habitar doméstico nos termos da sua materialidade,

assim como das implicações diretas desta condição física, ou seja, a experiência do

recolhimento, da privacidade, dos sentidos localizados de enraizamento,

pertencimento e identidade em relação ao lugar habitado?

David Morley parece não concordar com esse desdobramento, uma vez

que sugere algumas ressalvas em relação ao que chama de...

“uma visão um tanto utópica [de vários autores] das possibilidades oferecidas pelas

tecnologias da computação para a transcendência de todas as formas de limitação espacial e social na área do ciberespaço” (Morley, ibidem; p. p. 186).

Segundo Morley, tais autores, “em seus momentos de maior entusiasmo”,

quando argumentam que na “aldeia global” onde habitamos não existe o que se

poderia chamar de estar longe de algum lugar, estendem sua visão para as relações com

o espaço doméstico, afirmando que “casa é qualquer lugar onde você tiver acesso à

internet” (Morley, ibidem; p. 186). Em seu argumento, Morley lembra que “até

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mesmo” John Perry Barlowxxvii – um dos primeiros entusiastas da internet – levanta a

questão sociológica dos não incluídos no ciberespaço: entre uma notável lista, ao lado

de mulheres, estão os velhos, os pobres, os cegos, os não instruídos e o Continente

Africano (Barlow, 1995; Apud Morley, ibidem; p. 186). Morley acrescenta que mesmo

no chamado Terceiro Mundo, apenas as camadas econômicas mais privilegiadas são

as que, geralmente, podem ter acesso à net; e mesmo no rico ocidente, os ricos ainda

seriam mais prováveis a terem um computador do que os pobres (Morley, ibidem).

Pelo menos, no caso do Brasil, tais restrições parecem ocorrer. Em um

levantamento nacional por amostra de municípios, referente a 2005 e divulgado em

2007, o IBGE revelou o peso da escolaridade e do rendimento no perfil da população

com acesso à internet. Dos 32,1 milhões de pessoas que acessavam a rede no Brasil –

apenas 21% do total da população acima de 10 anos – 16,2 milhões eram homens.

Segundo o IBGE, a escolaridade e o rendimento eram os principais fatores

determinantes para a utilização da internet no país. Enquanto o rendimento

domiciliar per capita da média da população de 10 anos ou mais de idade era de R$

333 em 2005, a média para os usuários de internet era de R$ 1 mil134.

...

Em todo caso, por essas considerações sobre a abrangência das tecnologias

de comunicação que acabamos de ver se tratarem, muitas vezes, de constatações de

fatos contemporâneos, cujos efeitos estão sendo verificados em tempo real, suponho

que uma avaliação de sua influência na percepção e no vivenciamento em relação ao

lugar do habitar doméstico demanda, ainda, investigações com uma suficiente

perspectiva de tempo.

De qualquer forma, ainda que este tema, marcado por um dinamismo

quase que simultâneo aos acontecimentos, sem dúvida, venha imprimindo uma

forma sem precedentes de experiência em relação ao espaço e ao lugar – e, com isto,

redefinindo as experiências de lugar e, naturalmente, as formas de percepção do que

é privado e público –, para que se justificasse o aprofundamento de seu tratamento

teórico na pesquisa aqui proposta – e até para que a coerência da proposta fosse

134 “Brasileiros que usam Web ganham três vezes mais, diz IBGE” In Agência CT (Ministério da Ciência e Tecnologia), 23 de março de 2007. In: http://agenciact.mct.gov.br/index.php/content/view/43630.html.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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mantida –, ele teria que ter surgido como elemento fortemente influenciador das

relações estabelecidas pelos entrevistados com seus espaços domésticos. Ao invés

disto, temas como os sentimentos de enraizamento, preservação da identidade e

pertencimento em relação ao lugar habitado se mostraram muito mais

significativamente determinantes para as experiências do habitar doméstico, aqui

relatadas.

Contudo, não estando os depoimentos colhidos totalmente limitados à

tradicional concepção de lugar, segundo a qual as experiências do habitar doméstico

estariam restritas à idéia de localidade geograficamente situada, eles muitas vezes

evidenciaram os sentidos contemporâneos de desacomodação e desvinculamento da

experiência doméstica contemporânea – tenham sido essas considerações referentes a

viagens ou a experiências possibilitadas pelas novas formas de comunicação à

distância.

Os temas salientados acima são objeto de calorosos debates que não cabe

aqui retomar. De qualquer forma, consideremos apenas, por um lado, as

argumentações de Virilio, as quais alertam para o problema “ecológico” do “declínio

de uma geografia”, agora transformada em uma “‘ciência do espaço’ abstrata”

totalmente definida através de interações à distância, assim como para a questão que

decorre deste fato, ou seja, a abolição das experiências motrizes/sensíveis que

qualificam o espaço e o ambiente em que se está (Virilio, ibidem; p. 116-118).

Poderíamos, a princípio considerar que tais argumentações invalidam o tratamento

teórico tradicional a respeito da experiência localizada e “autêntica” de lugar.

Por outro lado, não considerar, para uma nova definição do lugar do

habitar doméstico, as experiências, na esfera da domesticidade, advindas de

interações à distância que dispensam a presença física, seria tampouco considerar o

papel da virtualização das percepções que as tecnologias de comunicação nos

permitem, ao “trazer” para nós a sensação de estarmos em um lugar, sem que

estejamos fisicamente nele. Como diria Pierre Lévy, perceber é “trazer o mundo aqui”

(Lévy, 2003; p. 28). Ou seja, seria, por exemplo, não apenas deixar de considerar o

canal irreversivelmente aberto para a permeação da esfera privada pelo espaço

público, mas também a possibilidade inversa, ou seja, de levarmos nossa experiência

de domesticidade para onde estamos, quando estamos longe de nossas casas.

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O hábito de assistir à televisão é descrito pelo entrevistado Valdir, 50 anos,

engenheiro de seguros, como algo estabelecido no seu ritmo doméstico. Ao chegar

do trabalho, ao invés das interações com a família – cujos membros estão isolados

em suas conexões com o mundo, através de aparelhos de televisão individuais –

sentar em frente à televisão e assistir aos seus programas favoritos tornou‐se, para

Valdir, quase um sinônimo da sensação de relaxamento em casa, depois de um dia

cansativo de trabalho. Estando constantemente viajando a trabalho, Valdir procura

obter essa mesma sensação doméstica, a cada final de jornada, também nos hotéis

onde se hospeda. E o faz através da mesma rotina, assistindo aos mesmos programas

de televisão que assiste em sua casa:

“[...] Não costumo ficar muito tempo fora [viajando] – o máximo que fiquei foi quinze dias –, mas viajo praticamente a cada dez dias. Normalmente, vou na segunda‐feira, e na quinta estou de volta. Posso tanto ir para longe, quanto para o interior de São Paulo. Minha rotina, nessas viagens, é muito desgastante. Muitas vezes, viajo à noite, ou tenho que pegar o avião às seis da manhã, e, pra isso, tenho que sair às quatro da manhã. Esse negócio de aeroporto cansa muito. [...] Eu trabalho andando o dia inteiro, seja no sol, seja na chuva; entra na empresa, e é calor – tem uns fornos nas fábricas –, e é frio... À noite, quando eu chego no hotel, eu quero descansar – é a minha válvula de escape. [...] o quarto do hotel tem que ter é uma boa cama, pra eu poder deitar e saber que estou num lençol limpo, tomar um bom banho; e tem que ter uma televisão – de preferência, com uma TV a cabo. Aí, eu costumo ver os programas que eu vejo na minha casa. Por exemplo, na quarta‐feira à noite, eu sei que tem futebol; aí eu assisto. Também gosto de documentários, aí, normalmente eu vejo ou o Discovery, ou o National Geographic, ou um repórter, um Jornal Nacional. [...]. Às vezes, até gosto de assistir um jornal local, porque é divertido, pra gente saber como é, mas normalmente, vejo os mesmos programas que vejo em casa. [...] [Em casa, quando volto do trabalho,] Eu fico muito na sala, vendo televisão, minha mulher fica no quarto. Tem televisão na sala, no meu quarto, no quarto da minha mãe, que mora conosco, no quarto da empregada, no da minha filha mais velha e no dos gêmeos. Cada um gosta de uma coisa, então, fica cada um no seu canto vendo o que gosta. É muito difícil todo mundo comer junto durante a semana. No jantar, se está passando futebol, eu já pego o meu prato e vou assistir. Na mesa de casa, é tanto controle: é da NET, é da televisão, é da do DVD, é do aparelho de som... Quando chego em casa do trabalho, a primeira coisa é tirar a roupa, tomar um banho, pôr uma bermuda e o chinelo. No hotel, também quero relaxar. Encosto logo

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dois travesseiros na cama, dou uma relaxada vendo minha televisão – e fico bravo quando pego um hotel que não tem controle remoto! [risos], mas hoje em dia todos têm.” (Valdir)

É neste sentido que se pode trazer a observação de Chaney, segundo a

qual passamos literalmente a carregar nossas conexões globais conosco o tempo todo:

como observa o autor, as fronteiras de localização passam, agora, a ser definidas de

forma mais arbitrária (Chaney, ibidem; 15). Ou, ainda, como nos lembra Santos, a

respeito da experiência globalizada de lugar, “cada lugar é, à sua maneira, o mundo”

(Santos, ibidem; p. 314).

A análise das diversas referências ao lugar do habitar doméstico trazidas

nas entrevistas, leva à percepção de que em muitos casos – em particular, das pessoas

inseridas no contexto agitado da mobilidade contemporânea –, talvez o que, de fato,

ocorra seja a combinação da tradicional idéia de lugar – o sentido de pertencimento

ao local físico da habitação – à realidade das mudanças e deslocamentos. Com isto,

teríamos uma nova maneira de estabelecimento do sentido de pertencimento ao lugar

habitado, o qual seria definido tanto pela tradicional idéia de um local específico

como referência de experiências físicas e emocionais, quanto através do mantimento

das relações entre pessoas que estão distantes fisicamente, mas que, através de

telefones, internet, etc., formam uma comunidade, ainda que possivelmente dispersa,

mas que têm em comum uma identidade em relação a um determinado lugar – seja a

casa, o país.

O entrevistado Reginaldo135 exemplifica essa combinação com seu depoimento:

“Eu moro em São Paulo, só que eu passo 90% do meu tempo fora daqui. Tenho clientes no Brasil inteiro e, dependendo dos nossos projetos, tenho que ficar, no mínimo, uma semana fora, [...]. Agora, por exemplo, faz dois meses que estou em Portugal, em Lisboa. [...] Eu passo o dia no cliente e volto muito cansado, à noite, porque a própria natureza do negócio é seguir, o tempo inteiro, um cronograma, que é bem apertado. [...] O cliente quer resultado. [...].

135 Apresentado no Capítulo 1.

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Quando eu chego à noite, pra relaxar, costumo fazer uma caminhada, tomo um banho, e vejo televisão, assisto a um jornal – tem sempre um canal do Brasil na televisão, que eu gosto de assistir. [...] Na verdade, eu nunca fiquei tanto tempo fora, direto, então, quando estou aqui [no Brasil], quero curtir minha família, jantar junto, estar em casa junto. Por exemplo, eu não uso a internet para conversar com a minha família. Mas, eu falo muito por telefone, praticamente todo o dia. Eu gosto de ligar sempre quando estou longe; seja em Lisboa, no Rio de Janeiro, há quinze anos que, quando eu saio, eu ligo todos os dias pra minha família.” (Reginaldo)

A seguir, a narração de Klink, sobre o dia de seu aniversário, passado

sozinho, a bordo do veleiro Paratii, imobilizado pelo gelo do inverno antártico:

“No dia 25 [...] passei por apuros sérios. Eu fazia 35 anos e era o dia do

comunicado semanal com São Paulo. [...] A Cabeluda organizou uma bruta festa

de aniversário, e todos os amigos estavam em volta do aparelho, soprando bolos e

velas, rindo gritando, comendo, bebendo, fazendo uma algazarra pior que a dos

gentoos136. Não tive escapatória e, por mais breve que quisesse ser, acabei entrando

na festa, a cinco mil quilômetros de distância. A querida Zezé e a minha irmã me fizeram abrir cartas e presentinhos escondidos no Paratii desde o ano anterior.

Desliguei o incrível aparelho, meio sufocado, com um certo alívio. Não é fácil

sentir tão próximas as pessoas mais importantes do mundo e estar tão solidamente

afastado. [...] Era um dia especial e eu pensava em como aquele aparelho cinza

escuro, cheio de botões, ligado a uma antena do lado de fora, era capaz de

interligar, através de distâncias tão grandes, sentimentos e pessoas. Por meio

daquela caixa de fios e circuitos, eu podia [...] até soprar as velas de um bolo a cinco mil quilômetros.” (Klink, ibidem; p. 143-144).

O sentido do habitar doméstico

Longe de estabelecer uma discussão maniqueísta entre linhas teóricas mais

ou menos tradicionais, a análise da experiência do lugar, especificamente do lugar do 136 Espécie de pingüim da Antártica.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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habitar doméstico, buscada neste capítulo envolveu uma combinação – ou, talvez, seja

uma linha que oscila, a depender do caso, – entre uma realidade globalizada

(re)definidora do sentido tradicional, localizado, de lugar – na medida em que o

cotidiano doméstico é influenciado pela abrangência das comunicações e dos efeitos

da mobilidade que levam para a experiência doméstica influências de origens bastante

distantes dela –, e realidades de fato localizadas de experiências físicas e emocionais, as

quais são interpretadas através do sentido de enraizamento e pertencimento ao lugar

habitado.

A mobilidade moderna que desacomoda essas experiências localizadas,

ainda que vista, por alguns autores, como uma constante “ameaça” à autenticidade e

ao enraizamento que envolve o entendimento mais tradicional de lugar, está

inextricavelmente conectada à moderna concepção de lugar e, como pudemos

verificar, encontra ecos reais nas experiências de habitar doméstico aqui relatadas.

Desta forma, o lugar contemporâneo, dirá Cresswell, é um “evento” marcado pela

abertura e pela constante transformação e não pelo confinamento e pela

permanência. Mais do que um rótulo pré-estabelecido de identidade – ou, algo cuja

segurança estaria enraizada no sentido do “autêntico”, como propunha Heidegger –,

o lugar seria, hoje, o material bruto para uma constante produção criativa da

identidade (Cresswell, 2004; p. 39).

Lembremos das considerações de Berman, ao apontar para a incessante

força, na vida moderna, de penetração da esfera pública na esfera privada, assim com

da abrangência dessa força, que transforma "as vidas interiores dos homens e das

mulheres que ocupam esse mundo e o fazem caminhar” (Berman, 1987, p. 330).

Neste processo de modernização, dirá o autor, em que o sentido de progresso –

oposto ao sentido de “morte lenta” da estabilidade – é “o único meio de que

dispomos para saber, com certeza, que estamos vivos”, há que se aprender a não

alimentar a nostalgia das “relações fixas, imobilizadas” do passado, mas a se

empenhar na renovação das condições de vida e nas relações com os outros

indivíduos (Berman, ibidem, p. 94). Contudo, lembremos, ainda, do apelo apaixonado

do autor, ao concluir sua análise, quanto à necessidade de lutamos para tornar esse

mundo que a modernização constrói “o nosso mundo”: ainda que diante de um

espírito moderno que incessantemente torna menos palpáveis as referências que,

ainda, tradicionalmente, trazemos e consideramos sólidas, como a nossa casa, a nossa

rua (Berman, ibidem, p. 330).

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Ainda sobre a combinação das tradicionais idéias de enraizamento e pertencimento

ao lugar da habitação com a realidade contemporânea das mudanças e

deslocamentos, o depoimento de Aristides137, cuja profissão de fotógrafo o leva a

estar viajando freqüentemente, testemunha tanto o empenho – partilhado em

família – contra a estabilidade e a favor da renovação das condições de vida de que

nos fala Berman, quanto o sentido de apego ao lugar, dado através da convivência

diária e dos relacionamentos afetivos que estabelece com as pessoas queridas – no

caso de Aristides, o seu filho:

“[...] às vezes, eu tenho que viajar, aí eu fico uma temporada fora de casa, trabalhando, fotografando: quinze dias, um mês. [...] [...] Mas, desde que meu filho nasceu, eu só fiquei fora uma semana, foi o maior tempo. Depois não fiquei mais. Mudei totalmente. Antes do meu filho, eu não sentia falta de nada. [...] Eu e minha esposa estamos sempre querendo renovar, mudar. Com o meu filho, cada dia a gente mostra uma coisa nova pra ele. Quando ela estava grávida, a gente ouvia muita música. Mas, cada dia era uma música diferente. Nós nunca repetíamos a mesma música – estilos diferentes, para ele conhecer. Ele não brinca muitas vezes com a mesma coisa. Uma brincadeira dele nunca é igual à outra. Cada dia é um filme diferente, uma brincadeira diferente. A gente não assiste “Xuxa”, “Teletubies”. É engraçado, a gente conseguiu fazer com o Enzo [o filho] o que a gente queria. Porque a nossa vida já era assim. Cada dia a gente estava num lugar diferente, conhecendo gente diferente. Eu queira que ele fosse assim.” (Aristides)

A seguir, a jornalista norte-americana Maggie Jacksonxxviii (2002), em uma

passagem de seu livro “What’s Happening to Home?”, e Aristides, em mais um trecho de

sua entrevista, dão seus depoimentos sobre os ajustes que se viram obrigados a fazer

para preservar o sentido de lugar do habitar doméstico, quando viram suas casas –

dadas justamente às novas tecnologias de comunicação – serem transformadas em

suas estações de trabalho.

A jornalista Maggie Jackson, após percorrer seu país, cobrindo questões

que envolvem o ambiente de trabalho em empresas, relatou em seu livro a questão

que considerou primordial, e que afetava não apenas as pessoas que vinha

entrevistando, mas a ela própria: a atual indefinição da linha que separa o habitar

137 Apresentado no Capítulo 3.

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doméstico do trabalho, na chamada “era da informação”. Baseada em sua própria

experiência profissional – quando, ao invés de estar em tempo integral no escritório

da uma empresa, passou a trabalhar on-line a partir de sua própria casa, equilibrando

suas atividades de profissional, esposa e mãe ao longo do dia –, Jackson aponta, como

uma questão real, para o número crescente de membros de famílias que se utilizam

das tecnologias de comunicação para poder estar ausentes fisicamente, por parte da

semana, mantendo apenas um contato virtual com os outros membros.

Ao mesmo tempo, a autora sugere situações absurdas para denunciar a

banalidade com que a conexão entre a fisicalidade do espaço habitado e a experiência

emocional que envolve o habitar doméstico vem sendo tratada, em nome da

abrangência alcançada pela comunicação digital:

“Se seus colegas de trabalho vivem em Calcutá ou em Belfast, por que, então, não corrigir a lição de casa de sua filha por fax ou, mesmo levar seu casamento através

do Palm Pilot e e-mail?” (Jackson, ibidem; p. 156).

Jackson diz ter compreendido que o “sentido de casa” envolve algo mais

do que apenas o tempo em que não se está trabalhando, ou algo que fica em segundo

plano em nossas vidas: “envolve um tempo e um lugar intencionalmente elaborado –

momento a momento” (Jackson, ibidem, p. 13-14; 17-18). A seguir, o depoimento

pessoal da autora exprime o processo de conciliação entre a conectividade eletrônica

que a possibilita realizar seu trabalho em casa e casa, no sentido lugar, abrigo para a

“nossa humanidade”. Conforme Jackson, “conexões virtuais podem acrescentar um

relacionamento, mas não sustentam um lar” (Jackson, ibidem, 156).

“Minhas filhas sempre pedem histórias na hora de dormir, e eu, rotineiramente,

brindo-as com carinhos e aconchegos no escuro; contos de fadas e elfos e destemidas

crianças. [...] Nós amamos esta parte do dia. Mas, não muito tempo atrás, ao invés

de ficar, eu me via oferecendo-lhes, às pressas, os últimos goles d’água e, se elas estivesse especialmente falantes, dizia-lhes ‘Vão pra cama! Mamãe tem que

terminar o trabalho dela!’

Isto me fez dar uma pausa. Sempre tive, como prioridade, passar longos períodos

com minhas filhas [...]. No entanto, agora eu via meus prazos de trabalho

invadindo a tranqüilidade da sua hora de ir dormir.

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[...] percebi que as velhas regras de trabalho haviam-se ido, mas estava tendo

problemas em criar outras novas. Mais do que isto, minha vida doméstica mudara

dramaticamente, e eu me perguntava o que eu havia ganhado e perdido neste

processo. Tive a impressão de que se eu continuasse neste caminho, logo eu não teria mais um lar.” (Jackson, ibidem, p. 13-14)

Aristides também reúne em sua casa as ações de morar e trabalhar. Ele e sua esposa

são fotógrafos de culinária, e, como ele afirma, sua vida “é ou fotografando ou cozinhando”. Para isto, entende que, em sua casa, o cômodo principal deve ser a

cozinha. Contudo, Aristides sente que o espaço de trabalho está invadindo seu

espaço de “viver” em sua casa, na medida que traz, como referência de

domesticidade e como sentido de lugar do habitar doméstico, as experiências da

família grande reunida em torno do fogão (eventualmente a lenha) e da mesa,

vividas na casa da infância, para as quais não está tendo o espaço suficiente. Por isto,

planeja mudar‐se para uma casa maior, onde possa estabelecer uma distinção entre

as atividades profissionais e o morar:

“[...] Sou apaixonado por fotografia e por comida. Eu fotografo culinária, então, minha vida é ou fotografando ou cozinhando. Então, na minha casa, o cômodo principal tem que ser a cozinha. Eu e minha mulher temos esse pensamento em comum. [...] A entrada da casa é pela cozinha. Tem a cozinha em baixo e o resto dos cômodos em cima. Na cozinha tem computador, telefone; Tudo o que eu preciso para me comunicar em meu trabalho está lá. [...] Não tenho uma sala de visitas. Tem só uma salinha onde a gente lê, onde a gente pesquisa, que, na realidade, é o meu escritório. Eu recebo meus amigos na cozinha. Lá, eu tenho uma mesa de oito lugares. Ou o pessoal fica na mesa, ou em volta do fogão. Mesmo porque, eu venho de uma família que tem a tradição de ficar na cozinha, família italiana. Tanto é, que na casa dos meus pais não tem cadeira, é banco. Quando não tem ninguém, é vinte, trinta pessoas. [...] A única coisa que está acontecendo, agora, é que nós vamos mudar de novo, mas para uma casa um pouco melhor que essa. Porque a minha casa é o meu estúdio, hoje. Muitas coisas eu fotografo dentro da minha cozinha e já mando pro cliente por e‐mail. Só que, com esta minha cozinha, eu não estou tendo espaço suficiente para trabalhar e viver na minha casa. Por exemplos, na minha cozinha não tem como eu colocar um fogão a lenha, eu quero o meu cantinho a lenha. Mas eu quero a minha

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

223

tecnologia também. Então, a gente comprou um terreno e está projetando. É que eu não tinha um canto pra fotografar; agora eu vou ter.” (Aristides)

...

Retomando a idéia, inevitavelmente embasada nas visões humanista e

fenomenologista de lugar, segundo a qual o habitar dos homens – o seu estar-no-mundo

– está condicionado a laços e ao sentido de apego que esses homens estabelecem com

determinados lugares, vejo como especialmente apropriada a concepção de Cresswell,

segundo a qual a idéia de casa (“lar”, home), é o exemplo de lugar mais familiar e

importante para as pessoas – considerando-se, aqui, todos os significados que venham

a envolver esta idéia. Neste sentido, e ao tratarmos, aqui, do lugar do habitar

doméstico, é que a casa funcionaria como uma metáfora para a idéia de lugar em

geral (Cresswell, 2004, p. 24).

Vendo a idéia de casa, ou de espaço habitado privadamente, como uma

forma elementar e ideal de lugar, Cresswell dirá que o lugar em que se habita

domesticamente está “bem no coração da Geografia Humana”. Com isto, o autor fala

da busca, familiar a quase todas as pessoas, de se procurar “sentir-se em casa” em um

local; de tornar um local agradável para se viver. Mesmo que, em muitas situações,

essa tentativa não obtenha sucesso, sua importância reside no fato de ela ser uma das

principais maneiras pelas quais produzimos um lugar (Cresswell, 2004; p. 93).

É desta forma que o entrevistado Reginaldo, que viaja a trabalho há quinze anos,

ficando, por vezes, longos períodos longe de sua casa e de sua família, procura sentir‐

se em casa nos hotéis em que se hospeda. Ainda que consciente de não estar no seu lugar (mesmo permanecendo “90%” do seu tempo longe de casa), Reginaldo procura

ambientar os quartos do hotel onde permanece morando por um período com

referências que fazem a ligação entre sua casa – seu lugar, sua origem, seus hábitos,

seus laços afetivos, sua identidade – e a efemeridade do habitar esse “não‐lugar”,

que é o quarto de hotel:

“...E o quarto do hotel, por menor que ele seja, acaba sendo a minha casa. [...] eu procuro deixar o quarto organizadinho: eu já estou num lugar diferente, que não é meu, então preciso ter as coisas mais organizadas. A primeira coisa que eu faço, quando chego, é tirar as coisas da mala, coloco no armário, e deixo tudo organizado.

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Tem umas fotos da minha mulher e dos meus filhos que eu coloco do lado da cama do hotel: em vez de eu levar para o trabalho, como lá eu não tenho um escritório... Todo mundo sorrindo, é uma forma de eu estar perto deles...” (Reginaldo)

****

De maneira semelhante, a entrevistada Maria procura dar aos quartos de hotel em

que se hospeda o sentido de lugar:

“Ah... toda vez que eu viajo, eu passo uma certa vergonha porque eu levo muita bagagem. Por exemplo, eu consulto o I‐Ching, então são quatro livros, mais dois livros que eu sempre estou lendo – eu não consigo ler um só livro de cada vez –, e, principalmente, meu notebook, para estar em contato com as pessoas. Esse é meu kit socorro espiritual – que é a minha casa, na verdade. Eu estando com isso, eu estou me reconhecendo; eu consigo, através desses pequenos objetos, imantar o lugar com a minha energia.” (Maria)

****

Retomo, aqui, o caso do entrevistado Lúcio138. Tendo convivido desde criança com

um estilo de vida móvel de sua mãe, o qual foi incorporado às suas relações com o

habitar doméstico já como adulto, levando‐o a não estabelecer vínculos com os

locais onde mora, Lúcio atribui o processo de percepção de lugar a cada local onde

mora não à familiaridade com esses locais, conseqüência de longas permanências,

mas à personalização desses locais feita com os poucos objetos pessoais – estes sim,

imbuídos de significados e valores incorporados – que carrega consigo: minha casa é a minha mochila”, afirma. Por um lado, a personalização do ambiente que o faz ser

percebido como lugar adquire, para Lúcio, o caráter de transitoriedade trazido desde

a infância: de que aquele espaço poderá, a qualquer momento, ser deixado para trás

e aquilo que o torna percebido como lugar está pronto para ser transportado para

outra localidade. Por outro, o fato de esses objetos atribuírem a cada novo local um

sentido de – nas palavras de Lúcio – “déjà vue”, pode, de certa maneira, ser

interpretado como a busca por um sentido de continuidade e familiaridade em

relação aos lugares onde está:

“Já na idade adulta, por muitos anos, morei em flat, aqui em São Paulo – eu tinha a quem puxar, não é? No flat, eu poderia fazer uma decoração interna a meu gosto, ou fazer uma decoração padrão. Eu pensei, vou fazer uma decoração padrão porque à hora que eu quiser sair, saio, alugo, e está dentro do padrão. Aí, mudei muito pouca coisa. O que eu tinha é minha maleta com as minhas coisas, que eu dispunha no

138 Apresentado no Capítulo 1.

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espaço do flat – só isso. Eu não mudei os ambientes – derrubar parede, mudar uma janela, por exemplo –, mas eu levava coisas pra lá, pra mudar a decoração e deixar o ambiente com meu modo de ser, com as minhas coisas. [...] Hoje, a minha casa é minha mochila. Todo mundo dá risada – a mochila tem tudo! Eu posso ir daqui pro Rio, pra Buenos Aires, pra Nova York, com a minha mochila; eu tenho tudo que preciso, essencialmente, ali.” (Lúcio)

****

A seguir, Analu e a esposa de Rui dão seus depoimentos sobre como procuram

personalizar os ambientes em que permanecem – mesmo que por poucos dias – de

acordo com seus padrões de organização doméstica, conforto e aconchego, para,

assim, poderem sentir‐se bem:

“[...] Eu tenho uma coisa, assim: mesmo que eu vá na casa de outra pessoa pra ficar uns dias – eu me acho até chata –, [...] eu tô olhando o que eu tô gostando e o que eu não tô gostando. E eu tenho a manha de remover coisas que eu não gostei, e deixar do meu jeito! Sei lá, eu vou ficar três dias ali, então esses três dias, eu vou alterar tudo, depois eu volto do jeito que tava... mas é pra eu ficar bem ali. Tem a casa da avó do meu namorado [...]. Uma casinha bem simples, bem humilde; e ela tá velhinha, coitada, tem milhões de cachorros, não pode limpar a casa direito. Daí, eu vou lá pra passar o fim de semana e penso ‘eu vou pegar uma doença, contaminada pelo cocô desses cachorros’. É impressionante minha cabeça, às vezes, eu penso ‘pára de ser assim!’. Mas, [...], aí eu faço a faxina, eu arrumo tudo, coisa por coisa num armário, tiro coisa que tá espalhada... Aí, beleza, passou três dias e eu fiquei bem aqui. Onde eu vou, eu tenho essa coisa.” (Analu)

****

“Eu eu levo cinco minutos para fazer o quarto do hotel ficar igualzinho a minha casa: meu criado mudo do mesmo lado, durmo do mesmo lado, deixo as coisas na gaveta e pronto. Eu levo álcool e desinfeto o banheiro. Eu gosto muito de tomar banho em banheira. Então, nós levamos um vidrinho de álcool, pomos na banheira e tocamos fogo pra desinfetar: abre tudo, cortina, toma as providências, e fogo pra desinfetar.” (esposa

de Rui)

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226

A conexão do conceito de lugar à casa pode, também, ser confirmada, se

consideramos os aspectos analisados nos capítulos anteriores, nos quais pudemos

observá-la como um meio que, com sua materialidade, acolhe-nos e às nossas

necessidades físicas e emocionais; incorpora nossos valores e se torna nosso lugar

privado; e nós, por nossa vez, em nosso habitar doméstico cotidiano, passamos a

estabelecer um sentido de pertencimento a esse lugar/casa e a distingui-lo de qualquer

outro lugar no mundo. Desenvolvemos laços especiais com um lugar justamente por

ele ter profundo significado para nós; por nos identificarmos com ele, a ponto de ele

tornar-se parte importante de nós. Este processo é pessoal e ocorre através da maneira

pela qual individualmente construímos nossas noções de lugar (Gifford, 1997, p. 225-

226).

Considerando a casa como o centro de nossa identidade, no sentido de

que, sendo criaturas sociais, ela inclui nosso senso de família ou parentesco, etnia,

pertencimento e status socioeconômico, Gifford dirá que nossa casa é parte

importante de quem somos. E é quando nos vemos ameaçados de perder, ou de fato

perdemos, o lugar que temos como mais querido, ao qual nos vemos mais

intimamente conectados, que se revela da forma mais clara o valor do que se entende

por lugar (Gifford, ibidem, p. 196, 225, 226, 127).

Para chegar no mesmo ponto de Gifford, Azfar Hussainxxix parte do

princípio de que lugares são experimentados pelas pessoas como tais pelo fato de elas

próprias os criarem, os habitarem, os reproduzirem, os celebrarem, os transformarem

e até os destruírem. Com isto, o autor dirá que o lugar apóia e define o ato de Ser; ou

seja, a pessoa se torna o que é, em virtude de estar em um lugar; e um lugar se torna o

que é em virtude de oferecer um possível sentido de identidade a tudo aquilo que

existe naquele lugar. Assim como as pessoas definem os lugares, os lugares definem as

pessoas; ou seja, dirá o autor, “perder o lugar é perder a identidade e vice-versa”

(Hussain, 2006).

A seguir, peço permissão para, novamente, trazer o depoimento de Marly139, dona de

um circo e moradora de um trailer, quanto à sensação de “perder” esse lugar do seu

habitar doméstico:

139 Apresentada no Capítulo 1.

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“[...] Já aconteceu algumas vezes, de ter algum acidente com o trailer, ou você precisar fazer uma manutenção, ter que levar pra fábrica, ficar de uma a três semanas sem o trailer... é horrível, você perde seu chão, é uma coisa muito engraçada... [...] Então, quando você não tem isso, você fica perdida, sem saber onde é o seu referencial. E assim é com todo mundo do circo.” (Marly)

O estado de se ser ou estar sem-casa além de denotar, no sentido mais

básico, a falta de uma habitação, significa, também, “estar ‘sem-lugar’”, ou seja, estar

desconectado dos aspectos específicos que compõem o lugar: falta algo em nossa

existência – o que torna esta condição mais fundamental ainda do que a de se ser

privado de um teto, no sentido restrito desta expressão (Cresswell, 2004; p. 111, 115).

Ao afirmar que todas as nossas ações, públicas ou privadas, são “situadas”, e que há

poucas coisas significantes que podemos fazer que não envolvam o uso de algum

lugar, Peter King acrescenta às considerações acima o argumento de que ser “sem-

casa” é aquela condição na qual todos os lugares – com exceção dos públicos, e

mesmo assim, com restrições, – estão fechados para nós; condição na qual só

podemos estar em algum lugar com a tolerância dos outros (King, 2004; p. 169 e

King, 2003; p. 55).

[...] E hoje nóis pega as paia nas grama do jardim

E pra esquecer nóis cantemos assim: Saudosa maloca, maloca querida

Dim dim donde nóis passemo os dias feliz da nossa vida

(Adoniran Barbosa. Saudosa Maloca)

Tendo passado pelos caminhos normalmente trilhados pelas pessoas que deixam

suas casas para viver na rua, como a exclusão do mercado formal de trabalho, a

perda de vínculos familiares, o alcoolismo, a esperança frustrada de "ser cuidado" e

amparado em sua luta (como aponta Carbone, 2000), e não percebendo sua casa

como lugar de acolhimento físico e referência emocional, a entrevistada Lucélia140

passou a buscar esse apoio através dos eventuais contatos que estabelece e nos

locais que freqüenta em suas vagueações pelas ruas: alguém com quem partilha um

140 Apresentada no Capítulo 2.

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pedaço de calçada para dormir, ou que lhe cede uma manta, ou o funcionário de um

restaurante que lhe dá uma refeição, ou permite que ela use o sanitário, etc.141:

“[antes de ser encaminhada por um Promotor de Justiça à instituição onde mora atualmente] eu saía muito: pegava o ônibus, visitava a minha tia, dizia que ia dormir na casa da minha colega, e não voltava pra casa. E às vezes, eu passava a noite na rua... [Por que?] porque eu queria. Passava da hora, chegava em casa no escurecer – eu tenho medo de descer ladeira –, não tinha ninguém pra descer eu; aí, então, eu ficava na rua. Sozinha. Eu não tinha medo, não. Nunca aconteceu nada. No outro dia, eu voltava, e aí minha filha falava ‘agora que tá chegando?’, e eu respondia ‘é, agora que eu tô chegando’. [...] Eu entrava num restaurante, pagavam pra mim Coca‐Cola, pagavam pizza. Eu pedia dinheiro, também, fora de lá. Eu comprava ovo de codorna – um real, treze ovo de codorna – e comia... sorvete... e assim ia passando o tempo. [...] Eu ia [ao banheiro] no restaurante, na pizzaria. Ia lá, e às vezes ia no banheiro do posto de saúde da Guilherme Cotching142. [...] [Eu dormia] no papelão, com uma manta cobrindo. Deitava um pouquinho, depois levantava, andava um pouco, depois voltava, deitava mais um pouco, até amanhecer o dia. Tinha uma moça, que também dormia na rua, e eu dava o cigarro pra ela. E eu deitava ali e ficava. Sempre no mesmo lugar... e nem levava nada de casa – a manta, eu ganhei de uma mulher; e eu deixava guardada na casa dela. Quando eu chegava, ela me dava a manta, e eu dormia. [...] Uma vez um caminhão pegou os meus dois pé. Saía muito sangue. Nesse dia, eu tava na rua. A polícia dali de perto que me deu socorro. Uma pessoa que conhece a Denise, na firma, viu, telefonou pra ela, ela avisou minhas tia, e minhas tia foram avisar minha filha. E ela foi no hospital me ver. Fiquei internada um mês e quinze dias – só fazendo curativo.” (Lucélia)

141 E aqui, lembro-me de DaMatta, ao afirmar: “nada pior de que ter de fazer uma necessidade fisiológica na latrina pública”; ou ainda, que “pior que tudo isso é, evidentemente, morrer fora e longe de casa” (DaMatta, ibidem; p. 59). 142 A Avenida Guilherme Cotching é uma das vias principais do bairro de Vila Maria, zona norte de São Paulo.

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A partir das reflexões teóricas e dos depoimentos aqui apresentados,

espero ter podido construir um embasamento para a idéia trazida no início deste

trabalho, segundo a qual, o habitar implica o estabelecimento de uma relação

significativa entre o homem e um determinado lugar.

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Parte III

Casa: um lugar sagrado?

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Parte III

Casa: um lugar sagrado?

Sagrada é minha lareira: sagrada seja-te minha casa! (Wagner)143

Ao longo das investigações sobre o lugar do habitar doméstico, vimos a

casa – tradicionalmente associada à autenticidade de relações ali ancoradas e à idéia

de refúgio contra a realidade mundana e superficial – passar a ser considerada sob o

prisma da crescente permeabilidade da esfera privada pela realidade do mundo

público. Ao mesmo tempo, vimos moradores – mesmo os que mais viajam e se

ausentam de suas casas, e que convivem diariamente com a “abertura” do mundo

doméstico às influências da esfera pública – falar do sentido de pertencimento ao

lugar onde habitam domesticamente: sua casa, aquela com a qual se identificam mais

do que com qualquer outro lugar no mundo, na qual se percebem inseridos e

acolhidos para praticar em privacidade, ou ao lado dos que querem bem, a forma

mais íntima de habitar.

Esse sentido de identidade e pertencimento em relação à casa, que

preserva a idéia tradicional de lugar, tal como a vimos definida anteriormente, traz de

volta as primeiras idéias de casa, abordadas neste trabalho: a casa, como um refúgio

seguro e garantia de privacidade e preservação de nossa interioridade; um lugar

central de significados e um campo de cuidados onde lidamos com nossas questões

143 Richard Wagner. “A Valquíria” (Die Walküre), da Tetralogia “O Anel do Nibelungo”. In: http://www.luiz.delucca.nom.br/wep/rw_rn2walkure1_1.html.

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mais íntimas e privadas; onde sabemos que podemos ser nós mesmos, sem as

máscaras que trazemos nas relações estabelecidas no habitar público; onde

encontramos o campo mais adequado para desenvolver nossa individualidade, refletir

em privacidade sobre nós mesmos e sobre nossas vida – percepções que foram

exteriorizadas através de várias entrevistas:

“[...] E aí, a casa é isso, assim. Ela comporta momentos de alegria, de tristeza, de dúvidas, de angústias, de medo... e ela me protege, mesmo. Eu tenho ali, com meu refúgio; tipo assim, graças a Deus, eu tenho esse ponto pra voltar, sabe?” (Analu144)

****

“[...] Mas, chega uma hora que eu quero é a minha casa. Chegar, pôr o chinelo e ficar à vontade. Também, se eu não sair, tá tudo bem; eu tô na minha casa, tá tudo bem. [...] ” (D. Antônia145)

****

“[...] Porque eu sou extremamente caseiro. Eu preciso de uma casa.” (Pedro146)

****

“[...] Porque você pode ir aonde for na cidade, mas você sabe que vai voltar e vai pro seu canto. [...]. Então, quando você não tem isso, você fica perdida, sem saber onde é o seu referencial.” (Marly147)

****

“[...] Você não convida qualquer um, por respeito pela sua casa.” (Hermes148)

Considerando todas estas idéias, exploradas aqui através de dimensões do

habitar doméstico – a casa física, os usos objetivo e subjetivo da casa, privacidade e

intimidade domésticas, o cotidiano doméstico e o lugar do habitar doméstico –, proponho

para esta última Parte, a reflexão sobre um aspecto que surge abarcando todas essas

144 Apresentada no Capítulo 1. 145 Apresentada no Capítulo 2. 146 Apresentado no Capítulo 2. 147 Apresentada no Capítulo 1. 148 Apresentado no Capítulo 3.

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dimensões, e que muitas vezes transparece nos depoimentos aqui registrados: o de ser

essa casa percebida por aqueles que a habitam como uma espécie de lugar sagrado:

Sagrado do Latim sacrátus,a,um: Que não se deve infringir; inviolável; muito

estimado, em que não se deve tocar ou mexer (Houaiss, 2001)

Justamente por esta reflexão abarcar todas as dimensões segundo as quais

o habitar doméstico foi investigado neste trabalho, é que alguns dos trechos de

depoimentos apresentados em capítulos anteriores serão reapresentados aqui, no

sentido de serem novamente observados, agora sob o prisma dessa nova análise.

É comum as pessoas referirem-se à sua casa com a expressão “minha casa é

sagrada!”. Tal expressão transmite o sentimento de profundo respeito e consideração

que elas nutrem por esse lugar estimado, diante da qual as atitudes e atividades

praticadas devem acatar e refletir esse caráter especial, distinto daquele vivenciado no

mundo profano lá fora. Lembro, aqui, da referência feita por Roberto DaMatta à casa

brasileira como “um santuário”, “um espaço infenso ao tempo linear”, imune às

“coisas ‘lá de fora’, do mundo e da rua” (DaMatta, 2000; p.53).

Buscando entender essa percepção além do caráter de extrema

subjetividade que ela envolve, proponho discutir, inicialmente, algumas

considerações teóricas sobre o sentido de sagrado, para, em seguida, analisar o

processo pelo qual esse sentido pode ser aplicado à casa.

O sagrado como uma “quebra qualitativa”

O entendimento do historiador e filósofo Mircea Eliade (1987) a respeito

do “espaço sagrado” e do meio que não pertence a esse âmbito, ou seja, o “espaço

profano”, me parece iluminador para esta questão. E é nesse entendimento que

baseio as considerações que virão a seguir. Considerada sob a ótica do homem

religioso, a distinção entre as percepções do espaço como “sagrado” ou “profano”

elaborada por Eliade dar-se-ia pelo fato de o espaço como um todo – ou seja, o

mundo em que habitamos –, não ser homogêneo em termos de como o percebemos.

Seriam o que o autor chama de “quebras”, “interrupções” em relação à percepção da

neutralidade desse espaço – “sem estrutura, amorfo” –, que definiriam algumas de

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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suas partes como qualitativamente diferentes de outras. Tais “quebras” significariam a

própria revelação do sagrado (Eliade, ibidem; p. 20, 21).

Essa interrupção na homogeneidade do espaço, além de ser uma

experiência religiosa, seria uma experiência primordial de percepção do mundo em

que vivemos, uma espécie de referência que estabelecemos em relação à vastidão desse

mundo: “um ponto fixo absoluto”, dirá o autor, um “eixo central” ao qual se referem

todas as nossas orientações futuras. Partindo da premissa de que as experiências

humanas não podem se realizar, a não ser a partir dessa orientação, Eliade considera

que o espaço em que procuramos fixar moradia tampouco poderia simplesmente

nascer no caos da homogeneidade e da relatividade do “espaço profano”, onde

nenhuma interrupção ou quebra diferenciam as várias partes de sua massa (Eliade,

ibidem; p. 21, 22).

A visão de Eliade aproxima-se da concepção de Christian Norberg-Schulz,

vista no início deste trabalho, a qual vê o estabelecimento do habitar doméstico como

resultado do processo de distinção, na vastidão do mundo público, de um lugar

específico para habitarmos privadamente. Ao mesmo tempo, passamos a ver Otto F.

Bollnow adotar as categorias de Eliade quanto à experiência do espaço sagrado – “um

espaço cheio de forças, significativo” (Eliade; ibidem; p. 20 e Bollnow, 1969; p. 132)149

– para se referir à própria casa do homem como um espaço sagrado. Ou seja, Bollnow,

como Eliade, também trazer a idéia de que o homem não pode viver no caos de um

mundo infinito, pois se sentiria desamparado. E é a partir dessa concepção, que o

autor, atribuindo o caráter da materialidade a essa referência espacial, passa a associá-

la à própria casa do homem (Bollnow, ibidem; p. 117- 118). Assim, se consideramos o

habitar universal como o nosso “estar no mundo”, a casa – nosso centro concreto

nesse mundo – seria nossa referência, o ponto que “apóia” nossa existência no

mundo.

Como observa Bollnow, a própria correspondência entre a visão do

homem religioso, que distingue, no espaço profano, o lugar para erguer o seu templo,

e a do homem comum, ao destacar, no mundo público, um lugar determinado para

habitar domesticamente, já se esclarece etimologicamente. Isto porque a palavra

latina templum, antes de ser usada para designar o edifício, literalmente significava “o

149 As publicações de Eliade e Bollnow, as quais passo, agora, a relacionar, foram lançadas, respectivamente, em: 1956 (Eliade, Mircea: Le Sacré et le Profane) e 1963 (Bollnow, O. Friedrich: Mensh und Raum).

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235

recortado”, “o separado”, “a parte do céu que é recortada pelo vôo das aves, destinada

à interpretação dos augúrios” (Nissen, 1869, Apud Bollnow, ibidem; p. 133, 134).

Analogamente, em relação à distinção de um local para a localização de um templo,

Bollnow nos diz que a construção da casa, nos tempos primitivos, significava “a

fundação do cosmos em um caos” (Bollnow, ibidem; p. 134).

Por outro lado, ao contrário da experiência do sagrado, a experiência do

espaço profano é vista por Eliade como uma existência de eterna relatividade. Isto,

pelo fato de no espaço profano vivermos regidos por obrigações de uma existência na

sociedade industrial, na qual, ao invés de adotarmos como referência o “eixo central”,

qualitativamente distinto e significativo, uma verdadeira quebra no caos do mundo

vasto, adotamos referências efêmeras, a partir dos infinitos lugares "mais ou menos

neutros” desse mundo – os quais surgem e desaparecem a cada momento, de acordo

com as necessidades do dia (Eliade, ibidem; p. 23, 24). E aqui, no intuito de investigar

a correspondência entre a experiência do espaço sagrado e o sentido do habitar

doméstico, considero possível uma relação entre a esta análise de Eliade – sobre a

relatividade da experiência mundana – e o sentido de inautenticidade em relação à

experiência do lugar do habitar doméstico, que vimos anteriormente, pelo prisma da

Geografia Humanista, representado pela mobilidade e transitoriedade modernas. O

desenraizamento, visto por Edward Relph, como uma atitude inautêntica e

meramente conveniente e aceitável pela sociedade (Relph, 1976; p. 82. Apud

Cresswell, 2004; p. 44), poderia, assim, ser relacionado à própria experiência do

espaço profano, tal como aqui vemos descrita por Eliade. Analogamente, poderíamos

identificar uma relação entre a experiência do lugar sagrado, descrita pelo autor, e a

própria experiência do lugar do habitar doméstico, no sentido de ambos serem

percebidos como o ponto de referência que nós, habitantes, distinguimos em relação

ao mundo vasto em que nos inserimos.

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Fig. 15 O lugar do habitar doméstico e a experiência do sagrado

Esta relação, aplicada à casa, como lugar do habitar doméstico, é bem

traduzida nas palavras de Kimberly Doveyxxx, que descreve a casa como...

“um lugar de segurança dentro de um mundo inseguro, um lugar de certeza dentro

da dúvida, um lugar familiar em um mundo estranho, um lugar sagrado em um

mundo profano. [...] um lugar de autonomia e força em um mundo cada vez mais heterônomo, onde os outros fazem as regras.” (Dovey, 1985; p. 46. Apud

Marcus, 1995; p. 189).

... ou de Yi-Fu Tuan, ao chamar sua casa de “céu”:

“Há meia hora, eu estava caminhando pelas margens do lago. Começou a chover,

e eu escapei para dentro do meu quarto. Meu quarto – minha casa – é um céu,

um pequeno mundo que é criado para me proteger da natureza ameaçadora.” (Tuan, 1998; contents)

E esta relação é, também, percebida no depoimento da entrevistada Marly que, a

despeito da opção pela vida nômade do circo, longe de uma casa convencional,

exprime a diferença entre viver em hotéis, deslocada do seu ambiente doméstico, e o

sentido – partilhado por sua família – de enraizamento e pertencimento ao lugar

habitado domesticamente. Tal como ela depõe, seu trailer, antes de tudo, é o

referencial físico e emocional. É a quebra qualitativa na experiência de relatividade

vivida em relação aos outros lugares encontrados no mundo:

centrode

referênciahabitar

doméstico

enraizamentoe

pertencimento

lugarsagrado

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237

“[...] eu adoro morar em trailer. Antes de morar no trailer, eu morei quase dois anos em hotéis, mas não é tão bom. Não sinto falta nenhuma de morar em casa. Eu acho o trailer a melhor opção porque eu tenho o bom da casa e a facilidade de me mover, como ficar em hotel. [...] A sensação que você tem, quando você não tem o trailer, é que você perde o referencial. [...] Você quer voltar pra o seu lugar de descanso, pra onde estão suas coisas. Então, quando você não tem isso, você fica perdida, sem saber onde é o seu referencial. E assim é com todo mundo do circo. E eu percebo isso, também, nos filhos. Os meus dois foram criados no circo – eu vou te mostrar o quarto deles. A gente, às vezes, saía pra algum lugar, daí eles falavam ‘ai, mãe, estou louco pra ir pra casa’: a casa era o trailer. [...] – pra você ver – eu tenho muitos amigos em São Paulo, e, quando vou jantar fora, eles sempre me convidam pra eu dormir lá, pra eu não voltar tarde da noite. Mas eu prefiro voltar, quero ir pro meu canto. Na quinta‐feira, mesmo, era meia‐noite e meia, quando eu saí de uma churrascaria com uns amigos. Uma amiga disse ‘você vai dormir lá em casa’. Mas eu preferi voltar pra cá. E o apartamento dela é enorme, tem um quarto de hóspedes, mas eu prefiro voltar para a minha referência de lar, minha casa, meu espaço” (Marly)

Mas, se voltamos a considerar a permeação do mundo público na esfera

privada, é possível afirmar que o contexto tecnológico (que desloca e desenraiza) em

que vivemos atualmente representa, se não uma “ameaça” – tal como consideravam

as visões tradicionais sobre a experiência de lugar –, é, certamente, uma força

transformadora da percepção da casa frente ao mundo em que se insere. Assim, é

admitindo a inevitável permeabilidade do que chama de “forças caóticas” da

experiência mundana pela esfera doméstica, que Bollnow considera “tarefa

inalienável” a esse homem a luta constante para defender sua morada contra tais

perigos que possam vir a ameaçar a sua condição de lugar de paz e amparo (que pode

ser a da própria experiência do lugar sagrado) (Bollnow, ibidem; p. 129). E a

justificativa para esta consideração está no fato de que, como dirá o autor, mesmo em

nosso tempo profano, o fato de no habitar humano conservarem-se “certos resíduos

insolúveis da vida arcaica” faz com que a casa ainda hoje guarde um “certo caráter

sagrado” (Bollnow, ibidem; p. 130-131).

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Eliade nota que mesmo na experiência da espacialidade vivida pelo

homem não religioso – aquele que rejeita a sacralidade do mundo e que faz sua

escolha em favor de uma existência profana, “desvestida de todas as pressuposições

religiosas” –, essa experiência nunca acontece em seu estado puro. Ou seja, mesmo

que consideremos a vida relativa vivida no espaço profano, esta ainda inclui valores

que, de alguma forma, remetem à não-homogeneidade inerente à experiência do

espaço sagrado. Assim, mesmo para o homem mais francamente não-religioso, dirá

Eliade, existirão “lugares privilegiados, qualitativamente diferentes de todos os

outros”, tais como o lugar onde se nasceu e passou a infância, ou a própria casa onde

se mora com a família, os quais, detentores de uma qualidade excepcional e única aos

olhos desse homem, seriam chamados pelo autor de “lugares sagrados do seu

universo privado” (Eliade, ibidem; p. 23, 24).

Diante destas considerações, é possível identificar a desvinculação do

conceito de sagrado do plano do religioso e sua vinculação a outros lugares e

vivências. Uma vez entendendo-se a experiência do sagrado como uma quebra

qualitativa em relação ao mundo profano, desprovido de referências, penso ser

possível considerar essa experiência também na escala do habitar doméstico em

relação ao habitar no mundo público – uma vez que a casa, para aquele(s) que a

habita(m), é vivida e experimentada de forma distinta de como o são todos os outros

lugares do mundo:

“Home is where one starts from”(Casa é o lugar de onde partimos) (Eliot, T. S.,

1940)150

...

Contudo, a quebra qualitativa que distingue um ambiente doméstico do

mundo público pode, de certo modo, ser percebida não apenas em relação ao nosso

próprio espaço habitado. Podemos, também, percebê-la em outros ambientes

domésticos que não o nosso próprio, assim como somos capazes de perceber a

sacralidade de um templo, mesmo que não partilhemos da fé de quem o erigiu. A

este respeito, Bollnow nos lembra que “até mesmo aquele que costuma tratar a 150 Do segundo, da obra de quatro poemas “The Four Quartets” de T. S. Eliot: “East Coker”, de 1940. In http://en.wikiquote.org/wiki/The_Four_Quartets

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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propriedade alheia com relativa despreocupação, sente um certo respeito ao penetrar

na casa de outro, sem ter sido convidado”. No valor atribuído à inviolabilidade da

morada e em relação à proteção geral da esfera íntima do homem151, Bollnow dirá

que “vibra um peculiar caráter sagrado” (Bollnow, ibidem; p. 131).

Um amigo contou-me que, logo após o falecimento de uma velha tia

solteira, a fim de organizar e dar uma finalidade aos objetos pessoais deixados por ela,

ele voltou à casa onde a tia vivera por quarenta anos. Também ele, por muitos anos, a

visitara e, juntos, tomaram o café da tarde servido na louça que pertencera a sua avó,

mãe de sua tia, de modo que aquele ambiente sempre esteve relacionado aos seus

laços familiares. Por muitas vezes, a tia e ele conversaram à mesa da cozinha, ou

sentados no sofá da sala, e ele ouvira histórias da família, de quando ainda era

criança, ou de quando sequer era nascido. Assim, ao voltar à casa da tia, a visão dos

objetos guardados no armário de porta de vidro, tal como ela trazia com especial

cuidado, a pouca luminosidade dos ambientes, devida ao reduzido tamanho das

janelas antigas, a mistura peculiar dos odores daquele ambiente doméstico, tão

conhecidos para ele, traziam-lhe a sensação quase concreta da presença da tia em seu

vai-e-vem pela cozinha, preparando-lhe o café, colocando-o sobre a mesa – numa

combinação de aspectos, como já pudemos analisar anteriormente, responsáveis por

um profundo sentido de lugar. Tais sensações o levaram à necessidade de,

mentalmente, pedir permissão à dona da casa, ainda que não mais presente, para

entrar. Assim, contou-me que, respeitosamente, procurou – como se, neste momento,

fosse possível – não profanar a sacralidade daquele lugar.

O objeto casa

Se, a partir de agora, voltássemos a considerar a casa objetivamente, ou

seja, afastando-nos o máximo possível de nossas perspectivas pessoais e pondo-nos

além das contingências do eu (Nagel, 1996, p. 13, 14), poderíamos chegar à seguinte

questão: como a casa, algo, a princípio, corriqueiro e comum, adquirível na esfera

profana do mercado, poderia ser experimentada como sagrado? Se esta pergunta fosse

feita aos acadêmicos da área de comércio e comportamento em marketing, Russel W.

151 Aspectos que pudemos analisar no capítulo 3.

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Belkxxxi, Melanie Wanderdorfxxxii e John Sherryxxxiii, a resposta seria que qualquer coisa

– objetos, produtos, experiências, pessoas, ocasiões, etc. – pode tornar-se sagrada; que

a religião é um, mas não o único contexto em que o conceito de sagrado pode ser

utilizado, e que a necessidade universal de experimentar o sagrado, como uma

experiência transcendente, é satisfeita por cada indivíduo, ou grupo de indivíduos, de

formas distintas. Considerando que o sentido de sagrado está relacionado àquilo que

é criado ou revelado como “supremamente significante”, os autores argumentam que,

neste sentido, a sociedade industrializada não seria diferente de qualquer outra (Belk

et alii, 1991; p. 527-528).

O tornar algo sagrado, segundo os autores, seria, em grande parte, “um

processo de investimento”, exercido de várias formas e em diferentes graus de

intensidade ontológica, no sentido de atribuir significados a algo, a princípio

genérico, e transformá-lo, simbolicamente, em algo que, ao longo do tempo, passa a

ser percebido, por aqueles que nele investiram, como sumamente significante.

Partindo desta abordagem, Belk et alii afirmam que a experiência de “transcendência”

do sagrado pode surgir da própria experiência do consumo, na medida que elegemos

certos objetos ou experiências de consumo, a princípio comuns – “simples

commodities” –, como representantes de algo mais do que o algo comum que eles

aparentam ser – o que faz com que tais objetos ou experiências passem a ser

percebidos como o que a sociologia da religião chama de sagrado (Belk et alii, ibidem;

p. 527-528).

Neste contexto, uma vez que a casa, objetivamente, pode ser vista como

um objeto genérico, inicialmente neutro, em termos de percepção valorativa,

poderíamos voltar a perguntar: de que modo esse objeto – o qual, para os propósitos

desta discussão, passo a chamar de objeto casa – passa a prover aos seus usuários a

experiência de quebra qualitativa em relação à homogeneidade e relatividade do

mundo (“profano”) em que ele se inserem? Falar da sacralização da casa é tratar da

transformação do modo como ela é percebida e experimentada por seu(s)

habitante(s), num processo que se dá ao longo do tempo, na relação cotidiana de uso

do espaço habitado, e que tem início no momento em que essa casa, ainda objeto, é

destacada, em meio à relatividade do espaço público – seja por razões de preço,

localização, forma, ou até algum motivo menos objetivo –, para abrigar o habitar

doméstico de alguém.

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Na análise deste processo, passo a utilizar elementos teóricos do estudo

desenvolvido por Abraham Moles, no qual o autor propõe investigar, através de uma

análise da “fenomenologia da relação temporal ser ↔ objeto”, os “mecanismos de

presença e impregnação do objeto no ser”, sob o ponto de vista da recordação desses

objetos pelo indivíduo (Moles, 1972; p. 93-98). Tomo com base a divisão em

períodos, feita por Moles para seu estudo, ao longo dos quais a presença do objeto se

define no ser. Observo, apenas, que a referência que faço ao estudo de Moles não

impedirá que outras posições teóricas sejam agregadas à análise; o que ocorrerá,

especificamente, quando a primeira, voltada aos objetos em geral, for insuficiente às

especificidades da relação do indivíduo com seu objeto casa.

Partamos, pois, do primeiro período proposto por Moles – o desejo de aquisição de um objeto – para estabelecer uma analogia entre sua análise, referente a

qualquer objeto posto a ser adquirido, e a que proponho em relação ao objeto casa.

Essa fase, dirá o autor, pode apresentar-se em forma de um projeto feito em longo

prazo, da necessidade, ou de um desejo impulsivo, passageiro, que passará com o

esquecimento, mas que poderá reaparecer em função de interferências exteriores,

como a força da publicidade, que, à toda hora, trabalha para nos fazer lembrar

(Moles, ibidem; p. 94-95).

É importante a observação de que, para os fins da análise aqui proposta, o

termo aquisição, tal como o considero, não implicará, necessariamente, a compra,

podendo também ser o aluguel ou qualquer forma possível de apropriação de um

espaço físico para a prática do habitar doméstico. Para esta consideração, baseio-me

nos exemplos de depoimentos das pessoas aqui entrevistadas, através dos quais se

verifica que sejam quais sejam as condições de propriedade em que elas se encontrem

em relação ao seu espaço habitado – seja ele próprio ou alugado, permanente ou

provisório, tenha sido adquirido formalmente no mercado, ou simplesmente

“achado”152 – esse espaço físico, pelo fato de abrigar as relações do habitar doméstico

de alguém, já tem implícito na percepção daquele(s) que o habita(m) o caráter de

152 Aqui, lembro da primeira moradia em local fixo da circense Amélia, que foi em um terreno baldio, onde, no trailer que trouxera do circo, ela instalou o dormitório. E em um “barracãozinho” encontrado no próprio terreno, improvisou a cozinha e a sala. A respeito das instalações dessa moradia, Amélia diz: “[...] E aí, eu ia ajeitando e ficava bom. E a minha filha do meio é uma dona-de-casa formidável, garças a Deus. Ela que arrumava tudo”.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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privado e íntimo – aspectos que considero necessário e suficiente para investigar a

transformação da percepção desse espaço ao longo do tempo em que se dá o seu uso.

Uma vez que as necessidades, expectativas e aspirações em relação ao

habitar doméstico envolvidas nessa fase de desejo pelo objeto casa vêm, muitas vezes,

comprometidas com determinações mercadológicas, formuladas para

estrategicamente influenciar quanto a uma determinada idéia ou produto, pode-se

dizer que a relação do indivíduo com o objeto casa (assim como com qualquer objeto

adquirido) ainda se apresenta envolta em um contexto marcadamente profano153.

Como observa Peter King, ...

“passamos de máquinas de morar para máquinas de desejo. Nós não nos

contentamos mais, simplesmente, com em viver em nossa casa; ela precisa nos

prover de muito mais. Ela tem que prover segurança financeira para nós e para

nossos filhos, e ela tem que dizer algo sobre quem somos. Nossa casa é nossa própria propaganda, assim como nossa pensão, e o futuro de nossos filhos.” (King,

2004; p. 115)

No entanto, diferente do que ocorre com a maioria dos produtos que,

expostos nas vitrines, despertam o desejo de consumo ainda relativamente puro de

determinações emocionais, o desejo pelo objeto casa poderá, muitas vezes, já trazer

consigo aspectos relacionados à emoção, definidos pelas circunstâncias em que este

desejo tem origem. Ao lado disto, esse desejo muitas vezes envolve tal investimento

em dinheiro que, por si só, já torna sua realização um evento especial: esperado com

ansiedade, acompanhado de economias e renúncias a outros desejos.

A seguir, apresento trechos de depoimentos que relatam o “desejo” dos

entrevistados por adquirir um novo “objeto casa”. É interessante notar que, ainda

que as narrações sobre esse desejo venham acompanhadas de razões práticas,

aparentemente neutras de significados emocionais, muitas vezes, a essas

considerações vêm conectadas memórias emotivas – felicidades e tristezas,

realizações e frustrações – de outras moradas. Mais do que isto, o desejo de uma

153 Numa contextualização mercadológica, Nestor Goulart dos Reis Filho (1970) afirma que os padrões de uso e de comercialização se correspondem forçosamente, à medida em que as pessoas só compram aquelas casas que imaginam serem de fácil e imediata revenda em caso de necessidade.

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casa nova vem acompanhado de sonhos e planos tanto de se viver alguns aspectos

de um bem‐estar doméstico já vivido, quanto de, se possível, evitar (re)viver e

superar experiências tristes ou frustrantes de moradas passadas. Como

poeticamente nos fala Gaston Bachelard, “os verdadeiros bem‐estares têm um

passado”, sendo que “todo um passado vem viver, pelo sonho, numa casa nova”

(Bachelard, 2003; p. 25):

“[...] É curioso, porque, agora, mesmo aqui em São Paulo, eu estou planejando mudar

para um lugar que tenha uma área aberta ao ar livre, que tenha ou um quintal, ou

uma sacadona, um terração, alguma coisa assim. Agora, acho que é a minha busca da

infância. A minha família sempre esteve ligada à área rural, e eu passei a infância

convivendo com isso. Em uma certa altura da minha vida, tudo o que eu não queria

era continuar com isso, então eu negava de todas as maneiras. Eu queria me manter

longe daquilo. Agora, que eu percebo que não tem mais perigo, estou procurando

reencontrar aquelas sensações. Que louco, né?

Nessa futura casa, eu também queria ter mais espaço, mais armários, pra guardar minhas coisas. Esse meu apartamento é bem pequeno. Eu sou muito bagunceiro; aí, eu queria ter espaços pra ir pondo as coisas que eu, naquele momento, não tô tendo tempo de resolver, de trabalhar: pra guardar lá, até chegar a hora de lidar com aquilo. Eu também funciono assim, sabia? Na minha cabeça tem um monte de gavetas aonde eu vou guardando os meus projetos. Você acredita que eu tenho projeto pra daqui a vinte anos?” (Márcio154)

****

“Eu não quero luxo, só coisas que, quando você mora num lugar... o mínimo que você precisa pra morar é ter um fogão e poder cozinhar, poder comer sossegada, poder lavar sua roupa. [No pensionato] eu tenho que cozinhar escondido, pra ninguém ver, porque se ela pega, tenho que ficar escutando três horas na minha orelha, sabe? [...] Se der certo um trabalho que eu tenho em vista, o ano que vem eu quero sair de lá e alugar um apartamento. Mas vou ter que dividir com uma outra pessoa porque não tem como morar sozinha aqui em São Paulo, por enquanto: é muito caro... Mas eu vou querer um quarto só pra mim. Eu quero escutar o meu som mais alto, ou

154 Apresentado na Parte I.

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estudar... eu quero o mínimo de privacidade, e acho que um quarto só pra mim é o ideal.” (Júlia155)

****

“Eu não sou arquiteto, mas sabia o que queria, e pedi para fazer: primeiro eu queria uma puta de uma cozinha: minha casa ser só a cozinha. Mesmo porque, eu venho de uma família que tem a tradição de ficar na cozinha, família italiana. Tanto é, que na casa dos meus pais não tem cadeira, é banco. Quando não tem ninguém, é vinte, trinta pessoas. [...] A única coisa que está acontecendo, agora, é que [...] a minha casa é também o meu estúdio, hoje. [...] Só que, com essa minha cozinha, eu não estou tendo espaço suficiente para trabalhar e viver na minha casa. Por exemplo, na minha cozinha não tem como eu colocar um fogão a lenha, eu quero o meu cantinho a lenha. Mas eu quero a minha tecnologia também. Então, a gente comprou um terreno e está projetando. É que eu não tinha um canto pra fotografar; agora eu vou ter.”

(Aristides156)

****

“[...] se eu fosse falar ‘eu quero um espaço pra mim’... eu acho bacana pensar em criar o próprio espaço: ‘eu quero isso assim, eu quero isso assado...’. Hoje eu seria capaz de fazer isso. A minha vida, nesse aspecto, vai‐se modificando; isso, comigo, veio lentamente. Agora, por exemplo, eu já acho que morar em flat, não dá mais. É uma invasão muito grande, você não tem privacidade nenhuma. [...] E eu não agüentaria mais um espaço tão pequeno. [...] Então, qual seria o meu ideal de apartamento? Seria um penthouse aberto, com muita vista, num lugar alto, de onde eu pudesse ver o mundo. Eu não gosto de divisõezinhas, eu não gosto de nada disso. O meu apartamento de São Paulo é cheio de divisõezinhas, mas não fui eu que fiz! Mas, se você me pergunta, se eu fosse fazer um apartamento pra mim, a vista seria essencial! O quê, de lá, eu consigo ver, como um observatório. Outro dia, eu fui alugar um apartamento para um funcionário meu, alugamos um aparamento com uma vista!! Aí, você fala ‘mas o apartamento é a vista?’... a vista é 99% do apartamento! Não interessa o que tem dentro! Eu gosto de uma coisa ampla – aí, sim – onde eu possa me situar. Se eu pegasse um apartamento

155 Apresentada no Capítulo 2. 156 Apresentado no Capítulo 3.

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de cinqüenta metros quadrados, eu queria ele totalmente aberto, sem parede, sabe? É assim que eu me sentiria bem.” (Lúcio157)

****

“Quando eu voava, morávamos em apartamento. Eu ficava muito tempo fora; e era meio incerto. [...] Eu me sentia muito mais seguro, a Aidê [esposa] e as crianças estando em um apartamento. [...] O meu sonho era, na hora de me aposentar, ir‐me embora para uma casa. Você quer serrar uma madeirinha, você não pode fazer num apartamento; Você quer ouvir um som mais alto, numa casa você tem mais liberdade.” (Hermes)

****

“Antes, nós morávamos numa casa muito grande, muitos cômodos. Só de banheiro, eram oito! Era muito grande pra nós – eu, meu marido e a minha mãe. Meu filho, já em julho de 77, ele casou. Aí, achamos que a casa era muito grande pra nós. Só de banheiro tinha oito! Era muito cansativa! E eu não queria mais depender de empregada. Daí, eu comecei a procurar uma casa menor. Eu saía com o corretor e ia procurando. Nós pensamos, inclusive, em mudar para um apartamento, mas o meu marido queria ter as plantas dele, mexer nas orquídeas dele... Teve uma outra casa que eu gostei mais do que esta. Eu vou falar – sabe por quê? Porque ela tinha uma escada de mármore branco. Eu acho muito bonito. E ela também tinha garagem coberta, que esta não tinha.” (D. Antônia)

****

[Com relação a uma casa, se você pudesse realizar um ideal, o que seria?]

“Voltar a ter minha residência: com os quartos das crianças, uma suíte, com a sala, com os banheiros... Eu morava num apartamento em Moema, tinha um padrão razoável, não era um padrão baixo. Era um apartamento com dois quartos – dois dormitórios, né? Mas tinha o lazer das crianças, que hoje não tem. Você, num apartamento muito antigo, as crianças têm que ficar dentro de casa tam‐bém – pra ajudar! [...] E também, eu tenho o objetivo de ter a minha casa. Hoje, ele está um pouco distante mas, não ter a própria casa pesa. É uma questão de segurança, você vai

157 Apresentado no Capítulo 1.

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envelhecendo, sem casa..., você não tem como pensar ‘isso aqui é meu, patrimônio

meu, ninguém mexe’.” (Alencar158)

****

“[...] eu tinha a necessidade da casa própria; porque eu não tinha um apartamento, eu não tinha onde morar. Porque a gente está num país onde um segundo imóvel é bobagem, mas o primeiro é fundamental. Você não tem o menor seguro pra sua velhice. Eu sou autônoma, o sucesso é uma coisa muito louca; ele vem e vai, vai e vem, você nunca sabe o que vai acontecer, nem quando. [...] E eu estava casada, na época, mas sabia que esse casamento não ia durar. Então, também era o momento em que eu estava precisando ‘desmisturar’, ‘dessimbiotizar’ minha energia, me reconhecer.” (Maria159)

O próximo período da análise de Moles – a aquisição – é identificada pelo

autor como a fase do “nascimento fenomenológico do objeto para o sujeito”. Aqui,

dar-se-ia “a catarse do desejo, a passagem do objeto de um universo coletivo à esfera

pessoal”. Carregada de emoção, essa fase marca o ponto em que se opta por uma

entre todas as alternativas possíveis: um “ponto de não retorno”, diria Moles. O autor

ainda observa que, ao longo do processo de vida do par objeto ↔ indivíduo, o

curioso é ser a compra “o auge da alegria consumidora” – justamente quando este é o

momento de um contato ainda “indireto e longínquo”. E o curioso é, justamente, o

fato de se amar o que ainda não se conhece – o que acaba por levar a uma “alienação

pelo objeto”. Ou seja, sentirmo-nos inebriados por algo que, na verdade, não é mais

que uma imagem que construímos, inspirados por sentimentos remotos – “um

fantasma” (Moles, ibidem; p. 96). Das narrativas colhidas, duas exemplificam as

circunstâncias do “auge da alegria consumidora” de que nos fala Moles:

A entrevistada Maria descreve o estado de grande satisfação em que se viu pelo fato

de ter satisfeito o desejo, há muito acalentado, de ter um imóvel como segurança

financeira, e de, ao mesmo tempo, poder “se reconhecer” em um espaço seu:

“[...] Então, me deu segurança saber que eu tenho um capital empatado neste imóvel – que, por um acaso, foi procurado com essa visão. Este lugar aqui é um

158 Apresentado no Capítulo 3. 159 Apresentada no Capítulo 1.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

247

cheque ao portador. Eu não levo três meses sem ter, pelo menos, umas duas propostas de gente que queira comprar. E isso é uma coisa que me deixa muito legal. [...] Aí, eu me separei e vim pra cá. Eu comprei esse apartamento em outubro de 95 e mudei em maio de 96. Porque eu fiz uma reforma na cozinha. Quando eu entrei, eu estava dura, tinha raspado o tacho pra poder pagar o apartamento, a reforma, tudo. Aí, não tinha dinheiro pra decorar, pra fazer nada. Mas, olha, só ter este espaço já estava sendo, pra mim, um grande barato, entendeu? ” (Maria)

****

Após descrever o processo de “desejo” pelo apartamento em que mora, a

entrevistada Analu diz da satisfação em ter esse desejo realizado:

“[...] antes, morava uma amiga minha nesse apartamento, e quando eu vinha de Tatuí pra cá, pra trabalhar na escola, eu já ficava ali, eu já dormia com ela de quarta pra quinta. Mas, já na época da minha amiga, que eu cheguei no ap, eu olhei e eu gostei. Era uma sala grande, retangular, o quartão, cozinha legal, tal. E aí – ela era americana –, o pai dela faleceu e ela voltou. E, já naquele impasse de eu vir pra cá, eu acabei ficando ali. Então, é super‐bacana porque, na verdade, eu achei que ele veio pra mim!” (Analu)

O próximo período – descobrir o objeto –, como observa Moles, envolve um

ritual de descoberta do objeto recém-adquirido:

“O objeto está agora em minhas mãos, empacotado, condicionado, completamente

novo, todo preparado para o sacrifício [...]. Eu corto o barbante do pacote, rasgo o papel, desmonto as embalagens e caixas, desfaço suas colagens”. (Moles, ibidem;

p. 96)

É nesta dinâmica de descobertas, onde estarão as apreensões cognitivas e

tentativas ligadas a déias ou imagens pré-concebidas sobre aquele objeto (Moles,

ibidem):

Apesar de o desejo da entrevistada D. Dalma160, de se mudar para um asilo para

idosos, não ter sido gerado em função dos aspectos concretos, de objeto, da

160 Apresentada no Capítulo 2.

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248

instituição (seu espaço físico, seu preço, etc.), ele teve origem na expectativa dela, de

encontrar na nova moradia determinadas condições funcionais do habitar doméstico

– especialmente no que dizem respeito à liberdade e à autonomia nas atividades do

cotidiano doméstico – que D. Dalma perdera quando passou a morar de favor na

casa da irmã e do cunhado. Tomada a decisão de se mudar para o asilo, ela relata o

receio que teve de não ter tomado a decisão correta, de que a imagem construída da

nova moradia não correspondesse à realidade do “objeto” adquirido:

“[...] Eu achava que eu ia encontrar uma série de coisas que eu já não tinha: por exemplo, a liberdade de fazer tudo, como se fosse a minha própria casa. Mas aí, eu pensava ‘mas não pode ser igual, porque eu não vou ter uma cozinha pra mim, eu

não vou ter que fazer isso, eu não vou ter onde fazer aquilo, eu vou ter que dormir

em companhia de pessoas totalmente estranhas’. No que se refere à alimentação, eu ficava pensando ‘não vai ser como em casa, será que eu vou comer disso, será que eu

vou comer aquilo, como vai ser?; e como é que eu vou fazer, como é que eu vou me

entrosar, será que eu vou me acostumar, será que não...’ Iiihhh... horas!” (D. Dalma)

A seguir, Dalma relata seu “ritual de descoberta”, de que fala Moles:

“[...] Mas, eu achava que tinha que esperar o próximo dia: ‘não, espera mais um dia,

e mais um... ’; e assim foi‐se passando, eu fui me ambientando, fui vendo que não era tão horroroso como eu achei que pudesse ser, e, olha, já faz quatro meses que eu estou aqui. [...] Eu acho que no fim, no fim, ficou muito bom. Eu dei sorte de ter duas companheiras de quarto silenciosas à noite. Meu quarto é muito bem arrumadinho, elas são cuidadosas, não jogam roupa, sapato... Cada uma tem o seu armário, dentro tem três gavetas, a gente acomoda as coisas que a gente trouxe.” (Dalma)

Ao descrever a fase seguinte à descoberta do objeto adquirido – o gostar

[ou deixar de gostar] do objeto – Moles fala que o prazer de possuir o objeto diminui ou

se torna menos intenso a partir do momento em que seu usuário passa,

progressivamente, a descobrir seus defeitos ou inadequações em relação às

propriedades, características e qualidades, mais ou menos idealizadas, do que

consideraria um “objeto perfeito” (Moles, ibidem; p. 96-97).

E, conforme observará Robert Gifford, a satisfação dos usuários em

relação à sua casa está relacionada não apenas à comparação com um modelo

idealizado, mas, também, com as casas experimentadas anteriormente. Segundo relata

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o autor, estudos em que usuários são estimulados a avaliar suas residências mostram

que eles não conseguem, ainda que implicitamente, evitar essa forma de comparação

(Gifford, 1997; p. 200). De acordo com a arquiteta e psicóloga Gleice Elali, o contato

direto e cotidiano do usuário com seu – aqui chamado – objeto casa, transforma esse

indivíduo em um “crítico severo e abalizado” deste objeto. Sob a ótica dos aspectos

perceptuais da relação pessoa-ambiente, ainda que se trate de opiniões leigas – pois,

em geral, os moradores do objeto casa serão “pessoas comuns”, e não “especialistas”

em habitação –, a função uso habilita os moradores a realizar tal análise, sendo suas

percepções individuais elementos determinantes na avaliação do objeto (Elali, 1997).

Neste, talvez mais do que nos outros períodos ao longo dos quais se define

a presença do objeto casa em seu habitante, sobressaem-se, nas falas dos entrevistados,

os aspectos relativos às particulares necessidades, expectativas e aspirações, tanto em

relação à fisicalidade do objeto propriamente dito, quanto no que se refere às relações

emocionais ali estabelecidas; aos aspectos da intimidade, definidos através do uso

cotidiano privado; ao próprio sentido de lugar, estabelecido através de todas essas

relações. Assim, passado o estranhamento em relação ao objeto adquirido da fase

anterior, as relações de gostar – e de deixar de gostar – especificamente do objeto casa

passam a ser uma mescla dos aspectos que se referem à objetividade desse objeto com

aquelas que ultrapassam os aspectos concretos de sua fisicalidade.

Inseridos física e emocionalmente em nossas casas, passamos a avaliar, ao

longo do tempo, de que maneira e com que intensidade essa inserção atende – e se,

de fato, atende – às necessidades funcionais e expectativas estéticas que temos em

relação ao nosso objeto casa. Da mesma forma, o tempo também se encarrega de nos

mostrar se o habitar que praticamos ali propicia o acolhimento de nossa subjetividade

e o nosso desenvolvimento como indivíduos. Com relação a estas últimas

expectativas, Clare C. Marcus afirma que é justamente quando não podemos obter

este retorno do lugar onde nos inserimos domesticamente, que pouco passa a

importar quão bonita ou espaçosa é nossa residência (Marcus, 1995; p. 212).

Retomemos alguns trechos de depoimentos em que se verificaram tanto a

satisfação quanto seu eventual decréscimo – ambos revelados através do uso cotidiano

dos objetos casas – por se ter essas expectativas correspondidas:

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250

Por anos, o entrevistado Rui161 viveu com mulher e filho em um apartamento que,

agora, descreve como “pequeno”. Segundo ele, a configuração espacial do antigo

apartamento não atendia à preservação da privacidade das atividades íntimas em

relação aos setores social e de serviço – uma necessidade que, com o passar dos

anos, passou a ter grande importância na relação estabelecida por ele e sua esposa

com o espaço habitado. Não tendo essa necessidade atendida, Rui mudou‐se para o

apartamento atual, cujo agenciamento do espaço interno, que permite a preservação

das atividades praticadas no setor íntimo, é visto como motivo de grande satisfação

em relação ao seu atual objeto casa:

“[...] No outro apartamento, que era pequeno, não tinha essa separação, e eu tinha um monte de reuniões do trabalho que iam até à uma hora da manhã; e era um inferno pra minha esposa, que ficava lá no quarto. Da sala, você via parte do meu quarto. Então, invadia a intimidade. E este [apartamento] se tornou completamente funcional nesse sentido. Então, é essa identidade que você tem, que te faz bem, que você se sente protegido. [...] E aqui é o nosso quarto. Veja a distância que está da sala!” (Rui)

Contudo, o depoimento de Rui deixa claro que as razões da satisfação com seu

apartamento transbordam da esfera objetiva – de um layout mais adequado –, para

as esferas da subjetividade e da emotividade, quando ele chama sua casa de seu

“útero”:

“[...] Depois de uma temporada fora, a sensação de voltar para casa é de como se eu voltasse ao útero, porque o útero é tudo aquilo que você tem como proteção: você vem dali, você nasce dali. Então, a ausência fora de casa é exatamente você estar em uma barriga de aluguel; não é o seu útero: desculpe‐me a metáfora, mas é exatamente a sensação... [...] Aqui, por exemplo, este apartamento se identifica com aquilo que eu imaginei para mim. Você quer conhecer o apartamento para eu te dizer porque eu gosto dele, porque eu acho que ele é meu útero?” (Rui)

Ao apresentar os espaços internos de seu apartamento, as palavras escolhidas por

Rui expressam a busca pelos sentidos de intimidade, privacidade e recolhimento, tão

profundamente importantes para ele. E o ato de mostrar seu quarto e seu sanitário,

partes que considera o âmago da imagem metafórica de “útero” – “minha 161 Apresentado no Capítulo 2.

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intimidade”, “meu quarto”, “meu boxe de tomar banho, onde eu fico nu” – pode

perfeitamente, aqui, ser entendido como a revelação de um espaço sagrado para ele.

Assim, a presença de alguém que quebra a harmonia construída nesse ambiente, tal

como descreve o evento do conserto de seu banheiro162, mais do que como uma

invasão de intimidade, é sentida como uma verdadeira profanação desse ambiente.

A seguir, revejamos trechos das falas dos entrevistados Analu, Maria e Lúcio que

trazem aspectos objetivos sobre seus objetos casa, os quais se mesclam com razões

subjetivas, para explicar o “gostar [ou não] do objeto”:

“[...] Mas, agora, esse apartamento, eu acho que eu acabei adaptando ele como um refúgio, e isso perdura até hoje, porque é um espaço bacana – [...]. Ele tem a minha cara, mesmo. Quem chega, quem me conhece, fala assim ‘pô, é a tua cara’... o clima, a energia, a distribuição das coisas. E ele é muito silencioso, ele é espaçoso... eu gosto – gosto dali.” (Analu)

****

“[...] Aí, eu tive um apartamento alugado pequenininho, um estudiozinho, que você não entrava na cozinha – só entrava o seu braço na cozinha. [...] E ela [uma amiga] disse, ‘nossa, mas é um lugar tão pequeno’. E eu falei, ‘mas, pra mim, é um palácio! É

tudo o que eu preciso’. E eu fiquei muito intrigada porque tinha um canto, que era o que eu mais gostava da casa, que era uma espécie de um terracinho, onde entrava muita luz, e que era o canto mais bagunçado. O lugar mais bonito e que eu mais gostava era o lugar que tinha mais bagunça. [...] eu gostava tanto, que, na verdade, eu depositava tudo ali. Depositava coisas que eu estava sem a menor capacidade pra administrar.” (Maria)

****

“[...] Eu aluguei, uma vez, um apartamento na Praça Roosevelt. Era um kitchenette. Olha só: tinha um banheiro, uma cozinha – que eu mal usava, mas esquentava o café – e uma sala grande, uma sala bárbara. Aquele apartamento era uma porcaria, mas a praça, na frente, que era legal. Você se fecha numa caixa porque você quer, não é? É necessário ter visão, olhar longe – adoro ver a extensão!” (Lúcio)

O próximo período – habituar-se com o objeto –, o qual tratarei

juntamente com o seguinte – conservar o objeto –, dá-se pela freqüência de utilização do

objeto em nossa vida cotidiana. Uma vez que já temos e exploramos o objeto, a fase

162 Relatado no Capítulo 3 – Privacidade e intimidade domésticas.

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seguinte é a de nos habituarmos a ele, num processo em que passamos a vê-lo,

progressivamente, sair de nossa percepção consciente, em uma espécie do que Moles

chama de “depreciação cognitiva”. Ao mesmo tempo, neste período, podemos ver

diminuir o prazer de possuir esse objeto e passar a avaliá-lo, através de suas condições

– está “velho, usado, murcho, triste”? – a possibilidade do seu eventual descarte.

Neste caso, observa o autor, a própria sociedade consumidora, o prestígio social e os

meios de comunicação de massa contribuem com critérios de aceitação do objeto –

preservando e fortalecendo ligações que estabelecemos com ele – ou, então, para a

sua rejeição. Contudo, a avaliação seria feita a partir do conjunto desses critérios

sociais mesclados aos valores individuais dos usuários, criados em seu próprio

ambiente ou – na expressão usada por Moles –, em sua “concha pessoal” (Moles,

ibidem; p. 97-98).

Havendo a superação de uma possível tendência ao descarte do objeto,

chegamos à fase seguinte – o conservar o objeto –, na qual se dá a tomada de decisão

de investirmos atenção, em forma de cuidados, reparos e “atos positivos” no objeto,

revelando-se, assim, a esperança de vida que nele depositamos – seja essa esperança

em função de nossa cultura ou mesmo do preço relativo do objeto (Moles, ibidem; p.

98).

Optei por tratar esses dois períodos – habituar-se com o objeto e conservar o

objeto – conjuntamente por considerar que, juntos, eles configuram o momento em

que as relações indivíduo ↔ objeto genérico e indivíduo ↔ objeto casa, estabelecidas

ao longo do tempo, começam a não poder mais ser analisadas nos mesmos termos, tal

como, de certa forma, pudemos fazer até agora. O valor material do objeto casa já o

diferencia da categoria de objetos descartáveis. A este fato acrescentem-se os

significados subjetivos que atribuímos, ao longo do tempo, à casa em que habitamos.

Neste momento, ambos os argumentos tornam-se importantes influenciadores para

que o resultado da avaliação que fazemos dessa casa seja não o descarte, mas a decisão

de conservá-la.

Ainda assim, é perfeitamente aplicável à nossa análise, a consideração, de

acordo com o estudo de Moles, de que uma relação de investimentos do usuário

sobre o objeto – neste caso, o objeto casa – faz com que ele torne a impor sua

presença, revigorando, assim, a conexão com seu(s) usuário(s) (Moles, ibidem; p. 98).

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Os depoimentos de Maria e Reginaldo exemplificam, com particularidades, suas

decisões por “conservar” e “investir” em seus objetos casa:

“[...] A minha casa é bem antiga. Tem umas coisas que eu quero mudar e estou juntando dinheiro pra isso. Tem uma copa, num lugar esquisito, com um quarto que dá pra ela – isso eu quero mudar. É uma casa térrea, e eu penso em fazer mais um andar, transformar em sobrado. Mas, o que mais me agrada nela é o quintal, que não é grande, mas é um lugar muito gostoso. Tem uma parte coberta e uma descoberta. Eu gosto de ficar ali sentado lendo um jornal, conversando, junto com a minha esposa. Tem um cachorro... É um lugar agradável – disso eu sinto uma falta louca!...”

(Reginaldo)

****

“[...] Eu pensei em vender este [apartamento] aqui, mas pra comprar uma casa em Alphaville. Hoje em dia, quando eu penso nisso, dou graças a Deus de não ter dado certo, porque eu não dou certo com aquele lugar. [...] [...] Mas, também, eu adoro esse espaço. Quando eu comprei esse apartamento, eu só reformei a cozinha – depois eu te mostro –, porque, realmente, era muito antiga. Agora, eu quero reformar a parte interna. Eu tinha pensado um monte de coisas, queria colocar um ofurô aqui, na varanda, pra curtir mais ela; botar um chuveiro ali, fazer uma coisa meio esportiva. Resolvi não fazer o ofurô porque ninguém sabe direito, não existe uma planta original, e eu sei que água pesa muito. Mas eu vou botar uma banheira aqui dentro.” (Maria)

A sacralização do objeto casa

A partir deste momento, desviamos-nos da análise de Moles e passamos a

falar da relação temporal entre habitante e seu objeto casa como uma gradativa

percepção desse objeto – que, ao longo do tempo, passa por investimentos materiais e

emocionais de seus usuários – como algo sagrado. Retomemos o argumento de Belk

et alii, segundo o qual através da ação de investimentos (termo também empregado por

Moles), algo, a princípio corriqueiro e comum, poderá tornar-se e manter-se sagrado,

no sentido de atender à necessidade de uma experiência que “transcende à [nossa]

existência de mero ser biológico lidando com o mundo diário” (Belk et alii, ibidem; p.

258; 513).

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Parto do princípio que é através do uso cotidiano da casa que se dão, ao

longo do tempo, os investimentos que fazemos nela. Investimos em nossa casa no

sentido tanto de podermos continuar contando com o bom funcionamento do nosso

abrigo físico, como de obtermos desse abrigo a experiência de uma entidade única,

que acolhe incondicionalmente nossa subjetividade, propiciando nosso

desenvolvimento como indivíduos, guardando nossos segredos mais íntimos; enfim,

restaurando-nos e preparando-nos cotidianamente, em termos físicos e emocionais,

para o habitar no mundo público. Visto desta forma, o habitar doméstico cotidiano

passa, então, a ser considerado não apenas como propiciador da percepção da casa

como lugar sagrado, mas também como revivificador dessa percepção: o retorno

diário ao ponto de referência, a entrega – alma e corpo – que fazemos todos os dias, em

busca de uma quebra qualitativa em relação à relatividade do mundo profano “lá

fora”.

Contudo, é preciso dizer que o processo de investimento que leva à

sacralização do objeto casa já pode ter início antes mesmo de nos mudarmos

fisicamente para essa casa, ainda nas fases anteriores, em que se dão os primeiros

lampejos de desejo por esse objeto (período que Moles tomaria como primeiro

momento da relação ser ↔ objeto). Até passarmos a ocupá-la, já vimos investindo

não apenas nossas economias, mas nossas expectativas, tanto racionais quanto

emocionais – e muitas vezes misturadas –, de termos encontrado, diante de todas as

possibilidades que se nos apresentavam viáveis (em termos econômicos, espaciais, de

localização, etc.) o lugar onde melhor poderemos ver atendidas as funções de nossa

vida privada, onde encontraremos as melhores condições para estar em paz e

encontrar o consolo e o acolhimento e o restauro de que necessitamos no nosso dia-a-

dia. E, aqui, relembro as considerações de Bollnow sobre o ato de fundar uma nova

casa como “a fundação do cosmos em um caos” (Bollnow, ibidem; p. 134). Assim,

ocorre que o desejo por uma nova moradia já acontece impregnado de investimentos

emocionais referentes às histórias de nossas moradas passadas. Como diz a velha

locução trazida por Bachelard, “Levamos para a casa nova nossos deuses domésticos”

(Bachelard, 2003; p. 25).

E a partir do momento em que passamos a habitar a casa, haverá – isto

sim – a amplificação do processo de investimento que leva à sua sacralização – o que

ocorre com o uso diário que fazemos dela, no qual projetamos cotidianamente nossas

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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necessidades, expectativas e aspirações, ao longo do tempo em que a habitamos.

Conforme citam Belk et alii, ...

“o lugar fundamental do sagrado no mundo secular do consumo é a habitação”

(Eliade, 1987, Jackson, 1953; Tuan, 1977). Ela é sagrada porque abriga a

família, porque é um lar (Kron, 1983). As mais sagradas e secretas atividades da

família ocorrem ali, incluindo-se comer, dormir, cozinhar, fazer sexo, cuidar das crianças e da doença e vestir-se (Saegert, 1985). Ela é separada do mundo profano

‘lá de fora’ (Altman and Chemers, 1984) através do cuidado que damos à porta

de entrada (Deffontaines, 1953; Rapoport, 1982)163”.

Estabelecida a relação do processo de sacralização do objeto casa com a

própria atividade do habitar doméstico cotidiano, acrescento a consideração de Belk

et alli, segundo a qual uma “commodity comum” pode transformar-se simbolicamente

e passar a ser percebida como sagrada, na medida em que a ela são associadas atitudes

e práticas rituais voltados a essa transformação (Belk et alii, ibidem; p. 528).

Lembrando da sensação de sacralidade experimentada pelo sobrinho em casa da

falecida tia – que vimos narrado anteriormente – está claro que essa sensação era

composta não apenas pela lembrança da presença da tia, mas também pela memória

dos rituais familiares que, juntos, tantas vezes praticaram naquele ambiente – o qual,

por esta razão, adquirira esse caráter de lugar espiritualmente distinto.

Para Belk et alii, o próprio ato de mudar-se de para uma nova casa e

transformá-la em um “lar” para si seria um ritual de sacralização (Belk et alii, ibidem; p.

528-529):

Relembro, aqui, o depoimento do Sr. Felipe164, 78 anos, que, ao se mudar de sua

casa, onde vivia com seus irmãos em condições extremamente precárias, para uma

instituição para idosos, passa a perceber a nova morada como uma experiência de

quebra do caos em que via inserido o seu habitar. Antes, carente materialmente e

incapacitado, pela idade e pela saúde precária, de praticar as funções básicas do

habitar doméstico (alimentação, higiene e manutenção da casa), Sr. Felipe traduz o

sentimento de amparo obtido da nova moradia, vivido através do processo de rituais

163 As citações contidas neste parágrafo estão em Belk et alli, 1991; p. 523. 164 Apresentado no Capítulo 1.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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de alimentação, cuidados com a saúde física e mental e de interações solidárias com

funcionários e internos, com a expressão “isso caiu do céu”.

“[...] Isso caiu do céu... Eu sempre fui uma pessoa feliz, graças a Deus. Mas sabe o que acontece? Lá, onde a gente morava, tinha que fazer tudo: fazer comida, lavar roupa, ir no mercado, pagar aluguel, esses programas todos da vida diária. [...] Mas é um problema... até, digamos oitenta anos (no meu caso, ainda podia)... mas depois fica tudo mais difícil. [...] E aqui, não; a gente não precisa se preocupar com nada. A gente senta na mesa de manhã, uma funcionária traz o café, outra o pão, as enfermeiras trazem o remédio, tudo na hora certa; no almoço, a mesma coisa, e na janta, a mesma coisa. [...] Então, a gente tem toda a assistência, em todos os sentidos – as igrejas vêm fazer culto aqui todo sábado e domingo. [...] Nas quintas‐feiras vem uma pintora, e ela ensina a gente a fazer pintura em pano e papel. Eu queria aproveitar a oportunidade para mostrar as minhas pinturas... Todos os dias eu também jogo dominó, baralho, com os amigos. Antes de vir para cá, eu só podia jogar à noite, porque não dava tempo. Aqui, eu jogo de dia. [...] As funcionárias são ótimas pessoas, tratam a gente com amor e carinho. A gente se torna amigos, não é? Quer dizer, é convivência todo dia pra nós e pra elas também. Aqui, eu posso dizer que tenho cem amigos – é verdade. [...] É a receita ‘é dando que se recebe’ – você já ouviu falar naquela oração de São Francisco? Eu posso falar sinceramente, em casas como esta é que se constrói um mundo melhor.” (Sr. Felipe)

...

A partir das considerações acima, pode-se dizer que a sacralização da casa,

como um processo que se dá através das relações cotidianas do habitar doméstico,

está, também, condicionada ao fato de essa casa ser “verdadeiramente vivida”, no

sentido – já mencionado anteriormente – que Bachelard dá à expressão: ou seja, de

ser a casa experimentada em um nível que ultrapassa a sua “positividade” (Bachelard,

ibidem; p. 25).

Inversamente, se voltamos a olhar para a casa como algo pertencente a

uma categoria bastante similar à de outras commodities, sendo – como observa Dovey –

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“comprada e vendida, usada e descartada, tal como um carro ou uma máquina de

lavar”, o autor ressalta que “o fenômeno lar, em si, não pode ser commoditizado”. Isto

porque, diferente do objeto casa, o qual envolve um comprometimento econômico

substancial, a casa entendida como lar envolve um comprometimento não de

dinheiro, mas de tempo e emoção, por ser ela “o lugar onde investimos sonhos,

esperanças e cuidados”. Contudo, é como efeito da crescente commoditização da casa

no mundo moderno, que Dovey aponta para a confusão que é gerada entre as idéias

de casa e lar: isto, pelo fato de ser a imagem de lar – e não o [objeto] casa propriamente

dito – que passa a ser comprado e vendido no mercado (Dovey, ibidem; p. 53-54. Apud

Belk et alii, ibidem; 542).

Sob o mesmo ponto de vista de Dovey, ou seja, da abrangência do atual

processo de commoditização da casa, King refere-se à profissionalização que passou a

envolver a noção de “lar”. Agora, o “lar” só pode ser feito por outros: “experts” que

nos dizem do que precisamos; profissionais que – como afirma o autor – “ousam nos

dizer o que é ‘lar’”. A essa “exteriorização dos valores” referentes ao “lar” e ao habitar

doméstico, King atribui à “supremacia dos aspectos econômicos e status sobre os

valores ontológicos e emocionais que nós próprios investimos em nossas casas” (King,

ibidem; p. 86).

E é justamente a elevada posição ocupada pelo dinheiro na sociedade

contemporânea que é apontada por Belk et alli como determinante da forma mais

comum pela qual algo sagrado é des-sacralizado: a sua transformação em produto

vendável e, portanto, a sua des-singularização. Em outras palavras, a casa, que teria se

tornado sagrada àqueles que, por anos, a habitaram e a imbuíram de significados

particulares, volta à inicial condição de objeto profano no momento em que é

devolvida ao mercado, convertida, novamente, em dinheiro (Belk et alii, ibidem; p.

541-542).

E esse “ato de profanação” poderá ser extremamente penoso, dependendo

de quão profundamente impregnada esteja a casa em nosso ser (para usar a expressão

de Moles [ibidem; p. 94]):

Minha vizinha de muro, D. Antônia, que há trinta anos mora em sua casa, vive, hoje

este drama. Morando sozinha, procura resistir aos apelos do filho que venda ou

alugue sua casa e passe a morar em um apartamento. Há poucos dias, um corretor

de imóveis trouxe uma potencial compradora para conhecer sua casa. Como apenas

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um muro separa nossas casas, não pude deixar de ouvi‐la no quintal a dizer: “este é o meu quintal; este quartinho é o da mamãe pôr as bagunças dela165. Eu adoro essa parte da casa” – “eu adoooro esta casa”.

Seu depoimento justifica o sentido de sagrado que experimenta no quintal da sua

casa:

"[A parte da casa que eu mais gosto] É o meu quintal. Eu adoro lá. [...] Acho que é porque bate sol. A minha mãe também adorava. Ela ficava lá... e fazia as coisas dela, e lavava, e limpava... cantava... Você lembra? Ela cantava em italiano! Foi lá no quintal que o meu marido construiu aquele quartinho onde a gente guarda tudo o que é de bagunça – precisa ter, né? Minha mãe punha tudo nesse quartinho! É no quintal que eu fico de manhã. De tarde, eu venho pra sala.” (D. Antônia)

Ainda que alguns dos depoimentos aqui apresentados, em um primeiro

momento, possam se referir a uma relação com o objeto puramente físico, revelando

aspectos que poderíamos classificar de profanos, por serem elementos comuns, não

relacionados a “experiências extraordinárias”, ou de “êxtase” (trazendo, aqui, as expressões de

Belk et alii [ibidem; p. 528]) – ainda assim, estes depoimentos terão, invariavelmente, como

referências, aspectos profundamente relacionados à busca, no lugar do habitar doméstico,

pelo acolhimento da subjetividade, pela paz proporcionada pela privacidade, pelo sentido de

pertencimento a um lugar, enfim, pela própria quebra qualitativa em relação ao imenso caos

experimentado no mundo exterior, tal como é descrita por Eliade a experiência do espaço

sagrado.

A este respeito, lembro das palavras de Marcus, que diz que casa não é apenas

um lugar, no sentido mais literal, mas é também “um lugar de profunda satisfação no mais

fundamental e íntimo templo da alma”. Ao lembrar do dito popular da língua inglesa “a

nossa casa é onde está o coração” (Home is where the heart is), a autora atribui a ele dois níveis

de significado: coração – ou amor – seria a nossa conexão com a família e os amigos, com

lugares e pessoas familiares, os quais nos protegem e nos estimulam a crescer. Mas, coração

também significaria o nosso mais íntimo ser, a nossa alma. Neste último sentido, a autora

relaciona o dito popular “àquela forma de viver, àquele lugar, àquela atividade, nos quais

165 Ainda que já falecida, D. Antônia refere-se à mãe no presente, como presença atual, impregnada na casa.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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somos completa e profundamente nós mesmos” (Marcus, ibidem; p. 278): o habitar que

praticamos em nossa casa.

Em meio ao conjunto de fatores que acompanham e envolvem o sentido de estar

em casa, num estado de profunda identidade com nós mesmos, fica a pergunta: é possível

que, em nossas casas, encontremos as condições de auto-transcendência, de que nos fala

Gilberto Gil, para “falar com Deus”?

Se eu quiser falar com Deus

Tenho que ficar a sós Tenho que apagar a luz

Tenho que calar a voz Tenho que encontrar a paz

Tenho que folgar os nós Dos sapatos, da gravata Dos desejos, dos receios

Tenho que esquecer a data Tenho que perder a conta

Tenho que ter mãos vazias Ter a alma e o corpo nus [...]

(Gilberto Gil. Se Eu Quiser Falar com Deus)

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Considerações finais

Partindo da questão que incitou esta pesquisa, ou seja, a pré-suposição de

que usuários percebem e vivenciam seus espaços domésticos de formas particulares e

específicas, tomei, como instrumento para a investigação, depoimentos de pessoas a

respeito das relações com suas moradias. Esses depoimentos, juntamente com

referências bibliográficas pertinentes à questão, formaram o acervo de informações

que vieram a fundamentar minha análise sobre o habitar doméstico, segundo o modo

como ele é percebido e vivenciado, em termos tanto objetivos – das relações

estabelecidas com a fisicalidade da moradia –, quando subjetivos – das questões

pessoais específicas que intervêm nessas relações.

Considerando-se o nível de extrema subjetividade que norteia as relações

estabelecidas no e com o espaço da moradia, é quase dispensável dizer que os

resultados desta análise não representam uma verdade absoluta para o entendimento

da questão do habitar doméstico sob o prisma do morador. Quanto às impressões,

considerações e comentários registrados nos depoimentos, o que se tem, é um acervo

de verdades, narradas segundo perspectivas distintas e particulares: por definição,

perspectiva é a escolha de um ponto de vista a partir do qual se sente, se categoriza ou

se codifica uma experiência166. Contribuem para a configuração desses particulares

pontos de vista – e, conseqüentemente, para a relatividade dos resultados

encontrados – o contexto socioeconômico e cultural do narrador, sua idade, suas

experiências de moradias passadas, suas visões de mundo, seus valores pessoais, sua

personalidade. Dentro do seu contexto específico, cada narrativa apresenta uma

coerência própria, reveladora de um sistema de crenças e valores, particular ao

166 In: http://en.wiktionary.org/wiki/perspective.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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narrador, que se expressa no modo rotineiro e essencialmente individual com que ele

percebe e reage aos fatos e condições experimentados no ambiente doméstico,

redundando, assim, em sua própria concepção do habitar doméstico.

A análise do habitar doméstico em termos conceituais, assim como das

cinco dimensões que estabeleceram a linha condutora da investigação desse habitar –

sejam elas: a casa física, usos objetivo e subjetivo da casa, privacidade e intimidade

domésticas, o cotidiano doméstico e o lugar do habitar doméstico – passam, agora, a ser

revistas através de algumas considerações finais:

Uma vez tomado o habitar em um sentido mais amplo do que aquele a

que corriqueiramente o associamos, esse habitar, como uma prática universal e

essencialmente humana – o “estar-no-mundo” descrito por Heidegger –, a qual

implica uma relação significativa de identificação com um determinado meio físico,

passa a ter seus aspectos associados às relações cotidianas estabelecidas com o espaço

físico da habitação. Ou seja, o habitar passa a ser considerado concretamente, em

termos locais e materiais. Das considerações iniciais sobre o habitar doméstico e sua

especificação em relação ao habitar universal, três fatos puderam ser especialmente

observados. Primeiro, o fato de que este habitar, ainda que se refira às atividades da

esfera privada do homem, não se dá isoladamente, ou independente das

interferências do mundo em que se insere, as quais se tornam parte da vida doméstica

cotidiana. Segundo, que é justamente o caráter de entidade privada do habitar

doméstico, de cujo respaldo nos valemos para a preservação de nossa vida interior e

desenvolvimento de nossa individualidade, que o legitima como o modo de habitar

do indivíduo per se. E terceiro, o que leva em conta justamente o caráter particular

com que se dá a percepção e o vivenciamento do habitar doméstico – e o fato que daí

decorre, de esse habitar ter muitos, quase que incontáveis, significados particulares

para cada indivíduo (ou grupo de indivíduos) que habita(m) domesticamente.

A partir do enfoque do habitar doméstico como algo localizado e

materializado, passou-se, inicialmente, à consideração da casa como o local físico que

elegemos para nos recolher do mundo e praticar esse habitar. Percebida por seus

habitantes como o ponto concreto que provê o apoio e a referência em relação ao

mundo exterior, a casa física representa a segurança, a paz e a proteção frente às

adversidades vividas nesse mundo. Por outro lado, considerando-se essa mesma

inserção da casa no mundo vasto, temos que, através de sua fisicalidade, ela nos

permite reunir objetos e referências trazidos de nossas experiências lá fora, tornando-

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se, para nós, seus habitantes, um repositório das memórias de nossa trajetória por

esse mundo, conferindo-nos, assim, a possibilidade de nos identificarmos com ele.

Assim, a casa física é, ao mesmo tempo, a proteção em relação ao mundo e o meio

através do qual estabelecemos vínculos com esse mundo.

Observamos, ainda, que o modo como formalmente estabelecemos o

habitar em nossa casa, considerando-se suas características físicas, sua localização, a

forma como usamos seus espaços, etc., torna-se uma forma de falarmos de nós ao

meio social em que nos inserimos. E, através dessas informações, buscamos ser aceitos

por esse meio.

E, finalmente, é a fisicalidade de nossa casa que nos permite – ou não –

praticarmos o habitar doméstico da forma que consideramos mais adequada. A fim

de fazermos de nossa casa um refúgio seguro e tranqüilo, onde podemos preservar

nossa vida interior, fazemos freqüentes intervenções criativas em nosso espaço

habitado. E, uma vez obtidas essas condições, passamos a não mais poder prescindir

dessa casa.

Contudo, o habitar doméstico envolve mais do que o simples fato de nos

inserirmos em um invólucro físico, segundo as condições que, objetivamente,

permitem e definem essa prática. Ele implica, também, a interação dessa

materialidade com os aspectos da alma, do espírito, da memória, das emoções do

indivíduo – o que faz com que a casa passe a incorporar um significado subjetivo para

aqueles que a habitam. Neste sentido, a consideração dos usos objetivo e subjetivo da

casa estabelece o cruzamento de dois importantes aspectos do habitar doméstico: a

casa, como entidade física concreta, que trabalha, com sua materialidade, no sentido

de permitir que – por sua vez – se pratique a imaterialidade em seu interior. Vimos

que, ao transformar nossa casa física em um espaço habitado, passamos a percebê-la

como uma entidade única que acolhe nossa subjetividade, que nos apóia não apenas

física, mas também, emocionalmente. Isto porque, na medida em que projetamos em

nossa casa nossos valores pessoais, necessidades, aspirações e desejos, ela passa a falar

de nós, da dinâmica de nossas vidas; e nós passamos a nos ver refletidos nela.

Por um lado, vemos a casa habitada desprender-se de sua objetividade

física e se transformar, através dos valores pessoais projetados por seus habitantes ao

longo do tempo, em algo subjetivamente fundamental para o seu desenvolvimento

como indivíduos. Por outro lado, é justamente essa estrutura física da casa de que se

necessita para que as atividades do habitar doméstico sejam mantidas na esfera íntima

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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e privada, sendo partilhadas apenas com quem se deseja. Ou seja, o habitar doméstico

requer privacidade e intimidade. A importância da preservação da privacidade e da

intimidade domésticas é, aqui, verificada através de alguns aspectos, como a

consideração desses dois conceitos como direitos fundamentais do indivíduo; ou

como a necessidade, verificada já na infância e na juventude, de se estar a sós para se

exercer a própria individualidade; e, também, através de aspectos históricos e

culturais que falam da evolução dessas necessidades e da maneira como são, hoje,

percebidas e atendidas. Assim, verifica-se que não apenas as práticas biológicas da

vida humana, mas também aquelas voltadas à preservação de particularidades

subjetivas – do desenvolvimento da identidade, da liberação das emoções –

encontram no espaço doméstico, em ambientes específicos e povoados de também

específicos objetos, o local para serem exercidas.

Ainda enfocando a vida praticada na privacidade doméstica, a rotina

previsível e aparentemente irrelevante desse habitar – o cotidiano doméstico – passa a

ser vista como aspecto fundamental para que encontremos em nossas casas a

confiança na continuidade do nosso próprio ambiente doméstico e o sentido de

ordem e estabilidade emocional que dela obtemos. A neutralidade e a previsibilidade

do cotidiano doméstico servirão, assim, como pano de fundo para reflexões a respeito

de nossas vidas. E é nesse contexto que iremos nos restaurar física e emocionalmente

dos desgastes sofridos no habitar público: relaxando nossos corpos, libertando nossa

subjetividade, cultivando nossa alma, dando vazão aos desejos e fantasias; criando,

assim, meios físicos e emocionais de implementar nossos planos para a próxima

incursão pública.

Assim, o espaço onde é praticado o habitar doméstico passa a ser

considerado não mais no sentido de local meramente destacado do espaço geral. Por

incorporar significados específicos, atribuídos por seus habitantes através das relações

cotidianas nele estabelecidas ao longo do tempo, esse espaço doméstico adquire o

sentido específico de lugar. Ao lado disto, ao se enfocar as relações contemporâneas

com o espaço habitado, verifica-se uma tendência a que se perceba e vivencie o

habitar doméstico através de uma mescla de aspectos que envolvem duas formas

teóricas de pensar. De um lado, há o tradicional entendimento do lugar que, aplicado

à questão do habitar doméstico, se refere aos sentidos de enraizamento,

pertencimento e identificação em relação às experiências sensoriais, de espacialidade,

hábitos e costumes vividas no lugar habitado – numa oposição às influências da esfera

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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pública. De outro lado, uma forma mais atual de se entender o lugar leva em conta a

intensa mobilidade das pessoas, assim como o – cada vez maior e melhor estruturado

tecnologicamente – consumo e a incorporação ao cotidiano doméstico de dados,

informações e produtos vindos do mundo externo. Através desta forma de pensar, a

casa, como lugar do habitar doméstico, passa a ser vista como palco cada vez mais

aberto às inter-relações entre as esferas privada e pública.

Diante da análise dos depoimentos, verifica-se que, por um lado, não é

mais possível adotar como sine qua non, ao se tratar do habitar doméstico, os sentidos

de fixação e enraizamento físico, desconsiderando-se a realidade de fluidez física e

virtual que vivemos em nossos dias, a qual imprime uma forma sem precedentes de

experiência em relação ao espaço e ao lugar, redefinindo, assim, as formas de

percepção do que é privado e público. Por outro lado, ainda segundo os

depoimentos, o sentido de pertencimento ao lugar do habitar doméstico ainda é

preservado na casa habitada – que, muitas vezes poderá ser percebida como o próprio

bairro, a cidade ou até mesmo do país onde se vive. De qualquer forma, é em casa – e

não em hotéis, em aviões ou por meio de contatos virtuais – que melhor se

estabelecem as relações de intimidade doméstica, onde nos restauramos através do

cotidiano familiar (sozinhos, ou ao lado das pessoas com quem o desejamos

partilhar), onde nos sentimos seguros da continuidade do nosso ambiente e onde

vemos refletidos os sinais da história de nossa existência. Assim, mesmo aqueles que

mais viajam e se ausentam de suas casas, e que convivem diariamente com a

“abertura” do mundo doméstico às influências da esfera pública relatam o sentido de

pertencimento ao lugar onde habitam domesticamente: sua casa, com a qual se

identificam mais do que com qualquer outro lugar no mundo, na qual se percebem

inseridos e acolhidos para praticar em privacidade, ou ao lado dos que querem bem, a

forma mais íntima de habitar.

Finalmente, abarcando a reflexão de todas as dimensões do habitar

doméstico aqui exploradas, surge o aspecto que muitas vezes vem sugerido nos

depoimentos registrados: o de ser a casa percebida por aqueles que a habitam como

uma espécie de lugar sagrado. Falar da sacralização da casa é tratar da transformação

do modo como ela, através de investimentos físicos e emocionais recebidos ao longo

do tempo de uso, passa a ser percebida por seus habitantes: de objeto comum,

encontrado no espaço mundano – uma mera estrutura física, neutra de valores

subjetivos e espirituais – a casa passa a ser percebida como entidade única, que não

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apenas atende às funções objetivas do habitar doméstico, mas acolhe

incondicionalmente a subjetividade de seus moradores, dando-lhes desenvolver como

indivíduos, guardando seus segredos mais íntimos, consolando-os quando se vêem

desamparados e cansados da existência no espaço mundano; enfim, restaurando-os e

preparando-os cotidianamente, em termos físicos e emocionais, para o habitar no

mundo público.

Assim, para finalizar as reflexões sobre o habitar doméstico segundo a

forma como ele é percebido e vivenciado pelos habitantes, relembro apenas a

consideração de que esse habitar é algo tão amplo quanto a própria vida do

indivíduo; e que ele não se dá isoladamente, ou independente das interferências

externas, as quais não apenas permeiam a vida cotidiana doméstica, mas, de fato,

enriquecem-na, tornando-se privadas e interferindo nos sentidos que damos a ela. O

entendimento da amplitude do conceito de habitar foi fundamental para a análise

dos depoimentos aqui colhidos. A partir daqui, penso que podemos compreender a

razão pela qual as pessoas, ao falar de suas casas, trazem à tona não apenas suas

relações formais com o espaço doméstico, mas a própria forma de encarar a vida.

Uma possível futura pesquisa

Ao longo desta investigação, muitas questões cujo desenvolvimento

mereceria mais do que um parágrafo, ou mesmo um capítulo, não puderam ser

incluídas no discurso final. São questões que, se exploradas em novas pesquisas,

viriam agregar informações específicas à questão maior, que trata da percepção do

usuário em relação ao lugar do habitar doméstico.

Considerando que muito do que falei aqui envolve a intenção de

estabelecer como prioridade, em termos de pesquisa na área de Hábitat, a

investigação das necessidades, expectativas e aspirações aplicadas ao habitar

doméstico, penso que se justifica uma pesquisa aplicada à área de mercado

imobiliário. Observando-se a definição de marketing trazida por Philip Kotler, como

“a tarefa de descobrir e satisfazer necessidades” (Kotler, 1999; p. 54), e se

consideramos que o bom planejamento de marketing, enquanto ciência econômica,

envolve o objetivo de criar cada vez mais situações de equilíbrio entre o ato de

consumo e a razão da compra (Almeida, 2001; p.33), seria válido dizer que esse

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objetivo, sob o aspecto da produção de espaços de moradia, envolve o conhecimento

dessas necessidades, expectativas e aspirações em relação ao habitar doméstico

trazidas por potenciais usuários desses espaços: como vivem, como precisam, como

gostariam, e como poderiam viver.

Como, então, conceber que empresas produtoras de habitação baseiem

suas tomadas de decisões em pesquisas que, em princípio, voltadas ao conhecimento

do perfil do público alvo, criam estereótipos de usuários, baseados em aproximações

superficiais, muitas vezes afastadas da observação criteriosa do real uso dado aos

espaços domésticos? Não bastaria um levantamento da incidência de reformas feitas

em apartamentos recém- adquiridos para uma avaliação diagnóstica da

incompatibilidade entre necessidades, expectativas e aspirações dos clientes e o

produto oferecido?

Consciente da grande dificuldade em conhecer profundamente os futuros

moradores da maioria das residências que projetamos hoje, e que as soluções

adotadas na etapa do projeto têm amplas repercussões em todo o processo de

viabilização da construção e lançamento do imóvel no mercado, tornando a parcela

de influência dos usuários diluída em face da dos agentes financeiros, promotores e

incorporadores, tenho a humilde pretensão de acreditar que uma pesquisa com

abordagens arquitetônica, sociológica, psicológica e antropológica seria valorosa no

sentido de tornar mais amplo o leque de questões a serem abordadas em uma

pesquisa de mercado de habitação, e mais eficaz, em termos de atendimento às

necessidades, expectativas e aspirações dos moradores, em relação ao espaço que lhes

é oferecido.

Durante o estágio dos levantamentos teóricos para este trabalho, vi cair

como uma pedra, em minhas mãos, o texto abaixo. Seu pragmatismo quase desolador

serve, neste momento, de reforço à razão que moveu minhas investigações: há que se

elevar o nível de prioridade das pesquisas quanto às relações estabelecidas no e com o

espaço do habitar doméstico, para que o processo de pensar o espaço da moradia

tenha como objetivo primeiro possibilitar ao usuário o domínio sobre seu habitar

doméstico – para que este lhe seja, de fato, prazeroso e responsável por um progresso

na qualidade de sua vida (Camargo, 2003; p. 104). Qualquer deficiência neste

processo configura-se um problema que envolve o risco de todo o processo de busca

pela qualidade da habitação ser inócuo:

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“Nos grandes centros urbanos atuais, a morada, de unidades repetidas, construídas

na ausência do futuro morador, não consegue, infelizmente, acordar sentimentos de

apego, de ternura, de identificação, ainda que proporcione as funções físicas de

habitar. Seus espaços mostram-se amorfos, caracterizando-se apenas por símbolos

referentes a status social, baseados na sua localização, tamanho e luxo [...]. Na sua

totalidade, a moradia atual pouco lembra aquilo que lhe deu origem [...]. Pode-se

compreendê-la como um espaço débil, meramente decorativo, que não consegue se

desprender da realidade limitadora e não conquista valor poético – assim, o

morador torna-se estrangeiro na própria residência. O que, de certo, espelha o

homem sem centro, que, no fundo, não sabe exatamente o que quer e se deixa levar à deriva, embora essa postura o deixe insatisfeito.” (Cencic, 2002; p. 369).

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Notas i David Chaney é professor do Departamento de Sociologia na Universidade de Durham, Inglaterra. Publica extensivamente sobre os aspectos da transformação cultural na modernidade tardia. É autor de Cultural Change and Everyday Life (Palgrave, 2002), Lifestyles (Routledge, 1996), Fictions of Collective Life (Routledge, 1993), The Cultural Turn (Routledge, 1994), etc.

ii Clifford James Geertz (1926-2006), antropólogo americano, destacou-se como retórico e defensor antropologia simbólica-interpretativa. A função da cultura, esboçada por Geertz em seu livro a The Interpretation of Cultures (1973), seria impor significado ao mundo e torná-lo compreensível. In: Encyclopædia Britannica Online; http://www.britannica.com/eb/article-9036294.

iii Dame Mary Douglas, antropóloga inglesa, é conhecida por seus trabalhos sobre cultura humana e simbolismo. Concentrada na área de antropologia social, foi considerada uma seguidora de Durkheim uma defensora da análise estruturalista, com foco na religião comparativa. In: http://en.wikipedia.org/wiki/Mary_Douglas.

iv Henny Coolen é pesquisador senior em metodologia e informática na Technische Universiteit Delft, Holanda (ver suas publicações em: http://metis.tudelft.nl:7777/pls/metis_lookup/pk_apa_n.medewerker?p_url_id=241). E Ritsuko Ozaki é pesquisadora fellow no Innovation Studies Centre no Imperial College London. O trabalho aqui mencionado aqui foi apresentado no CUCS - Housing Conference, Toronto, 2004.

v David Morley é Professor de Mídia e Comunicação no Goldsmiths University of London. É autor de Television, Audiences and Cultural Studies (Routledge, 1992), co-autor de Spaces of Identity (Routledge, 1995) e co-editor de Stuart Hall: Critical Dialogues in Cultural Studies (Routledge, 1996). In: http://www.goldsmiths.ac.uk/media-communications/staff/morley.php.

vi Robert Gifford é professor no Departamento de Psicologia na University of Victoria, British Columbia, Canadá. Editor do Journal of Environmental Psychology, dedica-se a estudos sobre a interface entre a psicologia ambiental, psicologia social e psicologia da personalidade. É autor do artigo The consequences of living in high-rise buildings (Architectural Science Review, Thomson Galé, 2007) e Applied Psychology: Variety and Opportunity (Allyn & Bacon, 1991). In: http://web.uvic.ca/psyc/gifford.html.

vii Paulo Sérgio Pinheiro é professor de ciência política e diretor do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo. É relator especial das Nações Unidas para a situação dos Direitos Humanos no Burundi; membro da Comissão Internacional de Investigação Humanitária (Berna, Suíça); e diretor da Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos (São Paulo). Foi Secretário Nacional de Direitos Humanos, no governo Fernando Henrique Cardoso. In: http://www.mre.gov.br/cdbrasil/itamaraty/web/port/polsoc/dirhum/prognac/.

viii Elizabeth Rondelli é professora do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e na Escola de Serviço Social da UFRJ. É pesquisadora do Núcleo de Estudos e Projetos em Comunicação da UFRJ. In: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4785837Y9.

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ix Túlio Kahn é doutor em Ciência Política pela USP, Coordenador de Análise e Planejamento da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo e ex-coordenador de pesquisa do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (Ilanud).

x Luis David Castiel é Pesquisador Titular da Fundação Oswaldo Cruz. In: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4780171E9.

xi Peter King é professor em Habitação e Filosofia Social do Departamento de Políticas Públicas da Faculdade de Business & Law, na Montfort University, Inglaterra. Seus trabalhos conectam-se com pesquisas de habitação e conceitos de filosofia. É autor de The Limits of Housing Policy (Middlesex University Press, 1996), A Social Philosophy of Housing (Ashgate, 2003) e Choice and the End of Social Housing (Institute of Economic Affairs, 2006). In http://cchr.rol.co.uk/pp/gold/viewGold.asp?IDType=Page&ID=7327.

xii Clare Cooper Marcus é Professora Emérita no Departamento de Arquitetura e Meio Ambiente na Universidade da Califórnia, Berkeley. É internacionalmente reconhecida por sua pesquisa pioneira dos aspectos psicológicos e sociológicos da arquitetura, planejamento do uso do solo e design da paisagem, particularmente no espaço urbano. É autora de Healing Gardens, Therapeutic Benefits and Design Recommendations (New York Wiley, 1999) e People Places: Design Guidelines for Urban Open Space (ed.) (John Wiley & Sons, 1998). In: http://www.pps.org/info/placemakingtools/placemakers/ccmarcus.

xiii Alvino Augusto de Sá é doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atuou como psicólogo na Secretaria de Administração Penintenciária do Estado de São Paulo e foi professor titular e diretor da clínica psicológica da Universidade Guarulhos, tenho se aposentado em 2005. Professor doutor da Universidade de São Paulo, professor convidado da Universidade Federal de Pernambuco, professor do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. In: http://sistemas.usp.br/atena/atnCurriculoLattesMostrar?codpes=21205.

xiv Tim Cresswell é Professor do Departamento de Geografia na faculdade de Royal Holloway, Universidade de Londres. Teve como orientador para a obtenção de título de Ph.D., na Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos, o professor Yi-Fu Tuan. É autor de In Place/Out of Place (University of Minnesota, 1996), On the Move: Mobility in the Modern Western World (Routledge, 2006). In: http://en.wikipedia.org/wiki/Tim_Cresswell

xv José Afonso da Silva, Professor Livre-Docente em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, foi Professor Titular do Direito Econômico e Financeiro na mesma instituição, na qual lecionou desde 1971 até 1995, quando se aposentou. In: http://www.direito.usp.br/docentes/aposentados/dap_docentes_jas_01.php.

xvi Irwin Altman é professor do Departamento de Psicologia da Universidade de Utah, Estados Unidos. Seu objeto de estudo é o desenvolvimento de relacionamentos, o uso de ambientes físicos (casas) nos relacionamentos e os papéis desempenhados pelos contextos sociais (por ex., famílias) nos processos interpessoais. É autor de Home Environments (Human Behavior and Environment) (Irvington Pub, 1981) e co-editor de Home Environments (Human Behavior and Environment) (Springer, 1a. ed. 1985) e

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In: http://altman.socialpsychology.org/.

xvii Alan Westin é Professor Emérito de Direito Público e Governo da Universidade de Columbia, Nova York, além de Diretor do Programa de Tecnologia da Informação, Prontuários Médicos e Privacidade, do Centro de Pesquisa Social e Jurídica, o qual coordena. Professor Westin pesquisa, defende e escreve sobre questões de saúde, tecnologia e privacidade há mais de 40 anos. É autor de Privacy and Freedom (New York: Atheneum, 1967). In: www.pandab.org/WestinTstmy.pdf.

xviii John H. Lienhard é Professor Emérito de Engenharia Mecânica e História na Universidade de Houston, Texas (EUA). É autor de How Invention Begins: Echoes of Old Voices in the Rise of New Machines (Oxford University Press, 2006) e Mechanical Measurements, (Prentice Hall, 5a ed. 1993). In: http://www.uh.edu/engines/powersir.htm.

xix Professor Philip Sheldrake é professor de teologia aplicada na Universidade de Durham deste janeiro de 2003 e professor honorário da Universidade de Wales Lampeter desde 1999, além de senior fellow e professor visitante em várias instituições dos Estados Unidos. É autor de vários livros, principalmente sobre o tema de espiritualidade acadêmica, incluindo Spirituality and History (Orbis, 1998) e Spaces for the Sacred: Place, Memory, Identity (The Johns Hopkins University Press, 2001). In: http://www.dur.ac.uk/theology.religion/staff/?id=2012.

xx Edward S. Casey foi o último chefe do Departamento de Filosofia da Universidade Stony Brook; pesquisa, entre outros assuntos, estética, filosofia do espaço e do tempo e percepção. Entre as obras que publicou estão Getting Back into Place: A Phenomenological Study (Studies in Continental Thought) (Indiana University Press, 1993), and The Fate of Place (University of California Press, 1999). http://www.sunysb.edu/sb/nyc/maphil/philarts/faculty.shtml

xxi Lucy Lippard, escritora, ativista e curadora americana foi das primeiras autoras a defender a arte feminista. Autora de 18 livros sobre arte contemporânea, foi premiada com o 1968 Guggenheim Fellowship e o Prêmio Frank Mather de Crítica, concedido pela Associação de Arte Universitária, além de duas bolsas do National Endowment for the Arts em crítica. Já contribuiu com artigos sobre crítica para publicações como Art in America, The Village Voice, In These Times, e Z Magazine. In: http://en.wikipedia.org/wiki/Lucy_R._Lippard

xxii David Seamon é pesquisador de comportamento ambiental e professor de arquitetura da Universidade Estadual do Kansas, EUA. Seu trabalho é voltado às formas em que os ambientes natural e construído contribuem para o bem-estar humano. Dentre os livros de que Seamon é autor ou co-autor estão Dwelling, Seeing, and Designing (State University of New York Press, 2003) e Dwelling, Place & Environment (Krieger, 2000). In: http://www.arch.ksu.edu/seamon/index.htm

xxiii Jon May é professor de Geografia na Universidade de Londres. Suas áreas de pesquisa são Geografia Sociocultural, Geografias dos sem-teto, cidades globais, reestruturação urbana e neoliberalismo urbano. É autor de Practising Cultural Geography [(Blunt, A., Gruffudd, P., May, J., Ogborn, M. and Pinder, D. (eds)] (Arnold, 2003) e TimeSpace: geographies of temporality (Routledge, 2001). In: http://www.blackwell-compass.com/subject/geography/profile?person=MayJon .

xxiv John Tomlinson é Professor de Sociologia Cultural e Diretor do Centre for Research in International Communication and Culture (CRICC), na Nottingham Trent University. É autor de

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xxv Shaun Moores é diretor do Centro de Pesquisa em Mídia e Estudos Culturais da Universidade de Sunderland, no Reino Unido, onde também leciona Mídia e Comunicação. É o autor de Interpreting Audiences: The Ethnography of Media Consumption (Sage, 1993) e Media and Everyday Life in Modern Society (Edinburgh University Press, 2000). In: http://www.sunderland.ac.uk/~as1sth/shaun.htm.

xxvi Raymond Williams foi um acadêmico e escritor e crítico galês. Um dos grandes historiadores da cultura pós-guerra, dedicou-se às áreas de política, cultura, comunicação em massa e literatura, a partir de sua perspectiva marxista. Suas obras tiveram muito sucesso no Reino Unido e foram traduzidas para várias línguas. É autor de Raymond Williams on Television: Selected Writings (Routledge, 1989). In: http://www.museum.tv/archives/etv/W/htmlW/williamsray/williamsray.htm e http://en.wikipedia.org/wiki/Raymond_Williams .

xxvii John Perry Barlow atualmente é vice-presidente do conselho administrativo da Electronic Frontier Foundation (EFF). É fellow no Berkman Center for Internet e na Harvard Law School, além de membro da Academia Internacional de Artes e Ciências Digitais (IADAS). É autor de Notable Speeches of the Information Age (O'Reilly, 1994). In: http://en.wikipedia.org/wiki/John_Perry_Barlow.

xxviii Maggie Jackson é colunista da agência norte-americana de notícias Associated Press. Sua coluna contribuiu para a cobertura, pioneira na mídia dos Estados Unidos, das questões que envolvem o ambiente de trabalho em empresas. Em 2001, sua coluna “On the Job”, publicada em jornais de vários países, recebeu o prêmio de Excepcional Jornalismo sobre Trabalho-Vida na 3a Conferência Anual do Board/Families and Work Institute. Também escreve para os jornais The New York Times, The Boston Globe, e para a National Public Radio (Jackson, 2002, contracapa).

xxix Natural de Bangladesh, Dr. Azfar Hussain lecionou inglês, estudos culturais e estudos étnicos comparativos na Universidade Estadual de Washington e na Universidade Estadual Bowling Green, nos Estados Unidos, antes de transferir-se para a Universidade North South, em Dhaka, Bangladesh. Atualmente, sua pesquisa está voltada à teoria e estudo dos efeitos da economia política sobre a cultura, e vice-versa, em âmbito local e global. In: http://libarts.wsu.edu/ces/Azfar/ e http://www.newagebd.com/2007/apr/27/liti.html.

xxx Kim Dovey é chefe do Departamento e Professor de Arquitetura e Desenho Urbano na Faculdade de Arquitetura, Construção & Planejamento da Universidade de Melbourne, Austrália. É autor de Framing Places: Mediating Power in Built Form (Routledge, 1999) e Fluid City: Transforming Melbourne's Urban Waterfront (Routledge, 2005). In: http://www.abp.unimelb.edu.au/people/staff/doveyk.html.

xxxi Russell W. Belk é Professor de Business na David Eccles School of Business, Universidade de Utah. Dentre suas publicações estão: Research in Consumer Behavior, vols. 8 e 9 (co-editor) (JAI Press, 1997 e 2000) e Collecting in a Consumer Society (Routledge, 1995). In http://home.business.utah.edu/mktrwb/russ2.htm.

xxxii Melanie Wanderdorf é Professora de Marketing na Eller College of Management, Universidade do Arizona. Suas publicações abordam aspectos socioculturais do consumo. Dentre elas estão: Consumer Behaviour (Marketing S.) (co-editora) (John Wiley & Sons Inc., 1983) e Readings in Consumer

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Behaviour (Theories in Marketing Series), John Wiley & Sons Inc, 1979. In http://marketing.eller.arizona.edu/faculty/mwallendorf.aspx e http://amazon.com/.

xxxiii John Sherry is antropólogo e ministra cursos de Marketing Behavior, Contextual Inquiry, International Marketing and Postmodern Consumer Research at Northwestern's Kellogg School. Dentre suas publicações estão: Time, Space and the Market: Retroscapes Rising (M E Sharpe Inc, 2003) e Semiotics, Marketing and Communication: Beneath the Signs, the Strategies (Palgrave Macmillan, 2001).In: http://www.allbookstores.com/author/John_F_Sherry_Jr.html; http://www.sasin.edu/faculty/resumes/CV_2001_Prof._Sherry_Web.doc

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

290

Apêndice

Transcrição das entrevistas

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

291

Alencar

35 anos

Casado, 3 filhos

Professor de educação física

Mora com a mulher e três filhos no apartamento de seus pais, na cidade de São Paulo

[O que quer dizer casa, pra você?]

Olha, quando eu penso em casa, eu penso em conforto e segurança. É o nosso quartel general,

né, onde você comanda tudo, onde você põe as idéias em dia; sossego, reflexão... e o descanso,

também; repouso p’rum novo dia... tranqüilidade. Mas, também, pra mim, a minha casa sempre

foi as minhas coisas; o meu canto, a minha cama, a minha televisão, o meu banheiro... É ficar à

vontade, de bermudão, tal, sem incomodar ninguém. Então, essa falta de divisão é que incomoda.

[Como assim?]

Hoje, o meu momento financeiro tá numa fase muito difícil. Eu tinha uma pizzaria, um sócio... é

uma longa história que acabou com a minha falência. E hoje eu tô vivendo de favor, num quarto,

na casa da minha mãe – eu, minha esposa e mais três filhos. Um quarto, mesmo; um quarto de

verdade! Minha mãe emprestou um quarto da casa dela. É um apartamento grande, no Itaim,

daqueles antigos, então você tem um espaço bom. Ele é grande, o pé‐direito é grande, bem

antigão. Então, comporta uma cama de casal com um colchão king size, uma cama de solteiro –

uma bicama –, que fica grudada na minha, o espaço da cômoda, a poltrona, e o colchãozinho que

a gente põe pra menorzinha...

[Quais as idades dos seus filhos?]

Eu tenho uma menina de oito anos – é o que eu acho o mais difícil de lidar: do seu lado, da cama

de casal, né? –, um menino de cinco anos, e uma menina de um ano e meio. Agora, o que menos

eu tenho é privacidade.

[De que forma a privacidade lhe faz falta?]

Na educação dos meus filhos, sem nenhuma intromissão de terceiros; numa conversa com a

minha esposa, sem nenhuma intromissão; na hora de comer... Porque, agora, divide‐se tudo;

então, você tem que estar de acordo com o ritmo da casa – que não é mais minha. A intromissão

da minha mãe – minha esposa não consegue fazer uma discussão saudável comigo, que tem

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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alguém por perto... disfarçando, sabe? Sempre tem alguém. Sei lá, eu tô na cozinha conversando

com a minha esposa, entra a minha mãe, ou o meu pai...

Então, eu acho que é isso que incomoda mais o dia‐a‐dia, principalmente da minha esposa: ela

não poder andar em casa à vontade, de repente, a porta aberta, meu pai passa no corredor...

essas coisas que... É uma intromissão direta, mesmo. Não tem como não se intrometer; não dá,

né? Minha esposa sente ainda mais isso do que eu – ela já tá entrando em desespero. Talvez por

ser a casa da minha mãe, eu não sinto tanto quanto ela. Eu só fico angustiado de ver as crianças

crescendo e a gente não ter espaço pra namorar, não ter espaço pra conversar, então, isso me

angustia. Mas, eu acho que o mais difícil é pra ela – que é a casa da sogra. Eu acho que o que

segura mais, agora, são as crianças. Se não, já tinha cada um ido pra um canto. Então, é uma fase

complicada... nós estamos falando de um ano e oito meses.

[Se, pra você, sua casa é, também, suas coisas, seu canto, sua televisão, como você convive com essa realidade?]

Eu tive que abrir mão de muita coisa e perdi muitas referências. Eu queria chegar em casa e ter

tranqüilidade. Achar o meu livro que tava lá – já não tiraram do lugar; aquele filme de DVD que

você tem, que você quer chegar e assistir à vontade... esse dia‐a‐dia que você só valoriza depois

que você não tem ele. Então, acaba faltando muita coisa. Mas, o fato é que eu me apeguei mais

ao trabalho. Então, eu fico muito pouco lá. Eu saio às sete horas da manhã, quando eu volto, é

onze horas da noite. Então, é a pousada, agora; um lugar que eu vou pra dormir e tomar banho.

[Com relação à sua casa, qual seria o ideal?]

Voltar a ter minha residência: com os quartos das crianças, uma suíte, com a sala, com os

banheiros... Eu morava num apartamento em Moema, tinha um padrão razoável, não era um

padrão baixo. Era um apartamento com dois quartos – dois dormitórios, né? Mas tinha o lazer das

crianças, que hoje não tem. Você, num apartamento muito antigo, as crianças têm que ficar

dentro de casa tam‐bém – pra ajudar! Então, no final da semana, se tá chuvoso, você não tem o

que fazer. E, aí, começam as agressões verbais. Você conviver com as pessoas, você tem os

ataques, as alfinetadas... tá tudo confinado, né?... Aí, à noite, tá aquele calorzão, cê quer dormir

de porta aberta, não, tem que fechar a porta porque tem a passagem do corredor, pro banheiro,

então não pode.

E também, eu tenho o objetivo de ter a minha casa. Hoje, ele está um pouco distante mas, não ter

a própria casa pesa. É uma questão de segurança, você vai envelhecendo, sem casa..., você não

tem como pensar “isso aqui é meu, patrimônio meu, ninguém mexe”.

Entrevista realizada em 23/03/2007

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Amélia

64 anos

Separada, 3 filhos

Profissional de circo de lona; aposentada

Mora em apartamento do conjunto habitacional na cidade de São Paulo

[Como profissional de circo, a senhora poderia contar‐me um pouco da sua experiência de moradias?]

Eu sou a quarta geração circense na minha família. Eu nasci, me criei, casei no circo. Nós éramos

nômades. Quando eu nasci, ninguém morava no circo. Morava‐se em pensões, os melhores

ficavam em hotéis. Depois, evoluiu um pouco e passamos a morar no circo, em barracas de lona –

eu ainda era pequena. Eu tanto me lembro de morar hotéis, em pensões, como quando a gente

foi morar em barraca. Pra nós, era a mesma coisa – tanto fazia morar na barraca, quanto no hotel.

Porque a mulher do circo já nasce naquela vida, e a criança já vê as outras mulheres vivendo

aquela vida, então ela já está dentro do seu habitat.

[Como era morar em barraca?]

Na barraca é o seguinte: tinha umas que eram caprichosas, outras que não eram. Mas, a minha

mãe era muito caprichosa. Eu me lembro que meu pai levantava de manhã, já com a vassoura na

mão, e varria ao redor da barraca, todinha. Nossa barraca era limpa, limpíssima! E eu me

acostumei com isso. Quando a gente chegava na cidade – quase sempre de noite –, no dia

seguinte minha mãe já ia nos vizinhos pra saber – “A senhora tem porco? Então, a senhora me

arruma uma lata, que eu vou juntar a lavagem”. Porque no circo é difícil, o que é que você faz

com o resto da comida? Essa lata ficava, então, atrás da barraca, e a gente jogava os restos ali.

Sempre tinha uma outra lata para o lixo, pra não fazer sujeira. A minha família sempre teve esse

cuidado e eu segui. Meus filhos, também, foram acostumados assim; quando eles eram

pequenos, eu perguntava “onde vai jogar isso?” e eles, “no lisso!”; “e isso?”, “na lavase”.

Mas, naquela época, era difícil porque até você se encontrar na cidade, saber onde tem um

armazém, uma loja, um posto médico... Naquele tempo não tinha tantos postos de saúde como

hoje. E já chegava na cidade, sendo mal visto. Hoje é bem visto, já não é como antigamente.

Porque, às vezes, na frente desse circo que chegou, passou um que ficou devendo isso, devendo

aquilo, fez uma sujeitada. Então, o que vem atrás sofre as conseqüências.

Uma vez, minha mãe estava com meu irmão, doente. Meu pai foi pedir um vale ao dono do circo

pra levar meu irmão ao médico, e ele não deu. Naquela época, os artistas ajudavam a montar e a

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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desmontar o circo. Chegou o dia da estréia e meu pai não foi ajudar porque ele estava com meu

irmão, em casa. Chegou a hora do espetáculo, o dono do circo mandou um empregado chamar.

Meu pai nem respondia, meu irmão estava morrendo. O dono do circo passou em frente de casa

e nem parou pra perguntar, só mandava recado pro meu pai ir trabalhar.

...

A gente não era acostumado numa casa. Quando a gente chegava na cidade, meu pai gostava de

alugar casa, ele não gostava muito de barraca – ele era meio orgulhoso, não gostava de estar no

meio do rebuliço. Naquela época, era muito fácil, sempre tinha uma casa vazia nas cidades.

Chegava o circo, eles já vinham até oferecer: “olha, eu tenho um quarto lá...”. Naquela época, não

tinha nem imobiliária, era com o proprietário “olha vamos ficar uma semana, quanto você vai me

cobrar por tantos dias?”, pronto. Alugava, na hora de sair, pagava e ia embora. Minha vida toda

foi assim.

Depois, eu fui proprietária de circo. Eu e meu marido. E a vida de circo, só quem dá mesmo pra

isso, porque não é fácil, era tudo muito difícil. As viagens de caminhão – hoje não, hoje o circo é

uma maravilha, todo mundo tem seu trailer, tem o seu carro. Desarmou o circo, ele fala “vou

embora hoje à noite, ou eu vou amanhã? Bom, hoje, ainda vou fazer umas coisas, e está

chovendo, então acho que eu vou amanhã...”. A hora que ele quer, ele sai e vai embora. Naquela

época a gente dependia do caminhão do circo – na hora que o dono do circo falasse “olha, fulano,

você vai amanhã”, a gente tinha que estar com tudo prontinho, pôr no caminhão e ir embora.

Mesmo quando eu tinha meus filhos, era assim. Se eu era a dona do circo, tinha que levar sempre

na cabeça, pra facilitar a vida dos artistas, eu me sacrificava.

[Como assim?]

Por exemplo: eu me lembro, uma vez que eu fiz uma viagem na Bahia, aquelas estradas terríveis.

Era caminhão alugado – a gente alugava os caminhões. Era uma situação ruim, eu vinha mal já há

oito praças, não tinha dinheiro pra nada. Dependendo do tamanho do circo, a gente ia em várias

viagens – se era um circão, eram quatro, cinco viagens; se era pequeno, ia até numa viagem só. O

meu tinha que ir em duas vezes. Aí, eu falei “vão embora, vocês, e eu vou na última viagem” – eu

e meus três filhos. Era longe, e meu marido foi na frente, na primeira viagem; um tinha que ir na

frente e o outro tinha que ficar. Fiquei eu e um casal de artistas que eu tinha, que tinha três filhas

– duas gêmeas recém‐nascidas e uma outra mais velha. Eu falei “meu Deus, como é que eu vou

fazer? Eu vou deixar eles na boléia do caminhão, e eu vou em cima com meus filhos”. Eu estou

acostumada a ir em cima do caminhão. Mas era de noite, com três crianças... ali eu achei difícil.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Eu tinha uma empregada, uma pretinha, magra, muito alta, e eu falei “olha, eu vou amarrar você

lá em cima, no caminhão, pra você não cair. Não precisa ficar com medo, que eu vou com você.”

Aí, eu peguei umas cordas, amarrei a menina, amarrei os meus filhos. A única que não foi

amarrada fui eu porque eu tinha que segurar eles. E lá fomos nós – e já estávamos atrasados: isso

já era quinta‐feira de noite, e a gente tinha que estrear na sexta‐feira – sexta‐feira era o dia da

estréia, não podia perder. Se não, atrasava todas as contas.

E lembro que, no meio do caminho – a estrada era pavorosa –, o motorista disse “a senhora vai

descer daí. Vamos na boléia porque eu não estou dirigindo direto com a senhora aí em cima, com

essas crianças”. Aí, eu desci, e fui eu, minhas três crianças, as três crianças do casal – ele subiu e

ela ficou. Eu pequei os bebezinhos dela, botei meus filhos tudo sentadinho ali, e lá fomos nós. Por

isso que eu falo que as mulheres do circo antigo são maravilhosas – desculpe, mas isso eu tenho

que falar mesmo, porque hoje não se encontram mais, dificilmente. Existem grandes mulheres

hoje em dia, mas com todo o conforto, com recursos... naquela época não tinha isso.

Mas, na Bahia, nós levamos um couro, não ia ninguém ao circo. Pegamos a época de São João –

você sabe que essa época, lá, é muito importante – e eles não entravam no circo, nem que

amarrasse. Até que eu consegui sair. Fomos pra Januária, divisa com Minas. E eu em cima, com

meus filhos, de novo, na última viagem. E, em baixo, ia a mulher com as filhas. Mas, aí, eu já saí

de manhãzinha, porque de noite, não dava. E era uma viagem de um dia inteiro. Arrumei tudo,

pus os colchões – eu ficava fiscalizando a arrumação do caminhão porque tinha que ser daquele

jeito, senão, não dava pra colocar os colchões. Coloquei quatro varas e uns panos por cima, que o

sol da Bahia é terrível. Eu tentava proteger a minha cria da maneira que dava. E meus filhos foram

no colchão. Pra eles, era uma farra, e pra mim também, até que eu gostava! Passava em baixo

daquelas árvores de cajás, aquelas frutas, pegava, ia comendo.... E, sem perceber, eu passei a

viagem inteira com o pé no sol.

Quando nós chegamos, eram umas cinco horas da tarde. Aí, fui procurar uma casa pra ficar. Meu

marido tinha ido buscar minha família em outra cidade, pra poder estrear nessa cidade, que era

uma cidade grande. Quando eu desci do caminhão, eu pensei “o que será que eu tô sentindo, não

tô bem.” Alguém pôs a mão em mim e disse “nossa, a senhora tá ardendo em febre”. É gozado,

porque a gente tinha febre e nem sabia que era febre, porque não tinha tempo de saber que

estava doente.

E procurava, procurava, e não tinha uma casa: nisso, o caminhão descarregando. Às vezes, eu

arrumava uma casa tão grande – dependendo do que achasse, a gente entrava; se o preço era

bom, a gente pegava. Às vezes tinha gente que queria explorar, aí não dava. A gente sempre

alugava aquilo que sabia que podia pagar. Logo, a família das gêmeas já armou a barraca deles, e

eu deixava meus filhos lá e ia procurar. Até que achei uma casinha atrás do circo, ótima pra mim,

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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pertinho. Pronto, aluguei essa casa. Botei minha tralha lá dentro, e tal, e tal, e tal. E eu não tava

agüentando mais nada, com aquela febre alta. E, nesses lugares pequenos, atrasados, não tem

nada aberto, nem uma farmácia. E, mesmo com o meu pessoal – você sabe que o material

humano é muito complicado –, muito pouca gente tinha pra ajudar. Eles achavam que eu tinha

que dar tudo pra eles. Eu mandei chamar a mulher do empregado e ela veio e fez a comida. Na

casa não tinha luz. Eu tinha que levar sempre lamparina, lampião, vela; tudo que iluminava, eu

carregava, e tinha que estar à mão. Chegava e já tinha que pegar, saber onde estava, porque ia

precisar.

Outra vez, o circo estava armado em Diamantina. Eu precisei extrair um dente e fui a um dentista,

lá. Quando ele extraiu, quebrou um ossinho. Pelo amor de Deus, o que eu sofri de tanta dor de

dente... demais! Nessa hora, você procura qualquer um que possa dar um jeito. Aí que eu

descobri que tinha uma faculdade odontológica lá. Eu fiz uma operação, eles tiraram um monte

de ossos, cortaram, fizeram e aconteceram. Eu tomei um monte de antibiótico, e aí foi que eu

melhorei.

[A senhora poderia contar como era o processo de ir de uma cidade para outra, levando sua “casa” e sua família?]

Geralmente, a gente chegava nas cidades à noite. E meus filhos todos acordados, porque

“chegou”, não é? A mais nova querendo mamar. A gente tinha que usar leite em pó, não tinha

outro jeito. Então, já ia tudo certinho, nos lugares. Não podia esquecer nada porque eu chegava

de noite, e não tinha onde comprar. Então, já ascendia o fogo, fervia a água, batia o leite, e ela

mamava – essa era a minha primeira preocupação. Aí, ela dormia, e os outros mais velhos,

ficavam esperando pra comer e dormir. Meu marido armava a barraca com os empregados, e o

resto era comigo. Colocava meus filhos pra dormir e, naquela noite, eu tinha que deixar tudo

pronto porque, no dia seguinte, eu tinha que fazer almoço. E também tinha que ir pra rua,

resolver os problemas burocráticos do trabalho. Às vezes, eu ia lavar fralda, ainda, àquela hora.

Aí, eu arrumava as coisas no armário, ia lá fora, pegava tijolo, calçava – não podia ficar direto no

chão porque quando chovia, mesmo que você fizesse a vala, sempre minava água. Então, tinha

que pôr os tijolos em baixo, pra calçar. Ficava até bonitinha, com cara de casa! O armário de

caixote, uma mesa com o fogão jacaré, as outras malas; armava a cama. A gente usava muito

umas malas de madeira: você chegava, esvaziava, virava, elas já tinham as prateleiras, e virava o

armário. A tampa era a mesa: colocava os pés, assim, e já montava. As camas tinham que ser de

casal, pra facilitar. A gente tinha uns cavaletes e nesses cavaletes punha as tábuas em cima, e

punha o colchão. Às vezes, eu falo que eram até melhores do que as camas que a gente tem

agora. Tinha até berço de armar; tinha cortina, que separava o quarto da cozinha – não era assim

tudo aberto – era tudo legal!... Tô te falando, era uma casa, mesmo!

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A gente tinha tudo, tudo. O fogão não era desses convencionais, sempre era fogão‐jacaré, ou um

fogareiro elétrico, ou um fogão de lenha que a gente fazia lá mesmo, atrás da barraca. Isso

dependia da necessidade e do que tinha. Só sei que a gente se virava e fazia comida. Eu lavava as

fraldas, e não gostava de varal do lado de fora porque o povo passava, o circo não tava armado

ainda, e via aquele varal – aquilo, pra mim, era pavoroso! Então, eu fazia um varal dentro da

barraca, e ali pendurava as fraldinhas. Eu precisava ter uma empregada porque eu tinha três

filhos, era secretária do circo. Tinha umas que iam embora, quando chegavam na cidade, e aí,

tinha que arrumar outra na próxima cidade. E eu precisava mesmo; olha, era uma coisa incrível o

que a gente trabalhava.

Sempre tinha alguém para olhar as crianças quando eu precisava sair: os artistas, alguém – “Você

olha minhas crianças?”, “Olho!”. Cada época tinha uma pessoa; eles não eram eternos. Uns não

gostavam, queriam ganhar mais, aí, iam embora pra outro circo. Era assim. Tinha época que tinha

minha tia, e ela tomava conta dos meus filhos. Às vezes ela fazia até a comida, mas eu não

gostava porque eu tenho um sistema de cozinhar, fazendo economia – são dezoito, vinte e cinco

pessoas – tinha que saber como fazer. Eram dois quilos de arroz por refeição, era feijão adoidado.

E depois, tinha a minha filha do meio, que puxou à mãe; era dona, mesmo, de casa. Ela também

ajudava.

[Como vocês faziam para ir ao sanitário? Onde tomavam banho?]

Banho era na bacia. A barraca é fechada, é uma casa, ninguém entra, então não tinha problema.

Você tinha, lá, o seu quarto divididoa, se precisava, tomava banho. E, também, o circo sempre

teve um banheiro comunitário. Os adultos usavam aquele banheiro. As crianças usavam em casa.

Eu não deixava minhas crianças – eu achava que não era legal, uma fossa, sabe? Eu tinha sempre

um urinol pra elas, depois eu jogava naquele banheiro comunitário. Porque as crianças, quando

iam ficando mocinhas, já iam ficando com vergonha de passar com o urinol, aí, eu dizia “deixa que

eu levo”. Punha um pano por cima, e levava lá. Lavava bem lavado e punha em baixo da cama de

novo. Quando tinha uma casa no fundo do circo, e tinha banheiro do lado de fora – antigamente

era assim –, às vezes a dona deixava a gente usar, principalmente as mulheres.

A gente também pegava água lá. Muita gente boa via a dificuldade da gente e deixava a gente

tomar banho: “toma um banho aí!...”. Aí, eu tomava banho, dava banho nas crianças, levava um

pouco d’água, e vinha embora. Os homens se viram, eles tão sempre na rua, no bar, então eles

ocupam lá. As mulheres sempre arrumavam uma casinha pra não precisar ocupar o banheiro do

a Após a entrevista, Amecy me relatou que o espaço interno da barraca era dividido com cortinas de tecido que separavam os quartos – setor íntimo – da cozinha, sendo que havia, também, uma divisão entre o quarto do casal e das crianças.

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circo. Os homens, pra tomar banho – normalmente, em posto de gasolina tem banheiro

comunitário –, eles iam tomar banho lá; não dava muito trabalho, mulher é que era mais difícil.

Mas, às vezes, a gente chegava num lugar, não tinha nem água. Eu tinha latões, e tinha que levar

cheios d’água. E, às vezes, a gente já vinha de uma cidade que não tinha água, também. Teve uma

cidade na Bahia, que eu cheguei – era umas sete horas da noite, não era muito tarde. Aí, bati

numa casa: “Oi, boa noite. A senhora podia me arrumar um pouco d’água? – Eu não dou água pra

gente de circo”. E, plá, bateu a porta. Minha Nossa Senhora, o que fazer? Aí, sempre tem uns

molequinhos que vendem coisa pela rua: “Filho, tem um bar aberto por aí?”, “Ah, agora não tem

nada aberto, tudo fechado.”; “Então, vai na sua casa ver se você arruma uma garrafa d’água”. Aí,

ele ia até escondido da mãe, trazia a garrafa, pra ganhar um ingresso do circo: “Obrigado, viu?

Você ajudou no circo, então amanhã você volte, que vai entrar de graça”. E saiu pulando: “Ai, eu

vou entrar de graça no circo!”.

[A senhora disse que sua barraca ficava com “cara de casa”...]

É... as pessoas têm mania de falar que o pessoal do circo dorme tudo junto, mora tudo junto,

aquela confusão toda. E elas são sempre são curiosas. Então, eu fazia questão, mesmo, que eles

viessem na nossa casa, pra ver que não era assim; que era igual à vida deles; a única diferença era

que a gente viajava, e cada hora estava num lugar. Mas cada um tinha sua casa, sua cama, a

individualidade existia. Aí, eles começavam a achar a gente normal, como eles, e a tratar melhor.

A única coisa que não tinha era enfeites, essas coisas; não dava pra estar carregando. E também,

não se podia ter muita coisa porque muitos temporais derrubavam, até, barracas. Como é que

você ia ter bibelôs? Não dava. A comodidade que eu tenho hoje, morando num apartamento, por

exemplo, eu não tinha. O que a gente tinha era o bruto mesmo. Em vez do sofá, a gente tinha

uma mala que dava pra sentar em cima; tinha a mesa, que dava pra almoçar; cadeira, tinha à

vontade, porque o circo tinha muita cadeira. Carregava tudo – louça – de uma maneira que não

fosse fácil de quebrar: Pratos, a gente embalava com jornal, e guardava num lugar que a gente

sabia que não estava em falso – tem que saber arrumar uma mala de cozinha, pra viajar. Eu tenho

tanta prática disso, que depois que eu parei com o circo, o que eu já me mudei, você não faz

idéia.

[Mudou‐se?]

Eu criei meu filho mais velho até os treze anos no circo. Aí, eu falei “meus filhos têm que estudar,

eles não vão fazer o que eu fiz”. Porque eu estudei – quer dizer, eu fiz o básico – viajando. As

escolas são obrigadas a aceitar as crianças de circo, em todo o país – isso foi uma coisa boa que o

Getúlio deixou pra gente. Nem que seja uma cadeirinha lá no fundo, que seja por dois dias, elas

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têm que colocar. Então, eu costumava chegar à noite, nas cidades, e se fosse cedo, ainda, eu já

me informava onde tinha uma professora, onde é a escola. No dia seguinte, eu já ia correndo lá e

meu filhos já iam pra escola. Quando eu estava com o Orlando Orfei, tinha cidade que eles só

ficavam dois dias na escola. E aí, eu falei “preciso parar pr’o meu filho fazer o ginásio.

Uma vez, depois de viajar o norte inteiro, o Orlado Orfei veio pra Santos. Aí, eu falei: “agora eu

tenho que aproveitar, senão, eu não paro”. E fui para Campinas – eu tinha muito conhecimento

lá, meu avô morava lá. Passei a morar lá e coloquei meu filho na escola. A mulher de circo sabe

fazer tudo – eu lavei, passei pra fora. Eu tinha três filhos pra criar!

Foi difícil me adaptar a essa vida mais parada – aliás, eu sinto falta das viagens até hoje [risos]. Aí,

eu fui conhecendo, vi as dificuldades que tem. Quando eu parei, eu não conhecia nada da história

cá fora. Só conhecia o mundo do circo.

[Onde a senhora passou a morar depois que saiu do circo?]

A minha primeira moradia foi num trailer, num terreno baldio que um amigo tinha; e ele deixou a

gente colocar o trailer lá. Fiquei eu e os meus três filhos – o meu marido viajava com o circo

Orlando Orfei, nessa época. Não podia parar. Eu parei em Campinas, fiquei com as crianças

estudando e ele viajava. A minha ex‐patroa vendeu o circo e também foi morar lá, com seu trailer.

E lá, a gente já se arrumou: fizemos um banheiro lá. A gente não tinha móveis, era só o trailer.

Então, eu deixei o trailer pra dormir. E lá tinha um barracãozinho de madeira jogado, que eu

resolvi fazer minha cozinha lá. Limpei, já tinha uma mesa, que eu aproveitei . Aí uma vizinha disse

que ia jogar um sofá fora, e perguntou se eu não queria: “Claro que eu quero”, eu disse. E já tinha

um sofá – não importava se fosse bom ou não; o importante é que já tinha alguma coisa. E aí, eu

ia ajeitando e ficava bom. E a minha filha do meio é uma dona‐de‐casa formidável, garças a Deus.

Ela que arrumava tudo.

Depois, eu passei a morar em casa, mesmo. Dois quartos; comprei um sofá usado... Mas nunca

perdeu a cara do circo: minha casa, eu acho que é sempre bagunçada. A minha filha sempre fala

“mãe, você não esquece do circo, mesmo! Arruma esse sofá, varre isso!... Tá na hora de você

chamar a mulherb.” Eu também nem posso estar limpando casa, fazendo faxina porque eu tenho

problemas ortopédicos por ter pegado muito peso, saltar muito.

[Como a senhora passou a morar neste apartamento?]

Ah... isso é uma história! Quando eu vim pra São Paulo – meus filhos já eram crescidos –, eu já

tinha me separado do meu marido. Aí, eu abri um buffet com meu filho. Eu fazia festas de

b Amélia explica que “a mulher é qualquer uma da vizinhança. Tem um monte de faxineiras por aqui.”

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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crianças e confraternização de escritórios. Eu morava numa casa alugada. Um dia, faz uns sete

anos, eu estava na cozinha, fazendo as coisas para uma festa – minha mãe e minha filha moravam

comigo, mas nenhuma das duas estavam. De repente, veio a minha ajudante e disse: “Dona

Amélia, está saindo uma fumaça”. Quando eu passei pela sala, já estava saindo aquelas bolas de

fogo – as bolas subiam no teto. Quando eu fui entrar no quarto, não consegui mais: todinho

tomado pelo fogo! Como a casa era velha, deu curto circuito. Eu comecei a gritar “alguém chame

o bombeiro!” Aí chegaram quatro carros de bombeiro, fecharam a rua. E eles não me deixavam

entrar – porque sabiam que eu tinha coisas lá que eu tinha que socorrer. Uma confusão, e eu

chorando do lado de fora, a rua ficou cheia de gente. Quando eu entrei, que já era de noite, já não

tinha mais nada. A casa ficou toda preta, um castelo mal‐assombrado. Os bombeiros foram só

jogando pra fora, tudo molhado e queimado.

A minha vida pegou fogo: minhas coisas e minhas fotos de cinqüenta anos de trabalho. E eu,

vendo aquilo, não me conformava, eu só fazia chorar. Não salvou nada: os eletrodomésticos

foram todos, a televisão murchou. Minha máquina de costura dava até pra ser aproveitada, mas

eu chamei um rapaz e disse: “pode levar tudo!”, de desgosto... Só as coisas da cozinha, eu

consegui salvar, porque o fogo não chegou na cozinha. Eu tinha algumas peças de ouro numa

caixinha de jóias no quarto fatídico – nada de muito valor, sabe, mas muito importante pra mim.

Essa caixinha derreteu junto com o ouro, não consegui separar nada. Muita coisa os bombeiros

também levaram, né? Foram os primeiros a entrar lá! O fogo fez uma limpeza na minha vida; foi

horrível. De todos os eventos que eu tive na vida, esse foi o maior.

Daí, eu recomecei. Muita gente me deu dinheiro, na minha casa começou a chegar trouxas e mais

trouxas de roupa – roupa de sair, de tudo! –, panelas, colchões, cama, eu ganhei tudo! Do que eu

precisava pra dormir e comer, tudo. Não precisei comprar nada de imediato. E recomecei mesmo.

Aquela festa que eu estava preparando, quando pegou fogo, eu fiz tudo de novo e, mesmo triste,

fiz a festa. Eu tinha que recomeçar. Aí, a sogra do meu filho estava reformando a parte de cima da

casa dela, e ofereceu essa parte pra eu ficar: “Vê o que você consegue fazer lá”, ela disse. Aí, eu

fiquei lá um tempo. Estes apartamentos já estavam quase prontos. Quando inaugurou, eu vim

embora pra cá. E estou aqui há sete anos. É meia‐boca... Mas, Deus sempre me ajudou muito – eu

ganhei uma casa!

Entrevista realizada em 21/12/2004

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Analu

24 anos

Solteira

Musicista e professora de música

Mora sozinha em um apartamento na cidade de São Paulo

[Você poderia me contar como foi sair de uma cidade do interior para vir morar no seu apartamento aqui, em São Paulo?]

Eu acho que o primeiro impacto são as imagens que a gente vê, mesmo, né, as diferenças entre

interior e capital. As primeiras imagens: criança na rua, com oito anos, fumando craque, aquele

monte de gente jogada, você tem que pular os corpos pra poder entrar no seu apartamento. Isso,

realmente, foi bem chocante, assim, deu um certo medo.. Então, nos primeiros três meses, eu

quase não saía – só pra trabalhar. Às vezes, eu preferia ficar lá, colocar um som, ouvir. Muitas

vezes, eu ficava limpando o apartamento o dia todo – que eu tenho uma neura com limpeza e

organização, que é muito grande – só pra não sair. Às vezes eu sento pra estudar piano, aí vejo

aquela camada de poeirinha por cima do piano, eu já fico nervosa. E aqui é aquela poeira preta,

de poluição, mesmo. Então, no começo, se eu não fosse trabalhar, eu, realmente, não saía. Não

saía pra ir num cinema, não saía pra nada. Saía pra ir no mercado, porque tinha acabado comida

em casa, então saía. Mas, era tudo bem, bem estranho, mesmo. Daí, ele foi‐se tornando, mesmo,

o meu refúgio. É um lugar que eu gosto, mesmo, de voltar pra lá. Assim, eu fico contente que eu

vou acabar o meu trabalho e vou voltar pro meu canto.

No interior, eu morei sempre em casa, casinha mesmo, interior, aquela coisa... a última casa que

eu morei foi uma casa extremamente antiga. O chão era tijolão, mesmo. Daí, vir pra São Paulo foi

a minha primeira experiência em apartamento. Assim: você não tem quintal, você não pode fazer

barulho – já começou a ser vetado um monte de coisa. Eu lembro que o primeiro dia que eu fiquei

em casa, eu comecei a ficar louca porque eram vários sons: tocava interfone, campainha, telefone

fixo, que até então eu não tinha, e o celular... Aí, eu falei, “Deus, nossa, me ajuda!”. Às vezes

tocava o interfone, eu ia pro telefone, tocava o celular, eu ia pra campainha... uma coisa louca!

Mas, agora, esse apartamento, eu acho que eu acabei adaptando ele como um refúgio, e isso

perdura até hoje, porque é um espaço bacana – é um apartamento antigo: é um quarto, sala,

cozinha, banheiro. Ele tem a minha cara, mesmo. Quem chega, quem me conhece, fala assim “pô,

é a tua cara”... o clima, a energia, a distribuição das coisas. E ele é muito silencioso, ele é

espaçoso... eu gosto – gosto dali.

[Por que você escolheu morar ali?]

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Porque, antes, morava uma amiga minha nesse apartamento, e quando eu vinha de Tatuí pra cá,

pra trabalhar na escola, eu já ficava ali, eu já dormia com ela de quarta pra quinta. Mas, já na

época da minha amiga, que eu cheguei no ap, eu olhei e eu gostei. Era uma sala grande,

retangular, o quartão, cozinha legal, tal. E aí – ela era americana –, o pai dela faleceu e ela voltou.

E, já naquele impasse de eu vir pra cá, eu acabei ficando ali. Então, é super‐bacana porque, na

verdade, eu achei que ele veio pra mim!

E agora, a minha casa, ela é assim: a minha mãe é costureira, então, muitas coisas que tem em

casa, é ela que fez. Então, assim: eu moro longe dos meus pais fazem cinco anos, vai fazer seis.

Então, eu gosto dessa coisa que a minha mãe tem, de fazer as coisas pra mim, porque, pra mim,

eles tão ali. Então, assim, tem o violão – o violão é o meu pai, porque o meu pai toca. E, mesmo

essa coisa da organização, que eu falei que eu sou bem noiada com limpeza: eu gosto de tudo

organizado e tudo limpo, mas também não gosto daquela casa que parece casa de boneca, que

não mora gente. Então, eu acho que a movimentação das coisas é importante, a troca de lugar.

Ou mesmo, se eu li um livro, deixar esse livro lá, porque ele tá tendo um dinamismo ali.

E as coisas de casa... é assim: os meus móveis é tudo cada um de uma cor, cada um de uma coisa

–porque desde que eu saí de casa, eu saí pras vizinhança lá, da minha mãe: “olha, quem tem

fogão pra dar, quem tem mesa pra dar, me dá aí, porque eu vou morar fora e não tamo com

grana pra comprar nada, agora”. Então, a primeira mesa que eu tive era mesa bem antiga, mas

bem fortona, assim; que a mesa já veio de um bazar, que já tinha sido de não sei quem. Beleza, a

mesa. As cadeiras, meu pai sempre mexeu, também, um pouco com madeira, então era assim,

uma cadeira era uma mais alta, outra era mais baixa, em tons diferentes. E eu penso muito nisso,

assim, cada coisa que eu adquiro, às vezes, eu penso de benzer. Porque já veio de uma outra

história e vai começar uma nova história. Eles tiveram em outras casas, com outras vivências.

Mesmo essa cama que eu comprei agorac – pô, ela é de 1940! Quanta coisa não rolou, quanta

gente, de repente, já chorou em cima dela, já sorriu, né, fez milhões de filhos, teve uma noite boa

ou ruim de sono... de repente é válido benzer... ou passar um bom pano com lutra‐móvel [risos],

jogar umas pétalas de rosa... Porque eu acredito mesmo nisso, que cada coisa tem seu histórico;

como a minha casa – ela é composta por coisas que foram de outras pessoas, elas tão vibrando

ali, também.

O sofá – o sofá, eu arrumei um sofá há uns dois anos, que era de um amigo meu. O pai dele fez

esse sofá – que eles moravam na Inglaterra –, então, é um sofá com a estrutura de madeira, mais

ou menos num tom claro assim, e as almofadas, eram seis almofadas que, simplesmente, jogava

os assentos e jogava o encosto. Aí, ele era todo molenga, as almofadas tavam lá, era aquele

tecido até hoje, depois de vinte anos, e tal, o sofá já era de uma república... aí eu falei “meu Deus,

c Analu contou‐me, antes da entrevista, que havia comprado uma cama em um antiquário.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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esse tecido vai ter que sair daqui. Não pode ficar, não adianta nem benzer, nossa... não.” Aí, a

minha mãe, com a arte dela, da costura, ela renovou, então, o sofá. Meu pai parafusou todo ele,

reforçou, a minha mãe fez novas almofadas, com tecido novo. Com o tecido que sobrou da

reforma desse sofá, a gente fez uma cortina pro quarto, com um varão; simplesona, assim – deu

um nozinho, lá, e ficou o máximo. É um verde, um verde bacana.

As coisas da sala também são todas assim: uma rackezinha da tv era da minha irmã, uma mesinha

que eu tenho é conjuntinho com o sofá. Agora, eu mudei tudo: tirei a tv da rack e passei pra

mesinha. Então, quem freqüenta em casa, a gente começou a ver tv, agora, tudo espalhado pelo

chão. Que em casa tem uma movimentação bem grande, assim, de amigos. Que eu gosto muito

de morar sozinha e de ficar sozinha. E também gosto muito da movimentação que acontece

naturalmente. Eu atribuo o fato de as pessoas gostarem de vir em casa, e de ficar, porque elas se

sentem bem ali; e elas falam isso.

Que mais eu posso falar da minha casa? Eu costumo freqüentar muito a sala, mesmo. Ela é o meu

local. O quarto, eu só vou pro quarto pra dormir, mesmo. Até à tarde – é muito difícil eu dar uma

deitada à tarde, mas –, se eu deito, é na sala. Porque é na sala que tá o som, é na sala que tá

minha pequena biblioteca, a parte de discos, e tal. Então, o circuito, mesmo, da casa é a sala. O

quarto, eu vou pra deitar, ou pra pegar uma roupa, que eu vou tomar banho... agora, eu tô

começando a freqüentar mais por causa da cama – agora tem uma protagonista ali [risos].

Quando ela chegou, eu mudei todo o quarto, coloquei as coisas tudo pro lado, pra cama ficar

assim: “ela é de 1940; ela é assim porque é original!!”

Tudo que eu pego é usado, mas eu gosto de olhar assim: eu quero que o negócio dure mais

cinqüenta anos. Já viveu cinqüenta, então, agora, vai viver mais cinqüenta. Essa coisa de móveis

da casa Bahia, que você bota a mão e faz nhec, nhec, nhec, parece que aquilo não vai receber

nem energia nenhuma na convivência com ele [risos]. Ele não tá capacitado pra isso [risos]; se

começar a mandar muita coisa ali, ele vai começar a despencar, não agüenta [risos]! Móveis, é

uma coisa que eu sempre desejo ter. Eu gosto muito de coisas antigas porque eu acredito mesmo

nessa coisa de elas trazerem coisas pra dentro, energeticamente, outras vibrações. E, ao mesmo

tempo, também, são móveis que vão resistir a experiências novas. Minhas panelas também têm

uma super‐história porque é de quando meu pai e minha mãe casou. Isso, já tá com trinta e seis

anos, acho. Então, são tudo panelas, nem falo antigas, porque são velhas, mesmo. Mas, são

fortes, são resistentes, eu gosto.

E aí, a casa é isso, assim. Ela comporta momentos de alegria, de tristeza, de dúvidas, de angústias,

de medo... e ela me protege, mesmo. Eu tenho ali, com meu refúgio; tipo assim, graças a Deus, eu

tenho esse ponto pra voltar, sabe? Eu gosto desse ponto, e ali eu me sinto bem. E ali eu estudo,

ali eu trabalho, ali eu reúno meus amigos, a gente toma cerveja, a gente ouve um som, a gente

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toca, a gente dança – o vizinho de baixo reclama, daí, a gente pára – e amanhã começa tudo de

novo.

[Como é voltar pra casa dos seus pais?]

Ah, ali, eu não tô voltando mais pra minha casa. A minha mãe usa muito isso “vem pra casa, vem

pra casa”, até hoje – faz seis anos que eu saí. Eu falo, “mãe, eu já tô na minha casa. Se eu for, é

pra casa da senhora”. Lá, eu fico bem, fico tranqüila, assim, mas, tipo, meu quarto, já não sinto

meu quarto, né, porque tem milhões de coisas do meu pai, acabou virando um depósito, mesmo.

Eu tenho uma coisa, assim: mesmo que eu vá na casa de outra pessoa pra ficar uns dias – eu me

acho até chata –, eu fico ali quietinha, mas eu tô olhando o que eu tô gostando e o que eu não tô

gostando. E eu tenho a manha de remover coisas que eu não gostei, e deixar do meu jeito! Sei lá,

eu vou ficar três dias ali, então esses três dias, eu vou alterar tudo, depois eu volto do jeito que

tava... mas é pra eu ficar bem ali. Tem a casa da avó do meu namorado, que é na Serra da

Cantareira. Uma casinha bem simples, bem humilde; e ela tá velhinha, coitada, tem milhões de

cachorros, não pode limpar a casa direito. Daí, eu vou lá pra passar o fim de semana e penso “eu

vou pegar uma doença, contaminada pelo cocô desses cachorros”. É impressionante minha

cabeça, às vezes, eu penso “pára de ser assim!”. Mas, eu vou lá três dias, aí eu faço a faxina, eu

arrumo tudo, coisa por coisa num armário, tiro coisa que tá espalhada... Aí, beleza, passou três

dias e eu fiquei bem aqui. Onde eu vou, eu tenho essa coisa.

E isso, principalmente na minha casa: pra você ter uma idéia: às vezes eu vou pra casa dos meus

pais, fim de semana, e meu namorado, às vezes, fica em casa. Isso, a gente tá junto há seis anos, e

eu passei a deixar isso acontecer de uns dois anos pra cá, que eu nunca curti, não. Porque ele é

bagunceiro, ele é desmazelado... Então – ai, meu Deus –, eu chego em casa, eu não chego e vou

cumprimentar ele. Eu chego procurando o que tá fora do lugar pra eu voltar de novo, tirar o pó,

tirar a sujeira. Só depois que eu chego, arrumo a minha mala de volta, as roupas no guarda‐roupa,

e dou uma geral, aí que eu olho no olho dele e começo “agora, vamos conversar, agora tá tudo

certo”.

Entrevista realizada em 09/02/2007

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Aristides

43 anos

Casado, 1 filho

Fotógrafo e professor de fotografia

Mora com a mulher e o filho em uma casa no município de Jacareí , estado de São Paulo

[Você pode falar um pouco da sua casa?]

Eu moro há dois anos na minha casa atual. Eu morava no Jaguaré, numa avenida; isso eu não

quero nunca mais. Tinha muito prédio em volta, não tinha privacidade nenhuma. Queria morar

num bairro mais afastado da cidade, melhor. Da minha casa até o trabalho, eu lavava uma hora e

meia. Agora, que eu moro em Jacareí, eu levo uma hora. Moro em um bairro fechado, sem acesso

por outro lado; é como se fosse um condomínio: você entra por uma portaria.

A gente pegou esse terreno do zero e foi levantando. Eu projetei minha casa para estar de acordo

com o meu modo de vida. Eu não sou arquiteto, mas sabia o que queria, e pedi para fazer:

primeiro eu queria uma puta de uma cozinha: minha casa ser só a cozinha. Mesmo porque, eu

venho de uma família que tem a tradição de ficar na cozinha, família italiana. Tanto é, que na casa

dos meus pais não tem cadeira, é banco. Quando não tem ninguém, é vinte, trinta pessoas.

Sou apaixonado por fotografia e por comida. Sou fotógrafo de culinária, então, minha vida é ou

fotografando ou cozinhando. Então, na minha casa, o cômodo principal tem que ser a cozinha. Eu

e minha mulher temos esse pensamento em comum. Tanto que ela não cozinhava, quando a

gente casou; quem cozinhava era eu. Depois de uns dois, três anos, ela procurou aprender a

cozinhar. Hoje, ela cozinha bem. Ela também trabalha com fotografia. Eu cuido da parte de

comida salgada e ela da parte de comida doce.

[Você poderia descrever a sua casa?]

A entrada da casa é pela cozinha. Tem a cozinha em baixo e o resto dos cômodos em cima. Na

cozinha tem computador, telefone; Tudo o que eu preciso para me comunicar em meu trabalho

está lá. Ela equivaleria, na minha casa anterior, à garagem, à sala e a um banheiro. O pé direito é

alto, é toda branca. O resto é pequenininho: o meu quarto, o do meu filho, o escritório, dois

banheiros. Quando a gente programou essa casa, já previa que um cômodo era para o bebê, o

outro era pra gente...ele já tinha o cantinho dele, mesmo antes de ser projetado. Não tenho uma

sala de visitas. Tem só uma salinha onde a gente lê, onde a gente pesquisa, que, na realidade, é o

meu escritório. Eu recebo meus amigos na cozinha. Lá, eu tenho uma mesa de oito lugares. Ou o

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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pessoal fica na mesa, ou em volta do fogão. O meu filho já curte a cozinha. Ele brinca muito na

cozinha.

Antes do meu filho nascer, a gente recebia muito mais gente; hoje não tanto. A gente virava a

noite...não sei, acho que os amigos se afastaram um pouquinho, talvez por causa disso [o

nascimento do filho]. E agora é que eles estão retornando. Antes, ele era bebezinho, a gente tinha

que dar mais atenção. Hoje, eu recebo bem mais gente.

Eu experimento muito na cozinha. Por exemplo, o estrogonofe que eu aprendi a fazer com a

minha irmã. Ela faz um estrogonofe maravilhoso, mas eu mudei tanto a receita, que ela fala que

não tem mais nada a ver com o que ela faz. Ela fala que é o melhor estrogonofe que ela já comeu.

Receita da minha avó, que eu mudei... Mudei receitas da minha mãe, molhos de macarrão... Eu

comprei umas panela de ferro, nem estreei ainda. A comida, a partir da semana que vem, é na

panela de ferro. Comprei uma coisa que a minha avó fazia, que é uma “estrela”: um bastão,

assim, com umas pontas de ferro. Você roda assim [mostra], pra picar o feijão. O caldo fica mais

grosso! Nossa, é maravilhoso!

A única coisa que está acontecendo, agora, é que nós vamos mudar de novo, mas para uma casa

um pouco melhor que essa. Porque a minha casa é o meu estúdio, hoje. Muitas coisas eu

fotografo dentro da minha cozinha e já mando pro cliente por e‐mail. Só que, com esta minha

cozinha, eu não estou tendo espaço suficiente para trabalhar e viver na minha casa. Por

exemplos, na minha cozinha não tem como eu colocar um fogão a lenha, eu quero o meu

cantinho a lenha. Mas eu quero a minha tecnologia também. Então, a gente comprou um terreno

e está projetando. É que eu não tinha um canto pra fotografar; agora eu vou ter.

A gente tem uma empregada pra cuidar da roupa. A gente [ele e a esposa] tem um trato: toda

sexta‐feira a gente faz faxina na casa. Os dois limpam a casa. A gente pegou o hábito de fazer isso

desde que está junto: limpar, tal. A gente curte bastante a casa.

[Você viaja muito a trabalho? Como é, para você, ficar longe de casa por um período mais longo?]

É, às vezes, eu tenho que viajar, aí eu fico uma temporada fora de casa, trabalhando,

fotografando: quinze dias, um mês. Eu sou mergulhador, faço fotos submarinas; eu já cheguei a

passar dois meses fora – foi o máximo de tempo que eu passei: participei de uma expedição com

a equipe de Cousteau nas Ilhas Fiji. Nessas viagens, eu já dormi em banco, na areia, em barraca,

em rede; durmo no chão, na cama; já fiquei sem tomar banho vários dias, por não ter condições

de tomar banho, mesmo! Uma vez fiz um trabalho para o pessoal do IBAMA e da Petrobrás que

era uma iconografia do descobrimento do Brasil. Fiquei numa aldeia Pataxó durante 28 dias. Foi

uma experiência gostosa. Eu tenho saudade dessa turma, dos índios.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Mas, desde que meu filho nasceu, eu só fiquei fora uma semana, foi o maior tempo. Depois não

fiquei mais. Mudei totalmente. Antes do meu filho, eu não sentia falta de nada. Sabe do quê eu

sentia falta? Quando não tinha fotografia digital, eu só sentia falta de revelar, do meu laboratório,

pra manipular minhas imagens – a primeira coisa que eu faço, quando chego em São Paulo, é ir

pra casa, pegar o material e mandar pro laboratório. Ou editar o material que eu tenho feito.

Porque eu levo o computador, mas não dá tempo de editar tudo.

Eu sinto falta de coisas novas. Se não tiver coisas novas no meu dia‐a‐dia, se a minha vida

começar a ser todo dia aquilo lá, aí, acho que não dá. Mas também é bom pensar que a casa tá lá,

ela vai ficar ali, e eu sei que eu vou voltar.

Eu e minha esposa estamos sempre querendo renovar, mudar. Com o meu filho, cada dia a gente

mostra uma coisa nova pra ele. Quando ela estava grávida, a gente ouvia muita música. Mas, cada

dia era uma música diferente. Nós nunca repetíamos a mesma música – estilos diferentes, para

ele conhecer. Ele não brinca muitas vezes com a mesma coisa. Uma brincadeira dele nunca é igual

à outra. Cada dia é um filme diferente, uma brincadeira diferente. A gente não assiste “Xuxa”,

“Teletubies”. É engraçado, a gente conseguiu fazer com o Enzo [o filho] o que a gente queria.

Porque a nossa vida já era assim. Cada dia a gente estava num lugar diferente, conhecendo gente

diferente. Eu queira que ele fosse assim.

Entrevista realizada em 25/10/2004

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Christiand

52 anos

Separado, 1 filha

Professor de inglês e tradutor

Mora em um conjunto habitacional para estrangeiros em Riad, capital da Arábia Saudita

[Onde você nasceu?]

Eu nasci em Cape Town, África do Sul. A casa onde eu cresci era uma casa de três dormitórios,

num subúrbio a mais ou menos sete quilômetros de Cape Town.

[Você poderia contar‐me sobre como começou a considerar a possibilidade de deixar seu país? Também gostaria de saber como foram as suas formas de morar nos diversos lugares onde já viveu.]

Ainda na África do Sul, eu me tornei fortemente ligado ao fato de que meus interesses

começaram a divergir dos dos meus amigos. Eu gostava de viajar para o campo sozinho. Eu

também gostava de “descobrir” pequenas comunidades de estrangeiros e aprender suas línguas.

Foram esses dois interesses que, em última análise, me levaram a partir em uma viagem de

descobertas, que me levaria muito além das fronteiras que mencionei. Vindo de um grande país,

de relativa baixa concentração de população, como a África do Sul, não se tinha que ir longe para

se estar longe das pessoas, e isso era algo que eu fazia o tempo todo. Ao invés de ir beber com os

outros estudantes, eu ia o mais longe que o tempo e os recursos permitiam, dormia sob as

estrelas, andava de carona, etc.

Minha primeira casa, após ter deixado a casa dos meus pais, foi uma cabine de um navio

cargueiro, que me levou para a Itália, via nordeste da África e o Canal de Suez. As próximas casas

consistiram em uma combinação de quartos compartilhados, normalmente em apartamentos,

mas, algumas vezes em casas particulares. Eu tenho uma casa perto de Londres, onde eu fico de

vez em quando, mas minha experiência de casas em outros países tem sido variada, dependendo

das circunstâncias dos meus empregos e da minha situação financeira: um conjunto habitacional

para trabalhadores estrangeiros no Irã e na Arábia Saudita, como moro agora; uma série de

experiências de apartamentos partilhados no Brasil, e, anteriormente, na Inglaterra e França – e

hotéis (quando eu tocava música profissionalmente na Alemanha, Bélgica, e em Atenas).

d Pelo fato de Christian não morar no Brasil, sua entrevista foi realizada via e‐mail.

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Espaços confinados tiveram sua parte em minha vida, mas mais quando eu era bem jovem, como

meio de criar um espaço separado e, talvez, uma identidade. Ser chamado para dentro para

jantar, eu lembro que era terrível, porque você era forçado a abandonar aquele recém‐criado

espaço pessoal, para voltar ao espaço comum, rotineiro da casa da família, e a todas as suas

associações e significados de autoridade.

[Você, hoje, mora na Arábia Saudita. Em quê sua forma de habitar difere da que você tinha em São Paulo?]

Ainda estou na Arábia Saudita, embora tenha acabado de chegar da África do Sul e da França,

aonde eu fui de férias. Eu estou gostando do trabalho. É estável, bem pago; eu vivo no que eu

poderia considerar equivalente a um hotel cinco estrelas, e tenho refeições todos os dias, então,

não posso reclamar.

De um ponto de vista, minha casa em São Paulo era funcional: um espaço autônomo olhando

além do próprio presente dele para um ponto invisível no futuro. Seu mobiliário, essencial e

esparso, refletiam o estilo de vida itinerante do seu ocupante; um estilo também partilhado por

um crescente número de indivíduos que cresceram dando igual importância a sustento e

mobilidade. Ao mesmo tempo, ele possuía um significado denotativo, mais do que a variedade

conotativa incorporada no conceito tradicional de “casa” da minha infância, com suas memórias e

associações ligadas por um senso de continuidade. Casa, em São Paulo, representava um conceito

móvel, viajando através do tempo, e eliminando referências, mais do que as acumulando.

[Como é morar em um “quarto de hotel” em conjunto habitacional para estrangeiros?]

Sem muito espaços partilhados, mas, de fato, um teto partilhado, abaixo do qual uma série de

atividades são partilhadas por um grande número de pessoas, numa configuração humana de

padrões interativos, aos quais eu, como um habitante, posso me ajustar e alternar para atender

às minhas necessidades. Há uma certa hierarquia de espaços, dependendo do status de cada um,

aqui. No momento, moro em algo parecido com um quarto de hotel, um de muitos enfileirados

numa infinidade de corredores, ocasionalmente contendo um refrigerador de água, e todos, no

final, dando num centro de recepção.

Se eu quisesse, eu poderia me inscrever para uma vila, a qual eu poderia, então, dividir com outra

pessoa, onde eu teria mais espaço, uma garagem e uma cozinha. No entanto, eu prefiro viver

neste distanciamento da humanidade, uma vez que ele me permite transitar entre grandes

grupos de pessoas, com quem posso interagir, ou as quais posso ignorar, no meu lazer. Eu gosto

de poder desaparecer num espaço totalmente individual e, depois, reaparecer num lugar comum,

quando eu sinto necessidade. Morar num quarto de hotel cria um “efeito telescópio”, no sentido

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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de que eu posso ajustar minha proximidade a outras pessoas à qualquer hora, de acordo com

minhas necessidades, enquanto que dividir uma vila me impediria essa flexibilidade e, portanto,

em última instância, atrapalharia minha liberdade.

Mas veja, o termo “quarto de hotel” é, talvez, mal interpretado, uma vez que a palavra “hotel”

significa um espaço comum de lazer, onde pessoas, mais do que nunca, preferem a companhia de

suas famílias e parceiros(as). Neste caso, é o fato de elas estarem longe de suas famílias e

companheiros(as) que cria a dinâmica de se fazer amigos.

Eu acho que meu espaço é como uma concha, algo no qual eu posso me recolher, mas não um

refúgio, onde eu me escondo da vida e das pessoas. Eu, simplesmente, gosto dessa vivência

periférica. Eu conheci algumas pessoas aqui que gostariam de me conhecer melhor, mas me vi

inventando desculpas para não deixar que isso acontecesse. Eu gosto de me sentir cercado de

pessoas, enquanto que permaneço mantendo minha distância delas – e há uma fonte

infinitamente renovável aqui.

[Como é a relação com as pessoas que você vê todos os dias no hotel?]

A co‐habitação de tantas pessoas sob o mesmo teto é, em si, uma potencial área de estudo.

Muitos dos que deixam a Arábia Saudita voltam – alguns, até mesmo, depois de cinco anos. Eu

sempre me perguntava se isso é por causa do dinheiro, mas então, me ocorreu que deve ser outra

coisa.

Já que a maioria das pessoas, especialmente nos países de primeiro mundo, vivem vidas

relativamente isoladas, o constante contato que se tem aqui – ainda que seja opcional – cria a

sensação de convivência. As pessoas tomam o café da manhã, almoçam e jantam juntas; elas se

encontram no salão do café. Freqüentemente, alguém compra um computador novo, uma

câmera, um instrumento musical, e convida os outros para ver, caindo de volta nos padrões de

interação humana que eram comuns durante a adolescência. Como alguém se reajustaria a viver

numa comunidade “normal”, depois disso é o que todos se perguntam! Aqui, arquitetura é

definitivamente instrumental no sentido de formar padrões de interação. Naturalmente, há vários

graus de proximidade, dependendo da idade, interesses e experiências profissionais comuns – o

que, portanto, dá uma variedade de pessoas, entre as quais se pode escolher os amigos.

[Como você organiza o espaço interno do seu quarto?]

Eu comprei um pequeno aparelho de som pra mim, que já virou parte da mobília. Eu também

comprei um piano elétrico, e isso se provou particularmente um fator de bem‐estar. Junto com as

outras peças do mobiliário do meu quarto, eu criei, agora, a ilusão de casa, a qual, combinada

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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com um sortimento de after‐shaves no armário do meu banheiro, ajuda a aumentar a intimidade

de minha privacidade. Ler também ajuda.

[Existe algum plano de mudança para uma casa “de verdade”?]

Acabei de chegar da África do Sul, onde estive de férias. Lá, de uma forma tradicional, todas as

pessoas que eu visitei vivem suas vidas isoladas em suas casas isoladas. Suponho que, em algum

estágio, é importante tomar a decisão sobre se viver na própria “caixa” vale a chateação em

relação à manutenção e à constante despesa que envolve o ter uma propriedade. Pessoalmente,

eu prefiro a liberdade que vem com não possuir minha própria casa, ou melhor, morar numa casa

que eu não possua. De novo, isto está conectado ao estilo de vida e trabalho que me levam para

lugares diferentes em volta do mundo, tornando impraticável possuir uma casa, exceto, talvez,

como um investimento.

...

Eu devo ter mencionado que eu acabei de chegar da África do Sul e, estar de volta à Arábia

Saudita é, na verdade, bom, apesar da reputação ser de lugar que proíbe o álcool, a interação

entre homens e mulheres e muitas outras coisas, geralmente consideradas indesejáveis ou

desagradáveis. No entanto, tive um definitivo sentimento de estar em casa. Eu comentei isso com

um amigo e colega meu, aqui, e ele disse que sentia a mesma coisa sobre voltar para a Arábia

Saudita, até ele e sua esposa alemã comprarem sua casa na Alemanha, a qual eles, agora,

consideram lar.

[Como foi a decisão de se mudar de São Paulo?]

De certa forma, foi um momento de crise na minha vida, como um todo; com o fato de perceber a

necessidade de uma maior segurança financeira. Ficar correndo atrás de alunos particulares não

era engraçado, num lugar como São Paulo, com todo o seu tráfego e naturais níveis de estresse, o

que ficou mais acentuado depois do meus cinqüenta anos – e isso também era parte do

problema. Deixar São Paulo quando deixei foi a melhor coisa possível que eu pude fazer. Eu

concordei em ficar aqui até o fim do meu contrato, que termina em setembro de 2006 [um ano e

meio, ao todo]. Após esse período, deveria voltar para São Paulo. Eu acho mesmo é que estou

adiando... “e na hora H”...!!?

Sabe, Érica, é estranho, mas eu estava conversando com uma enfermeira amiga minha, por

telefone, ontem à noite, e nós estávamos discutindo as razões pelas quais é difícil para os

estrangeiros, como nós, que estiveram na Arábia Saudita por vários anos, se adaptar de volta aos

seus países de origem, que, no caso dela, era o Canadá, mas que poderia ser qualquer lugar. A

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

312

vida, aqui, em nossas residências, muitas vezes, é comparada ao voltar à escola. Ocorreu‐me que

isso poderia ser por causa das figuras da autoridade e outros fatores de repressão que há aqui.

Nós moramos num país que proíbe o divertimento. Você não pode namorar, beber, ouvir música,

etc. Isto é imposto pelo próprio governo. Isto, portanto, precisa ser apoiado pelas pessoas para

quem você trabalha, que são, em última instância, responsáveis por você, portanto, a autoridade

elevada ao quadrado. Para sua própria segurança, você mora em um compound (interprete como

instalações de internato). Nesses compounds, para aqueles que não são casados, são segregados,

portanto, nada de sexo, apenas tsunamis de testosterona: de volta ao pátio da escola!

Agora, de repente, se voltamos para o Canadá ou qualquer lugar: nós não estamos mais limitados

pelo mesmo tipo de autoridade, não vivemos mais em pequenos círculos conspiratórios. Não há

mais empatia, não mais fofocas, não mais coletividade, atividades comunitárias. Há apenas um

apartamento onde você vive por sua conta, cozinha para você, e faz tudo o mais por sua conta, ou

com uma outra pessoa. Você ganhou sua liberdade, mas você também perdeu um certo espírito

comunitário, criado de uma resistência ou desobediência à autoridade, e os laços que

acompanham tudo isso. Você percebe que foi projetado no mundo selvagem – de novo!

Espero não me tornar vítima das minhas próprias teorias.

Estou indo para a França amanhã!

Entrevista realizada no período entre 02/03/2005 e 14/10/2005

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Antonia

77 anos

Viúva, 1 filho

Dona‐de‐casa

Mora sozinha em uma casa na cidade de São Paulo

[Há quanto tempo a senhora mora nesta casa?]

Eu moro aqui desde o ano de 1977 – março. Ano que vem vai fazer trinta anos. Antes, nós

morávamos numa casa muito grande, muitos cômodos. Só de banheiro, eram oito! Era muito

grande pra nós – eu, meu marido e a minha mãe. Meu filho, já em julho de 77, ele casou. Aí,

achamos que a casa era muito grande pra nós. Só de banheiro tinha oito! Era muito cansativa! E

eu não queria mais depender de empregada.

Daí, eu comecei a procurar uma casa menor. Eu saía com o corretor e ia procurando. Nós

pensamos, inclusive, em mudar para um apartamento, mas o meu marido queria ter as plantas

dele, mexer nas orquídeas dele... Teve uma outra casa que eu gostei mais do que esta. Eu vou

falar – sabe por quê? Porque ela tinha uma escada de mármore branco. Eu acho muito bonito. E

ela também tinha garagem coberta, que esta não tinha. Mas a gente acabou ficando com esta

porque eu gostei da rua e o meu marido se encantou com o morro que tinha aí atrás. Era um

morro que ia até o fim do terreno. Aí ele construiu a garagem e fez o caramanchão.

Meu marido já ia se aposentar. Ele ainda trabalhou um ano – nesta casa. Então, como essa casa

era uma casa menor, eu achei que ele teve muito sossego. Ele se distraiu fazendo o caramanchão,

arrumando a garagem; fez um quarto pra guardar as bagunças da casa... E eu achei que ele

acabou gostando muito daqui, viu? Nunca ouvi ele falar que eu tinha feito coisa errada, que ele

preferia outra coisa. Os meus netos também aproveitaram muito esta casa porque eles moravam

em apartamento, então adoravam vir pra cá. Eles brincavam, passavam o dia inteiro brincando

aqui.

[E a senhora?]

Eu gosto muito daqui. Eu vou ser muito honesta: eu sou muito caseira; eu até acho que eu sou

exageradamente caseira! Sabe, eu adoro passear, ir ao supermercado, a um restaurante com os

meus netos, com o meu filho e a minha nora, tudo isso eu gosto. Mas, chega uma hora que eu

quero é a minha casa. Chegar, pôr o chinelo e ficar à vontade. Também, se eu não sair, tá tudo

bem; eu tô na minha casa, tá tudo bem.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Mas, também eu penso assim: esta casa não é minha; esta casa é de Deus, e Ele me empresta esta

casa. Quando eu sair, ela vai ser emprestada para outra pessoa. Eu já me mudei dez vezes na

minha vida!

[E se a senhora precisar mudar‐se daqui?]

Eu acho que eu vou ficar muito triste. Olha, eu vou dizer: eu nunca choro, mas seu eu sair daqui,

eu tenho certeza que eu vou chorar. Afinal, são trinta anos aqui! Mas o meu filho acha que a casa

ficou muito grande pra mim, que não é bom eu morar sozinha, e que é melhor eu me mudar para

um apartamento. Ele já até mandou uma corretora avaliar a casa. Eu não sou mais tão jovem – eu

já tenho 77 anos! – mas, por enquanto, eu me sinto, ainda, muito bem... solta! Eu fico totalmente

segura, não tenho medo nenhum de dormir aqui. Eu já falei pra ele, mas ele não entende, não vê

isso – ele se preocupa, né?

Agora, a única coisa que eu tenho medo, se eu for morar num apartamento, é de me sentir muito

presa, muito fechada. É disso que eu tenho medo. Aqui eu vejo os vizinhos, que são muito bons,

vou na padaria, dou uma chegadinha ali... Eu gosto dos meu vizinhos daqui porque eles não são

de luxo, é todo mundo simples, boa gente.

Mas, também, eu tenho uma amiga – ela tem 83 anos – que mudou para um apartamento, e está

felicíssima. Ela disse que vai pra piscina do prédio, conversa... está adorando! A filha dela mora

pertinho, no outro bloco... Quem sabe, né?

[Obrigada por me falar sobre a sua casa.]

Você não me perguntou qual é a parte da casa que eu mais gosto!

[É verdade. Qual é?]

É o meu quintal. Eu adoro lá.

[Por que?]

Acho que é porque bate sol. A minha mãe também adorava. Ela ficava lá... e fazia as coisas dela, e

lavava, e limpava... cantava... Você lembra? Ela cantava em italiano! Foi lá no quintal que o meu

marido construiu aquele quartinho onde a gente guarda tudo o que é de bagunça – precisa ter,

né? Minha mãe punha tudo nesse quartinho! É no quintal que eu fico de manhã. De tarde, eu

venho pra sala.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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[E seu quarto?]

Eu não gosto tanto. Eu acho triste. Depois que o meu marido morreu, ficou triste.

Entrevista realizada em 08/08/2006

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Lorena

78 anos

Viúva, 2 filhos

Dona‐de‐casa e secretária aposentada

Mora sozinha em uma casa na cidade de São Paulo

(Depoimento gravado:)

[Há quanto tempo a senhora mora nesta casa?]

Fiquei sabendo de um terreno à venda, aí, eu disse: “Eu vou falar com meu marido, ele vai ver,

vamos ver quanto é”. Aí, realmente, nós compramos metade do terreno. Aí, depois, a mesma

pessoa que tinha nos vendido, ele tinha mais um pedaço; aí, eu comprei o resto do terreno. Aí,

começamos a comprar o material – aos poucos, sabe como é que é? Eu, ele, sem muito dinheiro,

sabe? Aí, fui fazendo a casa “do jeito que a gente queria”. O Cícero tinha três anos e o Edson era

bebezinho.

[E como ficou a casa?]

Deixe eu pensar, já estou esquecendo... Eu tenho aí as fotos. Era menor, a frente não era assim, a

garagem era lá no fundo, era completamente diferente. Mas, bonita... tinha um terraço bonito na

frente... O meu marido tinha um amigo que era engenheiro da Prefeitura. Antes de eu casar com

meu marido, meu marido morava na casa dele – era hóspede. Então, meu marido era muito...

adorava esse amigo. E ele que trouxe as plantas da minha casa, na frente. Coisas bonitas, nos

vasos que ele mandou fazer. Naquela época, ele era engenheiro da Prefeitura... Esse amigo tinha

um filho que chamava Cícero. E o meu marido botou o nome do nosso filho de Cícero porque ele

adorava esse rapaz. Então, foi assim que nós começamos a nossa casa. Não tinha nada na rua. Na

frente tinha uma árvore, o meu filho andava com um estilingue, sabe? Não tinha nada... Aí,

domingo à tarde, assim, domingo de manhã, tinha um tronco enorme no chão. Aí a gente sentava

ali porque não tinha nada! Nada, nada.

Aí, com o tempo, a situação dele melhorou – meu marido era vendedor, e ele, depois, ficou o Pelé

dos vendedores. Ele vendia peças de carro. Eu acho que eu já te falei, ele era um homem

inteligente, simpático, não era metido, sabe? E todo mundo adorava porque ele vendia que nem

um maluco, tá entendendo? Tanto é, que eu ainda guardo, aí, vários brindes com o nome dele.

Ele lia muito, ele sabia... Ai, mas era uma coisa! Aí, depois, a situação melhorou – porque quando

eu casei, eu ganhava muito mais do que ele. Eu fui casada 23 anos. Eu nunca disse a ele que eu

ganhava mais, nunca, sabe? A gente tinha um relacionamento, sabe, maravilhoso. Ele era muito

educado, sabe? E gostava, como eu, de ajudar as pessoas.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Então, querida, eu fui – eu acho – uma pessoa muito feliz na minha casa, na minha vida. Lá, eu

recebia meus amigos, minha família – tinha sempre alguém lá. Eu sempre gostei muito disso. Pra

mim, isso que é casa! Eu tive um trabalho maravilhoso, que eu adorava! Meu marido, um marido

especial. Meus filhos, minha família, tinha meus irmãos que eu adorava. Então, eu fui muito feliz

naquela casa.

Olha as coisas que eu tenho aqui em casa! Olha isso aqui: quando o meu irmão foi para a Itália,

ele fez um curso de cerâmica... olha isso que ele fez pra mim [mostra um objeto de cerâmica com

a forma da letra “L”, de “Lorena”]. Quer ver mais uma coisa? Venha aqui! [tira algo do armário]

Isto, quando meu filho nasceu, o Edson – quantos anos faz? Quarenta e tantos! – aí, eu fiquei em

casa, de licença do trabalho. Aí, uma moça que trabalhava comigo, chamada Leonella, que até

hoje é minha amiga, ficou no meu lugar. E, no meu trabalho, tinha dois patrões, o seu Miguel e o

seu Jaques, dois irmãos. Um dia, eu estava em casa, aí um menino do Institutoe veio em casa:

“Dona Lorena, o seu Jaques falou pra senhora fazer o favor de ir lá no Instituto, que ele quer falar

com a senhora”. Eu falei, “nossa, que será?...”. Fiquei com medo, né, vai que eu fiz alguma coisa

errada. Aí, eu fui lá, entrei na sala dele. Aí, ele entrou, e veio com isso aqui na mão [mostra um

brinquedo de bebê]. Aí ele disse: “D. Lorena, por favor, a senhora volta a trabalhar aqui, nem que

seja duas horas por dia, senão, eu vou matar a Leonella!” [risos]. E me deu isto aqui! [risos].

Então, são coisas que a gente tem e lembra, né?...

(Frases ditas por D. Lorena e anotadas posteriormente:)

-

- “Eu, meu marido e meus filhos fomos muito felizes naquela casa.”

- “Eu fiquei muito triste, chorei muito quando decidi vender a casa: porque aquela casa é a

minha vida.”

- “Aqui é tudo muito pequeno, não cabe nada. Tive que deixar minhas plantas. Toda vez que

eu penso nisso, choro [lágrimas].”

- “Esse carrinho de chá, eu e o meu marido fomos muuuito felizes com ele. Essa louça foi o

meu marido que me deu de presente, quando nós éramos noivos. É muito duro ter que vender

essas coisas todas porque não cabem nesse apartamento [lágrimas], mas, fazer o quê?”

- “Tudo isso é muito triste. Eu tenho ido à minha psicóloga e ela já me disse que, se eu tive

uma vida tão boa, eu tenho que ficar feliz. Agora, eu sei que tudo isso passou, é passado.”

- “Eu vendi a casa, comprei esse apartamento, e o resto do dinheiro, eu dei pros meus filhos.

Tem um que não tem a cabeça no lugar e não vai bem nos negócios. Eu tinha que ajudar.”

Entrevista realizada em 25/05/2005

e D. Lorena refere‐se à empresa onde trabalhou.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Dalma

72 anos

Solteira

Secretária, aposentada

Mora em uma instituição para idosos na cidade de São Paulo

[A senhora poderia contar‐me um pouco sobre como era a sua vida antes de vir morar aqui?]

Eu sempre morei com meus pais, sempre. Eu não me casei, não tenho filhos, mas vivi, durante uns

oito anos, com uma pessoa – que, pra mim foi muito importante – que agora já se foi, morreu. Eu

morava com meus pais, tinha uns 50 e poucos anos, menos, uns 40 e poucos, quando passei a

morar com ele. Deu tudo certo, ninguém tinha nada que ver com minha vida, não é verdade? E,

nesse meio tempo, ficaram doentes e vieram a falecer. Depois ele também faleceu, e eu fiquei um

tempo sozinha. Depois, eu passei a morar com uma das minhas irmãs, que é casada, porque ela

começou a ficar preocupada. Ela disse, “já que você não quer mais ninguém, sozinha você não vai

ficar”, aí eu fui pra casa dela.

Eu tinha um espaço, tanto é que eu cozinhava, às vezes, coisas separadas pra mim – eu tenho

uma dieta específica, sou hipertensa; minha comida tem que ter menos sal. Eu tinha o meu

quarto – tinha, não, ainda tenho, porque quando eu saio daqui, vou pra lá. Lavava minha roupa na

hora e no dia que eu bem entendesse. Quanto a isso, eu e as minhas irmãs – a outra não mora

muito longe – nos damos muito bem, sempre fomos muito unidas. Mas, com o tempo, eu passei a

sentir certas dificuldades porque a minha irmã não é muito jovem, meu cunhado sofreu um

derrame – não que tenha tido seqüelas, mas ele se tornou uma pessoa mais difícil. Então, eu

pensei por muito tempo numa maneira de ficar mais... separada. Também para dar mais

liberdade pra minha irmã agir.

Ela já mudou de casa duas, três vezes, já morou em Itanhaém, eu fui atrás, voltamos. A gente não

se deu muito bem com o clima de lá. O meu cunhado adora, tanto é que eles têm uma casinha lá.

Às vezes, a minha irmã e o meu cunhado resolviam ir para Itanhaém, e eu ficava aqui durante

vinte dias, um mês, sozinha. E ela ficava preocupadíssima. Se bem que eu tenho a outra irmã, que

não é muito distante, mas ela também tem a vida dela, e o meu cunhado também tem problema

de saúde. Eu diria que, às vezes, não é que eu estava atrapalhando, mas ela ficava assim, talvez,

constrangida, entende?

Quando chegou nesse ponto, em que eu achei que seria melhor eu ficar, de novo, separada, eu

tenho impressão que deu certo. Pra ele, meu cunhado e, de uma certa forma, pra mim. Aí, a

minha irmã fica mais tranqüila porque eu estou aqui, de uma certa forma, estou segura, então,

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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ela fica tranqüila. Quando ela tem que sair com meu cunhado – porque quando ele cisma, ele vai

mesmo, não quer nem saber –, ela vai sossegada. Então, é por isso que eu digo que foi muito bom

pra todos nós. Agora, eu dou tranqüilidade pra ela, eu também sei que ela está mais à vontade:

sabe lá, não é? Às vezes, eu poderia estar tirando um pouco da liberdade deles. Se bem que eu

sou muito discreta, procuro entender as coisas, colaboro, mas nunca é cem por cento, não é?

[Como foi a decisão de mudar‐se para cá?]

Essa decisão deveu‐se um pouco ao problema de saúde do meu cunhado e um pouco ao cansaço

da minha irmã, se bem que ela sempre dizia, e eu tenho certeza disso, que eu nunca dei trabalho.

Eu sempre fazia as minhas coisas praticamente separadas, e eu também ajudava muito, em tudo

que era possível.

Então, o tempo foi passando e, de repente, surgiu esta casa. Quer dizer, eu estive visitando outras

casas, umas duas ou três, e de todas elas, eu escolhi aqui – mesmo porque tem a sogra de uma

das minhas irmãs, que está aqui. Mas, nessas visitas era assim: sabe quando você entra num lugar

e se sente meio triste, aborrecida, ou... era algo que não vinha ao meu encontro. Quando a sogra

da minha irmã veio pra cá, eu vim aqui umas vezes. Não foi rapidinho, demorou algum tempo. Foi

uma fase muito, muito difícil pra mim, mas muito mesmo! Eu tenho uma amizade muito chegada

com as minhas imaucrmãs.

Olhei, pensei muito, refleti muito, me enchi de coragem e vim pra cá, conhecer. Porque não era

bem isso que eu queria: Eu achava que eu ia encontrar uma série de coisas que eu já não tinha:

por exemplo, a liberdade de fazer tudo, como se fosse a minha própria casa. Mas aí, eu pensava

“mas não pode ser igual, porque eu não vou ter uma cozinha pra mim, eu não vou ter que fazer

isso, eu não vou ter onde fazer aquilo, eu vou ter que dormir em companhia de pessoas

totalmente estranhas”. No que se refere à alimentação, eu ficava pensando “não vai ser como em

casa, será que eu vou comer disso, será que eu vou comer aquilo, como vai ser?; e como é que eu

vou fazer, como é que eu vou me entrosar, será que eu vou me acostumar, será que não...”

Iiihhh... horas!

Gostei do lugar, mas isso não era suficiente, agora que eu estou aqui, já é outra visão da coisa. Aí,

teve um dia, eu acordei e disse “olha, Dalma, você não pode ser assim, você tem que decidir – ou

vai, ou não vai!”. Aí eu levantei e falei com a minha irmã “olha, sabe, eu vou!”. Aí, ela chorou

muito, ficou muito triste, e eu também. Mas, a gente já tinha se entendido, já tinha conversado,

com a outra irmã também. Aí ela falou “então, se você acha que tem que ser assim, você vai...mas

se não for bom, se você vê que não é bom, você volta, pode voltar!” Eu vim, fiz a entrevista aqui,

aguardei uns dias, aí me telefonaram, dizendo que estava tudo bem, e marcaram um dia para que

eu viesse. Aí, foi aquele negócio, compra isso, compra aquilo, preparei tudo em vim.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Nos primeiros dias eu já vim preparada, com o pé atrás, atenta a tudo. Eu ficava pensando “se eu

achar que eu não vou me adaptar, eu não vou esperar muito tempo; simplesmente, vou embora”.

Mas, eu achava que tinha que esperar o próximo dia: “não, espera mais um dia, e mais um...”; e

assim foi‐se passando, eu fui me ambientando, fui vendo que não era tão horroroso como eu

achei que pudesse ser, e, olha, já faz quatro meses que eu estou aqui. O pessoal é muito bom,

muito atencioso, quando alguma coisa não está boa, a gente chega, conversa, troca idéias; a

gente tem toda a liberdade pra falar, pra resolver os probleminhas que podem surgir.

Minhas irmãs e meus cunhados vêm aqui me visitar: a cada quinze dias, a gente combinou, para

também não estar abusando dos outros, não é? Não há necessidade de vir toda semana.

Qualquer coisa que tiver a gente telefona, ou mesmo a administração telefona pra família.

[O que a senhora está achando desta nova forma de morar?]

Eu acho que no fim, no fim, ficou muito bom. Eu dei sorte de ter duas companheiras de quarto

silenciosas à noite. Meu quarto é muito bem arrumadinho, elas são cuidadosas, não jogam roupa,

sapato... Cada uma tem o seu armário, dentro tem três gavetas, a gente acomoda as coisas que a

gente trouxe. Trouxe o enxoval que eles pediram, roupa de cama, não muita coisa. O resto, a

gente traz – toalhas, roupa pessoal, cosméticos. Na medida do possível, eu vou trazendo. Tem

algumas coisas que não são permitidas – tudo bem – por exemplo, me disseram que secador de

cabelo, não pode. Por algum motivo que eu não sei. Celular também não pode. Quando você

precisa de uma ligação, principalmente pra casa, é só chegar na administração e eles ligam. Eu,

por se lúcida, tenho a liberdade de sair. Aos domingos, eu vou à feira – tem uma feirinha aqui do

lado –, se eu quiser ir ao supermercado, eu vou. Se eu quiser convidar uma amiga, ela poderá vir,

desde que seja dentro do dia das visitas – sábado, domingo e feriados. E se precisar vir num dia

fora desses dias, é só ligar para a administração, que eles autorizam.

[uma sineta toca três vezes] Você vê que tudo é restrito, esse sinal – três toques – é pra refeição.

No começo, a gente não sabe se pode isso, se pode aquilo, então eu perguntava para as minhas

companheiras de quarto e elas me explicavam. Quando elas ficavam na dúvida, eu perguntava na

administração. A gente tem horário de banho, pra não ficar muito tumultuado. Eu vou te contar...

é uma mão de obra manter isso limpo.

Eu acordo cedo para seguir o horário do café da manhã. Se não, atrapalha o pessoal: Já está tudo

limpinho, aí tem que servir café de novo, eu acho que isso cansa muito. Elas [as funcionárias da

instituição] trabalham muito, sempre correndo pra lá e pra cá, atendem um, atendem outro, cai

não sei o quê no chão, lavam, varrem. Então, eu procuro colaborar no máximo que eu puder,

porque é bom pra todo mundo.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Eu não faço é a minha comida, como eu estava acostumada. Minha comida tem que ter menos

sal, e eles preparam. Para os diabéticos, eles põem adoçante. Hoje mesmo o médico está aí. Aí,

eles vão chamando as pessoas que precisam passar pelo médico. Aqui tem muita fartura no

alimento; se você quer mais, eles servem, com fartura. Tem a sobremesa, tem as frutas, uma vez

por semana tem um doce; é um cardápio bem variado.

[Em quê a senhora trabalhava antes de se aposentar?]

Eu sempre fui secretária. Trabalhei trinta e três anos e depois me aposentei. Fiz meus cursos de

aperfeiçoamento da época, que precisava. Só numa indústria, eu trabalhei 12 anos. Em todas que

eu trabalhei, fiquei muito tempo: uma 6 anos, a outra 8. Depois de me aposentar, descansei um

ano e pouco, depois fui chamada numa firma que eu tinha trabalhado, se eu queria dirigir o

escritório, substituindo uma moça que ia se afastar um ano do trabalho. Aí fiquei lá três anos. Saí

porque eu tive um problema na coluna, se não, acho que estaria lá até hoje. Aí, acabei ficando em

casa, fazendo serviço de casa. Eu sempre fui acostumada a trabalhar fora, agora aqui, eu não faço

nada.

Eu sempre fui muito caseira. Eu gostava de passear, mas não com exagero. Só nas minhas férias,

quando dava certo, eu viajava. Eu conheci umas cidades de Minas, fiz uma viagem, há muito

tempo, fui até a Argentina – fui pra lá com meu pessoal, minha família. Mas eu gosto muito,

sempre gostei de ficar em casa – agente fica mais tranqüila, mais à vontade.

[Que lembranças a senhora tem da casa da sua infância?]

Eu sempre morei com meus pais, sempre. Sou descendente de italianos. Éramos cinco, meus pais

e nós três. Minha mãe teve cinco filhos. A mais velha que eu faleceu antes de eu nascer. Depois

morreu um irmão, com cinco anos, e ficamos nós três. Nós morávamos no interior do Paraná. Eu

me lembro muito dessa casa: levantávamos cedo, tinha aquele quintal imenso, com muita fruta.

Carambola, romã, jabuticaba, até limão! No tempo das frutas, a gente ia comer lá no pé – as que

caíam no chão, já não prestavam... que coisa boa! A gente limpava tudo, varria, tirava aqueles

montes de folhas, punha dentro de um saco, meu pai também ajudava. Minha mãe ficava na

cozinha e meu pai, antes de sair para o serviço, pegava água do poço pra minha mãe, pra não ficar

muito pesado pra ela. Eu, por ser a mais velha, depois de voltar da escola e fazer lição, dava uma

mãozinha pra ela, servicinho simples, nada de pesado. Lavava uma louça, varria uma casa.

Naquela época era muito bom porque as casas eram grandes. Na frente era o jardim, e depois era

o pomar. A casa era simples – de tijolo, mas era simples. O mais bonito dessa casa é que ela tinha

uma varanda em toda a volta. A cerca da varanda era alta, meu pai fez um portão branquinho,

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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nossa, a casa era linda! Tudo simples, mas com muito capricho. Aquelas toalhinhas de crochê, as

cortininhas... Eu me lembro de uma despensa – acho que era do tamanho deste dormitório – só

para os mantimentos. Minha mãe fazia uma quantidade de doce em calda, pão, frutas, e

depositava tudo ali. Minha mãe era de um capricho impressionante! E eu acho que eu herdei isso:

vai lá ver o meu guarda‐roupas! Detesto roupa, assim [faz um gesto], enrolada, iihh...não, comigo

não! E aqui dá pra organizar tudo: não ficou bom, tira tudo e faz de novo, porque você tem o dia

inteiro! ...Mas a minha mãe era muito caprichosa, fazia trabalhos manuais, aquele crochê

miudinho...que mão divina!

Eu acho que fiquei naquela casa até uns dez, onze anos. Aí, meu pai recebeu um convite para

trabalhar com o irmão dele aqui, em São Paulo, e ele achou muito vantajoso – de fato, ele pegou

bons serviços. E aí mudamos pra São Paulo. No começo, nós sofremos demais. Pra começar, a

casa que meu tio disse que já estava pronta pra gente morar, quando chegamos, disse que o

inquilino não tinha saído, e nos deixou assim, sem ter pra onde ir. Vou te contar, foi a maior

decepção. Nós sofremos muito. Ficamos, não lembro quanto tempo, com uma tia, irmã da minha

mãe. Ela acomodou as coisas dela, para caber as nossas, foi um horror! E se não tivesse essa irmã

da minha mãe, onde nós teríamos ido parar? Nós éramos crianças, eu, que era a mais velha tinha

uns dez, onze anos! Tudo aquilo que era bom da outra casa tinha acabado! Nossa, foi sofrimento

demais... porque tudo aquilo que era bom da outra casa, nossas coisas, nossa vida – mesmo

simples –, parecia que tinha acabado! Meu pai trabalhando tanto, perguntava pra um, pra outro,

pra meio mundo, pra procurar uma casa. A muito custo, ele arrumou, num sobrado, na Vila

Clementino. A senhora estava alugando o subsolo, e meu pai falou “nós vamos pra lá,

provisoriamente”, porque não podia mais ficar com minha tia, coitada. E ela era enfermeira do

Hospital das Clínicas, também tinha uma vida de sacrifício, levantava de madrugada... foi um

horror!

Aí, a gente mudou pra lá, e ficamos por pouco tempo. Meu pai comprou um terreno perto do

Aeroporto de Congonhas e começou a construir rapidinho. Fez a parte dos fundos, arrumou tudo,

e a gente foi pra lá. Depois, foi fazendo a parte da frente, e ficou uma bela de uma casa, um

sobrado muito bonito, muito amplo! Aí, a gente ficou acomodado, cada um com seu dormitório –

uma beleza de casa! Depois, as minhas irmãs foram se casando, a casa começou a ficar muito

grande, aí, meu pai resolveu vender e comprou uma menor. Comprou onde tem agora o Shopping

Ibirapuera, nas imediações. Depois venderam e voltaram para o interior do Paraná. Ficaram lá um

ano e meio, mas o meu pai não se acostumou, pensou que fosse ser igual, mas não foi, e acabou

voltando. Eu não fui com eles porque eu precisava trabalhar, e lá eu não ia achar trabalho. Eu já

trabalhava há muito tempo e queria poder me aposentar, pelo menos. Aí eu fui ficar com essa

minha irmã.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Depois vim pra cá. Aqui é bom porque as meninas [funcionárias] são ótimas, você vai lá conversar,

elas te dão atenção. Você olha pra fora, você vê árvores, o céu, você tem ar... é como no interior

da minha época – não era uma selva de pedras, como São Paulo. Aqui você tem verde. Mas acho

que para se adaptar depende muito da gente. Tem pessoas que estão aqui, que detestam, não

querem ficar aqui de jeito nenhum. Eu penso, “se sai daqui, vai pra onde?”

Entrevista realizada em 24/11/2004

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

324

Reginaldo

43 anos

Casado, 2 filhos

Consultor de empresas

Mora com a mulher e os filhos em uma casa na cidade de São Paulo

[A sua profissão o faz estar freqüentemente viajando, freqüentemente longe de casa?]

Sim. Eu moro em São Paulo, só que eu passo 90% do meu tempo fora daqui. Tenho clientes no

Brasil inteiro, e, dependendo dos nossos projetos, tenho que ficar, no mínimo, uma semana fora,

trabalhando junto com o cliente, para fazer as implantações necessárias. Normalmente, fico aqui

[em São Paulo] só no fim de semana e volto na semana seguinte. Isso, quando o projeto não é

muito longe. Agora, por exemplo, faz dois meses que estou em Portugal, em Lisboa.

[Onde você mora em Lisboa?]

Lá, eu fico em hotel – normalmente, no mesmo hotel. Quando eu passo quatro, seis meses numa

empresa, até acostumo com aquele hotel. Dali a quatro meses, vou pra outro – isso, quando eu

não tenho dois, três projetos ao mesmo tempo, em cidades diferentes. Nesse caso, eu fico dois

dias num lugar, dois dias num outro; na outra semana, fico dois num outro... Aí, você tá dormindo

numa cama hoje, se arruma lá, amanhã você já tá mudando. Então, eu sinto, mesmo, é falta de

casa.

Agora, eu estou mais fixo em Portugal, mas sei que, em setembro ou outubro, já vou estar

dividindo dois projetos. E aí, não vou ficar só no hotel de Lisboa, já vou pra outra cidade também.

Eu tenho ficado duas semanas em Portugal, e cinco, seis dias aqui – nunca fiquei tanto tempo fora

direto.

[Que critérios você utiliza para escolher os hotéis onde se hospeda?]

Quando eu procuro um hotel, eu sempre quero ver o apartamento. Esse que eu estou, em

Portugal, é muito pequeno; ele foge muito do estilo que eu gosto: Deve ter uns 4 por 5, mais ou

menos: é uma cama, uma televisão ali na frente, um closet pequenininho, uns 2 por 2, e um

banheiro. É bem apertado. Eu não preciso de um quarto que dê pra fazer um cooper ali, mas eu

gosto de uma coisa um pouco mais ampla, que me permita assistir televisão sem precisar estar

deitado numa cama, coisa que me irrita muito. Eu chego à noite, tiro a roupa do trabalho, ponho

em cima da cama, e aí, se eu quero assistir uma tv ou colocar um som, só tem aquela cama, não

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325

tem onde ficar. Então, o que eu procuro nos hotéis, normalmente, é, pelo menos, uma poltrona,

pra que eu possa assistir tv sentado.

Mas, pouco antes de eu ser mandado para Portugal, eu estava fazendo academia aqui, em São

Paulo, e quando fui transferido pra lá, me vi perdido; eu queria continuar. Então, procurei um

hotel que tivesse uma academia, qualquer coisa que desse pra eu fazer uma ginástica. E eu só quis

ficar lá porque o hotel oferecia essa academia – isso me agradou bastante. ...E o quarto do hotel,

por menor que ele seja, acaba sendo a minha casa. E como eu gosto de fazer uns exercícios,

então, pra mim, foi bom ... Não é um hotel maravilhoso, mas eu me sinto bem.

Outra coisa: eu procuro deixar o quarto organizadinho: eu já estou num lugar diferente, que não é

meu, então preciso ter as coisas mais organizadas. A primeira coisa que eu faço, quando chego, é

tirar as coisas da mala, coloco no armário, e deixo tudo organizado. Tem umas fotos da minha

mulher e dos meus filhos que eu coloco do lado da cama do hotel: em vez de eu “levar para o

trabalho”, como lá eu não tenho um escritório... Todo mundo sorrindo, é uma forma de eu estar

perto deles [levemente emocionado]...

[Como é a sua rotina quando está viajando a trabalho?]

Agora, por exemplo, eu acordo cedo, faço uma ginástica ou uma esteira, tomo um banho, tomo

um café da manhã – isso tudo bem cedo, porque, por volta das 8 horas, eu já tenho que estar

saindo para o cliente, que fica a uns 40 minutos de Lisboa. Eu passo o dia no cliente e volto muito

cansado, à noite, porque a própria natureza do negócio é seguir, o tempo inteiro, um

cronograma, que é bem apertado. E eu tenho que prestar contas a cada semana para o cliente,

que está pagando pra você fazer aquilo. O cliente quer resultado. É uma pressão muito forte.

Quando eu chego à noite, pra relaxar, costumo fazer uma caminhada, tomo um banho, e vejo

televisão, assisto a um jornal – tem sempre um canal do Brasil na televisão, que eu gosto de

assistir. No quarto também tem uma mesinha, onde eu, às vezes, faço algum trabalho. Quando eu

volto, o é que tem pra fazer? Ou você vê televisão, ou lê um livro, ou trabalha.

E ainda por cima, eles não servem nada à noite, aí eu tenho que jantar fora. Isso, pra mim, é

muito ruim: ficar saindo, ter que ficar procurando outras coisas. Quando a minha esposa foi me

visitar lá, nós ficamos num flat muito gostoso. Aquilo era bom: você estava em casa... Eu chegava,

ela estava ali, aí a gente fazia uma comidinha...

No começo é tudo novidade, seja em Lisboa ou qualquer lugar aqui no Brasil. Você sai, vai

conhecer os locais, os restaurantes, as pessoas, a comunidade. Aí, depois de um certo tempo,

você já viu tudo. A não ser que você pegue um carro e vá pra uma outra cidade por perto. No fim

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de semana, eu faço isso – vou pra outros lugares, praia. Mas, no dia‐a‐dia, você acaba ficando

mais no apartamento, mesmo. E aí, se tem muito trabalho pra fazer, eu já vou adiantando. Eu

tenho meu computador ali, internet pra mandar ou receber alguma coisa. Eu não tenho que

trabalhar, mas acabo fazendo aquilo.

[Você costuma jantar com a sua família quando está em casa?]

Ah, sim! É o mínimo que eu tenho que fazer! [risos]. Na verdade, eu nunca fiquei tanto tempo

fora, direto, então, quando estou aqui, quero curtir minha família, jantar junto, estar em casa

junto. Por exemplo, eu não uso a internet para conversar com a minha família. Mas, eu falo muito

por telefone, praticamente todo o dia. Eu gosto de ligar sempre quando estou longe; seja em

Lisboa, no Rio de Janeiro, há quinze anos que, quando eu saio, eu ligo todos os dias pra minha

família.

[Quando em casa, você cultiva o hábito de se reunir com a família?]

Sim, nós gostamos muito de nos reunir. Até umas oito, nove horas da noite, tá todo mundo na

sala, conversando ou curtindo uma tv. Lá em casa são quatro televisões. Cada um tem sua

televisão no quarto, mas isso é só quando cada um vai para o seu quarto, mais tarde. Eu não sei

se se eu estivesse todos os dias em casa, seria a mesma coisa. Eu tenho amigos que não são

consultores, são “pessoas normais”, que falam que o que acontece na casa deles é justamente

isso: “pôxa, eu chego em casa, e os moleque ficam cada um para um canto”, cada um no seu

mundo. Como eu passo a vida inteira fora, e sou muito apegado aos meninos, então, quando eu

chego, quero ficar com eles o máximo de tempo que eu posso. E aí, também tenho que curtir

minha casa, que eu não tenho durante todo o tempo.

Eu acho que é porque eu venho de uma família muito grande. E sempre moramos em casa, numa

casa muito grande. Somos sete irmãos, quatro mulheres e quatro homens. A gente sempre

jantava junto, na casa dos meus pais. Meu pai não era um homem formal, muito pelo contrário.

Mas, no jantar, ele gostava de estar junto com todo mundo. Eu também gosto de jantar junto

com a minha família, eu trouxe isso na minha vida, é um negócio que me faz bem.

[O que você falaria sobre a sua casa?]

A minha casa é bem antiga. Tem umas coisas que eu quero mudar e estou juntando dinheiro pra

isso. Tem uma copa, num lugar esquisito, com um quarto que dá pra ela – isso eu quero mudar. É

uma casa térrea, e eu penso em fazer mais um andar, transformar em sobrado. Mas, o que mais

me agrada nela é o quintal, que não é grande, mas é um lugar muito gostoso. Tem uma parte

coberta e uma descoberta. Eu gosto de ficar ali sentado lendo um jornal, conversando, junto com

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

327

a minha esposa. Tem um cachorro... É um lugar agradável – disso eu sinto uma falta louca!...

Então, por mais que eu já trabalhe há quinze anos nessa atividade, eu ainda sinto essa falta. Aí,

quando eu estou em São Paulo, eu fico mais em casa. Em casa, nos fins de semana, ou eu estou

nesse quintal, fazendo um churrasquinho, ou eu estou na sala, com a família, vendo uma tv, um

jornal – eu adoro jornal, tanto de televisão, como de papel.

É por isso que eu digo: eu acho que se eu estivesse num hotel que fosse uma casa, eu me sentiria

melhor. Taí! tem uns hotéis que eu fiquei aqui, no interior de São Paulo, que tinham uma varanda

no quarto. Aquilo era o máximo, aquilo era ótimo! Eu saía na varanda, tinha até umas cadeirinhas,

eu gostava me sentar e ler alguma coisa, de ficar vendo o pessoal passando – pelo menos é uma

coisa diferente de estar dentro de um apartamento que só tem a janela – às vezes a janela nem

abre , por causa de ar‐condicionado, quando abre, abre um negocinho assim.

[Você mora nesta casa desde que se casou?]

Não. Quando eu casei, fui pra um apartamento. Pra mim, era a primeira vez que eu estava dentro

de um apartamento. Nossa, eu me sentia muito preso ali. Eu me sentia enjaulado. Depois de dois

anos, mudei para um outro apartamento – isso porque foi o que deu pra gente comprar. Depois é

que deu pra gente mudar para uma casa. Uma casa que era da família da minha esposa, que

agora eu comprei. É uma casa antiga, onde eu ainda quero fazer umas modificações, mas fica num

bairro gostoso – e isso é super‐importante pra mim. Isso porque meus pais, por exemplo, sempre

moraram ali no Brooklin, que é um bairro de ruas bem largas; e eu, agora, moro no jardim da

saúde, onde tem umas ruas muito amplas, também, muito tranqüilas, muito arborizadas, quase

não passa carro. Então, é um lugar gostoso. E aí, eu tenho lembranças e referências da infância –

e isso me agradou muito.

Mas, é possível que eu saia do Brasil, no ano que vem, pra morar em Portugal. Nó estamos

montando um negócio lá, e eu já estou sendo sondado para ir o ano que vem, com a família. Eu

estou achando ótimo, por estar indo junto com a família. Tem todo um lado de adaptação, eu sei

que não é simples. Mas, eu gosto de Portugal, tem a facilidade da língua, e a segurança é um

negócio muito importante pra mim. Eu ando na rua de madrugada, no centro da cidade, e não me

sinto inseguro, aquilo é maravilhoso. No meu bairro, em São Paulo, por exemplo, por mais

sossegado que seja, meu filho já foi assaltado na esquina de casa – tiraram o tênis dele, jogaram

ele no chão. Na minha casa, eu tenho um cachorro, como segurança. O meu cachorro já me

salvou umas três vezes de ser assaltado, eu saindo do carro e abrindo o portão.

Entrevista realizada em 03/08/2005

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Hermes

58 anos

Casado, 2 filhas

Comissário e instrutor de comissários de bordo, aposentado

Mora com a mulher e os filhos em uma casa na cidade de São Paulo.

[O seu trabalho sempre exigiu que o senhor estivesse viajando. Como se sentia por estar constantemente longe de casa?]

Quando eu entrei na Varig era pra voar. Voava no nacional. Ficava uma ou duas noites fora de

casa porque eram vôos curtos – Manaus, Porto Alegre – era rápido. Depois, eu fui participar do

centro de treinamento de comissários. Nesse tempo, uns dez, doze anos, eu saí muito do Brasil

pra simpósios, reuniões fora, trabalhos na fábrica da Boeing em Seattle. Minha área era instrução

de segurança, e nessas saídas eu aprendia muito. Isso era muito gostoso. Era vibrante. Eu não

tinha a sensação de que eu estava abandonando a minha família, não! eles sabiam que eu era

super voltado à minha profissão.

Depois, com a mudança da diretoria, eu voltei para o vôo. A Tati [filha mais nova] gosta de Nova

Iorque. Então, quando ela tinha folga na escola, ela ia comigo. Então, eu levava parte da minha

casa comigo. E aí a gente [a família] combinava o seguinte: No Natal, eu pedia folga porque você

pede folga ou no Natal ou no final de ano. Claro que, depois que você fica mais antigo na

empresa... se você é novo, você trabalha no Natal. Então, a gente passava o Natal em família,

todo mundo junto, e eu pedia um vôo: “Pra onde a gente vai?’ Eu pedia um vôo e ia todo mundo

junto no final do ano. Era uma gentileza da empresa; davam a passagem, não entrava na sua

conta.

[Qual foi o período mais longo que o senhor passou longe de casa?]

Eu acho que foram quarenta dias, em Angola. A primeira fase foram dezessete dias, direto, e

depois nós voltamos – eu não me lembro direito quanto tempo nós ficamos aqui; aí, voltamos e

ficamos mais vinte e três dias. O governo brasileiro tinha um acordo com o governo de Angola:

daqui ia uma empresa de automóveis, ia uma outra empresa e construía pontes, uma outra fazia

construções; e nós fomos para organizar uma empresa de aviação chamada TAAG – Transportes

Aéreos de Angola. Eu fui na parte de instrução de comissários. Isso falo com orgulho: acabamos

ajudando a organizar a empresa, porque eles não tinham nada, a situação era de guerra, a

confusão está até hoje.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Foi inesquecível porque era um país em guerra; mas nós não sofríamos a guerra em sif. O que a

gente sofria era a decorrência de um país em guerra. Você só podia ficar na rua até às cinco e

meia, depois era problema seu, se você levasse um tiro. Você ficasse na sua casa, quietinho, não

lhe acontecia nada – como não aconteceu nada conosco. Mas era muito ruim. A gente estava

dando aula, aí, de repente, entrava alguém e chamava uma mulher, um rapaz, e tirava do curso.

Ou seja, morreu o pai, a mãe. Então era uma confusão.

Eu penso que se a gente não tivesse uma formação de família muito sólida, sabe, educação de pai

e de mãe, de paciência, e o que a própria aviação ensinou pra gente, eu acho que a gente teria

sofrido muito. Era o que te dava força, coragem: “vamos continuar”, sabe? Quando nós chegamos

lá, não tínhamos a menor idéia do que era guerra. Guerra pra gente era na televisão. Eu fui

educado no Rio Grande do Sul, em Caxias. A gente saía do clube, uma, duas, três horas da manhã

e ia pra casa; você não tinha idéia do que era “segurança”, não se falava nisso; se alguém ia me

assaltar...você não tinha isso na cabeça, eu não lembro. Minha mãe se preocupava se eu

tropicasse em algum lugar, se eu me machucasse, se eu tinha comido. Então a gente não tinha

essa idéia...

Nós estávamos em Luanda e a confusão era ao redor, 150, 170 km. O que se ouvia de tiro à noite,

eram as pessoas fazendo contrabando. Então, por exemplo, tinha muita cerveja – eu não sei

quem mandava cerveja – então, no meio da noite, quem tinha alface, batata, trocava por cerveja,

essas coisas. Só que tinha o patrulhamento; então, volta e meia a gente ouvia “pó‐pó‐pó‐pó‐pó”,

os tiros de metralhadora. Mas não nos afetava diretamente. É isso que eu quero dizer: afetava

psicologicamente.

Nós almoçávamos no catering da empresa. Tinha dias que não tinha comida porque não tinha gás.

Então, a gente comia aquelas batatinhas feitas há não sei quantos anos. Você ia fazer o café, fazia

com papel higiênico. Coisa assim boba, básica. E a gente ficava pensando que na sua casa você

não tinha esse de problema. Nós esperávamos com ansiedade a caixa com mantimentos que era

mandada em um vôo semanal pra gente. As nossas esposas compravam pra gente: bolacha,

macarrão, arroz, leite condensado – aquelas coisas de brasileiro, sabe? – Vinham umas latinhas de

Coca‐Cola. Você não sabe como era bom Coca‐Cola... uma latinha pequena...nossa! Parece

bobagem, mas, naquela hora, parecia que a gente estava em casa! Nessa situação, te dá uma

saudade desgraçada. Eu falava com a minha família a cada dez, doze dias. Telefone era um artigo

de luxo. Era a empresa que cedia. Então, você não podia falar determinadas coisas, sabe.

f As circunstâncias a que Hermes se refere são as da Guerra Civil de Angola, iniciada em 1975, com a independência de Angola do colonialismo português, culminando com a proclamação da República Popular de Angola em 1979.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Você não podia dizer “Ah! Essa porcaria aqui tá em guerra!”... Se chegasse segunda‐feira e você

dissesse “Eu vou‐me embora”, ou você ia nadando, ou subia, sabe lá como, até chegar na Europa,

e aí pagava um avião. Com certeza, você teria, de algum lugar, um avião da Varig saindo da

Europa, voltando pro Brasil. Ou era esperar aquele único dia da semana – não me lembro se era

quarta ou sexta‐feira. Só naquele dia vinha um avião. Mas no fim, você falava, “Bom, não adianta.

Vamos ficar e fazer nosso trabalho”. Então, o que você faz? Ou você se dá um tiro ou você se

diverte com o negócio, entendeu?

Só que chega uma hora que aquilo vai estressando. Você não sente, mas... aquilo vai te

abaixando, você vai ficando pesado, tudo é motivo de irritação. Ainda que você seja uma pessoa

preparada, condicionada, uma série de coisas, mas você é filho de Deus, igual. Tem uma hora que

você arranca o fone e fala [gritando]: “Eu vou quebrar tudo!” Mas Deus faz as coisas certas. No

fim, Ele põe umas figuras ao seu redor pra te perturbar, daí você briga, discute... tinha uma figura

que – ai meu Deus do céu – era o gerente do aeroporto, lá. Como tinha outras confusões

paralelas, então, você canalizava tudo pra cima dele, as suas raivas, os seus anseios... depois

deixava de lado. Mas não significava que você resolvesse. Aquilo estava com você.

Éramos seis pessoas em um apartamento de três dormitórios, com barra de ferro em todas as

janelas. Hoje em dia, aqui, não é muito diferente: você tá preso e o bandido tá solto. Éramos

todos da empresa, todos conhecidos – conhecidos não, você sabia quem era: “Oi, tudo bem,

tal...” Mas, no começo, eu só conhecia melhor o Rui. Então, como eu e ele chegamos antes,

pegamos o único quarto que casualmente só tinha duas camasg. Então, a gente fez lá o nosso mundo. Passava a chave na porta e era o nosso mundo. Mas, como toda convivência, você tem

divergências, sabe.

Mas, você começa a jogar carta, um faz comida; eu que sou péssimo na cozinha, limpava, lavava

banheiro. Então, cada um tinha a sua área, cada um fazia alguma coisa no apartamento. Como

eram vários homens, na hora do banho – no banheiro –, de fazer a barba, era quando você estava

com você . Mas tinha que ser rápido porque de repente acabava a água. Acabava sem explicação.

Nós fizemos um relatório diário de tudo que aconteceu lá. As coisas que eu vivi não tem preço

que pague.

É... Eu fui muito feliz na minha profissão, sabe? Todo vôo pra mim era uma coisa super prazerosa.

Eu ia feliz da vida. Mas a minha casa era o meu último reduto. É a minha família, as pessoas que

você mais ama, que têm mais importância nesse mundo. Eu sempre digo: “Só vem à minha casa g Ao invés de “casualmente” – que Hermes pronuncia com ironia –, os dois amigos, intencionalmente, escolheram o quarto que só tinha duas camas para que, com isso, apenas os dois passassem a ocupá‐lo e, assim, não precisarem dividi‐lo com os outros companheiros de trabalho com quem não tinham maior intimidade.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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quem eu quero.” Isso, para continuar essa mesma convivência. Você não convida qualquer um,

por respeito pela sua casa. Claro que a sua mulher trás pessoas que você não conhece, as suas

filhas também, mas eu tenho a pretensão de achar que as minhas filhas foram criadas e

orientadas, e que só vão me trazer pessoas que vão continuar essa unidade. É coisa da minha

mãe. Ela é paulista, meu pai é alemão. Os meus amigos – mas, amigos mesmo – iam pra minha

casa, minha mãe fazia almoço, jantar, lanche, então era gostoso lá. Eu sou a mesma coisa. Eu

quero que todo mundo venha aqui, eu quero confusão aqui, aniversário...

Por isso que eu te digo que quando eu chegava de um vôo, era sempre gostoso. Eu ligava sempre,

queria saber se estava tudo bem; se tivesse, eu ficava tranqüilo. Quando eu saía, era um prazer

muito grande. Eu ia para os lugares que eu gosto, fazia compras pra minhas filhas...Mas era muito

gostoso quando você voltava. A mesma alegria que você tinha quando saía era a de quando você

estava voltando. É muito bom, sabe? É a sua casa, a sua família, é aquilo que você está

construindo – e isso pra mim tem uma importância... Era gostoso, uma coisa era decorrência da

outra: eu pensava “eu vou, vou fazer o que eu gosto, trabalhando, ganhando meu dinheiro, vou

comprar alguma coisinha pra elas [a esposa e as filhas], e vou voltar.” Hoje eu sinto uma falta

muito grande, não do vôo em si, mas de ir lá, passear: “Puxa vida, se eu tivesse lá, eu compraria

isso, ou aquilo... em Miami é mais barato, em Nova Iorque... seria legal.” Mas agora é muito

gostoso porque eu estou mais tempo na minha casa, então você fica curtindo a suas coisas,

fazendo minhas coisas. Não grandes coisas, mas – eu gosto de dizer – eu sou jeitozinho pra fazer

minhas coisas em casa. Então é gostoso .

Quando eu voava, morávamos em apartamento. Eu ficava muito tempo fora; e era meio incerto.

Ia duas, três quatro vezes ao ano à fábrica, fazia cursos, workshops, que, normalmente, duravam

mais que uma semana. Eu me sentia muito mais seguro, a Aidê [esposa] e as crianças estando em

um apartamento. Hoje a coisa está mudando, mas naquela época, morar em apartamento era

mais tranqüilo. Todo mundo do edifício sabia que eu voava, sabia que a Aidê estava sozinha com

as crianças; eu tinha uma certa tranqüilidade.

O meu sonho era, na hora de me aposentarh, ir‐me embora para uma casa. Você quer serrar uma

madeirinha, você não pode fazer num apartamento; Você quer ouvir um som mais alto, numa

casa você tem mais liberdade. E agora, como eu estou todos os dias, até elas se sentiram mais

seguras.

Agora, a mais velha casou, e a gente está indo para uma casa menor, de dois dormitórios. Muito

gostosa, numa rua muito tranqüila; tem garagem. E todo mundo gostou. Lá, a gente está

alugando, mas, o dono, parece que eu conheço ele há quatrocentos anos: “Olha, é o seguinte, a

minha mulher não gostou daquele carpete.” Ele: “Manda tirar, pode pôr o que você quiser.” Mas,

h No momento da entrevista, Hermes estava aposentado fazia dois anos.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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estamos com um probleminha: Como é menor, não vamos ter espaço para a nossa mesa de

jantar; porque aqui nós temos sala de jantar, lá não vai ter. E a minha mulher não quer dar,

assim... [A mulher acrescenta: “Foi tão difícil de pagar...”] Pode ser que a gente fique nessa casa o

resto da vida, ou pode ser que depois que a Tati casar, a gente mude para um apartamento do

tipo “entrei, já vi tudo”.

Entrevista realizada em 20/10/2004

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Júlia

26 anos

Solteira

Recém‐formada no curso de Direito; realizando curso preparatório para concurso público

Mora em um pensionato para moças na cidade de São Paulo

[Você poderia me falar um pouco sobre onde e como você mora?]

Há três meses, eu moro num pensionato, que pertence a um colégio católico, de freiras. Eu não

esperava vir pra cá, foi uma coisa de última hora: eu fui conhecer o cursinho, me indicaram esse

pensionato, eu fui conhecer. A Madrei falou que tinha um quarto, que era pra eu entrar, que valia

a pena; minha mãe gostou, e como eu não conhecia nada em São Paulo, aquilo, no início, pareceu

ser um bom lugar: bem localizado, não era caro, tinha segurança, parecia que era um achado.

Em três dias, eu resolvi mudar. Só que, depois, a gente vai conhecendo as regras, que são muito

severas, e não condizem com o que eu penso. Tem horário pra voltar, que é até às dez da noite:

nem os meus pais me cobram isso, aí uma pessoa estranha, que eu nunca vi na vidaj, vem me

cobrar certas regras! – parece que eu ainda sou adolescente! Eu, realmente, não me sinto à

vontade aqui. Quando eu cheguei, ela não falou muito claro, então, as coisas começaram a

aparecer depois.

São dezesseis meninas no meu andar, e eu tenho um quarto só pra mim. No meu quarto tem uma

cama, um lavabinho, uma escrivaninha e um guarda‐roupas. Pra mim, é uma coisa muito

provisória – eu não me sinto nem um pouco à vontade lá. Eu não trouxe nada da minha casak pro

meu quarto. As únicas coisas que eu trouxe foram as roupas e livros – só o essencial. Nem um

porta‐retrato. Outro dia eu estava pensando nisso, no meu quarto não tem nada que seja a minha

cara. Aliás, ele está exatamente do jeito que era quando eu entrei. Os livros ficam dentro do

armário, então, não tem nada visível que mostre que aquele quarto é meu. E o pior é que a

maioria do tempo, eu passo lá, estudando.

Dentro dos quartos, tem umas imagens de santos. Só no meu quarto, deve ter umas três. Eu até

pensei em tirar. Mas, se a Madre sabe que você tirou, ela manda colocar. O que é um absurdo,

porque a partir do momento em que você aluga um quarto, é como se estivesse alugando uma

casa, ela não tem o direito de interferir, e ela interfere.

i Diretora do pensionato. j A pessoa a quem ela se refere é a Madre, diretora do pensionato. k Casa dos pais.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Você tem zero de privacidade. Nem dentro do seu quarto você pode ficar sossegada, que,

qualquer coisa, a Madre vai lá e bate na porta. Outro dia, uma menina estava doente e não foi

trabalhar. A Madre esmurrava a porta da menina, gritando “você é preguiçosa, vai trabalhar!!”.

Foi chocante! Antigamente, ela até entrava no quarto das meninas, sem elas saberem – porque

ela tem a chave. Agora, ela não entra mais porque uma menina reclamou com a Madre Superiora.

Isso é invasão de domicílio, não pode! Ali é um quarto, mas a partir do momento que eu pago, é

como se fosse uma casa, um apartamento, que a gente aluga. Outro absurdo: ela faz umas

reuniões e, pra chamar as pensionistas, ela toca um sino... já pensou, você está no seu quarto, de

repente, toca um sino pra você ir pra reunião? É difícil... O banheiro é coletivo e o vaso e os

chuveiros ficam no mesmo ambiente; e não é muito limpo. E as paredes das cabines não vão até o

teto. Ou seja, nem aí, dá pra ter privacidade.

[Como você convive com as outras pensionistas?]

Mas, muitas das fiscalizações nem vêm da Madre, mas das próprias pensionistas. Tem umas

meninas, que moram perto do meu quarto, que se incomodam com muitas coisas bobas, por

exemplo, uma toalha molhada no varal – já foram reclamar pra Madre. Ou que a gente não pode

fazer nada no fogãozinho da cozinha porque vai deixar cheiro na roupa delas, que está

pendurada...porque a cozinha dá pro quintal, onde está o varal... Mas daria pra fechar a porta,

sabe, são pequenas coisas que são desnecessárias. Acho que isso é não saber conviver. Tem uma

senhora que mora lá há vinte e cinco anos, e ela é uma fiscal da Madre, que entrega tudo que a

gente faz. Então, tem uma tripla fiscalização: da Madre, dessa senhora e dessas meninas que são

meio chatas. A fiscalização é severa.

Tem uma cozinha comum, mas a gente não pode cozinhar – só esquentar uma coisinha ou outra.

Como eu vou para a casa dos meus pais, em Indaiatuba, todos os fins de semana, trago comida

congelada para passar a semana. Só que, na semana passada, como eu não fui a Indaiatuba,

faltou comida. Comer fora todos os dias fica muito caro, então comprei umas coisas e fiz uma

sopa pra mim. Fiz e arrumei tudo. Em seguida, veio uma outra menina, fez a maior zona na

cozinha e deixou tudo lá. Quando eu estava comendo a minha sopa, entrou a Madre e fez o maior

escândalo, achando que eu é que tinha feito a bagunça, e dizendo que eu sabia que não podia

cozinhar lá. Eu disse quem tinha sido, aí ela foi bater na porta da menina, aos berros. Resultado, a

gente ficou “de castigo”, sem fogão por uma semana – a Madre deu um jeito de o fogão não

funcionar por uma semana. Eu quase perdi as estribeiras.

Eu notei como essa história do fogão interferiu nos meus estudos. Eu fiquei tão estressada...

fiquei indignada com a atitude da Madre. Eu acho que a gente tem que ter um mínimo de

tranqüilidade... E, ainda por cima, tive que ter um gasto que não estava programado, porque se

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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eu não posso cozinhar, nem esquentar uma comida que eu faço, tenho que comer fora,

entendeu?

[O quê você consideraria uma forma mais adequada de morar?]

Eu não quero luxo, só coisas que, quando você mora num lugar... o mínimo que você precisa pra

morar é ter um fogão e poder cozinhar, poder comer sossegada, poder lavar sua roupa. Eu tenho

que cozinhar escondido, pra ninguém ver, porque se ela pega, tenho que ficar escutando três

horas na minha orelha, sabe? O telefone, a gente não pode fazer ligação, só receber. Também,

nem dá pra falar no corredor, porque toca o telefone, sempre vem a cagüeta ver pra quem é a

ligação, e quanto tempo você fica no telefone. E se a Madre pega a gente no telefone, fica

falando: “filhinha, desliga, filhinha!”. Então, eu tento, ao máximo, evitar encheção. Eu também

sinto falta de poder receber alguém pra poder conversar – você tá longe de casa, não conhece

muitas pessoas... Mas aqui é tudo muito proibido...E São Paulo é uma cidade muito difícil porque

as pessoas são muito individualistas, ninguém ajuda ninguém. Na primeira semana, aqui, eu me

senti muito sozinha, muito longe de casa.

Mas, eu estou tão focada nos meus estudos, que já nem me importo mais com isso. Tenho tanta

coisa pra estudar, que eu tento ver tudo isso como uma coisa menor, e ver, como ponto principal,

o meu estudo. Eu até acho que faço isso de propósito, pra me concentrar – nem televisão eu

tenho no meu quarto. Eu acho até que um ambiente, assim, está sendo mais benéfico para o que

eu quero agoral, do que se eu estivesse num apartamento, onde eu pudesse receber amigos,

porque eu iria ter várias coisas pra fazer, e iria me desconcentrar. Então, apesar de ser esse

mundo cheio de restrições, onde eu estou vivendo, está sendo bom, nesse sentido.

[Você já havia morado sozinha antes?]

Sim, eu já tinha morado fora da casa dos meus pais. Morei um ano em Campinas, quando tinha 18

anos. Fui fazer cursinho para o vestibular. Mas, aí, foi totalmente diferente: pra lá, eu levei umas

coisas mais pessoais. Eu sabia que lá também era provisório, mas lá eu tinha mais prazer... eu

tinha mais liberdade. Eu morava num apartamento, que era pequeno, de um quarto e banheiro,

com uma amiga de infância – a gente dividia um quarto. Era mais leve, a minha mãe ia me visitar,

a mãe da minha amiga também. Era tranqüilo, porque a gente já se conhecia bastante. Se bem

que, quando você divide um espaço, sempre acaba tendo algum tipo de conflito. Mas era muito

mais fácil solucionar, pela intimidade que a gente tinha. Não era nada de importante, porque eu

nem me lembro agora – eram só coisas do dia‐a‐dia, como os horários de acordar, coisa boba. Eu

tinha menos responsabilidade.

l Que é passar no concurso.

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Agora, em São Paulo, o peso é maior em todos os sentidos. Tem uma pressão, que é a dos meus

pais: eu já me formei e ainda não me sustento. Tem a pressão das pessoas, que perguntam “e aí,

Ju, tá fazendo o quê, tá estudando ainda?”. É uma forma de pressão. Ainda tem a pressão que eu

exerço sobre mim mesma, que é a maior de todas. Então, o único lugar que eu não gostaria de me

sentir pressionada, que é onde eu moro; é pressão todos os dias. É pressão de todos os lados, às

vezes eu me sinto sufocada; enquanto que o que você mais quer é estar na sua casa – é um lugar

que tenha paz, o mínimo de paz.

À noite, é muito difícil dormir; eu não consigo... eu acordo de manhã – acordo, não, amanheço –

com os dois lençóis no chão. Na minha casam, eu durmo igual a uma pedra, mas aqui, eu não

consigo. Eu estou com a maior cara de cansada porque eu não durmo. Essa noite, eu acho que

acordei de uma em uma hora. Não é barulho, porque eu escuto passarinho no meu quarto. Não é

São Paulo, porque outro dia, eu fui dormir na casa de uma amiga, aqui, em São Paulo, e dormi

super‐bem. Não é nada, não tem motivo. Agora, imagina, eu tenho que estudar o dia inteiro, e à

noite não consigo dormir! Então, eu preciso ir pra casa, pra conseguir dormir!

Nos fins de semana, eu vou pra minha cidade. E o pior é quando você não quer voltar . Ontem, eu

estava na casa dos meus pais, aí eu falei “ai, mãe, eu não queria voltar pra São Paulo...”. Eu amo

São Paulo, mas não estava com vontade de voltar, por saber o que me esperava...

Mesmo adorando São Paulo e as opções culturais que tem aqui, nos fins de semana eu sinto

necessidade de voltar pra casa dos meus pais... é uma delícia voltar. Eu gosto muito da minha

casa... eu gosto muito da minha cidade. Lá é muito diferente daqui. Você tem amigos, esse

aconchego, essa coisa de falar “vou dar uma passada na sua casa, tá?”, ou “passa aqui, na minha

casa”... aqui não tem! Aqui ninguém faz isso, ninguém dá uma passada na casa do outro. Aqui, as

pessoas combinam de se encontrar num tal lugar. Ficar em São Paulo no fim de semana é meio

solitário, meio triste, ainda mais nesse lugar que eu estou. As meninas viajam, e ainda por cima,

você não pode convidar uma amiga de fora pra te visitar. Na minha cidade, os amigos ficam indo

na casa dos outros o tempo todo, é muito divertido.

Mas, também, é bom voltar pra casa dos meus pais, porque são só dois dias. Voltar de vez, eu

acho que não gostaria, não. Agora o tratamento é totalmente diferente do que se eu morasse lá –

eu sou mais paparicada, minha mãe faz o que eu quero. É uma visita. Minha intenção é ficar em

São Paulo – se eu puder, gostaria de ficar; mas, nesse lugar que eu estou, não.

Eu reclamo desse lugar, mas eu até acho que não posso reclamar, porque eu estou tendo a

oportunidade que, às vezes, muitas pessoas gostariam de ter... porque custa muito caro a vida em

São Paulo.

m Júlia refere‐se à casa dos pais.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Se der certo um trabalho que eu tenho em vista, o ano que vem eu quero sair de lá [do

pensionato] e alugar um apartamento. Mas vou ter que dividir com uma outra pessoa porque não

tem como morar sozinha aqui em São Paulo, por enquanto: é muito caro... Mas eu vou querer um

quarto só pra mim. Eu quero escutar o meu som mais alto, ou estudar... eu quero o mínimo de

privacidade, e acho que um quarto só pra mim é o ideal.

Minha mãe tem medo que eu saia da pensão e vá morar num apartamento; ela acha bom todo

esse controle que tem na pensão, porque tem porteiro, tem segurança, ninguém entra lá – aliás,

nem amigos! Então, eu morando na pensão, ela fica tranqüila, é como se ela estivesse aqui.

Quando eu conto como são as coisas na pensão, ela não acredita em mim – ela acha que a Madre

é uma santa, que a gente é que abusa. Minha mãe, ao mesmo tempo que está muito feliz por eu

estar aqui em São Paulo, fazendo meu curso, não quer perder as rédeas da situação, entende?

Outro dia ela me falou: “tem pessoas que vão morar sozinhas e esquecem a família.”

Entrevista realizada em 30/08/2005

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Lúcio

61 anos

Casado, 3 filhos

Engenheiro, empresário

Mora com uma filha em um apartamento na cidade de São Paulo

[O senhor poderia falar um pouco sobre a sua opção de moradia, e sobre como foram as suas outras formas de morar, ao longo da sua vida?]

Eu nasci em Santos. Lá, eu morava numa casa cheia de irmãos: nós somos três, do casamento do

meu pai com a minha mãe, e o meu pai, viúvo, tinha mais 8 filhos. Aí, compramos uma casa em

Campinas; saímos do meu hábitat, que era uma cidade de praia, e nos mudamos, porque o clima

em Campinas era mais adequado pro meu pai. Pouco tempo depois, meu pai morreu. Dos três

irmãos, eu era o menor, e os dois maiores foram mandados para o colégio interno. Então, fiquei

eu, sozinho, com a minha mãe.

Quando eu era bem pequeno, e meu pai era vivo, lembro dele sempre de terno e gravata. Ele

gostava muito da refeição. A refeição era um convívio social muito importante na família. Até os

oito anos, eu vivi um esquema de almoço, de jantar, todo mundo junto. Então, eu gosto disso,

desse tipo de reunião, de jantar todo mundo junto, todo mundo em volta de uma mesa – era

assim em casa. Tinha um pão italiano e um queijo, que meu pai comprava, um parmesão que

vinha da Itália, que ficava o ano todo! Ele abria um buraco assim, no queijo, e ia pondo azeite, que

também vinha da Itália, e todo mundo comia aquele pão com azeite. Isso, eu lembro até hoje.

Mas esse esquema foi quebrado. Minha mãe não é de origem italiana – isso era muito da família

italiana, por parte do meu pai, da cultura dele. Minha mãe era uma mulher da sociedade. O pai

dela era construtor, e ela vivia viajando; elas e as amigas viajavam de vapor. Ela não queria casar!

Já casou velha, com mais de 30 [inaudível] anos! Foi meu avô, pai da minha mãe, que arrumou o

casamento. Meu pai era contador do meu avô. Meu avô achou que meu pai seria um bom marido

pra minha mãe: um senhor viúvo, muito católico.

Quando o meu pai morreu, saímos da casa e fomos para um hotel, em Campinas. Minha mãe não

cozinhava. Eu só passei a ter isso, quando eu fui pra universidade – mas mesmo assim, minha mãe

morava em Santos e eu morava na Universidade, em São Paulo. Então, só vivi esses rituais de

refeição na minha infância, quando meu pai era vivo, e na fase adulta, quando me casei.

Em vez de ter uma estrutura de casa, minha mãe achou melhor morar em hotel. Era fácil o

traslado, não é?

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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[Por que hotel?]

Isso acho que vem da minha mãe, sabe porquê? O pai da minha mãe foi o primeiro construtor em

Santos. Ele criou uma estrutura chamada Associação Predial de Santos, que fazia casas e sorteava

para os consorciados. Então, as casas que a minha mãe morava com a família, meu avô, etc., eram

todas casas novas, grandes; e ela mudava constantemente! Então, essa noção meio cigana já vem

da minha mãe. Então, depois dos oito anos, eu não tive mais essa coisa de casa muito

estruturada. Não era mais uma família padronizada. Família, pra mim, é uma coisa importante,

todo mundo ligado, mas não é todo mundo o tempo todo junto! Na minha formação não foi

assim!

[Como foi depois que o senhor se casou?]

Também nos mudamos bastante, até fixar residência em Santos. Aí, depois que nós tivemos

filhos, tinha uma mesona em casa. Mas eu tive que aprender, porque eu nunca tive isso; foi um

aprendizado conviver com isso – interessante, não é? Eu passei a ter isso, já na idade adulta,

depois de casado. Então, essa noção se reflete na minha maneira de morar. Comecei a morar em

hotel com oito anos de idade. Dos oito anos até os catorze, quinze anos, a minha vida de infância,

foi toda em hotel. A gente não ficava sempre no mesmo quarto. Eu me lembro de estar sempre

mudando. Aliás, em Santos, a gente mudava muito porque, às vezes, minha mãe não se sentia

bem porque era muito quente; então a gente mudava pra outro quarto.

A gente não criava vínculo com o espaço. A gente criava vínculo era com as coisas da gente –

dentro daquele espaço. A única coisa que eu carregava comigo – objeto particular – era uma

caixa, onde eu tinha algumas coisinhas. O vínculo que a gente tinha, tanto eu como a minha mãe,

que morava comigo, eram as coisas da gente, que a gente dispunha nos lugares onde ficava; eu

com os meus brinquedos – esse era o único vínculo. Meu vínculo era uma caixa que eu carregava,

e o que eu tinha dentro – esse era o meu vínculo.

Eu me lembro de uma coisa que a gente tem até hoje, que são duas malas belgas de folha de

flandres. Quando a gente morava em Campinas, eu tinha uns amigos belgas. A família tinha vindo

da Bélgica e montou uma fábrica de queijo em Campinas. E eu era amigo dos meninos. E eles

tinha essas malas com um monte de revistas francesas: Tim Tim, tinha um monte de jogos

franceses que a gente ficava jogando. E, quando meu pai morreu e minha mãe mudou‐se da casa

para o hotel, em Campinas, a senhora belga doou pra minha mãe as duas malas. Até hoje nós

temos essas malas em Santosn. Então, o que a gente levava dentro das malas eram as nossas

particularidades, era a nossa vida, a gente tinha tudo ali. Era fácil, punha as coisas na mala e ia pra

n Onde mora a esposa de Lúcio.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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qualquer lugar [risos]. Isso tudo reflete em mim até hoje, porque a casa, material, não representa

nenhum vínculo pra mim. O vínculo está nos objetos que eu ponho lá.

Já na idade adulta, por muitos anos, morei em flat, aqui em São Paulo – eu tinha a quem puxar,

não é? No flat, eu poderia fazer uma decoração interna a meu gosto, ou fazer uma decoração

padrão. Eu pensei, vou fazer uma decoração padrão porque à hora que eu quiser sair, saio, alugo,

e está dentro do padrão. Aí, mudei muito pouca coisa. O que eu tinha é minha maleta com as

minhas coisas, que eu dispunha no espaço do flat – só isso. Eu não mudei os ambientes – derrubar

parede, mudar uma janela, por exemplo –, mas eu levava coisas pra lá, pra mudar a decoração e

deixar o ambiente com meu modo de ser, com as minhas coisas.

Eu gosto muito de ir pra hotel – eu adoro ir pra hotel. Não sou acostumado a ficar na casa dos

outros; vim aprender isso, um pouco, depois que casei. Ficava na casa dos meus sogros, etc. Mas,

de preferência, eu vou pra um hotel; é onde eu me sinto melhor, me sinto bem. É interessante,

porque em qualquer lugar eu me sinto bem. Muito cedo, eu aprendi a viver dessa forma. Eu só

não fui treinado pra ficar na casa dos outros. Eu encaro o espaço do hotel como um espaço meu,

e eu curto aquilo. Por que – porque eu carrego a minha mala, as minhas coisas. Aquilo, sim, faz

parte de mim, não é? – é o porquinho de estimação, ou coisa que o valha...

[E hoje em dia, o que o senhor considera a melhor opção de moradia?]

Hoje, a minha casa é minha mochila. Todo mundo dá risada – a mochila tem tudo! Eu posso ir

daqui pro Rio, pra Buenos Aires, pra Nova York, com a minha mochila; eu tenho tudo que preciso,

essencialmente, ali. Esse desprendimento das coisas, eu aprendi na marra, porque, quando meu

pai morreu, todos os outros parentes, meus irmãos mais velhos, cada um veio pegar uma coisa.

Imagine, eram os maiores... Nós éramos em onze – oito mais velhos, e eu e meus dois irmãos – só

tinha uma irmã; os mais velhos já tinham suas famílias. Todos vieram pegar uma coisa – olha só!

Então, o que ficou? Não ficou nada! Aquelas malas de flandres foram tudo o que sobrou... duas

malas de flandres com coisas muito pessoais. O que eu tinha meu? Uma bolinha de gude, isso ou

aquilo... aquilo era meu, ninguém mexia! E eu podia ir com aquilo pra qualquer lugar do mundo!

Com a minha caixa, eu me sentia bem e estava em casa.

A minha mulher mora em Santos e eu moro em São Paulo. Aqui, em São Paulo, nós temos um

apartamento. Eu comprei esse apartamento e nem vi o que tinha dentro. Contratamos um

decorador, que botou tudo abaixo e fez tudo do jeito que ele quis. Claro que ele pediu a opinião

da gente, mas eu não participei da escolha disso ou daquilo. Talvez minha mulher tenha feito isso.

Eu gastei uma fortuna – o preço do apartamento ficou o dobro. Tudo que tem lá – os quadros, os

objetos de arte – foi colocado pelo decorador. Eu encomendava as coisas, elas chegavam; e

quando ficou tudo pronto, trouxe as minhas coisas. E eu não me sinto estranho lá porque me

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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acostumei a isso desde criança; eu nasci e me criei assim, praticamente, itinerante, dentro de

hotéis. Acho que eu estava acostumado a isso, não é? É a mesma coisa – eu trazia a minha caixa pra dentro da minha casa e ia distribuindo do jeito que eu quero. Pra mim, é isso que me traz

aconchego na casa.

Agora, se eu fosse decorar uma casa, um apartamento, se eu fosse falar “eu quero um espaço pra

mim”... eu acho bacana pensar em criar o próprio espaço: “eu quero isso assim, eu quero isso

assado...”. Hoje eu seria capaz de fazer isso. A minha vida, nesse aspecto, vai‐se modificando; isso,

comigo, veio lentamente. Agora, por exemplo, eu já acho que morar em flat, não dá mais. É uma

invasão muito grande, você não tem privacidade nenhuma. Aquilo é propriedade sua, mas cada

dia é um estranho que entra, tem a chave, você não pode deixar uma carteira, um laptop em cima

da mesa, por questões de segurança. E eu não agüentaria mais um espaço tão pequeno.

[Mas, isto também não ocorre nos hotéis?]

A diferença é que os hotéis, pra mim, como criança, eram grandes! Tinham corredores onde eu

podia correr. Eu nem ligava pro quarto – o quarto era pra dormir! O bom era o corredor – o

corredor era o importante!! Aqueles corredores grandes, que você saía correndo... Um monte de

gente pra bater papo, falar com um, falar com outro... A noção de corredor, em hotel, é uma coisa

espetacular! Foi assim que eu vivi, foi assim que eu me criei.

Se eu tenho uma determinada estrutura de morar, e essa estrutura não muda, eu acho que fico

maluco: se eu tivesse que morar só num lugar, só ali, naquela mesma seqüência, naquela mesma

coisa, eu acho que eu não agüentaria. Eu teria que mudar alguma coisa, eu não me acostumo

muito, eu não posso viver de uma rotina...! Eu não quero seguir uma rotina, eu prezo, sobretudo,

a liberdade.

Então, qual seria o meu ideal de apartamento? Seria um penthouse aberto, com muita vista, num

lugar alto, de onde eu pudesse ver o mundo. Eu não gosto de divisõezinhas, eu não gosto de nada

disso. O meu apartamento de São Paulo é cheio de divisõezinhas, mas não fui eu que fiz! Mas, se

você me pergunta, se eu fosse fazer um apartamento pra mim, a vista seria essencial! O quê, de

lá, eu consigo ver, como um observatório. Outro dia, eu fui alugar um apartamento para um

funcionário meu, alugamos um aparamento com uma vista!! Aí, você fala “mas o apartamento é a

vista?”... a vista é 99% do apartamento! Não interessa o que tem dentro!

Eu gosto de uma coisa ampla – aí, sim – onde eu possa me situar. Se eu pegasse um apartamento

de cinqüenta metros quadrados, eu queria ele totalmente aberto, sem parede, sabe? É assim que

eu me sentiria bem. Eu aluguei, uma vez, um apartamento na Praça Roosevelt. Era um

kitchenette. Olha só: tinha um banheiro, uma cozinha – que eu mal usava, mas esquentava o café

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– e uma sala grande, uma sala bárbara. Aquele apartamento era uma porcaria, mas a praça, na

frente, que era legal. Você se fecha numa caixa porque você quer, não é? É necessário ter visão,

olhar longe – adoro ver a extensão!

No escritório, por exemplo, eu prefiro aquelas divisórias baixas. Realmente, você não tem tanta

privacidade pra conversar, mas, pra mim, o essencial é uma área grande. Eu falo muito pro meu

filho não ficar num escritório que não tenha uma vista, ele precisa olhar longe, não pode olhar

próximo. Essa necessidade de olhar o futuro é uma coisa fundamental. [Olhando através da

janela] Eu olho um milhão de anos‐luz pra frente...

Eu acho que o conceito de moradia, pra mim, hoje, é em função de tudo o que eu vivi, das minhas

experiências ciganas, de passar de um lugar pra outro. Não me prendo a paredes, mas às coisas

que você carrega com você. Não me sinto bem em lugar confinado, pequeno – isso eu detesto. As

minhas lembranças de infância me remetem às várias mudanças de moradia. Nem por isso eu

deixei de ter um lar, um local de família, ou seja, um abrigo familiar! No entanto, sempre

carregava “a mochila" que significava para mim liberdade de movimento e ao mesmo tempo

continha as minhas coisas , os meus pequenos amuletos, que tornavam déjà vue o novo

ambiente.

Hoje me acostumei a ter duas residências, meus lares ! Me sinto bem neles mas, ainda carrego

minhas coisas na mochila, junto com meus pequenos amuletos. Isso talvez seja uma herança de

antepassados ciganos Iugoslavos, quem sabe!

Entrevista realizada em 05/09/2005

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Lucélia

67 anos

Solteira, número incerto de filhoso

Aposentada por invalidez psicológica

Mora em uma instituição para idosos, na cidade de São Paulo

[Onde a senhora morava antes de vir morar aqui?]

Eu morava com a minha filha, cinco netos e meu genro. Minha filha é mãe solteira. Ela mora com

o Cezinha e tem dois filhos dele. Também tem o Rafael, que é do [nome inaudível], que ela morou

pouco tempo junto, saiu grávida e eu cuidei dela. Depois tem o [nome inaudível], que é filho do

Zé Roberto, que morreu e está no céu, com Deus...

[Quantos filhos a senhora teve?]

Eu tive dois filhos. Eu sou mãe solteira. Eu tinha 33 anos quando minha filha nasceu. Quando ela

estava com dois anos, o meu filho nasceu. Morreu com um mês. Ele tinha problema no esôfago,

não aceitava mamar, nem mamadeira. Morreu nutridop. O pai da minha filha mora em Araras. Ele

morou comigo só um ano, aqui, na Vila Maria. Eu tive ela, com quinze dias, ele foi embora. Aí, eu

fiquei sozinha com a minha filha; trabalhando, minha cunhada tomando conta. De tarde, eu

pegava ela e levava pra casa, de noite. Aí, eu fui pra Cordeirópolis, morar lá. Ela tinha quatro anos.

Aí, eu voltei pra São Paulo, morava aqui em Guarulhos, e ela tinha sete anos, já tava na escola. Aí,

eu era cabeleireira – eu me formei em cabeleireira –; tomava conta de casa, de dia, e, às vezes, na

hora de folga, eu ia fazer uma faxina na Vila Maria – de Guarulhos, eu ia pra Vila Maria fazer

faxina.

Depois, eu morei com o [nome inaudível] sete anos e sete mês. Aí, ele levou eu no INPS, ali do

Brás, e falou pra secretária, lá, “eu vim aqui pra passar minha aposentadoria pra ela, se caso eu

falecer, ou alguma coisa que eu possuir”. Ela bateu tudo à maquina, fez tudo direitinho, e nós

viemos embora. Depois, ele começou a dar de beber, e eu larguei dele. Ele ficou agressivo, deu

um soco aqui na minha mão, que levantou todos os dedos, remontou todos os nervos, e a mão

inchou. Esse dedo ficou assim, e o médico ficou bobo de ver minha mão na parede, e a chapa, do

soco que ele deu. Aí, eu larguei, deixei ele. Ele ficou na casa e eu levei minha filha e a mudança

pra casa da minha tia, lá no Pico do Jaraguá. Eu acho que a minha filha estava com uns nove anos

de idade – ela estudava lá no Pico do Jaraguá, na escola.

o Segundo informação da instituição onde Lucélia é interna. p Desnutrido.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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[Como a senhora veio morar aqui?]

Foi o Promotor de Justiça dos Idosos da Praça da Sé – eles que arrumaram esse lugar pra mim. A

minha filha foi lá, depois a Promotora foi lá em casa. Eu gosto do pessoal daqui. Aqui é bom, mas

eu estou acostumada a sair, não éq? Eu andava, passeava, pegava um ônibus, enchia, pega outro,

ia pra Praça da Sé, tudo de graça... Aqui não poder...

Mas foi bom ter vindo porque eu tava andando muito... eu já tava cansada dessa vida. Eu não

ficava em casa... não sei porque... chegava de manhã, já tinha vontade de sair, pra passear. Aqui,

eu levanto cedo, escovo o dente, tomo café às sete horas, fumo um cigarro às oito horas, quando

ela chega, converso com as pessoas, e assim, vai indo o dia. Almoço... a comida é boa. Das duas

pessoas que dormem junto comigo, no meu quarto, eu converso só com a Dalma; a outra não

conversa, ela tem um problema.

Eu vim morar aqui porque eu saía muito: pegava o ônibus, visitava a minha tia, dizia que ia dormir

na casa da minha colega, e não voltava pra casa. E às vezes, eu passava a noite na rua...

[Por que?]

Porque eu queria. Passava da hora, chegava em casa no escurecer – eu tenho medo de descer

ladeira –, não tinha ninguém pra descer eu; aí, então, eu ficava na rua. Sozinha. Eu não tinha

medo, não. Nunca aconteceu nada. No outro dia, eu voltava, e aí minha filha falava “agora que tá

chegando?”, e eu respondia “é, agora que eu tô chegando”.

[E o que a senhora fazia na rua?]

Eu entrava num restaurante, pagavam pra mim Coca‐Cola, pagavam pizza. Eu pedia dinheiro,

também, fora de lá. Eu comprava ovo de codorna – um real, treze ovo de codorna – e comia...

sorvete... e assim ia passando o tempo.

[E como a senhora fazia pra ir ao banheiro?]

Eu ia no restaurante, na pizzaria. Ia lá, e às vezes ia no banheiro do posto de saúde da Guilherme

Cotching.

[Onde a senhora dormia quando passava a noite na rua?]

q Quando Lucélia usa o verbo “sair”, está‐se referindo ao hábito de perambular pelas ruas, sem destino. r Lucélia fala, com visível nostalgia.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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No papelão, com uma manta cobrindo. Deitava um pouquinho, depois levantava, andava um

pouco, depois voltava, deitava mais um pouco, até amanhecer o dia. Tinha uma moça, que

também dormia na rua, e eu dava o cigarro pra ela. E eu deitava ali e ficava. Sempre no mesmo

lugar... e nem levava nada de casa – a manta, eu ganhei de uma mulher; e eu deixava guardada na

casa dela. Quando eu chegava, ela me dava a manta, e eu dormia.

Minha filha ficava pensando coisas negativas – tanta coisa, né? Uma vez um caminhão pegou os

meus dois pé. Saía muito sangue. Nesse dia, eu tava na rua. A polícia dali de perto que me deu

socorro. Uma pessoa que conhece a Denise, na firma, viu, telefonou pra ela, ela avisou minhas tia,

e minhas tia foram avisar minha filha. E ela foi no hospital me ver. Fiquei internada um mês e

quinze dias – só fazendo curativo.

Antes, eu não era assim! Eu trabalhava. Trabalhei sete anos na Phillips. Na montagem de

televisão, rádio e vitrola. Seis anos e seis meses na [palavra inaudível], em montagem de televisão

e radinho de cabeceira. E em outra firma... O total deu dezenove anos de trabalho, entre

montagem e trabalhando em peças de carro no Vale do Ribeira, numa metalúrgica, e trabalhando

numa estofaria, numa prensa. Inclusive, esse dedo dói porque a agulha descia em cima da unha.

Aí, eu fazia curativo até sarar, pra voltar. Esses dois dedos, eu faço assim, dói.

[Foi por isso que a senhora se aposentou?]

Eu me aposentei por invalidez com 45 anos. Por causa da psiquiatria. Eu fiquei internada em

bastante lugares. No Pinel, na Psiquiatria do Mandaqui, na... num outro lugar perto de Santana.

Teve mais, mas eu não me lembro agora. Eu não tava muito boa, não. Eu não sentia nada, mas

ficava meio mole, escutava vozes. Eu subia as escadas da firma, e aquelas vozes altas vinham

assim, do meu lado. É que eu já tive em centro espírita. Então, essas vozes conversavam comigo,

falava e atrapalhava eu. Mas, passou.

Quando eu me aposentei, e fiquei internada, era a minha filha quem ficava tomando conta da

casa. Depois disso, ela já era mocinha, já. Já tinha seus quinze, dezesseis, dezessete anoss. Ela

sofreu bastante. A mãe internada, e ela ficava sozinha em casa; ninguém ficou com ela. Eu fiz

análise. Apoio, deitada. Um dia, o Doutor Roberto chegou com a minha análise. Aí, ele olhou a

análise e perguntou “o que a senhora tá fazendo aqui, se a senhora não tem nada? Pode ir

embora pra casa”. Aí, minha filha foi me buscar e eu voltei pra casa. Eu passei a tomar remédio de

bastantes tipos, fui tomando, tomando. O [inaudível (nome do remédio)], eu tomei muitos anos,

parei agora. Agora só tomo um remédio, que não dá reação nenhuma. É pra dormir – e eu me

sinto bem.

s A noção cronológica para Lucélia é aleatória, como se tudo que ela narra tivesse acontecido num sonho.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Quando eu voltei pra minha casa, eu não saíat. Eu arrumava a casa, lavava a louça, fazia comida.

Tá fazendo um ano que eu comecei a sair. Eu me sinto mal em casa. De manhã, eu tenho que sair,

conversar com as outras pessoas, tomar um cafezinho na padaria, todo mundo me quer bem, e

assim eu levo a vida.

Eu gostaria de voltar pra minha casa. Se minha filha viesse me buscar, eu ia contente, na mesma

hora. Na minha casa, antes, eu passava a roupa, lavava a louça, arrumava a cama. Atualmente, eu

já não estava fazendo quase mais nada... não dava vontade. Eu só tinha vontade de ir pra rua.

Agora, eu ia passear, visitar as minhas tia, irmãs da minha mãe, ficar conversando... Elas serve

café pra mim, quando é hora do almoço, elas serve o almoço, nós fica conversando, depois eu

volto pra casa.

Entrevista realizada em 08/12/2004

t Novamente, o verbo “sair”, significando o seu vagar pelas ruas.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Marly

46 anos

Separada, 2 filhos

Proprietária de circo

Mora em um trailer de circo

[Como é morar e trabalhar em circo?]

Eu fui para o circo quando tinha 20 anos, e vai fazer 26 anos que estou no circo. Eu tinha uma vida

normal, antes, morava numa casa, mas não tive dificuldade nenhuma em me adaptar – eu adoro

morar em trailer. Antes de morar no trailer, eu morei quase dois anos em hotéis – mas não é tão

bom. Não sinto falta nenhuma de morar em casa. Eu acho o trailer a melhor opção porque eu

tenho o bom da casa e a facilidade de me mover, como ficar em hotel.

Já faz cinco anos que estou nas redondezas de São Paulo. Antes disso, eu fiquei dez anos rodando

pelo Brasil: nordeste, centro‐oeste, note, sul, tudo! Eu cheguei a fazer dez cidades de quatro dias,

uma atrás da outra: chegava no domingo à noite, ficava montando na segunda, terça e quarta, e

estreava na quinta; ficava até domingo, desmontava, e ia pra outra. Isso em dez cidades, nesse

ritmo – uma loucura. Como eu faço a parte administrativa do circo, vou sempre na frente. Então,

mesmo estando no circo, como não está tudo montado, ainda tenho que morar um tempo no

hotel. Por exemplo, o circo vai daqui pro Rio de Janeiro. Enquanto eu estou locando o terreno,

vendo as mídias, planejando ainda, tenho que me situar em algum lugar – num hotel.

Antigamente, há 40, 50 anos, quando não existia trailer, as famílias de circo chegavam nas cidades

e alugavam casas. Tinha aquelas que moravam em barraca e as que moravam em casas alugadas.

Essa era a forma de moradia mais tradicional do circo. Mas, quando chegaram os trailers, as

pessoas que moravam em casas, passaram a morar em trailers.

[Como é morar em trailer?]

A sensação que você tem, quando você não tem o trailer, é que você perde o referencial. Já

aconteceu algumas vezes, de ter algum acidente com o trailer, ou você precisar fazer uma

manutenção, ter que levar pra fábrica, ficar de uma a três semanas sem o trailer... é horrível, você

perde seu chão, é uma coisa muito engraçada... Eu imagino as pessoas que têm suas casas

alagadas por um temporal, têm a mesma sensação. Porque você pode ir aonde for na cidade, mas

você sabe que vai voltar e vai pro seu canto. Você quer voltar pra o seu lugar de descanso, pra

onde estão suas coisas. Então, quando você não tem isso, você fica perdida, sem saber onde é o

seu referencial. E assim é com todo mundo do circo.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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E eu percebo isso, também, nos filhos. Os meus dois foram criados no circo – eu vou te mostrar o

quarto deles. A gente, às vezes, saía pra algum lugar, daí eles falavam “ai, mãe, estou louco pra ir

pra casa”: a casa era o trailer. Os dois já saíram de casa. O de 18 anos é palhaço, já comprou o

trailer dele e mora aqui do lado. O mais velho, agora, mora no Paraná, está estudando. Por ele,

estaria aqui, mas ele também quer terminar os estudos. Então, por enquanto, ele está lá. Mas, na

semana que vem, mesmo, ele vem pra cá, pra passar duas semanas. Nas férias, nos feriados

prolongados, ele está sempre aqui, no circo, no trailer.

Faz uns seis, oito meses que o mais novo comprou o trailer dele e se mudou. Mas, nós sempre

moramos os quatro juntosu no trailer, e nunca teve problema de espaço, tudo tranqüilo – porque

a gente se adapta ao espaço, eu acho que o ser humano vai criando...

Essa é a vantagem do circense, que eu vejo, com relação a outras famílias: é que como o trailer

está muito próximo do trabalho, a convivência familiar é maior e a gente aproveita mais a

moradia. Eles saem, se apresentam no picadeiro, e, se precisam, já voltam pra casa.

Normalmente, com as outras pessoas, isso não acontece porque o trabalho é longe de casa: saem

de manhã, vêm pra casa almoçar, ou só vêm à noite.

[O trailer é sua única casa?]

Hoje, eu tenho uma casa, na minha cidade, no Paraná. Mas, quase nunca vou pra lá: uma vez a

cada sete meses – é uma espécie de casa de férias. No ano passado, eu só fui duas vezes pra lá. É

uma casa muito grande, tem 1200m2 – eu acho muito grande! Na verdade, eu comprei essa casa

para o meu filho morar porque ele tinha passado no vestibular e queria morar em Cascavel, pra

conhecer. Então, comprei a casa, pensando no futuro, como um investimento. Por causa de mim,

não, porque eu estou super‐satisfeita no meu trailer. Eu gosto da casa, claro, quando eu estou lá,

estou super‐bem. Eu não tenho dificuldade de me adaptar; mas prefiro muito mais morar no

trailer.

Na casa de Cascavel, eu projetei uma prateleira só para os troféus do circo. E tudo que eu fui

juntando ao longo de tantas viagens pelo Brasil, e também, viagens internacionais; tá tudo lá.

Aqui, na minha casa, não cabe. E no escritório da carretav, também não dá, porque teria que tirar

e colocar a cada viagem. Por exemplo, não dá pra colocar quadros no trailer. Eu coleciono pratos,

adoro miniaturas. Aqui tem uma parte das coisas, mas não dá pra ficar carregando tudo pra cima

e pra baixo. Então, tudo que não cabe aqui, eu deixo lá. Para mim, não tem problema nenhum, eu

u Moravam Marly, o ex‐marido e os dois filhos. v O escritório de administração do circo funciona em uma carreta.

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vivo tranqüilamente sem isso. Meu filho disse que aquela casa, depois que eu morrer, vai virar

museu.

Mas, agora, já mudei meus planos. Vou vender aquela casa e comprar um apartamento em São

Paulo. Eu tenho ficado muito por esta região. Por exemplo, se eu estou com o circo lá em Ribeirão

Preto, e tenho que fazer alguma coisa em São Paulo, visitar uma empresa, ou levar uns artistas

para se apresentarem em programas de televisão – a gente faz muita televisão em São Paulo –,

então, comercialmente, é mais útil pra mim ter um imóvel pra ficar em São Paulo.

Mas não é pra eu ficar morando no aparamento; se eu tivesse alguma coisa pra fazer em São

Paulo, uma entrevista, ou uma reunião, e ficasse tarde pra vir pro circo, claro que eu iria dormir

no apartamento. Mas – pra você ver – eu tenho muitos amigos em São Paulo, e, quando vou

jantar fora, eles sempre me convidam pra eu dormir lá, pra eu não voltar tarde da noite. Mas eu

prefiro voltar, quero ir pro meu canto. Na quinta‐feira, mesmo, era meia‐noite e meia, quando eu

saí de uma churrascaria com uns amigos. Uma amiga disse “você vai dormir lá em casa”. Mas eu

preferi voltar pra cá. E o apartamento dela é enorme, tem um quarto de hóspedes, mas eu prefiro

voltar para a minha referência de lar, minha casa, meu espaço.

Eu também adoro receber amigos. Já teve um fim de semana de dormirem doze pessoas no

trailer. Vem, que eu lhe mostro o trailer por dentro.

[Mostrando o trailer...]

Então: eu comprei o trailer zero, quer dizer, você manda fazer o trailer e escolhe tudo, do jeito

que você quer. Como eu moro assim há vinte e cinco anos, e já sei das minhas necessidades,

ajudei o engenheiro da fábrica a mudar algumas coisas. Algumas dessas mudanças passaram,

iclusive, para a linha de produção. Por exemplo, a janela do banheiro ficava em baixo, na altura de

uma janela normal. E aí, quando você ia usar o vaso ou tomar banho, tinha sempre que fechar a

janela para as pessoas de fora não verem. Aí, eu fui à fábrica e falei que aquela janela tinha que

ser alta. E aí, todos os trailers passaram a ter a janela do banheiro alta.

Outra coisa que precisou mudar é que as torneiras eram muito frágeis, porque eles projetam

trailer para ir para camping, que já tem uma instalação fixa. Não é igual aos terrenos que a gente

encontra, que cada um tem uma instalação diferente. Aqui, por exemplo, a água vem em alta

pressão, porque era uma indústria. Aí, você chega em outro lugar, que era residencial, a água vem

de pingo. Nós temos que pensar nisso, na rede de esgoto, luz elétrica... É uma mini‐cidade – você

tem todos os problemas que tem uma cidade, em miniatura. Você acaba sendo prefeita,

delegada, juíza, você tem que ser um pouco de tudo dentro da comunidade.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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[Você mesma projetou o espaço interno?] Eu queria um quarto em cima porque eu tinha dois meninos, então aqui ficou sendo o quarto

deles; o meu é do outro lado. Embaixo das camas ficam as gavetas, onde ficam as roupas. Nesse

armário, eles punham televisão, o vídeo, o som. Aí, a gente vai escolhendo, por exemplo, no

original, não tem esses armários, só que eu adoro bagulho, então mandei colocar.

Aqui suja muito, por causa do terreno, que é de terra batida, então as coisas estragam muito. A

cada dois, três anos, eu troco tudo: aqui [na sala de jantar] era tudo diferente, outra cor, outro

estofado. Agora já enjoei, tô achando tudo muito colorido. [Apontando para a mesa de jantar]

Aqui vira cama pra casal: essa mesa sai e fica uma cama de casal, bem grande, por sinal. Aqui [na

circulação], nesse armário, vinha com duas beliches, e virava um quarto de criança. Mas, como eu

não tinha mais bebê, mandei transformar tudo em armário. Ficou sendo o meu closet. Aqui [no

satinário, mostrando o desnível da soleira do boxe do chuveiro], a original era um pouquinho mais

baixa, mas eu mandei levantar para quando eu estou muito cansada, dá pra fazer tipo uma

banheirinha, sabe? A televisão, eu pus no meu quarto – eu detesto televisão na sala porque não

dá pra conversar. Quando os meninos eram pequenos, eu era obrigada a colocar, pra eles

poderem ver. Agora que eles se mudaram, aboli a televisão na sala. É horrível, você estar

almoçando e vendo a notícia de alguém matando não sei quem, o mundo caindo...

[Você cozinha?] Eu cozinho, mas não gosto de cozinhar, nem de fazer limpeza – eu tenho empregada. Mas eu

gosto da rotina da casa. Aqui, já teve dia de eu ter doze, treze convidados pra almoçar! Eu acho

que eu trago isso da minha família. Eu morava numa casa com muita gente, numa família que se

reunia muito. Nós fazíamos churrasco – no sul se faz muito churrasco –, macarronada... muita

gente, sempre muita gente. E a casa, principalmente a cozinha, era o centro. Eu lembro muito da

cozinha da minha mãe, que era enorme, com fogão a lenha. E eu também gosto muito de receber

gente em casa – eu acho a arte de receber muito legal.

[Então, esta é a sua casa...] Ah, sim. Aqui, eu tenho tudo. Olha: eu tenho quarto, sala, cozinha, banheiro, uma varanda, tenho

plantas, máquina de lavar roupa, tudo de acordo com as minhas necessidades. As pessoas não

precisam de mais do que esse espaço pra viver. E, na companhia [de circo], cada família também

é assim, com a sua individualidade. Cada um decora do jeito que quer, organiza da maneira que

quer.

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Pra você ver: Eu viajo com trinta e cinco a quarenta famílias. A família do circense normalmente

tem o pai, a mãe e dois a três filhos. Aqui, cada um, cada família tem seu cantinho, seu jeito de

arrumar a casa. Por exemplo, alguns preferem morar em carreta; eu prefiro trailer (eu só tenho o

escritório na carreta). Meu irmão e minha irmã preferem morar em carreta, que tem quatorze

metros por dois e oitenta. Eles fizeram da carreta a moradia: com janelas, dividida do jeito que ele

gostam, com piso, uma moradia normal, que é a cara deles. Umas famílias têm trailers maiores,

outras menores; e dentro do próprio trailer, cada um faz sua decoração, seu espaço. E, sabe, a

pessoa suja é suja em qualquer lugar, e a pessoa limpa é limpa em qualquer lugar. Se a pessoa é

limpinha, mesmo que a casa seja em cima de chão batido, é bem varridinha, bem limpinha.

Além, do trailer, existe o motor home, que é ma‐ra‐vi‐lho‐so! São maiores, e muito mais caros.

São feitos em cima de chassis de ônibus. Meu irmão mora num, aqui. É completamente diferente;

o trailer tem que ir puxado pela caminhonete. No trailer, não pode viajar ninguém dentro. No

motor home, você pode dormir enquanto viaja, porque é mais seguro. Esse meu trailer é feito de

alumínio, isopor e madeira – não isola do calor tanto quanto o poliuretano que tem no motor home.

[Que critérios você usa para escolher a localização do circo – e, por conseqüência, da sua casa?] Nós não procuramos um lugar para locar o circo em função do que a vizinhança tem a oferecer

pra nós – colégio, farmácia... Ao contrário, se o terreno é bom, do tamanho necessário, nós

ficamos. E só depois é que localizamos as outras coisas. Pra gente, é independente a localização.

Por outro lado, já aqui no terreno, nós instalamos nossos trailers e carretas mantendo uma certa

distância um do outro, de modo a manter nossa individualidade. Mas, mesmo assim, você ainda

pode escolher ficar com aquele vizinho ou não. Às vezes, a gente brinca: “aquele vizinho está

fazendo muito churrasco, tô enjoada desses vizinhos – vou mudar para o outro lado”. Há uma

evolução constante no circo. Tem as crianças que vão ficando adolescentes; tem os que vão

envelhecendo. Então, eles vão trocando a localização.

No meu circo, eu respeito muito a individualidade de cada família. Desde que eu montei o circo,

eu digo sempre: se eu tiver fazendo um churrasco na minha casa hoje e não convidar meu vizinho,

ele não vem; ele só vem se eu convidar. Porque você tem que respeitar; a pessoa, às vezes, não

quer que esteja todo mundo junto. Quando é pra todo mundo, aí convida todo mundo.

Entrevista realizada em 03/09/2005

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Márcio

41 anos

Solteiro

Diretor de teatro

Mora em um apartamento na cidade de São Paulo

[Com que idade você deixou sua cidade natal e que planos você tinha ao deixar sua terra e vir para São Paulo?]

Eu tinha 22 anos, viabilizei minha vinda porque passei na USP em Artes Cênicas, mas isso foi só

um pretexto para vir fazer teatro aqui, tinha o plano secreto de trabalhar com o Antunes Filho ou

com o Ademar Guerra. Permitiram os deuses que trabalhasse com os dois.

[Você poderia falar um pouco sobre o processo de sair da sua cidade, Curitiba e passar a morar em São Paulo?]

A dificuldade, ao me mudar pra São Paulo, foi justamente que se o espaço público era

infinitamente mais estimulante pra minha construção pessoal, pra invenção de mim mesmo, a

falta do espaço privado quase me matou... Mesmo! Demorei muito tempo para resgatar algo que,

no Paraná, eu nem percebia que tinha; algo preciosíssimo, que é o senso de poder crescer num

espaço. Porque eu sinto que tem uma coisa da gente se construir no espaço em que mora...

Em São Paulo, no início, eu tive um período de cigano, por alguns meses, e fui me desesperando

sem perceber que eu estava me perdendo de mim mesmo. Aí, o espaço público das ruas

engarrafadas, lugares deteriorados, urbe que não flui, começou a deixar de ser um estímulo e

passou a me oprimir. Depois de morar em dois ou três lugares diferentes, literalmente, fui em

busca do equivalente ao meu apartamento em Curitiba, que por sua vez era o equivalente ao

apartamento onde eu tinha passado a adolescência – espaço que foi o primeiro que permitiu essa

construção; já que a casa da minha infância, que eu ainda amo, não permitia. Lá eu não pude ser:

“tornar‐me”. Olha, esse assunto é profundamente estimulante!

[Em que sentido, você diz que procurava algo equivalente ao que tinha em Curitiba?]

Eu acho que eu busquei uma distribuição dos cômodos igual à de lá. Acabei encontrando um

apartamento em que, ao entrar, achava uma cozinha no mesmo lugar que tinha lá, uma

sala idem, dois quartos dispostos quase como lá, etc. Esse, aqui, era menor, mas a sensação era

que eu entrava no de lá. As janelas recebiam luz na mesma relação que lá, com vista para

montanhas que também lembravam a Serra do Mar no Paraná, e em um bairro que lembra

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Curitiba. Aliás, a Zona Oeste daqui, tipo Sumaré, Vila Madalena, Pompéia, tem um ar que parece

que eu estou lá.

Eu lembro que antes de eu “me achar” no espaço daqui, em uma visita que eu fiz a Curitiba, eu vi

o meu antigo apartamento... de longe, porque já tinha sido vendido. As janelas estavam

iluminadas e, aí, eu fiquei angustiado; ele me parecia a chave de um reencontro com algo

perdido, um estado do passado ou qualquer coisa assim. Eu percebo que não era bem nostalgia...

E agora eu entendo, porquê bastou reencontrar esse equivalente pra eu desencanar. Aliás, foi só

aí que eu me mudei de corpo e alma para São Paulo, que adotei a cidade como minha. O externo

encontrou um correspondente com um espaço interno, em dois níveis.

[Que tipo de experiências domésticas você buscava?]

Por exemplo: no começo, eu tive um grande problema com esse apartamento. Eu sempre li

muito, quando eu morava em Curitiba. Mas, muito mesmo! Isso, pra mim, era – é – vital. E, não

sei por que, isso, aqui, não rolava; eu simplesmente não conseguia. Daí, eu saquei que o que eu

não tinha era um espaço pra ler, como eu tinha lá. Era angustiante... Aí, eu fui tentando, comprei

uma luminária e uma poltrona super‐parecida com a que eu tinha em Curitiba; punha a cadeira

aqui, mudava pr’ali..., encostei na parede: aí, não sei, a forma como a luz entrou e iluminou

aquele canto me fez encontrar aquela referência que eu tinha perdido, e eu passei a curtir aquilo.

Eu reencontrei o meu espaço pra ler... Agora, eu leio feito louco.

É curioso, porque, agora, mesmo aqui em São Paulo, eu estou planejando mudar para um lugar

que tenha uma área aberta ao ar livre, que tenha ou um quintal, ou uma sacadona, um terração,

alguma coisa assim. Agora, acho que é a minha busca da infância. A minha família sempre esteve

ligada à área rural, e eu passei a infância convivendo com isso. Em uma certa altura da minha

vida, tudo o que eu não queria era continuar com isso, então eu negava de todas as maneiras. Eu

queria me manter longe daquilo. Agora, que eu percebo que não tem mais perigo, estou

procurando reencontrar aquelas sensações. Que louco, né?

Nessa futura casa, eu também queria ter mais espaço, mais armários, pra guardar minhas coisas.

Esse meu apartamento é bem pequeno. Eu sou muito bagunceiro; aí, eu queria ter espaços pra ir

pondo as coisas que eu, naquele momento, não tô tendo tempo de resolver, de trabalhar: pra

guardar lá, até chegar a hora de lidar com aquilo. Eu também funciono assim, sabia? Na minha

cabeça tem um monte de gavetas aonde eu vou guardando os meus projetos. Você acredita que

eu tenho projeto pra daqui a vinte anos?

Entrevista realizada em 13/10/2006

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Paulo

50 anos

Separado, 2 filhos

Artista plástico, educador

Sua casa fica em Florianópolis, mas passa mais tempo morando em um flat, na cidade de

São Paulo

[Uma vez que você optou por se mudar para Florianópolis, tendo que trabalhar em São Paulo, que tipo de relação você tem com as suas duas casas?]

Pra começar, isso que está aí, eu não considero casaw. E eu faço questão de que seja assim. Não

quero estabelecer nenhum vínculo com essa coisa que está aí. Eu passo cinco dias da semana aí;

eu sei, não tem lógica nenhuma. Antes desse flat que eu estou agora – faz uns seis meses que me

mudei –, eu fiquei durante dois anos aqui pertinho, praticamente a uma quadra de distância de

onde eu estou agora. Lá ilustrava até melhor a espécie de vínculo que eu estabeleço com essa coisa que está aí, que eu nem chamo de casa... eu durmo lá, não vivo um tempo lá. Do jeito que

eu entrei no apartamento, praticamente foi o jeito mantido, ele ficou assim. Eu coloquei uma

cama; comia de pé, atrás de um balcão; nem um banco; eu não queria me sentir bem, alguma

coisa assim. Pra não criar raízes, pra não me estabelecer... Porque eu sempre entendi a minha

casa, como também o meu estúdio. Durante muitos anos foi assim. Eu sempre tive as duas coisas,

em partes distintas, mas na mesma casa. Eu sempre vivi desse jeito. Pra mim, uma casa é assim:

quando eu tenho o meu espaço de trabalho acoplado a ela. Só é casa se for desse jeito. Na minha

casa real, que não é aqui, eu tenho isso, essa condição de trabalho.

[Você poderia me falar um pouco mais sobre essa sua concepção de habitar?]

Bem, eu saí de São Paulo há alguns anos atrás. Há vinte e cinco anos atrás, eu construí uma casa

na Granja Viana, fiz lá, também, o meu estúdio. Durante praticamente vinte anos, eu tinha lá a

minha casa, e habitava do jeito que eu entendo que a coisa deva ser. Ao mesmo tempo, eu já

dava aula em escola aqui em São Paulo. Eu comecei a trabalhar em escola em 1978. Dei aula em

vários cursos. Mas a minha melhor época, em que eu habitei melhor, foi essa. Porque eu sou

extremamente caseiro. Eu preciso de uma casa. Eu nunca trago a minha família para esse

apartamento de São Paulo. Apenas um filho que mora em São Paulo conhece esse lugar. E,

conhecendo o pai, ele acha que aquele canto não é a casa do pai.

w Pedro refere‐se ao flat que aluga em São Paulo.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Essa situação que é curiosa. Aqui entre nós, eu estou me acabando nessa situação. Mas, como eu

dizia, a minha melhor época foi lá, talvez há dez anos atrás. Eu vinha pra São Paulo muito pouco.

Quando eu comprei o terreno lá e comecei a construir, esse era meu projeto: eu tinha minha

carreira como artista plástico, estava indo, as coisas estavam acontecendo. Então, eu vinha pra

escola duas vezes por semana, pra uma aula, e o restante do tempo, lá. Essa foi a minha melhor

condição de moradia e de vida.

Quando eu construí a casa – uma casa de dois, três níveis – tinha uma escada, e a minha oficina

ficava no nível inferior. Eu morava com a minha família. Isso não atrapalhava, mas eu também sou

uma pessoa que não divide as coisas muito bem. Minha mulher, na época, trabalhava fora e eu

ficava com as crianças. Eu não só morava ali, trabalhava ali, mas cuidava da casa e das crianças.

Minha filha, pequenininha, já ficava comigo dentro da oficina. Cresceu comigo dentro da oficina,

que era a própria casa, num corpo só.

Mas, as coisas foram crescendo, e eu acabei saindo do corpo da casa, e construí a oficina no outro

extremo do terreno. Era um terreno longo, de cinqüenta metros. Mas, a necessidade foi por uma

questão de espaço para o meu trabalho. O espaço de antes, acoplado à casa, ficou pequeno. Eu

precisava de um forno de alta temperatura. Nessa época de ouro, eu tinha as coisas lá nessa

oficina, e eu tinha uma grande horta exatamente entre a casa principal e a oficina, fazendo um elo

entre as duas coisas. Essa horta acabou se transformando numa instalação! Eu fui mexendo na

horta e nos canteiros como se fosse um trabalho de arte.

Agora, eu pago um preço por estar aqui, nesta situação, nesta condição. Eu acho que isso me

ajuda a entender porque nesse apartamento, até há dois anos atrás, eu não tinha nenhuma

cadeira pra sentar, pra fazer as minhas refeições sentado. Eu não queria, eu me recusava. Nesse

flat que eu estou agora, eu melhorei um pouquinho a minha condição. Eu já posso comer

sentado. Mas não tem um objeto meu lá. Do jeito que eu entrei, está; só tirei o que me

incomodava. Eu encontrei o apartamento montado e o gosto da pessoa não batia com o meu.

Então, eu tirei algumas coisas, mas eram coisas que me incomodavam muito: enfeites,

penduricalhos que a pessoa tinha, que eu embrulhei e pus dentro do armário.

Por outro lado, eu não trouxe nada que eu goste pra colocar no lugar; é como se eu não pudesse

fazer isso. É como se tivesse que passar mal naquele local. Eu acho que eu preciso, na verdade, de

um aviso, de uma sinalização. Eu tenho impressão que essa situação, esse incômodo, é como uma

tabuleta piscando, me dizendo: “olha, não relaxe, fique atento, e saia disso aqui o quanto antes.

Não perca, ou não se esqueça, do seu objetivo maior”. Até pra eu tomar uma atitude – aí eu

começo a conjecturar: “se eu passo mal aqui, eu não posso ficar aqui, vou ter que tomar uma

atitude. Eu não posso demorar tanto tempo pra resolver voltar pro meu canto”.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

356

Agora eu tenho uma casa do jeito que eu sempre sonhei lá em Florianópolis. O que eu ganho

aqui, eu invisto nessa casa que está lá, que eu pouco uso. Mas tem lá a oficina, tem tudo aquilo

que eu preciso. É como se eu estivesse investindo no meu futuro, que eu espero que não esteja

tão lá na frente.

[Por que você escolheu Florianópolis?]

O problema passou a ser São Paulo. Eu não gosto mais de São Paulo. Pra mim, São Paulo se

descaracterizou, não é mais a cidade que eu conheci lá, há trinta anos atrás. Eu sou paulistano,

nasci nesse meio. É uma cidade muito suja, muito caótica, com pessoas feias, com pessoas porcas

– é o que é, em função dessa situação toda, que você sabe melhor do que eu. Meu projeto de

morar não está mais aqui em São Paulo. Há uns seis anos atrás – eu ainda morava aqui em São

Paulo, e a escola já estava me absorvendo muito – vivia uma situação de tamanho estresse, que

eu tive um treco na escola, passei mal. Apesar de ainda estar morando naquela casa, aqui em São

Paulo, nessa época, eu já não estava vivendo do jeito que eu gostaria. Resolvi me desfazer de

tudo. Vendi as poucas coisas que eu tinha, dei tchau pra todo mundo aqui, e fui tentar minha

sorte lá .

Eu não conhecia Florianópolis, mas eu gosto de praia, eu gosto de montanha, eu gosto de estar

afastado, e, ao mesmo tempo, próximo. É uma coisa curiosa: eu preciso de quinze minutos de

gente por perto, mas só quinze minutos. Depois eu quero voltar para casa, pra minha rotina.

Quando eu vivia na Granja, eu vivia dentro de um condomínio, e quando acabava o meu

expediente diário, cinco, seis horas da tarde, eu tinha esses quinze minutos. Pegava o carro,

sumia, ia pro centro da Granja, pra mim já era suficiente: Chegar no mercado, ver as pessoas,

pronto, e voltava. Em Florianópolis, eu imaginava que pudesse manter esse ritmo – como, de fato,

oferece. Então, eu fui para um canto de Florianópolis, que é uma área rural, na verdade. No final

da rua, você atravessa as dunas e está na praia. Mas é no meio do mato, entre dois morros. E meu

projeto de morar passou a estar todo lá. Por isso é que eu tenho essa situação aqui.

Pensado bem, eu poderia viver melhor aqui. Porque, de fato, não tem lógica – já que eu estou

aqui, a lógica me diz isso: “você está aqui, cara, então, por que não ficar melhor? Por que não se

estabelecer, não se sentir melhor nesse espaço?” Isso é uma coisa; a outra é que eu gostaria de

poder aproveitar melhor o meu tempo. Não só viver melhor... Eu tentei, já, em alguns momentos,

tornar esse tempo lá, nesse espaço, mais produtivo, em termos de trabalho. Eu poderia estar

projetando, ou desenhando. Há trocentas coisas que eu poderia estar fazendo. Eu já tentei, mas

eu não consigo. Eventualmente, eu faço isso, mas muito longe da medida que eu considero ideal.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Eu me sinto um caixeiro viajante. Eu vou pra lá [Florianópolis] – três, quatro dias – eu levo pelo

menos dois dias pra entender o ar que eu respiro. E aqui, eu não quero entender. Então, a

situação é incômoda.

[Você se lembra de como era a sua relação com a casa em que morou quando criança?]

Sim. Na casa dos meus pais, eu, desde muito pequeno, já tinha consciência de que eu não gostava

dos objetos que havia lá. E eu não consigo separar uma coisa da outra – os objetos que existiam

lá, naquela época, dentro daquela casa, e as pessoas. Eu acho que havia uma perfeita relação

entre os objetos de lá e as pessoas. Mas, de, alguma forma, eu me sentia mal, não compactuava

com aquilo. Talvez isso tenha me impulsionado para as artes plásticas. É difícil dizer isso, de uma

criança de nove anos. Acho que essa impressão era só emocional; eu não tinha condições de

avaliar no plano estético. Eu vim a fazer isso depois. Na minha adolescência, eu tive a plena

consciência de ter feito essa leitura; de ter comentado comigo mesmo “esse tapete é horrível,

detesto esse tapete”. Mas, aí, as coisas se juntaram: o plano emocional com esse plano formal ou

estético.

Veja só que curioso: eu tinha um quarto que, durante muitos anos, na casa dos meus pais, eu

dividi com a minha avó; que eu não considerava meu. Eu não decorava esse quarto, eu não tinha

coisas minhas, era muito pouco. Eu não colocava coisas na parede, como fazem os garotos. Não

que eu não pudesse, mas eu não queria. Eu só fiz isso quando morreu a minha bisavó – ela

ocupava um quartinho na edícula da casa, nos fundos da casa. Quando ela morreu, eu, aos

dezessete anos, tive oportunidade de ocupar esse quarto. Aí aquele espaço foi meu. E já era o

meu local de trabalho, onde eu desenhava, já era o meu estúdio. Era um pequeno cômodo – tinha

um banheirinho do lado –, acho que não tinha três metros por dois. O que eu fiz? Eu me mudei

pra lá, literalmente, e coloquei a minha cama no teto. Eu passei os caibros entre uma parede e

outra, pus o estrado, uma escadinha, e dormia num vão de sessenta centímetros. Ficava

encaixado, não podia levantar, que batia a cabeça na parede. E ali eu trabalhava, dormia; ali eu

fazia absolutamente tudo. E dali eu fui pra rua.

Quando eu fui morar sozinho, aluguei um apartamento, e esse apartamento era apartamento e

oficina, absolutamente tudo junto. Era um apartamento grande, velho, na rua Barata Ribeiro, uma

travessa da Peixoto Gomide, próximo à Frei Caneca. Durante muitos anos, eu carreguei objetos,

que eram referências, desde esses quinze, dezessete anos... aquele pincel que gastou, acabou o

pêlo. Mas foi o pincel que eu comprei lá, usei lá, eu guardei durante muitos anos. É uma peça que

eu não considero de valor, nesse plano estético, mas ela guarda outras coisas, carrega consigo

umas tantas referências. E eu ainda faço isso.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Agora, estou me preparando para uma nova guinada na minha vida. Eu preciso retomar o que eu

considero o ideal de vida. Eu preciso voltar pra lá. Não sei quando isso vai acontecer, talvez eu

leve dois, três, quatro anos; não pode demorar muito porque eu também sei que não resisto

muito a essa situação, a essa coisa aqui.

Eu nunca trago a minha família para esse apartamento de São Paulo. Apenas um filho que mora

em São Paulo conhece esse lugar. E, conhecendo o pai, ele acha que aquele canto não é a casa do

pai.

[O fato de seu trabalho lhe obrigar a estar longe de casa por longos períodos o permite estabelecer uma rotina doméstica?]

É... Quando eu não estou na escola, quando eu não estou em Florianópolis – agora já faz um mês

que eu não vou pra lá, em função das coisas da escola, e em função de um trabalho de consultoria

que eu desenvolvo – eu estou viajando. Eu detesto viajar, não gosto de viajar. Fala‐se muito isso –

acho que um pouco é chavão, talvez outra parte seja verdade –, de que seria importante para a

criação, referências diferentes, mundos diferentes, situações diferentes. Comigo não funciona

assim. Eu só consigo fazer alguma coisa – não sei se criativa ou não – a partir de um cotidiano

bem firmado, estabelecido – e isso, na minha casa, que é também a minha oficina. Eu dependo

disso. Se você me tirar do meu cotidiano, eu não consigo fazer nada, não faço. Aliás, até pela

natureza do meu trabalho. Depende muito da repetição, da constância. Imagine o seguinte: eu

tenho lá minha escultura, estou concebendo, desenhei, faço uma primeira versão, um primeiro

modelo desse projeto. Claro que entre o que foi pensado anteriormente e o que foi materializado,

já tem uma grande diferença. Você está saindo de duas para três dimensões, novas portas aí se

abrem.

Eu costumo muito trabalhar desse jeito: depois do primeiro modelo tridimensional, eu realizo um

série de versões com pequenas diferenças, nos seus vários aspectos formais. E eu só consigo

trabalhar essas variantes com um cotidiano bem firmado. Se eu não tenho um cotidiano, eu não

consigo isso. Eu tenho que acordar às seis e meia, sete horas da manhã, eu não tomo café, só

tomo água. Estando lá [em Florianópolis], eu dou um pulo até a praia, olho o mar, dou bom dia,

volto, me enfio na oficina, meio‐dia eu paro para comer alguma coisa ... Tem que ter essa rotina.

Eu só consigo processar – talvez não seja nem a criação, mas o processo do trabalho... enfim, a

materialização do trabalho depende de uma rotina. E isso, eu só tenho dentro da minha casa –

que é a minha oficina.

Eu tenho uma natureza muito contemplativa. Eu reservo a parte da manhã para o trabalho que é

mais mental – criar ou processar alguma coisa. Na parte da tarde, após o almoço, eu vou para um

trabalho mais braçal – a escultura exige isso, ela tem uma parte de cozinha, que é mais braçal. E

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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no final do dia, eu vou para a parte contemplativa; cinco e meia, seis horas, um pouquinho antes

disso, eu dou um pulo, novamente, à praia, e volto. E aí, eu fico, sei lá, mais duas a três horas,

sentado, quieto num canto, contemplando, só olhando as coisas, e, eventualmente, tocando. É

uma coisa que me faz bem e é prazeroso estar assim: vendo, considerando, quase que me

preparando pra parte da manhã do dia seguinte. Mas, também faz parte desse processo, uma

convivência pacífica com as coisas que eu faço em casa. De repente, é a lata de lixo, que eu pego e

levo pra fora, ou uma antena que quebrou, e eu vou gastar meia hora consertando – não me

irrita, não me incomoda, faz parte Mas, isso tudo é lá, na minha casa de verdade.

Entrevista realizada em 05/11/2004

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Rui

65 anos

Casado, 1 filho

Comissário e instrutor de comissários de bordo, aposentado

Mora com a mulher em um apartamento na cidade de São Paulo

[Como o senhor se sentia em relação ao fato de estar constantemente longe de sua casa, a trabalho?]

Depois de uma temporada fora, a sensação de voltar para casa é de como se eu voltasse ao útero,

porque o útero é tudo aquilo que você tem como proteção: você vem dali, você nasce dali. Então,

a ausência fora de casa é exatamente você estar em uma barriga de aluguel; não é o seu útero:

desculpe‐me a metáfora, mas é exatamente a sensação... Você não está no seu útero, você não

está na tua casa, na tua proteção, naquilo que você domina, envolvido pelas coisas e pelas

pessoas que você conhece e estima.Estar longe dessas coisas, em um quarto de hotel, é estar em

um ambiente que não é o seu ambiente – é um ambiente de aluguel. É transitório; você está em

trânsito. Eu não sei de outras profissões, um caixeiro viajante...quem viaja por profissão, eu tenho

impressão de que tem essa mesma sensação.

[Como é o “seu” ambiente?]

Aqui, por exemplo, este apartamento se identifica com aquilo que eu imaginei para mim. Você

quer conhecer o apartamento para eu te dizer porque eu gosto dele, porque eu acho que ele é

meu útero?

[Rui começa a mostrar o apartamento]

Moro aqui há seis anos. Antes, nós morávamos em um outro apartamento, menor, e ainda tinha

meu filho, que agora mora em sua própria casa. Esse aqui é só pra mim e pra minha esposa. Nós

dividimos o apartamento pelas nossas necessidades, para o nosso conforto.

Aqui tem o lavabo; daqui da sala, se você é uma visita de cerimônia, você não entra no meu

apartamento – fica isolado aqui. Uma coisa é você ter a pessoa a quem você dá a liberdade de

entrar, e a outra é aquela pessoa que você mantém isolada. Então, você consegue separar o que é

amigo do que é visita. O amigo, você deixa entrar, invadir; não tem segredo, não tem mistério.

Esse apartamento lhe dá essa possibilidade. Você fica contido na sala. E o local de necessidade

seria o lavabo. Fora isso, você não tem acesso – nem à cozinha, nem a cheiros, nada.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

361

O meu quarto é o último, então tudo o que acontece aqui, não chega som lá. O apartamento do

vizinho é exatamente ao contrário; então, se ele der uma festa na sala dele, eu estou dormindo

no outro extremo do prédio, entende? No outro apartamento, que era pequeno, não tinha essa

separação, e eu tinha um monte de reuniões do trabalho que iam até à uma hora da manhã; e era

um inferno pra minha esposa, que ficava lá no quarto. Da sala, você via parte do meu quarto.

Então, invadia a intimidade. E este se tornou completamente funcional nesse sentido. Então, é

essa identidade que você tem, que te faz bem, que você se sente protegido.

Aqui é a varanda: Tudo o que é viável e possível ser construído, já está construído ao longo e à

distância – ninguém encosta em mim. Olha só o meu jardim e o jardim dos outros.... Aliás, essa

área foi o que chamou a nossa atenção, quando vimos este apartamento anunciado.

Aqui você tem a cozinha, que está totalmente isolada. Tudo com visual [aponta para a janela que

fica acima da bancada da cozinha]! O quarto da empregada é o meu depósito. Tudo com armário.

Nós não temos empregada, só faxineira, graças a Deus. A empregada fica aqui, também

protegida... não só pela porta do banheiro dela, mas também por essa porta [que separa a área

de serviço da cozinha].

Aqui é o nosso escritório, onde a gente faz trabalhinhos, lê, computador... Aqui tem todas essas

bebidas. Eu não bebo nada, mas tem. Aqui tem um sonzinho... Tem o banheiro da minha mulher,

com a banheira dela, os cremes e as tranqueiras dela... não tem nada a ver comigo. Aqui é a

salinha onde a gente assiste televisão. E esse é um quarto pra hóspedes; com televisão, vídeo

cassete. A gente não recebe muitos hóspedes, mas a gente quer ter – o dia que quiser convidar

alguém, tem onde acomodar – um quarto só pra isso.

E aqui é o nosso quarto. Veja a distância que está da sala! Este é o meu banheiro – por sinal,

fizeram um buraco no teto para consertar um vazamento do apartamento de cima. Aqui são as

minhas coisas – é o meu banheiro. Tudo azul – parede, toalha... E o indivíduo que veio consertar o

teto pisa com pé sujo no meu tapete. Isso agride o meu espaço físico; vê a minha intimidade no

meu banheiro, vê o meu quarto, as minhas coisas, o meu boxe de tomar banho, onde eu fico nu, o

meu vaso sanitário... Dá vontade de perguntar pra ele, rápido, “quando é que você termina?

Quando é que você vai embora? Quando é que você vai sair do meu apartamento?” Ele é um

invasor. Ele, num computador, seria um vírus.

[Esposa:] “Eu tenho vontade de expulsar ele: “acaba logo e vai embora, pelo amor de

Deus”. No dia que eles arrebentaram o teto, eram dois rapazes, dois baianões, mais o

proprietário do apartamento de cima, mais a síndica e o Rui, trancados no banheiro.

E eles não abriram o ventilador. Quer dizer, tava um cheiro de suor lá dentro... Gastei

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meio tubo de desinfetante lá e fomos pra rua. Eu sou movida a cheiros. Não gosto

quando o cheiro da cozinha invade o meu quarto.”

[Rui:] Então, voltar para casa é a sensação de voltar‐se para dentro de si próprio. É sentir‐se

protegido. Veja bem, quando você está de férias, você pode estar no melhor lugar do mundo. Por

exemplo, Paris, que é um lugar que eu gosto muito. Não tem comparação entre Paris e São Paulo:

o que você usufrui de Paris e o que você usufrui de São Paulo, na minha opinião, lá é muito

melhor do que aqui. O rio Sena é muito melhor do que o rio Tietê. Mas quando você chega no

Brasil, em São Paulo, você está no seu São Paulo: “ai, que saudades que eu estou da minha casa,

da minha cama, do meu colchão, do cheiro do meu lençol...”. A minha cama é diferente!

[Esposa:] Eu eu levo cinco minutos para fazer o quarto do hotel ficar igualzinho a

minha casa: meu criado mudo do mesmo lado, durmo do mesmo lado, deixo as

coisas na gaveta e pronto.

Eu levo álcool e desinfeto o banheiro. Eu gosto muito de tomar banho em banheira.

Então, nós levamos um vidrinho de álcool, pomos na banheira e tocamos fogo pra

desinfetar: abre tudo, cortina, toma as providências, e fogo pra desinfetar.

[Qual foi o período mais longo em que o senhor esteve longe de casa?]

Houve uma vez, em 1981, que fui para Angola como a missão de preparar um grupo de lá para

voar em um 707 que a nossa empresa tinha vendido pra eles. Eles estavam em guerra tipo

apartheid – era branco massacrando o negro. E nós [o grupo de treinadores], brancos, tínhamos

que dar instruções para eles, negros. Se eu tinha certeza de que eles me odiavam por ser branco,

por outro lado, se um branco me pegasse ajudando um negro, eu também não iria ficar bonito na

foto. Morávamos em um de edifício tipo Cingapurax. Éramos seis e eu era o responsável pelo

grupo, todos no mesmo apartamento (eu não vou chamar aquilo de apartamento – estávamos no

mesmo local).

Era um lugar tão convidativo pra se morar, que a única coisa boa era que não tinha barata; mas

não tinha porque não se tinha nada para comer, então nem barata sobrevivia. Não adiantava

ganhar em dólar, porque se eu tivesse cem mil dólares no bolso e uma dor de cabeça, eu não

tinha como comprar remédio. Simplesmente, não tinha. E eu não conseguia dizer para minha

esposa fazer uma compra e mandar – lataria – mas que, pelo amor de Deus, não esquecesse o

abridor de latas. Só depois do quinto dia, consegui entrar em contato com ela: “Pede para o meu

diretor arrumar um jeito de fazer chegar aqui.”

x Rui refere‐se aos edifícios do programa habitacional “Cingapura”, voltado a faixas populacionais de baixa renda, desenvolvido pela prefeitura da cidade de São Paulo, na gestão de Paulo Maluf, entre 1993 e 1996.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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[Quantas pessoas moravam com o senhor?]

Éramos seis pessoas no grupo, das quais eu só conhecia uma. Pessoas com hábitos totalmente

diferentes. Não tínhamos água, e a higiene pessoal era só no sábado. Aquilo que você tem como

fisiológico era acumulado. Quando eu estava lá fora, meu relógio biológico não funcionava de

jeito nenhum. Para todas as necessidades fisiológicas, inclusive a própria alimentação, não

funcionava. Então, a vontade de vir pra casa era muito grande pelo menos para, fisiologicamente,

voltar a funcionar. Era uma falta psicológica e fisiológica, porque uma coisa comanda a outra, não

é?

Fomos sem tempo determinado para ficar, não havia uma programação de curso, não sabíamos o

que ia acontecer. Na tarde do dia em que eu viajaria, o meu filho, que na época era um menino de

12 anos, chegou do colégio com a perna quebrada. Então, eu o levei para engessar a perna,

cheguei do hospital carregando ele com o gesso ainda molhado, coloquei ele na cama, peguei a

mala e fui para Angola. E eu não tinha como me comunicar. Não existia maneira de me comunicar

e saber como ele estava.

Tanto é que fizeram alguma coisa errada no engessamento dele, e ele teve praticamente uma

gangrena. Se minha mulher não toma a atitude de correr atrás e dizer “abre esse gesso”, ele tinha

perdido a perna. Eu sou casado com ela há 41 anos porque ela cuidava do meu “útero”. Ela tinha

iniciativa, ela foi comissária, ela sabia o que eu estava fazendo, qual era a minha profissão; ela

sabia o horário que eu ia, mas não sabia quando voltava, nem se voltava; então ela tomava conta

de tudo. Então, essa angústia de que eu sou necessário, não existia. Eu sabia que eu era

importante, mas não necessário para o bom funcionamento da casa.

Enfim, nós ficamos 48 dias nessa situação – muito ruim. O que eu queria era voltar pra minha

casa. Lá, eu estava completamente perdido. Por pior que fosse a casa aqui, era o útero – eu

queria a proteção do meu útero.”

[O senhor falou que sente “uma falta psicológica e fisiológica” de sua casa. Poderia explicar?]

Por exemplo, quando se tem um mal‐estar, a vontade que se tem, não é de voltar para o hotel, e

sim de voltar para casa. Você imagina que eu, em trinta e quatro anos de vôo, nunca usei o

sanitário do avião para defecar; só pra fazer xixi!

Uma vez, eu estava fazendo baseamento em Los Angeles, estourou um canal de um dente. Foi na

época da greve de aeroviários e aeronautas no Brasil, e o pessoal da Varig estava muito envolvido

com isso. Eu com febre, num quarto de hotel, não tinha como voltar...: desinfetei um canivete

com perfume, botei uma toalha na boca pra não fechar, e abri o céu da boca com o canivete. Com

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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isso, saiu tudo e a febre passou. Como eu tenho pavor de dentista, jamais iria a um dentista lá,

que eu não conheço. A minha angústia pelo fim da greve, para que chegasse um avião, eu poder ir

para casa, e para o meu dentista era impressionante!

[Esposa:] É desesperador. Eu tenho umas enxaquecas e o único remédio que cura é

Cibalena. Um vez, eu estava em Los Angeles [acompanhando o marido], me deu uma

enxaqueca que durou quatro, seis dias, e eu acabei com meu estoque de Cibalena. E

aí, tinha que tomar aquelas porcarias de lá que não resolvem nada. Tudo que a gente

pode comprar sem receita, não resolve. Quase que desmaiava na rua.

[Rui:] Então, essa é a saudade de casa. A falta é não só da sua casa, mas do seu bairro, daquilo

que você domina. Os animais irracionais demarcam seu território. Nós, os pretensos racionais

também marcamos o nosso território, a toca onde você dorme e o seu território, que é onde você

faz a compra; qual a farmácia que fica aberta 24 horas; que horas abre a padaria, como é o nome

do dono da padaria, qual o horário que tem o melhor chapeiro para você comer um sanduíche

gostoso; onde tem seu borracheiro, o posto de gasolina aonde você vai, que você confia – esse é

o seu território. Eu tenho uma feira, aonde a gente vai nos sábados de manhã, que fica onde eu

morava [antes de se mudar para o apartamento atual]. Eu fiz feira lá durante 20 anos e todos os

caras de todas as barracas nos conhecem. Até hoje eu volto lá porque eles não me vendem

produtos que não estejam em boas condições. Eles dizem “não, hoje você não vai levar isso, você

vai levar aquilo.” Então, essa é a nossa casa.

[O senhor costuma de viajar de férias, não?]

Sim, nós costumamos ir a Poços de Caldas. E ficamos sempre em hotel; mas é em um hotel! E de

preferência, no mesmo quarto.

[Por que?]

Porque você se identifica com ele. Você, à noite, anda pelo apartamento sem acender a luz; você

sabe como é que regula a água quente do chuveiro... Então, prefiro passar as férias em um lugar

que eu já conheça. Assim como fazíamos em Paris. Ficávamos sempre no mesmo hotel, de onde a

gente já pegava o metrô para fazer todos os passeios. Um hotelzinho pequenino, mas dali a gente

domina completamente: você consegue dominar o tempo, ou seja, você tem a idéia do tempo

que você leva para fazer qualquer programa. Por exemplo, museus: nós gostamos muito mais do

museu d'Orsay do que do museu do Louvre porque ele dá mais intimidade, ele não tem aquela

pompa do Louvre. Você não é um estranho no museu – ele te aconchega mais, ele é mais seu

amigo.

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Isso eu tomo como exemplo do caminho conhecido no seu lar; de andar de noite, no escuro, sem

acender uma luz – eu não acendo uma lâmpada à noite no meu apartamento. Eu sei quantos

passos tem; não é que eu conte, mas eu tenho o sentido da distância. Tem uma prateleirinha ali,

que todo mundo me pergunta se eu nunca derrubei: Não, porque eu sei que ela existe.

[O senhor costumava levar objetos pessoais para em suas viagens?]

Eu nunca levei objetos que não fossem de primeira necessidade, por falta de espaço. No máximo,

um livro, e não tinha mais opções. Qualquer objeto levado poderia ser interpretado como

contrabando. E esse era um grande cuidado que se tinha que ter. E isso também era um

distanciamento de casa.

Entrevista realizada em 16/10/2004

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Felipe

78 anos

Solteiro

Tapeceiro, aposentado

Mora em uma instituição para idosos na cidade de São Paulo

[Há quanto tempo o senhor mora aqui?]

Há um ano e sete meses, desde 20 de março de 2003. A casa tem convênio com o Governo do

Estado, sabe, e tinha uma igreja perto de casa, na Vila Olímpia, que trazia uma cesta básica pra

nós, todo mês, em casa. A promotora freqüentava essa igreja. Ela ficou sabendo, através dos

funcionários da igreja, que tinha três homens solteiros que moravam na Vila Olímpia, que era eu,

o meu irmão Luís, que mora aqui, e o outro que faleceu há um ano e pouco – ele morou aqui

durante três meses e meio. Primeiro a promotora veio aqui falar com a diretora, depois foi lá em

casa e disse que ia trazer nós pra um abrigo. Mas eu não imaginava que fosse uma coisa tão boa,

tão grandiosa como aqui é – nem sonhando, né? Aí, depois de um certo tempo, mandou o

motorista dela buscar a gente.

[Como era a casa em que o senhor morava com seus irmãos?]

Era espaçosa...Tinha dois cômodos de três por quatro, mais a cozinha, que era do mesmo

tamanho. A gente tinha uma ótima vizinhança, a gente morava numa vila, numa rua sem saída. A

gente conhecia todo mundo porque morava no fim da vila, e tinha que passar por toda a vila pra

ir ao mercado, pro trabalho – que eu trabalhava até vir pra cá, eu reformava sofá.

Aí, quando nós viemos, ficavam os três irmãos no mesmo quarto. Agora, depois que o meu irmão

faleceu, tem um sobrinho da D. Sandray. Ele tem 91 anos. A gente se dá muito bem com ele, faz o

que é possível pra ele, porque ele é muito idoso, anda de cadeira de rodas... a gente chama as

funcionárias, chama as enfermeiras – o que dá pra fazer, a gente faz, com amor.

[Então, o senhor gosta daqui?]

Isso caiu do céu... Eu sempre fui uma pessoa feliz, graças a Deus. Mas sabe o que acontece? Lá,

onde a gente morava, tinha que fazer tudo: fazer comida, lavar roupa, ir no mercado, pagar

aluguel, esses programas todos da vida diária. Um irmão meu que cozinhava, eu não tenho jeito

pra cozinha. Eu só sabia fritar batata, mas arroz e feijão, eu não sabia fazer. Mas é um problema...

y Gerente geral da instituição para idosos onde Sr. Felipe mora.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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até, digamos oitenta anos (no meu caso, ainda podia)... mas depois fica tudo mais difícil. O meu

irmão, que mora aqui também, já tem oitenta... nós estamos literalmente aposentados [risos]. E

na minha casa, a gente fazia tudo, e eu ainda trabalhava de reformar sofá.

E aqui, não; a gente não precisa se preocupar com nada. A gente senta na mesa de manhã, uma

funcionária traz o café, outra o pão, as enfermeiras trazem o remédio, tudo na hora certa; no

almoço, a mesma coisa, e na janta, a mesma coisa. Até dez horas da noite, tem gente tomando

remédio aqui. Tem tudo na hora certa: é roupa lavada, cama, tudo, de um modo geral. Quando a

gente veio pra cá, deixou as nossas roupas lá, e eles doaram roupas pra gente. Meu armário não

cabe mais nada de roupa – se você quiser, eu mostro.

Para quem precisa, as arrumadeiras trocam a roupa de cama todo dia; por exemplo, para esse

senhor que divide o quarto comigo e com o meu irmão, que usa fralda descartável, e para todas

as pessoas na situação dele. Elas trocam colcha, travesseiro, o que precisar... isso é muito bom. E

para os que estão melhores, como é o nosso caso, trocam uma vez por semana. Quando a gente

está com algum problema, fala com a enfermeira chefe. Aí, ela vê: se é caso clínico, tem um

médico que acompanha a cada dia. Se for psicológico, ela faz o que é possível fazer. Então, a

gente tem toda a assistência, em todos os sentidos – as igrejas vêm fazer culto aqui todo sábado e

domingo.

E olha que eu até poderia reformar um sofá daqui, mas eles não deixam, dizem que a gente já

trabalhou demais na vida... Mas eu não sinto falta de trabalhar porque a gente tem muita

ocupação aqui. Por exemplo, a enfermeira chefe, uma ótima pessoa, faz fisioterapia aqui, mas ela

também faz uns trabalhos com a gente, ela pede pra gente escrever sobre personagens da Bíblia e

do Novo Testamento, para ocupar a mente das pessoas em coisas úteis, construtivas. Nas quintas‐

feiras vem uma pintora, e ela ensina a gente a fazer pintura em pano e papel. Eu queria aproveitar

a oportunidade para mostrar as minhas pinturas... Todos os dias eu também jogo dominó,

baralho, com os amigos. Antes de vir para cá, eu só podia jogar à noite, porque não dava tempo.

Aqui, eu jogo de dia.

Tem muita festa aqui, também. Tem o aniversário da casa, que é em setembro. Em agosto tem a

festa da fogueira: A gente dançou quadrilha, foi muito bom [risos]. Tem uma chácara, que

pertence à Casa, em Itapecerica. Então, a diretoria fez – para os que estão bem de saúde – uma

festa do Havaí. Botaram um colar de flor de plástico na gente, e a gente dançou dança havaiana –

porque hula‐hula, só mulher que pode dançar [muitos risos]. Tinha muita coisa boa pra comer;

saímos daqui às seis horas, voltamos às onze horas da noite!

Nós já fomos no Mackensie, que é uma Universidade, você conhece, não é? O presidente do

Mackensie faz parte da Diretoria da AEB, então, eles fizeram uma coleta, lá, pra doar alimentos

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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pra Casa, aqui. E fui eu e 13 pessoas numa van, passamos um dia maravilhoso lá; as crianças

cantaram pra nós, nós cantamos pra eles... foi um dia inesquecível... Por isso que eu digo, pra

gente que está, graças a Deus, lúcido e fisicamente bem, aqui é um paraíso, uma beleza, melhor

impossível. Mas, mesmo para quem não está tão bem, é muito bom, por causa da assistência que

eles dão, tanto física, quanto psicológica.

As funcionárias são ótimas pessoas, tratam a gente com amor e carinho. A gente se torna amigos,

não é? Quer dizer, é convivência todo dia pra nós e pra elas também. Aqui, eu posso dizer que

tenho cem amigos – é verdade. Sempre fui uma pessoa sociável, sempre tratei as pessoas com

amor, e todos sempre me trataram bem. É a receita “é dando que se recebe” – você já ouviu falar

naquela oração de São Francisco? Eu posso falar sinceramente, em casas como esta é que se

constrói um mundo melhor.

[O senhor foi casado?]

Não. Eu, na vida inteira, sempre tive amizades com moças, mas pra casar não deu certo. É que

todos nós estamos na mão de Deus, em tudo e por tudo; então, nesse ângulo, não vai ser

diferente, não é? Deus achou, por alguma razão que só Ele sabe, que eu deveria ficar solteiro. E os

meus irmãos também, os três solteiros! Nós três sempre moramos juntos, desde que faleceram o

pai e mãe, claro. A pessoa pode ser feliz pobre ou rica, casada ou solteira, e eu sou uma pessoa

feliz, pobre e solteiro.

[O senhor lembra da sua casa de infância?]

Bom, eu nasci em São Paulo. Eu sou tão paulista, que nasci no Jardim Paulista! Quando eu era

menino, minha casa era espaçosa, porque no início eram nove filhos, minha mãe e meu pai. No

Jardim Paulista, na rua Caconde. Agora, só tem gente rica lá. Naquela época, tinha muita chácara,

até pasto de vaca tinha. Aí, tinha papai e mamãe, e os vizinhos, umas pessoas muito boas... Nossa

família toda sempre foi sociável, de gente educada, caridosa; sempre fizemos o que estava ao

alcance em benefício do próximo. Eu só tenho boas recordações, com os pais, com os irmãos.

Éramos pessoas sociáveis.

[O senhor tem parentes?]

Nós, eu e o meu irmão, temos três sobrinhos, por parte da minha irmã, que faleceu, e mais três,

por parte de outro irmão, que faleceu. Eles vêm sempre visitar a gente aqui, trazem coisas, frutas

pra gente. É permitido passar uns dias na casa da família, mas precisa a pessoa vir buscar de carro

e trazer. Então, a gente vai, umas duas, três vezes por ano, à casa desses sobrinhos.

Entrevista realizada em 24/11/2004

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Paulina

85 anos

Viúva, 1 filho

Ex‐dona‐de‐casa

Mora em uma instituição para idosos na cidade de São Paulo

[A senhora poderia contar como veio morar aqui?]

Eu já moro aqui há seis anos. Foi assim... eu fiquei viúva há oito anos e fiquei muito mal, tive

depressão. Eu ainda fiquei morando na minha casa por um tempinho, mas, uma vez, eu caí,

fraturei a coluna e passei a depender de cadeira de rodas. Aí, meu filho e minha nora me

convidaram pra morar na casa deles. Minha nora é muito boa, uma amiga, mas o apartamento

deles é muito apertadinho – dois quartos –, eles têm duas filhas moças solteiras, e, você sabe,

gente nova tem outro tipo de vida, outras idéias. Eles me puseram muito à vontade, mas não

adianta dizer que não incomoda porque eu sei que incomoda. Eu não tinha espaço, era

complicado pra descer o elevador com a cadeira. E eu achava que meu lugar não era mais ali – eu

já tive a minha vida, então não quero interferir na vida de ninguém, não tenho direito. Aí, eu falei

com a minha nora que eu queria sair de lá. Ela disse que ia achar um lugar bom pra mim, e achou

esse aqui.

Então, pra passar a minha vida, agora, aqui é um dos melhores lugares. E eu gosto daqui, eu me

sinto bem aqui... Sabe, eu acho que meu lugar é aqui, porque lá fora não tem mais significado

nenhum.

[Por que?]

Sabe porquê? Eu gostava muito do meu marido, e ele de mim; a gente viveu muito bem. Ficamos

casados durante 62 anos. Eu casei com 17 anos. Se Deus não o tivesse levado, estaria com ele até

hoje. Eu gostava muito de cuidar da minha casa e, principalmente, de cuidar dele. Quando ele se

foi – por causa de uma pneumonia, ele faleceu em quatro dias –, a terra me faltou debaixo dos

pés. Aí, olhava para um lado, para o outro, e não tinha mais ele. Eu não queria de jeito nenhum

continuar na nossa casa. Tinha sido muito bom lá – eu morreria de tristeza.

Eu sinto que, agora, minha casa é aqui – eu me sinto feliz aqui. É claro que não é como a casa da

gente – e nem pode ser! Mas, se Deus me colocou aqui, eu tento me sentir bem de uma outra

forma. Tem pessoas que moram aqui, que são revoltadas, mas elas têm que entender isso: têm

que entender que a vida da gente acabou!

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Eu me adaptei logo porque eu vim porque eu quis. Eu me dou bem com as minhas companheiras

de quarto – a gente tem que fazer por onde, não é? Gosto das pessoas que trabalham aqui, das

atividades. Tem uma professora que passa pesquisas sobre o evangelho, e eu faço para exercitar a

mente. Eu gosto muito de escrever, sabe? Sou muito sentimental, e, assim, escrevo poesias. Eu

fico aqui até que Deus me leve.

Entrevista realizada em 08/12/2004

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Valdir

50 anos

Casado, 3 filhos

Engenheiro de seguros

Mora com mulher, os filhos e a mãe em uma casa na cidade de São Paulo

[Você poderia falar um pouco sobre a sua atividade como engenheiro e a necessidade de viajar freqüentemente?]

Eu trabalho para uma seguradora e minha função, entre outras, é viajar para inspecionar fábricas

seguradas por nós. Não costumo ficar muito tempo fora – o máximo que fiquei foi quinze dias –,

mas viajo praticamente a cada dez dias. Normalmente, vou na segunda‐feira, e na quinta estou de

volta. Posso tanto ir para longe, quanto para o interior de São Paulo. Minha rotina, nessas

viagens, é muito desgastante. Muitas vezes, viajo à noite, ou tenho que pegar o avião às seis da

manhã, e, pra isso, tenho que sair às quatro da manhã. Esse negócio de aeroporto cansa muito.

[Como é a sua rotina nessas viagens a trabalho?]

Eu trabalho andando o dia inteiro, seja no sol, seja na chuva; entra na empresa, e é calor – tem

uns fornos nas fábricas –, e é frio... À noite, quando eu chego no hotel, eu quero descansar – é a

minha válvula de escape.

[Em que tipo de hotéis você costuma hospedar‐se?]

Hotel, pra mim, que viajo a trabalho, é pra dormir. Não é pra curtir. Eu fico em hotéis que a

empresa providencia. Dependendo da cidade, eu peço um hotel que eu já conheço, aí eu fico em

algum que já estou habituado. Até porque a gente já conhece até os restaurantes mais próximos.

Tem uma rede de flats que eu conheço e costumo ficar muito, tem em vários lugares. Você

conhece o ditado “em time que está ganhando não se mexe”? A gente já conhece, sabe que é

bom, tem o preço acessível; às vezes é melhor do que ficar encarando certos hotéis que você não

conhece, com mau atendimento, com instalações ruins. Por exemplo, no nordeste, pegar um

quarto de hotel com chão e parede revestidos com carpete – você imagina como é aquilo na beira

da praia, um cheiro de mofo insuportável. Então, ao invés de ficar arriscando novos hotéis, eu fico

em um que eu já conheço.

Mas também já aconteceu de eu ir de férias para uma cidade dessas, onde eu já conheço o hotel,

e aí, eu não tenho essa preocupação. Por exemplo, fui para Salvador e, mesmo tendo o hotel que

eu conheço lá, preferi ficar numa pousadinha, na areia. Em João Pessoa, a mesma coisa. Eu e

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minha esposa pesquisamos umas pousadas aqui e, chegando lá, olhamos uma, olhamos outra, e

escolhemos a que mais agradou na hora. Eu só não topo acampar. Tem que ter sempre um

banheiro, uma televisão, um café da manhã,...

Quando eu estou trabalhando, a única coisa que o quarto do hotel tem que ter é uma boa cama,

pra eu poder deitar e saber que estou num lençol limpo, tomar um bom banho; e tem que ter

uma televisão – de preferência, com uma TV a cabo. Aí, eu costumo ver os programas que eu vejo

na minha casa. Por exemplo, na quarta‐feira à noite, eu sei que tem futebol; aí eu assisto.

Também gosto de documentários, aí, normalmente eu vejo ou o Discovery, ou o National Geographic, ou um repórter, um Jornal Nacional. Acho que não precisa mais do que isso. Não são

hotéis de luxo, mas que tenha algum conforto. Às vezes, até gosto de assistir um jornal local,

porque é divertido, pra gente saber como é, mas normalmente, vejo os mesmos programas que

vejo em casa.

[Como você se sente por ter que estar tão freqüentemente longe de sua casa?]

Eu já tenho essa atividade desde antes de me casar, então, são tantos anos, que você acaba se

acostumando. Por exemplo, quando eu vou a Curitiba, parece que eu estou indo pra casa porque

eu sei onde eu vou descer, eu sei onde eu vou ficar, eu sei onde eu vou comer, é uma rotina. Não

costumo comer no hotel. Não gosto de restaurante de hotel porque o ambiente é muito frio,

quase nunca tem gente, o garçom fica pendurado no seu pescoço, eu não gosto disso. Eu gosto de

ir a algum lugar e chamar alguém pra me atender “ô garçom, você me traz isso?”, num clima mais

descontraído. É um hábito meu, conhecer alguma coisa típica da cidade. Outro dia estive em

Macapá, fui conhecer um lugar que me recomendaram um peixe.

[Como você descreveria a sua casa?]

Minha casa é um sobrado geminado. Quando eu comprei, tinha dois dormitórios em cima, um

banheiro, sala, cozinha, dependência de empregada, lavanderia e quintal. Hoje eu fiz tanto –

agora tem quatro quartos, quatro banheiros, um terraço, escritório, meu quarto virou suíte.

[O que você costuma fazer em sua casa, ao voltar do trabalho?]

Eu fico muito na sala, vendo televisão, minha mulher fica no quarto. Tem televisão na sala, no

meu quarto, no quarto da minha mãe, que mora conosco, no quarto da empregada, no da minha

filha mais velha e no dos gêmeos. Cada um gosta de uma coisa, então, fica cada um no seu canto

vendo o que gosta. É muito difícil todo mundo comer junto durante a semana. No jantar, se está

passando futebol, eu já pego o meu prato e vou assistir. Na mesa de casa, é tanto controle: é da

NET, é da televisão, é da do DVD, é do aparelho de som... Quando chego em casa do trabalho, a

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primeira coisa é tirar a roupa, tomar um banho, pôr uma bermuda e o chinelo. No hotel, também

quero relaxar. Encosto logo dois travesseiros na cama, dou uma relaxada vendo minha televisão –

e fico bravo quando pego um hotel que não tem controle remoto! [risos], mas hoje em dia todos

têm.

Entrevista realizada em 18/03/2005

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Maria

48 anos

Separada, 1 filha

Profissional do show business Mora em um apartamento na cidade de São Paulo

[Que lembranças você tem da casa da sua infância?]

Eu nasci na casa que o meu avô construiu. Ele trouxe o material da Itália. O mármore de Carrara

da escada era de Carrara mesmo. A minha mãe nasceu nessa casa e eu nasci nessa casa. Óbvio

que, a princípio, ela atendia às necessidades do meu avô. Ele não imaginou que fosse ter oito

filhos, na verdade, ele teve nove, e oito sobreviveram. E cada filho que casava, passava um tempo

do casamento nessa casa, até fazer um pé‐de‐meia e poder sair pra sua própria casa. No caso da

minha mãe e da minha tia, irmã dela, elas casaram e ficaram com meu avô até ele morrer. Eu não

conheci minha avó. O meu irmão, Neco, que tem oito anos a mais que eu (sou a caçula, e única

mulher), quando ele nasceu, ela tinha acabado de morrer.

Isso, na prática, significava que eu não tinha um espaço pra mim. Eu nasci e fiquei dormindo, de

zero a doze anos, no mesmo quarto do meu pai e da minha mãe. Isso provocou coisas muito

interessantes – interessantes, hoje, que já estão resolvidas pra mim. Mas, eu tinha muito medo,

quando eu ouvia um homem falando baixinho e de vagar. Depois eu fui sacar que isso podia ter a

ver com meu pai verificando se eu estava dormindo ou não, pra transar com a minha mãe. A

privacidade deles era zero. Porque o que separava o quarto de um corredor – que, na verdade,

era um corredor pra todos os quartos daquela ala – era uma cortina. Então, a vida sexual deles

deve ter sido uma grande merda.

Então, o sentido de casa, pra mim, sempre foi uma coisa muito especial. Eu sonhava em ter uma

casa, eu sonhava em ter um quarto pra mim. Eu queria ser interna num internato só pra ter um

canto meu. Eu sentia uma necessidade absurda de reconhecer a minha própria energia

impregnada em algum canto! Uma coisa que, com certeza, deve ter me marcado muito – não só

na casa, mas em tudo na minha vida – é a necessidade de privacidade e de espaço. Aquela coisa

de não poder ter pesadelo porque, de repente, dava grito e acordava o avô [algo

incompreensível]. E essa coisa de estar dormindo muito junto com pai, com mãe, isso era, pra

mim, era desesperador.

Na verdade, eu não saberia dizer como era essa casa que eu vivi quando eu era pequena porque,

na minha lembrança, ela tinha dimensões que eu sei que são desproporcionais, hoje. Mas, sabe,

eu tenho essa experiência: nenhuma lembrança acontece sem ter um forte apelo emocional.

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Então, é muito provável que eu faça uma descrição da minha casa, da casa minha interna. Da casa

física, o que eu lembro, o que eu gostava muito era de uma varanda, que minha mãe diz que tinha

treze metros de comprimento por seis de largura. Era imensa, um salão. E eu lembro que ela tinha

um azulejo hidráulico preto e branco, que fazia um desenho muito bonito, e um gradil verde –

meu avô pintava tudo de verde e ocre, sempre; e eu gostava muito daquela varanda; até hoje eu

adoro varanda. Deve ter a ver com essa relação. Se eu pudesse escolher – e pagar pela minha

escolha – eu faria muita coisa com azulejo hidráulico, como naquela varanda. Já tentei fazer na

minha casa de campo, mas a relação custo/benefício não valia a pena.

Eu lembro de uma casa escura, sim, mas que tem um quintal muito aberto. O quintal, eu lembro

que era de tijolo. Aquele tijolo marrom, aquele que dá aquele limozinho. E eu adorava isso.

Durante o dia, todos os lugares eram ocupados, a minha mãe lavava roupa num lugar, lavava

louça no outro, e reclamava... A casa toda era cheia de gente que entrava e saía... A área que as

mulheres estendiam as roupas era uma área muito grande que, de noite, não tinha roupa

estendida. Era ao ar livre, era céu aberto. Eu, na verdade, esperava o dia passar pra chegar a

noite. Porque a noite era o momento mais legal. Qual era a minha distração? Eu pegava uma

bacia daquelas que minha mãe usava pra lavar roupa, e ia sozinha, depois do jantar, botava água

na bacia, e ficava com a mão batendo na água e olhando o céu. Eu via a lua refletida na água,

achava que ela estava mais perto de mim porque estava na bacia, e não no céu. Mas eu gostava

de olhar pra ela no céu. Era o meu lugar – e sempre teve essa relação com o céu, espaço aberto,

liberdade. E esse virou meu tesão de vida. Hoje em dia, eu sempre procuro lugares onde eu possa,

depois do jantar, caminhar na rua sem problemas. É, realmente, uma coisa bacana pra mim.

Fora isso, tinha um outro lance também: O pouco que eu tinha de fácil, eu não podia usufruir,

porque a minha mãe não deixava que eu brincasse com nenhum brinquedo e nem com nenhuma

criança. Eu só podia olhar os brinquedos. Eu não podia tocar neles – eu nunca penteei cabelo de

boneca na minha vida! Pra não estragar, porque era um investimento. Então, eu percebo que a

situação econômica das pessoas é muito determinante na qualidade de vida que ela vai ter. A

situação econômica, junto com a ambição e a capacidade de produtividade. Porque se você tá no

começo da vida, se você é adolescente, tem vinte, até trinta anos, você tem sonhos que sabe que

estão mais próximos de um dia serem realizados. Depois dos quarenta, não fica mais um dia: tem

que ser hoje ou amanhã, no máximo! E é muito difícil desistir. Quando você já conquistou outras

coisas, desistir de alguma, não é tão difícil. Mas pra quem não tem um histórico de realizações,

começa a ficar muito difícil.

Eu não consigo pensar numa casa, seja ela qual for, separado do conceito de como eu sou neste

momento da minha vida. Eu acredito que a gente esteja mudando o tempo inteiro, todo dia, toda

hora – a ruga não aparece na cara da gente da noite pro dia. Ela é a conseqüência de vários dias

que vão se somando. E isso que eu estou dizendo, no meu caso, não é conceitual; é

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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absolutamente prático: A casa, pra mim, eu tive oportunidade de experimentar muitas coisas:

porque, antes mesmo de eu ter tido a oportunidade de ter uma casa, de ter um espaço, eu me

sentia muito mais em casa nos hotéis que eu ficava hospedada do que na minha casa.

Porque foi assim: Com doze anos, eu me mudei pra uma casa, onde a minha tia e minha mãe

moravam – essas duas famílias. A irmã da minha mãe, casada com o irmão do meu pai – duas

irmãs como dois irmãos! Minha tia tinha dois filhos (ela morreu, os filhos continuam), e minha

mãe, três. E quando nós mudamos da casa do meu avô, porque ele morreu, ninguém tinha grana

pra sustentar uma casa sozinho, então, foi todo mundo morar junto. E eu fiquei, pela primeira

vez, com o quarto de empregada. Mas era o meu quarto, pela primeira vez, o meu quarto – que,

pra mim, era um palacete! Porque eu podia fumar, eu podia soltar pum, eu podia experimentar

um bando de coisas que eu desconhecia de mim mesma. Até aí, eu não sabia a minha

necessidade de nada. O que era dormir, o que era acordar, eu não sabia nada disso. Então, é

fundamental pra mim... o auto‐conhecimento, o auto‐reconhecimento, está totalmente ligado ao

espaço. Eu acredito que a minha história exacerbe essa coisa, que, na verdade, deve valer pra

todo mundo. Eu acredito que o seu filho, a minha filha, que sempre tiveram o quarto deles, nunca

vão experimentar esse tipo de coisa que eu experimentei. Mas eles vão saber de uma coisa que

eu também sei, que é a necessidade de brigar com alguém, e ter um quarto pra se trancar.

Depois desse quartinho, minha mãe mudou, aí eu tive um quarto, e eu lembro que a coisa mais

adorável, pra mim, era dormir no chão, eu saía da cama pra dormir no chão, com a janela aberta.

Porque meu grande barato era olhar as estrelas. Eu adorava olhar pro céu e sentir que minha

cabeça não tinha um teto em cima dela. Então, a minha relação com casa foi sempre aquela que

eu pude exercer – minha mãe sempre foi muito restritiva. Óbvio que, na vida adulta, eu sempre

procurei espaços generosos, iluminados – eu preciso disso.

Eu saí da casa da minha mãe com dezessete anos. Eu fui pra Bahia, supostamente pra estudar –

mas é mentira. Eu fui em 73 pra lá, e só fui fazer faculdade em 74! Eu saí de lá porque eu não

agüentava mais viver com a minha mãe, que é uma pessoa muito difícil, muito difícil. Ela me

obrigou a estudar piano com quatro anos; com cinco anos, eu ganhei o meu piano; com doze, eu

botava casquinha de nariz debaixo do piano pra ver se ele apodrecia; eu não queria mais ver, era

um horror! Ela me encheu tanto o saco – eu apanhava, apanhava, apanhava... Aí, um dia eu

descobri a música que tinha por trás, e me apaixonei. E comecei a tocar. Aí, eu não podia tocar,

que deixava ela nervosa: [gritando] “Ai, pára com este piano, que eu não agüento mais!” Foi

muito difícil, muito barra pesada.

Então, eu acredito que todas essas vivências determinem muita coisa, porque eu acho que as

escolhas da gente – estéticas, arquitetônicas – são, na verdade, um espelho de escolhas internas.

A gente materializa um jeito que está aqui dentro. Eu posso te dizer que espaço, pra mim, é muito

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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importante. E eu percebo que ele é um espelho de como eu estou por dentro. Quando minha casa

tá muito bagunçada, eu estou bagunçada por dentro, estou com preguiça. Quando minha casa tá

bem bacana, com tudo harmonioso, os móveis legais, tudo oferecendo de uma maneira generosa,

um ambiente agregador, é porque eu estou assim por dentro. Quando eu estou confusa, o meu

espaço pessoal fica extremamente confuso, e eu tenho vivenciado até hoje esse tipo de relação

com casa.”

[Você sente falta da sua casa, quando você está viajando a trabalho?]

Sim, eu penso na minha casa. Hoje em dia é diferente, mas já teve momentos em que eu não

queria voltar pra casa porque o lugar onde eu estava era mais gostoso e era mais a minha cara.

Ou era tudo que um dia eu queria conquistar. Porque a minha casa era mais triste.

O primeiro lugar que eu morei, com vinte e um anos, era uma “vaga” alugada – um colchão no

chão – em Copacabana, no Rio de Janeiro. Então, qualquer coisa, pra mim, era muito melhor do

que aquilo que eu tinha quando criança. Porque quando eu voltava pra casa, eu voltava pra um

lugar que tinha que ser de passagem. Se aquilo fosse uma coisa absoluta, fosse só aquilo e eu não

tivesse nenhum plano de futuro, era de se matar, não ia dar! Então, era uma coisa de passagem.

Eu me sentia bem em lugares mais organizados e lugares que pudessem me receber, e onde eu

pudesse me sentir refletida. E, numa vaga no chão, onde, de manhã, você acorda e enrola o

colchão, fica difícil. Tinha oito mulheres usando o banheiro. Uma loucura, né?

Depois, eu aluguei um quarto na casa de uma mineira. E era muito engraçado porque, de novo, eu

ia pro chão pra poder enxergar uma réstia de céu entre os prédios, e aí eu sabia se o dia estava

bom ou não estava. Porque até a luz que incidia nos prédios – como era tudo muito cinza, porque

dava pra área interna dos prédios – eu sacava se estava um pouco mais forte, um pouco mais

fraca, mas não dava pra sentir como estava o dia. Só se eu ficasse encolhidinha no chão. E eu fazia

isso. Olhar o céu sempre foi um grande barato pra mim.

Aí, eu tive um apartamento alugado pequenininho, um estudiozinho, que você não entrava na

cozinha – só entrava o seu braço na cozinha. Tinha um fogão Semer três bocas... Puxa, eu lembro,

não tinha dinheiro pra nada! O primeiro dinheiro que eu tinha, eu comprei uma geladeira – azul,

GE. E essas coisas eram de uma alegria... Eu tenho uma amiga famosa que, na época, a gente

estava convivendo muito. E ela teve em casa, e fez um teste, sabe aqueles testes de revista? E ela

ficou muito impressionada porque deu, naquele teste, que a minha relação com a casa era ótima,

que eu estava em paz com a minha casa. E ela disse, “nossa, mas é um lugar tão pequeno”. E eu

falei, “mas, pra mim, é um palácio! É tudo o que eu preciso”. E eu fiquei muito intrigada porque

tinha um canto, que era o que eu mais gostava da casa, que era uma espécie de um terracinho,

onde entrava muita luz, e que era o canto mais bagunçado. O lugar mais bonito e que eu mais

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gostava era o lugar que tinha mais bagunça. E eu podia usufruir muito pouco desse lugar porque

era tanta bagunça, eu gostava tanto, que, na verdade, eu depositava tudo ali. Depositava coisas

que eu estava sem a menor capacidade pra administrar.

E aí, as coisas foram rolando, eu tive muito medo de alugar apartamentos maiores e não ter

dinheiro pra pagar, aquelas coisas, né? Cada vez que a minha casa ia aumentando um pouquinho

de espaço, eu sentia que eu estava crescendo, e que eu estava, na verdade, aceitando um espaço

maior dentro de mim. Eu tinha que me sentir merecedora; se não, ficava esquisito eu me dar uma

coisa que eu não podia segurar. Eu vim de uma coisa muito restrita.

[Quando você começou a viajar a trabalho?]

Quando eu gravei meu primeiro disco. Eu morava na tal da “vaga” no Rio de Janeiro. Eu lembro

que uma das primeiras viagens foi pra São Luis do Maranhão, onde eu fiquei hospedada no Hotel

Quatro Rodas. Eu fiquei impressionada com o tamanho do hotel, o tamanho da piscina...

Eu conheci lugares muito interessantes. No norte teve umas coisas difíceis: No Acre, eu fui num

intervalo de dois anos, a um hotel quatro estrelas; e a mesma barata amassada na parede do

quarto estava lá. A mancha perdurou por dois anos. Nesse hotel, não dá pra querer ficar, né? Não

tem um cheiro gostoso.

Eu visitei alguns hotéis no Brasil e fora do Brasil muito interessantes. Alguns muito práticos: Só

você chegar, deixar suas coisas, sair o dia inteiro, voltar, tomar um banho, trocar de roupa. Quer

dizer, não te ofereciam nada, a não ser uma boa cama, um bom travesseiro, um bom jogo de

lençóis – que é uma coisa muito importante, eu acho – um cheiro gostoso nas roupas, eu sempre

procurei por isso; mais até do que qualquer outra coisa: uma cama bacana, um travesseiro legal...

comecei a levar, muitas vezes, os meus travesseiros pros lugares, e um jogo de lençóis legal.

Porque eu já dormi em lençol que pinica, que eu acho muito desagradável.

Agora, eu conheci um lugar des‐lum‐bran‐te, que eu queria pra minha casa. Todos os banheiros

da minha casa de campo, com exceção de um, que não deu tempo de corrigir, têm uma

configuração que eu vi, pela primeira vez, num hotel que eu fiquei em Los Angeles. Era um hotel

que eu esqueci o nome agora, mas era pé na areia, em Santa Mônica. É lindo! E a luz do lugar é

tudo que eu pedi na vida. Quando você entra no banheiro, você dá de cara com uma pia, uma

bancada bonita, toda iluminada, o espelho super‐iluminado, e à sua direita, você enxerga uma

porta de vidro Blindex, que é o chuveiro, e uma porta com veneziana de madeira, e lá dentro é o

lugar onde você faz pipi. À esquerda tinha uma banheira, e tinha uma janela. Dessa janela, você

abria a veneziana e dava pra assistir à televisão que estava lá no quarto. E é uma coisa muito

bacana, porque foi a primeira vez que eu vi esse espaço organizado, sem estar tudo no olho. Eu

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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estou querendo repetir esses conceito aqui em casa, na reforma que eu vou fazer. Porque é

organizado e é confortável.

Então, esses hotéis que abraçam a gente – tanto no conforto íntimo, quanto na praticidade –

sempre foram os hotéis que eu achei mais interessantes, e que me senti mais em casa. Às vezes,

eu não queria voltar pra casa, mesmo porque era muito mais gostoso! Por exemplo, eu mesma

não sabia o quanto a organização do espaço era importante, e como a minha capacidade

administrativa era um zero à esquerda. Porra, na minha infância, eu não aprendi como lidar com

boneca – eu não podia –, eu não sabia qual a hora de brincar, a hora de fazer dever de casa; dever

de casa era pra fazer o dia inteiro, não podia fazer outra coisa, entendeu? Eu não sabia...”.

[Você costuma levar objetos pessoais, além de roupas, para os lugares onde se hospeda?]

Ah... toda vez que eu viajo, eu passo uma certa vergonha porque eu levo muita bagagem. Por

exemplo, eu consulto o I‐Ching, então são quatro livros, mais dois livros que eu sempre estou

lendo – eu não consigo ler um só livro de cada vez –, e, principalmente, meu notebook, para estar

em contato com as pessoas. Esse é meu “kit socorro espiritual” – que é a minha casa, na verdade.

Eu estando com isso, eu estou me reconhecendo; eu consigo, através desses pequenos objetos,

imantar o lugar com a minha energia. E aí, eu começo a me sentir realmente em casa; se a luz do

lugar for bacana, se a ambiência for legal, está tudo certo. Eu acredito que a casa ideal, é aquela

que a gente carrega com a gente, dentro da gente, onde quer que a gente vá; é um lugar que a

gente tem que ter dentro da gente; e que corresponda às características de intimidade,

privacidade, conforto, segurança, e praticidade. Acho que isso tudo leva a gente a se sentir em

casa.

Pelo menos, eu nunca passei tempo suficiente pra dizer: “bom, cheguei no meu limite, preciso

voltar pra casa.” Eu acho que os lugares que a gente vai, dependendo das características dos

lugares – não é só física, tem a ver com luz, tem a ver com clima, com comportamento – a gente

se identifica energeticamente, ou não. E eu acho que quando a gente se identifica, é muito mais

simples de você começar uma nova vida ali – “nova vida”, quer dizer, você partir de lá, fazer de lá

a sua casa.

[O que faz você querer voltar para a sua casa?]

São os laços. Quando minha filha era pequena, eu nem queria sair, queria ficar com ela. Então, eu

procurava aqueles hotéis que tinham dois quartos com uma porta no meio pra comunicação.

Agora, com ela grande, cuidando da vida dela, eu sinto falta do Rubinhoz – em alguns hotéis, eu

consigo levar o Rubinho.

z O cachorro poodle.

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Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado

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Eu estou contando da minha vida porque ela é muito singular, então dá pra entender que eu não

consigo pensar numa casa, hoje em dia, sem levar em consideração, antes de qualquer coisa, a

necessidade humana de me ver refletida no ambiente – tanto do ponto de vista físico, quanto do

de status, quanto do energético. Eu acredito que, seja lá o nível que for de profundidade ou de

consciência desse processo, eu acho que a casa, e o jeito que a casa é ajeitada, não importa o

nível social, porque dependendo do seu nível social – social não, econômico –, você tem acesso a

uma coisa ou a outra, mas tem a criatividade, tem a exigência naquela coisa da limpeza, na

tranqüilidade, enfim...

[Há quanto tempo você mora nesse apartamento?]

Eu vim morar aqui em 96. Naquela época, tava tudo misturado. Estavam misturados alguns

pontos importantes: primeiro, eu tinha a necessidade da casa própria; porque eu não tinha um

apartamento, eu não tinha onde morar. Porque a gente está num país onde um segundo imóvel é

bobagem, mas o primeiro é fundamental. Você não tem o menor seguro pra sua velhice. Eu sou

autônoma, o sucesso é uma coisa muito louca; ele vem e vai, vai e vem, você nunca sabe o que vai

acontecer, nem quando. Se bem que, eu acho até que, pra esse tipo de pensamento, este

apartamento aqui é furado, porque o que custa de condomínio é um aluguel por mês. Então, me

deu segurança saber que eu tenho um capital empatado neste imóvel – que, por um acaso, foi

procurado com essa visão. Este lugar aqui é um cheque ao portador. Eu não levo três meses sem

ter, pelo menos, umas duas propostas de gente que queira comprar. E isso é uma coisa que me

deixa muito legal. Porque eu sei que o dia que eu quiser, eu não vou passar cinco anos tentando

vender. Eu procurei empatar meu dinheiro numa coisa bacana, próspera.

E eu estava casada, na época, mas sabia que esse casamento não ia durar. Então, também era o

momento em que eu estava precisando “desmisturar”, “dessimbiotizar” minha energia, me

reconhecer. Aí, eu me separei e vim pra cá. Eu comprei esse apartamento em outubro de 95 e

mudei em maio de 96. Porque eu fiz uma reforma na cozinha. Quando eu entrei, eu estava dura,

tinha raspado o tacho pra poder pagar o apartamento, a reforma, tudo. Aí, não tinha dinheiro pra

decorar, pra fazer nada. Mas, olha, só ter este espaço já estava sendo, pra mim, um grande

barato, entendeu? Essa história de estar sempre buscando um espaço é que me deixa

desapegada. Eu tenho um desapego – eu acho que é isso que faz com que meu limite seja

bastante estendido. Por exemplo, ao mesmo tempo que eu adoro a minha casa de campo, se eu

tiver que vender, tudo bem. Quer dizer, esse desapego é em função de uma coisa mais bacana. Se

for para ser uma coisa pior, aí é terrível. Porque aí, não é uma questão de desapego; é abrir mão

de uma coisa importante pra você, em troca de nada. Isso, eu acho que é muito duro – deve ser

muito duro. E eu não pretendo experimentar pra te dizer.

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Eu pensei em vender este aqui, mas pra comprar uma casa em Alphaville. Hoje em dia, quando eu

penso nisso, dou graças a Deus de não ter dado certo, porque eu não dou certo com aquele lugar.

É outro comportamento. E tem isso: os bairros, as casas, os prédios, têm muito a ver com o

comportamento das pessoas.

Uma coisa que me irrita muito, eu estou há três anos tentando fazer a reforma da minha casa,

tentando desenhar essa reforma, e ela nunca que sai. Ou é carma, ou não sei. E também não rola

outra coisa – outra casa – não é que eu não tenha procurado. Mas, também, eu adoro esse

espaço. Quando eu comprei esse apartamento, eu só reformei a cozinha – depois eu te mostro –,

porque, realmente, era muito antiga. Agora, eu quero reformar a parte interna. Eu tinha pensado

um monte de coisas, queria colocar um ofurô aqui, na varanda, pra curtir mais ela; botar um

chuveiro ali, fazer uma coisa meio esportiva. Resolvi não fazer o ofurô porque ninguém sabe

direito, não existe uma planta original, e eu sei que água pesa muito. Mas eu vou botar uma

banheira aqui dentro.

Mas eu acho que tudo isso tem a ver porque nos últimos três anos, eu fiquei deprimida. Eu

deprimi quando meu irmão saiu da UTI, e estou “desdeprimindo” agora. Pior, que força eu tinha,

grana eu tinha, chamei dois arquitetos, os dois sumiram, é impressionante...; rolou coisa mais

importante pra eles fazerem, e, lógico, você tem mais é que ir. Eu também tinha algumas

indecisões. E eu tô sacando que tem algumas coisas que a gente só prepara na hora.

Principalmente aqui, que eu sei que vai ter algumas surpresas. Mas hoje em dia, quando eu penso

no meu espaço, no quê eu preciso, eu pergunto de dentro pra fora: o quê eu preciso, e como. E aí

tento buscar soluções do lado de fora.

Entrevista realizada em 28/10/2004

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