eras - novo

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Eras

O mundo se perdia, pequeno, entre a mirade de nuvens plidas a rastejar por meados da montanha imperiosa. Sem fora pra alcanar o topo e alm, o que de uma cidade era o firmamento, ali se convertia em mar calmo. No havia ar mais puro, vento mais solto. Flua entre os horizontes. Tanta liberdade lhe dava tons de tdio, um ser parco em propsitos, sem o rubor de uma fogueira de acampamento ou o circundar encantatrio de um moinho. Meio lassido daquela rocha, s o silncio. E o ancio. Musgos decoravam seu corpo ptreo, o gelo adormecia sob a derme opaca, dobrava-se com cansao ao peso dos anos, nicos companheiros na existncia crua que lhe restava. Eram eles que, no havendo como impedir a neve de fazer-lhe ninho, aqueciam as memrias, lareira humilde em noites de inverno. A chama forte, que outrora reluziu o passado como a coroa de um rei, era, nos seus j vastos anos, um brilho incerto, bruxuleante.Entre as brumas serenas daquele mar celeste e da imaginao, viu-se coberto da antiga glria. O mais nobre e temido. Lendrio. Divino. Podia quase ouvir as trombetas longas e agudas. Sob a muralha, enxames de homens mnimos. Salvo o temblar tpico dos inexperientes, apenas a paralisia tensionada da tropa. Era, de todas as cenas que vivera, a mais marcada em corpo e alma. Sublime. Detrs de seus olhos moribundos, flamejavam os dias de batalha. Armaduras e escudos reluzindo a ferrugem do entardecer serviam de renda s paredes do velho castelo. Nessa hora, e talvez apenas nela, toda a humanidade se reduzia a um organismo pulsante. Lealdade, medo, destino, tudo respirava o mesmo pulmo apertado pelo frio das horas findas do dia. Em poucos segundos caa o Sol no abismo negro do mundo abaixo do mundo, e mal as sombras se esgueiravam pelo longo campo, cu e terra se decoravam. Flechas e fogo, gritos e sangue. E a trombeta, magnfica, tomava toda voz para si num lamento aptico e distante. Mas ainda assim, belo.Um msculo perdido espasmava, crendo reviver a guerra. Por um breve momento, a massa adormecida parecia reunir foras para soprar todo seu esplendor. Erguia-se em postura de combate, esttua negra perdida num mundo branco. O gelo, assustado, rolava corpo abaixo. O vento rodeava o monumento estoico. Quase saltou. Na hesitao, os cristais brancos lhe pesaram sobre os ombros e, envergando-se, voltou a ser apenas pedra. Se ao menos houvesse partido antes, quando o tempo era apenas uma distrao, no acabaria soterrado pela amarga solido. Mas amara o mundo mortal. Sua condio, agora, era fruto do efeito venenoso de um alimento cada vez mais consumido com a idade: o passado. Cada sorvida do nctar efmero o tornou mais frgil, mais passageiro. Morrer a consequncia final de uma doena chamada nostalgia. , em ltima instncia, a percepo de que, em algum momento do caminho, voc ficou para trs e trabalho do presente varrer as cinzas que ficaram. Perguntava-se, mesmo que sem querer respostas, por que ficara. Talvez, se houvesse restado qualquer outro, poderia responder-lhe. Ou ao menos dividir seu pesar. Pensar neles era apenas outro trago daquele clice amargo.Concentrando-se muito, deixava para trs aquela sensao de abandono, de mvel antigo coberto com pano branco no ltimo andar de um grande casaro. Lhe vinha a memria o sabor da companhia. O rei, em seu manto vermelho, coberto das glrias de geraes. O sbio, cujas barbas buscavam o cho e as mos vidas suplicavam por tocar as mil folhas da sabedoria ancestral. O heri, cuja audcia plena de inconsequncia era a maior de suas diverses. Todos queriam pisar no local sagrado, no corao dourado da montanha. Os homens do leste, os selvagens das montanhas nevadas, os feiticeiros negros e os mais inesperados convidados. Se girasse a cabea pelos tneis de sua memria, via o salo imenso, as esttuas de mrmore, as gemas cheias de luz. Cada pea sussurrava suas prprias histrias e cada histria era mais uma estrada que s avanava para trs. As joias raras do povo longnquo, as lminas poderosas dos antigos reis mortais, as canes de exmios trovadores, as runas msticas dos ancios em suas torres. Histrias de um mundo que passou. Histrias que s viviam naquele veneno que lhe arrebatava a vida.Ecoava em sua cabea a frase de um dos ltimos grandes homens que conheceu. No alto de uma colina, a opulenta capital era ovo prestes a eclodir. De um lado, casas, lojas e templos, amontados, pareciam tentar escapar da opressora muralha. Do outro, como ostras encrustadas em madeira de porto, outra infinidade de pequenas construes forava-se portes adentro. O sono j no pertencia quela era, uma engrenagem sempre em movimento. Nascimentos, mortes, roubos, traies, msica, cerimnias, execues. Se caminhasse livremente pelas amplas ruas centrais, cria, ningum mais notaria sua presena. O mundo cresceu, meu amigo. Ficou grande demais. Mesmo para voc. De fato havia crescido. No fazia muito tempo desde sua ltima batalha, mas soubera, naquele dia, que algo chegava ao fim. O mundo cantava seu ltimo mito. Como crianas resignadas que voltam aos seus lares ao pr do Sol, tudo que era antigo abriu espao para a modernidade. Os ltimos sbios sucumbiram ao esplendor das mquinas. Os ltimos monstros, nostlgicos, tentaram ainda um ataque final, mas a grande comitiva comercial no mais tinha tempo para aventuras. Ele sabia que deveria ter partido. Ouviu, como os demais, o chamado. Mas amou demasiado aquela terra, como, talvez, nenhum outro o vez. E continuou observando do topo do mundo, enquanto ela crescia at ser ele, ento, algo nfimo.Pularia. No poderia terminar de outro modo. O pulo lhe faria sentir a ltima lufada de vida. Ver, pela vez derradeira, mesmo que de forma fugaz, o eco do Outrora. Precisava ouvir as trombetas. Ver o terror nos olhares confusos. A poesia da luta por sobrevivncia, por unio, por glria. Observaria, refletido dos olhos infinitos do batalho, na panplia de metais polidos e nunca tocados pelo verdadeiro fogo, a antiga e poderosa entidade que era. A primeira descarga de fogo seria eterna. Cruzaria o ar numa mudez vibrante, terminando seu arco nas torres pontiagudas. Veria os arqueiros coreografarem os tiros em salvas de pontas prateadas. Catapultas e balistas, gigantes desajeitados, tentariam em vo acert-lo. Quando por fim, se elevasse distante, no corao de todos estaria um nico sentimento, vitria.Tanto se perdia naquelas fantasias, que o gelo tomava foras e se espalhava pelo corpo vasto. Murmurava baixo, nem o vento lhe respondia. Lua e Sol, crianas no cu daquele cu, giravam em ciranda de luz e sombra. No tardou para que o musgo voltasse. De tanto que a prpria natureza lhe dizia pedra, pedra se creu e pedra deixou-se ser. A pele, negra e enrijecida da terra que se acumulava, j mal se diferenciava de seu leito. Pouco depois, as plantas, iludidas, cresceram ao redor de sua cabea formando uma singela coroa de esquecimento. No sabia bem se gelo, musgo, tempo ou s o curso natural da realidade, mas algo lhe impelia a ser cada vez mais sbrio, mais recluso, menos divino, menos ser. Em seus ltimos esforos, abriu, com grandes dificuldades, os olhos, vitrais velhos de uma vida que se esqueceu, e perscrutou o mundo de pequenas luzes abaixo. Estava enorme. Ocupava tudo que podia ser visto. No eram mais as luzes lricas do fogo, mas uma luz esttica, fria, piscando ora aqui ora ali, fazendo do mundo um estranho e colossal inseto a assombr-lo. Pensou e pensou ser seu ltimo pensamento que a montanha era mesmo seu lugar. O mundo ficou bem mais assustador que ele.

John chegou ao topo. Suava um pouco, mas a vista o recompensava. Era deslumbrante ver tudo dali. Em seu bloco traava os esboos de torres e aranhas gigantes. Fazia frio ali, julgava nunca antes haver subido to alto. Nem nas antigas memrias da infncia julgava ter visto um lugar como aquele. Ficar ali sentado, deleitando-se na raridade do silncio, lhe dava sossego. O vento, em sussurros fatigados, lhe soava como os sons que, se perdendo no alto da montanha, no acharam o caminho de volta, ecoando para sempre as vozes de outra realidade. Puxou o cachimbo, vcio secretssimo, e, aquecido pelos vapores, deixou-se deriva da prpria imaginao.Um som forava a cabea do ancio como a gua um moinho. De incio, s ignorou-o, como os muitos que at ento havia ignorado em seu sonho de morte. Por fim, como quem desperta de um torpor eterno, percebeu um fio de vida a incomod-lo. Tentava voltar ao esquecimento, mas uma voz perdida no o deixava. Ouvia uma msica, algo que lhe penetrava os recnditos mofados da memria. Desconhecia as palavras, mas era capaz de distinguir a melodia nica de um pico. A cada palavra, a pungncia do mundo o pinava daquela petritude. A voz desafinada e jovial seguia perfurando, camada por camada, seu crnio cavernoso. Um ar nfimo, msero, circulou pelas covas empoeiradas de seu corpo. Por fim, como a cortina de um teatro decadente, a plpebra pesada abriu-se num esgarar doloroso. A ris era um lago tomado de musgo e fungos. L no fundo, porm, uma chama semiextinta recobrava o brilho. John, diante da ris colossal, fumava como quem sempre esperara tal momento.No houve palavras. S um olhar. Mais profundo que qualquer caverna. Mais intenso que o prprio Sol. Cheio de milhares de vidas, lugares, lnguas e, principalmente, uma nostalgia sufocante e irremedivel. Parece que, num arroubo final, aquele corpo empedrecido resolvera reviver tudo que o fizera permanecer l por tanto tempo. Em vez de parcos goles, mergulhou no clice de seu ltimo momento. Depositou, como uma carta de despedida, sua vida diante de John. Era algo grandioso. Algo que o feriu como uma lmina negra. Um corte mais profundo do que parecia. Doeria para sempre. Mesmo em seus anos de morte, rodeado pelos filhos e por tudo que escrevera na v esperana de viver o que s lhe foi possvel vislumbrar, a marca ainda ardia como o fogo de um drago.