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98 www.backstage.com.br REPORTAGEM Miguel Sá [email protected] Equipamento Com o progresso da plataforma digital, cada vez mais os equipamentos analógicos estão condenados a se tornarem peças de museu. Mas com todas as vantagens operacionais e de preço, o analógico ainda resiste. analógico e gravação: será que ainda vale a pena? D esde o início da década de 90, a revolução digital vem tomando conta dos estúdios. Nos últimos quatro anos, esta tendência se acentuou. Hoje, quem abre um catá- logo de uma indústria de equipamentos de áudio ou qual- quer revista especializada quase não vê lançamentos de compressores ou equalizadores analógicos. Mesmo os admira- dores da sonoridade analógica cada vez mais se rendem às facilidades e até mesmo ao som dos equipamentos digitais. Será que ainda há algum momento em que um equipamento analógico pode fazer a diferença, ou o fim já chegou para essa tecnologia? Do ponto de vista econômico, a resposta é fácil: o analógico está próximo do fim como uma plataforma tecnológica viável economicamente. A plataforma digital democratizou o merca- do e, mesmo em estúdios grandes, já não é mais a principal op- ção de investimento. Do ponto de vista da sonoridade, a respos- ta não pode ser tão categórica. Apesar das taxas de amostragem cada vez mais altas, chegando a 192 kHz, e dos processadores trabalhando em 32 bits, o equipamento analógico ainda é usado em alguns estágios da produção e tem uma sonoridade que se- duz muita gente. Preferências O interessante é que algumas vezes os técnicos de formação mais recente acabam gostando de trabalhar com o analógico, enquanto os mais experientes adoram o formato digital. Ainda que tenha trabalhado desde o início da carreira com equipa- mentos digitais, Daniel Carvalho, 28 anos, técnico de som e só- cio de Berna Cepas e Kassim, no estúdio Monoaural, gosta tam- bém da tecnologia analógica. Já Guilherme Reis, técnico que trabalhou no auge da era analógica nos estúdios da EMI e hoje é sócio do Estúdio Discover, há muitos anos prefere equipamen- tos digitais. Ele cita o exemplo dos equipamentos valvulados para explicar sua preferência. “O que é uma situação de válvu- la? É uma situação característica que dá para ser medida. Se você quer repetir aquilo, você faz alguma coisa que repita a situ- ação. Se é uma situação aleatória, aí não serve para mim. Quan- do eu uso um equipamento, preciso de um que faça exatamen- te o que eu quero”. Daniel Carvalho, de 28 anos, teve a oportunidade de gravar e mixar o disco , de Caetano Veloso, em fitas analógicas, sem passar por nenhuma workstation, o que é raro nos dias de hoje. O técnico começou a trabalhar com som há dez anos e acompa- nhou todo o crescimento da tecnologia digital. Ainda assim, acaba de comprar uma máquina de fita e uma mesa analógica para o seu estúdio. “Me considero privilegiado por gravar em analógico e ser um técnico da geração digital. Convivi com o Pro Tools desde o começo, edito pra caramba, faço de tudo no digital, mas busco o analógico porque adoro e tendo já feito de tudo do digital, a fronteira é voltar ao analógico. Para mim, é diversão. Quando pego equipamentos analógicos bons, em bom estado de conservação, é uma delícia. É que tem de ter cora- gem. Coragem de fazer um recall e dar certo”, brinca. “O que é uma situação de válvula? É uma situação característica que dá para ser medida. Se você quer repetir aquilo, você faz alguma coisa que repita a situação”

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98 www.backstage.com.br

REPORTAGEM

Miguel Sá[email protected]

Equipamento

Com o progresso da plataforma digital, cada vez mais os equipamentosanalógicos estão condenados a se tornarem peças de museu. Mas comtodas as vantagens operacionais e de preço, o analógico ainda resiste.

analógico e gravação: será queainda vale a pena?

Desde o início da década de 90, a revolução digital vemtomando conta dos estúdios. Nos últimos quatro anos,esta tendência se acentuou. Hoje, quem abre um catá-

logo de uma indústria de equipamentos de áudio ou qual-quer revista especializada quase não vê lançamentos decompressores ou equalizadores analógicos. Mesmo os admira-dores da sonoridade analógica cada vez mais se rendem àsfacilidades e até mesmo ao som dos equipamentos digitais.Será que ainda há algum momento em que um equipamentoanalógico pode fazer a diferença, ou o fim já chegou paraessa tecnologia?

Do ponto de vista econômico, a resposta é fácil: o analógicoestá próximo do fim como uma plataforma tecnológica viáveleconomicamente. A plataforma digital democratizou o merca-do e, mesmo em estúdios grandes, já não é mais a principal op-ção de investimento. Do ponto de vista da sonoridade, a respos-ta não pode ser tão categórica. Apesar das taxas de amostragemcada vez mais altas, chegando a 192 kHz, e dos processadorestrabalhando em 32 bits, o equipamento analógico ainda é usadoem alguns estágios da produção e tem uma sonoridade que se-duz muita gente.

PreferênciasO interessante é que algumas vezes os técnicos de formação

mais recente acabam gostando de trabalhar com o analógico,enquanto os mais experientes adoram o formato digital. Aindaque tenha trabalhado desde o início da carreira com equipa-mentos digitais, Daniel Carvalho, 28 anos, técnico de som e só-cio de Berna Cepas e Kassim, no estúdio Monoaural, gosta tam-bém da tecnologia analógica. Já Guilherme Reis, técnico quetrabalhou no auge da era analógica nos estúdios da EMI e hojeé sócio do Estúdio Discover, há muitos anos prefere equipamen-tos digitais. Ele cita o exemplo dos equipamentos valvuladospara explicar sua preferência. “O que é uma situação de válvu-la? É uma situação característica que dá para ser medida. Sevocê quer repetir aquilo, você faz alguma coisa que repita a situ-ação. Se é uma situação aleatória, aí não serve para mim. Quan-do eu uso um equipamento, preciso de um que faça exatamen-te o que eu quero”.

Daniel Carvalho, de 28 anos, teve a oportunidade de gravare mixar o disco Cê, de Caetano Veloso, em fitas analógicas, sempassar por nenhuma workstation, o que é raro nos dias de hoje.O técnico começou a trabalhar com som há dez anos e acompa-nhou todo o crescimento da tecnologia digital. Ainda assim,acaba de comprar uma máquina de fita e uma mesa analógicapara o seu estúdio. “Me considero privilegiado por gravar emanalógico e ser um técnico da geração digital. Convivi com oPro Tools desde o começo, edito pra caramba, faço de tudo nodigital, mas busco o analógico porque adoro e tendo já feito detudo do digital, a fronteira é voltar ao analógico. Para mim, édiversão. Quando pego equipamentos analógicos bons, em bomestado de conservação, é uma delícia. É que tem de ter cora-gem. Coragem de fazer um recall e dar certo”, brinca.

“O que é uma situação de válvula? Éuma situação característica que dá

para ser medida. Se você quer repetiraquilo, você faz alguma coisa que

repita a situação”

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REPORTAGEM

Progresso digitalO recall é apenas uma das vantagens

óbvias do digital sobre o analógico. Atéhá pouco tempo, dizia-se que a sonorida-de melhor era um benefício do analó-gico. Mas esta situação também mudou.Mesmo no caso de equalizadores e com-pressores, onde os valvulados ainda fa-zem muito sucesso, há uma precisão quesó os equipamentos digitais podem ofere-cer. “Você tem soluções de processamentoque são difíceis ou impossíveis de execu-tar no analógico”, diz Marcos Eagle, dire-tor técnico do estúdio da gravadora Tra-ma, em São Paulo. “Equalização de faselinear é um processo diferente daquelea que estamos acostumados no equali-zador analógico. Nele, o efeito que ou-vimos em um boost de 5 kHz, além doboost, é a coloração gerada pela dife-rença de fase que isso gera em relaçãoàs freqüências vizinhas. Há equali-zador digital em que, ao alterar a fre-qüência, se altera de forma correspon-dente à fase das freqüências vizinhas evocê continua tendo a mesma respostade fase que tinha antes de equalizar”.No caso dos compressores, o técnicotambém é fã do processamento digital,

e dá o exemplo do Maximizer L3.“Chegar ao máximo de compressãocom o mínimo de efeito colateral, e issosó com o slide”, exulta.

Outro ponto importante da evoluçãodigital que diz respeito diretamente à so-noridade é a conversão, cuja qualidademelhorou muito nos últimos anos, comodiz Amaury Machado, sócio de LuizTornaghi no estúdio de masterização BatMasterson, no Rio de Janeiro. “Anosatrás, tinha o ADAT, que era usado emestúdios. Pensar que a qualidade que ti-nha nos conversores do ADAT é ridículacomparada com placas de som que osgarotos têm hoje nos computadores eque custam muito menos”, explica. Eleainda fala sobre a melhora do proces-samento digital. “Eu uso no meu estúdio otempo todo. Isso sempre foi o calcanhar deAquiles do digital, porque você dependianão só da qualidade dos conversores, mastambém do processamento interno. Issomelhorou demais. Há plug-ins que eu usona minha workstation que não troco pornenhum processador analógico”, ressalta.

No entanto, se existe um estágio noqual muita gente ainda prefere a plata-forma analógica é o da mistura, quandoos diversos canais são condensados emdois, na mixagem estéreo, e em seis,quando no formato 5.1. Para Amaury,esta é uma questão do processamento daworkstation. “Para se ter uma idéia, omix buss do Pro Tools TDM (modelo an-terior ao Pro Tools HD) era de 24 bits.Hoje é de 48 bits (no Pro Tools HD).

Fita x HDDesde o surgimento da gravação digi-

tal, o som da fita de duas polegadas para

gravação e de meia para a mixagem nun-ca deixou de encantar os profissionais deáudio. “Se você estiver com uma máqui-na com cabeça em excelente estado ealinhada, uma máquina Studer maravi-lhosa, com fita 0 km e cabeça nova, teráuma qualidade de gravação impressio-nante”, afirma Amaury Machado, quegosta do som analógico, assim comoDaniel Carvalho.

A fita analógica tem mesmo muitosfãs, seja na hora de gravar ou de mixar,mas já não são todas as pessoas que a pre-ferem. Guilherme Reis, técnico de somformado no auge da era analógica nosestúdios da EMI do Rio de Janeiro, jácomparou várias vezes a gravação do ProTools com a fita e prefere o primeiro, semsombra de dúvidas. Guilherme aindalembra que um equipamento analógicode qualidade é algo muito caro. “A músi-ca não dá a lucratividade que dava. Exis-te um problema que transcende a quali-dade”, lembra.

Marcos Eagle também já não preferemais as fitas analógicas. “Hoje em dia,ouço e acho pior mesmo. Não tenhomais essa coisa romântica do chiado edos harmônicos. Comparar um CD emresolução de consumo com uma fita demeia polegada é covardia. A fita vaiser muito melhor. Mas, se compararum som digital estéreo de 192 kHz e

Guilherme Reis prefere trabalhar com o digital

“Pensar que aqualidade que tinhanos conversores do

ADAT é ridículacomparada com placasde som que os garotos

têm hoje noscomputadores”

“Não tenho mais essacoisa romântica do

chiado e dosharmônicos. Compararum CD em resolução

de consumo com umafita de meia polegada

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REPORTAGEM

uma fita, ela perde. Na gravação, vo-cê tem de gravar exatamente o queestá ouvindo. Neste sentido, acho quehoje a gente tem os melhores gravado-res da história do áudio”, defendeMarcos Eagle.

SimulaçõesEste sempre foi um ponto sensível dos

equipamentos digitais. Eles podem si-mular a sonoridade do analógico, mashouve época em que os técnicos nãogostavam dessas simulações. No entan-to, elas já estão chegando cada vez maispróximas dos equipamentos originais.Daniel Carvalho não descarta o uso desimuladores, mas ainda prefere quandotem o equipamento analógico original.“Compressor analógico, eu não vivosem. Equalizador também. Se pegar umNeve analógico em bom estado, não hácoisa igual”, conta.

Já Marcos Eagle tem a impressão deque as simulações feitas com a participa-ção dos fabricantes chegam mais próxi-mas do equipamento original do quequando é apenas um licenciamento damarca. “Em instrumentos, os emuladoresde Fender Rhodes e de Hammond são ab-surdamente próximos do original”, co-menta o técnico. Ele também gosta das si-mulações dos Tube Tech.

Amaury Machado saúda a possibili-dade que o digital dá de simular a sonori-dade do analógico. “No digital, temosessas duas possibilidades, só que o enge-nheiro de som tem de ir atrás da sonori-

dade. Se ele quer uma sonoridade maisparecida com a que ele tinha com oanalógico, ele tem de criar. Se ele tinhauma distorção de fita que ele gostava,tem de ir atrás dessa distorção de fita”.Guilherme Reis concorda com a opinião,e vai mais longe: “Eu não quero reprodu-zir o analógico. Quero produzir caracte-rísticas novas”.

Passado, presentee futuroAntes, só havia a opção do formato

analógico. Hoje, existe a possibilidadeda mistura, e cada um trabalha de acor-do com as possibilidades econômicas e ogosto pessoal.

O analógico deve demorar a sair to-talmente de cena. Sempre haverá fãs eadmiradores de um formato que, portantos anos, moldou a forma de gravar,mixar e até mesmo de ouvir música. Noentanto, a questão do analógico “ver-sus” digital já está em um processo defade out. Independentemente dos abu-sos que o digital permite, como o exces-so de edições e uma certa mania quealguns técnicos têm de “olhar” o som aoinvés de ouvi-lo, o fato é que ele tomouconta do mercado.

Guilherme Reis traz uma questãointeressante: “As pessoas buscam umaqualidade intrínseca, e não existe essaqualidade. Há alguns anos, a maneirade se analisar uma mixagem era com-pletamente diferente da que se analisahoje. Existia um som de bateria super-trabalhado, limpo, e hoje está na modaum som de bateria gravado com dois mi-crofones dentro de uma sala. Se você fi-zesse isso há cinco anos, era despedido.A maneira como as pessoas escutam vaimudando. Temos que pensar hoje nosrumos que a música vai tomar. E não nosrumos dos meios com que ela apareça”.É uma discussão longa e interessante,mas isso é uma outra história...

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Para Amaury Machado digitais simulam analógicos