epistemologia e serviÇo social encontros e … · com o intuito de realçar os avanços e desafios...

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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X EPISTEMOLOGIA E SERVIÇO SOCIAL ENCONTROS E DESENCONTROS DE MULHERES NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA Jacqueline Mary Soares de Oliveira 1 Márcia Santana Tavares 2 Resumo: Este artigo tem como objetivo levantar algumas reflexões acerca da trajetória epistemológica do Serviço Social no tocante à violência de gênero, tomando como ponto de partida o contexto de surgimento da profissão e as transformações ocorridas nos eixos teóricos e metodológicos durante o processo de ressignificação que a categoria passou a partir das mudanças sociais ocorridas nas décadas de 1970 a 1980, e quais as correntes filosóficas que interferiram e moldaram ideológica e politicamente a práxis dos profissionais. Refletindo como essas primeiras trabalhadoras sociais serviam aos interesses do Estado, da Igreja e dos detentores do poder econômico apresentamos os lugares que as profissionais ocupavam no contexto político e de produção de conhecimento, tendo em vista se tratar de uma categoria majoritariamente composta por mulheres, com o intuito de realçar os avanços e desafios postos ao Serviço Social para a inclusão da violência de gênero como objeto de estudo e debates. Para tanto, realizamos uma revisão bibliográfica e recorremos à nossa experiência profissional como assistentes sociais para vislumbrar alguns conflitos na perspectiva da construção do conhecimento, pontuando as prováveis causas das defasagens existentes ainda no âmbito da produção científica da categoria e como este caminho pode ser reconstruído a partir de uma abordagem feminista. Palavras-chave: Serviço Social. Epistemologia. Violência de Gênero. Materialismo Histórico. Feminismo. O Serviço Social é uma profissão que se fortalece, no Brasil, a partir do acirramento do processo de industrialização e consequentemente das diversas mazelas sociais que configuram a Questão Social como o principal objeto de intervenção e estudo das assistentes sociais. Neste sentido a abordagem que propomos realizar aqui toma como referência a produção científica no tocante à violência de gênero e a relação estabelecida da categoria com este eixo no decorrer da formação profissional, refletindo sobre a defasagem estabelecida entre produção de conhecimento e pesquisa para com o eixo interventivo. Os anseios para esta produção não se estabeleceram de uma hora para outra, têm repercutido em nossas silenciosas reflexões sobre o fazer profissional nos últimos anos tendo, contudo, se acirrado 1 Assistente Social (UCSAL 1992). Mestra em Estudos interdisciplinares sobre gênero, mulheres e feminismo pelo NEIM/UFBA. Salvador/Bahia 2 Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal de Sergipe (1982), mestrado em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe (2004) e Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (2008). Atualmente é professora adjunto I do Curso de Serviço Social da Universidade Federal da Bahia; professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares Mulheres, Gênero e Feminismo -PPGNEIM/UFBA; membro do Grupo Observatório pela Aplicação da Lei Maria da Penha -OBSERVE/NEIM/UFBA. Salvador/Ba - Brasil

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

EPISTEMOLOGIA E SERVIÇO SOCIAL – ENCONTROS E

DESENCONTROS DE MULHERES NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA

Jacqueline Mary Soares de Oliveira 1

Márcia Santana Tavares2

Resumo: Este artigo tem como objetivo levantar algumas reflexões acerca da trajetória

epistemológica do Serviço Social no tocante à violência de gênero, tomando como ponto de partida

o contexto de surgimento da profissão e as transformações ocorridas nos eixos teóricos e

metodológicos durante o processo de ressignificação que a categoria passou a partir das mudanças

sociais ocorridas nas décadas de 1970 a 1980, e quais as correntes filosóficas que interferiram e

moldaram ideológica e politicamente a práxis dos profissionais. Refletindo como essas primeiras

trabalhadoras sociais serviam aos interesses do Estado, da Igreja e dos detentores do poder econômico

apresentamos os lugares que as profissionais ocupavam no contexto político e de produção de

conhecimento, tendo em vista se tratar de uma categoria majoritariamente composta por mulheres,

com o intuito de realçar os avanços e desafios postos ao Serviço Social para a inclusão da violência

de gênero como objeto de estudo e debates. Para tanto, realizamos uma revisão bibliográfica e

recorremos à nossa experiência profissional como assistentes sociais para vislumbrar alguns conflitos

na perspectiva da construção do conhecimento, pontuando as prováveis causas das defasagens

existentes ainda no âmbito da produção científica da categoria e como este caminho pode ser

reconstruído a partir de uma abordagem feminista.

Palavras-chave: Serviço Social. Epistemologia. Violência de Gênero. Materialismo Histórico.

Feminismo.

O Serviço Social é uma profissão que se fortalece, no Brasil, a partir do acirramento do

processo de industrialização e consequentemente das diversas mazelas sociais que configuram a

Questão Social como o principal objeto de intervenção e estudo das assistentes sociais. Neste sentido

a abordagem que propomos realizar aqui toma como referência a produção científica no tocante à

violência de gênero e a relação estabelecida da categoria com este eixo no decorrer da formação

profissional, refletindo sobre a defasagem estabelecida entre produção de conhecimento e pesquisa

para com o eixo interventivo.

Os anseios para esta produção não se estabeleceram de uma hora para outra, têm repercutido

em nossas silenciosas reflexões sobre o fazer profissional nos últimos anos tendo, contudo, se acirrado

1 Assistente Social (UCSAL 1992). Mestra em Estudos interdisciplinares sobre gênero, mulheres e feminismo pelo

NEIM/UFBA. Salvador/Bahia 2 Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal de Sergipe (1982), mestrado em Sociologia pela

Universidade Federal de Sergipe (2004) e Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (2008).

Atualmente é professora adjunto I do Curso de Serviço Social da Universidade Federal da Bahia; professora do Programa

de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares Mulheres, Gênero e Feminismo -PPGNEIM/UFBA; membro do Grupo

Observatório pela Aplicação da Lei Maria da Penha -OBSERVE/NEIM/UFBA. Salvador/Ba - Brasil

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a partir da provocação feita durante os estudos realizados na disciplina Gênero e Ciência no Programa

de Pós Graduação do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), na UFBA.

A partir destes anseios surge a problemática: O Serviço Social tem contribuído para a

produção de conhecimento no campo da violência de gênero? Existe uma epistemologia própria ao

Serviço Social? Que regras são imputadas à categoria para a construção deste conhecimento? O

processo de formação atende a contento a produção de conhecimento no campo da violência de

gênero? Que abordagem o Serviço Social (re)produz? Os parâmetros para a produção do

conhecimento atende a quais perspectivas epistemológicas? Estamos cientes que adentramos a um

campo que possivelmente não teremos respostas definitivas, mas as reflexões são necessárias para

iniciar. Neste sentido, apresentaremos o contexto de surgimento do Serviço Social para entender sua

abstração simbólica no seio de uma sociedade que tende a preservar o conservadorismo, o qual, a ala

mais progressista tem enfrentado nos últimos anos. Assim como compreender porque são ratificados

comportamentos e reproduzidos discursos sobre a produção de ciência de forma a ratificar critérios

empíricos fixos e imutáveis, como a neutralidade na pesquisa e o afastamento do sujeito pesquisador

do pesquisado, promovendo muitas vezes um modelo de ciência com características positivistas e

estrutural funcionalistas no âmbito das ciências humanas. Neste sentido, diríamos ser extremamente

contraditório o discurso político no âmbito do Serviço Social, quando a prática ratifica lugares que

preservam condutas conservadoras. Além da defasagem/inflexões no debate de algumas temáticas

imprescindíveis no âmbito da sociedade contemporânea, como a violência de gênero, a violência

doméstica (legislação e estrutura de serviços), homo, lesbo e transfobias, aborto, religiosidade,

sexualidades, racismo entre outros.

O Serviço Social, a Igreja e o Estado – uma aliança política para o bem estar.

O Serviço Social se fortalece como profissão a partir do agravamento da Questão Social, no

Brasil por volta de 1936/1937, no auge do processo de industrialização e do entendimento da Questão

Social como um problema que é de responsabilidade do Estado, deixando de ser então, uma questão

de polícia. Naquele momento histórico os profissionais encontravam-se intimamente aliadas aos

interesses da Igreja Católica, que imputava como ação das trabalhadoras sociais a lida com as

manifestações da questão social, especialmente “no trato” direto com os pobres e desvalidos, com a

intenção de reaproximá-los do centro da Igreja, onde muitos já tinham se afastado por conta do

processo de pauperização e da influência socialista que adentrava nos “chãos das fábricas”.

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Neste período percebe-se um crescente êxodo rural decorrente do crescimento de

oportunidades nos grandes centros urbanos. Tal realidade impulsionou o crescimento desordenado

das cidades que não estavam preparadas para receber um número tão expressivo de pessoas em busca

de melhores condições de vida, o que levou de certa forma, ao aparecimento das comunidades mais

carentes. Grandes aglomerados foram tomando espaços nos “morros” e locais ainda não urbanizados.

Algumas famílias se mudavam para os grandes centros urbanos sem nenhum apoio social, econômico

e habitacional, estabelecendo residências em locais sem saneamento, transportes, acesso à saúde e em

condições muito precárias, acarretando aumento de demandas nestas áreas. Neste contexto, portanto,

emerge um boom de mazelas sociais afetando grande massa populacional.

Neste cenário, percebe-se a importância de algumas mulheres que estavam intimamente

ligadas à Igreja Católica, oriundas da burguesia e com vínculos com a classe política. Eram elas quem

faziam as vezes de cuidadoras sociais das pessoas mais carentes, mais vulneráveis. Importante

salientar o papel assumido pelas mulheres neste espaço, ligado à Igreja e à política, reproduzindo os

ideais cristãos e principalmente, ratificando o lugar milenarmente destinado às mulheres - o espaço

do cuidado, da atenção. Tal perspectiva deve-se ao modelo patriarcal de sociedade onde as mulheres

foram colocadas como sujeitas aptas à submissão e dominação pelo grupo de homens, tanto no âmbito

familiar como nas supra estruturas ideológicas/simbólicas e nos espaços institucionais como Igrejas

e aparelhos do Estado.

As mulheres exerciam um papel importante no contexto relacional da Igreja, Estado e

burguesia. Podiam exercer influência entre os grupos mais vulneráveis no sentido de que estes

entendessem seu lugar no mundo tomando-os como os principais responsáveis por suas condições de

miserabilidade, por conta do afastamento da Igreja. Neste âmbito, as mulheres teriam que imputar

influência ideológica nas famílias no sentido de amenizar os conflitos que já incidiam na organização

do proletariado: movimentos operários por melhores condições de trabalho e garantia de direitos, que

desembocavam em constantes greves e manifestações, prejudicando desta forma a produção e a

harmonia entre os operários, aumentando o antagonismo e o acirramento do conflito de classe, que é

visto como ameaça a sociedade burguesa, aos seus valores e à ordem pública.

Neste sentido, a gênese do Serviço Social estava fincada na operacionalização de técnicas

caritativas, assistencialistas e filantrópicas mediadas pela ideologia cristã e concepções de que o

problema da pobreza, da fome, do alto índice de miserabilidade estava relacionado às posturas

individuais do homem no seu ambiente. A referência ideológica, portanto, pautava-se no

Neotomismo, de modo a conciliar a fé cristã com um sistema de pensamento racional, pautada na

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reeducação moral, enquadrando comportamentos e sanar desvios morais. De acordo com Aguiar

(2011) que reflete sobre o neotomismo, a perfeição do homem se manifesta através desta

racionalidade. “Essa dimensão racional produz, como consequência, o princípio da consciência em si

e da liberdade. [...] A liberdade, a capacidade de escolha é também manifestação da inteligência do

homem. Mas o homem é também dotado de vontade e, por isso, pode escolher os seus caminhos. ”

(Aguiar, 2011. pg. 60). Neste sentido, a reponsabilidade sobre os desvios do sujeito ficava sob a

responsabilidade de cada um, por conta de suas escolhas. Desta forma o neotomismo influenciou o

Serviço Social na sua gênese, com a ideia de que a pessoa humana tinha que ser tratada com

dignidade, com a intenção de unir os homens para o bem comum.

O processo interventivo era conduzido por mulheres que atendiam aos interesses da aliança

estabelecida entre a Igreja (poder ideológico), o Estado (poder político) e a sociedade burguesa (poder

econômico). Neste sentido, estabelecia-se o controle da sociedade, amenizando seus conflitos.

“Estado supõe autoridade” (Aguiar, 2011, pg 61). E “toda forma de autoridade deriva de Deus,

respeitá-la é respeitar a Deus; toda forma de governo, desde que garanta os direitos da pessoa e o

bem-estar da comunidade é boa” (Sciacca, s/d apud Aguiar, 2011. Pg 61).

Tal aliança é prevalecente em todo o contexto histórico da sociedade brasileira, que continua

monopolizando os frutos da produção social, “[...] justificando inclusive a posição inicial do serviço

social brasileiro de não questionamento da ordem vigente até suas raízes e de buscar sempre apenas

reformar a sociedade, melhorando consequentemente a ordem vigente. ” (Aguiar, 2011. Pg 61).

Matrizes teóricas no Serviço Social

Sobre as matrizes teóricas é importante dizer que a partir dos anos 40 sofremos influência do

Serviço Social americano, que era mais tecnicista e burocratizado, cuja prática estava pautada em

uma ideia positivista de enquadramento de comportamentos.

A doutrina social da Igreja vai deixando de influenciar as ações dos profissionais

estabelecendo um “arranjo teórico doutrinário”, que dialoga com a influência da Igreja católica e o

referencial positivista. Por conta do processo de transformação da sociedade a profissão vai de

desenvolvendo e a doutrina social da igreja já não atendia as necessidades apresentadas. A tendência

foi a importação de teorias e o Serviço Social passa então a ser influenciado pelo modelo norte

americano pautado no positivismo comteano, não se afastando, contudo, das bases cristãs.

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O arranjo pode ser de difícil compreensão, entendendo que no positivismo a ideia de que o

conhecimento científico é o único conhecimento legítimo, pois sua veracidade pode ser comprovada

por métodos científicos. Ficando as crenças (base cristã ao qual o Serviço Social até então dialogava)

à margem do conhecimento pela não possibilidade de sua comprovação científica.

No entanto, Comte apresenta a proposta da Religião da Humanidade, cuja base se estabelece

sobre uma unidade moral humana e não pelos aspectos sobrenaturais e de crenças em deuses. Ele

propõe uma religião pautado no conceito de Ser Supremo, neste caso - o homem – tomado como o

objeto de estudo e intervenção do serviço social, neste intervalo temporal, até o acirramento da

questão social.

A partir do movimento de reconceituação se inicia o debate no seio da profissão para construir

seus próprios referenciais e encontrar uma metodologia que atendesse as demandas da sociedade. As

influências a partir deste movimento se vinculavam ao positivismo funcionalista, na tentativa de

modernização, contudo não rompe com o que já existia. A base teórica se constituía generalista com

conteúdo de todas as áreas. E as experiências práticas estavam voltadas ao modelo de homem

universal, sem atentar para as especificidades que compõem o contexto da sociedade.

A corrente positivista funcionalista, que também foi base na formação teórica metodológica

da categoria, entendia o indivíduo como sendo coagido pela sociedade. Esta já está determinada e é

um todo coeso e em harmonia, se algo está errado é porque o sujeito não está ajustado, está

desestruturado, neste sentido a intervenção necessária se estabelece no indivíduo, isolado do contexto

em que vive.

Posteriormente encontramos aporte na fenomenologia, sem questionamentos das estruturas

sociais da sociedade. Continua a ênfase no indivíduo que precisa ser ajudado para transformar sua

realidade que só conseguirá modificar a partir da ajuda, pois a sociedade está estática e pronta. As

ações se pautavam no diálogo - entre o profissional e o cliente - na situação existencial

problematizada. Desta forma, o indivíduo entende sua problemática, resolvendo por si seus

problemas. As profissionais deveriam somente ratificar a realidade, visto ser harmoniosa e

naturalmente equilibrada.

É durante o processo de ruptura com o conservadorismo que a categoria reconhece o

materialismo histórico como base para entendimento da conjuntura social. Enfim, referenciais críticos

marxistas passam a ser base para a constituição teórico-metodológica do Serviço Social. O marxismo

passa a constituir-se como corrente hegemônica – e na contemporaneidade, tal perspectiva é

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corroborada. A compreensão de que a sociedade está em construção e existe o conflito, que o

indivíduo passa a ser sujeito e não objeto, ele participa da estruturação social.

O marxismo passa a ser matriz hegemônica na construção do conhecimento em Serviço

Social. No entanto é importante apontar que as categorias marxistas são consideradas por Rubin

(1976-1986), conforme relata Teresita De Barbieri “assexuadas e, portanto, inadequadas para a

análise da subordinação das mulheres” (Barbieri, 1998.p.108-109). Neste sentido, algumas sujeitas

ficam invisibilizadas no que se refere ao processo de exploração e dominação. Especialmente quando

se tem a categoria violência tão evidente nas relações sociais, principalmente das mulheres. Nas

elaborações teóricas, encontra-se incipiente de análise e problematização.

A compreensão da sociedade a partir do solo histórico dialético deu um espectro mais

apropriado para as intervenções e para a compreensão da trajetórias e vivências daqueles que estavam

constantemente lidando com mazelas da questão social. As bases provindas da teoria marxiana foi

importante ferramenta metodológica para entender os rumos da dominação, contudo, a posição de

classe advinda desta perspectiva impõe limites na compreensão das relações sociais

interseccionalizando desigualdades estabelecidas por sexo, gênero, raça, etnia, geração, sexualidade

e religiosidade.

Neste sentido, o aporte teórico metodológico ficou por muito tempo restrito aos determinantes

das lutas de classes, podendo ser causa da invisibilidade imposta a própria condição das mulheres

assistentes sociais ao seu acesso na produção científica acerca das categorias citadas. Compreendendo

que o sentido de não pertencimento não permite um olhar ampliado sobre a posição política do sujeito

social.

Mulheres como agentes invisíveis da produção científica

As assistentes sociais tinham por “destino” cuidar da manutenção da ordem e o cuidado com

o outro, ratificando o lugar que foi delimitado para a mulher na sociedade. Por isto se constituiu uma

profissão eminentemente feminina. Foram designadas como agentes de transformação e para isto no

decorrer do aprimoramento da categoria profissional existiu uma tendência ao compromisso político

e emancipação destas no que se refere à atuação interventiva. A questão, porém, não se assenta aí, ela

se concentra na falta da perspectiva crítica com relação a produção de um arcabouço técnico operativo

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e teórico metodológico sem a crítica a este modelo hegemônico a que estavam submetidas desde sua

formação.

É necessário apresentar que tais mulheres estiveram fora do contexto de produção de ciência,

porque a elas foram designados o lugar do cuidado, em detrimento da produção intelectual. Ficando

esta última aquém no processo de formação. Cabe apontar o campo fértil no exercício profissional

que possibilita a utilização de sua práxis como produto científico. Muitas profissionais vivenciam

contextos e trajetórias de violências de gênero que são invisibilizados pela fragilidade das discussões

e debates no âmbito da categoria e por conseguinte a ausência de estímulo para a produção científica

sobre temáticas que envolvem o próprio dia a dia das profissionais, tanto no âmbito ocupacional

quanto nos espaços familiares e comunitários. A ausência do debate acerca das violências de gênero

ainda hoje, cria a tal cegueira de gênero e de compreensão da própria realidade sobre tal contexto.

As novas diretrizes curriculares são claras quando reivindicam a pesquisa como um

componente absolutamente necessário para a formação e para a intervenção profissional do assistente

social. Ou seja, a pesquisa deve se desenvolver nas universidades, articular-se com os diferentes

espaços de inserção profissional e, mais do que isso, deve ser um traço central do exercício

profissional do assistente social independente de sua inserção na divisão social e técnica do trabalho.

A postura investigativa é necessária para descortinar as armadilhas da vida cotidiana, passo crucial e

insubstituível para uma intervenção profissional crítica, propositiva e, portanto, não repetitiva (Silva,

2007. p.292)

Sobre o campo da produção científica, mesmo cabendo no seu currículo o aporte para o

desenvolvimento da pesquisa, ainda são poucas as profissionais que se aventuram nesta seara.

Algumas, devido à formação, se lançam na área política, nas associações, sindicatos e órgãos

representativos. Outras, agregando forças nos movimentos sociais, tão caros para a transformação

política, fortalecendo e problematizando os movimentos em prol da transformação social, contudo o

viés da produção científica ainda é incipiente, principalmente acerca das questões relacionadas à

gênero e violências de gênero: contra a mulher, homofobia, transfobia, racismo.

Com o acirramento, na atualidade, da vertente conservadora religiosa na sociedade, muitas

mulheres buscam a formação em serviço social com a intenção de profissionalização da caridade3.

Contudo o arcabouço teórico-prático que se deparam desconstrói a noção da caridade, dando uma

dimensão política na profissão. Apesar da profusão de contextos de formação política, muitas posturas

3 Por desconhecimento, algumas pessoas ainda buscam a formação em Serviço social imaginando (sem conhecimento aprofundado) se tratar de uma profissão que conserva a perspectiva da caridade e ajuda. Desta forma poderão contribuir nos seus espaços de congregação religiosa.

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conservadoras ratificam e priorizam o modelo de ciência hegemônica cuja autoridade epistemológica

encontra-se sentado nas ciências naturais que ratificam a noção de neutralidade e objetividade

epistêmica, ratificando a separação entre sujeito e objeto. O impasse estabelecido aí encontra-se na

invisibilidade da autoridade epistemológica destas mulheres que se situam fragilizadas por uma

matriz civilizatória centrada no poder do homem como sujeito cognoscente. Neste sentido, percebe-

se através da prática cotidiana, no processo de formação destas novas profissionais, uma tendência a

ratificar o lugar milenar da mulher submissa e, portanto, dependente nas relações com homens. Muitas

ainda, sendo vítimas de violência de gênero e violência doméstica e familiar, sem sequer se aperceber

disto.

Um dos grandes avanços da categoria, decorrentes dos diversos encontros para debates acerca

dos caminhos da profissão centra-se na formação política. No entanto, é notória uma defasagem com

relação à produção científica e o entendimento da ciência como algo necessário e possível. Neste

sentido é inescapável apontar Bourdieu com a noção de campo, o espaço simbólico que impõe as

representações, não bastando ser mulher para pensar a possibilidade de transcender à lógica

androcêntrica que inferioriza e submete. É necessário um olhar gendrado para outros eixos,

principalmente para o lugar secundário de cuidado que nos foi delegado e que é ratificado pelas

instituições sociais.

Da ciência rígida a um projeto de ciência situada.

A pesquisa é um componente absolutamente necessário, como apontado anteriormente, para

o processo de formação e intervenção profissional. O modelo de pesquisa apresentado nos espaços

acadêmicos segue regras metodológicas universalmente conhecidas para as ciências humanas, sendo

a base para os estudos de introdução científica e pesquisa na academia.

A grande dificuldade apresentada no contexto de formação no Serviço Social hoje se assenta

na falta de articulação epistemológica com outras perspectivas pois, a que está em voga coaduna com

posturas centradas no conservadorismo dos modelos metodológicos de uma ciência hegemônica, que

nega a subjetividade, centrando-se na neutralidade e afastamento do sujeito do objeto.

Muito embora o materialismo possibilite o entendimento histórico dos sujeitos da

investigação, as posturas dos sujeitos cognoscentes são conduzidas por uma perspectiva funcionalista,

de afastamento do sujeito cognoscível, ratificando a neutralidade e o afastamento entre eles para não

haver contaminação naquilo que se observa. Nessa direção, (Morin, 2008, p. 115) esclarece que “[...]

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a ciência é impura. A vontade de encontrar uma demarcação nítida e clara da ciência pura, de fazer

uma decantação, digamos, do científico e do não científico, é uma ideia errônea e diria também uma

ideia maníaca”.

Além disso os discursos que transversalizam o aporte teórico metodológico do serviço social

não se abre a outras perspectivas, pois a posição de classe estabelece limites na compreensão das

relações sociais. Aponta-se desta forma, alguns estudos realizados por concluintes sobre as áreas de

saúde e assistência social que não conseguem delimitar os sujeitos sociais nas suas especificidades,

permanecendo invisibilizadas as demandas de cada um.

Além da generificação dos caminhos da pesquisa, é importante sinalizar a noção de

neutralidade impactando também no entendimento da ciência: o que é, para que serve e como é

constituída. A ciência, o conhecimento é produto de pessoas humanas, com sentimentos, dores,

emoções que são subjetivados e que dão um olhar diferenciado para o seu “objeto”. Portanto, cada

sujeito percebe e interioriza aquilo que sua subjetividade consegue transpor nas suas observações e

na sua escuta. Neste sentido “a epistemologia do ponto de vista feminista defende que o conhecimento

é socialmente situado” (Cabral,2006, p,72) não existe uma ciência neutra e imparcial.

O que se revela pela ciência é aquilo que o olhar do observador conseguiu enxergar,

referendado pela carga histórica de cada pesquisador, portanto é necessário o rompimento com o

“mito do investigador imparcial” (Jaggar, 1997, p.171). A ciência tem lado, atende aos interesses de

cada observador, o que ele enxerga, pode enxergar e deseja enxergar. Neste sentido Donna Haraway

aponta que “ apenas a perspectiva parcial promete uma visão objetiva. (Haraway, 1995: 21)

No âmbito do Serviço Social estas concepções encontram resistências. Atrever-se a apresentar

novas percepções é fugir da regra. Neste sentido, urge apresentar outras ferramentas, tendo em vista

que todas as narrativas são incompletas. O ponto fulcral da ausência de criatividade epistemológica

é a dita autoridade científica, conveniada pela boa ciência.

Algumas considerações

É sabido que a trajetória do Serviço Social como profissão inscrita na divisão social do

trabalho é recente no Brasil (80 anos) e por conta disto, entende-se que o percurso está apenas

iniciando na busca da autoridade científica e epistemológica. Contudo é relevante apresentar algumas

reflexões acerca dos entraves que estão se apresentando no caminho e que devem ser revistos para

que possamos viabilizar uma atualização epistemológica no escopo da produção científica.

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Em primeira instância deve-se considerar que a categoria profissional é composta

majoritariamente de mulheres, portanto, inscrita na divisão sexual do trabalho, o que dificulta o

processo de produção científica. O fato de ser mulher neste contexto social delimita seus espaços no

âmbito de uma sociedade de cunho patriarcal e no qual suas perspectivas interventivas foram até

poucos anos voltadas para abordagens caritativas e do cuidado. Não se pode descartar tais

especificidades e negar que o lugar situado destas mulheres, ratificam e dão sustentação ao que

entendem do serviço social.

O contexto sócio histórico apresentado na contemporaneidade reflete um aumento da

abordagem conservadora permeando o espectro ideológico de muitas mulheres, que tiveram a

oportunidade de adentrar aos espaços acadêmicos a partir das políticas sociais/educacionais

oferecidas pelos governos de Luís Inácio da Silva e Dilma Roussef. Um número representativo de

mulheres advindas de espaços religiosas, em busca do aprimoramento da caridade e da ajuda. Neste

ponto recai mais uma vez a noção de sujeito situado - o entendimento que cada um dá ao seu objeto,

reflete o contexto de sua subjetividade, portanto, não se trata de uma mudança radical e sim de uma

mudança de paradigmas. É preciso compreender que a profissional sendo mulher, vivencia

experiências de violências dos mais diversos tipos, e por conta de uma estrutura histórica e cultural,

naturalizam tais situações e por isto, são invisibilizados.

Por fim, necessário apontar que os espaços da “dita” intelectualidade acadêmica no âmbito do

serviço social, precisa atualizar-se a partir do que os novos conceitos de ciência vêm apresentando.

Ou ao menos, abrir-se para o diálogo porque a CIÊNCIA não é neutra, não é imparcial. O

materialismo pode apresentar condições para a produção da ciência, mas não explica porque meu

olhar difere do outro sobre o mesmo objeto, na mesma condição e no espaço temporal e geográfico,

nem porque percebo “sensatez no lugar da infelicidade”.

Cabe apontar também nesta perspectiva que, sendo um espectro de formação majoritariamente

feminino, tais mulheres estão inseridas em um contexto de sociedade sexista, machista e patriarcal

que reproduz lógicas milenares de comportamentos. Muitas delas são vítimas de violência de gênero

e/ou doméstica e o contexto de formação, nos seus parâmetros curriculares, pouca atenção dá a isto.

Neste sentido, o impacto na produção científica é, no mais leve prognóstico, produzir o mínimo sobre

a questão de violência de gênero, violência doméstica e de outras temáticas relacionadas aos debates

promovidos pelos feminismos. Apesar de ser um campo fértil para este debate por conta do perfil de

suas profissionais, a produção científica ainda é incipiente. É necessário ampliar no bojo do Serviço

Social, o olhar acerca das interseccionalidades impetradas nas trajetórias, vivências e subjetividades

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das mulheres. Tanto no contexto de produção científica no Serviço Social como no atendimento e

compreensão acerca das especificidades de cada profissional da categoria. Desta forma, a

possibilidade de ampliação de debates contemporâneos e específicos poderão encontrar seus lugares

de discussão e construção teórica, a partir de outra perspectiva – a epistemologia feminista.

Referências

AGUIAR, Antônio Geraldo de. Serviço Social e filosofia: das origens à Araxá. 6ª. Ed. São Paulo:

Cortez., 2011.

BARTRA, Eli. Debates en torno a una metodología feminista. In: De Barbiere, Teresita. Acerca de

las propuestas metodológicas feministas. México DF: 1a. edición. 1998.

CABRAL, Carla G. Pelas Telas, pela janela: o conhecimento dialogicamente situado. Cadernos Pagu

(27). pp: 63-97. 2006.

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Epistemology and social service - encounters and disengues of women in scientific production

Abstract: This article aims to raise some reflections about the epistemological trajectory of Social

Service regarding gender violence, taking as a starting point the context of the emergence of the

profession and the transformations occurred in the theoretical and methodological axes during the

process of resignification that the category Passed from the social changes that occurred in the

decades of 1970 to 1980, and which philosophical currents that interfered and ideologically and

politically shaped the praxis of professionals. Reflecting how these first social workers served the

interests of the State, the Church and the holders of economic power, we presented the places that the

professionals occupied in the political context and production of knowledge, considering that it is a

category composed mostly of women, With the aim of highlighting the advances and challenges

posed to the Social Service for the inclusion of gender violence as an object of study. To do so, we

carried out a bibliographical review and used our professional experience as social workers to glimpse

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

some conflicts in the perspective of knowledge construction, punctuating the probable causes of the

existing lags still within the scope of scientific production of the category and how this path can be

reconstructed to Feminist approach.

Keywords: Social Service. Epistemology. Gender Violence. Historical Materialism. Feminism.