epistemologia da pesquisa educacional (damião bezerra oliveira)

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PESQUISA EDUCACIONAL: UMA DISCUSSÃO EPISTEMOLÓGICA DAS POSIBILIDADES OFERECIDAS POR UMA RACIONALIDADE RETÓRICA. Damião Bezerra Oliveira 1 O texto é um estudo que procura refletir sobre o atual estatuto epistemológico da Pesquisa Educacional, a partir de uma experiência de discussão entre docentes e discentes no mestrado acadêmico em educação da UFPA. A interrogação básica que conduz o estudo é: Que tipo de racionalidade pode tornar viável atualmente as justificativas epistemológicas da pesquisa educacional? A reflexão encontrou apoio teórico-metodológico no pensamento de Thomas Kuhn (1978), na proposta feita por Perelman (1999a; 1999b) 2 de recuperação do vigor de uma “racionalidade retórica” já presente em Aristóteles (1974; 2000) e, por fim, em algumas idéias de Umberto Eco (1995; 2001a; 2001b) sobre a noção de “abertura” ou de “obra aberta”. Pressupõe- se, portanto, que as possíveis aproximações entre “retórica” e “epistemologia” podem auxiliar na compreensão da racionalidade que implícita ou explicitamente vem “fundamentando” os discursos das “ciências da educação” nos quais cada vez mais são menos freqüentes as distinções entre “contexto da descoberta” e “contexto da justificativa”. O principal procedimento metodológico consistiu na análise textual em conformidade com as indicações de Severino (2002) e Folscheid e Wunenburger (1999) no que diz respeito à explicação e comentário de textos, às técnicas de fichamento e à elaboração de dissertação. O texto estruturou-se como segue: nas considerações iniciais encontram-se a problemática e as fontes da reflexão, assim como o referencial teórico-metodológico da pesquisa. No segundo tópico empreende-se uma discussão em torno do estatuto epistemológico da pedagogia e da pesquisa educacional quando se enfatizará uma experiência de diálogo na Pós-graduação em educação na UFPA. O terceiro tópico destaca o aspecto mais restritamente metodológico desse mesmo problema. Nas considerações finais, efetua-se uma 1 Professor de Filosofia da Educação na UFPA. 2 Chaïm Perelman (1912-1984), polonês de nascimento, notabilizou-se como filósofo em solo belga.

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Page 1: EPISTEMOLOGIA DA PESQUISA EDUCACIONAL (Damião Bezerra Oliveira)

PESQUISA EDUCACIONAL: UMA DISCUSSÃO EPISTEMOLÓGICA DAS POSIBILIDADES OFERECIDAS POR UMA RACIONALIDADE RETÓRICA.

Damião Bezerra Oliveira1

O texto é um estudo que procura refletir sobre o atual estatuto epistemológico da Pesquisa Educacional, a partir de uma experiência de discussão entre docentes e discentes no mestrado acadêmico em educação da UFPA. A interrogação básica que conduz o estudo é: Que tipo de racionalidade pode tornar viável atualmente as justificativas epistemológicas da pesquisa educacional? A reflexão encontrou apoio teórico-metodológico no pensamento de Thomas Kuhn (1978), na proposta feita por Perelman (1999a; 1999b) 2 de recuperação do vigor de uma “racionalidade retórica” já presente em Aristóteles (1974; 2000) e, por fim, em algumas idéias de Umberto Eco (1995; 2001a; 2001b) sobre a noção de “abertura” ou de “obra aberta”. Pressupõe-se, portanto, que as possíveis aproximações entre “retórica” e “epistemologia” podem auxiliar na compreensão da racionalidade que implícita ou explicitamente vem “fundamentando” os discursos das “ciências da educação” nos quais cada vez mais são menos freqüentes as distinções entre “contexto da descoberta” e “contexto da justificativa”. O principal procedimento metodológico consistiu na análise textual em conformidade com as indicações de Severino (2002) e Folscheid e Wunenburger (1999) no que diz respeito à explicação e comentário de textos, às técnicas de fichamento e à elaboração de dissertação. O texto estruturou-se como segue: nas considerações iniciais encontram-se a problemática e as fontes da reflexão, assim como o referencial teórico-metodológico da pesquisa. No segundo tópico empreende-se uma discussão em torno do estatuto epistemológico da pedagogia e da pesquisa educacional quando se enfatizará uma experiência de diálogo na Pós-graduação em educação na UFPA. O terceiro tópico destaca o aspecto mais restritamente metodológico desse mesmo problema. Nas considerações finais, efetua-se uma síntese da reflexão na qual se destacam os pontos essenciais de uma interrogação que continua aberta.

PALAVRAS-CHAVE: Epistemologia, pesquisa educacional; racionalidade retórica; contexto da descoberta; contexto da justificativa.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A disciplina Seminários Temáticos Avançados I constituiu-se num importante

momento de discussão a respeito de diversas dimensões da pesquisa educacional -

inclusive da epistemológica- e teve como fio condutor as preocupações dos discentes do

mestrado em educação, da turma de 2005 no que concerne à construção dos seus

projetos de pesquisa.

Alguns professores-pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA),

Universidade do Estado do Pará (UEPA) e Universidade da Amazônia (UNAMA) que

1 Professor de Filosofia da Educação na UFPA. 2 Chaïm Perelman (1912-1984), polonês de nascimento, notabilizou-se como filósofo em solo belga.

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realizaram os seus cursos de pós-graduação, mestrado e doutorado, em instituições do

Pará (UFPA), Minas Gerais (UFMG), São Paulo (USP, PUC, UNESP) e Rio Grande do

Norte (UFRN), narraram um pouco das histórias de “bastidores” do seu processo de

formação na e para a pesquisa.

Embora apenas um dos pesquisadores convidados não tenha realizado o que

institucionalmente poder-se-ia chamar de pesquisa educacional, verificou-se como

marca do conjunto das exposições, a pluralidade: temática, teórica e metodológica,

ainda que a totalidade das investigações possa ser enquadrada genericamente na rubrica

“ciências humanas”.

Duas das pesquisas apresentadas tomaram a questão racial negra como tema

central, ainda que exibam referenciais teórico-metodológicos diferenciados; uma versou

sobre narrativas infantis; a formação de professores, a escola e o financiamento do

ensino são as temáticas marcantes das demais pesquisas.

Tomar-se-á como objeto de reflexão no presente estudo, as características

epistemológicas desse conjunto de pesquisas, a partir de anotações feitas durante as

exposições dos professores, bem como dos resumos fornecidos das teses e dissertações.

O problema central que orienta o estudo se expressa na interrogação: Que tipo de

racionalidade pode tornar viável atualmente as justificativas epistemológicas da pesquisa

educacional?

Adotou-se como principal referencial teórico na interpretação dos “dados”, duas

obras de Perelman (1999a; 1999 b), em que o autor defende a recuperação de uma

racionalidade dialética enquanto alternativa nos campo das ciências humanas à

racionalidade dura das ciências empírico-formais.

De acordo com o autor acima, há a necessidade de rever a racionalidade

dialética ou retórica para além das visões historicamente solidificadas que a reduziu a

um simples “expediente” pelo qual se consegue a adesão de um “auditório” em

determinada direção.

Para Perelman (1999b) nem todo rigor precisa tomar para referencial de

julgamento, os critérios da lógica formal ou do silogismo. Concorda, portanto, com a

clássica formulação aristotélica - embora esta ainda estivesse referenciada na Lógica -

de que não se pode exigir o mesmo tipo de rigor em todas as espécies de conhecimento,

preferindo defender a tese de que a rigor possui graus.

Portanto, a impossibilidade de se postular, nas ciências não formais -

especialmente no campo das humanidades - um discurso livre de polissemia e

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estruturado segundo regras unívocas e axiomatizadas, não pode levar à conclusão de

que seria inútil qualquer tentativa de convencimento e persuasão por meios racionais.

Argumenta-se a favor de uma “retórica” que seja um meio legítimo de discussão,

na medida em que não apele apenas ao assentimento da vontade, esclarecida ou não,

mas que tome enquanto inseparáveis “razão” e “vontade”, o “fato” e o “valor” no ato de

ajuizamento.

Acrescente-se que a razão “retórica” ou “dialética” contenta-se em atingir

“auditórios” restritos, não universais, de modo que os consensos sobre temas,

problemas, valores e arcabouço teórico-metodológico se circunscrevem a grupos

heterogêneos internamente e em polêmicas ainda mais acirradas entre si (PERALMAN,

1999a; 1999b; KUHN, 1978).

Esse auditório restrito sabe da necessidade de conviver com outros auditórios

que compartilham outros valores, bem como dos conflitos internos em função da

precariedade de todos os consensos em qualquer momento do processo de construção do

conhecimento em áreas como a educação.

A proposta de uma “racionalidade dialógica”, “dialética” ou “retórica”, autoriza

algumas aproximações entre a linguagem das ciências humanas e a da literatura,

inclusive no que se refere às suas “práxis” discursivas. Tendo em vista isso, estabelecer-

se-á conexão entre a racionalidade defendida por Perelman e a idéia de “abertura do

discurso” de Umberto Eco (1995, 2001, 2001a), a fim de pensar o estatuto

epistemológico da pesquisa educacional enquanto campo de sentido constantemente

aberto à crítica.

2 ESTATUTO EPISTEMOLÓGICO DA PESQUISA EDUCACIONAL

Do ponto de vista disciplinar, as pesquisas apresentadas no Seminário

mobilizaram referenciais teóricos dos “campos” sociológicos, antropológicos,

psicológicos, históricos, lingüísticos e filosóficos, sem que se verifique nessa

apropriação, distinções de domínios, mas antes há uma tendência a integrá-los todos na

constituição de um discurso pedagógico, educacional.

Apesar disso, sabe-se que sobre a questão do estatuto epistemológico do

discurso pedagógico e do campo educacional, há abundante literatura publicada. O que

não significa ser este um problema superado, mas antes essa abundância indica a

importância da interrogação e a amplitude da sua abertura como desafio ao pensamento

(LIBÂNEO, 2001; 2002a; 2002b; MUNIZ, 1990).

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Entretanto, os pesquisadores presentes nos debates dos Seminários não se

detiveram claramente na reflexão desse problema de fundamentação. Dedicaram maior

atenção na narração das suas vivências de pesquisa, ao âmbito do que se poderia

tipificar como contexto descoberta.

Na narrativa do processo de construção da tese ou dissertação os professores

foram unânimes no reconhecimento da abertura crítica das suas pesquisas, dos limites

das indicações, recomendações e prescrições da literatura que trata de metodologias,

procedimentos e técnicas de pesquisa.

Destacaram a indispensabilidade do esforço criativo do pesquisador em

correlação com a necessidade de certas tomadas de decisão no que diz respeito aos

passos a serem dedos em todos os momentos da pesquisa: constituição do projeto,

execução da pesquisa até a elaboração final do relatório.

Os pesquisadores foram peremptórios no reconhecimento da necessidade de se

considerar os limites de toda e qualquer literatura que “fala” de pesquisa. Deram a

entender ser “no jogo da pesquisa” que as soluções específicas sobre o melhor caminho

a seguir vão ganhando consistência concreta, para além de um sentido ainda muito

“abstrato” dos estudos que descrevem o processo de pesquisa, prescrevem caminhos e

apontam determinados procedimentos.

Isso não consiste em desprezo pelas teorizações ou reflexões epistemológicas,

pois, em maior ou menor grau - nas apresentações dos pesquisadores e principalmente

nos seus resumos – encontram-se preocupações dessa natureza. Deseja-se aqui relevar

antes, um aspecto inegável da pesquisa: ela só adquire realmente sentido como “práxis”,

ao se estabelecer a conexão entre reflexão epistemológica e o fazer pesquisa e vice-

versa, preservando-se a “abertura3” da interpretação dos resultados.

Pôde-se constatar que a minimização da importância da rigidez metodológica

segundo os critérios tradicionais de investigação, é uma das marcas da pesquisa

educacional atual. A sua lógica de “validação” não quer ser a “comprovação” ou

“demonstração”, mas antes “argumentação” (PERELMAN, 1999a; 1999b).

A idéia básica de uma “lógica” da “argumentação” não é apenas a de que uma

determinada teoria apresentada enquanto a melhor solução de um problema não é uma

verdade definitiva e nem exclui outras possíveis respostas. Mas, também, o 3 “Abertura” é um conceito que reconhece a impossibilidade de estruturação completa do sentido, dos significados de uma construção simbólica: um enunciado, uma teoria ou um texto; em função da polissemia do código, no caso, das metodologias de construção e reconstrução dos campos de sentido. Após “concluída" a pesquisa, a abertura manter-se-ia nas diversas possibilidades de leitura ou de interpretação dos enunciados.

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reconhecimento da impossibilidade de constranger os interlocutores à aceitação por uma

evidência irrefutável, de modo que resta o apelo argumentado para que o outro

compartilhe uma verdade possível.

O conhecimento pedagógico produzido pela pesquisa educacional segue tal

orientação. Tem renunciado a uma racionalidade “dura” cuja pretensão sempre foi a

univocidade da linguagem e o consenso universal, embora possa correr o risco de

algumas vezes se entregar aos prazeres fáceis dos irracionalismos contemporâneos

(OLIVA, 2005).

Nos discursos dos pesquisadores presentes no Seminário foi possível observar a

recusa de um tipo canônico e racionalidade, mas não a toda e qualquer justificativa

racional. Procura-se eliminar as fronteiras entre “pessoalidade” e “impessoalidade”,

sujeito e objeto, razão e vontade, assumindo-se, pois, implícita ou explicitamente, a

origem da enunciação, os engajamentos, desejos e sonhos que mobilizaram os projetos

de pesquisa como projeção da vida.

Os pesquisadores falaram das angústias, medos e dúvidas que os acompanharam

em todo o curso de realização do projeto como elementos essenciais na compreensão da

verdade da pesquisa. Não se discute, portanto, que o “contexto da descoberta” venha

comportando sempre, em qualquer que seja a área, esse conjunto de componentes

existenciais. O que merece destaque é o fato de essa dimensão, cada vez mais, ser

incorporada enquanto constituinte legítimo do processo de pesquisa educacional,

inclusive como parte do “contexto da justificativa”, ganhando, destaque, portanto, nos

processos discursivos de convencimento teórico e prático.

Assim, por mais diversos que sejam os referenciais teórico-metodológicos que

sustentam as pesquisas discutidas, observa-se uma unidade no que se recusa

relativamente à concepção de ciência e que vem ao encontro da proposta de Perelman:

tudo o que se tem chamado genericamente de epistemologia positivista, por vezes

cartesiana. A existência mesma de seminários e discussões como as travadas na

disciplina, pressupõe uma aposta na argumentação e no diálogo.

O fundamental aqui é o reconhecimento da imperfeição, abertura, incompletude

e incerteza que todo enunciado referente ao campo humano comporta, mas não como

um defeito que um processo histórico corrigirá em um ponto final, porém enquanto

características permanentes e intrínsecas do pensamento nesse domínio.

Merece enfatizar, também, nas pesquisas educacionais, a clara tendência de se

pensar as teorias como meio de intervenção na realidade sociocultural e educativa. Sob

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esse aspecto, a proposta de uma razão argumentativa é pertinente à medida que ela liga

o discurso à ação enquanto ocorrências do espaço público e intersubjetivo.

Assim, ao invés do ideal epistemológico da impessoalidade, a pesquisa

educacional busca a “intersubjetividade” fundada na mediação discursiva e dialógica,

pois essa racionalidade “política” ganha proeminência quando não é possível

demonstrar peremptoriamente a verdade de um conhecimento. Trata-se, portanto, de

assumir um modelo de racionalidade política ou mesmo jurídica, na educação, em

contraposição ao ideal matemático, algorítmico consagrado pela tradição moderna.

Essa idéia de uma racionalidade retórica coaduna-se com a lógica do que se

chama de ciências não paradigmáticas, na quais há grande abertura crítica e amplas

possibilidades de interpretação de modo que a atividade dialógica só estabelece

consensos frágeis intra e inter grupos de pesquisadores.

Contudo, se a ausência de paradigma já não é entendida como uma imperfeição

(imaturidade) cuja baliza positiva seria o consenso paradigmático de ciências como a

Física. A racionalidade retórica assume plenamente a positividade de ser um tipo de

conhecimento constantemente crítico, polêmico e aberto.

Os “objetos” de conhecimento da pesquisa educacional são múltiplos e não

podem ser deduzidos de qualquer sistema que organizaria os resultados da totalidade da

pesquisa, num “estado da arte” completo. Múltiplos e instáveis, esses objetos escapam

aos esquemas lógicos e não se circunscrevem aos “campos” disciplinares consagrados

por variados mecanismos institucionais4.

Por ser assim, o pesquisador educacional não pode pretender excluir do campo

de discussão, nenhuma teoria ou tese incompatível com aquela que pessoalmente ou

academicamente defende. Necessário faz-se a abertura crítica e autocrítica ao diálogo

enquanto um momento no qual tanto é possível convencer quanto ser convencido.

Diante do exposto, pode-se pensar que a pesquisa educacional coaduna-se com a

racionalidade dialética, num sentido que Perelman tentou recuperar em Aristóteles

(1974; 2000). Para o filósofo grego a dialética significava um método de argumentação

que se ampara em premissas apenas prováveis e não em princípios evidentes, de modo

que a conclusão não se constitui em demonstração que constrange universalmente, mas

antes num apelo ao assentimento da vontade de um homem situado.

4 Não se despreza o fato de tais mecanismos institucionais, também múltiplos, estabelecerem critérios de legitimação ou não das pesquisas realizadas. Contudo, deseja-se destacar as limitações dessas instâncias no domínio da produção de conhecimento educacional, especialmente na era da cibercultura quando é cada vez mais difícil às autoridades determinar quem pode “dizer” o que a quem.

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De modo breve, o “provável” caracteriza-se menos pelo número de aderências

ou pelo grau de convicção dos que aderem e mais pela a ausência da possibilidade de se

efetuar uma “demonstração” rigorosa que partiria de “premissas” evidentes para

conclusões igualmente evidentes.

A “racionalidade dialética” sustenta-se no saber comum compartilhado nas

relações cotidianas; nasce da convivência, de um sentir “comungado” por todos ou por

grupos mais restritos que estabelecem “consensos” em torno de determinados “objetos”

de interesse circunscrito.

À argumentação dialética é associada uma teoria dos “lugares” em que se

destacam dois, em contraposição, qualidade e quantidade. O último desses “topos”

erige-se como base dos processos de convencimento em que o número de anuências é o

fator fundamental do convencimento, constituindo um “senso comum”. Já a qualidade

contesta as opiniões aceitas comumente, os amplos consensos em nome de outros tipos

de garantia. Ressalta-se, aqui, o valor da singularidade do fenômeno quase sempre não

apreendido pelos raciocínios que se amparam na soma de casos.

A revelação da “qualidade”, como é entendida pela dialética, só pode ocorrer na

concreticidade, para além das abstrações que tomam a diversidade de “eventos”

enquanto unidades permutáveis, repetições típicas que se confirmariam pelo número de

re-aparecimentos da mesmidade.

A pesquisa educacional, na atualidade, parece erigir-se em função de um lugar

“qualitativo” num sentido bem próximo do que foi esboçado acima. Renuncia as

tentativas de encontrar regularidades “demonstráveis” ou a mera descrição das opiniões

dominantes e socialmente aceitas. Mesmo valorizando o cotidiano, a fala do senso

comum, dedica-se a surpreender um sentido singular que não é imediatamente dado,

percebido e justificado.

A singularidade qualitativa, no entanto, refere-se à existência do fenômeno, mas

não às idiossincrasias expressivas do enunciador. É imprescindível a possibilidade de

publicização do que se apresenta enquanto unicidade, pois no plano da argumentação e

do convencimento só pode fazer sentido o comunicável, o que é passível de ser

compartilhado numa discussão qualquer.

Acrescente-se ao já dito que a pesquisa educacional visa mais que o simples

convencimento: pretende-se produtora de um conhecimento válido cujo objetivo

transcende o mero acordo de indivíduos com vistas à ação. Essa investigação trabalha

com “dados”, metodologicamente selecionados em função de um problema e de

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objetivos escolhidos, dentro de um referencial teórico-metodológico que funciona

enquanto pressuposto articulador dos diversos elementos estruturais que compõem a

pesquisa.

3 ALGUMAS REFLEXÕES METODOLÓGICAS

Supõe-se a existência de relações simétricas entre os pressupostos

epistemológicos e as orientações metodológicas de uma investigação, mesmo se

admitindo que o tipo de conexão não seja do tipo dedutivo e que se deva fazer dentro de

uma linha de estrita coerência lógica.

De modo habitual, as pesquisas expressam explicitamente os argumentos

metodológicos e procedimentais a propósito de justificativa, deixando apenas implícitos

os elementos epistemológicos que são adotados e aceitos na ancoragem da investigação.

No material analisado e nas exposições feitas na disciplina Seminário, foi

possível detectar o que acima se diz. Isso ocorre, provavelmente, em função, dentre

outras razões, da impossibilidade prática de se discutir todos os pontos cognoscentes

abertos em uma pesquisa em qualquer que seja a área. Por outro lado, pela necessidade

de se adotar certos pressupostos que são, inevitavelmente, questionáveis por alguma

outra perspectiva epistemológica.

Por tais razões operacionais, as pesquisas precisam silenciar os contra-

argumentos possíveis, e adotar com algum “dogmatismo” prático indispensável, um

conjunto de componentes metodológicos que visam prioritariamente tornar a pesquisa

exeqüível e justificável para um determinado auditório.

Tomando-se os resumos dos trabalhos disponibilizados pelos pesquisadores

convidados e os considerando – metodologicamente - como uma síntese do que se

considera mais essencial a ser dito de uma pesquisa poder-se-ia efetuar algumas

interessantes reflexões quando ao grau de abertura dessas pesquisas.

Não se constata a presença dos mesmos componentes estruturais nos resumos

que se organizam, pois, de modos variados. Os mais completos trazem além do título da

tese ou dissertação, o problema central, a tese defendida, os objetivos, o referencial

teórico, abordagem metodológica e os resultados a que se chegou com a pesquisa.

Contudo, a ausência de um dos elementos essenciais no resumo da pesquisa, não

significa que ele não possa ser encontrado no trabalho completo ou mesmo que tenha

ficado de fora do campo das preocupações do pesquisador. Nas exposições e durante as

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discussões dos Seminários, esses pesquisadores puderam refletir sobre o processo

metodológico da sua investigação, o que tornou possível a emergência de problemas

antes subjacentes e não explorados claramente no processo investigatório formal.

As falas anotadas como os resumos revelaram que o campo metodológico dessas

pesquisas educacionais é marcado por ampla polissemia terminológica, havendo, por

isso, limitado consenso relativamente à compreensão das definições dos procedimentos

e das suas justificativas.

Duas pesquisas se qualificaram de “empíricas”, mas não deixaram claro qual o

sentido que atribuíam a esse termo. Ora, a ligação de “empírico” com “empirismo” é

imediata. Sabe-se que o empirismo é uma conhecida e polêmica tendência cognoscente

cujas posições, hoje, dificilmente são defendidas sem maiores esclarecimentos

conceituais. Diante disso, é uma atitude no mínimo temerária a de se qualificar uma

pesquisa com tal adjetivação, em virtude de ser grande a probabilidade de suscitar

incompreensões.

O que os pesquisadores compreendem como sendo uma pesquisa empírica e que

conseqüências metodológicas daí adviriam? O material analisado mostra que uma das

pesquisas assim identificada trabalha com documentos e na outra a “prática” dos

sujeitos é assumida enquanto fonte de informação. Pode-se indagar o que seria uma

pesquisa empírica em que a “observação” ou não desempenharia qualquer função ou

apareceria de modo secundarizado?

Imprecisão semelhante aparece com relação ao tratamento e apreensão dos

dados. Um dos dois trabalhos acima, além de se intitular como “empírico”, assume-se

enquanto “qualitativo”. Ao se examinar o resumo, no entanto, detecta-se que o

problema, os objetivos e por via de conseqüência, os dados da investigação,

apresentam-se na forma de estatística, números, índices, valor per capita de gasto-

aluno, percentual de variação. As conclusões do trabalho também se expressam nessa

mesma linguagem, sem excluir, contudo, apreciações políticas e axiológicas desses

números.

Colocando entre parênteses as grandes controvérsias em torno da distinção

qualidade/quantidade na pesquisa, seria uma alternativa tão simples a de escolher

denominar como “qualitativa” tal tipo de tese?

Por serem comuns as controvérsias metodológicas desse tipo, alguns

pesquisadores têm adotado, pelo que deixaram transparecer nos seus discursos, certas

estratégias de escritura que se amparam no silenciamento no que concerne às

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abordagens, tendo em vista as dificuldades de definição e abertura crítica e

interpretativa que comportam intra e inter grupos.

Desse modo, não se pode atribuir à metodologia uma potencialidade de cunho

“demonstrativo”, porquanto ela mesma é parte da racionalidade retórica. Daí porque os

resumos, também, exibem o caráter discursivo, argumentativo e dialógico das pesquisas.

Neles figuram frequentemente, termos como: discussão, diálogo, compreensão,

argumento, argumentação, práticas discursivas, narrativas, percepção dos sujeitos.

Na descrição dos procedimentos metodológicos, os pesquisadores deixaram

transparecer que os processos de discussão e argumentação não aparecem somente na

fase de interpretação dos dados, mas no momento de coleta dos dados, de modo especial

nas entrevistas5 que se configuram em momentos privilegiados de práticas discursivas

dialógicas.

Nas metodologias adotadas, há uma tendência a se tomar como um valor

positivo, em consonância com uma racionalidade “retórica”, as figuras de linguagem, a

exploração da metáfora e de outros recursos “poéticos” enquanto meios de expressão de

determinadas especificidades dos fenômenos estudados que, de outro modo, não seriam

revelados.

Nisso mostra-se a suspeita metodológica cultivada em relação aos modelos

cartesianos e positivistas que, em nome da clareza, distinção e rigor das pesquisas,

defendiam que essas adotassem uma linguagem unívoca, livre das figurações

potencializadoras de múltiplas interpretações, portanto, de processos argumentativos e

não demonstrativos.

As pesquisas aqui estudadas acolhem as riquezas expressivas e os riscos da

plurissemia das linguagens naturais. Não se lança mão, como recurso metodológico, de

elaborações estritamente formais, de codificações artificiais ou de modelos

reducionistas que simplificariam a descrição e interpretação do fenômeno.

O uso de uma linguagem natural6 ocorre, nas pesquisas estudadas, de dois modos

principais. Um que segue estritamente as regras prescritas pelo código, em certos casos

acolhe-se a formatação já dada em discursos institucionais existentes, constituindo-se

numa linguagem na qual o sentido dos enunciados atende facilmente as expectativas dos

leitores habituados ao campo. Um segundo grupo procura potencializar as

possibilidades expressivas da língua, criando enunciados que, por não atenderem

5 As entrevistas se constituem em diálogo a dois ou, em alguns casos, em discussão de grupo quando se opta por entrevista coletiva. 6 As considerações sobre o uso da linguagem inspiram-se em Eco (2001).

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prontamente as expectativas do leitor, possuem maior valor informativo, portanto,

revelam maior potencialidade de ineditismo da pesquisa.

Contudo, é do conhecimento de todos que a pesquisa institucional possui os seus

mecanismos de “redundância”, os seus “lugares-comuns” que limitam indubitavelmente

a “liberdade” de criação dos indivíduos mais inventivos na elaboração da sua pesquisa.

Sendo assim permanecem fora das possibilidades da prática de pesquisa as grandes

transgressões individuais verificáveis no âmbito do fazer artístico.

Por isso, a metodologia da pesquisa educacional, mesmo tendendo a valorizar a

abertura e a transgressão, parece precisar limitar a magnitude do “estranhamento” que

certos enunciados demasiadamente distantes das expectativas comuns causariam no

público ou mesmo numa banca examinadora de um relatório de pesquisa.

De qualquer modo, o reconhecimento da precariedade de todas as pretensões de

estabelecer regras rígidas, de unificar os procedimentos metodológicos, de prescrever

critérios de justificação e validação, não significa a total abertura para individualmente

cada um “inventar” o seu método.

Entretanto, o desprestígio dos métodos consagrados segundo critérios formais,

tende a conduzir a uma reação “contra o método” e a favor do que Oliva (2005),

inspirado em Feyerabend denomina de “anarquismo epistemológico” e que se poderia

aqui rebatizar, de modo mais restrito de “anarquismo metodológico”.

Talvez as expressões acima apontem para aquilo que se discutiu com os

pesquisadores no seminário: de que inexistem caminhos previamente determinados;

passos tecnicamente assimiláveis e executáveis na consecução do processo de

investigação que dispensassem toda decisão e criação pessoal, em algum grau, ainda

que limitado.

4 CONSIDRRAÇÕES FINAIS

Perelman (1999), Perelman e Olbrechts-Tyteca (1999) e Eco (2001) mostram a

diminuição da área de abrangência possível de um discurso apodítico, demonstrável de

modo coercitivo. Com isso recuperam o sentido da razão “dialética”, mas

principalmente da “retórica”, de acordo com a formulação aristotélica.

Tal forma de racionalidade coloca-se como alternativa ao irracionalismo, ou

mais restritamente, no campo da pesquisa, aos anarquismos: seja o epistemológico ou o

metodológico. Acredita-se, pois, nos meios persuasivos da razão, sem descartar a

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estreita relação entre assentimento racional de consenso emotivo, ou dito de outra

maneira, “lógica” e “emoção” complementam-se.

Ainda que o conjunto das pesquisas analisadas aqui não cite tais autores, foi

possível de maneira plausível, identificar traços de uma racionalidade retórica tanto no

que os pesquisadores aceitavam explícita ou implicitamente quanto no que recusavam

nos modelos canônicos de investigação, especialmente no âmbito da metodologia e dos

procedimentos de pesquisa.

Essa racionalidade procura aproximar “gêneros” de escritura anteriormente

separados e hierarquizados: ciência e literatura. Estabelece “rasuras” nas fronteiras

canônicas entre formas e procedimentos de construção discursiva, onde se valoriza as

variadas possibilidades de interpretação do fenômeno investigado tomado como signo,

campo de sentido.

Ao invés de um discurso cuja arquitetura deriva e é garantida por regras formais

rigorosas, unívocas, a pesquisa educacional parece antes tender ao que Umberto Eco

(2001a) denomina de “discurso aberto” que, embora não possa a ele atribuir qualquer

significado, não estabelece princípios garantidores de clareza e distinção, de fechamento

do sentido.

Dentro dessa “lógica” de investigação, a produção de um novo conhecimento

não seria apenas o trazer à tona uma informação inédita e unívoca que uma vez dada a

conhecer esgotaria a sua novidade. Antes, tratar-se-ia de um discurso eivado de

possibilidades interpretativas, alimentado de uma plurissemia intrínseca a forma de

elaboração da pesquisa, mesmo se tendo que admitir que certas leituras sejam plausíveis

e outras não.

Se tudo isso puder ser legitimamente afirmado, então se teria que concluir da

impossibilidade de se falar de “modelos” ou “matrizes disciplinares” como orientadoras

rígidas dos diversos momentos do processo de investigação dos fenômenos

educacionais, em função do seu não fechamento epistemológico, de modo que as

pesquisas anteriores e suas metodologias não se apresentam enquanto “casos

exemplares”.

A ausência de uma “exemplaridade” rígida da literatura metodológica ou teórica

pôde ser entrevista nos resumos examinados, assim como nas exposições dos

pesquisadores. Cada trabalho procurou exibir a sua singularidade, os seus contornos

diferenciais e próprios. A apropriação do material existente fez-se, em geral, com ampla

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liberdade interpretativa, com o mínimo de enquadramento nos “lugares-comuns”

expressivos à disposição.

Os novos pesquisadores que se iniciam podem interpretar de modos diversos os

símbolos que circularam nos Seminários. Uma possibilidade de leitura é a de que há a

necessidade de “inventar” formas de elaborar uma pesquisa, sendo a literatura existente

sobre o assunto, uma inspiração dotada de enorme abertura para dispensar do

pesquisador a necessidade de optar escolher caminhos ou mesmo de desbravar o

terreno.

4 REFERÊNCIAS

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__________. Retórica das paixões. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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SEVERINO, Antônio. Metodologia do trabalho científico. 22ª. Ed. São Paulo: Cortez, 2002.

VASCONCELOS, Eduardo Mourão. Complexidade e pesquisa interdisciplinar: epistemologia e metodologia operativa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. 5 NOTAS

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