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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Estudos da Linguagem MIRESNEI BOMFIM DE OLIVEIRA ENUNCIAÇÃO E RELAÇÕES DE SENTIDO ENTRE A CONSTITUIÇÃO FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 E O MARCO CIVIL DA INTERNET (LEI 12.965/14) CAMPINAS 2019

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Instituto de Estudos da Linguagem

MIRESNEI BOMFIM DE OLIVEIRA

ENUNCIAÇÃO E RELAÇÕES DE SENTIDO ENTRE A

CONSTITUIÇÃO FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 E O

MARCO CIVIL DA INTERNET (LEI 12.965/14)

CAMPINAS

2019

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MIRESNEI BOMFIM DE OLIVEIRA

ENUNCIAÇÃO E RELAÇÕES DE SENTIDO ENTRE A

CONSTITUIÇÃO FEDERATIVA DO BRASIL E O MARCO CIVIL DA

INTERNET (LEI 12.965/14)

Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Linguística.

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Roberto Junqueira Guimarães

Este exemplar corresponde à versão final

da dissertação de mestrado defendida pelo

aluno Miresnei Bomfim de Oliveira e

orientada pelo prof. Dr. Eduardo Roberto

Junqueira Guimarães

CAMPINAS

2019

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Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem

Leandro dos Santos Nascimento - CRB 8/8343

Bomfim de Oliveira, Miresnei, 1970-

B639e Enunciação e relações de sentido entre a Constituição Federativa do

Brasil de 1988 e o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14) / Miresnei

Bomfim de Oliveira. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

Orientador: Eduardo Roberto Junqueira Guimarães.

Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas,

Instituto de Estudos da Linguagem.

1. Semântica. 2. Controle da Constitucionalidade. 3. Significação

(Linguística). 4. Sentido (Linguística). 5. Direito - Linguagem. I.

Guimarães, Eduardo Roberto Junqueira. II. Universidade Estadual de

Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Enunciation and meaning relations between Federal Constitution of Brazil of 1988 and The Brazilian Civil Rights Framework for The Internet (Law 12.965/14) Palavras-chave em inglês:

Semantics

Constitutionality control

Meaning (Linguistics)

Sense (Linguistics)

Law - Language Área de concentração: Linguística Titulação: Mestre em Linguística Banca examinadora:

Eduardo Roberto Junqueira Guimarães [Orientador]

Débora Raquel Hettwer Massmann

Emílio Gozze Pagotto Data de defesa: 13-12-2019 Programa de Pós-Graduação: Linguística Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)

ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-6610-0296

Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/8080952823931325

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BANCA EXAMINADORA:

Eduardo Roberto Junqueira Guimarães

Emilio Gozze Pagotto

Débora Raquel Hettwer Massmann

IEL/UNICAMP

2019

Ata da defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no

SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria de Pós Graduação do IEL.

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Não oblitero moscas com palavras. Uma espécie de canto me ocasiona.

Respeito as oralidades. Eu escrevo o rumor das palavras.

Não sou sandeu de gramáticas. Só sei o nada aumentado.

Manoel de Barros

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a meus pais, Mires (in memoriam) e Noeni, que

representam para mim a materialidade de todo um esforço e luta históricos de

sobrevivência e resistência frente às determinações econômico-sociais capitalistas

em suas diferentes formas de exploração e manutenção das desigualdades sociais.

Sua luta foi, e é, o que me moveu, e move, para que eu chegue até aqui e não decline

de seguir em frente. Dedico também a meus familiares, em especial a meus filhos

Gabriel (meu alter ego! rs), Tainah (por extensão ao Guilherme e o Henriquinho) e

Bruno (nosso engenheiro!), que, além de sempre me inspirarem e significarem o novo

para mim, sempre incentivaram o pai em sua busca extemporânea. Da mesma forma

a meus irmãos Janaina e Emerson, em especial a ela, que sempre vibra (e chora)

com minhas conquistas. A meus sobrinhos, Gigi, Paulinho e Malu. A meus poucos

amigo/as e companheiro/as Daniela Morillos (companheira de muitas lutas), Luciane

Vegners (por me mostrar novos rumos), Gisele Falcari (meu segundo alter ego!) e

Eduardo Oliveira (o Edu, o chato! rs) pelo companheirismo sincero e o brilhantismo

no olhar e nas contribuições diretas e indiretas sobre o viver e sobre as críticas sempre

bem-vindas a meu trabalho. Aos colegas da Secretaria Acadêmica do IEL, pela

dedicação, honestidade, educação e presteza nas orientações burocráticas várias,

em especial ao colega Cláudio, pelos diversos e-mails pontual e prontamente

respondidos. A todos os colegas de academia que, certamente, contribuíram

imensamente para a formulação deste trabalho. Dedico este trabalho especialmente

a meu orientador, prof. Eduardo Guimarães, pelo brilhantismo notório do olhar e pela

paciência em ensinar, corrigir cada trecho deste trabalho como se a seu próprio, acima

de tudo, um exemplo de humildade dada sua grandeza e importância para todos os

colegas dessa militância que é atuar com semântica no Brasil. Minha dedicação se

estende também especialmente a prof.ª Débora Massmann, membro titular de minha

banca e que com todo carinho e competência, desde o início, na qualificação,

incentivou-me a seguir nesse caminho analítico-crítico do direito; e também ao prof.

Emílio, meu mestre em abstrações! Emílio é daqueles mestres a quem chamamos de

um bon vivant. Também a prof.ª Claudia Freitas e Ana Cláudia pela disposição em

contribuir. Enfim, a todos e todas que, direta ou indiretamente, contribuíram para

minha formação acadêmica. Salve Nietzsche, Marx e Engels!

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RESUMO

O princípio do controle jurisdicional de constitucionalidade é o sistema pelo qual o ordenamento jurídico visa conservar a soberania da Carta Magna, pela ascendência de suas regras e costumes e pela verificação da compatibilidade vertical das normas infraconstitucionais em relação a ela. Este trabalho procurou analisar semântico- enunciativamente, de forma comparada, os textos jurídicos Constituição Federal do Brasil de 1988 e Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14), tomando-os enquanto acontecimentos de enunciação. Dessa forma, procurou demonstrar, pelo “primado da diferença” de viés enunciativo, que a relação entre esses dois textos não se dá como uma conformação, mas sim como uma diferença, o que faz da tentativa de controle constitucional, na verdade, um controle de sentidos, o que afeta todo o sistema hermenêutico-jurídico. A questão do sentido é, portanto, tratada dentro dos domínios da semântica do acontecimento e, por isso, entendida como relativa ao estudo das relações de integração tanto entre os elementos e seus respectivos enunciados quanto entre estes e o texto de que fazem parte, determinados por modos de significar específicos da temporalidade própria do acontecimento de enunciação. Nessa perspectiva, a análise metodológica do presente trabalho foi realizada através de procedimentos que consideram os enunciados recortados como núcleos desses corpora, sendo (a análise) realizada por recortes em trabalhos de sondagem orientados pelo funcionamento da língua, principalmente em dois modos de relação fundamentais: o de articulação e o de reescrituração.

PALAVRAS-CHAVE: Semântica; Controle de constitucionalidade; Significação; Sentido; Direito-Linguagem.

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ABSTRACT

The principle of jurisdictional control over constitutionality is the system by which the legal system seeks to preserve the sovereignty of the Constitution by ascending its rules and customs and verifying the vertical compatibility of infra-constitutional norms in relation to it. This paper sought to analyze semantically and enunciatively, comparatively, the legal texts Federal Constitution of Brazil of 1988 and The Brazilian Civil Rights Framework for the Internet (Federal Law 12.965/14), taking them as events of enunciation. Thus, it sought to demonstrate, by the "primacy of difference" of enunciative bias, that the relationship between these two texts does not occur as a conformation, but rather as a difference, which makes the attempt at constitutional control in the indeed, a sense control , which affects the entire hermeneutic-legal system. The question of meaning is, therefore, dealt with within the semantic domains of the event and, therefore, understood as related to the study of the integration relations between the elements and their respective utterances as well as between them and the text of which they are part. by ways of meaning specific to the temporality proper to the event of enunciation. From this perspective, the methodological analysis of the present work was performed through procedures that consider the cut-off statements as nuclei of these corpora (the analysis) operated by cuttings in sounding- oriented probing works, mainly in two modes of relationship fundamental: articulation and rewriting.

KEYWORDS: Semantics; Constitutionality Control; Meaning; Sense; Law-Language.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CF/88 – Constituição Federativa do Brasil de 1988

MCI – Marco Civil da Internet

FNS – Formação Nominal Sujeito

FN – Formação Nominal

FP – Formação predicativa

GN – Grupo Nominal

CLG – Cours de linguistique générale

EC – Emenda Constitucional

ADin – Ação Direta de Inconstitucionalidade

L – Locutor

LT – Locutário

al-x – alocutor-x

at-x – alocutário-x

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 11

2. A SEMÂNTICA DO ACONTECIMENTO: UMA BREVE INTRODUÇÃO................... 18

2.1. A natureza científica da linguística ..................................................................................... 18

2.2. Bases para uma análise semântico-enunciativa das leis ............................................ 22

2.3. O Texto como acontecimento de enunciação ................................................................. 23

3. RELAÇÕES ENTRE SEMÂNTICA E DIREITO ................................................................ 27

3.1. A Natureza ontológica do direito ......................................................................................... 27

3.1.1. O direito como uma téchne .............................................................................................. 39

3.2. Controle jurisdicional de constitucionalidade: o acontecimento como conformação .......................................................................................................................................................45

3.2.1. O modus de interpretar do ordenamento jurídico ..................................................... 46

3.2.2. O controle como paradigma interpretativo .................................................................. 61

3.3. Marco Civil da Internet e Constituição Federal como acontecimentos enunciativos .......................................................................................................................................................67

3.4. Configurações da cena enunciativa e espaço de enunciação jurídicos ................. 74

3.4.1. O político e a enunciação no Marco Civil da Internet e na Constituição Federal do Brasil de 1988 ............................................................................................................................. 76

3.5. Agenciamento da enunciação no acontecimento jurídico ........................................... 79

3.5.1. Análise do acontecimento produzido pelo dizer jurídico em cenas enunciativas ..................................................................................................................................................81

4. ANÁLISE SEMÂNTICO-ENUNCIATIVA DA LEI 12.965/14 E DA CONSTITUÇÃO FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 ......................................................................................... 86

4.1. Apresentação do objeto e do procedimento de análise ............................................... 86

4.2. Análise do preâmbulo da lei 12.965/14 ............................................................................. 88

4.4. Análise com base nas reescriturações enumerativas do texto da lei ...................... 99

4.5. O artigo 19 da lei 12.965/14 na perspectiva dos modos de relação da articulação e da reescrituração ....................................................................................................................... 114

4.6. O artigo 9º e o enunciado-título da FN neutralidade da rede ................................... 125

4.7. Análise do preâmbulo da Constituição Federativa do Brasil de 1988 ................... 134

4.8. Análise comparada dos acontecimentos CF/88 e Lei 12.965/14: relação por conformação e por diferença ..................................................................................................... 141

5. CONCLUSÕES ......................................................................................................................... 147

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................ 152

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1. INTRODUÇÃO

A “necessidade” de regulação da ordem social é tema que atravessa

séculos. Isto porque, como não se sabe se é a necessidade que cria a situação ou é

a situação que cria a necessidade, as relações sociais foram, desde os meados do

século passado, impactadas pelas diversas demandas advindas das mais diversas

formas de transformações nos mais diferentes usos tecnológicos. A internet passou

de espaço virtual das mais diversas formas de “liquidez humana” a espaço de relações

tão judiciáveis quanto os espaços não virtuais.

No Brasil, país que ocupa há tempo o topo de ranking de acesso à rede

mundial, os denominados espaços virtuais foram efetivamente judicializados

(judicialização de espaços virtuais) quando a “forma de ocupação” de seus usuários

começou a atingir espaços alheios e culminar em demandas por direito e deveres. Por

outro lado, houve a necessidade da criação de um Marco Civil que regulasse tais

relações, o qual trouxe consigo demandas que vão além do direito.

Esse pano de fundo enseja outras relações, como dito, para além daquelas

imediatizadas por uma relação lógica materializada pela forma ação-reação, uma vez

que traz à baila discussões de ordem não apenas jurídicas, econômicas e políticas,

mas também linguísticas, no caso em particular, semânticas. Isto porque não se trata

de relações meramente empíricas, adstritas ao campo de uma “prática” virtual, mas,

antes, de relações simbólicas de classes definidas na língua, em cuja materialidade

encontram-se dispostas as diferentes “facetas” do real. No cerne destas relações,

também estão a semântica e o direito, enquanto objeto da ciência jurídica.

Não é de hoje que os diferentes campos da linguística se inclinam para o

estudo analítico das mais diferentes áreas do saber. No entanto, quando buscamos

estudos mais específicos, como o das relações entre uma ciência da linguagem e uma

ciência jurídica, apesar de parecerem acessíveis e óbvias, demandam esforços

maiores que o esperado. Principalmente se o trato primar pelas especificidades, tanto

da linguística quanto da ciência jurídica. Esta aproximação nos conduz

obrigatoriamente a duas consequências: de um lado, a perguntar que lugar ocupa o

Direito nesses entremeios; de outro, a uma espécie de “ajuste epistemológico”

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(admitindo a dificuldade do proposto) para a definição dos “papéis” e lugares que estas

disciplinas, ou estes diferentes domínios do saber, ocupam nesta pesquisa.

Há vários motivos para se tentar explicar essa dificuldade, mas o que

aparece de sobressalto é o fato de que esses domínios de conhecimento são

fundamental e historicamente distintos num aspecto, o epistemológico. No lado

linguístico, por uma epistemologia que, desde Saussure1, encontra-se fundada numa

forma de conhecimento baseada na constituição de um objeto específico para a

linguística, a língua. Isto em Saussure, que abre um novo caminho na história dos

estudos da linguagem, com a produção de procedimentos específicos de análise. Com

ele, exatamente na caracterização da linguística, esta é colocada como ligada à

semiologia, ou seja, o estudo da linguagem é um estudo da significação, em última

instância. Saussure constitui isso a partir de um conceito como o de signo,

caracterizado por uma relação arbitrária entre seus elementos, o que se articula com

a noção de valor do signo e de seus elementos, colocando a questão da significação

como algo do plano das relações de linguagem.

No lado da ciência jurídica, observamos uma espécie de epistemologia que,

a partir da relação sujeito-objeto, trata o conhecimento como produto de uma

“transferência de propriedades” do objeto para o sujeito, para quem a coisa conhecida

é parte integrante de um sujeito cognoscente. Com base nestes termos, dizemos: a

ciência jurídica se apresenta como uma ciência social inexata de paradigma

metafísico-jurídico, dada a dinamicidade de seu objeto, o direito. Além disso, como

veremos, o princípio dessa ciência é o de sustentar verdades. Vamos desenvolver um

pouco mais este aspecto.

Ao tratar das tarefas atinentes à teoria geral do direito, Pachukanis (1988)

mostra como os conceitos ligados a qualquer domínio do direito são eminentemente

abstratos. Para o autor, as categorias jurídicas abstratas e fundamentais do direito

positivo não dependem do conteúdo concreto das normas jurídicas, de caráter

espontâneo das relações jurídicas e das normas, isto porque tais categorias

conservam sua significação mesmo diante das alterações ocorridas no conteúdo

material concreto do direito. Assim, para os neokantianos, as categorias jurídicas

1 Ferdinand de Saussure.

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fundamentais representam uma realidade situada acima da experiência, de modo que,

o sujeito e o objeto das relações jurídicas, por exemplo, representam o a priori da

experiência jurídica, quer dizer, categorias independentes do sujeito e do objeto desta

ciência. Assim, a relação jurídica é a condição indispensável e única da ciência

jurídica. Não há, pois, ciência sem relação jurídica.

Desse modo, para um neokantiano, “a ideia do direito” não precede a

experiência, mas sim, após a experiência “prática”, o direito enquanto abstração.

Deve, pois, uma teoria científica do direito ocupar-se dessas abstrações? Para alguns

autores, há uma clara distinção entre uma jurisprudência dogmática e uma disciplina

prática, em certo sentido técnica (PACHUKANIS, 1988). O autor cita Karner para dizer:

“onde acaba a jurisprudência aí começa a ciência do direito” (PACHUKANIS, 1988, p.

17). Seria a jurisprudência capaz de evoluir para uma teoria geral do direito?

Segundo o direito neokantiano burguês, há duas categorias opostas para

responder esta pergunta, a do Ser e a do Dever-Ser, que se traduzem enquanto duas

espécies de pontos de vista científicos: o explicativo e o normativo. O primeiro encara

os objetos sob o aspecto do seu comportamento empírico; o segundo considera os

objetos sob o aspecto das regras precisas exprimidas através deles. Ainda, segundo

Pachukanis (1988, p. 21), autores marxistas, em regra, quando tratam de conceitos

jurídicos, pensam “no conteúdo concreto da regulamentação jurídica adaptada a uma

determinada época (...) naquilo que os homens consideram como sendo o direito

nesse estágio da evolução.”

Pachukanis (1988) trata, portanto, do conceito de direito exclusivamente

em termos de conteúdo, sem nada a expor sobre a forma jurídica, não obstante

considere que a teoria marxista deve, além de examinar o conteúdo material da

regulamentação jurídica na história, dar uma explicação materialista dessa

regulamentação.

Numa direção relativamente diferente, Althusser (1999) retoma Marx e

Engels e apresenta três características apontadas por estes autores relativas ao

Direito. É de se notar que, quando da apresentação desses conceitos, o autor não faz

referência ao direito como uma “ciência do direito” ou “ciência jurídica”, uma não

referência que, segundo o que podemos depreender do texto, está ligada justamente

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ao sentido dessas categorias do direito, que são: 1. A sistematicidade do direito; 2. A

formalidade do direito; e 3. A repressividade do direito.

O sentido de sistematicidade e formalidade estão ligados de tal forma que

aquela é apresentada como correlata desta. Assim, a sistematicidade do direito (dada

como uma impossibilidade de contradição entre as regras que o constituem) e sua

formalidade (dada enquanto uma formalidade personal, isto é, definida por atos

formais que dizem respeito a pessoas jurídicas formalmente livres e iguais perante o

direito, e não por uma formalidade moral) constituem o que Althusser (1999) chama

de universalidade formal: o direito é válido para – e pode ser invocado por – toda

pessoa juridicamente definida e reconhecida como pessoa jurídica (isso tem estreita

relação com o modo de divisão do real). Isso (quero dizer: essa não cientificidade do

direito) está mais claro na definição que o autor (p.83) atribui ao direito: “(é) um

sistema de regras codificadas (Código Civil, Código Penal etc.) que são aplicadas, isto

é, respeitadas e contornadas na prática cotidiana.”

O direito operaria, assim, por uma sistematicidade (dinâmica) que lhe é

própria, constitutiva, que é “contornada” pela prática social. Este sentido o aproxima

mais da língua e menos da linguística. Com isso, queremos dizer que, assim como a

língua (com sua sistematicidade e dinâmica próprias!) configura-se enquanto objeto

da linguística (dados o sujeito e a história), poderíamos dizer, então, que o direito

configura-se como objeto de “uma” ciência jurídica (dados o sujeito e a história).

Com base nestes elementos, além dos que serão doravante apresentados,

é que argumentamos no sentido de uma não cientificidade do Direito. Por isso,

distinguimos, como o fazem alguns juristas, “direito” de “ciência do direito’ (termo que

não usei em meu trabalho) ou “ciência jurídica”. O direito é, assim, uma téchne, em

termos aristotélicos.

Neste trabalho, propomos a análise semântico-enunciativa de uma relação

dada em termos de linguagem muito específica entre dois textos jurídicos de grande

importância para sociedade hodierna: o texto da “Constituição da República

Federativa do Brasil de 1988” e o do “Marco Civil da Internet de” (Lei 12.965 de 2014),

cuja escolha orientou-se pelo que representa a Constituição para o ordenamento

jurídico, enquanto um fato social implicado historicamente pelo processo de

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redemocratização brasileiro e, no lado do Marco Civil, por sua indiscutível

materialidade, representativa que é de uma inflexão nos modos de relação social na

ordem transnacional, dada uma divisão internacional de diferentes fatores sociais.

Para tanto, apresentamos, a partir da semântica do acontecimento, de orientação

enunciativa e materialista, um estudo comparativo desses textos, a partir de uma

análise que seja capaz não só de demonstrar suas possíveis diferenças, como

também, e na medida do possível, apontar os possíveis desdobramentos sociais

decorrentes dessas diferenças.

A plausibilidade dessa análise assenta-se no fato de que, como

procuramos demonstrar desde o início, no capítulo 1, a teoria semântica de que

partimos possui particularidades que apresentam elementos capazes de demonstrar

e discutir os pressupostos presentes em outra ciência, seja por questionamentos, seja

por propostas de um novo olhar sobre determinados objetos. Para tanto,

apresentamos a semântica do acontecimento como “ferramenta” para uma possível

discussão relativa a algumas particularidades do direito, da ciência jurídica e do

ordenamento jurídico como um todo.

O capítulo 2, por sua vez, procura aprofundar uma discussão sobre a

natureza das ciências trazidas à baila pela análise. Assim, o conhecimento da

natureza da ciência jurídica e da ciência linguística tornam-se elementos fundamentais

para entender a comparação proposta no trabalho. No cômputo dessa

relação/discussão está o papel do direito que, como objeto da ciência jurídica, exerce

uma função fundamental para se entender como o discurso jurídico atravessa esse

modo de fazer jurídico (téchne) em sua relação com o lugar que produz conhecimento

para este fazer, a ciência jurídica. A questão é: como o sentido é tratado pela ciência

jurídica, consequentemente, pelo direito?

Ainda neste capítulo, que é elaborado com vistas à comparação entre

semântica e ciência jurídica, pensada a partir de sua disciplina prática, o direito,

discutimos que relações são possíveis se pensar a partir da comparação entre a Lei

12.965/14 (Marco Civil da Internet2) e a Constituição da República Federativa do Brasil

2 Esta expressão será doravante e eventualmente abreviada por MCI/14

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de 19883. Isso para pensar a relação entre os textos infraconstitucionais e o

constitucional, isto é, como o sentido é pensado e operado dada uma relação entre

estes textos pautada no princípio do controle jurisdicional de constitucionalidade? Que

bases teria a teoria da constitucionalidade para afirmar que é possível tratar o sentido

da norma infraconstitucional como identificado, conformado ao texto constitucional?

O campo ou seção destinado a guardar a aplicação propriamente dita do

procedimento analítico da teoria semântico-enunciativa, no capítulo 3 deste trabalho,

destinou-se, por meio de suas ferramentas de análise, a apresentar, por meio de

sondagens seguidas de recortes dos textos jurídicos comparados, como se dá o

funcionamento dos diversos mecanismos por meio dos quais a significação e o sentido

são trabalhados em uma semântica enunciativa. Por isso, a análise investigou quais

as relações e inferências não previstas pela Teoria do Direito em seu rol de

procedimentos interpretativos e, a partir do método comparativo, procurou demonstrar

e questionar os princípios da constitucionalidade das leis. Assim, a análise, a título de

exemplo, dos artigos 2º, 3º, 9º e 19 do Marco Civil e do artigo 5º da CF/88 (dos direitos

sociais), além da análise do preâmbulo de ambas as leis, conduziram a investigação

para as primeiras respostas às indagações feitas, no início, em relação ao objeto de

pesquisa.

Este caminho permitiu algumas inferências, entre elas, algumas que deram

conta de como o sentido pretendido pelo controle de constitucionalidade deve ser

discutido se considerados outros domínios de conhecimento, neste caso, o caminho

oferecido pela semântica do acontecimento. Por isso, em termos de significação, resta

discutir se a passagem de um texto a outro se dá por uma conformação, o que

confirmaria os preceitos do controle jurisdicional, ou se tal passagem se dá por uma

diferença, o que, no limite, permitiria colocar o conceito de controle de

constitucionalidade “em suspenso”, do ponto de vista da análise.

Isto posto, espera-se que a presente pesquisa tenha condições de

expressar e demonstrar os liames existentes entre a linguagem jurídica, afinal direito

é essencialmente linguagem, e o social e, nessa medida, demonstrar também que a

semântica enunciativa, enquanto disciplina linguística e social, seja capaz de abrir

3 Esta expressão será doravante e eventualmente abreviada por CF/88

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caminhos para uma reflexão prática em direção às práticas sociais, isto é, em direção

às ideologias que funcionam e movimentam as instituições sociais em geral. Segundo

Streck (2000, p.29), “é no quadro da matriz hermenêutico-linguística que então terá

que ser compreendida a condição essencial do direito na sua relação com a

sociedade.” A hermenêutica jurídica refere e designa um mundo prático, material,

ideológico, e é nesse quadro que deve atuar a Semântica Enunciativa oferecendo

alternativas à sociedade.

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2. A SEMÂNTICA DO ACONTECIMENTO: UMA BREVE INTRODUÇÃO

2.1. A natureza científica da linguística

Em princípio, não há razão, nem necessidade, para que a linguística se

preocupe em defender seu status científico, ainda que diante da inquestionabilidade

do status de outras disciplinas como a física, a biologia ou a química (LYONS, 1981)

e do fato de que tenha, desde Saussure, um objeto definido. Outro fato é que, em

relação a este objeto, a ciência linguística percorreu caminhos “naturais” de uma

ciência, seja em relação às insatisfações próprias de uma ciência (veja-se o caso dos

estudos semânticos), seja em relação ao que Vogt (1977) chama de divisão do

universo fenomenológico (língua/fala) operado por linguistas teóricos ao longo dos

anos, que redundou em inflamadas discussões a respeito das conhecidas dicotomias

funcionais, que levaram, por si mesmas, a disparidades de opinião em torno da

natureza do objeto linguístico.

O uso que faço da expressão natureza científica no título deste capítulo não

é empregado enquanto uma defesa do caráter científico da Linguística, inclinação

praticamente “desnecessária” em nossos dias, mas como um modo de tratar da

especificidade de sua natureza, o que a diferencia de outras ciências. Não obstante

isso, para fins de esclarecimento e de contextualização, proponho, de início, uma

breve reflexão histórico-conceitual de sua cientificidade para, em seguida, tratar dos

aspectos mais específicos de sua natureza.

O primeiro capítulo do Cours de linguistique générale (CLG), obra póstuma

do mestre genebrino Ferdinand de Saussure, organizada por seus alunos Charles

Bally e Albert Sechehaye, já em seu primeiro parágrafo, trata a palavra ciência,

acompanhada da palavra objeto, o que reflete, de saída, a preocupação de Saussure

em apresentar uma profunda reflexão sobre a importância e preocupação em se

apresentar um objeto e um método em uma ciência humana. Tal uso correspondia,

segundo Bouquet (2004), entre outras coisas, a uma das preocupações do autor com

a cientificidade da linguística, a qual refletia um movimento europeu, à época, de

positivação dos objetos de estudos humanos, que permeou o período compreendido

entre os séculos XIX e XX.

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Com efeito, não há razão, atualmente, para se construir um conjunto de

argumentos no sentido de defender o status científico da linguística. Porém, muito há

que se falar a respeito da natureza desse estudo científico da linguagem, dada sua

importância e abrangência no cômputo das ciências naturais, além de sua

repercussão nos estudos relativos a outros campos da ciência.

Parece lugar comum entre linguistas o fato de que, mesmo tendo percorrido

caminhos anteriores e posteriores a Saussure, a ciência linguística tem em seu

estudo, especificamente no Cours (pensado aqui com breve apriorismo) o epicentro e

o ponto de partida para o entendimento de sua natureza, a de uma linguística

propriamente dita. E, se eventualmente pensarmos em alguma forma de

estruturalismo ligado à linguística, entenderemos por estruturalismo, alinhado à

Hjelmslev (1991), uma posição científica que estuda a linguagem/língua, cuja

essência é a de uma entidade autônoma de dependências internas, isto é, uma

estrutura.

Por outro lado, evocar Saussure aqui implica apontar, como o fez Vogt

(1977) ao tratar do conceito de intervalo semântico, tanto riquezas quanto as

limitações no desenvolvimento de uma das principais disciplinas da linguística, a

semântica. Ocorre que, ao postular seu status de ciência, a linguística tem de assumir

a divisão de seu universo fenomenológico, operada por seu universo teórico. Dessa

divisão, nascem dicotomias funcionais, tais como sincronia/diacronia,

sentido/significação, enunciado/enunciação e, com destaque, a dicotomia língua/fala.

É justamente a partir desse corte, operado na definição da linguística como ciência,

que surge o mote de que seu objeto é a língua, e não a fala, a competência e não a

performance (VOGT, 1977). Para o autor, a distinção língua/fala recobriu,

historicamente, a fala como sendo o termo negativo, o que abriu espaço para que

outras ciências, e não a linguística, tentassem explicá-la.

De volta a Saussure, sabe-se que é considerado o fundador da linguística

moderna e, ainda que o estruturalismo não tenha sua origem nesse autor, Lyons

(1990, p.11) nos mostra que sua importância consiste em formular bases

fundamentais para a cientificidade linguística:

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[...] as bases de sua cientificamente tese estruturalista são que uma língua é uma estrutura relacional única, ou sistema, e as unidades que identificamos ou postulamos como construções teóricas, ao analisar a frase de uma língua particular (sons, palavras, significados, etc.), derivam tanto a sua essência como a sua existência das suas relações com outras unidades do mesmo sistema linguístico.

Segundo Paul Henry (1992, p. 14), a questão de Frege sobre a

pressuposição em torno da ciência ou ilusão na linguagem ordinária, ainda que não

mais aceitável hoje, permanece. Isto porque

“a consolidação das posições materialistas em epistemologia e em história das ciências transforma os pontos de vista sobre o que Frege chamava ciência (e ilusão); a começar pelo que concerne à própria linguística e à característica de seu objeto”

Dessa forma, para autores como Henry, Pêcheux e Gadet, a cientificidade

não é colocada em termos estruturais, mas em termos materiais, isto é, enquanto uma

materialidade de língua. Tanto que Gadet e Pêcheux (2004) afirmam que o objeto da

linguística é o “real da língua”. Segundo estes dois autores, “a linguística não poderia

se reduzir a uma concepção de mundo. Ela comporta intrinsecamente uma prática

teórica que toma a língua como objeto próprio”, isto é, o objeto é este real da língua,

mais precisamente, de uma prática linguística que trabalhe a relação da materialidade

da língua com a materialidade da história.

Conforme Lyons (1982, p. 48), “o empirismo é muito mais do que a adoção

de métodos empíricos de verificação e confirmação”, sua natureza remete-se ao fato

de que o conhecimento provém da experiência, especificamente de dados da

percepção e dos sentidos, indo de encontro ao racionalismo, para quem a mente

interpreta os dados da experiência. Segundo Hjelmslev (1991, p. 33), “o método

‘cientificamente legítimo’ se resume, em última análise, ao método empiricamente

adequado”.

Nesse campo, eleva-se em importância os questionamentos trazidos por

Milner (2012, p. 9) ainda no prefácio de sua obra:

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[...] por um lado, porque eu sequer acreditava na epistemologia: se Koyré e Lacan têm razão, e a ciência, desde Galileu, é apenas um campo característico para a observação, em função da combinação de dois caracteres – constituição de uma escrita matematizável e validação de toda técnica eficaz -, então a questão epistemológica fundamental “tal conjunto de proposições é uma ciência?” revela-se não tendo como ser mais frívola; basta esclarecer se essas proposições pertencem ao campo da ciência, isto é, se apresentam as características requeridas. [...] Isso porque, se é preciso que o marxismo seja ciência, vemos justamente que a ciência não teria como ser definida modernamente: onde está a escrita do marxismo, onde está a técnica que ele validaria?

Isso posto, caberá aos linguistas questionarem-se quando da “imposição”

da nomenclatura “ciência”, em nome de um cientificismo nomenclatural e vazio, contra

a objetividade da pesquisa em uma área que tem mais a mostrar enquanto área com

um objeto bem definido. Os questionamentos de Milner (2012) levam exatamente a

esse tipo reflexão, justamente porque “nós”, linguistas, podemos correr o risco de, em

nome da ciência, esquecermos o que há de mais fascinante na linguagem: o objeto

indicado, desde Saussure, até os dias atuais.

Não pode, nem deve, o status científico tomar conta da dinâmica imanente

do objeto científico da linguística. Ou seja, independentemente de classificações, a

linguística não perderá seu status, qual seja, o de tratar a linguagem como nenhuma

outra ciência o faz. Segundo Pêcheux (1988, p. 172), “a história da produção dos

conhecimentos não está acima ou separada da história da luta de classes”. Para o

autor, que postula contra um cientificismo de cunho idealista, “a produção histórica de

um conhecimento científico dado [deve ser pensada] como o efeito (e a parte) de um

processo histórico determinado, em última instância, pela própria produção

econômica”.

Para o autor francês, não há que se falar em uma formulação do

conhecimento científico alijada da história, por isso, ao se romper a epistemologia e

se reconhecer a forma-sujeito do discurso, chega-se a uma conclusão importante no

discurso: não há “discurso científico” puro.

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2.2. Bases para uma análise semântico-enunciativa das leis

Em O aparelho formal da Enunciação4, Émile Benveniste (1974) postula

logo de saída, em sua tese sobre a linguagem, que a enunciação ocorre no

funcionamento da língua, diferente do que ocorre no modo e nas condições de

funcionamento de emprego das formas. Desse modo, a enunciação, segundo o

linguista francês, caracterizar-se-ia por “este colocar em funcionamento a língua por

um ato individual de utilização” (Ibidem, p. 82), isto é, ela é “o evento do aparecimento

de um enunciado” (GUIMARÃES, 2002). A questão que se coloca, contudo, é a

que/quem este funcionamento está reportado, se a um locutor, se a uma centralidade

do sujeito ou a qualquer outra rubrica. Nas últimas décadas, esta questão é colocada,

muito particularmente, por uma abordagem teórico-metodológica denominada

Semântica do Acontecimento (GUIMARÃES, 2002).

Assim colocada, a questão fundamental relativa ao objeto da ciência

linguística passará a girar em torno então de uma órbita que incidirá, e implicará,

segundo o que assevera Guimarães (2002), diretamente naquilo que se define por

língua e sujeito. De modo que o que se coloca pelo viés de uma semântica do

acontecimento é a possibilidade de um funcionamento enunciativo da língua não

operado por um locutor ou por uma centralidade no sujeito, a partir do que fora

colocado por Ducrot (1984) em sua teoria da polifonia da enunciação. Posto dessa

forma, o acontecimento, ainda que um acontecimento de/na língua, não é operado por

um sujeito em direção à língua, como um fazer histórico, e sim como um sujeito

constituído (historicamente) por um funcionamento cuja essência encontra-se na

reprodução de sua própria constituição como sujeito (GUIMARÃES, 2002). Assim, o

acontecimento, que é caracterizado como o que faz diferença na sua própria ordem,

constitui-se enquanto espaço de enunciação, o qual se constitui pelo funcionamento

da língua/línguas, funcionamento este que agencia falantes a dizer, os quais são

definidos enquanto figuras denominadas lugares de enunciação (GUIMARÃES,

2018).

4 O texto faz parte da obra Problemas de Linguística Geral vol. 2, do mesmo autor, em seu capítulo 5, edição de 1989.

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Outro ponto importante aqui é o fato de que, em não havendo um contexto

que induza este ou aquele acontecimento, ou que interfira em seu

funcionamento/processo, deduz-se que há um acontecimento que, de fora, põe a

língua em funcionamento, em virtude de sua relação como o que Guimarães (2018)

chama de falante. Nenhuma dessas postulações seria possível sem um olhar atento

sobre a história da constituição da semântica, no final do século XIX, como disciplina

das significações.

A análise linguística da qual parto neste trabalho tem suas bases

principalmente nos trabalhos de Emile Benveniste (1989) como vimos, e de Michel

Bréal (2008). Além desses autores, importa observar inclusive, ao longo deste texto,

que contribuições há no trabalho de Oswald Ducrot (1972), principalmente no que diz

respeito à sua concepção de língua e de atos de fala, especificamente nas interfaces

que estabelece com a corrente pragmática e com a saussureana.

De início, sabe-se que, e isso se mostrou ao longo dos anos seguintes ao

final do século XIX, noções como sentido, referência e significação, entre outras

igualmente fundamentais à linguagem, fazem parte de um conjunto complexo de

conceitos pertencentes principalmente à semântica, mas que, por razões diversas,

não deve nem se limita a textos específicos, isso inclui, portanto, os textos jurídicos

como textos fundamentalmente importantes sobre os quais deve inclinar a análise

semântica.

2.3. O Texto como acontecimento de enunciação

As reflexões sobre o sentido nas línguas e na linguagem, do ponto de vista

enunciativo, colocam no epicentro dessa discussão a relação falante(s) e língua(s).

No percurso dessa busca, aparece o texto como modo fundamental de construção da

abordagem teórico-metodológica denominada Semântica do Acontecimento, tal como

apresentada brevemente acima.

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Conforme demonstrado em sua obra intitulada Texto e Argumentação,

texto de 1987, Guimarães (2001) trata da “centralidade do texto” na reflexão que faz

do fato de linguagem que os Estudos da Enunciação, com Oswald Ducrot e J. C

Anscombre, introduziram como questão para a Linguística, conforme apontado por

Oliveira (2012). Em rápidas palavras, ocupar-nos-emos aqui em demonstrar como o

texto, enquanto unidade complexa em relação de integração com seus enunciados,

pode ser considerado um acontecimento de enunciação.

Um dos pontos importantes nos estudos enunciativos é a noção de

argumentação, que não é tratada segundo uma relação entre enunciados, mas a partir

da organização textual dada pela enunciação. Por uma questão de escolha

metodológica, ainda que não nos utilizemos da argumentação, a análise partirá do

texto considerado enquanto acontecimento de enunciação em cujo interior os sentidos

são determinados por diferentes modos de relação. Portanto, essa teoria assenta-se

numa noção de texto segundo a qual duas questões devem ser consideradas: a) de

um lado, deve-se levar em conta que há um acontecimento de leitura; e b) há um

acontecimento de enunciação em que o texto foi enunciado. É em relação a este

segundo fato de linguagem que o presente trabalho eminentemente debruça-se

(GUIMARÃES, 2013).

A posição semanticista assumida aqui trata de colocar uma especificidade

importante: a noção de texto não é, nem deve ser entendida ou reduzida àquilo que

ele simplesmente refere, ou a aspectos meramente formais ou a uma noção de

textualidade local entendida por relações referenciais internas de coerência capazes

de sustentar a posição interpretativa de que um determinado leitor, por sua leitura,

buscaria encontrar algo escondido no texto, uma intenção, uma ideia, uma “moral”.

Por esta posição, a de semanticista, escolhemos certos “aspectos” da linguagem e, a

partir deles, procederemos às análises que se projetam, uma sobre as outras, levando

a uma interpretação sustentada do texto. (GUIMARÃES, 2013).

Ora, se assumimos com Guimarães (2007) o fato de que o sentido de um

enunciado estabelece-se numa relação entre elementos linguísticos e o texto, e

também entre textos, enquanto unidade integrativa de que esses fazem parte, então

podemos igualmente assumir, e afirmar, que o texto, para além de suas peculiaridades

formais “já conhecidas”, é o próprio acontecimento e, além disso, ser capazes, à luz

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da teoria, de responder à pergunta: o que é o acontecimento na perspectiva

semântico-enunciativa?

Guimarães (2002, p. 11) considera que “algo é acontecimento enquanto

diferença na sua própria ordem”. Quer isso dizer que o que caracteriza este

acontecimento de linguagem é a diferença de que não se trata de um fato acontecido

e recortado pelo tempo no qual estaria inserido, mas o fato de que ele (o

acontecimento) é que temporaliza, pela linguagem. Um acontecimento de enunciação

não é, portanto, um fato novo num tempo linear, dado por uma sucessão lógica, linear,

mas um fato de linguagem que funciona enquanto uma diferença que temporaliza na

enunciação de que constitui. “O acontecimento instala sua própria temporalidade:

essa é a sua diferença” (GUIMARÃES, 2005c, p. 11).

Assim, importa salientar que Guimarães (2005c) distancia-se do

posicionamento benvenisteano, segundo o qual o tempo da enunciação constitui-se

pelo locutor ao enunciar. De modo que, para o autor da semântica do acontecimento,

o presente do acontecimento não é o tempo no qual o locutor diz eu, em que se

inaugura uma temporalidade, “fundada” por um sujeito. Este sujeito não é, portanto, a

origem do tempo da linguagem, mas uma figura enunciativa tomada na temporalidade

do acontecimento, na materialidade histórica.

Outro ponto é: como entender a natureza dessa temporalidade inaugurada

pelo acontecimento na enunciação? Ela, a temporalidade, configura-se enquanto um

presente que abre em si uma latência de futuro, que atribui projeção ao

acontecimento, o que seria sua “interpretabilidade”. Há, assim, no dizer, um depois

incontornável e próprio dele, contra o qual não há argumento, contornos ou rearranjos.

Ao definir enunciação, Guimarães (2018, p. 37, grifo nosso) o faz a partir

de uma associação necessária com o conceito de acontecimento. Define-o, então,

enquanto uma instância diferencial de ordem temporal própria, não empírica (não é

um fato em si), ordem esta que lhe atribui o sentido específico de sua ocorrência. Diz

o autor:

Esta definição considera, de um lado, que o acontecimento não pode ser visto como algo empírico, como se acontecimento fosse, simplesmente, o fato de que algo ocorre. Por exemplo, um ônibus colidir com um prédio seria um acontecimento, que poderia ser descrito pelo enunciado um ônibus bateu no

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prédio. A definição de acontecimento aqui considerada, diversamente dessa posição empirista, exige que algo seja relacionado a uma certa ordem que lhe atribui uma significação. Uma batida de um ônibus num prédio pode ser um ato que é parte de um roubo de um banco por uma quadrilha de ladrões, por exemplo, ou um acidente de trânsito. Num caso a colisão do ônibus é parte do acontecimento do roubo, no outro a colisão é um acontecimento no trânsito da cidade. Assim a ordem em que algo é considerado é que lhe dá o sentido de acontecimento específico.

Desse modo, dizemos, com Guimarães (2018), que é justamente o fato de

o acontecimento ser estabelecido a partir de uma diferença em sua própria ordem

(inaugurar seu próprio tempo) que é o que leva a caracterizar a enunciação. Dessa

forma, aquilo que é analisado deve estar circunscrito, dimensionado e, nesta

dimensão, o acontecimento será caracterizado. Aquilo que ocorre é acontecimento na

medida em que é tomado por suas especificidades numa dada história. É nesta

medida que o que ocorre será um acontecimento diferente.

Outro ponto apontado por Guimarães (2018, p. 38) é que o que torna um

acontecimento específico, dado um universo qualquer, isto é, o que dá especificidade

ao que ocorre, é “uma temporalidade de sentidos: um passado, um presente e um

futuro.” Justamente por isso, como dito acima, o acontecimento não está no tempo,

mas na constituição de sua própria temporalidade. Assim, o passado do

acontecimento não é algo anterior, mas o sentido de enunciações passadas; enquanto

que o presente é o próprio da relação de enunciação e seu autor e, por fim, um futuro

de sentidos que o acontecimento projeta.

Apoiados nessas considerações, dizemos que o texto, enquanto integrado

que está por enunciados, é uma unidade complexa não unívoca que se caracteriza

como o próprio acontecimento, objeto de nossa análise. No nosso caso, tomaremos

os textos “Constituição Federal do Brasil” e “Marco Civil da Internet” (Lei 12.965/14)

como acontecimentos, consideradas suas peculiaridades enunciativas e,

posteriormente, comparados segundo os critérios e objetivos da presente análise.

Assim, nos ocuparemos, por hora, em definir, brevemente, cada um desses

acontecimentos/textos, consideradas suas peculiaridades históricas, discursivas e

linguísticas no interior da ciência jurídica e do direito. É imprescindível notar, para a

análise que segue, e para a definição do que seja sentido, partiremos do pressuposto

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teórico de que “enunciar num acontecimento é dizer algo com sentido, que se produz

pela temporalidade própria de cada acontecimento.” (GUIMARÃES, 2018, p. 41).

3. RELAÇÕES ENTRE SEMÂNTICA E DIREITO

3.1. A Natureza ontológica do direito

Nesta seção, não trataremos da questão jurídica como uma epistemologia

jurídica, que tem “a incumbência de estudar os pressupostos, os caracteres do objeto,

o método do saber científico e de verificar suas relações e princípios” (DINIZ, 2014, p.

22). Antes, procuro entender seu caráter científico a partir das possíveis relações que

estabelece com a ciência linguística. Além disso, tratarei de analisar, ainda que

brevemente, na parte final, o ordenamento jurídico do ponto de vista

discursivo/semântico, na medida em que esse enviesamento analítico aproxime-se da

teoria semântica. Importa também frisar, de antemão, a diferença epistemológica

entre direito e ciência jurídica, uma vez que não consideramos o direito como ciência

(epistéme) mas sim como uma arte (techné), no sentido dado pelos gregos, isto é,

como uma “forma de conhecimento prático”, mais especificamente, como se deve

fazer algo. Este aspecto do direito será pormenorizado no capítulo seguinte.

Isso pode ser visto na distinção apresentada e operada por Diniz (2014) em

sua obra. Para a autora, uma introdução à ciência do direito é uma epistemologia

jurídica e, por isso, não deve ser tratada como uma alusão direta ao direito, mas sim

como uma alusão à ciência que trata dos fenômenos jurídicos, não devendo ser

confundida com o direito. Este é concebido pela autora como objeto da ciência jurídica.

Isso põe de início uma tendência que deveremos seguir relativamente a um de nossos

objetos, talvez o principal: trataremos, menos, de ciência jurídica e mais de seu objeto,

o direito, especificamente em seu “espaço funcional” mais próximo: o do ordenamento

jurídico. Por fim, a autora enuncia o seguinte: “quem trata do direito está elaborando

ciência jurídica, mas quem se ocupa com a ciência do direito está fazendo

epistemologia” (DINIZ, 2014, p. 162).

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Reveste-se de interesse observar em que termos, segundo a autora, são

colocados os conceitos de conhecimento, sujeito e objeto. Para ela, conhecer é trazer

para o sujeito algo que se põe diante dele, que é o objeto. Nesse sentido, o

conhecimento é visto como um “conteúdo” e o sujeito um recipiente desse conteúdo,

a partir daquilo, o objeto, que se manifesta diante do sujeito, ponto do qual divergimos

em vários aspectos, como veremos. Primeiramente, porque não tratamos na

semântica enunciativa de um “sujeito do conhecimento”, mas sim de um sujeito da

linguagem; depois, porque o conhecimento não é identificado com um conteúdo, mas

sim pelo reconhecimento, inclusive pela linguística, do primado do ser sobre o

conhecimento (HENRY, 1992), dado na materialidade da língua. Vemos, assim, uma

relativa centralidade no sujeito nessas concepções jurídicas e, além disso, o

conhecimento operado pela transferência das propriedades do objeto em direção ao

sujeito pensante. O objeto, então, “representa” o conhecimento dentro do sujeito: um

conteúdo (DINIZ, 2014).

Com isso, temos uma correlação dada por uma reciprocidade invariável,

na qual o sujeito é dado por cognoscente e o objeto como cognoscível, entre aquele

que conhece e aquilo que é conhecido pelo sujeito, respectivamente. Há aqui uma

noção de passagem de um “eu” a sujeito cognoscente, em relação ao objeto que este

sujeito conhece. Assim, por estes termos, entende-se que este objeto a ser conhecido

não é um “em si”, mas dado a partir da relação que estabelece com o sujeito

conhecedor, isto é, este objeto conhecido é uma imagem e não algo do mundo

extramental. Por isso, o sujeito só é sujeito se identificado na relação com o objeto

apreensível e o objeto somente é objeto quando apreendido pelo sujeito (STRECK,

2000).

Em outro campo, agora o da ciência, a atribuição “científico”, para qualquer

área, é carregada de significado e determinadas implicações, e, no caso do direito,

não é diferente.

Se analisarmos a abertura do tema realizada por Diniz, observaremos

determinadas implicações recorrentes à noção de ciência no campo do direito (DINIZ,

2014, p. 33):

A ciência é, portanto, constituída de um conjunto de enunciados que tem por escopo a transmissão adequada de informações verídicas sobre o que existe,

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existiu ou existirá [...] o conhecimento científico é aquele que procura dar às suas constatações um caráter estritamente descritivo, genérico, comprovado e sistematizado. Constitui um corpo sistemático de enunciados verdadeiros [...] Como não se limita apenas a constatar o que existiu e o que existe, mas também o que existirá, o conhecimento científico possui um manifesto sentido operacional, constituindo um sistema de previsões prováveis e seguras, bem

como de reprodução e inferência nos fenômenos que descreve. (grifo meu)

Vemos que, por essa visão de ciência, o que se apresenta com caráter de

objetividade, na prática, não se realiza como tal. Isso porque termos como “adequada”

e “verídica” têm, em si, conotações peculiares ao Direito. Assim, por essa visão, não

resta à ciência a transmissão de informações, mas também que circulem no interior

desse espectro veritativo, dados os parâmetros de cada área. Daí a ideia de “campo

sistemático de enunciados verdadeiros”. Por fim, o sentido da operacionalidade ligado

ao de inferência encontra-se sustentado no argumento da necessidade de

sistematização do conhecimento, o que dará o tom dos objetivos da natureza da

ciência jurídica.

A ideia de uma sistematização do direito vem de uma outra ideia, a de que

sua natureza não deve ser pensada como um mero “conjunto de normas”, e sim como

um sistema jurídico (FREITAS, 2004), sobre o qual este autor considera necessária

uma reformulação, em termos de significado e extensão, uma vez que seu conteúdo,

justamente por força dessa natureza valorativa, transcende o positivado.

Essa visão abarca em si, entre outros, o tema do textualismo, próprio das

discussões de hermenêutica jurídica, que, de alguma forma dialogam tecnicamente

(em termos de linguagem) com o que se concebe de direito enquanto ciência. Cabe,

então, perscrutar mais de perto esse sentido de sistema atribuído ao direito.

Para o próprio Freitas (2004), o direito positivo não deve ser considerado

um sistema fecha em si mesmo, isto é, à base de definições alheias ao mundo material

e históricos, enquanto, apenas, valores, mas sim como um sistema aberto. O autor

salienta que “como objeto de cognição e de compreensão, o sistema jurídico mostra-

se dialeticamente unitário, aperfeiçoando-se no intérprete (...) o sistema jurídico nem

é, nem pode ser fechado” (p.37), outorgando unidade ao ordenamento jurídico.

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O sentido de sistema, aplicado que está ao ordenamento jurídico, carrega,

“por si mesmo”, uma “inexplicabilidade” suficiente para atribuir-lhe o estigma de ser

obrigatório, conforme a explicação de Freitas (2004, p.38)

[...] a validade do sistema jurídico, ou a sua conformidade com eventuais regras de reconhecimento (Hart), funda-se, em última instância, sobre valores, mostrando-se inegável a concorrência de múltiplos elementos axiológicos em todas as construções jurisprudenciais, justificando-se a multiplicidade como sinal de pluralismo democrático

Para o jurista, o direito deve ser considerado como interativo, pois sua

cognição não comporta rígida dicotomia entre sujeito e objeto. Neste ponto, em que

se inclui o sentido de sistema, vemos emergir a ideia de que o observador não deve

descrever objeto senão pela valoração deste, sem a qual, não pode inserir-se

cognitivamente na história. “(...) a sua materialidade (do direito) determina a forma,

prévia ou supervenientemente. E o sistema não se constrói dotado de estreitos e

definitivos contornos...”5. Isto é, não há, no sistema jurídico, rigidez absoluta entre o

formal e o material.

Ainda que atrelado ao ramo da hermenêutica jurídica, o sistema jurídico é

assim definido por Freitas (p. 54):

[..] uma rede axiológica e hierarquizada topicamente de princípios fundamentais, de normas estritas (ou regras) e de valores jurídicos cuja função é a de, evitando ou superando antinomias em sentido lato, dar cumprimento aos objetivos justificadores do Estado Democrático, assim como se encontram consubstanciados, expressa ou implicitamente, na Constituição.

Por essa definição de sistema, inferimos alguns pontos em que ela se

sustenta e dá a entender. a) uma rede de valores hierarquizados e baseada em regras;

b) um lugar em que se “evita” a contradição; c) o sistema jurídico é finalística e

5 Ibidem p.39

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sistematicamente baseado na Constituição. Com isso, é preciso que as decisões

atinentes a essa área estejam consubstanciadas pelo Estado de Direito.

Para Diniz (2014), o saber científico deve se calcar numa ordem de

“constatações verdadeiras”, o que mostra como o direito pauta-se, do ponto de vista

sistêmico, por uma questão veritativa, chegando a equipará-lo aos elementos da

própria ciência. Compara-o, inclusive, a quesitos como “coerência interna” do

pensamento tipicamente jurídico consigo mesmo, com seu objeto e com operações

ligadas a cognoscibilidade.

Falar em uma ciência jurídica implica o trato de concepções

epistemológico-jurídicas, o que Diniz (2014) o faz ao colocar esta ciência, de modo

particular, como distinta por seu método e objeto. No caso do objeto, por exemplo,

ocorre a necessidade advinda de que toda ciência, em regra, assim como todo

conhecimento, pressupõe um objeto. E qual é o objeto da ciência jurídica?

A resposta dá-se pelo próprio da sistematização dessa ciência, isto é, pelo

que resulta desse processo. Assim, seu objeto é o direito propriamente dito, apesar

dessa opinião não ser um consenso entre juristas. Evidentemente, por conta desse

cisma entre operadores da ciência jurídica, o problema da cientificidade do saber

jurídico como questão epistemológico-jurídica não deve ocupar aqui maior espaço do

que cabe ao objeto deste trabalho, inclusive pelo fato de ser objeto de estudo

específico da filosofia do direito. Mesmo assim, vale ressaltar que esse ponto toca o

tema proposto em vários aspectos, especialmente naquele que nos interessa

diretamente aqui: a fundamentação de um modo particular de se operar em seu

interior um modo particular de designação, nos termos em que colocamos aqui este

termo, como veremos mais adiante.

Em um estudo realizado por Alves (2010 apud LOURENÇO, 2008, p. 77),

já se apontava de modo bastante direto as implicações dessa concepção unívoca

transferida para as concepções de linguagem dentro do campo da ciência jurídica.

Não existe ainda no Brasil uma linha de pesquisa consolidada que faça a relação direito/linguística, ficando as discussões em torno do discurso jurídico, sendo tematizada por e entre linguistas, enquanto que as investigações sobre a linguagem se dão no âmbito da hermenêutica jurídica, que a concebe como unívoca, e, portanto, estática. A interpretação jurídica consagra o logicismo e concebe o silogismo como cânone. Faz-se necessário enxergar a linguagem [no âmbito do direito] sob uma nova perspectiva (...) (grifo meu)

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Pelo exposto, inferimos que a “fronteira” linguística-direito é ainda pouco

discutida em termos integrados. Além disso, a crítica que o autor faz da concepção

majoritariamente unívoca relativa à linguagem dá o tom da discussão em torno de

duas abordagens distintas, a serem notadas. Em outro ponto, agora o do campo

interpretativo do direito, essa fala evoca em si mesma o elemento lógico, ou mais

acentuadamente, logicista, que permeia a interpretação jurídica operada por juristas

e magistrados.

Nesse ponto, Streck (2000) demonstra como a partir do apontamento de

uma crise debelada de paradigma no direito, e na dogmática jurídica, instauradas no

campo de uma hermenêutica jurídica, que o social é frontalmente afetado, sendo esta

crise constitutiva do saber jurídico instrumentalizado pela ideia de que não há direito

senão por uma dogmática, que obstaculiza a prática do estado democrático de direito.

Colocado nos seguintes termos pelo autor (STRECK, 2000, p. 77-78):

É neste contexto – crise do paradigma do Direito e da dogmática jurídica – que devemos permear a discussão acerca dos obstáculos que impedem a realização dos direitos em nossa sociedade. Se é verdade a afirmação de Clève de que a dogmática jurídica é constituinte do saber jurídico instrumental e auxiliar da solução dos conflitos, individuais e coletivos, de interesses e que não há direito sem doutrina e, portanto, sem dogmática (...) À evidência, o Judiciário e as demais instâncias da administração da justiça são atingidos diretamente por essa crise. (...) Quando, porém, surgem questões macrossociais, transindividuais, e que envolvem, por exemplo, a interpretação das ditas “normas programáticas” constitucionais, tais instâncias, mormente o Judiciário, procuram, nas brumas do sentido comum teórico dos juristas, interpretações despistadoras, tornando inócuo/ineficaz o texto constitucional. Isto porque o “discurso-tipo” (Veron) da dogmática jurídica estabelece os limites do sentido e o sentido dos limites do processo hermenêutico.

Por este dizer, entendemos que, em princípio, não há como desvincular,

ainda que se o tente, a ideia de uma dogmática implicada em um modo particular de

interpretação, no próprio do ordenamento jurídico, isto é, histórica e materialmente,

na medida em que o dogma jurídico impõe limites aos sentidos estabelecidos nesse

campo, em seus acontecimentos enunciativos. Neste sentido, há que se falar em

diferentes relações entre o Direito e diversas instituições sociais.

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Segundo Althusser (1999), há relações diretas, por exemplo, entre Direito,

Estado e Ideologia. De tal modo que estas só podem ser explicadas do ponto de vista

da reprodução, de um lado, e da prática e da produção, de outro. O nome Direito

designaria, assim, três categorias: a da personalidade jurídica, ligada à definição dos

indivíduos enquanto pessoas de direito; a da liberdade jurídica, ligada ao usufruto dos

bens e à da igualdade jurídica (no sentido de que todos os indivíduos são dotados de

uma personalidade jurídica determinada). Há para o autor, desse modo, três

características ligadas à definição de Direito: 1. Sistematicidade do Direito; 2.

Formalidade do Direito; e 3. Repressividade do Direito.

O direito assume, para Althusser (1999, p. 84), do ponto de vista de sua

característica sistemática, a forma de um sistema que tende, naturalmente, à não-

contradição e à saturação internas, que seriam, segundo o autor argelino, dois

conceitos "técnicos" a partir dos quais se passaria a pensar a definição de direito, ou

ainda, relativos à sua natureza. Definidos nesses termos por ele:

a. "[o direito] é um sistema de regras [em que] deve reinar entre todas as [as suas] regras uma coerência tal que não seja possível invocar as vantagens de uma regra contra a outra, caso contrário o efeito da primeira regra seria destruído pelo efeito da segunda. É a razão pela qual o direito deve eliminar nele toda forma de contradição (...)”

b. "o direito deve ser saturado, isto é, deve apresentar um sistema de regras

que tendem a abranger todos os casos possíveis apresentados na "realidade", de maneira a evitar ser surpreendido por um "déficit" jurídico de fato, por onde poderiam se introduzir, no próprio Direito, práticas não-jurídicas que viessem a prejudicar a integridade do sistema.

Um pouco mais adiante, Althusser (1999, idem) faz uma crítica direita ao

modo como os juristas relacionam o texto jurídico à “realidade” (colocado entre aspas

pelo autor), e das possíveis implicações desse movimento:

Daí, esse outro aspecto da atividade "admirável" dos juristas que sempre se obstinaram em fazer entrar, simultaneamente, a diferença do "direito consuetudinário" e os desvios da jurisprudência (aplicação das regras existentes aos casos "concretos" que, muitas vezes, as excedem), no próprio Direito

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Neste aspecto da definição, conforme apontado pelo filósofo, observamos

que, ainda que não se configure como uma menção direta ao aspecto semântico, ou

linguístico, da matéria, enquanto sistema que é, o direito tem em sua regra

interpretativa uma das formas práticas de um logicismo que nega a contradição,

“assegurada” (esta regra) que está por uma coerência, igualmente sistêmica, que lhe

assegura uma simetria tal entre as leis (entendidas aqui como regras) que, pela qual,

se garante a integridade do sistema, isso numa posição de que toda interpretação

seria uma inferência, uma dedução.

É justamente o objeto dessa crítica que aqui aparece como que constitutivo

da concepção de controle jurisdicional de constitucionalidade, o qual tem por dever, a

partir do princípio da supremacia da constituição federal, assegurar a supremacia

constitucional e o controle da estrutura infraconstitucional, conforme veremos logo

adiante. Antes de passarmos a este aspecto, o do controle, vejamos brevemente o

conceito de Direito em Louis Althusser.

Althusser (1999) propõe, em Sobre a Reprodução, uma análise

estritamente descritivo-teórica do Direito. Por ela, define-o enquanto um sistema de

regras codificadas aplicadas, isto é, de regras respeitadas e “contornadas” na prática

cotidiana. Considera o Direito Privado como o centro do sistema jurídico a partir do

qual os demais direitos sistematizam e harmonizam suas noções e suas regras. Dessa

forma, o direito privado enuncia regras que regem as trocas mercantis (compra e

venda) as quais repousam, em última instância, no “direito de propriedade”, instância

que se explicita segundo os princípios gerais jurídicos da personalidade jurídica (que

define os indivíduos como pessoas de direito), da liberdade jurídica (que regula o uso

e abuso dos bens-objeto da propriedade) e da igualdade jurídica (todos menos

“alguns”).

O filósofo argelino não trata, portanto, o direito em termos de uma ciência,

mas de uma “prática sistematizada de regras codificadas para condutas “sociais”, a

partir de um código eminentemente privado burguês, isto é, que atende a uma classe,

ainda que pretensamente direcionado ao social” (ALTHUSSER, 1999, p. 88) (Seria

este um dos berços da luta de classes inaugurada pela revolução burguesa pós

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feudal?). Este é o ponto de inflexão em relação à consideração geral burguesa de

direito, ou, mais especificamente, do ordenamento jurídico inaugurado principalmente

pós século XX que vige até nossos dias. A pergunta é: o que essa não caracterização

da cientificidade do direito implica exatamente?

Para o que nos interessa diretamente nesta discussão, isto é, a

cientificidade do direito, exporemos o que Althusser (1999) nos apresenta de Marx e

de Engels (e, marginalmente, de Kant e de Hegel), como autores que argumentaram

com base em três importantes características do direito, ainda em sua época: sua

Sistematicidade (1); sua Formalidade (2); e sua Repressividade (3).

Com base nesses preceitos teóricos, em (1), o direito assume a forma de

um sistema que tende, “naturalmente”, à não-contradição e à saturação internas.

Quanto à primeira, o direito, na medida em que se coloca como um sistema de regras,

opera segundo uma coerência tal entre as regras que não seja possível a invocação

da vantagem de uma sobre a outra, caso contrário o efeito de uma sobre a outra seria

destruidor. Definidas nos seguintes termos pelo autor (ALTHUSSER, 1999, p. 84)

[o direito] é um sistema de regras [em que] deve reinar entre todas as [as suas] regras uma coerência tal que não seja possível invocar as vantagens de uma regra contra a outra, caso contrário o efeito da primeira regra seria destruído pelo efeito da segunda. É a razão pela qual o direito deve eliminar nele toda forma de contradição (...) [...] o direito deve ser saturado, isto é, deve apresentar um sistema de regras que tendem a abranger todos os casos possíveis apresentados na "realidade", de maneira a evitar ser surpreendido por um "déficit" jurídico de fato, por onde poderiam se introduzir, no próprio Direito, práticas não-jurídicas que viessem a prejudicar a integridade do sistema.

Quanto à segunda, o direito deve ser saturado, isto é, deve apresentar um

sistema de regras que tende a abranger todos os casos possíveis apresentados na

“realidade”, como uma correspondência desta, de modo a não ser surpreendido por

um “déficit” jurídico de fato, que venha a prejudicar a sua integridade.

Assim, a atividade de sistematização operada pelo sistema jurídico deve

ser compreendida não só como redução das contradições possíveis entre as regras

do direito existentes, mas também, e sobretudo, como redução das “contradições”

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possíveis entre as regras já definidas no sistema interno do direito e as práticas-limite

parajurídicas da jurisprudência, cujo caráter próprio é reconhecer os “casos” que o

direito ainda não integrou e sistematizou verdadeiramente. Por aí, segundo Althusser

(1999), é que os juristas intentam fazer entrar, simultaneamente, a diferença do direito

consuetudinário (costumes) e os desvios da jurisprudência no próprio direito.

Pelo que se encontra previsto por (1), a atividade de sistematização

operada no direito é, e deve ser, compreendida não só como uma tentativa de redução

das contradições possíveis entre as regras existentes e próprias ao direito, mas

também, e principalmente, como redução das contradições possíveis entre as regras

já definidas no sistema interno do direito e as práticas-limite parajurídicas da

jurisprudência. Sendo assim, estabelece-se uma diferença entre a jurisprudência, que

se vincula ao exterior do direito, ou, direito dito “dos costumes”, e o direito escrito

(todos o sistema de regras jurídicas de consignação escrita).

Em (2), pressupõe-se que o sentido de formal atribuído ao direito não incide

sobre o “conteúdo” do que é trocado pelas “pessoas” jurídicas nos contratos de

compra-venda, mas sobre a forma desses contratos de troca, ou seja, sobre atos

(formais) das pessoas jurídicas “formalmente” livres e iguais perante o direito. Neste

aspecto da análise althusseriana, temos que, em termos analítico-discursivos, o

sentido de “livres” e “iguais” não é dado como transparente, nem por uma afirmação

do óbvio. Este aspecto é dado segundo uma perspectiva material-histórica da língua

– o qual deve ser sistematicamente apresentado e desenvolvido pela análise

semântica. Para Althusser (1999), o direito só pode ser sistematizado na medida em

que é formal, de modo que a formalidade do direito e sua sistematicidade correlativa

constituem o que ele chama de sua universalidade formal: o direito é válido para – e

pode ser invocado por – toda pessoa juridicamente definida e reconhecida como

pessoa jurídica.

Outro ponto importante apresentado por Althusser (1999), ainda relativo à

formalidade do direito, é o fato de que esta não deve ser considerada em termos

morais, como um formalismo, mas sim como uma formalidade vista funcional e

ontologicamente. Isso porque a moral é aquilo que produz aprovações e

condenações, o que não é o caso do direito, que não se importa em ser condenado

ou aprovado, ele simplesmente existe e funciona (como uma téchne) e não pode

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existir e funcionar a não ser formalmente. O sentido de formalidade atribuído por

Althusser ao direito tem estreita relação com o sentido de político apresentado por

Rancière (1996), uma vez que funciona em seu interior (do político) uma latência de

contradição tal que não permite que o direito seja operado senão pelo dissenso, pelo

contraditório, pela afirmação de igualdade instada por práticas desiguais,

discriminatórias.

Em consonância com esta reflexão, está o que é dito por Guimarães (2002,

p. 16) sobre o político, que não é o que se fala sobre igualdade, direitos, mas

“caracterizado pela contradição de uma normatividade que estabelece

(desigualmente) uma divisão do real e a afirmação de pertencimento dos que não

estão incluídos”. Nesta instância política, entendida como fundamento das relações

sociais e de importância central para a linguagem, as relações são dadas pelo conflito

entre “uma divisão normativa e desigual do real e uma redivisão pela qual os desiguais

afirmam seu pertencimento”. Este aspecto será desenvolvido mais adiante.

De modo que, como vimos, a “forma do direito” não é uma referência aos

conteúdos trocados mercantilmente pelas pessoas jurídicas nos contratos, mas uma

referência à forma desses contratos de troca, a qual é definida pelos atos (formais)

das pessoas jurídicas formalmente livres e iguais perante o direito, que fazem parte

desses contratos (ALTHUSSER, 1999). Trata-se, portanto, de uma forma personal.

Assim, a formalidade do direito e sua sistematicidade correlativa constituem o que

Althusser chama de universalidade formal: o direito é válido para – e pode ser

invocado por – toda pessoa juridicamente definida e reconhecida como pessoa

jurídica. Ou seja, a formalidade universal do direito diz respeito a sua não

universalidade de fato, de não ser, em “essência”, direito para todos, mas para “toda

pessoa juridicamente definida (eis a linguagem!) e reconhecida como pessoa jurídica”,

uma universidade relativa, excludente.

Ao não entender a formalidade do direito como um formalismo, Althusser

(1999) postula, como vimos, que o funcionamento do direito não se orienta em termos

morais, isto é, sem a preocupação de ser aprovado ou condenado, como que por um

funcionamento apriorístico, à revelia de (não obstante o fato de que sua existência

dependa desse “existir formalmente”). O efeito dessa formalidade sobre o direito é de

apagar, no próprio funcionamento do direito, os conteúdos aos quais se aplica a forma

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do direito. Todavia, esse apagamento operado por esta forma não tem por efeito,

segundo esse autor, fazer desaparecer como que “por encanto” esses conteúdos,

mas, em contrário, o formalismo do direito não tem sentido a não ser enquanto se

aplica a conteúdos definidos que estão necessariamente ausentes do próprio direito.

Tais conteúdos, segundo Althusser (1999), referem-se às relações de produção e

seus efeitos.

O autor depreende disso o seguinte (ALTHUSSER, 1999 p. 85):

1. O direito não existe a não ser em função das relações de produção existentes;

2. O direito não possui a forma do direito, isto é, sua sistematicidade formal, a não ser com a condição de que as relações de produção, em função das quais ele existe, estejam completamente ausentes do próprio Direito.

Assim, a singularidade do direito está no fato de que ele não é existente senão

em função de um conteúdo do qual faz em si mesmo totalmente abstração, que

equivale às relações de produção. Isso explica a fórmula marxista clássica (que

distingue relações de produção de direito) a respeito do direito: o direito “exprime” as

relações de produção, embora, no sistema de suas regras, não faça qualquer menção

às citadas relações de reprodução; muito pelo contrário, escamoteia-as.

Em Althusser, tal como em Marx e Engels, as relações jurídicas são

identificadas como relações burguesas (digo, a recusa marxiana do direito burguês)

e, portanto, não se deve definir, já em Marx, o modo de produção socialista

(socialismo) pela propriedade coletiva dos meios de produção, mas por sua

apropriação coletiva e comum pelos homens livremente “associados”. A revolução

socialista não se configura como a “passagem” de uma propriedade a outra.

Por fim, por [3], o direito é necessariamente repressor. Em Metafísica dos

costumes, Kant, a despeito do título, produziu uma obra pouco metafísica, que a

coloca muito à frente da concepção hegeliana de direito, dado seu idealismo delirante

se comparado ao de Kant, para quem o direito implica a obrigação.

Desse modo, o sentido de repressão do direito em Althusser (1999) é o de que

não poderia existir senão como um sistema correlato de sanções. Dito de outra forma,

não há contrato jurídico a não ser com a condição de que se aplique, de que se

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respeite ou contorne o Direito. Portanto, há que se existir um Direito da aplicação (e

da não-aplicação) do Direito, do respeito/não respeito das regras que constituem o

contrato jurídico. Isto, no limite, leva as pessoas jurídicas do contrato a se

comprometerem a cumprir obrigações de trocas definidas, ou pré-definidas. Este

comprometimento mútuo implica sanções, caso as cláusulas do contrato não sejam

respeitadas.

3.1.1. O direito como uma téchne

Os gregos do séc. V a.C. atribuíram à palavra téchne um sentido mais

abrangente do que a sua tradução mais usual, arte, significa em seu uso corrente.

Assim, este termo não se refere apenas a uma habilidade ou destreza de um

especialista em produzir algo com maestria, mas também a algo considerado em uma

dimensão mais ampla, portanto, teórica. A téchne é, dessa forma, para o grego, uma

forma de conhecimento prático que difere de uma outra, a epistéme (ciência), ou, o

conhecimento teórico, termos que se intercambiaram, muitas vezes, como sinônimos,

durante todo o referido século (PUENTES, 1998).

Em outra direção, Aristóteles, em Ética a Nicômaco, procurou empregar

estes termos de modo distinto, entendo-os como atividades exclusivamente humanas,

de tal modo que a arte (téchne) é produzida por pensamentos oriundos da experiência,

dada por semelhanças, em outras palavras, uma atividade que “se gera apenas

quando se é capaz de enunciar um juízo universal aplicável a diversos casos

semelhantes” (PUENTES, 1998, p. 131). A distinção, pois, entre arte e ciência estaria

no campo da prática, na ordem pragmática e, embora o aluno de Platão não tenha

trabalhado mais precisamente nesse campo, deixou claro em algumas de suas obras

que a arte esteve atrelada a uma tentativa de solucionar as necessidades concretas

dos homens, como meio de tornar a vida mais prazerosa, e só depois dela é que seria

criada a ciência (epistéme), que não representa os prazeres do homem, mas tão

somente a contemplação.

Por fim, sobre a téchne, o filósofo grego concluiu que uma vez que ela se

ocupa do que pode ser criado, não pode se submeter àquilo que é necessário e eterno.

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Aquilo que é produzido artisticamente não pode existir no próprio ente produzido,

mas sim naquele que o produziu, o que faz a arte não se sustentar por si mesma,

assim como uma cadeira não pode produzir outra cadeira. Arte é mimesis, a imitação

da natureza (phýsis), sem se referir nem ao necessário nem ao natural

(PUENTES,1998).

Ao longo do tempo, do ponto de vista epistemológico, a arte (téchne)

caracteriza-se, pois, como um modo de fazer, ou, um saber fazer, ou ainda, um

ensinar a fazer que, em muitos casos, confunde-se com ciência (epistéme), como

fizeram os gregos e, desse modo, entendida como uma abstração, um afastamento.

Neste sentido, propusemos, desde o início deste trabalho, distinguir, assim como o

fez Diniz (2014), direito de ciências jurídicas, no sentido de que quem trata de direito

elabora, na medida em que o pratica, uma ciência jurídica, e quem se ocupa desta

ciência, que inclui o direito, opera por uma epistemologia. Nesses termos, dizemos

que o direito é o objeto da ciência jurídica, sendo esta o lugar de onde se produz

conhecimento sobre essa técnica, essa arte (o direito).

O direito se consubstancia historicamente enquanto prática social pela qual

é possível localizar a emergência de novas formas de subjetividade, especificamente

como prática jurídica, dada por um história interna de verdade que se corrige por

princípios próprios de regulação, uma história de verdade tal como se faz na história

das ciências (FOUCAULT, 2002). De certo modo, neste lugar de práticas sociais,

jurídicas, vemos emergir uma forma peculiar de verdade que se forma sob um número

de regras e de subjetividade, de domínio do objeto, de certos tipos de saber, como

uma história da verdade. Tais práticas, segundo o filósofo francês, seriam formas

pelas quais a sociedade definiu certos tipos de subjetividade, formas de saber que,

por conseguinte, definiram relações entre o homem e a verdade.

Uma das formas pela qual o direito se estabelece em diversas sociedades

é pela ordem constitucional. No caso brasileiro, esta ordem estabeleceu-se segundo

o preceito kelseniano de um sistema lógico-normativo baseado num modelo que

coloca a Constituição no topo da pirâmide jurídica, norma esta considerada a lex

legum, a Lei das leis e fonte de todos os direitos e atos normativos. Dessa forma, o

ordenamento jurídico estatal é constituído por normas constitucionais dotadas de

preeminência em relação às demais leis e atos normativos. Assim, todas as normas

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abaixo da Constituição devem a ela se adequar, de tal modo que a ela precisam se

conformar (VELOSO, 2000). A Constituição é, assim, considerada o nível mais alto do

direito positivo.

A forma encontrada pelo sistema jurídico para a conformação entre o

expresso nas leis e atos normativos infraconstitucionais e a Carta Magna é o

denominado controle jurisdicional de constitucionalidade, expediente considerado

indispensável para a ordem e segurança jurídica constitucional, para a efetiva

verificação e manutenção da compatibilidade vertical das normas com o texto magno.

Segundo Veloso (2000, p. 18), “o sistema jurídico, que se apresenta nessa estrutura

escalonada, tendo, no ápice, a Constituição, deve ser coerente, racional. Qualquer

conflito (...) viola um princípio essencial, comprometendo a harmonia do

ordenamento”.

Na presente pesquisa, esta importante particularidade do sistema jurídico

representa o exato ponto em que convergem, apenas para efeito de análise, a téchne

do direito e a ciência linguística, expressada que aqui se encontra por uma de suas

disciplinas, a semântica do acontecimento. Ou seja, o sentido de “convergência” ora

trazido é considerado apenas em termos de “ponto de encontro”, isto é, como

ferramenta metodológica que justapõe de duas disciplinas e as compara em torno de

um objeto considerado. Assim, por hora, duas questões que se colocam são: 1. de

que forma a téchne do direito positivo (enquanto ordenamento jurídico) e a epistéme

linguística (enquanto semântica da enunciação) consideram a significação dadas as

relações estabelecidas entre o texto constitucional e as leis e atos normativos

consideradas, mais especificamente, entre a CF/88 e a Lei 12.965/14? e 2. Que

implicações há nesse modo de se pensar a significação entre textos distintos?

Inicialmente, poderíamos refletir sobre como são entendidos o sentido e a

linguagem no campo do Direito. Para tanto, observaremos o excerto a seguir, de um

dos representantes da teoria do direito brasileiro, Raimundo Bezerra Falcão. Num

primeiro momento, vemos o autor significar sentido e linguagem no meio jurídico e,

apesar da distinção que faz desses dois elementos, trata a linguagem como meio de

comunicação e o sentido como um predicado mental que categoriza as coisas no

mundo. Por isso, os manuais jurídicos, de modo geral, insistem na ideia de um sujeito

cognoscente, isto é, um sujeito de conhecimento que se coloca acima de tudo, e não

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de um sujeito histórico, como o fazemos em semântica enunciativa (FALCÃO, 2000,

p. 79 e 80, com grifos do autor).

É que a linguagem, contendo sentido e sendo meio de comunicação, é meio formal de expressão do sentido. Pode ser tida até como sentido, desde que se aceite a definição do objeto cultural – e a linguagem o é - como sendo o sentido que o ser humano adiciona ao mundo cultural.

Assim, segundo os termos jurídicos, o papel do sujeito cognoscente é o da

“captação” de um sentido pré-existente ao texto, escondido, a-histórico, presente num

imaginário veritativo e em recônditos discursos ignorados no momento da

interpretação, mas sempre presentes e depreendido a partir de um “ritual” dado numa

situação (enquanto pragmático) reservado apenas a alguns sujeitos “escolhidos”

(sumo sacerdote), “separados” para tal função. Desse modo, para o direito, o sujeito,

e não a linguagem, nem a língua, tem papel central em qualquer tarefa interpretativa,

hermenêutica.

a captação de sentido, inexaurível, que se faz pela via da interpretação é que traz em si o milagre da salvação dos ordenamentos jurídicos, num tempo de interesse tão múltiplos, de mutações tão rápidas e de desigualdades tão permanentes e tão difíceis de remover(...) Outro ponto relevante para a interpretação jurídica é o que se refere à relação da linguagem (norma, no caso) com o intérprete. A prevalência, já o vimos, é do sujeito cognoscente. Portanto do intérprete. A linguagem do legislador, como voz do passado que é, não terá a pretensão de impor-se, por cima de tudo, ao intérprete. A voz do legislador sucumbiu, desaparecida, ao ser significativo da norma tal qual ela se põe, no ato da interpretação, ao espírito do intérprete, na sensibilidade da situação. (...) O intérprete é o sumo sacerdote do ritual divinizante da captação de sentido.

O primado do direito, segundo Falcão (2000), entende o sentido como

inesgotável e como elemento que opera no discurso a integração sócio-política por

uma dinâmica significativa que “libera” alternativas de justiça que civiliza e semeia a

igualdade. E é com base nessa ideia do justo, do verdadeiro, expressada em termos

de sentido pela “medida de justiça”, a medida exata entre o que consta num texto, o

constitucional, e outro texto, o da norma (Lei 12.965/14) que o argumento jurídico toma

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como transparente, como a fiel “tradução das ideias e ideais” previstas por um

paradigma legal.

Com isso, dizemos que a constitucionalidade pretendida pelo ordenamento

jurídico, antes de preservar a norma constitucional e controlar as premissas ali

constantes, controla sentidos pela ideia de que, dada uma intertextualidade, ou mera

justaposição de textos, um texto refere outro como por uma conformação (a conforme

b), dada por um “idealismo jurídico”, e não pela materialidade histórica de cada texto.

Portanto, admitir “a difere de b" é admitir, consequentemente, em alguma dimensão,

que não seja possível uma constitucionalidade de b em relação à a. De tal modo que,

pelo princípio estrutural como é entendido o sistema, todo o ordenamento estaria

comprometido.

Ora, a semântica enunciativa, como as demais “semânticas”, encontra-se

num domínio de conhecimento, o da ciência linguística (epistéme), da qual é disciplina

fundamental. Neste domínio, conforme mostra Pêcheux (1973), o corte saussureano

continua efervescente pois, por ele, as diferentes teorias linguísticas produzem

afastamentos e retornos, principalmente pela consideração do equívoco como

constitutivo da linguagem, e não de premissas lógico-veritativas, como é o caso do

direito. Neste ponto, e em alguns outros, linguística e direito mantêm um certo

distanciamento. Além disso, o que sintetiza e reafirma tal diferença entre a arte

empírica prevista pela estrutura da téchne jurídica (por um como deve ser feito) e a

epistéme linguística (por um como é que se faz) é o fato de que o estrutural se

encontre implicado pela ordem simbólica, em vez da empírica. Guardadas as devidas

proporções, é nestes termos que pensamos a relação entre linguísticas e gramática

ou retórica, como domínios situados em um “como fazer”.

Por aquilo que depreendemos, como dito, da análise realizada pelo

instrumento de uma semântica do acontecimento, entendida como uma disciplina da

ciência linguística (epistéme) que trata da significação e do sentido como que

fundamentais para o estudo da linguagem, esta deve ser vista a partir de sua relação

com o mundo, com as coisas e com o real (GUIMARÃES, 2018). Assim, tratou-se neste

trabalho do acontecimento de enunciação enquanto produzido pelo funcionamento

da língua em espaços de enunciação, conceito que “desloca” o sentido corrente de

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língua para outro lugar, o da enunciação e em outros termos em relação à história

dos estudos enunciativos.

O acontecimento é, assim, o que faz diferença na sua própria ordem, isto

é, um fato de língua dado por uma relação necessária entre um fato qualquer e a

significação, considerada sua ordem temporal própria e independente da ordem linear

do tempo (GUIMARÃES, 2018). Ora, sendo esta ordem justamente o que aufere

especificidade ao acontecimento, não pode, quando comparado, um acontecimento

equiparar-se a outro, por uma conformidade, igualdade, identidade ou referência. O

que torna os textos ora analisados acontecimentos específicos? Como a diferença

constitutiva do acontecimento é dada por uma temporalidade de sentidos, isso permite

dizer que ele não está no tempo e é isso que torna, por exemplo, a obra “Constituição

da República Federativa do Brasil de 1988” um acontecimento per si, a qual, quando

considerada no espectro jurídico brasileiro, tem seu passado não atrelado a outras

constituições, mas ao sentido de enunciações passadas que nela se apresenta como

sentido.

Outro aspecto apontado por Guimarães (2018) é o fato de que a definição

de acontecimento dá-se diversamente da posição empirista, pois considera que um

fato deve estar necessariamente relacionado a uma certa ordem de acontecimento que

lhe atribua sentido, não como uma verdade correspondente no mundo, exterior a

própria enunciação de que o acontecimento faz parte, mas interna a este

acontecimento, de tal modo que signifique o mundo. A língua é o retrato do real.

Assim, a relação entre os acontecimentos CFB/88 e MCI/14 dá-se,

eminentemente, por uma diferença (a difere de b). Ou seja, há relações de sentido

suficientes tanto em a quanto em b para afirmarmos tratar-se de acontecimentos

distintos que, ainda que possuam o mesmo referente, não poderão possuir a mesma

designação, uma vez que esta relaciona-se ao funcionamento semântico dos

enunciados relacionando-os ao texto (acontecimento) de que estes fazem parte, isto

é, “os elementos que constituem o enunciado significam em virtude de suas relações

de integração no enunciado e do enunciado ao texto” (GUIMARÃES, 2018, p. 151).

Isto nos leva a considerar que o trabalho de sondagem, especificamente

orientado ao estudo dos modos de relação enunciativa de articulação e reescrituração

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internos/externos aos enunciados, conduz fundamentalmente a caracterizar os

enunciados como o núcleo dessa análise semântica e, com isso, mais

especificamente nos modos de reescrituração, levar a observar o que aqui livremente

trato como “o primado da diferença”, isto é, ao fato de que “este modo relação

enunciativa leva a interpretar uma forma como diferente de si. O elemento que

reescritura atribui (predica) sentido ao reescriturado.” (GUIMARÃES, 2019, p. 85).

Pelo “primado da diferença” estabelecido por Guimarães (2018), afirmamos

que o “fenômeno” da significação ocorrido na relação entre os textos/acontecimentos

“Constituição Federativa do Brasil de 1988” e “Lei 12.965/14” é dado por uma relação

de diferença, e não por conformação, como quer a teoria jurídica da

constitucionalidade. Isto porque, o referido “primado” é o que perpassa todo o

presente trabalho enquanto contraposição ao posicionamento do ordenamento

jurídico, expresso no direito positivo brasileiro, cujas bases dão-se pela aceitação

tácita (discursivamente silenciada) de uma forma de controle, dita constitucional, mas

realizada politicamente como controle social de sentidos, no real recortado pela

língua.

3.2. Controle jurisdicional de constitucionalidade: o acontecimento como

conformação

A Constituição é considerada a “rainha das leis”. É assim chamada por

situar-se no topo da pirâmide jurídica, sendo a fonte primária de todos os direitos.

Inclusive, é por sua natureza, e a partir dela, que se confere o fundamento de validade

das leis e atos normativos da ordem jurídica (VELOSO, 2000).

É composta por um conjunto de regras, também denominadas normas

constitucionais e dotadas de preeminência e supremacia em relação às demais leis.

O controle de constitucionalidade é, dessa forma, dado por uma verificação da

compatibilidade vertical dessas normas, tido como expediente indispensável e vital

para a ordem e segurança jurídicas (VELOSO, 2000).

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Assim, o sistema jurídico apresenta estrutura escalonada em que a

Constituição ocupa a posição maior, o ápice (CUNHA JÚNIOR, 2017). Para Veloso

(2000), essa é a forma em que o ordenamento se configura sistemicamente, pois,

“qualquer conflito, qualquer antinomia que agrida o postulado da primazia da Carta

Magna viola um princípio essencial, comprometendo a harmonia do ordenamento”

(Idem, p. 18). Em outros termos, um eventual “erro” de interpretação (movimento de

uma peça) altera a estrutura total. Assim, a ideia de controle e de supremacia

constitucional assenta-se, de certa forma, sobre um “estruturalismo jurídico”.

Quando uma norma de grau inferior entra em conflito com a Carta Magna,

promove-se o controle de constitucionalidade, o que ocorre quando são editadas, por

autoridades ditas incompetentes, normas que não seguem as regras de elaboração

legislativa, que a própria Lei Magna consubstancia. Essa inconstitucionalidade

aparece de duas formas: ou na violação de regras de competência

(inconstitucionalidade material) ou na inobservância das formas prescritas para a

obrigação e obrigatoriedade das leis (inconstitucionalidade formal).

Nesta pesquisa, interessam as duas formas, uma vez que em ambas o que

está em jogo é uma certa paridade normativa que exige do elaborador da norma

infraconstitucional a parametrização vertical tanto em termos de competência quanto

em termos formais, todos previstos na Constituição. E isso interessa aqui na medida

em que, pela visão enunciativa, não é possível pensar essa correspondência,

parametrização ou conformação entre dois textos distintos, em outros termos, entre

dois acontecimentos distintos.

Antes de adentramos nos pormenores do controle de constitucionalidade,

daremos destaque ao modo de interpretação proposta pela dogmática jurídica, mais

especificamente, pela doutrina (teóricos do direito), responsáveis que são por uma

das ações mais importantes do ordenamento jurídico, a interpretação particularmente

jurídica.

3.2.1. O modus de interpretar do ordenamento jurídico

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Conforme vimos em Althusser (1999), o Direito assume a forma de um

sistema que tende à não-contradição e à saturação internas. Consagra-se, assim, na

tradição, como um sistema de regras respeitadas e contornadas de tal modo que, em

todas elas, deve haver o predomínio de uma coerência interna sistêmica “tal que não

seja possível invocar as vantagens de uma regra contra a outra, caso contrário o efeito

da primeira regra seria destruído pelo efeito da segunda” (p. 81).

Com base nesse “princípio” é que introduzimos e analisamos o conceito de

controle jurisdicional de constitucionalidade, o qual, dentro deste trabalho, representa

o ponto de partida para entender, na esfera do trabalho hermenêutico-jurídico

praticado alinhadamente ao ordenamento jurídico, as relações entre a carta magna

(instância constitucional) e o conjunto de normas (instância infraconstitucional) que a

ela (instância constitucional) se submete.

Ao colocar que a crise de paradigma do direito e da dogmática como um

impeditivo da realização dos direitos em sociedade, Streck (2000) o faz afirmando que

a dogmática jurídica é constituinte do saber jurídico instrumental, o que nos permite

afirmar que o discurso jurídico-dogmático não só instrumentaliza o direito, mas é

também um importante fator impeditivo de um Estado democrático de direito, na

medida em que, para este jurista, esta dogmática, ao instrumentalizar o Direito, não

consegue atender às demandas originadas na sociedade. O crescimento de direitos

transindividuais e a crescente complexidade social reclamam novas posturas dos

operadores jurídicos.

Porém, quando, em questões macrossociais, que envolvem a interpretação

das normas programáticas constitucionais, algumas instâncias de direito buscam o

sentido comum teórico dos juristas, em direção a interpretações despistadoras, o que,

conforme Streck (2000), torna o texto constitucional inócuo, ineficaz. Isto porque, para

este autor, deve haver uma mudança substancial do paradigma interpretativo

constitucional, na medida em que a Constituição não tem somente a tarefa de apontar

para o futuro, mas também a relevante função de proteger direitos já conquistados,

por uma principiologia constitucional que combata maiorias políticas eventuais que

legislam na contramão de uma programaticidade constitucional que respeite as

conquistas sociais.

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Há, nesse movimento aparentemente simples, uma relação na qual ao

sentido são estabelecidos determinados limites no processo hermenêutico. Streck

(2000, p. 76) conclui assim a relação entre discurso e texto jurídico operada por esse

tipo de discurso dominante:

Apesar de tudo isso, o Direito, instrumentalizado pelo discurso dogmático, consegue (ainda) aparecer, aos olhos do usuário/operador do Direito, como, ao mesmo tempo, seguro, justo, abrangente, sem fissuras, e, acima de tudo, técnico e funcional. Em contrapartida, o preço que se paga é alto, uma vez que ingressamos, assim “num universo de silêncio: um universo do texto, do texto que sabe tudo, que diz tudo, que faz as perguntas e dá as respostas.

A relação entre o texto constitucional e os demais textos a ele ligados é

construída dentro do ordenamento jurídico eminentemente por um processo

interpretativo/hermenêutico. Por isso, para Freitas (2004) não há norma enquanto não

há interpretação, ainda que, para juristas como Bastos (2014), há que se distinguir

hermenêutica de interpretação. Tal pensamento encontra-se presente no trabalho de

teóricos ligados ao ordenamento jurídico diferentes posições que acabam por tecer

uma configuração determinada sobre a significação, do que se sabe não haver

concordância quanto ao sentido de interpretar.

Portanto, é possível dizer que exista um modus interpretativo dominante no

cotidiano dos juristas? No campo da dogmática jurídica, merecem destaque algumas

posições, entre elas, está a de Aníbal Bruno6, para quem interpretar a lei é penetrar-

lhe o verdadeiro e exclusivo sentido; para Paulo Nader7, interpretar é fixar o sentido

de uma norma e descobrir sua finalidade, pondo a descoberto os valores consagrados

pelo legislador; para Carlos Maximiliano8, autor que praticamente inaugura no Brasil

os trabalhos de hermenêutica jurídica, interpretar é a busca do esclarecimento, do

“significado verdadeiro de uma expressão (...) é extrair de uma frase, de uma

sentença, de uma norma, tudo o que na mesma se contém.” (STRECK, 2000, p.81).

6 Autor da renomada obra Direito Penal (1967) 7 Jurista autor de Introdução ao estudo do Direito (1995) 8 Conhecido autor de Hermenêutica e interpretação (1965)

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O pensamento de Maximiliano aproxima-se do de Emílio Betti, de

posicionamento objetivo-idealista, para quem era possível a reprodução do sentido

originário da norma. Segundo Streck (2000, p. 82):

A tradição hermenêutica inaugurada por Maximiliano no Brasil tem uma similitude com a hermenêutica normativa de Betti, isto é, uma hermenêutica que dá regras para a interpretação, as quais dizem respeito tanto ao objeto como ao sujeito da interpretação.

Vemos que em todos estes posicionamentos acerca do que seja

interpretação predomina a visão de que interpretar seja um movimento em direção a

um texto que “esconde” um sentido a ser descoberto pelo intérprete, visão que se

distancia do pensamento de Streck, para quem o sentido do texto jurídico é dado e

colocado a partir da performatividade presente na língua, um posicionamento

claramente pragmático em relação aos processos hermenêuticos.

O interesse em arrolar brevemente essas posições, antes de expor o

conceito de controle de constitucionalidade propriamente dito, vem da ideia de que o

texto constitucional é o texto a ser interpretado, isto é, é sobre ele que juristas e

magistrados inclinar-se-ão quando tiverem de tomar suas decisões. Mas a pergunta

que fica é: como se dá essa forma de se interpretar a Constituição no ordenamento

jurídico?

Talvez não seja possível responder essa pergunta em poucas linhas, até

porque, como vimos, os autores não têm uma única opinião a esse respeito. Ainda

assim, é possível apontar para um “comportamento hermenêutico-interpretativo”

médio, digamos. Nessa área, Bastos (2014) pode representar essa “tendência” e nos

oferecer alguns aportes em direção a esse modo geral de interpretar o texto

constitucional.

Antes de mais nada, o autor fala de uma hermenêutica e de uma

interpretação constitucional, tal distinção é fundamental aqui. Bastos (2014)

reconhece que há uma relação entre o Direito e a realidade social em que está

inserido, ainda que, para o autor, esta visão de conjunto, que abrange o universo

social, deve reconhecer que o Direito é parte “essencial” desse todo, que ele coloca

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como “um segmento social-normativo, uma vez que é composto por normas

disciplinadoras da conduta das pessoas, físicas e jurídicas” (p.13).

Assim, a distinção, segundo Maximiliano (1988), estaria no fato de que a

Hermenêutica (jurídica) é o ramo da ciência dedicado ao estudo e determinação das

regras de interpretação a serem aplicadas sobre o texto jurídico que visam a

determinar o processo interpretativo de busca do significado da lei, e não a sua

aplicação, o que seria o caso da interpretação. A Hermenêutica seria, portanto, mais

ampla e anterior à interpretação.

No campo interpretativo propriamente dito, o autor traça a diferença entre

relações materiais e culturais, sendo estas últimas mais “frouxas” que as primeiras,

dado que não são submetidas ao rigor científico, e também pelo fato de que bens

culturais revelam apenas valores, o que leva o intérprete a descobrir emoções

humanas e o propósito de civilizações antigas (BASTOS, 2014). Em seguida, o autor

classifica o Direito do ponto de vista de um modus de interpretar (p. 14):

Enquanto fenômeno cultural que é, o Direito afasta-se radicalmente das denominadas ciências naturais, já que, quanto a estas, as conclusões obtidas caracterizam-se pela verdade decorrente do método empírico-indutivo a que se submetem as realidades próprias dessa ciência. (...) O Direito se situa no campo das realidades culturais e as leis são frutos desse universo, na medida em que buscam trazer em seu bojo a imposição de uma determinada norma da conduta.

No dizer do autor, a interpretação jurídica distingue-se das demais formas

de interpretação na medida em que seu objeto, relativo ao sujeito que o observa,

também se distingue do objeto das ciências naturais, “visto que todos os objetos

culturais, enquanto bens, só chegam ao homem pela via da interpretação” (BASTOS,

2014, p.18). Falamos assim em objeto cultural e objeto natural.

A classificação do modo de interpretar, para Bastos, passa antes por uma

classificação do objeto a ser interpretado. Assim, interpretar a lei configura-se como

um modo muito específico de interpretar, segundo o autor. Com isso, situa, de um

lado, a interpretação jurídica e, de outro, a interpretação das demais realidades

culturais. Trata assim dessa especificidade:

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Um primeiro ponto de dissociação decorre do próprio objeto em si. A interpretação jurídica parte da lei, vale dizer, de frases ou textos jurídicos, elaborados segundo regras próprias e com características peculiares. A lei regula a vida em sociedade, impondo-se indistintamente a todos. Por isso, e este é o segundo aspecto a ser realçado, qualquer interpretação que se faça a respeito desse conjunto normativo terá imediata repercussão na liberdade de cada indivíduo. Não é algo que se situe, portanto, apenas no plano teórico, já que a meta é a de solucionar os conflitos de interesses que surgirem na sociedade.

Nesse campo, teóricos, juristas e magistrados debatem acerca da

legitimidade das decisões judiciais que, sob o pretexto da aplicação do Direito,

legislam conforme os casos concretos em vez de o praticarem conforme as leis, o que,

segundo Bastos (2014), conduz, no campo do Direito Penal, a problemas de

tipificação do crime. Este autor aponta que, justamente por esse motivo, há que se

fixar uma distinção fundamental: a interpretação em outras áreas serve a um deleite

intelectual, enquanto que aquela relativa a lei atinge o indivíduo em sua conjuntura.

O fato é que, com base no que é afirmado acima, a ideia de que a

interpretação jurídica parte da lei, isto é, do texto jurídico, e que esta/e possui a

característica peculiar de regular a vida em sociedade, atribui a esse texto jurídico

uma espécie de “proatividade” muito particular, qual seja: é ele, o texto, que regula a

vida, e não o contrário; não é o texto regulado pela vida. Ora, se a vida não regula o

texto, este se impõe a ela e isso muda tudo no campo do significado, especificamente

na atribuição dos sentidos em hermenêutica jurídica, operada por meio do texto

jurídico.

Outro conceito trabalhado em hermenêutica jurídica é o de integração que,

diferentemente da interpretação, “pressupõe a ideia de tornar completo, chamar

alguma coisa para o campo de incidência da norma, absorver uma determinada

hipótese, a princípio não prevista.” (Bastos, 2014, p.44). Assim, integração não se

confunde com interpretação, pois esta serve para tornar possível aquele, isto é,

interpretar é algo sempre necessário, enquanto que integrar é uma necessidade mais

pontual, de finalidade específica, que se dá quando se está diante de um vazio

normativo.

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A afirmação mais interessante nesse campo, no que diz respeito aos

objetivos desta pesquisa, é que Canotilho (1991 apud BASTOS, 2014) afirma acerca

da relação conexa entre certos elementos da integração e da interpretação, quando

diz que ambas são voltadas à obtenção do direito constitucional. Com isso, estabelece

uma determinada relação entre os métodos de interpretação tradicionais do

ordenamento jurídico e a constituição propriamente dita.

Outro ponto trazido por Bastos (2014) é o que diz respeito à aplicação do

Direito, que tem estreita relação com a formação do ordenamento jurídico. Isto porque

o Direito não pode prescindir da abstração como instrumento de regulação, em grande

escala, da sociedade. O que, para o autor, é uma forma de o Direito, pela via da

abstração, regular, disciplinar o comportamento da sociedade, tendo por base os fatos

cotidianos, que se repetem, que são constantes. Assim, imediatamente à fase

interpretativa da lei, temos a fase formativa dela.

O papel do intérprete da lei, nesse caso, seria o de se utilizar dos recursos

fornecidos pela Hermenêutica, verificando em cada situação quais seriam as normas

capazes de regular a sociedade por meio do ordenamento jurídico. Assim, em ordem,

temos, a interpretação e, em seguida, a aplicação das normas constitucionais. Isso

ocorre, conforme Bastos (2014, p. 60), por “(...) a Constituição reclamar uma técnica

própria para a apreensão do real significado de seu conteúdo normativo. Verifica-as

que há uma especificidade interpretativa, em matéria constitucional”. Essa seria a

relação entre interpretação/aplicação das normas, inclusive a formação do

ordenamento jurídico, e a composição do conteúdo normativo relativo ao texto

constitucional. Há, assim, uma especificidade interpretativa em matéria constitucional.

Para se ter uma ideia de como a interpretação é pensada no meio jurídico

hermenêutico mais representativo, majoritário, do ordenamento, observaremos o que

diz Meireles Teixeira (2010 apud BASTOS, 2014, p.66):

Pode-se, portanto, dizer que a realização em aplicação do Direito supõe: a) o conhecimento exato do caso concreto, isto é, dos fatos com todas as suas circunstâncias e particularidades – é o que se denomina a quaestio facti; b) conhecidos os fatos, procura-se a norma aplicável – é o que se denomina a quaestio juris, no sentido amplo; c) finalmente, descoberta a norma aplicável, se o sentido e o alcance desta se apresentam duvidosos, faz-se mister interpretá-la – é o que se denomina a quaestio juris em sentido estrito. (...) Como se vê, a aplicação do Direito pressupõe a interpretação, pois não é possível enquadrar determinados fatos ou uma certa situação vital numa

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norma ou numa série de normas jurídicas, sem o pleno conhecimento do

sentido e do alcance destas”.

Vemos pelo exposto que a interpretação, que se encontra aqui ultimada no

processo, só aparece em caso de dúvida, isto é, para suprir um não-esclarecido pela

realidade empírica, o que a aproxima da noção de algo concreto, não-simbólico, o fato

gerador da lei. Ora, se pensarmos no nexo existente entre todo o processo de

interpretação e aplicação das leis e a constituição federal, resta entendermos como,

de fato, constitui-se, qual a natureza do texto constitucional.

A Constituição em si é formada por normas que não são de mesma

natureza, em outras palavras, não são possuidoras da mesma eficácia. Uma das mais

importantes diferenças entre elas é o fato de que algumas “desfrutam da capacidade

de incidirem diretamente sobre o caso concreto e outras necessitam, para tanto, do

advento de uma legislação integradora”. (BASTOS, 2014, p.63).

Assim, o bojo da Carta Magna é, pois, o fato de ser constituída, produzida

para produzir efeitos práticos, caso contrário, restaria letra morta, inócua. Há, assim,

normas de eficácia plena, em que não se tenciona a predisposição para atuar a efetiva

concreção, isto é, incidem diretamente sobre o real, “contém dentro de si todos os

elementos necessários para a sua aplicação”9.

No mais das vezes, temos ainda normas regulamentáveis,

irregulamentáveis, de integração, completáveis, restringíveis etc. Todas

demonstráveis no interior do texto constitucional, além de servirem a fins específicos,

seja para fins de aplicação, seja para fins de interpretação.

Ainda seguindo os passos de Bastos (2014, p. 70), vejamos o que o

magistrado diz a respeito da aplicação das normas constitucionais no tempo:

O advento de uma nova Constituição retira por completo a vigência e a validade da anterior. Isso ocorre em virtude de seu próprio caráter inicial e originário. Em outras palavras, a Constituição é a fonte geradora de toda ordem jurídica, que dela extrai o seu fundamento de validade.

9 Ibidem, p. 66

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Tal declaração, vista do ponto de vista do caráter validativo do texto

constitucional, chama a atenção para o fato de se apor a este a alcunha hierárquica,

suprema em relação às demais leis. Há que se registrar também a existência da

aplicação das normas constitucionais em relação ao espaço, ou, a territorialidade da

ordem jurídica, que, por ora, não se configurará como objeto de interesse desta obra.

O tratamento “diferenciado” dado pelos teóricos a uma interpretação

constitucional, relativo à interpretação das leis ordinárias, subconstitucionais, é factível

e explícito, inclusive, numa fala atribuída à doutrina, no sentido de uma individualidade

da interpretação constitucional. Isso porque, segundo Tércio Sampaio Ferraz (1996

apud Bastos, 2014, p 76), “não se pode levar à interpretação da constituição todos

aqueles formalismos típicos da interpretação da lei”. Tal indicação do autor remete,

em princípio, a dois fatores, um ligado a hierarquia clara entre o texto constitucional e

o texto ordinário; outro, relativo ao modo de se interpretar, diferente para cada caso.

A Constituição consagra-se, assim, como o fundamento último de validade

em relação a todas as demais normas do ordenamento jurídico e é esta a premissa

de que partirão seus intérpretes, os quais serão vistos mais pormenorizadamente em

breve. Conforme denomina Canotilho (1991 apud Bastos, 2014), essa forma de olhar

a Constituição engendra uma entrada na hermenêutica jurídica que a institui com uma

função determinantemente heterônoma de preceitos constitucionais relativamente às

normas hierarquicamente inferiores.

A implicação deste pensamento, que submete à ideia de hierarquização a

ideia de interpretação do texto, é assim descrita por Bastos (2014, p. 78, grifo nosso):

Sendo a Constituição o fundamento de validade de todas as demais leis, a determinação do significado do significado de uma das normas poderá importar no afastamento de uma regra infraconstitucional até então vigente, mas se torna incompatível com a norma constitucional da forma por que passa a ser compreendida. Aqui surge a importância de uma Corte Constitucional, que imponha erga omnes o sentido de determinada norma.

Observa-se de forma bem direta a relação entre hierarquização

constitucional-infraconstitucional e a interpretação do texto constitucional relativo à

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determinação do significado, que é, aqui, colocado como sinônimo de interpretação.

Além disso, devemos atentar para as diferentes direções para a compreensão do texto

Magno, isto é, até que ponto o texto infraconstitucional é pensado em direção ao

constitucional, ou o contrário, se, de fato, o texto constitucional determina o sentido

do infraconstitucional, inclusive, quando o faz, se faz, de que forma o faz.

Outro ponto trazido por Bastos (2014) é quanto ao caráter aberto e amplo

da Constituição, que aparece como uma característica/causa explicativa dos

frequentes problemas na área de interpretação. Isso porque, devido ao caráter

programático do texto constitucional e às suas consequentes mudanças (sociais,

culturais, políticas, econômicas...), implica a “atualização” constante das normais

constitucionais. Bastos (2014, p. 79, grifo nosso), trata assim essa questão:

Aqui a interpretação cumpre uma função muito além da de mero pressuposto de aplicação de um texto jurídico, para transformar-se em elemento de constante renovação da ordem jurídica, de forma a atender, dentro de certos limites oriundos da forma pela qual a norma está posta, às mudanças operadas na sociedade, mudanças tanto no sentido do desenvolvimento quanto no de existência de novas ideologias.

Essa “mudança de status” de ordem hermenêutico-interpretativa retira o ato

de interpretar de um lugar de inércia e o coloca em outro, o de uma prática jurídico-

política, caráter não discutido neste trabalho, mas de importância fundamental para

os campos do discurso. Além disso, apresenta o traço social que emana da análise

linguística.

No que diz respeito à natureza da linguagem constitucional, é formada,

segundo Bastos (2014), por enunciados de caráter eminentemente sintético e de

lacunas. Em certo ponto, pede atenção ao fato de que tal caráter merece minucioso

exame desse tema, atribuindo-o ao estudo das formas de integração desse “tipo” de

texto.

Segundo o eminente autor, a lacuna é o vazio normativo que não satisfaz

o aplicador/operador do Direito, isto porque, como dito anteriormente, o Direito é um

sistema aberto de normas e, por isso, “uma incompletude completável” (Idem, p. 81).

Justamente por isso é que se pode falar em lacuna na lei infraconstitucional, pois “é a

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Constituição que institui o princípio da reserva legal, pelo qual ninguém será obrigado

a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei”.

Apesar do caráter amplo dos termos e princípios aplicados nas normas

constitucionais, que perdem em concretude, é possível dizer que ganham em

abrangência, uma vez que são encontrados presentes nas normas

infraconstitucionais. E não é a norma subconstitucional que interfere na aplicação da

norma constitucional, mas sim estas normas presentes nas leis ordinárias é que só

vicejam na medida em estão em conformidade com o princípio constante na Carta

Magna. (BASTOS, 2014).

Nessa perspectiva de se pensar uma interpretação das leis em direção à

norma constitucional, é de se observar o que aponta Gomes Canotilho (1991 apud

BASTOS, 2014, p. 84, grifo nosso):

A recente concepção de constituição como concentrado de princípios, concretizados e desenvolvidos na legislação infraconstitucional, aponta para a necessidade da interpretação da constituição de acordo com as leis, a fim de encontrar um mecanismo constitucional capaz de salvar a constituição em face da pressão sobre ela exercida pelas complexas e incessantemente mutáveis questões econômico-socais. Esta leitura da constituição de baixo para cima, justificadora de uma nova compreensão da constituição a partir das leis infraconstitucionais, pode conduzir à derrocada interna da constituição por obra do legislador e de outros órgãos concretizadores, e a uma constituição legal paralela, pretensamente mais próxima dos momentos “metajurídcos” (sociológicos e políticos)”.

A preocupação dos teóricos e doutrinadores é pertinente. Observa-se

verdadeira “força externa”, representada pelos dispositivos ordinários, no sentido de

se inverter a direção da significação. Deve o ordenamento jurídico, em seu campo

hermenêutico, pressupor que o Texto Magno comande, que dele se parta em direção

às leis, e não o contrário. “[...] não se pode dar conteúdo aos princípios constitucionais

a partir da definição encontrada na legislação ordinária.” (BASTOS, 2014, p. 85).

Outro ponto importante no tocante ao processo interpretativo relativo à

norma constitucional é o tocante às suas “fontes de interpretação”, expressão que

remete aos agentes da interpretação, isto é, o sujeito designado para interpretar a

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regra jurídica (BASTOS, 2014). Num primeiro momento, uma questão que surge é:

qual é a interpretação mais relevante, aquela efetuada pelo Judiciário, pelo Executivo

ou pelo Legislativo? Seja na adequação, a cada caso concreto, seja relativo à norma

abstrata. Conforme Bastos, a mais relevante é aquela efetuada pelo Judiciário.

Veremos o porquê.

Independentemente da “forma de interpretar”, o que vemos predominar no

sistema jurídico que se verga em interpretar o texto jurídico é que o sentido aí é dado

enquanto uma referência às coisas que se encontram no mundo. Isso porque, a

obrigação de tornar/adequar o sentido de um texto (norma) a outro (constitucional)

obriga a se pensar uma forma de “adaptação” tal que exista um objeto comum entre

um e outro. Este objeto, ainda que um conceito-objeto, é retirado de um mundo de

confluências que assente os sentidos num mesmo lugar, retirando a história, o sujeito

e a língua das relações de sentido.

Antes de entendermos o motivo da preferência de Bastos (2014), veremos

como ele divide essas fontes da interpretação jurídica. Assim, são 5 (cinco) as fontes

interpretativas da Constituição, essenciais para o desenvolvimento de uma

hermenêutica constitucional, propriamente dita. São elas: 1. Interpretação político-

legislativa; 2. Interpretação jurisdicional: juízes e tribunais; 3. Interpretação promovida

pelo Poder Executivo; 4. Interpretação doutrinária; e 5. Fontes interpretativas

genéricas. De todas elas, e para os efeitos relativos e imediatamente ligados a este

trabalho, importa-nos, apenas, o estudo da segunda, a interpretação jurisdicional.

Na opinião de Diniz (2014, p. 449, grifo do autor), interpretar é uma forma

de se pesquisar a norma com vistas à busca e seu significado e de seu alcance,

levando-se em conta o fato de que seu sentido deve se adaptar às mudanças

operadas pela vida social. A autora define interpretação dentro de um contexto

jurisdicional, e não outro.

Interpretar é descobrir o sentido e alcance da norma, procurando a significação dos conceitos jurídicos. Devido aos motivos já mencionados – vaguidade, ambiguidade de texto, imperfeição e falta de terminologia técnica, má redação – o magistrado, a todo instante, ao aplicar a norma ao caso sub judice, a interpreta, pesquisando o seu significado. Isto é assim porque a letra da norma permanece, mas seu sentido se adapta a mudanças que a evolução e o progresso operam na vida social. Interpretar é, portanto, explicar, esclarecer, dar o verdadeiro significado do vocábulo, extrair da norma tudo o

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que nela se contém, revelando o seu sentido apropriado para a vida real e conducente a uma decisão.

Alguns pontos, nesta definição, chamam mais a atenção do que outros.

Primeiramente, a interpretação é vista como um desvelar, como um manto que

recobre o objeto a ser revelado (Este conceito conduz invariavelmente à ideia de que

a linguagem é transparente). Depois, as ditas imperfeições do texto-objeto da

interpretação são vistas como mera contingência que em nada interfere na

supremacia do pretenso texto. Observe-se que aqui não há qualquer menção ao texto

constitucional, ou a qualquer outra forma de hierarquia no âmbito desse conceito.

Desse modo, para Diniz (2014), o significado da norma estaria “escondido” em “algum

lugar” que caberá ao magistrado buscar e nos revelar. Tal esclarecimento é o

verdadeiro, o apropriado para a realidade, segundo a autora.

Nessa esteira, vale lembrar que, para Streck (2000, p.79), o processo

interpretativo/hermenêutico (os quais o autor não distingue) deveria ser pensado

enquanto portador de um caráter produtivo e não meramente reprodutivo, além disso,

“essa produção de sentido não pode, pois, ser guardada sob um hermético segredo,

como se sua holding fosse uma abadia do medievo”. Isso porque, para o autor:

o que rege o processo de interpretação dos textos legais são as suas condições de produção, as quais, devidamente difusas e oculta(da)s, aparecem – no âmbito do discurso jurídico-dogmático permeado pelo respectivo campo jurídico – como se fossem provenientes de um “lugar virtual”, ou de um “lugar fundamental”.

Antes de avançarmos no decurso do tema interpretação da norma

constitucional, importa determos o olhar sobre a relação sujeito-objeto trazida à baila

pelo eminente professor Streck (2000). Segundo este autor, as palavras da lei não

são unívocas e sim plurívocas. Isto porque a viragem linguística ocorrida no campo

da filosofia modificou a noção relativa de sujeito-objeto do conhecimento, no sentido

de que tal correspondência não deve ser mais regida pela relação entre pessoas

(=sujeitos) e objetos e sim como uma relação entre pessoas (atores sociais) e

proposições. Isto é, de sujeito-objeto para sujeito-proposição/enunciado.

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Assim, no processo interpretativo operado pelo intérprete da lei, “o jurista

não reproduz ou descobre o verdadeiro sentido da lei, mas cria o sentido que mais

convém a seus interesses teórico e político [...]” (STRECK, 2000, p. 80, grifo nosso).

Em relação ao sujeito, que é aqui colocado com um sentido razoável de autoria, o

jurista afirma que “[...] o significado da lei não é autônomo, mas heterônomo. Ele vem

de fora e é atribuído pelo intérprete”.

Ora, se o sentido não é a busca de um significado imanente ao texto e sim

um sentido trazido de fora pelo intérprete, uma espécie de autoria se apresenta nesse

processo. A questão que aqui se coloca é se, esgotadas essas duas possibilidades,

não restam outras. Por ora, não responderemos a essa questão, por razões de método

e ordem. Mas o faremos na seção em que nos debruçaremos para tratar da análise

semântica propriamente dita que aqui propomos.

De volta à proposta de leitura feita por Streck (2000), chama o autor a

atenção para o fato de que, mesmo diante dos avanços das teses “antimetafísicas” de

cunho linguístico-fenomenológicos, a dogmática jurídica ainda sofre do que ele chama

de “compulsiva lógica da aparência de sentidos, que opera como uma espécie de

garantia de obtenção, em forma retroativa, de um significado que já estava na lei

desde sua promulgação” (STRECK, 2000, p. 80), isto é, por uma suspensão da

história, do tempo.

A ideia que se tem do legislador, a qual é criticada por esse autor, é a de

que ele, o legislador, é visto pela dogmática jurídica como uma espécie de onomaturgo

platônico10, em que o Direito busca o “correto sentido da norma”, seu “sentido-

primevo-fundante.

O posicionamento de Streck (2000, p. 80, grifo do autor), relativo a este

papel consagrado na dogmática jurídica, aponta para uma inflexão teórica fundante e

importante, quando considerado o cânone jurídico predominante:

10 “Onomaturgo” ou “nomoteta” são expressões retiradas do diálogo platônico “Crátilo”, que

significa “aquele que cria palavra ou dá nome às coisas”. Aqui aplicado ao legislador enquanto um ser superior aos demais.

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Predominantemente, ainda vigora na dogmática jurídica o paradigma epistemológico que tem como escopo o esquema sujeito-objeto, onde um sujeito observador está situado em frente a um mundo, mundo este por ele “objetivável e descritível”, a partir de seu cogito. Acredita-se, pois, na possibilidade da existência de um sujeito cognoscente, que estabelece, de forma objetificante, condições de interpretação e aplicação. O jurista, de certo modo, percorre a antiga estrada do historicismo. Não se considera já e sempre no mundo, mas sim, considera-se com estando-em-frente-a-esse-mundo, o qual ele pode conhecer, utilizando-se do “instrumento” que é a linguagem jurídica...

Há algumas razões para a escolha supracitada, a do ambiente jurisdicional,

operada, de modo geral, por todos esses autores, apesar de seus diferentes

posicionamentos. Por um lado, pelo volume de informações e, por outro, em termos

de volume de demanda próprio dessa área. Isso porque cabe ao órgão incumbido de

aplicar o Direito, em caráter preliminar à sua aplicação, proceder à interpretação,

individual ou coletivamente, naquilo que também se chama, no caso dos magistrados,

interpretação operativa. Por ela, como demonstra Bastos (2014, p. 93):

o julgador, a partir das normas supremas da nação, consubstanciadas em seu documento político básico, analisa todas as demais emanações normativas do Estado, para verificar a compatibilidade de seu conteúdo com o querer constitucional. A importância de um Tribunal Constitucional e de suas decisões é, nesse contexto, amplíssima.

Sobre o funcionamento do judiciário, é importante lembrar que, diferente de

outros poderes, ele só exerce a atividade judicial se provocado, induzido a, não lhe

cabendo a iniciativa processual. Assim, uma vez provocado, caberá ao julgador propor

uma resolução para o problema apresentado, para o qual deverá estar bem

preparado, tanto em relação à Constituição quanto em relação às demais leis

ordinárias, excluídas estas só no caso de serem ofensivas à Carta Magna. Assim, a

atividade de analisar uma lei à luz da Constituição tem o nome de controle de

constitucionalidade.

A base conceitual do controle de constitucionalidade é a relação harmônica

entre a lei a ser interpretada e a Constituição. No caso de incompatibilidade, o juiz se

verá impedido de aplicar a lei ao caso. A especificidade dessa situação é assim

apresentada por Bastos (2014):

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Mas o que é importante notar é que o magistrado deve analisar a presença da inconstitucionalidade, e esta só será admitida no caso de não haver nenhuma interpretação que compatibilize a lei com a Constituição (dentro dos limites que a técnica da interpretação conforme a Constituição estabelece.

O tema do controle de constitucionalidade está intima e diretamente ligado

à interpretação da Constituição. Não obstante a isso, faz-se necessário demonstrar

como se dá tal procedimento dentro do ordenamento jurídico, de modo que fiquem

arroladas cada uma das implicações de sua “filosofia de uso”, digamos assim.

3.2.2. O controle como paradigma interpretativo

Como vimos, a ideia de um controle jurisdicional de constitucionalidade

passa antes por um modo de interpretar a letra de lei de um modo bem específico,

modo que regerá “os princípios” tácitos que comandarão as ações nesse percurso.

Tal relação de compatibilidade/incompatibilidade é dada entre a Lex Magna e as

demais leis do espectro jurídico, a qual é medida, e dada, enquanto uma

especificidade da lei maior sobre a menor, e não o contrário. Diferimos dessa posição,

na medida em que a vemos como uma diferença.

Assim, enquanto que para a teoria jurídico-dogmática a lei menor apenas

se conforma à lei maior, assumimos neste trabalho a posição de que este percurso

entre a Constituição Federal do Brasil de 1988 e a Lei 12.965/14, dito Marco Civil da

Internet, dá-se, fundamentalmente, por uma diferença. Isto é, trata-se não apenas de

textos distintos por estarem em “contextos” diferentes, mas por se tratar de

acontecimentos distintos: o acontecimento Constituição da República Federativa do

Brasil de 1988 e o acontecimento Lei 12.965/14, Marco Civil da Internet.

Antes, porém, de nos aprofundarmos mais detalhadamente em cada um

desses acontecimentos, o que será feito nos próximos capítulos, estudaremos,

segundo a perspectiva do pensamento jurídico, a natureza do controle de

constitucionalidade e suas nuances.

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Pode-se falar em uma evolução histórica do controle jurisdicional de

constitucionalidade das leis em nosso país. Isso porque, já em 1824, a Constituição

do Império do Brasil determinava essa tarefa ao Legislativo. Em 1891, em nossa

primeira Constituição republicana, influenciada que foi pelo Direito norte-americano,

estabeleceu o sistema de controle incidental ou difuso de constitucionalidade

(VELOSO, 2000).

Na Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926, que alterou a

Constituição Federal do Brasil de 1891, essa incumbência passou a ser dos tribunais,

federais ou estaduais, que deveriam também decidir sobre a constitucionalidade das

leis federais. Segundo Veloso (2000, p. 31) “A Lei 221, de 20.11.1894, que organizou

a Justiça Federal, é apontada pelos especialistas como um marco notável de nosso

sistema de controle de constitucionalidade”.

Entretanto, é partir da Constituição de 1934, a qual manteve o controle

incidental e difuso, que temos importantes inovações nesse assunto. Em seu artigo

179, há expressa exigência de quórum da maioria absoluta dos membros dos tribunais

para as decisões sobre inconstitucionalidade de lei ou ato do Poder Público, entre

outras limitações às leis ordinárias. Nesse sentido, e em relação à importância da

Constituição de 1934 relativa ao controle, Paulo Bonavides (1967 apud Veloso, 2000,

p. 31) assevera o seguinte:

Os historiadores constitucionais, quase todos, diz Paulo Bonavides, coincidem em assinalar a importância da Constituição de 1934 como um expressivo marco na progressão do País rumo a um controle direto de constitucionalidade, ressaltando que, de suas inovações, a que mais importa com respeito à via de ação é da representação interventiva (art. 12, § 2.º), “porquanto o exame de constitucionalidade pelo Pretório Supremo já não ocorreria apenas incidentalmente, no transcurso de uma demanda, mas por efeito de uma provocação cujo objeto era a declaração mesma de constitucionalidade da lei que decretara a intervenção federal”.

Em outra direção, tivemos a Constituição de 1934, conhecida como

“polaca”, dado que, pelo autoritarismo, auferia ao Executivo uma superconcentração

de poder, de modo que não era possível um controle constitucional. Essa Constituição

balizou-se no controle incidental, ou difuso. Com a redemocratização do País, operada

pela Constituição de 1946, manteve-se esta forma de controle, incidenter tantum, com

a ideia de uma instituição de controle abstrato. Com isso, este documento maior

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promoveu um “um avanço na regulamentação da representação interventiva”

(VELOSO, 2000, p. 33). É justamente esta a solução trazida pela Constituição de

1946, que, apesar de ter representado, para este autor, “um novo e vigoroso passo

para a instituição do controle de constitucionalidade” de tipo incidental, não tinha por

objetivo trazer um “verdadeiro” controle concentrado de constitucionalidade, isto

porque:

“(...) a manifestação do STF, atendendo a representação do Procurador-Geral da República, não operava erga omnes [com efeito para todos], e tinha o escopo de constatar a violação de princípio constitucional sensível, para legitimar a decretação da intervenção da União no ente federativo.”

Ainda temos a EC/16, de 26.11.1965, que reafirmou o controle concentrado

da constitucionalidade, uma forma de controle não exclusivamente incidental, mas

também de “fiscalização constitucional genérica, abstrata, da norma em tese, com

escopo de averiguar o vício da constitucionalidade e o objetivo precípuo de defender

a ordem constitucional”11.

Por fim, a carta vigente, de 1988, deu manutenção ao nosso sistema híbrido

de controle, combinando os modelos difuso e concentrado. Para Veloso (2000, p. 34),

A constituição de 1988, que manteve o sistema híbrido de controle de

constitucionalidade, “trouxe, não obstante, importantes avanços, com vistas ao

aperfeiçoamento e à democratização da fiscalização constitucional [...]” Além disso,

“ampliou o número de legitimados ativos para ingressar com a ação direta de

inconstitucionalidade (...), extinguindo o monopólio do Procurador-Geral da

República”. Dessa mudança, introduziu-se no ordenamento jurídico brasileiro a

denominada Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão (ADin).

Veloso (2000, p. 35, grifo do autor) resume assim o modelo de controle

jurisdicional brasileiro de constitucionalidade:

Pelo exposto, e tentando fazer uma síntese, o controle jurisdicional da constitucionalidade, no Brasil, utiliza o método concentrado, sendo o controle abstrato, em tese, através da ação direta, a ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal, tendo por objeto leis e atos normativos federais e estaduais [...] Servimo-nos, também, do controle difuso, concreto, incidenter tantum,

11 Ibidem, p. 33

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exercido por qualquer órgão, singular ou coletivo, do Poder Judiciário (CF, art. 102, III, a, b, e c; 97; 52, X).

Como pudemos observar, há, no ordenamento jurídico, dois grandes

sistemas de controle jurisdicional de constitucionalidade das leis: o difuso e o

concentrado. Em ambos os casos, o modelo brasileiro tem por base o direito norte-

americano, ou estadunidense, de controle jurisdicional, como já havíamos afirmado.

Mais especificamente, após a aprovação da Constituição dos Estados Unidos, em

1787, e na Convenção de Filadélfia, com ensaios de Alexander Hamilton, John Jay e

James Madison, além de um juiz chamado John Marshall.

O controle difuso, modelo adotado no Brasil desde a Constituição de 1891,

é um controle concreto, no curso de uma ação, por via incidental (incidenter tantum).

Trata-se, conforme Veloso (2000, p. 41), daquela que é “[...] feita pelo próprio juiz, ex

officio, afastando a aplicação da norma ao caso, sob julgamento, o que toma incabível

a locução ‘por via de exceção’” normalmente a ela atribuída. Quer isto dizer que, “no

curso de qualquer processo, qualquer das partes pode levantar o problema da

inconstitucionalidade, como questão prejudicial que o juiz tem de, previamente,

decidir”.

Nessa modalidade, o juízo de inconstitucionalidade é suscitado

incidentalmente, e por haver prejuízo em suspeição, o que quer dizer que durante

qualquer momento do andamento do processo, o que configura a supremacia da

Constituição em relação a qualquer outra lei ordinária. “Não há [porém] invalidação da

lei, de modo geral, perante todos. A decisão afasta, apenas, a sua incidência no caso,

para o caso e entre as partes.”. Lembrando que “a arguição de inconstitucionalidade,

perante qualquer juiz ou tribunal, pode ser suscitada pelo autor, pelo réu, ou por

qualquer pessoa que integre a relação processual.”12

O controle jurisdicional concentrado, por sua vez, é efetuado por via de

ação direta de inconstitucionalidade (ADIn) que, além de ser de competência exclusiva

12 Ibidem, p. 41

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do Supremo Tribunal Federal, destina-se a alcançar a declaração de

inconstitucionalidade, em tese, de lei ou ato normativo federal ou estadual.

Diferente do controle difuso, no controle concentrado, dado pela ação

direita de inconstitucionalidade, não se julga uma relação jurídica específica, uma

situação particularizada, mas a validade da norma, in abstrato, isto é, ela é válida para

a unidade legal como um todo, não apenas em partes dela. Assim, caberá ao STF,

guardião-mor da CF, exclusivamente, julgar cada questão em primeira e única

instância.

Em relação aos adjetivos utilizados por Veloso (2000, p. 63) para definir a

Carta Magna, há que se observar o tom sistêmico, estrutural utilizado por este autor

para defini-la. Diz o autor que, seguindo a tradição jurídica alemã, uma lei que

contraria a Constituição, ou ainda, afronta o postulado da hierarquia constitucional,

“representa uma anomalia alarmante, um fator de insegurança que fere,

profundamente, a ordem jurídica, desestabilizando o sistema normativo” como um

todo.

Nesse ponto, em específico, cabe-nos lembrar o que Streck (2000) chama

de a não recepção da viragem linguística pelo modelo interpretativo jurídico vigorante

no Brasil. O autor refere-se a um modo muito específico de fazer direito, aquele

embasado numa filosofia da consciência, em vez de uma filosofia da linguagem. Isto

é, para o professor, o direito é linguagem, antes de qualquer outra consideração.

Desse modo, alinha-se a opinião do jurista Seixas de Meirelles, para quem o domínio

vigorante no Direito contemporâneo é o da filosofia do sujeito-proprietário de

mercadorias, um sujeito dotado de uma capacidade de autodeterminação e que é

abstraído pelo direito-positivo-histórico, sustentado por um paradigma hermenêutico

de cunho metafísico-essencialista, pelo qual o fenômeno é explicado depois de

reduzido à sua essência.

A predicação acima, realizada por Veloso (2000), faz jus ao que Streck

(2000, p. 80, grifo meu) denomina de dogmática jurídica, se não no todo, pelo menos

em parte. Isto porque a ideia de alarmar, ferir e contrariar o sistema vem, em parte,

de:

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[...] uma compulsiva lógica da aparência de sentidos, que opera como uma espécie de garantia de obtenção, em forma retrativa, de um significado que já estava na lei desde sua promulgação. Acredita-se no legislador como sendo uma espécie de onomaturgo platônico ou que o Direito permite verdade apofânticas.

De modo que o Direito, por meio de sua dogmática jurídica, ao elaborar tais

enunciados, confirma sua herança liberal-individualista-normativista, como mostrado

por esse mesmo autor. O trabalho de crítica a esse sistema tem por base o

questionamento do atual discurso jurídico, que utiliza a lei e o saber contra eles

mesmos, no qual o sujeito não é um transgressor, mas sim um protagonista.

Streck (2000, p. 19) apresenta como alternativa de análise o método

fenomenológico heideggeriano de interpretação, ou hermenêutica universal, que é

apresentado por esse autor como “revisão crítica dos temas centrais transmitidos pela

tradição filosófica através da linguagem, como destruição e revolvimento do chão

linguístico da metafísica ocidental”.

A proposta é caracterizada como um projeto de analítica da linguagem, em

que, por meio uma imediata proximidade com a práxis humana, como existência e

facticidade. Neste campo, a linguagem, pensada enquanto sentido e denotação, “não

é analisada num sistema fechado de referências, mas, sim, no plano da historicidade

situacional, pragmático, o que também difere de nossa posição, material-histórica.

Enquanto baseado no método hermenêutico-linguístico, o texto procura não se

desligar da existência concreta”. (STRECK, 2000, p. 19)

A tarefa dentro da qual se desenvolve intensa e precipuamente, no Direito,

a interpretação da Constituição é o controle de constitucionalidade. Dela, urge

distinguir controle difuso de controle concentrado, embora o sistema brasileiro seja

um misto dessas duas formas. É no interior dessa atividade, portanto, que coabitam

interesses diversos, sejam linguísticos, pragmáticos, discursivos e jurídicos.

Entretanto, entender essa transição da Lei Magna para as leis ordinárias

hierarquicamente inferiores, e vice-versa, implica compreender, analiticamente, cada

uma delas enquanto acontecimento enunciativo.

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3.3. Marco civil da internet e constituição federal como acontecimentos

enunciativos

O uso massificado da internet trouxe consigo um amplo espectro de

mudanças estruturais ligado às comunicações entre seus usuários, no campo das

novas tecnologias informacionais, especialmente porque culminou com a necessidade

da regulação dessas relações no campo efetivo da ciência jurídica. No Brasil, esse

conjunto de fatores resultou num longo debate social em torno dos direitos

relacionados ao uso da internet, que ficou conhecido como o Marco Civil da Internet

(MCI), o que se concretizaria, em 2014, com a criação e promulgação da Lei 12.965.

Em princípio, o MCI não recebe a proteção constitucional, apesar de

citações diretas a ela, o que foi recepcionado com bastante preocupação por parte

dos sujeitos envolvidos nesse debate. Trata-se, portanto, de uma ação no campo do

direito da tecnologia da informação que visa a humanizar as relações de internet, isto

é, no ambiente da chamada sociedade digital (GOULART, 2012).

Ora, se tomarmos a estrutura de qualquer lei, como é caso da lei que regula

o Marco Civil da Internet, veremos que, de início, há uma apresentação da lei seguida

de uma ementa, uma espécie de resumo do que será tratado em lei. Após isso, temos

o preâmbulo, que é, basicamente, um parágrafo introdutório que representa o

“espírito” em que foi criada uma lei. Em seguida, temos o conteúdo propriamente dito

da lei, divididos em títulos, capítulos e seções. Tais subdivisões serão compostas por

artigos, que serão, por sua vez, subdivididos em caput, parágrafos, incisos e alíneas.

Caput (cabeça) é a parte inicial do artigo, uma espécie de direcionamento

interpretativo de todo o artigo. Assim, em princípio, as partes de um artigo devem ser

interpretadas de acordo com o conteúdo dessa subdivisão única.

Temos, em relação ao Marco Civil, na parte introdutória da lei, a seguinte

divisão (em três sequencias ou enunciados): (BRASIL, 2014)

Ementa:

(1) “Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da

internet no Brasil”.

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Preâmbulo:

(2) “A PRESIDENTA DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso

Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei”

Caput:

(3) “(art. 1º) Esta lei estabelece princípios, garantias, direitos e deveres

para o uso da internet no Brasil e determina as diretrizes para atuação

da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em relação

à matéria”

Para se pensar em termos de unidade de análise semântica, é preciso

definir cada uma dessas unidades como enunciado, isto é, enquanto unidade de

linguagem, ou ainda, como elemento linguístico em um acontecimento de linguagem,

constituído de consistência interna e independência relativa integrado a um todo de

que faz parte. (GUIMARÃES, 2018). Nesta medida, a semântica do acontecimento

considera o sentido como componente constituído de relações que ocorrem no e pelo

acontecimento de enunciação, o texto.

Na apresentação das três partes acima, localizadas na parte introdutória

da lei, consideramos cada uma delas como que constitutiva dessas propriedades,

dada a enunciação de que fazem parte. Portanto, como será demonstrado no capítulo

destinado à análise do MCI, há algo de incontornável nessas definições porque o

homem fala e, quando fala, ele significa. Assim, podemos dizer, ainda que

provisoriamente e a título ilustrativo apenas, que palavras como garantias, direitos,

decreta, sanciono, funcionam em função de sua relação de integração “imediata” com

o enunciado e “mediata” com o texto.

Ainda em relação ao aspecto histórico da criação do Marco Civil, em

dezembro de 2009, existiam 26 propostas de regulamentação da internet no

Congresso Nacional brasileiro. Apesar disso, o Projeto de Lei nº 84/1999, mais

conhecido como “AI-5 Digital”, levou o Ministério da Justiça a iniciar um processo

público de consulta que tratasse do uso de internet no Brasil, o denominado Marco

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Civil da Internet. Entre os anos de 2011 e 2014, e após debate online em duas fases,

o projeto foi assinado pela então Presidente da República Dilma Rousseff, até

culminar com a aprovação e sanção em 2014, com a Lei nº 12.695 (BRAGATTO;

SAMPAIO; NICOLÁS, 2015).

A iniciativa da consulta pública sobre a criação de uma Marco Civil da

Internet partiu da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça em

conjunto com a Escola de Direito do Rio de Janeiro, da Fundação Getúlio Vargas. A

justificativa é de que havia um “vácuo” na legislação de então, isto é, havia a

necessidade da criação de uma legislação que desse conta de mediar essas relações

nesse espaço e que garantisse regras específicas para usuários e provedores,

principalmente aquelas relativas à privacidade dos dados, à neutralidade e à liberdade

de seus usuários.

Inclusive, durante esse processo, houve a tentativa de aprovação do PL nº

84/99, do deputado Eduardo Azeredo (PSDB/MG), conhecida também como “Projeto

de Lei Azeredo”, ou “Lei Azeredo”, que, entre outros pontos polêmicos, versava sobre

a criminalização e a identificação obrigatória dos usuários da internet, com a guarda

dos registros de navegação pelos provedores, que, de certa forma, abstiveram-se do

debate público.

Uma das questões muito discutida à época dizia respeito às formulações

de políticas que contassem com a participação dos sujeitos para tomar decisões

desse porte, no caso específico, no campo de estudos e políticas de comunicação.

Por outro lado, discute-se se o público “exerce” papel passivo de espectador e, assim,

deva cobrar a possibilidade de sua participação ativa no processo. Nesse campo,

afirma Levy (2003 apud BRAGATTO; SAMPAIO; NICOLÁS, 2015, p. 2):

Essa segunda abordagem encontrou novo fôlego nos processos de abertura política e econômica dos anos 1990 que foram acompanhados pela emergência de um novo espaço de debate virtual e globalmente conectado por redes digitais, como proposto pela ciberdemocracia

Ora, o texto da lei que regula a relação entre usuários e provedor de

internet, por se tratar de instâncias reguladas pelo poder, é considerado como espaço

político, como o seria em diversas outras áreas do saber. Contudo, algumas ressalvas

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a esse olhar sobre o político devem ser feitas, antes de prosseguirmos. Desse modo,

importa apresentar que implicações há em considerarmos o referido texto como

acontecimento enunciativo.

Ao considerarmos este texto legal como acontecimento de linguagem, que

se dá em espaços de enunciação, assumimos, em consonância com Guimarães

(2005c), entre outras coisas, o fato de que é um acontecimento dado por

agenciamentos políticos de enunciação. Isso porque, o político aqui não é tratado

como aquilo que se fala sobre a igualdade ou sobre os direitos de uma pessoa, ou de

forma negativa e idealista, como comumente tratado pela sociedade, isto é, como um

embate de ideias, lugar de engodo, enganos e corrupção. Antes, enunciativamente, o

político é tratado como o fundamento das relações sociais (GUIMARÃES, 2005c)

Mais especificamente, para Guimarães (2005c), o político deve ser definido

pela materialidade das relações que se estabelece “caracterizado pela contradição de

uma normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do real e a afirmação

de pertencimento dos que ainda não estão incluídos” (2005c, p. 16). Além disso, o

autor sustenta que o político é incontornável e que isso se dá porque o homem fala.

Nesse sentido, entender o texto jurídico da Lei relativa ao Marco Civil da

Internet como acontecimento implica analisá-lo agora numa perspectiva de ordem

material não idealista, como regularmente se faz nas disciplinas ligadas à semântica

da enunciação e determinadas linhas da Análise do Discurso. Isto quer dizer que,

como acontecimento, conforme dissemos acima, o referido texto passa a ser pensado

enquanto uma instância diferencial de ordem temporal própria, não empírica, que

atribui o sentido específico a partir de sua ocorrência.

Assim, conforme Guimarães (2005c), o político, que aí se constitui como

contradição que instala conflitos determinados no centro do dizer desse discurso,

revela, pela linguagem e em termos enunciativos, uma contradição mais específica:

aquela entre a normatividade das instituições de direito que regulam e organizam

desigualmente o real e a afirmação de pertencimento dos não incluídos, neste caso,

aqueles a que a lei quer, ou pretensamente pretende, alcançar.

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No que diz respeito à Lei Maior, parte-se do pressuposto de que uma

Constituição como a brasileira, independentemente de suas peculiaridades jurídico-

socais, tem como mote o cumprimento das exigências para o estabelecimento de

políticas públicas voltadas a um Estado Democrático de Direito. Há, assim, uma

espécie de deontologia do “cumpra-se” (que pode querer dizer “ausência de

cumprimento”), epistemologicamente ligada à noção de Constituição.

Como afirma Guimarães (2018, p. 37), “a definição de acontecimento [...]

diversamente dessa posição empirista, exige que algo seja relacionado a uma certa

ordem que lhe atribui uma significação”. Essa ordem é a sua própria ordem, que é o

que caracteriza a enunciação. Assim, são considerados neste conceito, de um lado, a

especificidade dessa instância e, de outro, a enunciação, cuja característica é oriunda

dessa especificidade, que é o que o faz diferente de outros acontecimentos, qual seja,

sua temporalidade (própria) de sentidos.

Na crítica que elabora relativa ao não cumprimento dos direitos previstos

na unidade constitucional, Streck (2000) o faz evocando, antes de mais nada, a ideia

de que deve o Judiciário, primordialmente, atentar para o fato de que um Estado

Democrático de Direito é perpetuado pela via do controle jurisdicional de

constitucionalidade das leis, o qual (Judiciário) “pode servir como via de resistência às

investidas dos Poderes Executivo e Legislativo, que representem retrocesso social ou

a ineficácia dos direitos individuais ou sociais”. Completa seu raciocínio tratando de

temporalidade desse acontecimento, diferente do modo como tratamos aqui: “a

Constituição não tem somente a tarefa de apontar para o futuro. Tem, igualmente, a

relevante função de proteger os direitos já conquistados”.

Num dos momentos em que constrói sua crítica, Streck (2000, p. 45) chama

a atenção para uma concepção de Constituição em que esta é, e deve ser tratada,

enquanto “espaço de regulação garantidor das relações democráticas entre Estado e

a Sociedade”. Um primeiro olhar sobre esta definição nos conduz a uma aceitação

sem ressalvas à ideia de garantia prevista nesse instituto, porém, uma análise

conduzida pela via político-enunciativa, nos termos em que colocamos acima, nos

mostrará que o político não é significado e constituído nos espaços de enunciação por

um dizer normatizado da dogmática jurídica, nem por sua afirmação de pertencimento

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(a garantia que nos é “por direito”), mas por uma contradição que instala nesses

espaços o conflito no centro desse dizer.

Como vimos, para Guimarães (2018), algo só tem sentido de

acontecimento específico se tomado/considerado numa determinada ordem, caso

contrário, será tomado como um fato simplesmente ocorrido. Portanto, não é possível

tomar algo como acontecimento quando isolado, isto é, como tomado em sua

dimensão empírica. O acontecimento, visto desse modo, não é apriorístico.

A Constituição Federal, no modo como é concebida no Brasil, encontra-se

situada, como já apontamos, no topo da pirâmide jurídica (VELOSO, 2000) e

fundamenta a validade das leis e atos normativos. Assim, as normas que a constituem

são dotadas de preeminência em relação às demais leis que integram o ordenamento

jurídico estatal. Tais normas infraconstitucionais devem se adequar, isto é, ser

pertinentes, conformar-se com a Constituição, que funciona como o parâmetro, o valor

supremo, o nível mais elevado do direito positivo. Por isso, denominada a “Lei das

leis”.

Justamente para manter essa supremacia é que é criado um sistema de

defesa desse instituto, que seja capaz de “imunizá-lo”, que faça com que atos

normativos que o antagonizem percam sua eficácia e não se “concretizem” enquanto

lei, esse sistema é controle de constitucionalidade.

Segundo as concepções defendidas pela dogmática jurídica, a inexistência

de um controle da constitucionalidade das leis levaria à desarmonia da estrutura legal,

do ordenamento jurídico, uma vez que violaria o princípio essencial da Carta Magna.

Num país como o Brasil, cuja Constituição é do tipo rígida, o controle de

constitucionalidade é fundamental, além de ser o principal mecanismo de proteção

constitucional. (VELOSO, 2000)

Outro aspecto importante do sistema de proteção da Constituição brasileira

é que o judicial control é um processo de controle indireto, isto é, só funciona quando

sua função judicante é provocada por alguém que se sinta lesado. Tais características

relativas a esse acontecimento enunciativo lhe auferem particularidades fundamentais

para a análise linguística. Isso porque, a partir de 15 de novembro de 1889, na

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transição de monarquia para república, a questão do federalismo passa

necessariamente por um Estado regido eminentemente por uma Constituição, aliás,

garantido por seu meio, em que a repartição de competências passa a ser uma tarefa

constitucional (BASTOS, 2014).

Ora, para pensarmos a Constituição como acontecimento, por exemplo,

alinhados com o que afirma Guimarães (2005; 2018), dizemos que a diferença que

constitui a especificidade do acontecimento “Constituição Federal” é uma

temporalidade de sentidos representada pela relação entre um passado, um presente

e um futuro, na qual a Constituição não é pensada como estando no tempo, mas como

uma instância constituída de seu próprio tempo:

Para caracterizar esse dizer de que o acontecimento é uma diferença em

sua própria ordem, e como essa instância conduz a caracterização da enunciação na

linguagem (GUIMARÃES, 2018), procederemos, em relação aos dois textos

escolhidos como acontecimentos, à configuração da dimensão dessas unidades de

análise, no intuito de caracterizar cada um deles.

Importa, antes de partirmos para a análise propriamente dita desses dois

acontecimentos, reafirmar, a partir da posição enunciativa que defendemos aqui, o

que dissemos acima a respeito da relação entre o acontecimento da Constituição

Federal do Brasil e o acontecimento do Marco Civil da Internet – Lei 12.965/14: não

se trata de uma relação do tipo em que o texto infraconstitucional (Marco Civil) é dado

por uma conformação do que se encontra enunciado no acontecimento da Carta

Magna, mas de algo enunciado enquanto uma diferença em relação ao texto

constitucional.

A posição defendida neste trabalho encontra-se “revestida” de um

significado demonstrado pelos mecanismos de análise disponibilizados pela teoria

semântica do acontecimento, que considera o sentido e o significado determinados

pela enunciação, em outras palavras, propor o deslocamento analítico das posições

idealistas e empíricas de noções interpretativas de orientação de filosofias da

consciência, próprias do olhar jurídico, e, em seu lugar, oferecer um leitura materialista

e simbólica (não-empírica) de tal modo que recoloque esta questão no domínio efetivo

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das ciências da linguagem, que seja lastreada por uma relação política entre línguas

e falantes.

Nesse sentido, observamos o que afirma Guimarães (2008, p. 34, grifo

nosso):

Tomar o conceito de espaço de enunciação [...] permite considerar o funcionamento enunciativo a partir da relação entre falantes e línguas; indica claramente que a história das línguas pode ser retomada em outros termos, a partir da consideração das relações próprias do espaço de enunciação colocando em cheque as concepções históricas que privilegiam ou as relações internas às línguas, ou as relações chamadas de contato. O conceito de espaço de enunciação exige que estes aspectos sejam considerados como constitutivos do processo histórico do funcionamento da linguagem e das línguas.

Pelo que vimos, a análise linguística de viés enunciativo conduz a uma

inflexão analítica histórica nos estudos da linguagem, na medida em que propõe um

olhar sobre o texto enquanto acontecimento de linguagem, em que o sentido se

constitui como integrado ao texto. Isto quer dizer que, analisar algo dentro dessa

posição implica, de uma lado, assumir uma posição de materialidade histórica dada

por essa temporalidade própria de cada acontecimento e, de outro, conceber que a

análise e descrição de enunciados desse acontecimento é capaz de significar a partir

de relações entre elementos linguísticos desses enunciados e o texto com o qual se

encontram integrados (GUIMARÃES, 2018).

3.4. Configurações da cena enunciativa e espaço de enunciação jurídicos

Como visto anteriormente, o acontecimento de enunciação, constituído que

é por uma temporalidade própria, caracteriza-se pelo funcionamento da língua num

espaço de enunciação (GUIMARÃES, 2018), que é constituído, por sua vez, por

falantes enquanto determinados pelas línguas deste espaço, isto é, espaço de línguas

e falantes.

Vimos também que estes espaços distribuem desigualmente as línguas

para seus falantes e que, nessa medida, na medida dessa distribuição desigual, os

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espaços de enunciação são políticos. De modo que, a análise desses dois

acontecimentos jurídicos se dará nas bases, segundo suas teorias, da análise de cada

uma dessas cenas enunciativas, pela caracterização do político nos dois

acontecimentos de enunciação, segundo os procedimentos específicos de análise

fundamentados nesses conceitos.

Não é demasiado repetitivo lembrar que toda a análise linguística à qual

recorremos aqui parte, primeiramente, da enunciação, e isto quer dizer que “a

enunciação diz respeito a algo que ocorre quando se diz algo” (GUIMARÃES, 2018),

mas não em termos contextuais ou ainda de com que intenção se diz algo, mas em

termos de um dizer que se configura enquanto um acontecimento de enunciação, de

linguagem.

Para melhor entendermos o que seja enunciação, Guimarães (2018)

esclarece que (primeiramente) precisamos compreender os conceitos de espaço de

enunciação, língua, falantes e qual a natureza da relação entre falantes.

O espaço de enunciação é uma instância política de regulação e de

disputas pela palavra dadas as relações simbólicas, entre língua e falante, que o

constitui. Assim, uma vez configurado o acontecimento, temos a relação enunciativa

assim configurada, em todas as suas nuances.

Guimarães (2005c, p. 18), define assim esses espaços:

São espaços “habitados” por falantes, ou seja, por sujeitos divididos por seus direitos ao dizer e aos modos de dizer. São espaços constituídos pela equivocidade própria do acontecimento: da deontologia que organiza e distribui papéis, e do conflito, indissociado desta deontologia, que redividem o sensível, os papéis sociais. O espaço de enunciação é um espaço político [...]

Nesta esteira, o fato de ser uma relação simbólica, faz com que esses

falantes não sejam tomados em uma dimensão empírica, ou seja, esses “falantes não

são indivíduos, as pessoas que falam esta ou aquela língua”13, no sentido de que não

13 Ibidem, p. 18

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se trata de pessoas do ponto de vista fisiológico. Assim, o falante é uma categoria

linguístico-enunciativa.

Naquilo que se refere à língua, como vimos em Guimarães (2005c), falar,

por exemplo, uma língua como o Português, considerando espaço de enunciação de

que faz parte, é estar afetado pelas divisões aí produzidas, e não pelas variações,

como o concebido pela sociolinguística quantitativa. Assim, a relação entre falantes e

língua, tal como aqui concebido, é concebida pelo modo como os falantes se

identificam por essa divisão, marca de uma hierarquia de identidades.

Esta formatação própria do espaço de enunciação, no qual se opera um

determinado modo de dividir os falantes segundo os valores dessa hierarquia, permite

afirmar que “estar identificado pela divisão da língua é estar destinado, por uma

deontologia global da língua, a poder dizer certas coisas e não outras, a poder

falar de certos lugares de locutor e não de outros”14.

3.4.1. O político e a enunciação no Marco Civil da Internet e na Constituição

Federal do Brasil de 1988

Guimarães (2018, p. 50, grifo nosso) define o político como segue:

[...] ele se caracteriza pela oposição entre a afirmação de igualdade em conflito com uma divisão desigual do real produzida enunciativamente pelas instituições que o organizam: organizam os lugares sociais e suas relações, identificando-os (ou seja, atribuindo-lhes sentido), e recortam o mundo das coisas, significando-as. Por este conflito o real se divide e redividem, se refaz incessantemente em nome do pertencimento de todos nós.

Para observamos a questão do político na enunciação da referida lei,

tomaremos, de saída, o que se encontra enunciado no caput do capítulo 1, intitulado

“Disposições preliminares”. Esta sequência, pela própria definição de Caput, designa

tudo o que deverá permear o acontecimento como um todo, isto é, toda a lei,

14 Ibidem, p. 21, grifo nosso.

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especificamente a respeito do que nela deve constar em termo gerais (BRASIL, 2014).

Vejamos:

(1) Esta Lei estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil e determina as diretrizes para atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em relação à matéria.

O sentido que esta sequência produz faz significar uma enunciação que

instaura um conjunto de normas que divide indivíduos (sem especificá-los) instituições

ou pessoas que, de um lado, criam regras, de outro, obedecem a regras. Desse modo,

o acontecimento de enunciação apresentado é produzido por um agenciamento do

falante a dizer, em cuja cena enunciativa, a divisão dos lugares de enunciação não

aparece nomeada ou evidente, mas como uma resultante da relação entre enunciados

do texto, independência relativa.

Politicamente, apesar de se tratar de uma única língua, a Língua

Portuguesa oficial do Brasil, aquela utilizada pelos internautas, podemos dizer que o

real se encontra dividido entre aqueles usuários de internet (alfabetizados ou não) e

não usuários de internet (alfabetizados ou não). Isso é o que acontece quando este

enunciado entra em circulação na língua, quando passa a funcionar, que é o momento

a partir do qual o “direito” lhes é ofertado, assegurado.

Vemos, embasados na máxima constitucional de que todos são iguais

perante a lei, que o enunciado traz em si um elemento silenciado pela própria

enunciação. Isso se dá pelo fato de que seus usuários, na verdade virtuais, além de

não estarem previstos de fato no alcance desta premissa, têm sequer previstos

direitos como, por exemplo, o de inclusão. Portanto, neste acontecimento de

enunciação, afirma-se o igual, instituído por seu conflito com uma desigualdade não

enunciada, como que pertencente, tal igualdade, a todos.

Em outro aspecto, é imprescindível indicar, na enunciação, como se dá seu

funcionamento enunciativo, no agenciamento da enunciação, uma vez que, uma

resposta à pergunta “a quem se destina a liberdade de expressão?”, prevista no art.

2º desta lei, não é, nem pode ser, dada por uma resposta de cunho empírico do tipo

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“a esse sujeito que usa a internet”, mas a quem se destina, enunciativamente, essa

promessa de garantia, isto é, a um tu presente na alocução de uma cena enunciativa

dada, como veremos em mais detalhes adiante.

Observemos agora, o caput do art. 5º da Constituição Federal:

(2) Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a à propriedade, nos termos seguintes:”

Em (2), caput do art. 5º da CF, dizemos, com Guimarães (2005c), que há

um dizer normativo do ordenamento jurídico associado a uma afirmação de

pertencimento de um direito de todos: o da igualdade. Ora, se o político não é o que

se diz sobre igualdade, mas a afirmação da igualdade dada por essa forma de

pertencimento de um direito do povo brasileiro, ou ainda, num espaço dividido

desigualmente pelo real, temos, na afirmação do universal dessa igualdade um

conflito, uma contradição engendrada pelo desenvolvimento desigual e combinado

das forças que operacionalizam o jurídico neste espaço.

Segundo Guimarães (2002, p. 17, grifo nosso), o político, além de outras

coisas, “é caracterizado pela contradição de uma normatividade que estabelece

(desigualmente) uma divisão do real e a afirmação de pertencimento dos que ainda

não estão incluídos”, o que é sugerido em (2) pela presença de Todos (uma inclusão

universal) que, embora esteja predicado pela ideia de igualdade, é “afetado”, por

exemplo, por uma exclusão no interior desse mesmo enunciado, qual seja, a de

estrangeiros não-residentes que estejam no país.

Assim, o sentido produzido neste enunciado, em termos políticos, não é

uma ideia que se tem de igualdade, ou o simples fato de o texto constitucional tratar,

entre outros assuntos, de igualdade. O político está aí representado por um conflito,

ou contradição, entre a normatividade própria do ordenamento jurídico, que se

interpõe enquanto uma afirmação da igualdade oferecida a “todos” e em cumprimento

dos tratados e convenções internacionais de estados republicanos, e a afirmação de

pertencimento expressa por todos, que na verdade é uma referência a alguns, isto é,

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perante a lei, o que se põe, põe-se enquanto uma restrição e não enquanto uma

universalização, de fato.

Temos em tela a seguinte situação: o art. 5º da CF, caput que abre o

capítulo I do título II deste acontecimento, intitulado “Dos direitos e deveres individuais

e coletivos”, enuncia um assunto voltado ao que poderíamos denominar “direitos da

sociedade” com fundamento nas relações sociais. Em outros termos, temos o próprio

da mediação, realizada pelo Direito, das relações sociais. Em termos políticos e

enunciativos, na direção da teoria semântica a qual me afilio, o real jurídico,

organizado pelos preceitos de um ordenamento de tipo dogmático, assenta-se num

princípio político norteador que se dá por uma dinâmica social regida pelo conflito

entre a divisão normativa e desigual por ele engendrada e sua redivisão. Nesse caso,

ainda que os desiguais não afirmem, propriamente, seu pertencimento a este ou

aquele direito, eles se “veem”, por uma aceitação tácita coletiva, própria da “natureza”

das leis, “assistidos” por esses direitos.

Por isso se diz: “o político é incontornável [na medida em que...] porque o

homem fala”15. A incontornabilidade do político neste acontecimento de enunciação é

dada, por assim dizer, por uma divisão desigual de papeis, entre aqueles que podem

fazer/dizer coisas e aqueles que não podem fazer/dizer coisas. Por isso, trataremos

em seguida dos papéis enunciativos assumidos pelo sujeito no funcionamento da

enunciação.

3.5. Agenciamento da enunciação no acontecimento jurídico

Dizer que alguém é agenciado a falar implica perscrutar caminhos para

além de uma teoria semântica. Assim, assumir esta posição nos conduz a assumir,

logo de início, outras posições, assim como já o fizemos em outros momentos neste

trabalho. Por hora, cabe lembrar que o sentido de agenciamento utilizado por

Guimarães (2005c) é aquele oriundo, em grande parte, de Deleuze (1995). Já o

sentido concernente à enunciação é o de um espaço no/pelo qual seja possível

15 Ibidem, p. 17

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considerar a constituição histórica do sentido, o que coloca de antemão a questão do

sujeito que enuncia, enquanto sujeito na linguagem. Outro aspecto é que esse sentido

de enunciação assumido pelo autor se coloca à parte de abordagens de cunho lógico,

empírico (falantes não são pessoas físicas), gramatical ou cognitivo (relativo à uma

intenção do sujeito), mensuráveis e matematizáveis.

Em face do colocado, dizemos com Guimarães (2018, p. 44) que “o sentido

se constitui exatamente pelos modos de agenciamento do acontecimento de

linguagem” e não por aquilo que nos é referenciado por uma correspondência direta

entre o elemento linguístico e seu mundo externo, ou ainda, pela intenção de um

sujeito dado um contexto imediato numa performatividade qualquer.

Pelo que vimos da cena enunciativa, sabemos que se trata de uma

disposição simbólica representativa de especificações locais nos espaços de

enunciação, em que essas especificidades de acesso à palavra (GUIMARÃES,

2005b) dão-se a partir da configuração enunciativa dessas relações, aquela entre

figuras da enunciação e suas respectivas formas linguísticas. Assim, a cena

enunciativa é constitutiva do agenciamento a dizer do falante

Na cena, cada lugar enunciativo representa uma configuração específica

de um determinado agenciamento enunciativo do falante, isto é, para aquele que fala

e para aquele para quem se fala (GUIMARÃES, 2002, p. 23, grifo nosso): “são lugares

constituídos pelos dizeres e não por pessoas donas de seu dizer”, justamente por não

serem donas é que diz, são agenciadas a falar, interpelado em alguma medida. Esses

lugares não se encontram estanques, mas distribuídos pela temporalização própria

do acontecimento, a qual é o fundamento da cena enunciativa.

Desse modo, o falante pode ser agenciado em Locutor, representado aqui

por “L”, que é o lugar que se representa no próprio dizer, como fonte deste dizer e,

“ao ser agenciado como aquele que diz, o Locutor diz somente na medida em que o

falante é também agenciado por um lugar social e político. “Assim, se o falante é

agenciado em o lugar que diz, este lugar que diz só o faz na medida em que o falante

se divide em lugar que diz e lugar social de dizer”, denominado alocutor, um lugar

oficial.

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3.5.1. Análise do acontecimento produzido pelo dizer jurídico em cenas

enunciativas

Como vimos, é na cena enunciativa que se dá a conformação dos lugares

enunciativos, que é o caso, por exemplo, do alocutor, que é sempre um alocutor-x, o

qual, dado um acontecimento específico de que faça parte, será caracterizado pelo

próprio acontecimento enunciativo. Este lugar, o alocutor-x, tem por correlato um

alocutário-x, aquele para quem o alocutor diz, dada uma alocução (GUIMARÃES,

2018). Temos assim:

al-x -------------------correlato de---------------------at-x

Por esta correlação, entendemos haver uma relação em que um lugar

social de dizer (al-x) “dirige-se” a um lugar social a quem se diz (at-x), com “x”

enquanto uma variável representativa do nome desse lugar.

Segundo Guimarães (2018, p. 45, grifo nosso), “de um lado o Locutor se

apresenta como o lugar que diz, de outro o lugar que diz só diz enquanto de um lugar

social de dizer”. De tal modo que, para os efeitos de análise e aplicação do método,

o primeiro lugar será tratado por, apenas, Locutor (ou L simplesmente) e o segundo

lugar de lugar social de dizer, ou alocutor-x, em que “x” é uma variável a ser

preenchida pela consideração do lugar específico em que o falante é agenciado. Em

síntese, “o acontecimento da enunciação produz sentido nisto que chamamos cena

enunciativa constituída pelo agenciamento do falante em lugares de enunciação.

Estes lugares configuram o funcionamento da alocução”16. Além desses lugares

caracterizados acima, há ainda um outro aspecto dessa divisão de lugares que

constitui a politopia da cena enunciativa, o lugar denominado lugar de dizer, ao qual o

autor denominou Enunciador.

16 Ibidem, p. 46, grifo do autor

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Uma relação de alocução na cena enunciativa se dá a partir das seguintes

figuras enunciativas:

Falante (f): aquele “agenciado a” e dividido em L e em al(-x)

Locutor (L): aquele que diz; falante enquanto agenciado em Locutor

Locutário (LT): aquele para quem o L se dirige, correlato de L

alocutor (al): Aquele que diz enquanto lugar social de dizer

alocutário (at): Aquele para quem o locutário diz algo enquanto lugar social

correlato de um locutário

Enunciador (Ei) = Representação de um lugar de dizer

Esquema de correlações17

Locutor (L) --------correlato de------------------- Locutário (LT)

alocutor (al-x) ----------correlato de-------------------- alocutário (at-x)

Assim, a título de exemplificação, observaremos o seguinte enunciado,

parte (recorte) da sequência (2), com vistas a pensar como o agenciamento do falante,

no caso em tela, isto é, neste acontecimento de enunciação, produz a cena

enunciativa. Temos então:

(2a) Todos são iguais perante a lei.

17 Nota: a figura Enunciador, também um lugar de enunciação, não possui correlato.

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Podemos observar, no plano dos sentidos constituídos pelo acontecimento,

um primeiro aspecto desta análise: há, de uma lado, alguém que diz o que está em

(2a), e o diz enquanto falante que é agenciado a dizer neste acontecimento, ou seja,

o Locutor de (2a); de outro, aquele para quem o Locutor afirma essa garantia, que é

aquele para quem ele se dirige, isto é, seu Locutário, correlato desse Locutor.

Notemos que, se optarmos pela paráfrase de (2a), nos mesmos moldes de

parafraseamento que Guimarães (2018) vem apresentando, teríamos, por exemplo,

algo do tipo:

(2a') (Se) todos são iguais perante a lei, pode-se considerar, então,

que não há quem não seja alcançado por essa igualdade.

Ou ainda:

(2a'') (Se) todos são iguais perante a lei, pode-se considerar, então, que não há ninguém que deva ser tratado de forma/como diferente.

Uma das explicações possíveis para o que encaminha para esses

parafraseamentos é o fato de o elemento todos, unidade a partir/em torno da qual todo

o enunciado funciona e, por isso, “portadora” de uma independência relativa, ter como

propriedade uma consistência interna tal que, segundo o preceito lógico, trata-se de

uma referência a uma universalidade irrestrita, não cabendo exceções.

Assim, ao analisarmos essas paráfrases, vemos que, ao dizer todos, tanto

em (2a) quanto em (2a'), o Locutor apresenta-se como aquele que diz todos. Ainda

assim, o que vemos é que, por este caminho, encontramos, até onde podemos, pouco

a dizer, afora apresentar, formalmente, que lugares se apresentam no acontecimento

específico desta enunciação, o que, como veremos adiante, é algo a ser aprofundado

pela análise.

A cena enunciativa coloca também em jogo os lugares de dizer, os

enunciadores. Não se trata, portanto, de um lugar no acontecimento da enunciação

que projeta um tu, como os demais lugares, mas um modo de um eu apresentar-se

na sua relação com o que se diz, significando diferentes relações entre o lugar de

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dizer e o que se diz (GUIMARÃES, 2005c). Esses lugares apresentam-se sempre

como a representação da inexistência dos lugares sociais de locutor.

Por esta perspectiva, e tomando de novo (2a) como a sequência de análise,

podemos afirmar que quem aí diz, em relação ao que diz, não é alguém que se

apresenta como que independente da história, acima de todos e que retira o dizer de

sua circunstancialidade. Tampouco é aquele que se apresenta como apagamento do

lugar social, ou ainda como aquilo que todos dizem, num todos diluído numa

identificação de fronteiras para esse conjunto de todos.

O lugar de dizer presente nesse enunciado, mais precisamente, nessa cena

enunciativa, significa o Locutor como que submetido a um regime de uma binaridade

valorativa, do tipo verdadeiro/falso, igual/desigual, permitido/não permitido. Assim,

dizemos que em (2) temos um tipo de afirmação não modalizada “em que o

enunciador, ao se apresentar como o lugar de dizer, apresenta-se como quem diz algo

verdadeiro em virtude da relação do que diz com os fatos” (GUIMARÃES, 2018,

p.132). Esta representação é uma forma de identificação do enunciador com o

universal, por isso, enunciador-universal. Por isso, um lugar de dizer como não social,

fora da história.

Estas conclusões, quando associadas a um modo próprio de

funcionamento do jurídico, identificam-se com um “modo geral” de enunciações

ligadas à legalização produzidas em cenas enunciativas próprias desses tipos de

acontecimentos. No caso específico do enunciador universal presente no enunciado

em tela, observamos que no agenciamento desta enunciação, em que o falante é

agenciado a falar, na medida em que é constituído pela relação com as línguas do

espaço de enunciação a partir do qual fala, além de colocá-lo em litígio com outros

falantes (GUIMARÃES 2018).

Em (2a’), o alocutor é um alocutor-legislador (aquele que oficialmente

legisla para e em nome dos brasileiros), do qual se relata um dizer dito do lugar de

dizer universal. Enquanto que o enunciador se apresenta como o lugar que garantes

a todos e todas a verdade desta afirmação, a de que todos e todas, isto é, sem

exceção, são iguais perante a lei. Assim, o acontecimento, significado em (2a’) acima,

se refere à igualdade como algo irrestrito e indistinto, “fazendo crer” que o que aí se

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afirma sobre igualdade seja algo “previamente entendido” por aqueles para quem esta

lei, “supostamente”, visa a alcançar. Nesse sentido, o correlato do lugar social de

dizer, o alocutor desta cena, é o alocutor-legislado.

Por outro lado, a cena, por esse agenciamento, produz, politicamente, a

divisão Locutor/alocutor-legislador. De modo que o enunciador que acabamos de

analisar apresenta-se segundo a relação com o que se diz, neste caso, como

universal. Segundo Guimarães (2018, p. 64), “um aspecto importante na relação entre

os lugares de enunciação é que as correlações L/LT e al-x/at-x são estabelecidos em

relação ao modo como o enunciador (E) é agenciado”, no nosso caso, um enunciador-

universal que se apresenta como quem diz uma verdade, nos termos em que o jurídico

é apresentado para a sociedade historicamente. Isso porque dada a historicidade do

agenciamento enunciativo, que é caracterizada pelo espaço enunciativo e pela cena

enunciativa, dizemos que um instituto de verdade do jurídico encontra-se presente

nas formas como o falante é agenciado e nas suas respectivas correlações dentro da

cena.

Primariamente, podemos elaborar o diagrama representativo da presente

cena enunciativa, na forma como segue em (a):

(a) L -------------------------------------------------------------------------------- LT

Euniv. - Todos são iguais perante a lei

al-legislador-------------------------------------------------------------al-legislado

Conforme o que vimos, e considerando as relações do espaço de

enunciação, o falante, agenciado e dividido pelo acontecimento de enunciação, é

constituído pelas relações históricas entre línguas (GUIMARÃES, 2018). Isto implica

algo fundamentalmente importante nos estudos enunciativos do sentido e da

significação em linguagem, qual seja, o fato de que a linguagem não é vista nos

domínios enunciativos como algo fundamentalmente dialógico, mas histórico, como

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pressupõe o próprio funcionamento do agenciamento enunciativo: dado pela

caracterização do espaço de enunciação, considerando que a relação que o constitui

seja entre línguas e falantes e não entre falantes simplesmente, e pelas configurações

e constituições díspares do acontecimento, ora apresentadas na presente cena

enunciativa.

4. ANÁLISE SEMÂNTICO-ENUNCIATIVA DA LEI 12.965/14 E DA CONSTITUÇÃO

FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

4.1. Apresentação do objeto e do procedimento de análise

Conforme o que vimos até aqui, o acontecimento de enunciação toma o

falante e o agencia como lugar de enunciação e, nessa medida, estes agenciamentos

enunciativos produzem textos que integram enunciados diversos. Estes, por sua vez,

significam por esta relação com os textos. Há, portanto, diferentes modos de relação

dos enunciados nos textos que, de modo geral, nos interessam e que fazem parte de

um escopo analítico decisivo no que diz respeito aos objetivos do presente estudo.

Para tanto, entendemos que a significação e o sentido na enunciação são instâncias

produzidas a partir da mobilização da língua relativamente a uma materialidade

histórica, dentro de espaços de enunciação, especificamente na sua relação com

falantes.

Nessa medida, tomaremos como procedimentos de análise dos textos

jurídicos, e de seus respectivos enunciados, os modos de relação enunciativa da

articulação e da reescrituração, em cujo funcionamento encontra-se “previsto”, e é o

que nos interessa mais particularmente, o funcionamento enunciativo da enumeração,

por meio do qual estes modos de relação produzem coexistências de funcionamentos

e sentidos (GUIMARÃES, 2009). De modo geral, pensaremos a referência e a

designação de termos específicos.

Neste capítulo, analisarei, portanto, dois acontecimentos enunciativos em

específico, recortes do texto da Lei 12.965/14 e da Constituição Federal do Brasil de

1988. Como ato de trabalho procedimental, partirei da sondagem, a partir da qual

procurarei encontrar e explorar enunciados em recortes destes acontecimentos de

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enunciação, explorando esses enunciados enquanto integrados ao texto do qual serão

recortados (GUIMARÃES, 2018) e que aí significam. Outro aspecto particular deste

procedimento será a análise comparativa de recortes realizados por sondagens

relacionadas a outras sondagens e, por assim dizer, de recortes operados em textos

distintos que contenham um mesmo elemento linguístico, tidos pelo ordenamento

jurídico como “complementares” e coordenados entre si. Este trabalho comparativo e

relacional de diferentes sondagens, espera-se, permitirá que a análise encaminhe, por

si, novos rumos e eventuais inflexões nos domínios da semântica da enunciação.

Para o desenvolvimento da presente análise, consideramos que o texto

jurídico possui um modo de funcionamento específico, um escopo a partir do qual se

configura e se estabelece um “padrão”, do ponto de vista do funcionamento de textos

que venham a compor um modelo de texto válido para o ordenamento jurídico em,

praticamente, toda a sua esfera. Ou seja, passadas todas as etapas de

formulação/composição da lei, (projeto, criação, sanção e promulgação) segue-se o

cumprimento de toda uma adequação ao “modelo geral” permitido nesses espaços.

Este “formato”, no sentido próprio de forma linguística e de sua disposição no texto,

interessa-nos diretamente, pois a língua é um sistema de regularidades moldado pelas

relações constitutivas dos discursos que, pela enunciação, movimentam seu

funcionamento (DIAS, 2015).

A partir disso, segundo os princípios enunciativos de que partimos e no

imbricamento entre forma e enunciação jurídica presentes no texto da lei, os

acontecimentos enunciativos sobres os quais especificamente nos debruçamos

configuram-se enquanto instâncias de funcionamento próprio dessas enunciações, e

com uma particularidade: a de possuírem “lugares” a serem formalmente preenchidos

pelos alocutores dessas enunciações por meio de um ritual, ou, de seu cumprimento.

Antes de tratar dessa particularidade, cumpre lembrar que enunciados são unidades

de análise semântica possuidoras de sentido, dados por três princípios básicos: a)

pelo modo de relação com o texto de que são parte constitutiva; b) por possuírem

independência relativa frente aos textos de que fazem parte; e c) por possuírem

consistência interna que os identifiquem e os “substanciem” enquanto unidade.

A referência a esses “lugares” a serem preenchidos por certas rubricas

jurídicas para a constituição dos textos de lei a que nos referimos acima diz respeito

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ao fato de que não se tratam apenas de nomes (ainda que não apareçam formalmente

no texto de lei) dados pelos doutrinadores, mas de enunciados cujo sentido é dado na

enunciação pela “posição” que ocupam no formato geral da lei e, como tal,

possuidores de cenas enunciativas distintas uma das outras, como veremos a seguir.

Dessa forma, o texto legal possui, em regra nessa ordem, título, ementa,

preâmbulo e artigos constitutivos de um caput, o primeiro artigo, que encabeça o artigo

como um todo, incisos, parágrafos e alíneas. Em relação aos artigos, estes se

encontram no interior de divisões específicas: títulos e capítulos, que os nomeiam.

Dentro dos capítulos há ainda seções e subseções. Além disso, para a presente

análise, consideraremos a indicação do número da lei, seguida de sua data de

promulgação, como título do texto, além dos nomes que encabeçam tanto o título

propriamente dito quanto os capítulos e seções de cada um desses títulos. Isto posto,

podemos proceder à análise dos objetos, iniciando pela Lei 12.965/14.

4.2. Análise do preâmbulo da lei 12.965/14

No caso específico da Lei 12.965/14, lei que regulamenta o uso da internet

no Brasil, temos um nome que encabeça o texto, portanto, uma espécie de título

“geral” desta lei, “possuidor” que é de todas as características de um enunciado com

funcionamento de sentido relacionado ao texto que nomeia, qual seja, um enunciado-

título: “Lei 12.965, de 23 de abril de 2014”. Pelo princípio da sondagem, apresentado

acima e na metodologia do presente trabalho, neste texto, procederemos ao recorte

dos seguintes enunciados: o preâmbulo, que precede o “corpo” propriamente dito das

normas, mais os capita18 dos artigos 2º e 3º no capítulo I, intitulado “Disposições

preliminares”, do artigo 9º, na seção I do capítulo III, intitulado “Da Neutralidade da

Rede” e, por fim, do caput do artigo 19, na seção III do mesmo capítulo, intitulada “Da

Responsabilidade por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros”.

18 Capita é o plural de caput, em latim. Sobre este termo, é importante que se diga, o Dicionário técnico jurídico o define como “(termo) que designa a primeira parte de um artigo de lei, que contém seu fundamento”. (GUIMARÃES, 2014, p. 147. grifo meu).

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Cada um desses elementos, inclusive aqueles que dirão respeito ao texto

da Constituição Federal do Brasil de 1988 em seções posteriores, respaldam-se numa

conveniência analítico-metodológica que tem relação direta com o objetivo geral desta

análise, qual seja, a escolha de elementos linguísticos específicos que sejam capazes

de demonstrar, por seu funcionamento enunciativo próprio, como o acontecimento

produz sentidos a partir de uma peculiaridade, a de sua temporalidade própria. Em

outros termos, um “mesmo elemento linguístico” funciona como uma diferença em

relação a outro acontecimento e não como seu correspondente, seu conforme, como

quer a teoria do controle de constitucionalidade que permeia todas as diretrizes

hermenêuticas do ordenamento jurídico brasileiro.

Os elementos e expressões linguísticas presentes nos enunciados desses

dois textos serão escolhidos segundo os critérios da própria análise. Desse modo, a

ideia é, localizados tais elementos de análise, relacioná-los de tal forma que sejam

capazes de responder as perguntas iniciais. Posteriormente, seguir com a

comparação efetiva de funcionamentos enunciativos em diferentes acontecimentos,

no interior do que considero, tal como Guimarães (2018), enunciados decisivos para

os propósitos imediatos deste trabalho, o que ocorrerá em seu capítulo conclusivo.

Isso posto, procederemos incialmente então com a análise do preâmbulo da Lei

12.965/14.

Para procedermos a esta análise, tomaremos o preâmbulo como a própria

sequência que intentamos analisar, isto é, tomando-o como um enunciado complexo,

enquanto recorte do texto desta lei. De saída, como veremos, a caracterização da

cena enunciativa parece ser o melhor percurso a se assumir para melhor entendermos

as relações que aí dentro funcionam e significam, ou seja, como este enunciado

“participa” do todo do texto de que faz parte, neste acontecimento de enunciação.

Além disso, entender seu funcionamento a partir dos lugares de enunciação que se

apresentam nesta cena enunciativa.

Tomemos, então, a seguinte sequência:

[1] A PRESIDENTA DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

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Do ponto de vista da cena enunciativa que constitui o enunciado em [1],

temos nesta sequência um enunciado denominado preâmbulo da lei, enunciado título

nesta Formação Nominal, através do qual um lugar social de dizer, alocutor-legislador,

alocutor desta lei, abriga a figura do Congresso que estabelece, decreta, (alocutário-

presidente), lugar social que também pode vetar algo. Mais especificamente, temos,

na presente enunciação, o falante agenciado em Locutor pela divisão do

acontecimento, o qual é agenciado em um alocutor-legislador que abriga outro lugar

social de dizer, o de presidente. Estes lugares sociais de dizer têm em comum o

mesmo correlato, o alocutário-cidadão.

Consideramos então que os lugares sociais de dizer põem-se

decisivamente no centro do dizer na medida em que o Locutor, ao ser agenciado,

coloca, entre outras coisas, o alocutor-legislador como o alocutor-x do memorável que

não significa nesta enunciação, mas num acontecimento outro, anterior. Assim, o lugar

social que diz [1] na enunciação é um lugar social legalmente instituído e autorizado

constitucionalmente a dizer (faço saber), numa enunciação que se dá num presente

de um acontecimento que sucede outra enunciação, aquela que decreta a presente

lei, de modo que o alocutor-legislador é significado como aquele que elabora leis. Este

movimento é tratado pela pragmática como performatividade, ou seja, o alocutor

apresenta o texto, por este enunciado, como sendo a lei, e ela significa enquanto lei.

Estas considerações remetem a um outro aspecto da enunciação em [1],

dessa vez ligado à reescrituração que, no texto em questão, ocorre pela repetição da

primeira pessoa (eu), em eu sanciono, como alusiva à primeira pessoa, reescriturada

por elipse em (eu) faço saber. Por isso, dizemos, com Guimarães (2005a), que a

reescrituração pontua de forma constante uma duração daquilo que ocorre e que, ao

reescriturar, faz interpretar algo como diferente de si, além de recortar o que aí se

apresenta como passado, isto é, como memorável. Por este memorável, quem

sanciona a lei só o faz a partir, e depois, de quem decreta, submetendo

argumentativamente aquele a este: Ora, por um lado, é sabido que não há

sancionamento da lei sem a sua decretação, que antecede a sanção presidencial num

tempo diferente do acontecimento e, por outro lado, o funcionamento do sentido na

temporalidade própria do acontecimento da enunciação jurídica mostra como ela (a

temporalidade) organiza esses dizeres de tal forma que os lugares de enunciação são

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interpretados como algo que significa per si, como se a linguagem jurídica

funcionasse independentemente, isenta da política.

Pelo parafraseamento de [1], temos:

[1’] Eu, a presidenta da República, faço saber que o Congresso Nacional

decreta e eu sanciono a seguinte Lei

Ou ainda:

[1’’] Eu, a presidente da República, faço saber que, tendo o Congresso

Nacional decretado, eu sanciono a seguinte Lei

Vemos que chegamos a [1’’] em decorrência de [1’]. De modo que, pela

sequência [1’’], vemos a reescrituração por substituição do termo reescriturado eu por

um termo apositivo (a presidente da república), elemento reescriturante neste

enunciado. Em seguida, retomada por elipse em faço saber e por repetição em eu

faço saber. Do ponto de vista das operações enunciativas, entendemos tratar-se de

uma enumeração, uma vez que temos claramente nesta ocorrência acumulação e

coordenação (GUIMARÃES, 2002), dada numa narrativa sintética que se caracteriza

pela apresentação de três ações distintas (um fazer saber, um decretar e um

sancionar) que, ainda que apresentadas pelo alocutor como simultâneas, não o são.

Isto porque, opera aí uma espécie de “apagamento de uma temporalidade” de certa

forma “hierarquizada” por uma deontologia jurídica: um ato, segundo as regras do

ordenamento jurídico, não deve suceder outro sem uma previsão legal. Mas, a análise

semântica da cena mostra que o modo como o alocutor organiza o enunciado, na sua

forma exaustiva, conduz a uma interpretação aparentemente linear de uma simples

sequência de fatos.

Em outros termos, há aí um lugar social de dizer (alocutor-presidente),

agenciado politicamente neste acontecimento, cujo dizer dá-se pela sustentação de

um argumento: uma autoridade autorizada a dizer enquanto tal, autorizada a fazer

saber e a sancionar que não pode dizer senão nessas condições de disparidade do

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Locutor, nas condições presentes e determinantes no jogo (a presença de outro lugar

social) de sentidos operado pelo acontecimento político da enunciação. Neste

funcionamento, podemos ver que a relação entre o que elabora a lei e o que a

sanciona é dada por uma relação sine qua non, pela qual uma enunciação (a da

sanção) só é possível por outra que a antecede (a do decreto).

De outro lado, o enunciador do que é enunciado na sequência [1’],

podemos dizer, trata-se de um enunciador-individual. Isso porque o lugar de dizer,

especificamente nesta representação do modo como o Locutor apresenta-se na cena,

que aqui se apresenta como agenciado politicamente em lugar social de dizer

(alocutor), isto é, como aquele que faz saber. Assim, por esse funcionamento, a

linguagem é dada como independente da história, numa especificidade em que este

enunciador retira o dizer de sua circunstancialidade e como um lugar que se apresenta

como aquele que está acima de todos. As “implicações enunciativas” dessas

considerações serão vistas ao longo desta análise.

Segundo a teoria semântica do acontecimento, o acontecimento da

enunciação divide o real segundo o funcionamento de uma instância de dissenso, e

não de consenso. Nessa medida, em termos enunciativos, temos a instituição jurídica

organizando e identificando seus alocutores politicamente, pelo recorte do mundo das

coisas, significando-as (Guimarães, 2005a). Sistematicamente, o político “entranha-

se” no jurídico afirmando a igualdade nestes espaços pelo conflito desigual do real

dividido, organizando os lugares sociais e suas relações (o que veremos se reproduzir

em outros lugares desta análise). Esta mesma instância política que divide o real o faz

de tal forma que seu processo se dá, segundo o funcionamento político do

ordenamento jurídico, em nome do pertencimento de todos.

Todas estas posições, até aqui, põem em xeque posições linguísticas como

as de Austin (1990) que considera o sentido como depreendido de performativos como

os aqui dispostos ( faço saber, decreta e sanciono), pelo uso da palavra na linguagem,

entendido como ato de fala produzido por um sujeito individual, em termos

psicológicos e atrelado a um conjunto de situações pré-estabelecidas, meramente

contextos, sem as quais um ato não se realiza. Em outra perspectiva, apesar de não

distante desta, encontram-se as posições de cunho jurídico-hermenêuticas, que têm

suas bases fundadas em concepções como a de um sujeito de conhecimento, dado

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definitivamente, pelo qual a verdade aparece, a-histórico, e não como tomado

historicamente, fundado e refundado na história, ou seja, como um sujeito histórico

propriamente dito. Como exemplo desse posicionamento, podemos observar como o

jurista Juarez Freitas se posiciona em relação aos estudos da significação e do sentido

no campo do ordenamento jurídico, dado por uma determinação sistemática. Segundo

Freitas (2004, p. 27):

Está claro, pois, que não se deve afastar a preocupação conceitual ou analítica, porém importa evitar exacerbá-la de modo a desprezar as instigantes situações concretas relacionadas ao universo da aplicação normativa. Em contrapartida, força admitir, sem abstração do mundo real, a imprescindibilidade ineliminável de consistência lógica do ordenamento jurídico, de sorte a dele se procurar ter uma percepção conceitual harmônica no que tange à concatenação de princípios, normas estritas e valores (...) resta afastada, por ingênua, qualquer visão acentuadamente normativista, pois a Ciência do Direito requer também e necessariamente uma fundamentação racional no espaço da decisão ou da escolha valorativa (...) Como objeto de cognição e de compreensão, o sistema jurídico mostra-se dialeticamente unitário, aperfeiçoando-se no intérprete, sendo ele o intérprete positivador [...] (grifo meu)

Pelo exposto, fica claro que para o ordenamento jurídico, assim como para

a teoria dos atos de fala, o sentido não é colocado como uma questão de linguagem

e sim psicológica, cognitiva. Antes, conforme exposto na posição de Freitas (2004), a

hermenêutica jurídica deve se embasar basicamente em dois “princípios”: de uma

lado, numa concepção da verdade como correspondente de um mundo real, empírico

e, portanto, lógico; de outro, fundada na ideia de um sujeito cognoscente, psicológico,

racional, em contrapartida a um sujeito histórico, como defende a semântica da

enunciação.

Do nosso ponto de vista, como vimos, o sentido é considerado a partir do

funcionamento da linguagem, no acontecimento da enunciação. O conjunto das

análises semânticas até aqui apresentado é fundamental e decisivo para procedermos

ao estudo comparado do sentido das palavras e expressões que estejam presentes,

a um só tempo, em enunciados da Lei 12.965/14 e da Constituição Federal do Brasil

de 1988, os dois acontecimentos que nos propusemos investigar.

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4.3. Análise dos artigos 2º e 19: o sentido como diferença

O sentido é constitutivo das relações de linguagem, ou, mais

especificamente, das relações enunciativas do acontecimento, mas não se reduz a

uma relação interna, independentemente de sua exterioridade (GUIMARÃES, 2009).

Assim, a relação de linguagem que consideramos para a presente análise considera

a linguagem em uma relação com o seu fora. Este sentido é, pois, construído

linguística (relação linguagem-linguagem) e simbolicamente, neste caso com um

funcionamento estabelecido por sua conexão com as “coisas”.

Ainda sobre a posição enunciativa assumida nesta análise, é preciso que

se diga: ela não é estruturalista, no sentido de pensar a linguagem enquanto

unicamente estrutural, nem referencialista, no sentido de pensar a linguagem como

descrição de coisas “existentes”, dadas por alguma forma de classificação operada

na linguagem. Como a orientação hermenêutica do atual ordenamento jurídico

positivado brasileiro parece se respaldar predominantemente sobre esta última

concepção de linguagem, este aspecto representa um ponto de inflexão teórica muito

importante nas considerações seguintes. De modo que, numa outra direção,

entendemos, com Guimarães (2009), que, a produção do sentido dá-se,

eminentemente, por procedimentos enunciativos de dois tipos gerais, ou, dois modos

de enunciação: articulação e reescrituração.

Para pensar esse modo de produção de sentido, considera-se o

funcionamento semântico dos enunciados, consideradas estas unidades

fundamentais de análise, ou ainda, sequências linguísticas, entendidas

inexoravelmente enquanto unidades de sentido se integradas ao texto (GUIMARÃES,

2009). Assim, falar de sentido nestes domínios é considerar em que texto essa

unidade de análise esteja funcionando.

Pelo procedimento de sondagem, operar-se-á a análise de enunciados

jurídicos tomados por meio da observação desses dois modos determinados de

relação enunciativa no texto, nos acontecimentos de enunciação jurídica, mais

especificamente, em operações em que o modo enunciativo da enumeração ocorre

no interior de relações predicativas, atribuindo sentido às expressões linguísticas

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nelas presentes. Isto nos leva a pensar que o funcionamento enunciativo da

enumeração, dado no interior de articulações e reescriturações, interessa-nos

objetivamente neste trabalho, mais que as relações de predicação propriamente ditas.

Esses dois modos de relação, apesar de não terem correlação direta com os sentidos

específicos dessas relações, fazem parte da produção de sentido que nelas

funcionam. No interior desses modos, há, por exemplo, o modo de relação por

coordenação, que, por sua vez, se relaciona com a enumeração (GUIMARÃES, 2018).

A coordenação é o processo de acúmulo de elementos numa relação de

contiguidade que toma elementos de mesma natureza e reorganiza-os como se

fossem um só da mesma natureza de cada um dos constituintes (GUIMARÃES, 2018).

Há, por assim dizer, uma especificidade importante ligada à articulação por

coordenação que diz respeito, de um lado, ao fato de que (por esta forma de

articulação) “o acontecimento especifica uma operação pela qual o Locutor relaciona

elementos do enunciado” e, de outro, à uma relação entre a coordenação e a

enumeração tal que existe entre elas uma correlação direta, isto é, a enumeração é

o correspondente dos sentidos que funcionam pela coordenação, assim como19 ocorre

a correspondência entre o modo de relação de reescrituração por expansão com a

enumeração, esta enquanto o sentido correspondente a esse modo de relação. Além

disso, pela relação entre enumeração e a exterioridade linguística, de modo que este

modo enunciativo de atribuição de sentido a expressões linguísticas é meio que dá o

acesso à materialidade histórica das coisas (GUIMARÃES, 2009).

Para Guimarães (2009), o funcionamento enunciativo da enumeração deve

ser analisado levando em consideração os funcionamentos da articulação e da

reescrituração, como vimos acima. De modo que, este funcionamento da enumeração

é que mostra como esses modos de relação enunciativa produzem coexistências de

funcionamentos e sentidos, ou seja, os sentidos são aí produzidos por uma forma de

funcionamento enunciativo específico.

Isso posto, para o tratamento do artigo 2º da lei 12.965/14, tomaremos

como procedimento de análise as relações de articulação, com ênfase no modo de

relação por enumeração (no interior de estruturas de reescrituração e articulação)

19 Vide os quadros nos quais estas relações são demonstradas. In: GUIMARÃES, 2018, p. 85 e 93.

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presente em relações de predicação determinadas enunciativamente. Isso porque

qualquer expressão linguística funciona, de um lado, por uma relação do alocutor com

aquilo que se fala e com o acontecimento no qual ele fala aquilo que ele fala e, por

outro, por uma relação entre elementos linguísticos (GUIMARÃES, 2018).

Antes, porém, de analisarmos propriamente dito cada um dos artigos

escolhidos enquanto enunciados, importa notar uma característica presente

praticamente em todos esses enunciados jurídicos, presentes desde os capita de cada

artigo da lei 12.965/14. Em regra, trata-se de formações predicativas regularmente

seguidas de extensas enumerações, cujo funcionamento não é tratado pela

hermenêutica jurídica geral em termos históricos, enunciativos. Antes, e como é o

próprio do campo jurídico, tratados enquanto sentenças a-históricas sustentadas

eminentemente por posições referencialistas, que entendem a linguagem como

descrição de coisas existentes, via classificação de objetos do mundo, como vimos

acima. Assim, os termos-núcleo decisivos desses enunciados integrados aos textos

jurídicos significam, para a hermenêutica, estritamente por essa referência ao mundo,

isto é, sem se considerar as diferentes relações produzidas pelo acontecimento de

enunciação.

A sequência abaixo, tomada como enunciado, refere-se ao art. 2º da lei:

[2] A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão, bem como: I – o reconhecimento da escala mundial da rede; II – os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais; III – a pluralidade e a diversidade; IV – a abertura e a colaboração; V – a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e VI – a finalidade social da rede. (art. 2º da Lei nº 12.965 de 23 de abril de 2014. Câmara dos Deputados – Brasil)

Tomaremos de [2] a sequência [2a]:

[2a] A disciplina do uso de internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão

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Em se tratando da designação, como sabemos, esta deve ser vista,

primeiramente, como diferente da referência e da denotação (GUIMARÃES, 2005c).

Assim, para pensarmos a designação no campo da enunciação, ou ainda, o sentido

de palavras dentro desse espectro de considerações, é preciso inicialmente

refletirmos no modo como o nome, ou expressão nominal, significa no acontecimento

de enunciação. Para tanto, parte-se do pressuposto de que um nome significa, na

relação de predicação, enquanto termo que se integra com o restante do enunciado;

na formação nominal sujeito, significa por um modo particular de engajamento

enunciativo. Assim, numa relação de predicação, antes que invariavelmente se refira

a algo, um nome ou expressão nominal significa em virtude de sua relação com o

enunciado ou com o texto (GUIMARÃES, 2018).

Para pensarmos o funcionamento de nomes que em geral significam

conceitos, pensamos a significação em termos enunciativos, ou seja, o sentido não é

dado segundo uma referência a coisas que estão no mundo, mas segundo o que

significa no interior da enunciação onde a expressão se localiza. Nesse sentido,

retomaremos o enunciado [2a] para um maior esclarecimento dessa questão.

[2a] A disciplina do uso de internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão

Pelo que vemos, a expressão “liberdade de expressão” poderia ser

significada em [2a] como uma expressão referencial ou predicativa, por estar no

interior dessa unidade predicativa, porém, do ponto de vista enunciativo, tem seu

significado “implicado” pelas relações operadas no/pelo acontecimento de

enunciação, isto é, como um elemento que, antes de se referir, designa. Assim,

dizemos, com Guimarães (2005b), que a palavra “liberdade”, por exemplo, identifica

algo historicamente no mundo, em um tudo do modo como significa no enunciado [2a],

elemento este integrado ao texto da Lei 12.965/14. Para Guimarães (2018), quando

uma expressão linguística referencia, ocorre a particularização de algo na e pela

enunciação. Aqui, lembramos o que disse Guimarães (2002, p. 9) quando de sua

menção a Rancière:

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“A designação de uma palavra, de um nome, (...) é sua significação enquanto algo próprio das relações de linguagem e também, e por isso mesmo, enquanto uma relação simbólica exposta ao real, enquanto uma relação tomada na história. Deste modo, a designação identifica objetos, tal como Rancière (1992)”.

Dessa forma, a referência a liberdade em [2a] é dada primeiramente como

referência a algo específico, particularizada por meio de uma articulação ocorrida no

interior dessa formação nominal (liberdade de expressão), isto é, operada em virtude

do modo como os elementos linguísticos, pelo agenciamento enunciativo, significam

nessa contiguidade, organizada fundamentalmente por uma relação do Locutor com

aquilo que se fala na enunciação, o que significa dizer que o sentido aí é dado pelo

acontecimento de enunciação que torna possível esta articulação. Podemos dizer

então que a palavra liberdade é, por um lado, referida nesta sequência enquanto uma

forma particular de sentido e, por outro lado, designada segundo uma ordem que

considera o sentido desta palavra na enunciação de que ela faz parte.

Assim, em termos enunciativos, a relação entre referência e designação é

entendida de tal forma que, segundo o domínio enunciativo, a referência deve ser

entendida (apenas) a partir da designação, em outros termos, a referência decorre da

designação, constitutiva que é do acontecimento de que este termo faz parte. Ora,

dado que a designação constitui uma relação com o real, investiga-se que relação há

na integração desse termo com o real trazido pelo texto da lei (GUIMARÃES 2018).

Após um breve levantamento, é possível observar que a palavra liberdade

aparece em 6 (seis) ocorrências em todo o texto da lei 12.965/14, sendo que, em 5

(cinco) delas, aparece dentro da mesma formação nominal, liberdade de expressão,

na qual a palavra liberdade aparece sempre associada a expressão de expressão, de

modo que em cada ocorrência encontramos um sentido particular, com seu sentido

determinado singularmente em cada acontecimento de que faça parte a expressão.

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4.4. Análise com base nas reescriturações enumerativas do texto da lei

As operações enunciativas são modos de integração dos enunciados com

o texto (GUIMARÃES, 2009). Assim, os enunciados e seus elementos significam em

virtude da unidade que integram, o texto. Outro aspecto importante desse modo de

funcionamento enunciativo é o fato que ele é um meio pelo qual se tem acesso à

materialidade histórica das coisas, como apontamos acima, e, em decorrência disso,

coloca o estudo enumerativo numa posição muito particular nos estudos de linguagem

de cunho enunciativo: a relação da linguagem com sua exterioridade.

Desse modo, articulação e reescrituração são procedimentos gerais de

relações enunciativas do acontecimento que produzem sentido na linguagem, de

modo que uma de suas “formas” de funcionamento é a enumeração, na qual o sentido

não se dá como dependente de sua exterioridade e não apenas por relações internas

entre elementos de uma dada estrutura. Por outro lado, como aponta Guimarães

(2009, p.52), “as relações entre elementos linguísticos marcam operações

enunciativas que colocam em relação o Locutor com aquilo que fala”, e isso ocorre

porque esta relação se dá no acontecimento pelo agenciamento político da

enunciação. Do que inferimos que o Locutor não escolhe seu dizer, mas é agenciado

a dizer segundo os modos como o espaço de enunciação distribui as línguas aí dentro,

onde o sentido é construído por um funcionamento eminentemente linguístico.

Sobre este agenciamento político da enunciação é preciso que se diga:

funciona por uma ambivalência enunciativa configurada pela relação do Locutor com

aquilo que ele fala, no acontecimento em que fala, atrelada à uma relação entre os

elementos linguísticos (GUIMARÃES, 2009). De tal modo que esta marca aquela.

Assim, a relação entre o Locutor e as formas linguísticas, própria da enunciação,

ocorre da seguinte forma (Guimarães, 2009, p. 50):

o Locutor é agenciado a dizer pelo modo como as formas linguísticas se constituíram sócio-historicamente e pelo modo como o espaço de enunciação distribui as línguas, e os modos de dizer e o que dizer, para seus falantes. [De modo que] o Locutor só é Locutor enquanto falante determinado por este

espaço político de dizer, o espaço de enunciação.

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A noção de falante é, pois, a de uma figura enunciativa simbólica, não-

empírica, determinada por suas relações com as línguas no espaço de enunciação de

que faz parte. Estabelecido o espaço de enunciação, temos a cena enunciativa,

categoria metodológico-descritiva (GUIMARÃES, 2018) fundamental que é

caracterizada pelo agenciamento político do falante da enunciação, isto é, o

acontecimento político de enunciação é o que produz sentido na cena, constituída que

é pelo agenciamento do falante em lugares (figuras) de enunciação: Locutor, alocutor

e enunciador. Pela concepção semântica, o funcionamento da linguagem e da

produção de sentido dados no acontecimento de enunciação se dá pela consideração

de que a enunciação mobiliza esses dois procedimentos gerais, dentro dos quais,

funciona a enumeração.

Na articulação, as relações semânticas são estabelecidas segundo o modo

como os elementos linguísticos, dado o agenciamento enunciativo do falante,

significam por suas relações de contiguidades, as quais são organizadas segundo

uma relação local que se dá de duas formas: uma pela relação entre os próprios

elementos linguísticos e outra pela relação entre Locutor e aquilo que se fala, de modo

que a articulação é significada pela enunciação por essas relações de contiguidade.

Há, assim, para Guimarães (2009), três modos de articulação: o de dependência e

coordenação, pelos quais o Locutor relaciona elementos do enunciado (internamente),

e o de incidência, pelo qual o Locutor relaciona o enunciado à enunciação.

Na reescrituração, temos um procedimento em que se rediz o que já foi dito

(GUIMARÃES, 2009), o que, do ponto de vista enunciativo, não quer dizer a mera

relação catafórica ou anafórica entre os elementos de um texto, mas uma relação tal

que, por determinados procedimentos, uma expressão linguística se reporta a outra

segundo “regras” dada pela integração enunciado-texto. Além disso, o procedimento

de reescrituração (redizer o dito) faz interpretar a forma reescriturada como diferente

de si, isso em virtude de fazer parte deste procedimento. Nessa medida, este

procedimento funciona segundo uma operação enunciativa fundamental para a

constituição do sentido pelo acontecimento enunciativo e, consequentemente, para

aquilo que aqui interessa em termos de enumerações presentes em enunciados

jurídicos.

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Para melhor entender a enumeração como um dos modos de se produzir

sentido presente nos processos de reescrituração, é preciso inicialmente partir da

especificação que Guimarães (2009) faz do modo como é estabelecida a relação entre

o elemento reescriturado e o que o reescreve, isto é, da “natureza” desta relação, que

é caracterizada enquanto transitiva, simétrica e não-reflexiva.

• Transitiva: ela se constitui por um funcionamento à distância e

transversal (e não por relações de contiguidade). Assim, se y

reescritura x e z reescritura y, então z reescritura x.

• Simétrica: ela não se constitui pela ordenação dos elementos

linguísticos, mas pelo modo como a reescrituração opera os modos

de integração dos enunciados com o texto, que significam em virtude

do texto que integram. Assim, se x reescreve y, então y é também

uma reescritura de x. Ser simétrico, então, significa: ter a mesma

distância entre si, poder um “ocupar” a posição do outro.)

• Não-reflexiva: Se x reescreve y, então a relação de reescrituração é

desigual, isto é, x não é igual a y. X não significa no enunciado como

Y significa. Infere-se disso que esta relação entre x e y é não-

reflexiva. No caso de repetição (x1 é reescrito por x2), x2 significa

diferentemente de x1 em virtude de ser uma repetição. Essa

diferença entre x1 e x2 é o que dá sentido à repetição, isto é, a

reescrituração, apesar da aparência de igualdade e reflexividade,

não opera como uma identidade. De modo geral:

(...) um conjunto de reescriturações de um elemento linguístico qualquer em um texto, ou conjunto de textos, não é uma classe, não é um paradigma, pois a relação de reescrituração não é uma relação de equivalência, já que não é reflexiva. A característica da reescrituração está ligada a um aspecto fundamental: fazer sentido envolve sempre um diferente que se dá no acontecimento enunciativo. (GUIMARÃES, 2009, p. 54)

Há diferentes modos de se redizer o dito: repetição, substituição, elipse,

expansão, condensação e definição. A expansão é o modo de ampliar o dito, isto é,

uma reescritura por expansão/ampliação (dada por uma palavra, uma FN qualquer,

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um período, um parágrafo) de um elemento linguístico (um título, uma FN etc.). A

condensação, em que um termo reduz outro, condensa toda uma narrativa, por

exemplo, feita anteriormente.

Além disso, esses diferentes modos de reescrituração, por sua vez,

produzem sentidos de diferentes maneiras, que podem se dar por sinonímia,

especificação, desenvolvimento, generalização, totalização e enumeração

(GUIMARÃES, 2009). Destes, interessa-nos diretamente a enumeração, isso porque,

para os fins desta pesquisa e da “natureza interpretativa” que orienta a doutrina

jurídica, há que se colocar uma diferença fundamental entre caracterização e

determinação.

Enquanto a relação por caracterização está ligada a uma ocorrência restrita

à “estrutura” da língua (relações internas da língua), ou seja, a uma forma de relação

cuja ocorrência se dá no interior de um Grupo Nominal qualquer em que um adjetivo

caracteriza um substantivo, a relação por determinação ocorre segundo uma relação

de sentido entre formas linguísticas tal que as relações internas da língua produzem

sentido enquanto relações próprias do acontecimento enunciativo, por isso tratadas

como relações enunciativas (GUIMARÃES, 2009).

Segundo Guimarães (2009), a reescrituração por enumeração é um modo

de expansão, que pode funcionar como o avesso da generalização e da totalização.

Para o autor, o estudo da reescrituração leva ao funcionamento enumerativo, e

também coloca em questão os procedimentos de expansão e condensação, e os

sentidos de enumeração e especificação. Vale ressaltar, porém, que a enumeração

não se apresenta apenas como reescrituração.

Guimarães (2009) entende a enumeração como um procedimento de

acumulação em que os elementos linguísticos vêm coordenados e em contato. Esta

definição conduz invariavelmente a duas diferenças fundamentais: de um lado, a

enumeração não se dá por repetição; de outro, ela não se dá no contexto da retórica,

como a arte do bem dizer. Além disso, como colocado por este autor, a enumeração

é caracterizada por determinadas oposições, já na sua apresentação.

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Há diferentes formas de enumeração. Por meio de cada uma delas, o

Locutor apresenta a enumeração por meios de variados “recursos”: ou como uma

forma de argumento da enumeração específico, ou “apenas” um conjunto de

expressões como modos de apresentar aspectos de um conjunto como unidade de

sentido, entre outras. Segundo Guimarães (2009, p. 58), a enumeração é um lugar

interessante “para se observar como articulação e reescrituração se movimentam na

produção de sentidos”.

Para observamos este funcionamento no segmento a seguir, levaremos em

conta uma diferença importante. Numa receita de bolo, como no exemplo apresentado

por Guimarães (2009), o alocutor apresenta cada um de seus itens (do texto) como

coordenado assindeticamente a outros por um modo de relação apositiva, os quais

apresentam, cada um por sua vez, um dos elementos que compõem o “conjunto” dos

ingredientes do bolo, conforme apresentado do Guimarães (2009, p. 59):

(7) Bolo de fubá da vó Maria20 (7a) Ingredientes: – 4 ovos; – 2 xícaras de chá de açúcar; – 2 xícaras de chá de trigo; – 1 xícara de chá de fubá; – 3 colheres de sopa de margarina; – 1 xícara de chá de leite;

– 4 colheres de chá de fermento.

Por outro lado, do ponto de vista enunciativo, o que vemos é que esta

enumeração é uma reescrituração da expressão “ingredientes” (GUIMARÃES, 2009),

que precede imediatamente a enumeração. De modo que, a enunciação não “se

coloca” como uma organização/coordenação meramente formal de uma sequência de

elementos linguísticos dispostos enquanto partes de um “todo”, mas enquanto uma

reescrituração enunciativa dada por meio de procedimentos em que uma expressão

20 Exemplo apresentado por Guimarães (2009) como “sequências nº 7 e 7(a)”, na pág. 65 do artigo

“A Enumeração: funcionamento enunciativo e sentido”. Caderno de Estudos Linguísticos, 51.

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linguística se reporta a outra segundo uma integração do enunciado ao texto, de tal

modo que o que é reescriturado é interpretado como diferente de si. Vemos, assim, o

termo enumerado “ingredientes”, independentemente do modo de relação apositiva

dessa sequência, atribui sentido ao termo enumerador, estabelecendo uma relação

de determinação, como vimos. Cada um dos termos enumerados apresenta-se como

“ingredientes”. Voltemos à sequência [2], como recorte do art. 2º da lei:

[2] A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão, bem como: I – o reconhecimento da escala mundial da rede; II – os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais; III – a pluralidade e a diversidade; IV – a abertura e a colaboração; V – a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e VI – a finalidade social da rede.

Incialmente, tomaremos desta sequência uma outra, a [2a]:

[2a] A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão, bem como:

Comecemos pelo aspecto da cena enunciativa. Vimos que o aspecto

político constitutivo do espaço de enunciação, e do acontecimento do funcionamento

das línguas (a enunciação), é a constituição por este espaço de uma distribuição

desigual das línguas para seus falantes e que é justamente esta enunciação que

estabelece as cenas enunciativas pela divisão dos lugares de enunciação

(GUIMARÃES, 2018). Neste acontecimento, esta divisão apresenta-se como uma

espécie de projeção das relações línguas-falantes. Temos assim, nessa configuração,

de um lado, o agenciamento das sistematicidades linguísticas e, de outro, o

agenciamento das condições histórico-sociais dos falantes. A cena é, pois, uma

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categoria metodológico-descritiva fundamental para o modo como o sentido é tratado

pela semântica do acontecimento.

Ao tomarmos a sequência [2a], observamos que o sentido produzido por

ela faz significar uma enunciação que estabelece regras (juridicamente autorizado a

falar), ou normas, para aqueles que utilizam a internet no Brasil. Ou seja, há, de um

lado, aquele que, por uma deontologia jurídica, estabelece-as e, de outro, aquele que

deve obedecê-las, o usuário, de tal modo que este usuário encontra-se, conforme

apresentado pelo Locutor desta cena, segundo esse acontecimento enunciativo, como

um lugar enunciativo impedido de fazer algo em descumprimento do que aqui se

encontra arrolado relativo aos fundamentos da disciplina do uso da internet no Brasil

esteja previsto.

O falante é assim tomado, pelas sistematicidades linguísticas, como

Locutor, isto é, agenciado em Locutor, o qual é, pela divisão própria do agenciamento,

agenciado em um alocutor-legislador, um lugar social de dizer que elabora leis, o

alocutor-legislador e, de outro, seu correlato, o alocutário-usuário-de-internet, aquele

“instado” politicamente a obedecer a esta “palavra de ordem”.

Outro aspecto da cena enunciativa é aquele que diz respeito à sua

politopia. Assim, para a caracterização do lugar de dizer (enunciador) desta cena,

procederemos ao parafraseamento de [2a], teremos, assim, [2a']:

[2a’] (nós sabemos que) a disciplina de uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão.

A sequência [2a’] permite observar algo do modo de se apresentar o que

se diz, pois, o que é dito apresenta-se como um dever-fazer estabelecido, segundo

uma lógica deôntica, por um lugar coletivo, o dos legisladores. Na paráfrase

apresentada, este sentido aparece significado pelo nós sabemos. Esta coletividade é

também marcada por duas outras características, a impessoalidade da apresentação

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do que se diz e pela não individualidade do lugar, o que garante a relação entre o dizer

e aquilo de que se fala (GUIMARÃES, 2018). Tem-se, então, um enunciador coletivo

(neste caso, o lugar de dizer dos legisladores), de que faz parte o alocutor-jurista (que

se inclui no nós da paráfrase acima. Dizemos então que o alocutor-jurista (lugar social

de dizer) apresenta o dizer de um enunciador coletivo21.

Temos, assim, a seguinte configuração desta cena:

Como podemos observar na ilustração, o enunciador, o lugar de dizer, é

um lugar de enunciação que se apresenta como quem diz de um lugar universal

(Euniv.). Este lugar não projeta um tu, como no caso das relações de alocução entre

L/LT e al-x/at-x, mas, antes, se mostra como um modo de o eu se apresentar na sua

relação com o que se diz (o que se diz por quem). No exemplo acima, o enunciador

coletivo apresenta um conjunto de regras e valores que deverão fundamentar e

orientar o modo como os usuários de internet no Brasil devam utilizá-la “como o que

se diz sobre algo a partir do lugar universal, da sustentação de uma verdade para

todos” (GUIMARÃES, 2018, p. 62)

21 A caracterização do alocutor-x como alocutor-jurista é uma forma de se especificar o

lugar social de dizer de legislador, alocutor-legislador, que pode representar qualquer agente político que atue nos processos legislativos de elaboração da lei. O processo legislativo de elaboração de uma lei envolve diferentes agentes sociais, não necessariamente agentes técnicos (juristas), mas sempre agentes políticos (legisladores). Portanto, jurista é aqui entendido como aquele que elabora a lei do ponto de vista técnico-jurídico, antes e durante sua submissão a todas as fases previstas em lei constitucional. Estes agentes formam um lugar coletivo, escolhido segundo critérios políticos e sociais, não se tratando, portanto, de um lugar universal. Disso decorre a caracterização de um enunciador coletivo que, embora não seja universal, diz como quem diz uma verdade não para todos, mas para um grupo social também específico, o de usuários de internet.

L -------------------------------------------------------------------- LT

Euniv. - A disciplina de uso da internet no Brasil tem como

fundamento o respeito à liberdade de expressão.

al-legislador ----------------------------------------------- at-usuário-de-internet

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A partir destas considerações da cena enunciativa, relativa à sequência

[2a], passaremos a considerar os diversos aspectos relativos à reescrituração

enumerativa. Incialmente, devemos considerar o fato de que temos, em [2a], uma

relação de predicação e de que, consequentemente, teremos determinadas

Formações Nominais no interior do sujeito e/ou do predicado. Assim, dentro um

enunciado, poderá haver uma relação de predicação que se aplique, por exemplo, a

formação nominal sujeito que reescreva outro elemento da relação. O elemento

enumerado ou enumerador poderá, assim, ocupar diferentes lugares da predicação.

No exemplo apresentado por Guimarães (2009) acima, cada item da

enumeração é apresentado como coordenado assindeticamente aos outros, além de

apresentarem, cada um por sua vez, um dos elementos que compõem o “conjunto”

dos ingredientes do bolo. Mas, como podemos observar, essa enumeração é uma

reescrituração de “ingredientes”, que encabeça imediatamente a sequência

enumerativa. Como veremos à frente, a enumeração não é uma

organização/coordenação meramente formal de significação apriorística de elementos

linguísticos representativos do “todo” (GUIMARÃES, 2009), mas uma reescrituração

enunciativa dada por meio de procedimentos em que uma expressão se reporta a

outra segundo uma integração do enunciado ao texto.

Segundo Guimarães (2009), as expressões enumeradoras têm um modo

próprio de se formarem, como Grupos Nominais (GN) nos quais um adjetivo

caracteriza, por uma articulação, o nome enumerado. Isso permite inferir que o termo

enumerado determina o sentido das expressões enumeradoras que fazem de todo o

processo de reescrituração enumerativa. Por isso, em [2], podemos dizer, sem maior

aprofundamento, que “fundamento” (elemento enumerado) determina o sentido de

todos os elementos enumeradores que o sucedem.

Outro aspecto importante da enumeração é seu caráter empírico-exaustivo.

Por ele, a enunciação não é caracterizada como um modo de relação que classifica

os elementos enumeradores que reescrevem o elemento enumerado. Por este

entendimento, o elemento enumerado classifica o elemento enumerador, isto é, há

um conjunto de objetos que são/compreendem o “fundamento” do uso da internet no

Brasil, e a enumeração diz qual é cada um deles. Mas isto não se sustenta, pois,

conforme Guimarães (2002), a enumeração tem outros funcionamentos.

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A título de exemplificação de como a exaustividade é aparece “prevista”

nos textos jurídicos, tomaremos um texto da obra Português Jurídico, de Paiva (2015).

Nesta obra, o autor busca definir o termo enumeração inserindo-o no interior de dois

outros conceitos, o de “descrição” e o de “conectivos”. Observemos cada uma das

duas definições.

(a) Descrição: em um processo, a enumeração circunstanciada, detalhada dos

caracteres de algo; ato ou efeito de escrever; reprodução, traçado, delimitação;

representação oral ou escrita de; exposição. (PAIVA, 2015, p. 93, grifo meu)

(b) Conectivos (...)

O domínio do uso de conectivos adequados é fundamental ao bom texto.

Ideia de...

enumeração, distribuição ou continuação

em primeiro lugar (plano, lugar, momento), a princípio, em seguida, depois de, finalmente, em geral, desde logo, por sua vez, quanto ao mais, por seu turno (...)

(PAIVA, 2015, p. 89, grifo meu)

Estes exemplos definem bem o caráter geral da exaustividade com que é

tratada a enumeração. Isso porque, em (a), temos a enumeração tratada como

sinônimo de descrição, por seu turno, ocorrida num processo (jurídico) de fatos

colocados de forma inventariada, orientada a apresentação de objetos do mundo, um

após o outro, justapostos, de forma a descrever as partes de um “todo”. Pensada

assim, a enumeração encontra-se circunscrita, delimitada, meramente como uma

ferramenta de exposição subjetiva de fatos.

No campo destinado a definir “conectivos”, Paiva (2015) define “conectivos”

como elementos linguísticos cuja função é a de “ligar” um termo do texto a outro, de

modo que o produtor do texto jurídico é levado a produzir o texto instado a dominar o

uso de elementos previamente definidos em uma tabela22. Esta é dividida em dois

22 A tabela presente em Paiva (2015, p. 89) foi resumida por considerarmos desnecessário

apresentar seus itens à exaustão.

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blocos, sendo o da esquerda relativo ao “sentido” (ideia de...) atrelado a cada

conectivo e o da direita destinado a enumerar, na forma de uma lista, as mais diversas

formas, expressões (elementos enumeradores) linguísticas equivalentes.

Notemos que em “enumeração, distribuição ou continuação”, “distribuição”

e “continuação”, no interior desta enumeração, reescrevem “enumeração” de forma

sinonímica, isto é, trata-se de expressões-conceito que se equivalem. À direita da

tabela, uma longa enumeração por expansão em que o sentido dos elementos

enumeradores é apresentado como equivalentes e, como em (a), reescriturando

“enumeração”. De modo que o sentido de “enumeração”, e com isso seu conceito

neste texto didático, é apresentado como um modo de relação exaustivo e

homogêneo.

De volta às características da reescrituração enumerativa no texto da lei, e

com o intuito de aprofundarmos um pouco mais estes conceitos, procederemos ao

parafraseamento da sequência [2]:

[2’] São fundamentos da disciplina do uso da internet no Brasil o respeito à liberdade de expressão, bem como, o reconhecimento da escala mundial da rede; os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais; a pluralidade e a diversidade; a abertura e a colaboração; a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa

do consumidor; e a finalidade social da rede.

Ora, uma sequência X, do ponto de vista do acontecimento enunciativo,

pode ser feita a partir da formulação de uma tomada de posição do alocutor-x

(alocutor-jurista) do texto que diz [2a]. Temos que, o nome “fundamentos”, termo

presente no predicado desta relação de predicação, é especificado por um “conjunto”

de articulações modalizadoras, tais como: “o respeito à liberdade de expressão”, “o

reconhecimento da escala mundial da rede”, “os direitos humanos, o desenvolvimento

da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais” (...). Ou seja, o Locutor

mostra-se responsável pelo conjunto de preceitos legais que, segundo uma ordem

deôntica do ordenamento jurídico brasileiro, orienta o modo como deve se dar o uso

da internet no Brasil. Desse modo, fundamentos determina cada um dos elementos

dessa enumeração.

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Num aspecto muito particular a ser notado nesta enunciação, vemos que o

Locutor mostra-se efetivamente responsável na medida em que é tomado por um

discurso econômico-liberal, determinado por expressões como “liberdade de

expressão”, “direitos humanos”, “exercício da cidadania”, “pluralidade”, “abertura” e

“livre iniciativa”, as quais, dado um memorável de enunciações, agenciam

politicamente o falante em Locutor. Outra razão para esta ocorrência é o fato de que,

como vimos, a enumeração em questão, como qualquer outra, não ocorre como uma

classificação dos termos enumerados, mas sim por sua determinação. Assim, na

medida em que estes elementos enumeram “fundamentos”, este lhes determina o

sentido.

Em [2’], a enumeração desdobra o enumerado em virtude de a Formação

Nominal Sujeito (FNS) a disciplina do uso da internet no Brasil vir posposta ao

predicado são fundamentos, de modo que a enumeração acaba por apresentar-se

como reescrituração de fundamentos, termo núcleo do predicado que, por sua vez, é

constitutivo de diferentes formações predicativas: o respeito à liberdade de expressão,

o reconhecimento da escala mundial da rede (...). A diferença aqui (em [2’]) é que a

Formação Nominal Sujeito reescreve o predicado ou, mais especificamente,

reescreve o núcleo (fundamentos) da expressão enumerada que se forma no interior

da formação predicativa.

Vamos observar um outro aspecto da reescrituração enumerativa de [2]

que diz respeito à heterogeneidade da enumeração, mas agora, por meio de outra

paráfrase desta sequência:

[2’’] O respeito à liberdade de expressão, bem como o reconhecimento da escala mundial da rede; os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade (...) são fundamentos da disciplina do uso da internet no

Brasil.

Também por esta sequência, constituída numa relação de predicação de

ordem direta (sujeito anteposto ao predicado) que não se apresenta como uma

definição, representa-se a exaustividade da enumeração, da qual costuma se valer a

dogmática jurídica que instrumentaliza a hermenêutica jurídica brasileira (STRECK,

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2000), isto é, estaríamos diante de uma enumeração completa de todos os

fundamentos da disciplina que regula, para os efeitos desta lei, o uso da internet no

Brasil.

No entanto, o que vemos, de fato, é uma marcação da enunciação operada

pelo Locutor através da expressão “bem como”, cujo valor conjuntivo introduz o que

seriam os demais elementos da enumeração, imediatamente após a FN o respeito à

liberdade de expressão, primeiro elemento enumerador de fundamentos e, por assim

dizer, um elemento topicalizado na enumeração. É esta marcação do Locutor um dos

modos de se introduzir a heterogeneidade da enumeração, pela natureza distinta de

cada um dos seus itens.

Em [2’’], assim como em [2’], essa heterogeneidade significa o próprio

processo de enunciação do Locutor (GUIMARÃES, 2009). Assim, concluímos que a

enumeração não se apresenta como exaustiva, tampouco como um inventário de

fatos encerrados em si mesmos, delimitados e detalhados do caractere de algo, como

propôs Paiva (2015), ou um inventário de objetos do mundo, mas como “uma

construção de linguagem, que pode, sob o modo de inventário, apresentar uma

redundância com a que vem introduzida” por bem como, como propõe Guimarães

(2009, p. 62).

Para identificar o caráter heterogêneo da enumeração, é preciso indicar o

funcionamento, ou a “natureza”, das reescriturações presentes nos elementos

enumeradores, comparando seus funcionamentos em “função” da enunciação de que

participam, isto é, da integração do enunciado ao texto. Assim, na sequência [2’],

temos que fundamentos é reescriturado de modo “particular” pelo que vem logo em

seguida: o respeito à liberdade de expressão; o reconhecimento da escala mundial da

rede (...). Estes elementos enumeradores, portanto, reescrevem por expansão

fundamentos, como um modo de produzir seu sentido (de fundamentos) por um

desenvolvimento presente nesta expansão, aliás, sentido produzido pelo próprio modo

de reescrituração.

Como podemos ver na sequência [2a], o enunciado apresenta, ao significar

um desenvolvimento, uma articulação predicativa entre A disciplina do uso da internet

no Brasil e tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão. Conforme

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Guimarães (2002), isso mostra um aspecto muito importante da enumeração, pois,

numa mesma sequência, podemos ter uma coexistência que faz significar duas

coisas: a articulação de predicação e a reescrituração por extensão com sentido de

desenvolvimento. Nesta relação, é possível também notar que esta reescrituração tem

sentido hiperonímico para “fundamentos”, que é o termo central desta predicação.

Trata-se, pois, de modos diferentes de significar a reescrituração enumerativa.

Um outro aspecto importante ligado à heterogeneidade enumerativa é,

como vimos, o fato de que, em um processo de reescrituração, o sentido é produzido

na medida em que o redizer, ao retomar a expressão/palavra que rediz, faz com que

ela signifique de outro modo (GUIMARÃES, 2018). Isso porque o processo de

reescrituração constrói sentido de palavras e expressões linguísticas em virtude do

próprio processo de que faz parte. Assim, essa retomada não se dá como uma

remissão ao mesmo, mas, ao se realizar, faz significar algo que não estava significado.

O caráter heterogêneo da enumeração advém do próprio de esta funcionar

enunciativamente, ou seja, a enumeração, em lugar de apresentar um todo

homogêneo e exaustivo, enumera elementos muitas vezes opostos, como é caso de,

na comparação entre determinados elementos enumeradores, presentes na

sequência [2], o Locutor opera um cruzamento entre expressões cujo sentido tem a

aparência de uma exaustividade, de um inventário exaustivo, quando o que

observamos é a própria heterogeneidade constitutiva da enumeração. Seria o caso

de comparar, por exemplo, reconhecimento da escala mundial da rede a livre

iniciativa; ou ainda, desenvolvimento da personalidade a finalidade social da rede.

Podemos dizer então, com Guimarães (2009), que a enumeração que

define quais os fundamentos que devem disciplinar o uso da internet no Brasil não o

faz por uma apresentação de uma informação homogênea caracterizadora desses

fundamentos, mas, de forma não-exaustiva, apresenta, por um processo de

reescrituração enumerativa enunciativa, uma enumeração na forma de um inventário

enumerativo marcado pela heterogeneidade constitutiva dos elementos que

reescrituram o nome fundamentos.

Se parafrasearmos, ainda mais vez, a sequência [2], numa certa disposição

de seus termos, teremos algo como abaixo:

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[2’’’] Fundamentos (da disciplina...): - o respeito à liberdade de expressão; - o reconhecimento da escala mundial da rede; - os direitos humanos; - o desenvolvimento da personalidade; - o exercício da cidadania em meios digitais; (...)

Talvez, ao observarmos o modo como a enumeração é aqui disposta pelo

parafraseamento, entendamos porque ela é tratada como uma descrição, no sentido

de um inventário dos elementos de um estado de coisas relativas a fundamentos, em

vez de ser tratada como algo constituído pelo acontecimento de enunciação, de tal

modo que “o sentido da enumeração exaustiva do todo abre para a não-totalidade e,

portanto, para o não homogêneo” (GUIMARÃES, 2009, p. 64). Trata-se de uma

enumeração de quais são os fundamentos que disciplinam o uso da internet no Brasil.

Temos, então, nesta sequência, uma coordenação assindética

estabelecida pela contiguidade dos elementos enumeradores. Além disso, essa

coordenação é uma reescrituração por expansão de fundamentos, palavra que, neste

caso, funciona como núcleo da FNS. Assim, cada uma das expressões enumeradoras

não forma (tal como no exemplo da receita de bolo trazida por Guimarães (2009)) um

conjunto chamado “fundamentos”, mas se trata de expressões que estão aí como

parte de “dever-fazer”. Assim, não se trata aqui de uma enumeração descritiva, mas

de um regramento dado numa ordem deôntica, apresentado pelo lugar de dizer de

uma coletividade, a de legisladores que elaboram a lei 12.965/14, na cena enunciativa,

um enunciador coletivo, como vimos anteriormente.

Além disso, a reescrituração, ao redizer algo como diferente de si, agencia

aí o sentido do regramento deôntico pelo lugar social de locutor, enquanto tradição

jurídica positivada e autorizada a organizar o estado de direito das pessoas. O texto

em que se encontra a sequência [2], artigo 2º da referida lei, é parte fundamental de

um regramento superestrutural que atribui diretrizes valorativas segundo uma

dogmática jurídica que instrumentaliza o direito e que dispõe um regramento tal que

fundamente a disciplina do uso da internet no espaço político brasileiro.

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4.5. O artigo 19 da lei 12.965/14 na perspectiva dos modos de relação da

articulação e da reescrituração

Para adentrarmos na análise do art. 19, comparativamente ao art. 2°,

trataremos primeiramente da expressão liberdade de expressão. Como dissemos

anteriormente, esta expressão nominal aparece também em outros enunciados do

texto da lei 12.965/14. Dessa forma, procederemos à análise, a partir de agora, de um

primeiro recorte do que se encontra enunciado no artigo 19 desta lei. Temos então a

seguinte sequência:

[3] (a-caput) (a) Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.

(...)

(b) § 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal. (BRASIL, Lei 12.965, 2014)

Para analisar a sequência acima, resultado de um recorte operado a partir

do art. 19 da lei 12.965/14, continuaremos fazendo uso das duas principais operações

enunciativas que produzem sentido pelo modo como uma forma, a partir do enunciado

de que faz parte, a articulação e a reescrituração. Como vimos, o enunciado é a

unidade de análise da semântica, além disso, é visto por esta disciplina linguística

como uma unidade de linguagem cujo funcionamento apresenta uma consistência

interna aliada a uma independência interna (GUIMARÃES, 2018).

Esses modos de relação, portanto, ocorrem relativamente ao enunciado de

duas formas: um ligado à consistência interna do enunciado, a articulação; o outro,

ligado à sua independência relativa, a reescrituração. Tratam-se, portanto, de modos

de relação enunciativa que auferem sentido à diferentes formas de contiguidades

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linguísticas, seja por relação local, remota, de predicação, de complementação,

caracterização, entre outras. Inicialmente, trataremos da operação enunciativa de

articulação.

A articulação é um modo de relação enunciativa dada por uma contiguidade

local relacionada a consistência interna dos enunciados e significada na enunciação.

Localmente, ela relaciona elementos linguísticos aos lugares de enunciação da cena

enunciativa, de tal modo que estes elementos significam por estas relações com os

lugares. A relação entre sujeito e predicado, por exemplo, é uma relação de

articulação. Assim, a organização interna dos enunciados pela articulação se dá por

três relações gerais específicas (GUIMARÃES, 2005a): dependência, coordenação,

incidência.

A relação de dependência ocorre quando os elementos contíguos ao

enunciado organizam-se como um só elemento. Na relação de coordenação, a

articulação toma elementos de mesma natureza e organiza-os como se fossem de

uma só natureza de cada um dos constituintes, em cuja contiguidade, os elementos

apresentam-se acumuladamente. Por fim, na relação de incidência, a articulação

vincula um elemento externo a outro (interno) que, ao se articular com ele, forma um

elemento de segundo tipo (GUIMARÃES, 2018), de tal modo que esse elemento

externo ao enunciado se faz nele presente para “avaliar”, “julgar”, “emitir alguma

opinião” sobre o dentro do enunciado no qual se insere.

Outro aspecto importante ligado aos modos de relação para a análise

semântica dos enunciados é pensar como o falante, agenciado politicamente em

Locutor, aparece relativamente ao acontecimento de enunciação, considera-se aqui,

portanto, a cena enunciativa relativamente aos modos de integração dos elementos

do enunciado ao enunciado e do enunciado ao texto. Nesse sentido, falando

especificamente dos modos de articulação em relação a este lugar de enunciação,

chamarei livremente de “papeis” do Locutor no modo articulatório de enunciados na

enunciação, que são assim divididos, conforme Guimarães (2018):

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Articulação

dependência e coordenação Incidência

O acontecimento de enunciação especifica uma operação pela qual o Locutor relaciona elementos do enunciado.

O acontecimento de enunciação especifica uma operação pela qual a enunciação de um lugar de Locutor que se relaciona à enunciação de lugares de dizer diferentes. É preciso então o identificar, pela enunciação, quem seja esse enunciador do enunciado incidente. A enunciação que traz a “opinião” normalmente terá um enunciador-individual.

Observando os modos de relação de sentido na sequência [3], vemos que,

do ponto de vista da dependência, a expressão “liberdade de expressão”, estabelece

uma relação tal que o termo “liberdade” vincula-se ao termo “de expressão”

constituindo, assim, um único elemento, uma única unidade, na qual o funcionamento

é dado pela dependência de um, “de expressão”, a outro, “liberdade”.

Para pensar o modo de relação por coordenação, procederemos,

primeiramente, a um recorte da sequência [3], seguido de sua paráfrase, ficando

assim:

[3a] assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura

Este enunciado pode ser parafraseado por:

[3a'] (Esta lei visa a) assegurar a liberdade de expressão e (esta lei visa a) impedir a censura

Ou melhor:

[3a''] (Esta lei visa a) assegurar a liberdade de expressão e (também) a impedir a censura

Como dito acima, a relação de articulação por coordenação caracteriza-se

por um “trabalho enunciativo” em que elementos independentes (enunciados com

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estrutura interna relativamente autônoma) vinculam-se a outros elementos (como se

fossem) de mesma natureza, formando um só enunciado. Assim, em [3a'], os

elementos-enunciados (Esta lei visa a) assegurar a liberdade de expressão e (Esta lei

visa a) impedir a censura são dois elementos, com relação de predicação interna, que

são vinculados formando o enunciado (Esta lei visa a) assegurar a liberdade de

expressão e (Esta lei visa a) impedir a censura por um “processo de acúmulo de

elementos numa relação de contiguidade” (GUIMARÃES, 2018, p. 81).

As relações de “a” e “de expressão” com “liberdade” são relações de

dependência, pois estes dois primeiros, atrelados ao último, funcionam como um

nome, como uma formação nominal (FN). Neste caso, temos uma relação

determinante-determinado. Por outro lado, “de expressão” também pode ser vista

como uma forma que especifica o nome, isto é, um especificador, por isso, uma

articulação por coordenação.

Desse modo, o enunciado, enquanto unidade linguística de significação,

possui não apenas relações internas dadas por articulação de seus elementos, mas

também relações de contiguidade que fazem dele um elemento que se integra ao texto

(GUIMARÃES, 2018). Acima de tudo, é preciso analisar o modo como estes modos

de relação se dão relativamente ao texto que integram, para daí se considerar seu

sentido, digo, o sentido do enunciado, o sentido do texto, ou ainda, o sentido do

enunciado ao texto, isto é, relações de sentido como um todo.

Segundo Guimarães (2018), não há correlação direta entre os modos de

relação por articulação e os sentidos produzidos internamente ao enunciado. Isso

porque o modo de relação traz consigo outra relação, com os lugares de enunciação

(Locutor, al-x, at-x, enunciador), que se constituem num acontecimento de enunciação

com temporalidade própria, onde o sentido é dado por esta especificidade temporal.

A partir de agora, nosso olhar se deterá um pouco mais sobre os processos

de reescrituração, modo de relação pelo qual a enunciação rediz o dito,

reinterpretando-o como diferente de si, como visto anteriormente na análise que

fizemos do art. 2°. Diremos então que, dados dois elementos x e y, dispostos numa

certa ordem formal-sequencial direta, y reescritura x, o que equivale a dizer que y

predica (= atribui sentido a) x. A reescrituração difere da articulação pois não se trata

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de um modo de relação contígua ou ainda segmental. Desse modo, uma consideração

fundamental se constitui para esta relação: y, ao reescriturar x, significa,

cumulativamente, a soma do expressamente dito no enunciado anterior (x) e o fato de

que y, ao redizer o dito, diz também o não dito por/em x. (GUIMARÃES, 2018). Isso

tem a ver com o caráter exaustivo que esta operação dá a enumeração.

Outro aspecto importante da reescrituração diz respeito ao fato de que ela

coloca em funcionamento uma operação enunciativa fundamental na constituição dos

sentidos: a determinação semântica, pela qual uma expressão reporta-se a outra

por modos de relação específicos variados, que partem de um grupo básico formado

pelos seguintes modos: repetição, substituição, elipse, expansão e condensação.

Procuraremos aplicá-las ao caso em tela (a [3] e seus enunciados correspondentes e

consequentes: [3a'] e [3a'']).

Em relação à sequência [3], vemos primeiramente algo interessante ligado

a uma forma de reescrituração da expressão liberdade de expressão em seu primeiro

enunciado, que aparece reescriturada numa repetição por sinonímia no segundo

enunciado (§2º). Neste caso, observamos que o termo que reescritura a formação

nominal liberdade de expressão do primeiro enunciado desta sequência é o mesmo

que é reescriturado, isto é, uma repetição. Contudo, o que vemos nesse processo de

significação vai além de uma mera repetição.

Como vemos, o processo de repetição, diferente de outros modos de

relação, reescritura sem, por si mesmo, dar indicações mais “claras”, detalhadas,

sobre o sentido que guarda em seu processo, sem dar “pistas” mais diretas de onde,

por exemplo, encontra-se sua efetiva diferença ao reescriturar a formação nominal

com a qual se relaciona enunciativamente e, como vimos em Guimarães (2018), a

reescrituração rediz o dito reinterpretando-o como diferente de si e, dessa forma,

atribui sentido. Por isso, um caminho possível seria uma investigação mais

pormenorizada das contiguidades ligadas ao modo de repetição. Para tanto,

retomaremos a análise da sequência [3] procedendo desde já com um outro recorte,

desta feita a sua segunda parte (b), onde se enuncia a mesma expressão (liberdade

de expressão):

[3b] previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão

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Antes de analisarmos este recorte de [3b], observamos que o primeiro

enunciado da sequência [3] tem em [3a] seu recorte. A paráfrase deste, [3a''], mostra

que temos duas formações nominais (liberdade de expressão e a censura) presentes

em relações de predicação, ambas no predicado, sendo liberdade o centro da

expressão nominal de que faz parte e censura o centro de outra. Trata-se, assim, da

existência de duas articulações de predicação que assim significam, por essas

relações entre as formações nominais. Isso mostra que a relação de alocução é

configurada por um al-legislador que enuncia para um at-provedor e que este mesmo

alocutor apresenta o enunciador, enunciador universal, fazendo aquilo que ele

assegura significar como que produzindo a conexão predicativa (GUIMARÃES, 2018),

de modo que o que é assegurado é feito pelo próprio enunciador desta cena, que se

apresenta como lugar de dizer que apresenta algo como verdadeiro, em virtude do

que enuncia em relação aos fatos.

Ora, em [3b], vemos, de saída, uma forma de reescrituração por

substituição anaforizada pela partícula que, que reescreve a FN previsão legal

específica “condensada” pelo elemento linguístico, sendo, portanto, o termo sujeito

que se articula nesta relação de predicação com o predicado onde está a outra FN,

liberdade de expressão. Estas relações mostram quais sentidos e como estes

funcionam especificamente neste processo. Desse modo, retomando [3b], vamos

proceder a sua paráfrase:

[3b’] Uma previsão legal específica deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal

Semelhantemente ao ocorrido em [3a''], o enunciado [3b’], traz o lugar

social de dizer, o al-legislador, apresentando o enunciador universal, mas, desta vez,

por meio de uma deontologia que faz significar nesta conexão predicativa a

responsabilização de seu alocutário, um at-legislador, por um futuro organizado em

torno do tempo próprio deste acontecimento de enunciação, isto é, por sua

temporalidade própria, específica, de sentidos. Há, dessa forma, um presente, que se

constitui pela relação entre o texto da lei e a enunciação de ele faz parte, e de um

futuro, especificamente como um futuro que esta lei projeta em seu presente, como

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previsão de sentidos que se desdobrarão e que constarão em outras enunciações,

nas quais constem (ou, devam constar) o que aqui se enuncia como futuro do

acontecimento: o respeito a liberdade de expressão e demais garantias previstas na

CF/88.

Ainda em [3b’], podemos observar um outro aspecto muito importante, que

diz respeito à cena enunciativa deste enunciado. Como vimos, o lugar de dizer

(enunciador) alude o lugar social de dizer (al-x) e enuncia algo como uma disparidade

relativamente ao enunciado de que o sujeito faz parte: o sujeito significa conforme

uma relação com as coisas, com se estas fossem independentes da predicação. É

esta disparidade que faz o sujeito uma previsão legal específica significar neste

acontecimento como um fora da alocução, como algo preexistente, como uma

pressuposição de existência significada na alusão do enunciador ao alocutor.

Observamos então que a FN reescriturante liberdade de expressão

estabelece uma conexão importante numa integração entre dois enunciados distintos,

que, por outro lado, integram o todo do texto de que fazem parte. Ora, desta conexão,

infere-se um sentido dado pelo reescriturante que o conecta ao reescriturado e, assim,

remete-nos a outro aspecto particularmente interessante desta enunciação, só que,

dessa vez, a algo “fora do texto”, que diz respeito aos termos que se “avizinham” à

expressão reescriturante por repetição em [3b].

Vimos que a operação enunciativa da reescrituração por repetição não

apenas liga um termo a outro como forma de “comunicação” textual, ou, como se

costuma atribuir em situações como esta, a uma textualidade do conjunto, mas sim,

observamos que, ao operá-la, o Locutor atribui sentido por uma diferença, e essa

diferença se dá, principalmente, por uma deriva enunciativa incessante que aparece

nos pontos de identificação de correspondências e identidades que constituirão o

sentido (GUIMARÃES, 2009). Neste caso, temos, de um lado, uma forma linguística

que, embora se apresente como anaforizada e referenciada por uma igualdade com

outra forma, de outro, temos seu sentido se fazendo como uma diferença que constitui

a textualidade dessa sequência, isto em termos enunciativos.

No caso em tela, essa diferença se constitui como uma deriva enunciativa

que é estabelecida por uma correspondência entre o presente do acontecimento do

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termo reescriturante (por repetição), que é enunciado no §2º da lei 12.965/14

(recortado por [3b]), e um memorável trazido pela menção que o Locutor faz da

Constituição Federal, especificamente pela referência que faz textualmente ao artigo

art. 5º da Carta Maior, de cujo texto faremos o recorte abaixo, que se “conecta” ao

enunciado em [3b’]. Temos, assim, a sequência abaixo:

[4] Art. 5º, IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. (DO BRASIL, 2010)

Para procedermos a esta análise, parafrasearemos [4] por:

[4’] (É sabido que apesar de) a manifestação do pensamento ser livre,

esta não deve ocorrer de forma anônima.

Ainda mais precisamente, poderíamos ter, de um lado, por sinonímia,

“manifestação do pensamento” como correspondente de “expressão do pensamento”

e, assim, termos “manifestação” por “expressão”. De outro lado, teríamos “ser livre”

por “liberdade”. A partir dessas considerações, podemos chegar à seguinte paráfrase

de [4’]:

[4’’] a liberdade de expressão não deve ocorrer de forma anônima.

Ora, pensando a cena enunciativa de [4’’], no agenciamento das condições

histórico-linguísticas de uma relação de alocução dada pelo espaço da cena da

enunciação jurídica, temos um alocutor-legislador que diz a um alocutário-legislado e,

nessa medida, o falante dividido e agenciado em Locutor apresenta-se no dizer

fazendo uso de (e sendo tomado por) uma sistematicidade específica, no uso que faz

de uma articulação linguística e deontológica como não deve, própria do jurídico, pela

qual atribui sentido particular a este dizer (GUIMARÃES, 2018). O Locutor, desse

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modo, sustenta algo como: a liberdade de se expressar só deve ocorrer por uma

identificação, isto é, não há liberdade se ocorrida sem a devida identificação.

Desse modo, podemos dizer que o sentido de liberdade não é determinado

por seu elemento de articulação imediato de expressão, mas sim, por anônima, que,

nesta relação de predicação, dada por uma formação nominal sujeito, o lugar de dizer

universal alude o al-x e impõe um modo de configuração do real pelo qual se opera

uma espécie de “limitador” dessa “condição ou estado de liberdade”, neste

acontecimento de enunciação em específico. Além disso, esse modo impessoal do

enunciador se apresentar o que se diz na enunciação de [4’’] é apresentado como

uma “verdade para todos”, isto é, um enunciador-universal, num todos, vale dizer, cujo

limite é determinado pela própria instância política do acontecimento de enunciação.

E esse político aqui não é caracterizado pelo que se fala sobre liberdade,

nem sobre direitos, mas pela contradição da normatividade própria da lei, que

estabelece de forma desigual a divisão do real e afirmação do pertencimento dos que

não se encontram incluídos pelas liberdades e pelos direitos, na medida em que o

homem assume a palavra, ou seja, na medida em que fala, ainda que a palavra lhe

seja constantemente negada (GUIMARÃES, 2005c).

De volta ao enunciado [3a-caput], presente na sequência [3], procuraremos

indicar os sentidos nela produzidos, a partir de seu parafraseamento, seguido de um

procedimento de leitura um pouco mais pormenorizada de cada “etapa” do que nela

se encontra enunciado. Em seguida, procuraremos compreendê-la segundo o domínio

das considerações semântico-enunciativas propriamente ditas. Teremos então a

paráfrase da sequência como [3a-caput’]:

[3a-caput']: Com o objetivo de se assegurar a liberdade de expressão e de impedir a censura no ambiente da internet, o provedor de acesso a rede só poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado de um usuário a outro se, após ordem judicial específica, não tomar providências para tornar o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário e respeitados os limites técnicos e os prazos estabelecidos.

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A partir da paráfrase de [3a-caput’], vamos imaginar que ocorre aí o

seguinte: existe um provedor-de-Internet (alocutário-provedor para quem um alocutor-

legislador diz na enunciação) que é responsável por administrar os conteúdos e as

relações na rede internacional. Supondo que exista, de um lado, um usuário A (UA) e,

de outro, um usuário B (UB), (referidos pela expressão “terceiros”), imaginemos que

UA cause algum dano a UB, expondo-o na internet causando-lhe algum tipo de

prejuízo. Assim, UB aciona a justiça, que emite uma ordem judicial contra UA, em

relação ao qual o Provedor-de-Internet fica responsabilizado de tomar determinadas

providências. Na hipótese de que tais providências não sejam tomadas, dispõe o texto

legal que o provedor seja civilmente responsabilizado pelo dano de UA a UB. Desse

modo, de uma forma muito específica e impessoal, o enunciador enuncia, isto é,

apresenta o que se diz sobre o asseguramento de uma liberdade de expressão, em

que aquilo que se diz encontra-se marcado pelo articulador somente poderá ser e que

também associa esse “direito” a algo que se relacione ao sentido de liberdade inferido

das relações que este termo estabelece neste enunciado.

Todavia, onde exatamente se “localiza” a relação entre esta liberdade de

expressão e a previsão de responsabilização civil do infrator, neste caso, o alocutário-

provedor? Mais especificamente, que relação existe entre essa liberdade de

expressão e o que é dito sobre a responsabilidade do provedor frente aos atos

danosos de um usuário relativamente a outro? Estaria sua explicação ligada ao fato

de que exista aí uma “noção preexistente” de liberdade em que esta esteja sugerida

por um “poder/não poder agir sem limites”?

Preliminarmente, podemos asseverar que as respostas a estas perguntas

não se dão por um olhar meramente referencial, isto é, por uma particularização tal

que associe o conceito de liberdade a algo exterior e pré-existente ao texto, nem

enquanto um texto com sentido “atrelado” ao intérprete da lei, como um texto à espera

de um sentido que este lhe possa atribuir, como quer a hermenêutica jurídica clássica.

Tampouco numa perspectiva de textualidade cuja base seja o engajamento linguístico

“conteudístico”, dado por relações de coesão inerentes estritamente ao texto. Antes,

o sentido, segundo o domínio semântico-enunciativo que representamos, é produzido

pelo acontecimento de enunciação de linguagem que, por uma temporalidade própria,

caracteriza-se, como vimos, por um funcionamento próprio da língua em relações de

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alocução, em práticas de linguagem, pelo agenciamento de falantes em aqueles que

dizem (GUIMARÃES, 2005c).

Vemos que uma das possibilidades interpretativas, segundo o modelo

empírico-referencialista, para o asseguramento da “liberdade de expressão” expresso

pelo enunciado em [3a'] seria a de que o instituto legal procura simplesmente

resguardar o direito de alguém se expressar, no caso em tela, UA. Assim, a liberdade

de expressão seria interpretada como um direito que assiste a todos, indistintamente.

Além disso, a estes seria assegurado, segundo este “critério” de significação, o direito

de não terem seu dizer (aqui tratado como um expressar) censurado. Diante disso,

propomos uma análise que investigue, segundo os critérios das operações

enunciativas reescrituração e articulação, o modo como poderíamos depreender a

produção de sentido pelo modo como uma forma é afetada pela outra, dado o

agenciamento político de enunciação do acontecimento (GUIMARÃES, 2018) que

afeta o falante.

Decerto, o responsável por este dizer, o Locutor, que neste acontecimento

específico relaciona sua enunciação com o enunciado, associa a expressão nominal

liberdade de expressão a uma hipótese presente no enunciado [3a']: a do provedor

(seu alocutário) se omitir em relação a um dano causado por um usuário em relação

a outro. Neste caso, o sentido de liberdade, no acontecimento de enunciação, está

atrelado ao fato de que “ser livre” não significa poder falar qualquer coisa de alguém,

sentido este dado por um memorável, enquanto passo de significações, ligado ao

presente do acontecimento.

Assim, segundo esta enunciação, o único “instrumento jurídico” capaz de

limitar o uso “sem limites” do direito de expressão é dado pelo o asseguramento da

liberdade de expressão e pelo impedimento da censura, mas isso ainda não

“esclarece” o sentido. Isso porque, pelo modo como o enunciador alude o al-legislador,

não nos permite inferir nos termos do enunciado quais os limites dessa liberdade, ou

do expressar-se em relação ao outro, o que é confirmado pela “ideia” de que não há

censura. Afinal, o que diz a enunciação?

O sentido de liberdade de expressão não aparece aqui como o sentido

corrente no mundo: “todos são livres para expressar o que pensam”, mas,

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particularmente neste acontecimento, como todos são livres para se expressarem

desde que não causem dano a alguém, isto é, num livre mas não tão livre assim, num

jogo instaurado no agenciamento por um poder-dizer/não-poder-dizer, pelo embate

liberdade/censura, no qual a liberdade de expressão é assegurada (no acontecimento)

por uma contradição que instala o conflito no centro do dizer, o qual é constituído

“pela contradição entre a normatividade das instituições sociais que organizam

desigualmente o real e a afirmação de pertencimento dos não incluídos”

(GUIMARÃES, 2005c, p. 17).

Outro aspecto importante ligado ao sentido de [3a-caput’], em termos

enunciativos e não referenciais, é sua relação de integração com outro enunciado

dessa mesma sequência [3], recortado como parte (b) de [3], numa referência ao §2º

do artigo 19, que apresenta no enunciado um memorável de significações trazido

menção ao art. 5º da CF/88, que, como vimos, estabelece justamente o limite à

liberdade de expressão: seu anonimato. Assim, o sentido é instaurado pelo

acontecimento de enunciação como um memorável de um sentido trazido de um

passado de significações para o presente deste acontecimento em [3a-caput’].

4.6. O artigo 9º e o enunciado-título da FN neutralidade da rede

O enunciado, unidade linguística que deve ser considerada sempre

integrada ao texto, é a unidade de análise da semântica enunciativa e, como vimos,

significa por sua relação de integração ao texto (GUIMARÃES, 2018, p. 75). Com base

nisto, analisaremos nesta seção o nome neutralidade enquanto elemento que integra

o enunciado-título “Da neutralidade da rede” e, como é próprio do funcionamento das

Formações Nominais (FN), este título significa a precedência do que a FN designa,

significa um existente significado pela FN. Por outro lado, o título, além de significar

essa precedência, assevera do que trata esta seção do texto da lei. A sequência na

qual se encontra o enunciado-título em questão é a seguinte:

[5] DA NEUTRALIDADE DA REDE. Art. 9º O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica

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quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação. § 1º A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada nos termos das atribuições privativas do Presidente da República previstas no inciso IV do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução desta Lei, ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações, e somente poderá decorrer de: I - requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e II - priorização de serviços de emergência. § 2º Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego prevista no § 1º , o responsável mencionado no caput deve: I - abster-se de causar dano aos usuários, na forma do art. 927 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil; II - agir com proporcionalidade, transparência e isonomia; III - informar previamente de modo transparente, claro e suficientemente descritivo aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança da rede; e IV - oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais. § 3º Na provisão de conexão à internet, onerosa ou gratuita, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados, respeitado o disposto neste artigo. (BRASIL, 2014)

Procederemos então ao recorte da sequência [5] para analisar o título do art. 9º da referida lei.

[5.1] (Título) Da neutralidade da rede

Antes de iniciarmos a análise propriamente dita, é preciso atentarmos para

o fato de que “o enunciado é a unidade de linguagem que apresenta uma consistência

interna no seu funcionamento, aliada a uma independência interna” (GUIMARÃES,

2018, p. 129) e, enquanto tal, a unidade de análise da semântica. Além disso, ele, o

enunciado, funciona constitutivamente em outra unidade, o texto, isto é, essas duas

propriedades do enunciado o fazem funcionar em virtude do modo de o texto integrar

esta(s) unidade(s). Mas, pensando os títulos de textos em geral, estariam eles, de

alguma forma, relacionados ao conceito de enunciado como o apresentado acima? E,

nessa medida, como se daria o funcionamento de enunciados-título na enunciação?

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Comecemos pela afirmação de Guimarães (2018) que define título como

um enunciado, ou ainda, um modo específico de funcionamento dos enunciados e,

por isso, tratar-se de um enunciado-título, que pode ser um enunciado nominal ou um

enunciado que se constitui por uma determinada FN. Um aspecto muito importante

destas considerações é o fato de que enunciados-título, em regra, têm uma relação

particular com os demais enunciados do texto de que é título.

Ainda sobre os enunciados-título, Guimarães (2018) aponta que eles têm

normalmente estrutura nominal e apresentam-se como um engajamento de um eu

quanto ao título do texto enunciado e quanto ao estabelecimento do que ele enunciará

naquele texto, naquele acontecimento de enunciação. Nessa medida, a sequência [5]

acima é constituída por uma FN que integra uma formação preposicionada “Da

Neutralidade da Rede”, que funciona enunciativamente como o enunciado-nome da

seção do capítulo da lei de que faz parte e com ela estabelece, nesse acontecimento,

diferentes modos de relação.

“Da neutralidade da rede” é o nome deste texto, ou, algo como “aquilo de

que se fala/trata Há, por assim dizer, uma relação tal entre título e texto que

Guimarães (2018) denomina como autorreferencial. Para melhor caracterizar esta

relação particular entre os enunciados de um texto, vamos pensar a relação entre o

texto nomeado por seu título e a cena enunciativa. Num primeiro momento, partimos,

para pensar sua caracterização, das figuras enunciativas fundamentais do alocutor-x

e do enunciador com o que, de modo geral, inespecífico, a representação da cena fica

assim:

L --------------------------------------------------- AT

Ei – Da neutralidade da rede

al-legislador -----------------------------------at-provedor

Para caracterizar cada lugar enunciativo da cena, trataremos primeiro do

lugar de dizer (o enunciador). Neste caso, o lugar de dizer apresenta o título como um

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lugar que se relaciona com o que diz como o que deve ser para todos, como lugar do

universal, mas, neste caso, como lugar de dizer que apresenta “regras”, como uma

“regra” para todos. Trata-se de um lugar de dizer acima da história, do qual se diz algo

sobre o mundo, portanto, de um enunciador universal (Euniv) (GUIMARÃES, 2002).

Por outro lado, o título é uma FN preposicionada enunciada de um lugar

social de dizer. Neste caso particular, vamos considerar que o alocutor-x é um

alocutor-legislador e que este al-x atribui um título à seção de um capítulo que integra

a lei enquanto “artigo 9° da Lei 12.965/14”, o qual estabelece uma relação correlata

com um alocutário-x, considerado aqui como alocutário-provedor, lugar social

responsável pela execução de serviços de transmissão de dados diversos. De modo

que este alocutor-legislador apresenta para seu alocutário-provedor a FN “Da

Neutralidade da Rede”, a qual é enunciada por um Euniv. Temos, então, a seguinte

caracterização da cena:

O Euniv significa o título como indicando a seção do capítulo de que é título,

pela relação de autorreferencialidade. De modo que, a cena do funcionamento do

título traz duas relações, a de nomeação e a da referência. A relação de nomeação

existe pela apresentação do nome pelo al-x e há, no dizer do Euniv, uma relação do

título ao que ele remete, isto é, o texto de que o título é parte. E, ao referir, o Euniv faz

alusão à designação, ao sentido da FN preposicionada, constituído por esta relação

(GUIMARÃES, 2018).

L ------------------------------------------------------ AT

Euniv – Da neutralidade da rede

al-legislador ------------------------------ at-provedor

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No caso em tela, esta alusão do Euniv à designação será pensada não em

relação à FN como um “todo” (considerados todos os seus elementos), mas em

relação à expressão-núcleo dessa FN, neutralidade, que se constitui pelo

funcionamento “cruzado” de relações de articulação, próprias da FN, e da designação,

aludida pelo enunciador dessa cena. Assim, serão analisados os sentidos de

neutralidade. Por outro lado, dada a especificidade dos lugares de enunciador e

alocutor, temos que a FN é a “realização” dada pelo legislador, como título que nomeia

a seção do capítulo da lei. O título que nomeia esta seção poderia ser parafraseado

por algo como o título que dou a esta seção é Da Neutralidade da Rede. Desse modo,

como seria possível pensar o sentido de neutralidade nessa formação quando o que

é aludido aí é a FN como um todo, isto é, como um enunciado-título? Para

respondermos a esta questão, observaremos antes um outro aspecto importante que

envolve a enunciação dos enunciados-título.

Há uma relação muito particular neste funcionamento para que este sentido

de se referir à seção do capítulo da lei por seu próprio nome se constitua e, com isso,

se possa pontuar efetivamente como deve ser entendida a referência nos domínios

da enunciação. Ao mesmo tempo em que o alocutor-legislador e o Euniv integram a

cena, o Euniv, ao referir a seção do texto da lei, faz alusão ao alocutor-legislador, que

nomeou a seção ao apresentá-la (GUIMARÃES, 2018). Assim, para que o sentido da

referência se apresente, ela (a referência) necessita de reportar-se a um dizer que

produz enunciativamente uma designação, que produz uma relação de linguagem

com coisas enquanto significadas.

Ao tratar do enunciado-título em termos enunciativos, Guimarães (2018)

trata de outro aspecto muito importante e caro aos estudos enunciativos em

semântica: a existência de uma relação muito particular para que o sentido de referir-

se ao texto da lei, por sua própria FN, constitua-se. Isto porque, o Euniv, ao referir pelo

enunciado-título, faz alusão ao alocutor-legislador, que dá o enunciado-nome ao texto

da lei, na medida em que o apresenta a seu alocutário, o alocutário-provedor.

Para que o sentido dessa referência se apresente, ela precisa reportar-se

a um dizer que produz enunciativamente uma designação, isto é, dizer que produz

uma relação da linguagem com as coisas enquanto significadas. Ou seja, Guimarães

(2018), com esta afirmação, não nega que exista na linguagem uma relação de

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referência às coisas no mundo. O que autor rejeita é o fato de que esta referência às

coisas seja, em si, uma relação com coisas significadas apenas por esta relação, daí

dizer: para se referir, é preciso, antes, designar.

O Euniv alude o al-x, alocutor-legislador, que de sua parte nomeia o texto.

Consideramos, então, que há duas indicações trazidas pela cena, uma do modo de

apresentação que constitui a nomeação, tal como no diagrama abaixo, e outra aquela

que constitui a alusão, tal como no diagrama anterior, que significam o caráter

autorreferencial dos enunciados-título (GUIMARÃES, 2018). Temos para a

apresentação da nomeação as seguintes relações na cena:

Por este modo, são constituídas as relações entre os lugares na cena da

enunciação em tela. Resta analisar como se dá a designação do nome neutralidade,

expressão núcleo constitutiva da FN preposicionada que nomeia e intitula o texto da

lei, isto é, deste acontecimento de enunciação.

Como podemos observar preliminarmente, o enunciado [5.1] configura-se

enquanto uma Formação Nominal que intitula e encabeça uma seção do capítulo da

lei em tela. Porém, em termos enunciativos, trata-se de uma expressão em cujo

interior funcionam, além de algumas regularidades gramaticais referidas a uma língua,

relações de sentido fundamentalmente importantes relacionadas à exterioridade da

língua.

L ------------------------------------------------------ AT

Euniv – Da neutralidade da rede

al-legislador ------------------------------ at-provedor

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Isso porque, segundo o modo como consideramos o enunciado e os modos

como este produz sentidos, uma palavra presente nessa unidade de análise, apesar

de possuir uma consistência interna morfológica, não possui independência interna

que a integre por si só a um texto. É preciso então que seja primeiramente tomada

enquanto elemento desse enunciado e, assim, integrada a todo do texto, do

acontecimento. Somente a partir de sua integração ao enunciado é que ela será

considerada enquanto unidade significativa. “É a independência relativa, aliada à

consistência interna, então, que faz o enunciado significar e assim ser enunciado, e

não se reduzir a uma sequência de sons, ou de palavras, ou de formas,

simplesmente.” (GUIMARÃES, 2018, p. 16).

Ainda, segundo o autor, o sentido do enunciado e de seus elementos, como

é o caso de palavras e formações nominais, está ligado a diferentes modos de

funcionamento, como é o caso das relações de predicação, articulação, reescrituração

e outros, entre os quais, os enunciados-título que integram diferentes textos. Com

base nesse fundamento de que a palavra integra o enunciado e este integra o texto,

é que dizemos, com Guimarães (2002), que o sentido está ligado a essas relações de

integração de uma unidade linguística a outra, segundo o acontecimento de

enunciação a que estejam relacionados. O sentido se dá no acontecimento por esta

integração. Dessa forma, a unidade linguística que diretamente nos interessa nesta

análise, independentemente do procedimento analítico, é a palavra neutralidade. Para

tanto, incialmente procederemos à paráfrase da sequência [5.1], para pensarmos a

cena

[5.1’] (nós legislamos em nome de uma) neutralidade da rede

Por isso, entendemos que o sentido de um elemento linguístico, enquanto

elemento de um enunciado, é dado por suas relações tanto no enunciado quanto na

relação deste com o texto, e não como um sentido dado previamente, fora da

enunciação. Neste caso, o sentido de neutralidade é dado por essas relações

enunciativas, na especificidade do acontecimento de enunciação em que esse

“conjunto” de regularidades, associado à materialidade da língua, esteja inserido.

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Tomemos então a palavra neutralidade, palavra central dessa formação

nominal que encabeça o enunciado-título, para analisar sua designação na sequência

[5], a ser analisada segundo sua relação de integração com o texto que intitula.

Sabemos que este nome pode se referir a algo que não esteja no texto em que

aparece. Mas, mesmo que se refira a algo, neutralidade só significa em virtude de sua

relação com o enunciado de que faz parte, e deste enunciado com o texto

(GUIMARÃES, 2018), e é com base nestas relações que este nome produz sentidos,

ou seja, que ele designa. Chega-se à designação de neutralidade pela análise de suas

relações de atribuição de sentido com outras palavras do texto, isto é, relações de

determinação semântica.

Determinar x é o mesmo que atribuir sentido a x. Para a descrição

semântica do sentido da palavra que escolhemos para sondagem (neutralidade), e

configurarmos o seu DSD (Domínio Semântico da Determinação), configuração

própria dessas relações de atribuição de sentido, analisaremos brevemente um dos

modos de relação enunciativa, o da reescrituração de neutralidade. A reescrituração

determina semanticamente neutralidade, e isso pode ser visto pelo recorte da

sequência seguido de sua paráfrase:

[5.2] DA NEUTRALIDADE DA REDE. (...) dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção, por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação. (...) A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada (...) Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego (...) o responsável deve: (...) agir com proporcionalidade, transparência e isonomia.

Uma possível paráfrase de [5.2] é:

[5.2’] Neutralidade é o tratamento isonômico de quaisquer pacotes de dados (de internet) e, na hipótese de discriminação/diferenciação do tráfego, o responsável pela transmissão desses dados deverá agir com proporcionalidade, transparência e isonomia.

Primeiramente, neutralidade aparece reescriturada em [5] numa forma de

expansão por desenvolvimento/definição em tratar de forma isonômica quaisquer

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R

ede

pacotes, que, por sua vez, aparece reescriturada por condensação generalizada em

isonomia. Neutralidade aparece também reescriturada por substituição em

proporcionalidade, em transparência e em isonomia, formas que a reescrituram e lhe

atribuem sentido.

Por outro lado, temos também uma relação de antonímia entre neutralidade

e discriminação. Ou seja, vemos que os sentidos de neutralidade são determinados

por esse modo de relação e, por isso, dizemos que estas reescriturações e seus

respectivos sentidos determinam o sentido de neutralidade neste acontecimento de

enunciação. Outra relação possível, agora dada pela articulação de dependência

entre neutralidade e de rede, em que uma se vincula à outra constituindo assim um

único elemento. Para caracterizarmos a relação de determinação entre estes

elementos, parafrasearemos novamente [5.1], enunciado-título da sequência [5]:

[5.1’’] (deve haver) neutralidade na rede

Ou ainda:

[5.1’’’] a rede deve ser neutra

A relação de predicação trazida pela paráfrase [5.1’’] permite concluir que

neutra (neutralidade) atribui sentido a rede e que as relações de sentido

(determinação) atribuídos à neutralidade não a tomam enquanto um conceito

relacionado ao mundo ou a um sentido preexistente ao que se encontra enunciado no

texto dessa lei. Desta sondagem em torno de neutralidade, podemos apresentar o

DSD-1 a que chegamos.

D

SD - 1

N

eutralidade

prop

orcionalidade

Isonomia

rede

Proporcionalidade

Neutralidade transparência

T

T T

T

DSD - 1

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Dado o que se disse acima sobre a relação da referência e da designação,

é enquanto designa, tal como no DSD – 1, que neutralidade se apresenta no título da

seção, e é nesta medida que a FN neutralidade da rede refere-se a uma característica

da rede.

4.7. Análise do preâmbulo da Constituição Federativa do Brasil de 1988

Todos os Estados com Constituição escrita e rígida, como é o caso do

Estado brasileiro, têm sua lei maior regida por uma teoria do poder constituinte, que

distingue poder constituinte de poderes constituídos. Assim, Poder Constituinte é

aquele a quem é atribuído o poder de criar a Constituição, enquanto poderes

constituídos são aqueles estabelecidos por ela. Segundo Emmanuel Sieyès23, a

titularidade do Poder Constituinte é da nação, porém, segundo teorias modernas do

direito, tal titularidade é do povo, que tem o poder de determinar a criação ou

modificação da Constituição.

O exercício do poder de criação de uma Constituição é exercido então

segundo o princípio da participação democrática direta, por meio de Assembleia

Constituinte, no caso brasileiro da Constituição de 1988, soberana e não exclusiva.

Passada a fase constituinte da Carta Magna, chegamos ao texto propriamente dito da

Constituição Federativa do Brasil, especificamente a de 1988, vigente no Estado.

A Constituição é a lei fundamental e suprema de um Estado, criada

segundo a vontade soberana do povo. Além, ela determina a organização político-

jurídica do Estado, em que dispões sobre sua forma, quais os seus órgãos integrantes

bem como suas competências e também sobre a aquisição, exercício e limitações de

seu poder (CANOTILHO, 2003). Segundo a corrente dominante da doutrina jurídica,

há vários “sentidos” definidores da Constituição, sendo os três principais o sociológico,

o político e o jurídico. No aspecto hierárquico, o texto constitucional segue a teoria

23 Abade francês Emmanuel Sieyès, No séc XVIII, às vésperas da Revolução Francesa, defendeu, em sua obra O que é o Terceiro Estado?, uma tese inovadora que rompia com a legitimação dinástica do poder.

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kelseniana, para quem o fundamento de validade das normas está na hierarquia entre

todas elas. Neste caso, o fundamento da Constituição positiva escrita é a norma

hipotética fundamental, norma pressuposta, imaginada.

Estruturalmente, a Constituição é dividida, de forma geral, em três partes:

preâmbulo, dogmática e disposições transitórias. Segundo Canotilho (2003), o

preâmbulo é a parte que antecede o texto propriamente dito da Constituição (dogma).

Sua função é a de apenas definir as “intenções” do legislador constituinte,

proclamando os princípios da nova constituição e rompendo com a ordem jurídica

anterior, orientando sua interpretação, de modo que não se consubstancia enquanto

norma constitucional, segundo orientação do próprio STF (2008, grifo nosso), de onde,

pela sondagem, teremos a seguinte sequência:

[6] Controle concentrado de constitucionalidade. Devem ser postos em relevo os valores que norteiam a Constituição e que devem servir de orientação para a correta interpretação e aplicação das normas constitucionais e apreciação da subsunção, ou não, da Lei 8.899/1994 a elas. Vale, assim, uma palavra, ainda que brevíssima, ao Preâmbulo da Constituição, no qual se contém a explicitação dos valores que dominam a obra constitucional de 1988 (...). Não apenas o Estado haverá de ser convocado para formular as políticas públicas que podem conduzir ao bem-estar, à igualdade e à justiça, mas a sociedade haverá de se organizar segundo aqueles valores, a fim de que se firme como uma comunidade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...). E, referindo-se, expressamente, ao Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988, escolia José Afonso da Silva que "O Estado Democrático de Direito destina-se a assegurar o exercício de determinados valores supremos. ‘Assegurar’, tem, no contexto, função de garantia dogmático-constitucional; não, porém, de garantia dos valores abstratamente considerados, mas do seu ‘exercício’. Este signo desempenha, aí, função pragmática, porque, com o objetivo de ‘assegurar’, tem o efeito imediato de prescrever ao Estado uma ação em favor da efetiva realização dos ditos valores em direção (função diretiva) de destinatários das normas constitucionais que dão a esses valores conteúdo específico" (...). Na esteira destes valores supremos explicitados no Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988 é que se afirma, nas normas constitucionais vigentes, o princípio jurídico da solidariedade. [ADI 2.649, voto da rel. min. Cármen Lúcia, j. 8-5-2008, P, DJE de 17-10-2008.]24

24 http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=555517

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Assim, conforme assevera o órgão judicial supremo, em [6], o preâmbulo

não deve servir de parâmetro para a declaração de inconstitucionalidade das leis

inferiores, tampouco estabelece limites para o Poder Constituinte Derivado, não

dispondo, portanto, de força normativa e sem caráter vinculante. Apesar disso, como

podemos observar, é considerado juridicamente relevante no que diz respeito a seu

caráter norteador da hermenêutica jurídica, ou seja, para a interpretação e aplicação

das normas constitucionais, texto que o sucede. A promulgação da Constituição é,

pois, o procedimento da autoridade competente que atesta o surgimento de um novo

provimento normativo com força vinculante e obrigatória e sua publicação é o

procedimento que dá ciência aos seus destinatários (FERREIRA FILHO, 1984), ela se

encontra presente, segundo o domínio teórico que utilizamos, na enunciação do

preâmbulo da lei maior, especificamente, num acontecimento de enunciação.

Antes de partirmos para a análise propriamente dita do texto do preâmbulo,

importa apresentar brevemente uma nota explicativa (sequência [7]) dada por outra

Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), desta vez datada de 15.08.2002. Nela, o

então ministro Carlos Velloso declara que o preâmbulo da CF não constitui norma

central, e também explica que invocação ao nome Deus neste enunciado não deve

ser interpretada como norma de reprodução obrigatória na Constituição Estadual. Este

ponto, que será tratado mais adiante, interessa-nos, particularmente.

[7] Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa. [ADI 2.076, rel. min. Carlos Velloso, j. 15-8-2002, P, DJ de 8-8-2003.]25

Iniciaremos então a análise desse texto preambular à Constituição Federal

de 1988 (CF/88) procedendo com a sondagem a partir de seu recorte, da qual teremos

nossa próxima sequência. Temos então o seguinte:

25 http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=375324

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[8] Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Como vimos, a enunciação caracteriza-se pela produção e organização de

textos, como o do preâmbulo, dados num acontecimento com temporalidade própria,

além do fato de se dar em espaços configurados por esse acontecimento, pela relação

entre língua e os falantes, os quais são agenciados politicamente a falar determinados

por essas línguas, mas não numa relação empírica (sujeito individual que fala uma

língua) e sim numa relação organizada enquanto “espaço regulado e de disputas pela

palavra e pelas línguas, enquanto espaço político” (GUIMARÃES, 2005c, p. 18).

Outra particularidade do acontecimento, no modo como o consideramos, é

que ele não diz respeito a uma relação entre sujeito e situação, como quer a

pragmática e o discurso hermenêutico-jurídico em geral, mas sim a uma relação

sujeito, língua, história. O sentido, por fim, pode se dar em espaços de línguas e

falantes em acontecimentos de enunciação considerada a materialidade histórica,

através de memoráveis que o constituem. Feitas essas considerações, repercutiremos

primeiramente a cena enunciativa do preâmbulo.

Na medida em que os espaços de enunciação distribuem desigualmente

as línguas para seus falantes é que podemos considerar estes espaços como

políticos, nos quais o acontecimento da enunciação produz sentidos constituindo a

cena enunciativa e seus respectivos lugares de enunciação, como dissemos acima.

Assim, em [8], temos algo que diz respeito a sua configuração enunciativa, isto é, um

Locutor, que aí se apresenta enquanto lugar do que enuncia como origem do dizer e

que é também predicado por um lugar social distribuído segundo uma deontologia

jurídica do dizer. Este Locutor (L) diz a um Locutário (LT), que é seu correlato nesta

enunciação específica, caracterizando assim uma relação eu-tu. Assim, o alocutor-

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constituinte, ao dizer “nós promulgamos x”, o faz não porque alguém (empiricamente)

aí se coloca enquanto essa origem do dizer, mas porque, enquanto alocutor-

constituinte, ele pode se dar como origem daquilo que se faz saber, o que só é

possível na medida em que o Locutor é constituído no acontecimento como um lugar

social de dizer, neste caso, um alocutor-constituinte (al-x), que também tem um

correlato, o alocutário-cidadão (at-x).

O presente constituído em [8] é o presente do Locutor relacionado à

temporalidade do acontecimento. Por isso, o “nós” é aí visto como aquele que

promulga algo, a Constituição, e como um “nós” que cumpre um ofício, ao marcar e

configurar a representação da origem do dizer, um dizer que não é provido de um

lugar social senão pela divisão desse dizer, isto é, de L a al-x, dada pelo agenciamento

das sistematicidades linguísticas, o Locutor (aquele que diz), e pelo agenciamento das

condições histórico-linguísticas, os alocutores, enquanto lugares sociais de dizer.

Outro aspecto a se observar em [8] é que este nós que promulga algo, a

CF/88 é também o nós que, ao mesmo tempo, institui um Estado democrático de

direito, que poderiam ser vistos simplesmente neste caso como dois performativos

dados segundo uma ordem em que a palavra corresponde a uma ação e, assim,

produz sentido. Mas, nos termos da semântica da enunciação, Guimarães (2018)

afirma que a disparidade constitutiva da cena enunciativa não diz respeito apenas ao

Locutor, mas também ao alocutor. Para o autor, enquanto os lugares sociais do dizer

(os alocutores) se põem no centro do dizer e marcam o lugar do confronto, do

desentendimento. A questão é: a que forma de confronto/conflito está relacionado o

lugar social de dizer (al-x)?

Conforme o que apresenta Guimarães (2005c), essa forma de conflito é

dada pela relação entre o alocutor-x e o memorável que atravessa o acontecimento

de que ele, o lugar de enunciação, faz parte. Assim, pode-se considerar em [8] o

alocutor-x do memorável apresentado como um outro alocutor-constituinte, anterior

ao presente do acontecimento do lugar social de dizer, que significa na enunciação a

ruptura entre este regime e o regime apresentado pelo (e a partir do) presente do

acontecimento, pelo Locutor, qual seja, regime este promovido pela materialidade

histórica (presente na língua) do processo de redemocratização do Brasil em 1988,

que marcou, segundo os termos do enunciado e seus modos de integração ao texto

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constitucional, o início de um período de liberdade e a plenitude do regime

democrático.

Isso explica, por exemplo, o fato de que a enumeração presente no

enunciado [8] significa, neste espaço de enunciação, por seus elementos estarem

integrados ao texto, determinados (por relações de determinação) que são pelas

relações de alocução descritas acima, nos lugares de enunciação representantes do

agenciamento político do falante. Assim, palavras-elementos da enumeração como

liberdade, igualdade, pluralista, entre outras, significam pelo conflito instalado, no

dissenso, marca precípua do político neste acontecimento de enunciação do espaço

jurídico.

Dadas as configurações da cena enunciativa em tela, que encaminham os

sentidos operados pelo acontecimento de enunciação em [8], podemos pensar o

político segundo o domínio das posições histórico-materialistas, conforme o que

expõe a semântica do acontecimento. Para Guimarães (2005c), há no político uma

divisão que afeta materialmente a linguagem, sendo uma instância sempre dividida

pela desmontagem da contradição, pela enunciação dos que não podem falar. Por

esta concepção, o político não deve ser associado nem ao falso nem ao verdadeiro,

tampouco considerado como o que se fala sobre igualdade, direitos (humanos),

deveres, nem como o lugar do engano, mas sim como fora dessas concepções

negativas. Assim, o autor define o político enunciativamente como que (GUIMARÃES,

2005c, p. 16):

(...) caracterizado pela contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do real e pela afirmação de pela afirmação de pertencimento dos que não estão incluídos. Desse modo, pelo político, se estabelece um conflito entre uma divisão normativa e desigual do real e uma redivisão pela qual os desiguais afirmam seu pertencimento.

No enunciado [8], o alocutor-constituinte agenciado politicamente a dizer,

enuncia a seu alocutário, sob a proteção de Deus. Ora, se procedêssemos com duas

paráfrases de uma parte de [8], veríamos isso com mais especificidade:

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[8a] Nós, representantes do povo brasileiro, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.

Podemos, ainda, parafrasear [8a] elidindo a expressão sob a proteção de Deus:

[8a'] Nós, representantes do povo brasileiro, promulgamos a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.

Sob certos aspectos, claramente vemos que a elisão da formação nominal

preposicionada sob a proteção de Deus em [8a'] não traria nenhum prejuízo aos

propósitos do enunciador em questão, que é significado por um modo impessoal de

se apresentar o que se diz na enunciação. Ocorre que, em termos de modos de

relação por articulação e seus sentidos, há algo que deva ser dito aqui. Isso porque,

há uma relação de contiguidade significada nesta enunciação dada por uma

articulação por incidência de uma formação nominal preposicionada (sob a proteção

de Deus) em relação ao enunciado de que ela faz parte, e não da relação de um termo

da formação nominal em relação a ela. Como vimos em outras ocasiões, as

articulações são relações internas ao enunciado, mas também são relações (variadas)

de contiguidade que fazem do enunciado um elemento que se integra ao texto

(GUIMARÃES, 2009).

Na articulação por incidência, da enunciação de sob a proteção de Deus,

sobre o acontecimento da promulgação e não sobre os alocutores da promulgação,

nem sobre o sentido do que se promulga26, o acontecimento enunciativo especifica

uma operação pela qual a enunciação de um lugar de Locutor se relaciona à

enunciação de lugares de dizer (enunciadores) diferentes. Em [8a], identificamos o

enunciador do enunciado incidente como um enunciador coletivo, que enuncia um

comentário trazido pela enunciação a partir do lugar de outro enunciador. Nela, o

enunciado em [8a] implica uma divisão do real entre os que acreditam nessa forma de

26 Uma hipótese inicial que merece análises futuras mais detalhadas.

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proteção e os que não acreditam nela, sem que isso afete a distribuição específica

dos direitos constitucionais.

Temos, de um lado, a afirmação de uma diferenciação/distribuição dada

por uma divisão política dissensual: os que acreditam e os que não acreditam em

deus. E não só isso. De outro lado, a distribuição é recortada e organizada por um

memorável que remete a outra divisão, aquela que divide o Estado da Igreja, mas que

é “anulada” pela temporalidade própria presente do acontecimento que organiza aí

dentro os sentidos, a mesma divisão que subverte o laicismo, silenciado pelo discurso

jurídico em operações de agenciamento político do falante, e transforma o

incontornável da língua em transparente.

4.8. Análise comparada dos acontecimentos CF/88 e Lei 12.965/14: relação por

conformação e por diferença

Assumir a posição enunciativa no terreno da semântica é, de certa forma,

contrapor-se ao que está inscrito na tradição de outros domínios, relativamente à

noção de sentido. Em primeiro lugar, porque, desta posição, especificamente naquela

a que me afilio aqui, consideramos o acontecimento como uma instância pensada

enquanto diferença na sua própria ordem, isto é, capaz de produzir sua temporalidade,

e não como um fato novo no tempo (GUIMARÃES, 2005c). Em segundo lugar, porque

uma semântica que assume esse posicionamento enunciativo, material e histórico,

difere de posições referencialistas, aquelas que consideram o sentido dado por uma

correspondência única com o mundo das coisas, como o faz, por exemplo, a lógica e

certas posições da filosofia da linguagem. Ou ainda, que buscam na instância textual

“uma ideia”, uma “moral” do texto, como querem as interpretações idealistas.

A partir desse relativo conflito de posições relativas à significação e ao

sentido, aqui ligeiramente abordado, é que se realiza a análise comparativa que

propomos, especificamente no que diz respeito à relação comparativa entre posições

da semântica e do direito. De modo mais direto, trata-se de aplicar as concepções

semântico-enunciativas às noções previstas num “modo de interpretar a lei”, próprias

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de um discurso jurídico dogmático lastreado principalmente por questões de cunho

veritativo.

Desse modo, interessa-nos colocar os textos jurídicos em questão segundo

uma análise comparativa baseada na semântica do acontecimento para, assim,

aplicar esse dispositivo teórico a partir da enunciação, enquanto acontecimento de

linguagem, e dessa forma entender, pelo funcionamento da língua, como o sentido aí

se constrói.

Para tanto, consideramos, como já vimos, dois textos jurídicos dos quais

partimos como acontecimentos em si: a Constituição Federal do Brasil de 1988

(doravante CF/88) e o Marco Civil da Internet – Lei 12.965/2014. Em relação ao

primeiro texto/acontecimento, como sabemos, é nossa Lei Magna vigente, além de

possuir a marca de um texto política e historicamente constituído num período

denominado redemocratização do Brasil, dadas suas nuances relativas ao período em

que foi promulgada e sancionada, e também pelas mudanças que propõe no tocante

à novos rumos da democracia nacional a partir de então. Em relação ao Marco Civil,

como sabemos, é um texto/acontecimento que, após várias discussões sociais

objetivas, notabilizou-se, pretensamente, pela “necessidade” de se regularem as

condutas/ações virtuais de usuários, provedores e demais conteúdos de internet em

todo o território nacional, apresentando seus direitos e deveres no ciberespaço.

De modo geral, pode-se dizer que a construção do Direito se realiza por

uma exploração hermenêutica operada, organizada e ditada pelo ordenamento

jurídico, que é constituído por juristas, juízes e pela doutrina (intérpretes da lei). Com

isso, segundo Streck (2000), temos o engendramento de uma crise desse sistema,

uma vez que, justamente por “essa” forma de interpretar o direito, própria desses

atores sociais, o direito das pessoas se coloca, cada vez mais, distante dessas

mesmas pessoas.

A proposta deste trabalho não é a de estudar de modo particular as

nuances e implicações de uma interpretação jurídica, mas discutir em que medida

esse modo de interpretar implica uma contradição, ou, um problema que a superfície

dos textos, bem como a noção de que qualquer texto são suas “ideias”, não é capaz

de explicar. Isto porque o que uma análise comparativa propõe é que é possível, pela

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linguagem, desconstruir conceitos tidos como verdades absolutas dentro do ambiente

jurídico, mais especificamente por meio de uma semântica, relegada, há anos, à

marginalidade por muitos operadores do direito.

Ora, a comparação que este texto propõe não é a mera justaposição com

base numa simetria vazia, mas operada, em princípio, pela ideia de que se compara

aqui acontecimentos, de um lado a CF e, de outro, o Marco Civil. Mas uma questão

coloca-se logo de saída: a melhor forma de darmos início a uma comparação no

campo jurídico é partir da premissa de que qualquer texto oficial (leis ordinárias,

decretos, decretos-lei, portarias etc.) deve passar pelo “crivo” constitucional, ou seja,

a Constituição tem o poder de Lei Magna, suprema em relação às demais leis, por

isso, convencionou-se chamar sistema constitucional e sistema infraconstitucional

(VELOSO, 2000).

Pelas regras do ordenamento jurídico, há um sistema de controle de

constitucionalidade das leis em geral, previsto na própria CF/88, que organiza

preceitos em relação aos quais o sistema infraconstitucional não pode infringir. Por

esta hierarquização, entende-se que qualquer lei deve orientar-se pela Constituição,

o que significa que uma determinada é medida em termos de constitucionalidade e

inconstitucionalidade (VELOSO, 2000).

Até aqui, de certa forma, retomamos o que já foi dito anteriormente. Para

avançarmos na análise a que me propus no início, partiremos do seguinte pressuposto

do Direito: segundo os preceitos do ordenamento jurídico, o cumprimento da

constitucionalidade de um texto infraconstitucional, operada por uma forma específica

de controle, dá-se como uma conformação do texto constitucional relativa ao texto

infraconstitucional.

Vejamos o que diz Bastos (2014, p. 26, grifo nosso) a respeito da

interpretação jurídica:

Interpretar é atribuir um sentido ou um significado ao texto. Esta atividade é sempre necessária quando se tem em vista que os preceitos normativos são sempre abstrações da realidade. Ademais, para que as normas possam cumprir a sua finalidade de disciplinar um número infindável de situações necessitam apelar para um alto nível de abstração e

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generalidade. Tal fato gera como consequência a circunstância de que diante de uma determinada situação concreta aparecerá sempre a pergunta consistente em saber-se se dita situação encontra-se abarcada pelo preceito normativo ou não.

Por este entendimento, inferimos tratar-se a ideia da interpretação como

um sentido “atribuído” pelo leitor-intérprete, que faz “escolhas”, segundo este autor,

diante da lei. Trata-se de uma questão de “vontade” do intérprete. Ora, se as palavras

estão dispostas e “à espera” de quem as interprete, é fácil deduzir que, nestas

instâncias, interpretar é algo ocorrido ligado quase que estritamente ao leitor, portanto,

numa instância mais parecida com o que se faz ao se determinar se um texto é ou

não constitucional.

Pela abordagem de uma ciência da linguagem, é preciso definir de saída

uma unidade de análise, que, no caso da semântica enunciativa, é o enunciado, que

possui uma consistência interna e uma independência relativa ao lugar em que

aparece, o todo de que faz parte num acontecimento de enunciação (GUIMARÃES

2018).

Assim, o sentido, segundo esta posição, não é, nem pode ser dado

primariamente pela relação entre diferentes acontecimentos, mas sim, antes, pelas

relações previstas enunciativamente na unidade imediata de que faz parte. Neste

aspecto, não é possível pensar uma linearidade do tipo A especifica B, B é

especificado por A, em que A e B são acontecimentos distintos, portanto, de ordem

temporal distintas. Esta regra infringe a teoria que aqui propomos utilizar na medida

em que retira elementos constitutivos desses textos e os “transportam” para outros

textos, ou, acontecimentos.

A proposta que uma análise semântico-enunciativa faz para o caso em

questão é a de, após a aplicação de um dos procedimentos analíticos disponibilizados

pela teoria, operar com a comparação. Assim, pegaríamos um mesmo elemento, por

exemplo, a palavra liberdade, ou a expressão liberdade de expressão, tanto na CF/88

quanto no Marco Civil/14, para, só assim, procedermos à análise comparativa.

Além disso, para operar com essa análise semântica, é preciso definir em

que ordem do acontecimento a análise será tomada, haja vista que, em alguns

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momentos, neste mesmo trabalho, tomamos o texto legal como um acontecimento na

ordem dos textos legais, ou então, tomamos o funcionamento enunciativo de uma

palavra, portanto tomados numa ordem diferente da primeira, isto é, tomados numa

ordem das palavras que compõem aquele texto, aquele acontecimento. Para a

comparação a que pretendo apresentar, parece mais adequado

tomarmos/assumirmos o segundo método.

Do ponto de vista semântico-enunciativo, relativo a uma conexão entre

esses dois acontecimentos, uma possível diferença de sentido aparece como

diferença e não como conformação. Até porque, se a interpretação jurídica considerar

a diferença entre esses acontecimentos, terá de admitir uma “ampla”

incompatibilidade constitucional entre o que se encontra disposto nas “leis em geral”

(lei infraconstitucional) e na Constituição, o que desarticularia o princípio do controle

constitucional. Seria o caso, por exemplo, de, diante dos diferentes sentidos de

liberdade, neutralidade, igualdade, apresentados pela análise semântica, admitir o

desarmônico, o que levaria a uma importante desconstrução sistêmico-interpretativa

das normas jurídicas operadas pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Vamos nos utilizar, então, da designação para tratar das questões até aqui

levantadas. Antes de mais nada, analisaremos o que diz Guimarães (2018, p. 151) a

respeito da designação:

O funcionamento semântico dos enunciados os relaciona com o texto. Por outro lado, os elementos que constituem o enunciado significam em virtude de suas relações de integração no enunciado e do enunciado ao texto.

Como dito anteriormente, são exatamente essas relações de integração

que nos interessam no campo da designação, que não é aqui tratada como sinônimo

de referência ou denotação. Assim, um termo (um nome, por exemplo) significa na

medida em que se integra ao enunciado por meio de diferentes tipos de relação.

Para entender, de início, o significado de designação, é preciso tomar nota

de que seu conceito não deve ser confundido com o de referenciação nem com o de

predicação, já tratado aqui. Assim, na designação, embora tenhamos um elemento do

enunciado se referindo, pela predicação, a algo, do ponto de vista da designação,

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essa mesma expressão que se refere a algo significa em virtude de sua relação com

o enunciado no texto (GUIMARÃES, 2018). É justamente por esse tipo de relação que

a designação se diferencia dos demais funcionamentos, por produzir sentido para a

formação nominal (ou verbal) de um determinado enunciado.

Em outros termos, não distantes destes aqui apresentados, Guimarães

(2005c, p. 9) definiu assim designação:

[...] é o que se poderia chamar de significação de um nome, mas não enquanto algo abstrato. Seria a significação enquanto algo próprio das relações de linguagem, mas enquanto uma relação linguística (simbólica) remetida ao real, exposta ao real, ou seja, enquanto uma relação tomada na história. É neste sentido que não vou tomar o nome como uma palavra que classifica objetos, incluindo-os em conjuntos, [mas sim] como considerou Rancière (1992), [como] nomes que identificam objetos.

Tomo esta definição para o que aqui me proponho analisar e afirmar: a

significação é dada como uma relação tomada na história, e por isso exposta ao real,

e não fora dela, isto é, dada como mera classificação de coisas, como uma referência

a um mundo de coisas que ratificam informações linguísticas de objetos presentes no

mundo, num universo de ideias e ideais veritativos, como o que parece acontecer no

universo da interpretação jurídica, mais especificamente, da dogmática jurídica.

Segundo o próprio Guimarães (2018), a ideia de identificar objetos tem a

ver com o fato de que as coisas que existem no mundo são tomadas pela linguagem

em razão daquilo que (do modo que) uma expressão significa no enunciado específico

de que faz parte.

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5. CONCLUSÕES

Considerando as diferenças fundamentais entre ciência jurídica, direito e

ciência linguística, este trabalho se dedicou a analisar os textos jurídicos da CF/88 e

do MCI/14, o que implica pensar o direito não como como um espaço de

construção/desconstrução de saberes, nem, portanto, como uma epistéme, mas como

uma téchne, isto é, como um “modo de saber fazer algo”, uma prática. Há diferentes

implicações epistemológicas de um olhar científico da linguística para aquilo que é

uma prática, entre elas, e talvez a principal, é o fato de que o direito se apresenta

socialmente como uma prática jurídico-dogmática. Não obstante, o trabalho mostrou

também que o direito não pode ser visto como uma racionalidade instrumental e

transparente, mas opaca, ou seja, é uma prática que produz sentidos.

A consideração acima encaminha, consequentemente, outra questão muito

importante, que diz respeito às resultantes apresentadas por este trabalho atinentes

à relação comparativa entre dois textos jurídicos, pela qual o sentido é determinado

por/como uma diferença e não por/como uma conformidade. Considerando-se o texto

como um acontecimento, dizemos com Guimarães (2002) que ele possui uma

temporalidade própria de sentidos, isto é, como uma instância constitutiva de uma

ordem própria. Isto, de certa forma, o “singulariza” e, nessa medida, seus elementos,

como o enunciado, o integram produzindo sentidos por seus diferentes modos de

relação, considerada a enunciação de que fazem parte. Consequentemente, um

mesmo elemento linguístico não produz os mesmos sentidos pelo simples fato de

integrarem, a um só tempo, dois acontecimentos distintos. A enunciação é

determinante nesta questão.

A análise do sentido trazido pelo acontecimento na designação da palavra

neutralidade mostrou que, dada sua relação de articulação na FN preposicionada que

a integra (“Da neutralidade da rede”) e o modo como aí funciona enunciativamente

enquanto enunciado-título da seção (art. 9º da Lei 12.965/14), este (sentido)

acontece/funciona enquanto associado ao modo como o Euniv, ao referir, faz alusão à

designação de neutralidade, de modo específico. Ora, se a rede é neutra, como é

sugerido pela relação de determinação (rede é determinada por neutralidade) no

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interior dessa articulação, inferimos que esta rede virtual, segundo as especificidades

dos lugares de enunciação desta cena, significa enquanto um espaço por onde podem

passar quaisquer dados (livremente), manipulados (livremente) por seus usuários,

cuja responsabilidade e controle é de um outro lugar enunciativo, o do correlato do

alocutor-legislador, o alocutor-provedor-de-internet. Isso associa o sentido de

neutralidade ao de liberdade, colocando em questão o princípio constitucional de

liberdade (caput do art. 5º da CF/88) no sentido de quem é efetivamente alcançado

por essa liberdade.

Estas análises mostram que, no seu funcionamento histórico, a

Constituição se expõe a novos acontecimentos de enunciação: novas leis que, ao

legislarem em virtude das condições que demandam novas regulações, modificam o

próprio sentido da constituição. O sentido de liberdade de expressão na constituição

não é um conceito atemporal, é um conceito que se movimenta polissemicamente,

por novas leis, que tratam de sua especificação, em virtude da própria historicidade

das leis (e, portanto, da Constituição).

Por outro lado, a análise enunciativa realizada sobre a Formação Nominal

liberdade de expressão, constante na CF/88, mostrou que, dadas as operações

enunciativas de reescrituração e articulação em que FN aparece, o sentido de

liberdade aparece designado neste acontecimento enquanto “assegurado” segundo

uma contradição instalada, no centro desse dizer, entre a normatividade instaurada

pela legalidade do Estado que organiza desigualmente o real e a afirmação de

pertencimento dos não incluídos. Essa contradição apresenta-se na medida em que

a mesma enunciação traz, de um lado, um todos (todos são iguais perante a lei) e

uma liberdade de expressão subsumida pela exigência do não anonimato.

O sentido da liberdade de expressão aparece, assim, como o que, de algum

modo, exige a neutralidade dos controladores da rede. E, na medida em que a questão

se apresenta como neutralidade na lei, ela acaba por abrigar o sentido de um certo

tipo de controle, pelo sentido de que a liberdade de expressão, fundamento

constitucional, cercado que é pelo sentido da intocabilidade, exerce-se, segundo a lei,

fora do anonimato, ou seja, dentro de certas condições que exigem uma conformação

da liberdade pela responsabilidade, sustentada pelo princípio constitucional do

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controle jurisdicional de constitucionalidade, mas que, de modo decisivo, é mostrado

pela análise como algo que há na lei infraconstitucional, mas que difere pela

especificação que enuncia da expressão constitucional.

Não se trata, assim, de uma conformação, como quer a teoria do controle

jurisdicional de constitucionalidade, pois, o que temos nesta comparação entre os

textos da lei não é uma relação direta entre a forma e o sentido, mas uma relação

estabelecida pelo acontecimento enunciativo e, nesta medida, distinta. As análises

relativas à reescrituração, entre outras, mostraram que este processo “liga pontos de

um texto com outros do mesmo texto, e mesmo pontos de um texto com pontos de

outros textos” (GUIMARÃES, 2018, p. 93, grifo nosso). Finalmente, esta mesma

reescrituração, ao retomar alguma palavra ou expressão, faz com que ela signifique

de outro modo. Trata-se, pois, de uma relação dada por uma diferença, ao que

livremente chamei de “primado da diferença”.

O controle jurisdicional de constitucionalidade, considerado como um

controle constitucional, é um controle de sentidos, que busca a unicidade da

significação. Nesta medida conforma sentidos de um a outro texto, portanto, de um a

outro acontecimento. Assim, o “controle de sentidos” dá-se por uma noção de

transparência da linguagem jurídica. Este modo de tratar a questão desconsidera,

segundo o ponto de vista deste trabalho, a própria natureza do funcionamento do texto

As duas questões acima (a do direito como uma téchne e a da relação entre

textos como uma diferença) confluem em direção a um aspecto fundamental do

direito: o direito é um sistema de regras cuja coerência (sistêmica) interna é regulada

segundo uma ordem de que não seja possível evocar as vantagens de uma regra

sobre a outra, de modo que, em caso contrário, o efeito da primeira regra seria

destruído. Por este motivo, o direito deve eliminar toda forma de contradição. Isto o

leva a se apresentar como um sistema saturado, isto é, que apresenta um sistema de

regras que abrange todos os casos da “realidade”.

O resultado desta pesquisa, entretanto, mostrou que isso não é possível,

pelo fato de que o direito, enquanto um sistema deôntico de normas e de controle

social, opera pela linguagem (a Constituição e as leis se fazem com linguagem),

embora sob a suposição de uma transparência, ou seja, conforme a noção de que,

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pretensamente, essas normatividades o conduzem “naturalmente” à produção de

justiça material. A noção de materialidade histórica ligada à enunciação é trazida pela

análise semântica aqui feita no sentido de que a realidade não se apresenta na lei

como algo preexistente, da ordem empírica, a ser alcançado por um sistema de regras

numa relação do tipo sujeito-objeto, mas, antes, significada segundo diferentes modos

de produção de sentidos, em espaços de enunciação regulados por relações entre

falantes e línguas, segundo agenciamentos políticos de enunciação, pelos quais,

simbólica e materialmente, esses sentidos são produzidos.

Em sentido amplo, o campo de estudos dos domínios de conhecimento da

linguística e do direito são pouco explorados. Nesse sentido, pelo modo como a

análise foi encaminhada neste texto, é possível dizer que a semântica, pelo modo que

se coloca aqui, insere-se num campo maior de uma ciência crítica ao direito. Em se

tratando de uma análise semântica voltada ao texto jurídico, isso é ainda mais difícil.

Por isso, em muito os resultados desta pesquisa podem contribuir, e de forma

recíproca, para a relação epistemológica entre esses dois domínios. Isso porque,

como demonstrou a pesquisa, o direito, enquanto pertencente ao domínio social, o

alcança e nele pode interferir de forma decisiva. Portanto, ao questionar a orientação

interpretativa do ordenamento jurídico brasileiro (hermenêutica jurídica), a análise

semântica espera contribuir para uma sociedade melhor.

Por outro lado, alguns percalços foram encontrados nesse caminho de

desenvolvimento da pesquisa. Entre eles, dadas as dificuldades de tempo, a de um

maior aprofundamento na leitura da bibliografia, que, com o passar do tempo,

mostrou-se cada vez mais intrigante, mas, ao mesmo tempo, “distante”. Registre-se,

por exemplo, a falta de uma maior dedicação à análise do texto constitucional, que

mereceu maior aprofundamento do ponto de vista da análise semântica. Inclusive, na

própria dificuldade de análise do texto jurídico em suas peculiaridades, em alguns

casos, muito diferentes em relação ao que antes vínhamos tratando em outras

análises.

Das diversas implicações que a presente pesquisa trouxe, a partir de um

olhar semântico-analítico para o direito, há a possibilidade trazida pela própria noção

política prevista na obra de Guimarães (2002), qual seja, aquela que diz respeito à

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distribuição de desigualdades e a afirmação de pertencimento, que coloca o político

como algo próprio da divisão que afeta materialmente a linguagem. Para este autor, o

político não é caracterizado como aquilo que se fala sobre direitos e igualdade, mas

pela contradição de uma normatividade que estabelece a divisão do real pela

afirmação de pertencimento dos que não são incluídos.

Esta relação, por sua vez, encaminha a presente análise para um caminho

que ela não percorreu, mas que, oportunamente, o fará. Isso porque, o político, da

forma como é caracterizado pela semântica do acontecimento, implica o direito, na

medida em que fala de “afirmação de pertencimento” e de normatividades que dividem

o real. Portanto, o político e jurídico encontram-se absolutamente implicados e,

embora não tenham sido tratados aqui com a profundidade merecida, certamente

farão parte inescusável de pesquisas futuras.

Por isso, como demonstram os resultados desta pesquisa, e como

reconhece a própria razão crítica do direito, para além das ontologias ingênuas que

sustentam a dogmática jurídica, há que se evidenciar a importância social das teorias

contemporâneas do significado e da linguagem para a construção do direito, o que

representaria, no atual cenário, uma mudança de paradigma no universo jurídico.

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