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 1 Múltiplos e animados modos de existência: Entrevista com Bruno Latour Jamille Pinheiro Dias (DLM/USP) Renato Sztutman (DA/USP) Stelio Marras (IEB/USP) Versão preliminar. Favor não citar, favor não circular. A entrevista será publicada em breve pela Revista de Antropologia da USP. Em meio a uma verdadeira maratona de atividades em São Paulo, o pensador Bruno Latour enfim aceitou conceder esta entrevista em 10 de agosto de 2012. Considerando sua alta projeção no cenário intelectual contemporâneo, apresentá-lo aqui  parece tarefa desnecessá ria. Mais proveitoso será tecer algumas breves notas introdutórias suscitadas pelos temas da entrevista, destacando, em especial, o horizonte de suas mais recentes reflexões, como as que reverberam em seu livro-projeto  Enquête  sur les modes d'existence: une anthropologie des modernes 1 .  Nesta entrevista, Latour reitera sua ambição, já largamente u rdida em sua obra  pregressa, em repor sob novas bases a comparação de mundos diversos a partir de tensões contemporâneas que demandam soluções as mais urgentes. É assim, por exemplo, que ele retoma a exaustão e ineficácia da noção de representação social ou mental    noção que cada vez mais interdita a compreensão das composições múltiplas de mundos e sobretudo as articulações e passagens entre elas. Livrar-se da noção de representação , de r esto apoiada na separação oficial modernista entre natureza e cultura, aparece como condição para que as ciências sociais contemporâneas (ou sobretudo a antropologia) abordem de modo renovado e auspicioso os estudos sobre natureza, ciência e, como consequência, humanidade. Como agora falar de ontologias sem simplesmente aplicar o entendimento moderno oficial, cada vez mais insustentável, que as dividia entre a realidade objetiva e as subjetividades relativistas? Tal desafio implica o de superar o divórcio entre antropologia e filosofia para assim recuperar a ontologia em seus modos múltiplos e 1  Paris, Éditions La Découverte, 2012.

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entrevista de bruno latour a stelio marras e renato sztutman

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    Mltiplos e animados modos de existncia:

    Entrevista com Bruno Latour

    Jamille Pinheiro Dias (DLM/USP)

    Renato Sztutman (DA/USP)

    Stelio Marras (IEB/USP)

    Verso preliminar. Favor no citar, favor no circular.

    A entrevista ser publicada em breve pela Revista de Antropologia da USP.

    Em meio a uma verdadeira maratona de atividades em So Paulo, o pensador

    Bruno Latour enfim aceitou conceder esta entrevista em 10 de agosto de 2012.

    Considerando sua alta projeo no cenrio intelectual contemporneo, apresent-lo aqui

    parece tarefa desnecessria. Mais proveitoso ser tecer algumas breves notas

    introdutrias suscitadas pelos temas da entrevista, destacando, em especial, o horizonte

    de suas mais recentes reflexes, como as que reverberam em seu livro-projeto Enqute

    sur les modes d'existence: une anthropologie des modernes1.

    Nesta entrevista, Latour reitera sua ambio, j largamente urdida em sua obra

    pregressa, em repor sob novas bases a comparao de mundos diversos a partir de

    tenses contemporneas que demandam solues as mais urgentes. assim, por

    exemplo, que ele retoma a exausto e ineficcia da noo de representao social ou

    mental noo que cada vez mais interdita a compreenso das composies mltiplas

    de mundos e sobretudo as articulaes e passagens entre elas. Livrar-se da noo de

    representao, de resto apoiada na separao oficial modernista entre natureza e cultura,

    aparece como condio para que as cincias sociais contemporneas (ou sobretudo a

    antropologia) abordem de modo renovado e auspicioso os estudos sobre natureza,

    cincia e, como consequncia, humanidade.

    Como agora falar de ontologias sem simplesmente aplicar o entendimento

    moderno oficial, cada vez mais insustentvel, que as dividia entre a realidade objetiva e

    as subjetividades relativistas? Tal desafio implica o de superar o divrcio entre

    antropologia e filosofia para assim recuperar a ontologia em seus modos mltiplos e

    1 Paris, ditions La Dcouverte, 2012.

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    reais de existncia. Ao que bem parece, trata-se de renovar o humanismo seno antes,

    a noo mesma de humanidade situando-a agora em suas relaes de alteridade. Sim,

    mas alteridade cujo exerccio agora exige uma antropologia dos modernos, isto , uma

    desestabilizao da imagem filosfica tradicional de ns mesmos.

    Mas quem mesmo somos ns? Quem mesmo so os modernos que se colocam

    diante dos outros? Ora, em Latour, a prpria noo de comunidade se expande no

    mesmo movimento em que se expande a noo de natureza. Numa abordagem que

    recusa o antropocentrismo, o autor de Jamais fomos modernos insiste que h, sempre

    houve muitos mais seres comerciando com os humanos na feitura de mundos do que

    supunha a v filosofia. O desafio latouriano talvez se resuma em reencontrar o comum

    entre as diferenas a partir do trabalho poltico e diplomtico de composio. Para

    Latour, composicionismo o antnimo de fundamentalismo esteja este situado

    direita ou esquerda, alojado na mononatureza ou no multiculturalismo. precisamente

    com a ideia e o trabalho permanente de composio (como na sua imagem do

    Parlamento das Coisas), que Latour pretende superar as dicotomias modernas

    intransitivas e cada vez mais esgotadas, de modo a propor uma espcie de neo-realismo

    para as cincias, desde que estas j no mais se repartam em cantes disciplinares.

    Resta notar aqui que essas novas exigncias intelectuais que Latour prope e

    repercute no so, assim dizendo, iluminaes de uma mente, por brilhante que seja,

    encerrada em seu gabinete de estudos. Mas sim de uma inteleco sensivelmente

    conectada ao mundo (ou antes, aos mundos) e suas tenses correntes. E se assim,

    ento Latour faz corresponder tais exigncias intelectuais de renovao do pensamento

    e da poltica s exigncias prticas e urgentes que o mundo hoje (ou antes, j os mundos

    de Gaia) se insinua, no sem temveis ameaas e violncias, sobre nossas cabeas,

    nossos ps, nossa frente. Exigncias estas que os problemas ecolgicos e ambientais,

    tal como ainda colocados pela militncia ingnua ou por uma j velha diplomacia

    modernista arbitrada por um suposto fundo comum que a todos amalgamaria (como a

    noo econmica de natureza), mal d o tom.

    Nada de poltica sem ambiente. Nada de ambiente sem poltica. Nada de noo

    espacial que no seja, por assim dizer, animada. da, ao que bem parece, que Latour

    venha se valendo da noo de Gaia, como em substituio Terra, ao Planeta, ao Globo

    e mesmo natureza ou ambiente. Como espao animado que ento se pode vislumbrar

    articulaes e composies possveis de mundos (promessa do Parlamento das Coisas)

    entre modos muito diversos de existncia, ontologia, relaes.

  • 3

    Antroplogos como Eduardo Viveiros de Castro e Philippe Descola vm trabalhando

    h algum tempo com a noo de ontologia. Em seu novo livro, Investigao sobre os

    modos de existncia uma antropologia dos modernos, voc se concentra na noo de

    modos de existncia. Que possveis impactos essas ideias trazem para a antropologia

    contempornea?

    A expresso modos de existncia no corrente na antropologia, apesar de o livro Do

    modo de existncia dos objetos tcnicos de Gilbert Simondon, que um livro da dcada

    de 1950, trabalhar com ela. J o pequeno livro Os diferentes modos de existncia, de

    tienne Souriau, completamente desconhecido e ficou restrito filosofia. Ao mesmo

    tempo, h uma colaborao antiga entre Eduardo Viveiros de Castro, Philippe Descola e

    mim em torno dessa questo do pluralismo ontolgico, que uma consequncia

    necessria de sairmos da noo de representao. Quando a antropologia utilizava a

    noo de representao, ligada oposio natureza/cultura, a noo de ontologia era

    obviamente deixada de lado.

    Nos anos 1950, aprendamos a deixar de lado as questes ontolgicas que

    pareciam questes de realidade objetiva por nos interessarmos pelas representaes que

    supunham uma suspenso das questes ontolgicas. Foi assim durante o longo do

    perodo de atuao de Lvi-Strauss, por mais que a situao dele fosse ambgua. Foi

    assim at que os antroplogos comeavam a aprender a sair da oposio

    natureza/cultura. Desde ento vem ocorrendo um retorno das questes ontolgicas, pois

    no estvamos mais limitados pela noo de representao. Isso despertou os interesses

    filosficos de gente como Descola e eu, pois recuperamos o direito de falar dos seres do

    mundo um direito no mais paralisado pela questo da multiplicidade de

    representaes e da unidade da realidade.

    E quanto ao retorno da ideia de metafsica entre os filsofos contemporneos?

    At onde sei, os filsofos no acompanham muito a antropologia. A filosofia na Frana

    permanece absolutamente intacta, com a exceo do trabalho dos jovens que publicaram

    o livro Mtaphysiques Cannibales, de Eduardo Viveiros de Castro2. Um deles lie

    2 Viveiros de Castro, Eduardo. Mtaphysiques cannibales : Lignes d'anthropologie post-structurale. Paris:

    PUF, 2009.

  • 4

    During, que vem fazendo um estudo interessante da esttica e da teoria da arte. Fora

    isso, o divrcio entre antropologia e filosofia continua. Mesmo que muito do que tem

    sido feito na antropologia, na minha opinio, seja interessante, os filsofos no tm

    conscincia dessa transformao e definitivamente continuam modernistas.

    Entre esses jovens filsofos h tambm Patrice Maniglier...

    Sim, justamente. Maniglier, During... a eles que me refiro. Eles dirigiram essa

    pequena coleo da qual o livro de Viveiros de Castro faz parte. Mas um grupo bem

    pequeno. No se trata da filosofia como um todo. A filosofia mesmo vem de Kant,

    Hegel, talvez Nietzsche [risos], apesar do papel de Deleuze, que tem sido de estabelecer

    um elo, de certa forma, entre a filosofia e a antropologia. Mas no podemos dizer que a

    filosofia francesa, em todo o caso, chegou ao pluralismo ontolgico que tem se

    desenvolvido entre os antroplogos.

    No podemos dizer, ento, que o futuro da filosofia a antropologia...

    At podemos dizer, mas no se falarmos em termos de disciplinas. A histria das

    disciplinas diferente da histria do pensamento e da vida intelectual.

    Como podemos pensar em viver juntos em um mundo comum se no partimos de um

    ponto de vista baseado na natureza?

    A noo de natureza foi uma acelerao muito prematura da ideia de comunidade. No

    podemos falar em comum e natureza ao mesmo tempo, na medida em que a extenso da

    ideia de comunidade, no sentido prprio do termo, se deu muito rapidamente. Foi assim

    que os antroplogos encontraram a noo de cultura e se constituiu o lugar-comum do

    encontro com a alteridade. A antropologia no tratava, por exemplo, de questes como a

    diversidade climtica, pois no soube situar a noo de natureza. S registramos a

    alteridade sob a forma de cultura.

    Essas so questes de histria da antropologia que Descola trabalha com

    bastante clareza. J o comum acabou por ser ligado natureza. E a antropologia fsica

    veio naturalizar a cultura, o que no funcionou muito bem. Alm disso, houve todo um

    debate em torno de questes sociobiolgicas nos ltimos anos, mas ele tampouco

  • 5

    contribuiu para constituir um mundo comum. Pelo contrrio. A questo do mundo

    comum introduzida pela ideia de que a natureza no mais unificadora.

    A partir da, o trabalho de compor recolocado, assim como todos os sentidos

    do termo composio: o de compromisso, o de conflito, o de hibridao, o de

    gambiarra [risos]. So todos termos que pem em dvida a noo de objetividade, de

    unificao de todas as cincias e de todas as atividades cientficas em nome da natureza

    algo que no havia ajudado a facilitar as polticas de produo de um mundo comum.

    Foi sobretudo com essa temtica que trabalhei no livro Polticas da Natureza.3

    O que voc prope, ento, renovar a ideia de poltica diante dessa nova maneira de

    pensar o mundo comum...

    Sim, porque o que acontece bem complicado. No momento em que lanamos mo de

    uma poltica escamoteada na noo de natureza que no a natureza dos bilogos

    nem dos fsicos, mas a dos economistas, uma natureza unificadora e que permanece

    unificadora , a capacidade de definir as polticas diminui em funo de uma

    transformao paralela de polticas bastante preocupante e que faz parte do objeto de

    Investigao sobre os modos de existncia. Nesse momento, a poltica se transforma em

    um fundamentalismo de posies e valores.

    Se a poltica comea onde h mais rbitros, existe nela um fundamentalismo que

    atualmente se traduz em todos os pases pela afirmao de valores indiscutveis. Assim,

    a poltica perde, por exemplo, com os movimentos evanglicos e nacionalismos de

    inspirao chauvinista que so to comuns na Europa. Isso preocupante porque

    justamente nesse momento temos necessidade de uma poltica de composio que no

    seja nada fundamentalista. Esse desalinhamento torna a situao atual muito perigosa.

    tpica nos debates sobre o clima a presena de um painel arbitrando as disputas. Isso

    nunca funcionou, mas assim que as coisas so. Com isso, no h a possibilidade de

    compor com os modos de existncia da poltica, que so substitudos por coisas

    completamente diferentes, como afirmaes como eu tomo posies, eu defendo os

    valores, eu no firmo compromissos, isto , eu no componho. Tudo muito

    problemtico. Hoje se confunde muito a tomada de posies polticas com a afirmao

    de uma posio, sendo que uma praticamente o contrrio da outra.

    3 Politiques de la nature: comment faire entrer les sciences en dmocratie. Paris: La Dcouverte, 1999.

  • 6

    O que fazer com aqueles que no querem tomar parte no Parlamento das Coisas?

    Pensamos, por exemplo, nos Achuar da Amaznia peruana, que tero dito "nada de

    poltica, por favor", tal como relatou Descola4

    O Parlamento um mito constitucional. Ele existe na realidade pela multiplicidade das

    redes de controvrsias que agregam partes interessadas em torno de questes diversas.

    O problema que essa ideia mal aproveitada pela noo de ambiente. Minha sugesto

    de que ningum mais tem se interessado pela questo do ambiente. verdade que isso

    ocorre tambm porque estamos em um perodo reacionrio, mas acontece que a noo

    de ambiente no se sustenta. por isso que emprego a expresso ps-ambientalismo,

    que aparece no The Breakthrough5. Ela no simplesmente uma crtica ao

    ambientalismo, nem um retrocesso. O que ela quer dizer que no podemos falar mais

    em ambiente, pois isso no faz sentido, j que o ambiente coextensivo noo de

    poltica.

    De todo modo, essa uma questo importante que eu tenho discutido com

    Viveiros de Castro. claro que a noo de Parlamento completamente ocidental,

    etnocntrica ao extremo, de modo que interessa a apenas uma pequena parte do planeta.

    A noo de Parlamento das Coisas est ligada ao livro Polticas da Natureza, que

    utilizou de propsito um vocabulrio bastante denso e tradicional referente discusso

    sobre a constituio um estilo rousseauniano, digamos. Assim, a questo da

    antropologia simtrica dos modos de existncia tem principalmente a ver com

    estabelecer um elemento de negociao, um fundo de negociao, para que conflitos e

    compromissos entre valores polticos possam ser articulados. Conversei com Viveiros

    de Castro sobre como podemos compreender a indiferena dos europeus a outras

    polticas sejam elas Achuar, Tupi etc. a partir do fato de que eles definem os seus

    valores em termos de modos de existncia.

    O que mudou que mesmo que no nos interesse participar da verso ingnua

    do Parlamento das Coisas, ainda assim estamos sob constrangimento ecolgico isto ,

    sob o constrangimento desse personagem chamado Gaia. Todos sejam os Tupi, os

    alemes, os indianos, os brasileiros e assim por diante se encontram sob o

    constrangimento da questo da sobrevivncia com todos esses coletivos que tm verses

    4 Descola, Philippe. No politics, please. In : Latour, Bruno & Weibel, Peter (eds.). Making things

    public : atmospheres of democracy. Cambridge : MIT Press, 2005. 5 http://thebreakthrough.org/

  • 7

    completamente diferentes da natureza, dos seres do mundo, dos modos de relaes.

    Todos esses coletivos se encontram diante de uma situao que nova: a tenso da

    Terra, desse globo que irrompe em todos os coletivos, incluindo os tradicionais. E um

    grande problema compreender a diferena entre a irrupo do globo sob a forma de

    Terra, e no sob a forma da natureza.

    H elementos dessa nova Terra que se parecem com elementos da natureza, mas

    eles se apresentam de maneiras completamente diferentes. Esse um problema com o

    qual nenhuma civilizao se confrontou. A China, uma civilizao milenar, nunca se

    confrontou simultaneamente com o comrcio mundial, a degradao do solo, a poluio

    acelerada, a urbanizao extrema. Esse problema tambm se coloca para os ndios da

    Amaznia diante de uma barragem, assim como para os parisienses frente a diferentes

    paisagens modificadas.

    Ningum quer participar fora do Parlamento das Coisas. O problema que

    essa forma bastante peculiar de globalidade que chamamos de Gaia impe uma tenso a

    todos os coletivos que faz com que paremos de discutir a respeito de quem o

    responsvel pelas catstrofes. Essa deixa de ser a questo. No se trata de dizer que

    determinados recursos pertencem a um coletivo e outros recursos pertencem a outro

    coletivo. A questo que a nossa aliana no est ligada natureza, mas composio.

    No Antropoceno, a questo poltica da colaborao entre os coletivos completamente

    diferente. A antropologia tem uma dimenso diplomtica, e ela que buscamos cultivar

    na antropologia simtrica.

    A diplomacia parece de fato ser uma palavra-chave do seu trabalho. Entre os

    americanistas Pierre Clastres, Viveiros de Castro, dentro outros , talvez a noo de

    guerra seja mais forte do que a de diplomacia. Clastres diz que a poltica amerndia

    feita de guerra contra a unificao. Como poderamos pensar a distino entre a

    antropologia pensada a partir da diplomacia e essa antropologia americanista para a

    qual a guerra central?

    Os diplomatas se apresentam quando as partes afetadas so exauridas pelo conflito ou,

    melhor dizendo, quando a capacidade de conflito exaurida. claro que na verso

    modernista no h conflito nem guerra de fato, pois o que acontece a extenso de uma

    evidncia naturalizada principalmente pela economia mais do que pela biologia ou

  • 8

    pela fsica. No h guerra, portanto. O que existe para usarmos a expresso de Carl

    Schmitt so operaes de polcia.

    Estamos hoje em uma situao de guerra de mundos com relao composio,

    aos seres do mundo, s cosmologias. Fala-se sempre em globalizao, mas no existe

    globalizao. Estamos em uma situao de no globalizao. O que existe uma guerra

    de mundos. A questo que a diplomacia s existe porque h guerra. A personagem

    Gaia se apresenta ao fazer com que os combatentes dessa guerra de mundos se

    confrontem com uma nova exigncia. complicado definir a maneira como essa

    personagem se apresenta, mas no h dvidas de que a guerra e a diplomacia esto

    sempre juntas. Ambas se opem s operaes de polcia.

    Uma das contribuies dos Science Studies foi incluir novamente a noo de

    conflito na ecologia. A ecologia era pensada como uma unanimidade. Quando

    lanvamos mo da noo de natureza, as pessoas concordavam umas com as outras.

    Agora, se pensamos em ecologia, sabemos que h conflito guerra de mundos, guerra

    de seres do mundo. Quem so os seres que compem o mundo? No h consenso

    quanto a isso.

    nesse momento que a diplomacia se apresenta. A diplomacia s existe a partir

    do reconhecimento de que no existe rbitro. Se h rbitro, no h diplomata. H um

    policial. A prpria noo de valor defendida em um fundo de negociao incerta. O

    diplomata no um cara simptico que d um jeito nas coisas. Ele enviado para

    defender valores nos quais no sabe se acredita. nesse sentido que Investigao sobre

    os modos de existncia trata da diplomacia.

    O que defendemos nas cincias? A metafsica ou a prtica da objetividade? Elas

    no so de modo algum semelhantes. Os resultados dos conflitos em defesa de uma ou

    de outra so completamente diferentes. O que defendemos na religio? A encarnao ou

    o sobrenatural? So coisas diferentes. Investigao sobre os modos de existncia um

    trabalho voltado para os europeus, pois procura pensar naquilo que precede a mesa de

    negociao isto , a definio dos valores que so comuns entre as partes interessadas

    e a margem de manobra que elas se daro na negociao.

    O que queremos defender, ento? Uma poltica universal ou a poltica como uma

    construo bastante local, etnocntrica, interessante e importante do Estado de Direito?

    nesse sentido que a noo de diplomacia me parece uma oportunidade de renovar um

    pouco a antropologia. Ela coloca em xeque a ideia de que a antropologia se define por

    um modo epistemolgico. Mesmo partindo de um projeto epistemolgico, ela nunca

  • 9

    soube exatamente o que fazer. Isso no abala em nada a qualidade da descrio. No

    abala o apetite de descrio que faz parte da antropologia.

    Como Viveiros de Castro explica, Lvi-Strauss um excelente ndio, que sonha

    no lugar dos ndios. Mas no h nada de cientfico naquilo que ele faz. Se o que ele faz

    no tem tanto prestgio epistemolgico, isso no abala a qualidade da sua descrio. A

    antropologia pode seguir adiante sem estar ligada a uma voz epistemolgica. A

    antropologia pode ser a diplomacia com relao ao multi-realismo, ao pluralismo

    ontolgico de um mundo comum no horizonte. Nesse sentido, essa no parece ser uma

    antropologia da guerra, pois h um horizonte de compreenso. Mas h uma grande

    diferena e uma tenso muito interessante entre a compreenso no sentido

    epistemolgico e a compreenso como compromisso diplomtico.

    Quando Pierre Clastres fala da guerra, a imagem que apresenta a de uma guerra sem

    diplomacia, porque no h vontade de se construir algo comum...

    Mas ningum tem vontade de construir um mundo comum. Clastres escreveu h

    quarenta anos, em uma situao em que a irrupo do planeta no se colocava. Era

    muito importante reagir ideia de universalidade do Estado e se colocar contra Hegel.

    Esse foi o momento de Clastres. O momento histrico no qual nos encontramos no tem

    nada a ver com o dele, porque ningum tem vontade de construir um mundo comum.

    Vocs acham que os americanos tm vontade de construir um mundo comum? Os

    chineses, os europeus? Ningum quer fazer parte de um mundo comum. O que acontece

    que o comum se torna uma exigncia poltica que no se apresenta de modo algum

    como a natureza de outrora. Ele se apresenta como uma angstia, uma catstrofe, um

    cataclismo, uma situao de urgncia completamente imprevista. Dessa forma, algo

    que difere totalmente do que dizem os escritos do passado.

    O que quero dizer que a antropologia no necessariamente ligada a um

    projeto epistemolgico. Ela pode ser ligada a um projeto diplomtico isto , a um

    projeto de protocolo dentro de uma situao porque essa situao uma situao de

    guerra, uma situao de guerra de mundos, como escrevi em um artigo que tem esse

    ttulo, Guerra dos Mundos6. Ao menos reconhecemos que h uma guerra, e no

    simplesmente a extenso de um fundo de modernizao com alguns domnios restantes

    6 Latour, Bruno & Tresch, John. War of the worlds: What about peace? Chicago: Prickly Paradigm Press,

    2002.

  • 10

    de arcasmo e de um horizonte que se resume governana, gesto e economia

    universal. Essa a verdadeira guerra uma guerra de extrema violncia qual todos os

    pases esto submetidos.

    Em Jamais Fomos Modernos, voc considera que a obra de Lvi-Strauss reitera a

    separao entre natureza e cultura. Como voc pensa Lvi-Strauss a partir da releitura

    de Eduardo Viveiros de Castro especialmente sobre as Mitolgicas que v nelas

    no a separao entre natureza e cultura, mas uma reflexo sobre temas como o

    perspectivismo? Lvi-Strauss diz ainda que o humanismo deve ser pensado com a

    natureza, e se aproxima de Rousseau quanto questo da identificao, da piedade7.

    Existiria uma relao entre esse tipo de reflexo rousseausta de Lvi-Strauss com o

    que voc tem dito sobre ecologia poltica?

    No sei bem responder a essa pergunta porque no sou to erudito em lvi-straussismo

    quanto o eminente colega que voc menciona. A impresso que eu tinha na poca em

    que escrevi Jamais Fomos Modernos uma impresso justa, creio eu era de a ideia de

    uma natureza e duas culturas ser uma singularidade no argumento de Lvi-Strauss,

    com esses retornos peculiares de um naturalismo at mesmo cerebral que aparecia de

    vez em quando, chegando a parecer artificial.

    Acho que o trabalho que ns fizemos na antropologia da cincia foi til para

    gente como Descola e Viveiros de Castro porque prope que podemos prescindir do

    tema natureza/cultura e passar para o tema um tanto peculiar do multinaturalismo, que

    no um tema lvi-straussiano. No podemos interpretar todos os grandes autores a

    partir de seus intrpretes de outras tradies, porque os grandes autores, por definio,

    fizeram quatrocentas coisas diferentes, e a recepo depende da ateno que cada

    intrprete d a cada tema.

    O estruturalismo fundamental no trabalho de Lvi-Strauss, mas Investigao

    sobre os modos de existncia no um projeto estruturalista, mesmo sendo sistemtico.

    possvel ser sistemtico sem ser estruturalista. O trabalho de Descola sobre os quatro

    modos de relao8 estruturalista na medida em que retirar um desses modos coloca

    problemas para os outros, j que se trata de um sistema de combinatria. J os modos de

    7 Lvi-Strauss, Claude. Jean-Jacques Rousseau, fundador das cincias do homem. In: Antropologia

    estrutural dois. Trad. Beatriz Perrone-Moiss. So Paulo: Cosac Naify, 2013, pp. 45-55. 8 Descola, Philippe. Par-del nature et culture. Paris: Gallimard, 2005.

  • 11

    existncia que encontrei na minha antropologia bricolada so dispostos lado a lado e

    so de certa forma sistemticos, mas no estruturados. So completamente contingentes,

    visto que eu venho de uma tradio que entende que a diferena informa a estrutura.

    No tenho competncia para responder a essa pergunta de maneira mais avanada, mas

    isso diz um pouco sobre o debate em questo. Conhecemos pouco da antropologia dos

    modernos. Mesmo o importante trabalho de Descola sobre o naturalismo no se assenta

    no domnio etnogrfico; ele se assenta nas opinies dos filsofos. Apontar quem so os

    modernos, quem so os naturalistas, depende do que dizem os filsofos.

    A pergunta sobre Rousseau muito interessante e me faz pensar em algumas

    coisas, como a relao no entre o homem e o seu ambiente, mas entre o homem e

    aquilo com que ele se vincula. Como o homem se vincula com elementos diferentes em

    cada modo de existncia, podemos considerar o sujeito ocidental junto quilo com que

    ele se vincula, e isso forma uma imagem completamente diferente de sua histria.

    Existe o sujeito psicolgico, existe o sujeito da poltica, existe o sujeito de direito...

    Existe ainda o sujeito de um modo de existncia bastante importante que aquele que se

    vincula aos bens. Ele o sujeito dos interesses apaixonados, com o qual trabalhei ao

    estudar Gabriel Tarde9.

    por isso que a antropologia dos modernos to interessante. A noo de

    naturalismo no d conta da descrio dos modernos, que so seres bastante peculiares.

    nesse ponto que discordo de Descola. O naturalismo no faz jus extraordinria

    peculiaridade daqueles que informam a tradio ocidental. E essa peculiaridade o

    motivo pelo qual praticamente no os estudamos. Ns apenas aceitamos o que dizem

    filsofos como John Searle e Ludwig Wittgenstein sobre a razo de ser da civilizao

    europeia.

    As etnografias feitas nos laboratrios podem mostrar que a objetividade no tem

    rigorosamente nada a ver com a cena da separao entre interesse e desinteresse. isso

    que coloca o problema da antropologia dos modernos. No se trata de uma disputa com

    os antroplogos. Para mim, trata-se simplesmente de estudar o sujeito moderno com

    mtodos etnogrficos eles prprios emprestados atravs dos meus meios

    completamente bricolados.

    9 Latour, Bruno & Lpinay, Vincent. The Science of Passionate Interests: An Introduction to Gabriel

    Tarde's Economic Anthropology. Chicago: Prickly Paradigm Press, 2009.

  • 12

    No tenho inteno de me gabar10

    , mas preciso dizer que h pouqussimos

    estudos etnogrficos sobre o Direito, por exemplo. O mtodo etnogrfico poderia

    contribuir muito para a realizao de anlises da prtica jurdica, mas isso no feito. A

    mesma lacuna existe no estudo do desenvolvimento de projetos tecnolgicos.

    principalmente nesse sentido que discordo do estruturalismo. preciso, em primeiro

    lugar, fazer o trabalho de campo! Temos que fazer o trabalho de campo! por isso que

    proponho uma investigao coletiva sobre a antropologia dos modernos. Temos uma

    obsesso pela verso oficial do sujeito diante de um objeto, cujo grande problema a

    linguagem articulada. por isso que esse trabalho de investigao ainda est por ser

    feito, e por isso que temos to poucos dados sobre os seres que compem os

    modernos.

    Alm disso, a nossa comparao com os outros completamente deturpada, pois

    comparamos a alteridade dos outros com uma viso extremamente simplificada da

    nossa alteridade. Afirmamos que o outro outro, mas em relao a qu? Em relao a

    um mito moderno? Quando descrevemos o moderno com o mtodo dos modos de

    existncia, podemos comear a discutir essa questo. Podemos, por exemplo, falar de

    um modo de existncia muito interessante, que o da reproduo. A China trabalhou

    essa questo a fundo, como nos conta Franois Jullien11

    . Se na China foi assim, entre

    ns essa questo foi totalmente ofuscada pela objetividade cientfica.

    Para voltarmos diplomacia, a relao entre comparatismo e diplomacia no

    necessariamente epistemolgica. Como comparar os Achuar e os psiclogos que

    imaginam uma interioridade ao modo francs? Se o assunto forem os medicamentos,

    ento, enquanto alguns inalam, outros injetam. As coisas comeam a ser de certa forma

    comparveis. Se um coletivo afirma que h seres exteriores que lhes permitem ter uma

    psicologia, outro pode afirmar que tambm tem a instituio do psiquismo.

    engraado. Podemos comear a comparar sem reduzirmos esse mtodo a uma

    exotizao. Mesmo sem xams, podemos ter coisas comparveis. Nesse sentido,

    lembro-me do trabalho de Jeanne Favret-Saada sobre a feitiaria na regio do Bocage

    francs12

    . Podemos comparar a indstria farmacutica ocidental e os vnculos que outros

    coletivos tm com seres invisveis. Se eu tiver razo no sei se tenho, afinal temos

    10

    Latour, Bruno. La Fabrique du droit. Une ethnographie du Conseil d'tat. Paris: La Dcouverte, 2002 11

    Jullien, Franois. La Propension des choses. Pour une histoire de lefficacit en Chine. Paris: Seuil, 1992. 12

    Favret-Saada, Jeanne. Les Mots, la mort, les sorts : la sorcellerie dans le bocage. Paris: Gallimard,

    1977.

  • 13

    nessa proposta, enfim, uma base de comparao realista. No se trata, afinal, de haver o

    moderno e o no moderno ou o objetivo e o subjetivo.

    E o realismo implica a observao e a prtica...

    E o trabalho de campo. Nos Science Studies ainda temos pouqussimas descries. O

    que mais temos so comentrios. Vejam a extraordinria transformao da economia

    graas antropologia da economia de Donald MacKenzie13

    e Michel Callon14

    , entre

    outros. Finalmente tivemos descries do que uma mesa de operaes financeiras e do

    que um teorema de finanas. Isso muda tudo. Essa a verdadeira tradio

    antropolgica, mas aplicada aos modernos.

    Muitas vezes se acha que os estudantes conhecem os modernos, mas os

    modernos so completamente opacos. Os modernos so muito mais opacos que os

    outros. E o motivo disso no simplesmente uma decalagem entre teoria e prtica, mas

    uma oposio, uma negao. Existe um mecanismo de organizao da negao. O que

    faz com que os outros sejam complicados o fato de que eles so explcitos.

    Se seguirmos o que Jullien diz sobre os chineses, veremos que eles so

    explcitos quanto a um fenmeno que ns apagamos completamente, que aquilo que

    ele chama de propenso algo prximo da filosofia que gente como William James

    tentou desenvolver ao propor teorias alternativas da prtica emprica, tendo em mente

    que a experincia, ou o acompanhamento da experincia, particularmente deixada de

    lado no regime moderno. O que experimentamos no registrado na metafsica

    sujeito/objeto. Eu diria que isso feito de propsito, mas assim poderia soar

    conspiracionista.

    No trabalho voltado para o mapeamento de controvrsias15

    que voc tem realizado na

    Sciences Po com Tommaso Venturini, entre outros, vocs tm empregado ferramentas

    de minerao de dados. Como pensada a estatstica dentro da proposta do

    mapeamento de controvrsias? Como conciliar uma filosofia emprica e tcnicas de

    descrio e tratamento estatstico?

    13

    MacKenzie, Donald. Material Markets. How Economic Agents are Constructed. Oxford: Oxford

    University Press, 2008. 14

    Callon, Michel (ed.). The Laws of the Market. Oxford: Blackwell, 1998. 15 http: controverses.sciences-po.fr

  • 14

    Essa uma pergunta bem complicada, porque me converti recentemente e parcialmente

    aos mtodos digitais. O que acontece que as exigncias do campo das quais falei na

    resposta anterior seja nas cincias tcnicas, econmicas, jurdicas e assim por diante

    colocam complexidades especficas devido extenso de sua rede. Assim, se no

    conseguimos transformar os mtodos etnogrficos por meio da obteno dos dados

    quantitativos, ficamos muito limitados.

    Se, por exemplo, queremos estudar a extenso de uma equao de finanas e nos

    limitamos mesa de operaes financeiras, no compreendemos nada do que acontece.

    preciso ter condies de seguir lugares distantes e tempos relativamente diferentes.

    preciso ter condies de seguir a extenso e a expanso de prtica dos raios

    imitativos, como diria o Tarde em Les lois de l'imitation em outras palavras, a rede.

    Acontece que ao longo dos ltimos trinta anos, os dados digitais se multiplicaram e

    passaram a nos proporcionar uma viso que no se restringe oposio clssica entre

    etnografia e mtodos quantitativos. por isso que nos referimos ao mapeamento de

    controvrsias como qualiquantitativo. So traos de atividades ainda completamente

    rudimentares, mas que se mostram significativos quando comparados ao que

    chamvamos antes de dados estatsticos. No se trata de dizer que eu acredito nos

    mtodos digitais. O que acontece que a possibilidade de traar relaes por meio dos

    dados digitais nos d ideias do campo.

    Nem sempre o mapa algo muito elucidativo no mapeamento de

    controvrsias. Essa uma discusso que eu tenho com o Tommaso. s vezes h

    problemas de visualizao. Mas ainda assim, do ponto de vista psicossocial [risos], ele

    restitui a confiana dos socilogos e antroplogos quanto aos mtodos quantitativos.

    Esses mtodos quantitativos no so distintos dos mtodos qualitativos, j que seguir a

    rede implica encontrar lugares onde se possa fazer uma entrevista ou um vdeo, assim

    como obter grandes quantidades de dados incrivelmente teis para situar toda uma rede

    muito rapidamente, entre os quais h tambm os dados estatsticos clssicos. Isso

    proporciona ao nosso prprio trabalho uma flexibilidade que sai da disputa entre

    quantitativo e qualitativo.

    Outra vantagem trazida pelo mapeamento de controvrsias a

    possibilidade de interlocuo com pesquisadores das cincias exatas da geografia, da

    antropologia fsica, da ecologia, da geologia e at mesmo da fsica. Uma conversa de

    cinco minutos entre dois economistas pode ser apaixonante para ns, mas

    absolutamente incompreensvel para um gegrafo, o que coloca um problema

  • 15

    etnometodolgico. No entanto, graas ao uso desses modos de visualizao, possvel

    discutir com diferentes cientistas. Isso algo que costuma acontecer no Mdialab da

    Sciences Po.

    Alm disso, a prpria extenso dos dados digitais modifica o

    comportamento, de modo que fundamental se interessar por esse assunto. Os mtodos

    digitais so ainda uma espcie de revanche de Gabriel Tarde, e nesse sentido me

    interessam muito. Eles so exatamente o que Tarde havia previsto como tipo de

    desenvolvimento das cincias sociais. Podemos seguir conversas para compreender a

    economia? Se a resposta a essa pergunta no passado foi no, hoje sim. Podemos seguir

    os lugares-comuns das transformaes? Sim, a resposta sim. nesse sentido que os

    mtodos digitais so poderosos, aproximando-se de Tarde, da teoria ator-rede e, em

    certo sentido, da etnometodologia. Eles so quase que uma nova esttica dos centros de

    interesse do mundo social.

    Hoje estamos muito longe de obter dados suficientemente finos. E

    existe uma espcie de hype em torno do digital que no me interessa nem um pouco.

    Mas se pretendemos produzir dispositivos de investigao coletiva, evidente que

    devemos passar por um mtodo digital. Foi o que procurei fazer no projeto sobre os

    modos de existncia16

    . No sei se funcionou, mas sem esse tipo de dispositivo

    impossvel realizar coletivamente um trabalho de campo de maneira mais sria. A

    criao de uma plataforma digital potente se faz necessria para realizar certas pesquisas

    que envolvem questes do Direito, por exemplo, o que no coloca em questo o fato de

    que um antroplogo, com o seu caderno de campo no meio da floresta, continua a ser

    muito importante. Mas se ele se interessar simultaneamente por mtodos digitais para

    localizar dados acessveis, no h problema algum.

    Assim, se quisermos estudar o impacto das teorias de Pachamama

    no mundo, interessante fazer uma pesquisa no Supremo Tribunal da Bolvia, mas se

    tivermos tambm como verificar a extenso jurdica desse conceito na literatura por

    meios digitais, podemos utiliz-los. E isso que interessante nesses mtodos. Eles no

    so mtodos estatsticos no sentido de um levantamento. Eles nos do finalmente a

    possibilidade de tirar proveito de uma alternativa desgastada oposio entre

    quantitativo e qualitativo, assim como entre campo local e campo global. Isso muito

    interessante e pode renovar as Cincias Sociais como um todo. A descrio de

    16

    http://www.modesofexistence.org/

  • 16

    controvrsias sensacional como ferramenta. Quando estou na Sciences Po, dedico-me

    a encontrar verba para o Mdialab. Estamos indo bem. Temos uma bolsa de seis

    milhes de euros destinada ao projeto Forccast17

    , do qual tenho muito orgulho.

    Ingold critica a ideia de rede apresentada pela teoria ator-rede argumentando em favor

    das imagens de malhas, teias ou linhas18

    . Como voc responderia a essas outras

    propostas de metfora visual?

    Podemos fazer tudo o que queremos com a metfora visual da rede na teoria ator-rede.

    O importante haver os mediadores e intermedirios. A metfora da tecelagem proposta

    pelo Ingold excelente. Ele um grande mestre da prtica antropolgica e no tenho

    nenhuma discordncia em particular com ele. Na teoria ator-rede, a rede uma ideia

    totalmente abstrata e especulativa. importante variar com alguma frequncia a forma

    que damos a ela. Mesmo a esfera, no sentido de Peter Sloterdijk19

    , outra metfora, mas

    mantm a mesma ideia de mediao. A visualizao do conceito de rede pode variar

    consideravelmente, mas as questes evidentes so a multiplicao de mediadores, as

    transformaes e os deslocamentos. Antropologicamente e filosoficamente, o que

    importa a quantidade de mediaes que conseguimos captar no campo, em uma

    entrevista, em um filme etc.

    Traduo: Jamille Pinheiro Dias

    17

    Formao no mapeamento de controvrsias para a anlise das cincias e tcnicas. 18

    Ingold, Tim (2008). When ANT meets SPIDER: social theory for arthropods. In C Knappett & L Malafouris (eds), Material Agency: Towards a Non-Anthropocentric Approach. Springer

    Science+Business Media, New York, NY, USA, pp. 209-215. Ingold, Tim (2010). Trazendo as coisas de volta vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Trad. Leticia Cesarino. Horiz. antropol. vol.18 no.37 Porto Alegre Jan./Junho 2012. 19

    Sloterdijk, Peter. Bubbles: Spheres Volume I: Microspherology. Cambridge: MIT Press, 2011.