entrevista - universidade federal fluminense

28
ENTREVISTA Ismail Xavier: O cinema e os filmes ou doze temas em torno da imagem Entrevista a Pedro Plaza Pinto, Mariana Bailar Freire, Fernando Morais e Lécio Augusto Ramos* Niterói/Rio de Janeiro/São Paulo - março/abril/outubro de 2002 "Tudo se empobrece quando se fala do cinema sem falar dos filmes. Não se pode resenhar conceitos dos grande autores e observar os filme tateando com uma bengala e fazendo ouvidos de mercador." 1. Biografia e Trajetória Queríamos inicialmente desenhar um perfil de sua trajetória profissional. Primeiro, alguns dados biográficos que você achar pertinentes. Depois: como se deu a sua aproximação com o cinema? Como foi a sua formação na USP? Que influências (brasileiras e estrangeiras) foram decisivas para você? (Paulo Emílio, Antônio Cândido e a geração de ouro da FFCL da USP. etc.) Você certa vez confidenciou que atua numa área crítica, de reflexão, e não na área da pesquisa em fontes primárias (polivalência, por exemplo, que 125 podemos atribuir a Jean-Claude Bernardet, a Maria Rita Galvão. a Carlos Roberto de Souza, a João Luiz Vieira, entre Outros. Isto significaria que você prefere por opção trabalhar num campo mais teórico, mais reflexivo - por vocação ou opção pessoal? RESPOSTA A minha aproximação com o cinema se deu quando entrei na USP, em 1965, para estudar engenharia. Por influência de amigos com quem trocava idéias sobre tudo, já desde a época do colegial, passei a freqüentar salas de cinema de arte (como o Cine Bijou) e entrei para a Sociedade Amigos da Cinemateca, em 1966. Como sócio da SAC pude ouvir as pessoas ligadas à Cinemateca e que compunham um pensamento cinernatográfico de esquerda: Paulo Emilio, Jean-Claude Bernardet, Rudá de Andrade, João Batista de Andrade, Francisco Ramalho Jr., João Silvério Trevisan. No entanto, o primeiro curso sobre cinema que fiz se deu no Foto Cine-Clube Bandeirantes, organizado por Adhemar Carvalhaes, que fazia parte da crítica *Alunos do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF. CONTRACAMPO

Upload: others

Post on 02-Nov-2021

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

ENTREVISTA

Ismail Xavier:O cinema e os filmes ou doze temas em torno da imagem

Entrevista a Pedro Plaza Pinto, Mariana Bailar Freire, Fernando Morais eLécio Augusto Ramos*

Niterói/Rio de Janeiro/São Paulo - março/abril/outubro de 2002

"Tudo se empobrece quando se fala do cinema sem falar dos filmes.Não se pode resenhar conceitos dos grande autores e observar os filme

tateando com uma bengala e fazendo ouvidos de mercador."

1. Biografia e TrajetóriaQueríamos inicialmente desenhar um perfil de sua trajetória profissional.Primeiro, alguns dados biográficos que você achar pertinentes. Depois:como se deu a sua aproximação com o cinema? Como foi a sua formação naUSP? Que influências (brasileiras e estrangeiras) foram decisivas para você?(Paulo Emílio, Antônio Cândido e a geração de ouro da FFCL da USP. etc.)Você certa vez confidenciou que atua numa área crítica, de reflexão, e não naárea da pesquisa em fontes primárias (polivalência, por exemplo, que 125podemos atribuir a Jean-Claude Bernardet, a Maria Rita Galvão. a CarlosRoberto de Souza, a João Luiz Vieira, entre Outros. Isto significaria que vocêprefere por opção trabalhar num campo mais teórico, mais reflexivo - porvocação ou opção pessoal?

RESPOSTAA minha aproximação com o cinema se deu quando entrei na USP, em 1965,para estudar engenharia. Por influência de amigos com quem trocava idéiassobre tudo, já desde a época do colegial, passei a freqüentar salas decinema de arte (como o Cine Bijou) e entrei para a Sociedade Amigos daCinemateca, em 1966. Como sócio da SAC pude ouvir as pessoas ligadas àCinemateca e que compunham um pensamento cinernatográfico deesquerda: Paulo Emilio, Jean-Claude Bernardet, Rudá de Andrade, JoãoBatista de Andrade, Francisco Ramalho Jr., João Silvério Trevisan. Noentanto, o primeiro curso sobre cinema que fiz se deu no Foto Cine-ClubeBandeirantes, organizado por Adhemar Carvalhaes, que fazia parte da crítica

*Alunos do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF.

CONTRACAMPO

Page 2: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

em oposição ao grupo da Cinemateca. A parte interessante do curso contoucom a participação de cineastas como Roberto Santos , então trazendo oprestígio de quem havia feito a obra-prima A hora e a vez de AugustoMatraga, Anselmo Duarte e Walter Hugo Khouri, o que, com exceção doRoberto Santos, nosso herói naquele momento, nos colocava (aos alunos)no terreno distante do Cinema Novo. Houve uma experiência curiosa decinefilia: visitar os estúdios da Vera Cruz onde Khouri filmava o seuepisódio de As cariocas. Este lado cinéfilo foi sempre, no meu caso,suplantado pelo fato de que tal aproximação estava articulada ao interessepela política. Dentro do movimento estudantil, ainda em 1966, atuei bastantena área cultural do centro acadêmico da Politécnica-USP e cheguei aorganizar, com um amigo da faculdade de direito, o Fernando Albino, umciclo sobre cinema brasileiro então contemporâneo (que envolvia, Khouri,Anselmo Duarte, o Cinema Novo), ocasião especial para conhecer algunscríticos de cinema de São Paulo: Rogério Sganzerla, Paulo Ramos, MauriceCapovilia. O Trevisan ajudou na composição do ciclo; ele trabalhava naCinemateca, sendo muito ligado ao Jean-Claude Bernardet, o que fez o cicloter um viés de valorização do filme do Person, São Paulo SIA. Nestemomento, houve também o encontro com Gustavo Dahl que passava porSão Paulo no dia da exibição de Barravento, e topou fazer a apresentação.O diálogo com cineastas e líderes da MPB era fácil e as coisas eramresolvidas sem maiores formalidades, inclusive para shows de música na

126 Universidade, onde também tive uma experiência que foi decisiva, mecolocando em contato com Chico Buarque, Geraldo Vandré e Gilberto Gil.Em 1967, a ECA se inaugura; faço parte da primeira turma. Começamos comRudá de Andrade e Jean-Claude, depois Paulo Emilio, Roberto Santos eMaurice Capovilla. Jean-Claude e Paulo Emílio foram os interlocutores-chave no binômio 67-68, antes da cassação de Jean-Claude depois do Aton°5. De qualquer forma, continuamos em contato pois, entre outrasatividades, havia um grupo de estudantes que passou a fazer crítica decinema no Diário de São Paulo, entre julho de 68 e junho de 70, grupo deque eu era o coordenador, conforme decisão de Paulo Emilio, Jean-Claude eRudá. Maria Rita Galvão passou a dar aulas na ECA mais tarde, não tendoum contato sistemático com a minha turma, mas já compondo, para mim, ogrupo central de diálogo. Formado na ECA, entro para o Mestrado naLetras tia área de Teoria Literária, em 1971, com a orientação de PauloEmilio, num diálogo que começa a saa fase mais rica para mim. Conheço, poroutro lado, Antonio Cândido seus cursos compõem até hoje a maiorreferência para o meu trabalho de análise. Este é um período decisivo deformação. Como orientando do Paulo Emilio, eu participava de uma reuniãoperiódica na casa dele, em que discutíamos os projetos de pesquisa emhistória do cinema brasileiro, junto, entre outros, com Maria Rita, Jean-

CONTRACAMPO

Page 3: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

Claude e Carlos Roberto de Souza. Foi um momento em que a

disponibilidade de tempo permitiu que eu seguisse o mestrado, preparasse atese e seguisse cursos na filosofia, onde foi fundamental a amizade com

Marilena Chauí. Ela foi decisiva, também, no descongelamento de meusreferenciais teoricistas e quase positivistas, resultado da primeira profissão

(professor de Física em cursinho), da formação estruturalista que tive naparte extra-cinema da ECA (muita linguística, antropologia estrutural e teoriada comunicação) e do "positivismo" althusseriano (fui dos que leu muito

Althusser na época de movimento estudantil - e a noção de prática teórica.teve seu papel no meu trajeto entre 1968 e 1971, ano que Mari lena entra emcena). Neste ítem "formação", digamos que, aléni do terremoto causado pelobinômio teoria literária-filosofia, próprio a este período 1971-75, outromomento importante foi o de New York, com destaque para o diálogo comAnnette Michelson, na New York University, quando aprendi muito destaanálise formal que faz parte do meu trabalho, e para o diálogo com JayLeyda. no plano da pesquisa em história, quando participei do Projeto

Griffith. em 1976-77 (o mesmo do qual participou João Luiz Vieira a partir de1978). Esta foi uma experiência dever nascendo a nova história de Tom

Gunning, Charles Musser, André Gaudreault, Noel Burch (que passou pelaNYU em 1976), entre outros.

Vocês têm razão quando lembram que, até aqui, o trabalho de historiador, nosentido de pesquisa em arquivo com levantamento original e sistematizaçãode fontes primárias, não tem sido a tônica do meu trabalho. Mas houve 127circunstâncias em que tive este tipo de experiência, pela natureza do objetoestudado e pela ajuda de outras pessoas (primeiro Paulo Emílio, que foi omestre fundamental ao longo de 7 anos, na aula, na orientação do mestrado,no seminário na casa dele, na Cinemateca). Alías, Paulo Emílio, com asagacidade de sempre, percebeu, no início do mestrado, que não podia metransformar, de imediato, em um pesquisador do cinema brasileiro nosentido que tal palavra tinha em 1971 (recorte de tipo historiográfico, comênfase à história da produção, corri pouca análise dos filmes), e propôs queeu canalizasse meu claro interesse pelo debate ideológico-político e pelateoria na direção de um balanço histórico dos primórdios do pensamentocinematográfico. Daí surgiu o projeto França-Brasil. emergência da teoria láe cá, influência dos franceses da vanguarda aqui, nos modernistas, e análisedo pensamento mais avançado no Brasil: o do FAN, com destaque paraOctavio de Faria e Plínio Sussekind Rocha. Paulo Emílio me passou tudo oque tinha sobre o Chaplin Club, e a Cinemateca abriu a coleção de Cinearte;na USP, pesquisei as revistas modernistas. Há algo aí de trabalho comfontes primárias numa iniciação à história da crítica cinematográfica. Agenerosidade deAlex Viany completou um primeiro quadro: ele me colocounas mãos uma coleção de recortes e transcrições datilografadas de revistas

CON1RACAMI'O

Page 4: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

como A tela e Palcos e Telas, um material que me ajudou a montar umcapítulo do trabalho. O que não fiz de moto próprio foi uma pesquisasistemática que poderia levar a um avanço na história da crítica feito a partirda pesquisa em periódicos (do tipo que Arthur Autran fez com Pedro Lima eque vocês' têm feito com Cinearte). Em 1975, quando eu estava em NovaYork, o interesse pela formação da narrativa me levou à velha pergunta pelaorigem do cinema clássico. E Jay Leyda estava dando os seminários sobreGriffith. Sopa no mel. Aí pude ter o sentimento de revelação que se temquando se abre um novo arquivo, pois vi junto com o pessoal de lá (oCharles Musser, em especial, pois íamos juntos à Biblioteca do Congressopara trabalhar, ele pesquisando Porter, eu Griffith) todos os filmes dosprimeiros anos da carreira de Griffith. Ou seja, neste caso fiz trabalho dehistoriador, concentrado no exame filme a filme, do que resultou um artigosobre a evolução da montagem no cinema de Griffith entre 1908 e 1909, seusprimeiros cem filmes, artigo só publicado mais tarde na Itália, na RevistaGriffithianna, de Gênova, num número especial organizado por Jay. Aindaem Nova York, montei o projeto de Tese sobre as alegorias no cinemabrasileiro dos anos 60 (que terminou, em sua primeira versão, em 1982,quando completei o doutorado lá). A partir daí, concentrei-me no que maisinteressa: trabalhar com cinema moderno, e me coloquei como tarefadesenvolver a análise de filmes, tipo de trabalho que não estavadesenvolvido no Brasil (basta ver a bibliografia sobre cinema e o tipo de

128 análise então existente, quando esta última ganhava relevo). O resultadodisto é conhecido: as análises formais e o esforço de extrair o melhor de talmétodo de estudo imanente da imagem-som, o que foi um gesto .deliberadode convite, de minha parte, para que se desse maior ênfase aoconhecimento detalhado dos filmes, para contrastar com o que eu achavaum historicismo excessivo: acumulação de dados em torno dos filmes epouco exame das obras.Razão maior disto tudo: era preciso demonstrar o valor estético do cinemamoderno brasileiro, e de Glauber em particular, o que só seria possívelfazendo o que estudos mais sistemáticos não haviam feito: articular análiseestilística e interpretação, mostrando qual cinema cada cineasta inventou eporque; ou melhor, com que implicações no plano do sentido e das relaçõesentre cinema, política e história. Para tanto, procurei combinar a minhaformação cultural e teórica obtida com os mestres da revista Clima - PauloEmilio e Antonio Candido - com o choque de empirismo norte-americanoque ainda deixa traços na minha preocupação em descrever (o que não é umato inocente) e em chamar os exemplos que evidenciam uma "verdadeteórica" apenas enunciada, o que, em termos de crítica, significa dizer onde,no detalhe do filme, se mostra como imagem e som "produzem" o sentidoafirmado. O esforço foi então o de apurar a análise formal, pois é na forma

CONTRACAMPO

Page 5: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

que procuro encontrar os nexos entre cinema e sociedade, estética epolítica, incorporando, enfim, uma tradição que. no Brasil, passa por um

crítico como Roberto Schwarz e, no contexto novayorquino. pelos quetinham sido alunos de Clement Greenberg, embora não sejani hoje seusrepetidores (como é o caso de Annette Michelson que. com RosalindKrauss, fundou, em 1976, a revista Ociober). Acumular e examinar de formasistemática a documentação em torno dos filmes ficoLi para segundo plano(mesmo porque isto era algo que outras pessoas estavam fazendo). Erapreciso testar o alcance e os limites da análise irnanente (o que podem dizeras imagens?) e evitar o que acho o pior: ver nos filmes apenas aquilo que ospróprios cineastas dizem que está lá, ou apenas aquilo que o elenco deidéias que marcam um movimento estético definem a priori, confundindointenções ou proclamações ideológicas com a dinâmica efetiva dalinguagem, coisa que muita gente "escolada" ainda insiste em fazer.Enfim, depois desta longa narrativa, devo responder que sim, não me pauteipor seguir o caminho usual da pesquisa histórica, por iodos os títulosfundamental e indispensável: mas digo também que não me afastei de tododa questão, pois os filmes são também fontes priniarias por excelência se ameta é avaliar a força de urna proposta estética, a especificidade de umaexperiência cultural e seu valor quando posta em cotejo com outras. Mesmoque o objetivo seja examinar o papel das idéais e a validade de urna posturacrítica, há que se confrontá-las corri o objeto que produzem ou queinterpretan. Ou seja, tudo se empobrece quando se fala do cinema sem 129falar dos filmes. Não se pode resenhar conceitos dos grande autores eobservar os filme tateando corri uma bengala e fazendo ouvidos demercador.

2. ObraDe SÉTIMA ARTE: UM CULTO MODERNO (Ed. Perspectiva), até o recenteO CINEMA BRASILEIRO MODERNO, sua obra, majoritariamente dedicadaao cinema brasileiro, tornou-se urna referência para os estudoscinematográficos do país. Você faria hoje alguma reavaliação, algumarevisão crítica de alguma de suas obras, no sentido de reconhecer em algummomento que tenha assumido uma perspectiva teórica ou crítica que hojenão lhe pareça mais "sustentável"?

RESPOSTAEm termos de estrutura, o livro que me incomoda é o Sétima Ai-te. E explicarporque éjá uma forma de engatar na resposta anterior. Paulo Emilio me deuuma sugestão que, em verdade, para melhor entendedor, deveria me levar auma concentração cio trabalho no pensamento brasileiro. Mas eu aindaestava ligado dem.is na questão dc "origem da teoria do cinema" e não abri

CoNiRACAMi'O

Page 6: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

mão de Canudo, Epstein e outros como objetos de um estudo com validadeprópria. A divisão do livro em duas partes - primeiro a teoria na França,depois a análise de três contextos de crítica e teoria no Brasil - espelha ahistória do trabalho que começou como uma exposição didática de noções,algo que era mais adequado ao exame da teoria francesa. Esta era menosacessível na época e não havia estudos sistemáticos mesmo na França, oque favorecia, num mestrado, a apresentação de conjunto, semdetalhamentos da história de algumas noções e sua relação com a produçãocinematográfica. Tal insistência definiu um padrão para o trabalho que hojenão me parece a melhor opção para a apresentação do pensamentocinematográfico brasileiro. Talvez o melhor teria sido eu me concentrar napesquisa histórica e fazer com que a lógica do trabalho saísse do corpo acorpo com a crítica brasileira, de modo a só me referir, na exposição, aocontexto francês quando fosse necessário explicar alguma noção vinda delá. Para a minha formação, isto teria alcançado maior rendimento, pois teriaaprofundado melhor minha relação com o contexto brasileiro no período.Quanto a O Discurso Cinematográfico, claro que o ponto de vistaorganizador seria outro agora. A questão da desconstrução não teria tantoespaço, e também haveria mais pormenores no aspecto pedagógico (o livroé às vezes difícil para o iniciante). Algumas frases são por demaissimplificadoras (como a sobre o documentário - ver questão 11 - e sobre aquestão do real e da ideologia.). O que me "salvou" no envolvimento com

130 os exageros da época foi meu "estilo indireto livre". Este permite assumir asvozes do tempo no meu próprio texto, sem, no entanto, assumir asafirmações como verdade inconteste - vide as reticências quanto aodesconstrucionismo, e o que ainda considero minha forma equilibrada, comas nuances do estilo indireto, de expor formulações bem datadas.Quanto aos livros de análise do cinema moderno, a forma como foram lidosme ensina o quanto eu deveria ter sido mais didático nas introduções. Comoeu estava desconfiado de resenhas teóricas e julgava que o própriomovimento das análises seria autoexplicativo, eu disse pouco sobre o meu"método" ou mesmo sobre as premissas. É enorme o número de teses quese estendem em introduções que são meras resenhas de teorias e depoispraticam uma análise do objeto que pouco tem ver com a introdução. Certocolonialismo teórico e certo academismo estéril têm produzido, às vezes,teses de pouca valia justamente por isto. Às vezes, é mais fácil para o jovempesquisador se "segurar" na resenha teórica do que efetivamente dizer algode original e pertinente sobre os filmes. No pior dos casos, a introdução e ouso de conceitos de prestígio funcionam como pura maquiagem queencobre a anemia do crítico. Em contraposição a isto, fui lacônico e perdi aoportunidade de me antecipar a objeções tolas que às vezes aparecem, oumesmo mal entendidos bem intencionados. Na introdução do Sertão mar,

CONTRACAMPO

Page 7: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

eu deveria ter sido mais incisivo na discussão do que é análise imanente, do

que é narrador no cinema e na literatura, do que é estilo indireto livre, e dequais são, afinal, as implicações do uso que faço da alegoria como categoriade interpretação. No Alegorias do subdesenvolvimento, eu poderia terincluído o meu texto "Alegoria, modernidade, nacionalismo" que foi escritoem 1984 e publicado numa separata da FUNARTE pelo Adauto Novaes;esse texto explica de forma didática o que a introdução do livro apenasresume. Mas eu estava envolvido em outras discussões sobre as relaçõesdo cinema com a cultura no Brasil. Hoje, estou convencido de que, às vezes,vale a pena explicitar as "questões de método", mesmo que isto adie umpouco o contato com o objeto. O mesmo vale para certas categorias que sãocomuns na referência a Glauber, como o barroco. Vejam como fui discreto nareferência a Benjamin na análise de l'crra eia Transe, coisa que eu deveriater acentuado porque era uma forma de deixar mais claro porque só falei embarroco quando estava em pauta a idéia do -drama barroco", com todas asimplicações políticas de tal noção.

3. O Discurso cinematográfico e A experiência do cinema,hoje.Vinte e cinco anos depois da primeira edição, como você revê "O DiscursoCínematográfico", que é, achamos que sem contestação, a primeira obra deautor brasileiro sobre teoria cinematográfica. num sentido rigoroso, o quenos leva não a excluir, mas relativizar o alcance de alguns predecessores no 131âmbito da produção de conceitos em cinema? Em que direção caminharamas "estéticas cinematográficas"? Como você vê a aceitação, a inserçãodeste livro nos estudos cinematográficos desde então? Em relação àantologia A EXPERIÊNCIA DO CINEMA, se você fosse convidado paraorganizar uma nova edição, que outros textos a comporiam e por quê? Vocêmanteria a mesma estrutura ou faria algumas (ou muitas) modificações? Qualseria a linha condutora de um novo "posfácio" a O DISCURSOCINEMATOGRÁFICO?

RESPOSTA:

Como observei, O discurso cineinatográfico está muito pautado pelodebate da época em torno do estatuto ideológico do cinema "em geral" - do"dispositivo", como dizia Baudry, ou "apparatus" como traduziu a teoriaanglo-americana. Como era importante a relação entre cinema e política. ecomo era importante a especificidade da análise estética, eu me alinhei"grosso modo", e evitando o que achava excessos, com a forma muitopeculiar com que o descontrucionismo foi incorporado à críticacinematográfica (visto pela esquerda que pensava, não em Derrida, mas emBrecht e na afirmação de sentidos, não apenas nas operações de suspensão

CONTRACAMI'O

Page 8: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

do sentido). Resultou o privilégio à oposição entre opacidade etransparência, onde o primeiro termo tinha mais valor do que o segundo. Omérito do livro foi adotar um critério claro para colocar uma ordem e umahierarquia nas teorias apresentadas, tanto mais valorizadas quanto maiscontribuíssem para a concepção de cinemas alternativos ao cinema clássicoindustrial (alvo maior da crítica). O livro foi escrito em Nova York, sob oimpacto da descoberta do que era afinal o cinema underground e suariqueza, ,-,do que eram as idéias que o alimentavam dentro da tradiçãomodernista, o que permitia ampliar o horizonte de quem tinha uma formação"européia" (acabei sendo um dos primeiros a ir para os Estados Unidos eampliar nossas referências). O livro foi escrito com uma tônica de resenhaprópria ao gênero (o que às vezes resulta esquemático), mas o decisivo erater um ponto de vista contemporâneo para colocar as teorias emperspectiva, lado mais vivo do livro, pois se definiu uma lógica nopanorama traçado e se deixou nítida a minha posição em favor deexperiências do cinema moderno, com eleição de Godard como paradigmamaior. Mas falta, de qualquer modo, nuance em certas passagens. O cinemaclássico é mais complicado. Não discuti a questão dos gêneros. E o quefalei sobre o documentário é genérico demais, com algumas reduções (verquestão 12).Rever? Voltando lá atrás, eu teria melhor explicado as categorias descritivasusadas por todos nós quando falamos dos filmes (os termos da dita

132 "linguagem cinematográfica"), para tornar mais acessível a discussãoestética que domina o livro. Falando a partir de 2002, é impossível imaginaruma empreitada semelhante. Os focos de teoria se multiplicaram, e tambémas problemáticas, ou seja, o conjunto de problemas que cada teoria formulae procura resolver. Diante do múltiplo atual, eu seria obrigado a uma escolhado problema a ser trazido ao centro. Precisaria pensar mais. No entanto,tenho certeza de que acentuaria a importância da história no debate, falariamais desta incidência das novas pesquisas sobre a formulação deconceitos, e também da incidência dos problemas que os novos filmessuscitam. Não teria hoje UM ponto de vista teórico, pois as reflexõesexistentes estão tentando discutir problemas diferentes.Quanto ao pósfácio possível, em termos práticos, já enfrento a questão. OFernando Gasparian (Paz e Terra) quer republicar o livro desde queatualizado, ou seja, algo como um capítulo a mais para dizer o que houvedepois. Não dá. Seria o desequilíbrio total, pois os últimos 25 anos nãoseriam apenas mais um capítulo. Há novos conceitos e nova configuração,o que exige uma nova forma de organizar a exposição. Vocês mesmos trazemà conversa os novos influxos na filosofia do cinema (Deleuze na França, afilosofia analítica e os discípulos de Wittgenstein nos Estados Unidos,Fredric Jameson e sua análise marxista do contemporâneo) e a nova teoria

CONTRACAMPO

Page 9: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

do documentário. E há o debate entre a estética e a sociologia da cultura,debate renovado agora com a consolidação do "cultural studies" no mundoanglo-americano e sua rejeição no mundo francês. Ênfase deveria ser dadaaos estudos de recepção, onde se pode inserir a intervenção doscognitivistas em seu debate com a psicanálise. Hoje estou mais atento àsquestões da retórica da imagem (em função, claro, de minha lida com aalegoria) e a outras formulações do problema, corno a teoria do "figural" dePhilippe Dubois. E também estou mais atento à teoria dos gêneros (seja nosentido clássico - lírica, épica, dramática -, seja no sentido dasclassificações da indústria). Muito do que tenho feito procura explorar asrelações de afinidade entre melodrama e cultura visual moderna; tenhoreiterado a idéia de que as relações entre o espetáculo e as matrizesmelodramáticas é mais profunda do que se reconhece. O que repercLlte naavaliação crítica do cinema clássico.Nos anos 70, a minha caracterização deste cinema não é incorreta, mas ésumária. Não dá conta de muitos problemas que agora ganham maiornitidez: o papel das "atrações" (Tom Gunning) dentro dele, as tensões entreo narrativo e o visual, a estrutura e função da trilha sonora. As estratégiasdo moderno foram incorporadas ao cinema corrente, e a retórica da imagemse alterou num contexto que inclui novos gêneros e tende a potencializarefeitos de um mundo de artifícios assumido como tal. O cinema industrialmobilizou a alta tecnologia para o adensamento dos efeitos especiais quecolocam a força da imagem numa esfera autônoma. Um enorme narcisismo 133(o mesmo de que se acusava a vanguarda) faz da técnica o espetáculo,tornando mais complicada a questão da transparência, embora estapermaneça, uma vez que as regras de continuidade (e motivação) continuamvalendo, assim como os paradigmas extraídos da mitologia. O fetichismo setorna um conceito mais decisivo na discussão da imagem e do som hoje.Quanto a A experiência do cinema, não pensei em uma nova edição, seentendida como atualização. O livro tem sua função e continuará tendocomo está, sem tudo o que veio depois de 1983. Fazer outra antologia agoranão está nos meus projetos, pois estou com a agenda saturada. A escolhade textos leva tempo, mesmo quando você sabe que tendências devem estarrepresentadas. E existe a questão de não repetir o que já está encaminhadode forma aceitável em outras antologias. Não tive tempo, por exemplo, deexaminar com cuidado a antologia organizada pelo Robert Stam e o TobyMilIer citada por vocês: ela é admirável, num exame preliminar, pelaabrangência e pela pedagogia. Há uma outra antologia deles tambémeditada pela Blackwell - A Conipanion to Filmo Theorv - que inclui um textomeu sobre alegoria e história no cinema. Esta eu conheço melhor. Mas nãosei se é ocaso de traduzir. Este jogo de antologias é interminável. Mesmono caso da publicação em 1983, tive frustrações. Por exemplo, eu planejara

CO NT RACAMPO

Page 10: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

ter os textos da Communications n°23 (1975), mas houve outra edição emportuguês que atropelou a minha. Gostaria de ter dado mais espaço para adefinição, dentro de diferentes perspectivas, do cinema moderno (algo deBurch cujo livro saiu depois pela Perspectiva, o texto de Pasolini sobre ocinema de poesia).Para terminar, devo dizer que a coleção da Cosac & Naify - Cinema, teatro emodernidadè - expressa o recorte que me interessa fazer agora, maisvoltado para as implicações teóricas da pesquisa dos historiadores e dosestetas, como Jacques Aumont, que pensam o cinema em relação a outrasartes. A premissa maior, neste sentido, viria da constatação - comum afranceses e anglo-americanos - de que a Grande Teoria do cinema está emcrise como campo unificado de questões. Vejam o número da revista daMarie-Claire Ropars-Wuillemier, do Pierre Sorlin e da Michèle Lagny, HorsCadre - o n° 6, se não me engano - do final dos anos 80, sobre a crise dateoria. E que tem pautado as explorações de Bellour no terreno da "entre-imagem", as explorações de Philippe Dubois na questão da figura, e omovimento em direção a uma revisão da estética - em que se insere aquestão do cinema - feito por Jacques Aumont. Nos Estados Unidos, há aantologia Post-Theory dos cognitivistas, supondo enterrada (ou desejandoenterrar) a teoria do "dispositivo", esta apoiada na psicanálise, como oúltimo grande esforço (frustrado) de unificação teórica depois dastentativas dos estruturalistas.

4. SomA antologia A EXPERIÊNCIA DO CINEMA fecha com um texto sobre osom: o de Mary Ann Doane, A voz do cinema: a articulação de corpo eespaço. Os anos seguintes à edição de A EXPERIÊNCIA DO CINEMAtrouxeram um espaço maior para a discussão sobre o som no cinema, queperpassou a década de 1980 e adentrou os 1990. De um lado do Atlântico,houve o grande empreendimento de Michel Chion, com os vários volumesdedicados exclusivamente ao estudo do som nos filmes; do Outro, o esforçocompilatório de pesquisadores americanos, cenário em que se destaca RickAltman, que tem obra significativa quanto a uma revisão do advento dosom no cinema, bem como à desconstrução dos pressupostos através dosquais o som foi relegado a um papel secundário que se cristalizou enquantoos campos da teoria e da análise fílmicas se consolidavam. A se fazer umacompilação que compreendesse os anos posteriores ao fechamento daedição original, tal corpo teórico, que trouxe à tona a discussão sobre osom, teria espaço? Ou seja, teria, na sua opinião, relevância suficiente paratanto?

134

CONTRACAMPO

Page 11: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

RESPOSTA:A questão do som no cinema foi, durante muito tempo, o ponto cego dateoria. Nos anos 80, tivemos o grande salto na sistematização e naspesquisas históricas: Michel Chion e Rick Altman, nos aspectos maisgerais, como vocês bem lembram, e uma quantidade grande de estudossobre a música no cinema clássico e sobre a as relações entre voz e imagema partir das questões postas pela narrativa (voz over) no filme noir e porcertas experiências do cinema moderno francês (Tati, Godard, Duras,Resnais, Robbe-Grillet). Chion mesmo trabalhou muito bem a questão davoz desde Fritz Lang, cunhando a noção de "acousmatique", para se referirao som da voz que não tem corpo e leva a todo tipo de interrogação quantoao seu lugar de emissão. Aliás, esta questão do elemento que procura o"seu lugar" é central para a teoria de Chion a propósito do som no cinema,pois ele descarta a idéia de "banda sonora" como um espaço coerente, comlógica e estrutura próprias, que daria "abrigo" e sentido aos elementossonoros presentes num filme. As observações de Chion sobre as relaçõesentre o espetáculo cinematográfico e o teatro, ou a ópera, devem ser maisexploradas, bem como tudo o que a teoria do melodrama, mais desenvolvidana Inglaterra e nos Estados Unidos, tem lembrado na ênfase que dá a estasmesmas afinidades que aproximam o cinema narrativo-dramático da tradiçãodo palco.Claro que isto ajuda, e deve ser estudado com maior rigor. Mas, afora asclassificações, é nítido, em termos estéticos, que os cineastas estejam à 135frente na proposição de questões interessantes, e isto desde Eisensteincom a sua noção de "montagem vertical", inspiradora de muita coisa,mesmo que o pessoal de música tenha restrições a uma das formas do"vertical" - o contraponto sonoro. Em verdade, a questão da música nocinema - seja enquanto presença sonora efetiva, seja enquanto metáforaestrutural - inibe a maioria dos críticos, pois a música exige competênciaespecífica para a análise (e o lado técnico dos trabalhos sobre BernardHerrmann, como o de Graham Bruce, e sobre outros compositores confirmaisto). Como, por esta via, há limites claros, cada um procura explorar ocaminho mais ajustado à sua formação. Eu, por exemplo, me concentro naquestão da voz e seu papel na narrativa em função da teoria literária, o queacabou marcando minhas análises de filmes desde os tempos da lida com ocinema de Glauber no Sertão Mar. Curiosamente, só sistematizei melhor, emtermos teóricos, o que já estava presente "em estado prático" no meu textosobre Deus e o Diabo, quando fiz meu texto sobre o São Bernardo ['0olhar e a voz: a narração multifocal no cinema e a cifra da história em São

Bernardo", publicado na revista Literatura e Sociedade n°2, 1996]. Só aí -e também no texto "Parábolas cristãs no século da imagem" IrevistaImagens n°5, 1995] - ficou explícito o problema da narração multi-focal no

CON1RACAMI'O

Page 12: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

cinema (ponto de vista da câmera, inise-enscène, vozes, música, etc...) e oque se pode derivar daí na análise da diferença entre o cinema clássico e omoderno. Enfim, este é um terreno muito rico e pouco estudado, que pedemaior empenho de todos nós que nos inserimos numa cultura em que amúsica popular ocupa um lugar central e tem uma interação forte com ocinema, sem contar a importância das adaptações literárias em que vem aprimeiro plano a questão do narrador e da voz-over.

S. Antologias

Ultimamente, muitas antologias de teoria do cinema têm aparecido nomercado editorial internacional. Quais as que você destacaria como as maisimportantes para o campo dos estudos cinematográficos? (Robert Stam, porexemplo).

RESPOSTA:

Claro que vou esquecer muita coisa. De qualquer modo, além das duasantologias de Robert Stam e Toby MilIer, que ainda pensam o problema dareflexão sobre o cinema em geral numa perspectiva pedagógica, com umapanhado capaz de sugerir uma história das teorias, há antologias queafirmam uma perspectiva de trabalho bem definida, como o Post-Theory:Reconstructing Film Studies, organizado por David Bordwell e Noel Carroll[University of Wisconsin Press, 1996], livro de defesa dos pressupostos

136 cognitivistas. A tônica agora é esta, ou seja, a antologia que afirma umprograma de trabalho ou um recorte temático, ou um problema, sempre comintersecções entre os campos: cinema e filosofia, cinema e história, cinema enovas tecnologias, cinema e teoria dos gêneros dramáticos, cinema efeminismo, cinema e pintura, cinema e teatro, ou cinema e melodrama.Inspirados em Walter Benjamin e Georg Simmel, Vanessa Schwartz e LeoCharney organizaram a excelente antologia, O cinema e a invenção da vidamoderna, que inaugurou a coleção que dirijo para a Editora Cosac & Naify.Num movimento paralelo ao de Schwartz e Charney, Dudley Andreworganizou The Image iii Dispute: Art and Cinema in the Age ofPhotography [University of Texas Press, 19971. Há uma imensidadeeditorial em torno do "culturaistudies" e do multiculturalismo; neste caso, omelhor é começar pelo livro do Robert Stam e da Elia Shohat, UnthinkingEurocentrism; Multiculturalism and the Media [Routledge, 19941. ThomasElsaesser tem uma excelente síntese da questão do cinema no início doséculo: Space, Frame, Narrative [BFI, 19901:Sobre os gêneros da indústria,há a antologia de Nick Browne: Refiguring Anierican Filnz Genres: Theoryand History [University of California Press, 1998]. No plano da reflexãoestética mais adensada, Jacques Aumont organizou, a partir de semináriosda Cinemateca Francesa, uma série de excelentes antologias concentradas

CONTRACAMPO

Page 13: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

em diferentes ternas, todas publicadas pela própria Cinemateca (destaco aque se concentra em Jean Epstein, a que tematiza "a invenção da figurahumana no cinema", e a que discute a noção de "mise-en-scène" - estaúltima, aliás, publicada no ano passado na coleção organizada pelo PhilippeDubois para uma editora belga, a De Boeck Université). Para terminar, aí vãoreferências no campo das relações entre cinema e história: The HistoricalFilin: History and Menory in Media [org. Marcia Landy, RutgersUniversity Press, 2000], De / 'histoire au ciné,na [org. Antoine de Baecque eChristian Delage, Éditions Complexe, 19981, The Persistence ofHisrorv.'Cinema, Television and lhe Modern Eveni [org. Vivian Sobchack,Routledge, 1996] e Revisioning Historv: Filin and the Construction of aNew Pasi [org. Robert Rosenstone, Prínceton University Press, 19951.

6. Teoria, Crítica e História do Cinema no BrasilComo você vê, dos anos 1970 para cá, a inserção da experiência do cinemacomo pauta para os estudos acadêmicos no Brasil? Quais foram os "becossem saída", "as encruzilhadas" e os "novos caminhos"? Qual é a herançade urna crítica estética participante. política, nos estudos de cinema?

RESPOSTA:Esta inserção ajudou a desenvolver o que exige trabalhos mais sistemáticosde pesquisa, como os voltados para a história do inema brasileiro, emboranão na intensidade que se esperava há 20 anos. Acho que tais estudos 137

estão menos representados no espectro acadêmico hoje do que deveriam,havendo maior concentração deles no eixo Rio-São Paulo, onde estãotambém as duas cinematecas e os principais arquivos (como o da Cinédia,como vocês sabem). Outra conseqüência da consolidação dos estudosacadêmicos na área foi a maior circulação de teorias, mais propriamente doque o debate teórico, pois as diferentes opções coexistem havendopouquíssimas ocasiões para um cotejo no bom sentido do termo. Como ocardápio é hoje vasto, temos incorporado a produção internacional comcerta rapidez, dentro da mesma tônica já antiga dos estudos literários, nãosendo raro encontrar a ansiedade em demonstrar atualização no plano dosconceitos acoplada a uma falta de consistência na relação com os objetos(filmes, autores, movimentos estéticos), às vezes revelando constrangedoralheamento face à tradição crítica voltada para o cinema brasileiro (oumesmo da tradição crítica voltada para outras cinematografias quando sãoessas que estão em pauta). Tal inconsistência se reflete às vezes na escolhado objeto, às vezes no modo de tratá-lo. E, como resultado mais amplo egeral, se reflete na dispersão de esforços. Não digo isto pensandodiretamente no fato de que, na pós-graduação, há uma tendência a se "atirarpara todos os lados", como se diz, com a maioria dos professores

CONTRACAMPO

Page 14: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

funcionando como receptores de projetos definidos pelos alunosingressantes, coisa que tem o seu lado ruim, mas também tem o seu ladobom (a maior liberdade, a rentabilização de paixões pessoais pordeterminado autor ou tema), restando analisar caso a caso. Estou pensandomais na volubilidade que nos é própria, e que leva a mudanças de rumoencorajadas pela moda, sem que se tenha explorado até o fim determinadalinha de trabalho e sem dar a chance para que os problemas a seremformulados surjam do próprio percurso da reflexão na sua interação com osobjetos. Em verdade, estou repondo a questão colocada pelo RobertoSchwarz no caso das letras, quando vemos a atualização teórica, ao invésde articulada à problemática em pauta numa pesquisa, se reduzir a meromimetismo face ao contexto de produção teórica tomado como modelo. Os"becos sem saída" estão nos casos extremos desta pulverização de temas elinhas de trabalho, quando a proposta perde o senso de proporção erelevância. Os caminhos, ao contrário, se abrem quando não voltamos ascostas para o solo histórico e para o lugar de onde estamos falando, emantemos o sentido da intervenção que encontra seus interlocutores eresponde a questões postas pela experiência do cinema e da cultura emnosso contexto, o que se dá não apenas a partir da eleição de objetos locais(isto não garante nada), mas fundamentalmente a partir da formação de umponto de vista local sobre qualquer tema (por exemplo, globalização e novastecnologias são fenômenos universais, mas vividos em cada canto do

138 mundo de uma maneira específica). O que interessa, portanto, é aformulação de uma problemática que responde a inquietações e impassesque estão à nossa volta e que nos atingem, qualquer que seja o assunto dapesquisa.

7. Foucault, Benjamin, lingüística: aproximações edistanciamentosComo você vê a aproximação da história do cinema com os métodos do"historiador" francês Michel Foucault? De forma direta: qual é a atualidadedos estudos de Walter Benjamin para o campo cinematográfico? Quais asimplicações, nos estudos do cinema, da lingüística e da teoria da literatura(e mais recentemente, da chamada "análise do discurso"), oriundas dasformulações de Mikhail Bakhtin, Austin, Oswald Ducrot, Gerard Genette,Christian Metz, Jacques Derrida?

RESPOSTA:O que melhor resultou da influência de Foucault foram os estudos doséculo XIX sobre fotografia e pintura, sobre os aparelhos óticos, sobre oshábitos da sociedade e medidas disciplinares ou de controle (incluídas aípráticas policiais), trabalhos que tiveram a sua incidência na reflexão sobre

CONTRACAMPO

Page 15: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

cinema. Claro que penso em Jonathan Crary e sua investigação sobre osentido da visão e as concepções do olhar, e também em John Tagg [Theburden of Representation: Essays on Photog raph ies and Histories.University of Minnesota Press, 19881, e no próprio Tom Gunning e outrosteóricos e historiadores que compõem a antologia traduzida na coleção daCosac & Naify. Antes disto, houve a presença tênue de Foucault em livrossobre os gêneros da indústria, e livros sobre a inscrição do corpo nacultura, onde se destaca alguém como Richard Dyer (que já tinha pensadobem a questão dos gêneros da indústria numa perspectiva de estudoinstitucional, de "formações discursivas", sem obrigatoriamente usar ovocabulário foucaultiano). Esta questão do corpo e as formas derepresentá-lo e inscrevê-lo em redes discursivas tem tido ressonância noBrasil, como em uni número significativo de trabalhos apresentados naSocine. inclusive o que se fez em função do contato do João Luiz Vieira comRichard Dyer. A incidência maior de Foucault tem sido nas reflexões sobre aquestão dos códigos e dos controles que. em geral. envolvem a esfera damídia e as teorias de subculturas de classe, de etnia, de gênero (masculino/feminino/plural) ou de tribos urbanas, quando muitas vezes os trabalhos seafastam da dimensão estética dos problemas (não por acaso, Foucault hojetem substituído Grarnsci como referência na esfera do Cultural Siudies).Mas há uni outro pólo de sua influência na discussão da crise do sujeito eda noção de Autor (o terna da morte do autor), onde se dá ênfase à primaziados sistemas, ou das formações discursivas, e à centralidade dos códigos 139como a língua. Estas linhas de trabalho têm interesse, mas há o risco de sereduzir todos os processos à esfera do discurso enquanto sistema (ordem.regras), dissolvendo-se a questão da passagem de uma ordem à outra, easpectos essenciais da interação entre linguagem e mundo. Nem tudo sereduz a uma poética (ou urna retórica), ou à atenção concentrada naelucidação das regras intrínsecas dos gêneros de discurso (ou dacodificação do olhar). É preciso conectar a questão das regras e dosdiscursos com a análise das forças que direcionam o mundo prático, osinteresses de classe ou de grupos de outra ordem; enfim, a lógica da vidamaterial e as transformações que o mundo da produção engendra. Porquearticulou Foucault a outras indagações sobre o solo social e histórico.Jonathan Crary foi mais fundo nas questões e obteve a ressonância queconhecemos. De minha parte, aprendi mais com o Foucault de Aspalavra.s eas coisas, pois meu estudo da alegoria muito se valeu de suas formulaçõesno plano das diferenças entre o mundo renascentista das semelhanças e anoção clássica de representação. Mas meu horizonte foi o de articular o queencontrei em seu livro com o quadro teórico de Walter Benjamin, no qual aquestão da alegoria e suas tensões insolúveis - sua dialética defragmentação e totalização - estão pensadas a partir de uma outra visada da

CON1RACAMPO

Page 16: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

história em que cada momento é pensado como drama, imperativo deviolência e contradição viva, insolúvel, entre construção e destruição,civilização e barbárie, melhoria e catástrofe, desde que tudo permaneçacomo está no terreno da divisão social e do confronto dos interessesnacionais (centro e periferia). E esta crítica à noção de progresso e decontinuidade histórica que acredito ser mais produtiva como moldura geralde um trabalho no campo das relações entre cinema e história. Muitostrabalhos incorporam mais a forma como Benjamin historiciza a percepção, asensibilidade e as categorias estéticas, ou se concentram na sua teoria damodernidade feita a partir do estudo de Baudelaire, como acontece com osautores presentes no livro O cinema e a invenção da modernidade. Noentanto, Minam Hansen, dentro deste mesmo livro, nos lembra que énecessário cautela em tal transplante de configurações do capitalismo doséculo XIX para a sociedade de massas do século XX, onde enfim estamos.Há uma exploração interessante a fazer inspirada em Minam Hansen, paraalém da repetição e extrapolação mecânica do que Benjamin disse sobre aurbanidade, a aura, a arte na era da reprodução. Enfim, historicizar de novo.Acho que não precisamos voltar aqui à avaliação do legado da linguística (eda semiologia de Metz) em nosso terreno, com seu viés narratológico e maiscompetente na análise do cinema clássico. A crítica de seus modelos veiopor vários lados: os cognitivistas (que também têm dificuldade de falarsobre algo que escapa ao narrativo e seu sistema de inferências) e

140 deleuzianos detonaram a "enunciação", por motivos diferentes. MasDeleuze conservou alguma coisa deste legado, notadamente quandoincorpora a noção de estilo indireto livre, com toda a transformação que fazdesta noção a partir das formulações de Bakhtin e Pasolini. Tal noção supõea confluência de "vozes" e operadores textuais como o narrador, mesmoquando se descarta a psicologia e a tendência à subjetivação que a noçãorevela em sua tradição vinda da teoria literária. Enfim, já entrando napergunta sobre Deleuze, a caracterização do cinema moderno teve aí umponto forte que persiste e não pode prescindir desta tradição da teoria danarrativa para um entendimento do problema quando pensamos os últimos40 anos de cinema.

8. Deleuze, o cinema e o olhar contemporâneoÉ indiscutível a influência e a presença da obra do filósofo francês GillesDeleuze nos estudos cinematográficos brasileiros contemporâneos.Ausente, por exemplo, da antologia A EXPERIÊNCIA, hoje os estudoscinematográficos de inspiração deleuziana adquiriram uma expressão quepoderíamos dizer tão grande quanto aqueles de inspiração freudiana elacaniana (com naturais intersecções entre ambas). Como você avalia o

CONTRACAMPO

Page 17: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

impacto dos textos deleuzianos especificamente cinematográficas -IMAGEM-TEMPO e IMAGEM-MOVIMENTO - nos estudoscinematográficos e, por ampliação, dos conceitos mais "filosóficos" deDeleuze e como vê a sua aplicabilidade na análise fílmica, por exemplo?

RESPOSTA:Ele ficou fora da antologia porque esta saiu no mesmo ano de A Imagem-

,,iovi,nento, que é de 1983, não sendo ainda referência naquele momento.Seria um item imperativo em novas antologias. O impacto realmente éenorme. Deleuze recolocou o tempo na pauta da teoria do cinema, e inseriuo cinema no campo onde se produz o pensamento do século, construindouma teoria abrangente em seu escopo - trata-se, quando menos se esperava,de uma nova ontologia do cinema - e bem calibrada em sua estratégia dedefesa do cinema moderno como o ponto decisivo onde pensamento,imagem e tempo encontram sua substância (desculpem o termo) comum.Recolocar o tempo significa descartar a base linguística, a álgebra doestruturalismo, e voltar à dinâmica, à intensidade, ao acontecimento. Avaliartudo isto? Não é propriamente o que posso fazer, se o que se quer é umareflexão sobre a sua filosofia e os conceitos que inventa. Mas é possívelcomentar algumas das implicações deste pensamento no plano da crítica, etambém algumas formas deste pensamento se apropriar da crítica,notadamente aquela que, em conexão com a Nouvelle Vague, construiu oreferencial dominante na concepção que temos do cinema moderno. Sim, 141porque se, de um lado, Deleuze re-trabalha, da forma que lhe é peculiar, osconceitos de Bergson, faz o mesmo com uni enorme corpo de textos escritossobre cinema, principalmente na França, de modo que o leitor vaireconhecendo aqui e ali os pontos de origem, nem sempre nomeados, etambém as diferenças que se introduzem quando o filósofo inscreve idéias enoções em seu estilo de pensar. O essencial é que seu pensamento legitimao moderno, chega a compor um movimento da história do cinema em que osavanços da prática se conectam a unia definição dos conceitos chave:imagem-movimento, imagem-tempo, imagem-cristal. Com isto,o leitor vêconfirmada uma forma particular, europeizante e tipicamente "pós-guerra",de entender a história do cinema. Cabe então perguntar: noções comoimagem-movimento e imagem-tempo não estariam limitadas por recortescronológicos à revelia do que o próprio Deleuze pensa sobre a história? Porque é necessário fazer uma leitura do cinema mudo, inclusive dasexperiências de vanguarda, no interior do que é subsumido à imagem-movimento, como se fosse necessária sua precedência na história docinema, face à imagem-tempo, que viria depois? O que significa este resíduocronológico na exposição dos conceitos do filósofo? Não seria redutor estediagnóstico da "liquidez" do impressionismo francês, e não seria limitada

c0NTRAcAMP0

Page 18: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

sua análise das figurações do cinema de Eisenstein inscritas no campo daimagem-movimento? O que significa este jogo de inversões especulares quefaz com que um filósofo, cujas afinidades eletivas conduzem a Nietzsche,privilegie uma galeria de autores muito similar à galeria celebrada pela críticafrancesa cristã do pós-guerra e seus derivados?Algumas destas questões já foram postas por quem se debruçou maisdecisivamente sobre os textos de Deleuze, como é o caso de André Parenteque, em Narrativa e modernidade [Papirus, 20001 questiona a forma como ofilósofo francês (assim como outros autores) concebe a oposição entre onarrativo e não-narrativo no âmbito da imagem. Se a questão é Deleuze,outro percurso de análise do moderno e do pós-moderno que o toma comointerlocução central está no livro de Peter Pál Pelbart, A vertigem por umfio: políticas da subjetividade contemporânea [Iluminuras, 2000]. Cito oscasos em que há densidade. Na discussão de teoria, em particular quando apergunta é pela repercussão de um pensamento consagrado, é precisodistinguir quem se insere na problemática deleuziana por opção, ou seja,quem conhece a história e a teoria do cinema, e faz sua escolha a partir deum repertório amplo, daqueles que simplesmente aderem ao que lhes parece"distintivo", no sentido de Pierre Bourdieu. Num período recente, o que meparece pouco produtivo são os lances de filosofia kitsch, a roupagemchique do pensamento trivial, muito próprios a quem escreve como se areflexão sobre o cinema tivesse começado ontem. Não é raro ver pessoal

142 desavisado cogitar, no que pensam ser exploratório e "de ponta", emsupostos caminhos da crítica que, em verdade, já foram percorridos emanálises concretas, seja do cinema moderno brasileiro, seja das formas dedistinção entre o cinema clássico e o moderno, seja de um autor jáarquiinterpretado. Do ponto de vista da crítica, há que se ter um senso deproporção, que muito depende de uma formação do gosto que se articula aconhecimentos históricos, para evitar a aplicação de um repertórioconceitual que está em descompasso com a problemática presente no filmeque se escolhe examinar. Lembro a piada do pessoal de Letras ao citar airrelevância de teses do tipo: "A instância da letra no inconsciente, Lacan eas rimas no discurso poético de J.G. de Araújo Jorge". Às vezes, o filme éde pouca envergadura e não adianta forçar o debate estético com aaplicação mecânica de conceitos inventados para pensar questões muitomais complexas do que o objeto diante dos olhos. Isto se torna maiscaricato quando o vôo filosofante é forma de elidir o solo sócio-histórico daobra (porque este nem sempre se conhece) e agir como se fossem menoresas perguntas sobre a articulação de uma forma estética com o contextosócio-político de onde emerge.Indo em direção contrária, e para falar de um caso em que a envergadura dasobras se ajusta à complexidade da discussão conceitual, vale a pena

CONTRACAMPO

Page 19: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

examinar a excelente tese de Francisco (Kaq) Saraiva, defendida na UNB,cuja análise de Limite, de Mário Peixoto, demonstra a erudição necessáriapara um comentário que retoma o problema da distinção, no concreto, entreimagem-movimento e imagem-tempo, analisando a temporalidade inscritanas imagens do filme, questionando, assim, a suposta ausência da imagem-tempo na primeira vanguarda e seus interlocutores. E também o livro deCláudio da Costa. Cinema Brasileiro (anos 60-70): dissimetria, oscilaçãoe simulacro (Rio de Janeiro, & Letras, 2000), quando a mobilização dosconceitos é pertinente ao universo do cinema moderno que está em pauta,trazendo nova perspectiva de análise sem descuidar do diálogo com afortuna crítica já construída em torno de Glauber e Bressane, por exemplo.

9. A Teoria Cognitivista do CinemaContando corri os seus reparos devidos, poderíamos dizer que a década de1990 (ou talvez a periodização devesse recuar a partir da segunda metade dadécada de 1980), vê aflorar uma geração de teóricos, historiadores, críticos eanalistas que de certa forma deslocaram o foco central dos estudoscinematográficos da França dos estruturalistas lingüísticos para os EstadosUnidos e a Inglaterra dos chamados cognitivistas (David Bordwell. JanetStaiger, Noel Carro!!, RichardArlen, CarI Plantinga etc.). Em que pesealgumas obras que manifestam um certo contato corri estes textos(praticamente inéditos em português), como você avalia a assimilação deste 143paradigma teórico e analítico em nosso meio? Nós faríamos a provocação depropor a existência de uma certa resistência a este corpo teórico pelospesquisadores e teóricos locais, sem avançarmos em suas possíveis causas.

RESPOSTAO cognitivismo na teoria do cinema surge no bojo de unia deliberadacampanha contra a psicanálise e o que estava implicado na teoria do"dispositivo" de l3audry: passividade do espectador, regressão narcisista.vulnerabilidade à manipulação e associações "irracionais". Enfim, tudo oque desestabiliza o Sujeito soberano e as operações autônomas da Razão.Foi violenta a polêmica, em torno de 1986, na revista October, entre NoelCarroll e Stephen Heath, a partir de um ataque de Noel ao esquema teóricoda revista Screen, de tipo lacaniano. Em sua introdução ao Narration in iheFiction Filo,, Bordwell faz o balanço crítico dessas questões e propõe umateoria da narrativa menos apoiada em modelos linguísticos e. em especial,na idéia de enunciação, chegando a seu modelo interativo entre filme eespectador, este último dispensando as hipóteses lacanianas sobre osujeito e atuando na linha da racionalidade do senso comum da espécie:recolhe dados pelo equipamento sensível, formula hipóteses, as verifica e

CONTRACAMPO

Page 20: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

opera segundo um jogo de inferências de tipo binário, como um computadorao processar os dados. Claro que Bordwell não usa assim tal associação,sou eu (e Bili Nichois que, numa crítica à teoria da narrativa de Bordwell,conclui com esta ironia de que tudo funciona às mil maravilhas, desde que aluz saída da tela encontre um computador na platéia). Há um quê decaricatura nisto, mas foi o próprio Noel Carroli quem fez a associação numaconversa comigo lá pelos idos de 1977, quando me explicava a sua teoria damontagem (eu tenho um xerox do texto). Explicou, descreveu como oespectador receberia cada novo plano e formularia as hipóteses, verificaria,alteraria o pressuposto e voltaria ao mesmo procedimento até chegar àresposta satisfatória. Depois de certo tempo, se deu conta e me perguntou:isto soa como um computador? Eu disse sim. Ele sorriu.Aceitando a provocação de vocês, posso dizer que sou um dos queresistem a este corpo teórico quando assumido em seu lado "contra ainterpretação", e estou convencido de que o ensaio sobre cinema no Brasiltem, em curto prazo, caminhos mais interessantes a seguir, fora destaassepsia acadêmica à Bordwell. Mas partilho com eles o zelo pela descrição.E há jovens seguindo esta trilha e fazendo a crítica da tradição francesa deteoria do cinema, coisa que se vê na SOCINE que sempre nos traz umaamostra das preocupações dos vários grupos. Em verdade, sem perder detodo esta associação feita acima com o computador, a coisa é, sem dúvida,mais complicada e tem seu terreno de validade, desde que não radicalizemos

144 esta eliminação da esfera do desejo, do inconsciente, da operação deesquemas ideológicos, enfim de tudo o que sabemos sobre a prática deleitura das imagens que não se reduz a estes algoritmos em estado puro,pois há o "ser em situação" e suas linhas privilegiadas de associaçõessignificantes que acredito pouco tem a ver com o que eles chamam de"inferências". Isto fica nítido no livro Blurred Boundaries: Questions ofMeaning in Gontemporary Culture, onde BilI Nichois tem um artigoextraordinário sobre o caso das imagens em vídeo do espancamento deRodney King e sobre as leituras feitas por defesa e acusação no julgamentodos policiais envolvidos.Em defesa dos cognitivistas, temos um bom exemplo do próprio Noel Carroli- um intelectual nitidamente de esquerda no período novayorquino (comoArthur Danto, seu maior inspirador e Annette Michelson, sua maior amiga eex-orientadora) que nos oferece um movimento interessante nestainteração entre imagense cadeias de pensamento lógico em sua análise da'seqüência dos deuses' do filme Outubro, do Eisenstein (ver revistaArtforu,n n° 11, 1973). Sua forma de evidenciar a possibilidade de ver nasequência uma demonstração de tipo matemático (a dita demonstração porabsurdo) deixa claro o quanto aí não há preocupação em postular umaoperação mental passível de ocorrer num espectador qualquer (como forma

CONTRACAMPO

Page 21: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

de universalizar unia teoria da narrativa pautada pelo dinamismo dapercepção e das inferências próprias à espécie). O que há é o trabalho deanálise do crítico e sua particular capacidade de interpretação da seqüência.O problema mais geral é que Bordwell, por exemplo, é muito preciso nadescrição (o que é Ótimo), mas sua assepsia no plano hermenêutico oimpede de mobilizar contextos moduladores de interpretações que confiramrentabilidade crítica a suas descrições. Vejam o livro sobre Dreyer, ou ocapítulo sobre Godard no Nariation. Diz muito, num plano, e diz muitopouco em outro. Sim, sabemos que ele é mestre na crítica das formas do"making meaning" presentes na crítica (especialmente a francesa), o que elefaz de uma "posição transcendental", aquém ou além da problemática emque se empenham os críticos comentados (a alusão a Kant não é casual,mas é preciso não confundir a crítica da razão com o zelo de um inspetorgeral muitas vezes amesquinhado). Não surpreende que seu papel maiorseja o desse constante mapeanlento de questões, com tendência a taisoperações de esvaziamento, e este excelente trabalho de elaboração de"introduções", mapeamentos de obras, autores, estilos, tudo o querecomendo a meus alunos que leiam sem esquecer o lado redutor de suasanálises e a estreiteza de horizontes de sua critica, porque sua concepçãodo processo cultural é esquemática, classificatória, excessivamente voltadapara questões vocabulares que muitas vezes formatam um falso problema.

10. Cinema e Psicanálise, hoje.Quais são as implicações para a teoria cinematográfica da psicanálisecontemporânea (digamos que "pós-lacan iana")? Em que medida o "retornoa Lacan" promovido por Slavoj Zizek atualiza a psicanálise no exame daprodução de sentido na experiência do cinema? Até que ponto é corretorecolocar a questão do olhar (nostalgia. pornografia e montagem) paratentar explicar os "impasses da dessublimação repressiva - ' (AEXPERIÊNCIA DO CINEMA) e o contínuo interesse pelo cinema clássiconarrativo?

RESPOSTA:

Há pouco de novo sob o sol da psicanálise do cinema. Mas a área ccmtinuasempre presente, principalmente nos seus aspectos que já viraram sensocomum da crítica. O impacto de Deleuze eclipsou a teoria do "dispositivo"no seu próprio foco irradiador. As revistas francesas continuam, noentanto, a mobilizar Lacan. notadamente Vertigo com seus númerostemáticos que quase sempre envolvem assuntos afina&s ai) quadroconceitual da psicanálise. E. na Universidade de Paris III, Muri4 1 Gagnebin,ligada a Jean-Louis Leutrat, lidera um grupo voltado para a análi.e

145

CONTRACAMP()

Page 22: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

psicanalítica da imagem que faz uma ponte interessante com estudosliterários. Para nós, no Brasil, a história é diferente pois não tivemos apresença forte da teoria do cinema no eixo Lacan-Althusser; ela foicomentada, explicada, mas pouco assumida, ressalvada a premissa do"dispositivo" na crítica ao cinema clássico (vide meu próprio livro). Há umanova antologia, onde há psicanálise sem necessariamente haver lacanismo,que merece atenção: Psicanálise, cinema e estéticas da subjetivação,organizado por Giovanna Bartucci (Imago, 2000). Voltando à Europa, vocêscitaram o melhor exemplo, pois Slavoj Zizek é muito inteligente efazexatamente uma psicanálise que se articula com uma indagação sócio-política, trabalhando muito bem as implicações do que tensiona acontradição entre a noção do cidadão (indivíduo abstrato, genérico), sujeitode direitos, e os sujeitos concretos de desejos, em conflito com osimperativos da cidadania. Ver seu Looking Awry: an Introduction toPopular Culture through Jacques Lacan (MIT Press, 1991). Ele tem muitaironia e pratica um ensaísmo brilhante que tem como premissa umapsicologia social complicada, sempre centrada na política, como Marcuse aquem vocês aludem no final da pergunta. Não entendi bem o sentidoespecífico desta tríade "nostalgia, pornografia, montagem", mas o horizonteda pergunta é a questão da potência explicativa das categoriaspsicanalíticas no plano da cultura. Sem me atribuir competência específicapara entrar fundo na questão, acho que continua sendo uma boa aposta

146 esta mobilização das matrizes da formação do sujeito na infância paraequacionar determinadas demandas coletivas como esta pela narrativa nostermos clássicos. E lembremos que fetiche é também uma noção chavedentro deste terreno (aqui Laura Mulvey, Fetiche and Curiosily, tem muitoa dizer).

11. Dogmas, dissidências, experimental, vanguardaConhecemos bem (desde a apresentação a A EXPERIÊNCIA DO CINEMA)do seu vivo interesse pelos "outros" cinemas, pela experiência do filme devanguarda, do underground americano, do cinema de contestação aomodelo dominante norte-americano. Queríamos que você avaliasse asituação teórica da defesa crítica e política em prol de um "cinema deinvenção" (Jairo Ferreira), incluindo na resposta uma visão da reemergênciado "cinema-manifesto" (Dogma 95), fenômeno que nos remonta às décadasde 1920e 1960.

RESPOSTA:A defesa do cinema de invenção perdeu uma dimensão decisiva de seuempenho: a da utopia. No momento do alto modernismo cinematográfico,

CONTRACAMPO

.. -',.. . ...-

Page 23: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

digamos nos anos 60-70, qualquer proposta de um cinema alternativo traziaum horizonte de mudanças que eram, ao iaesmo tempo, do cinema e dasociedade (e não era preciso vincular experimentos ou vanguardas aosocialismo), pois fazer oposiçao e buscar o diferente era criar um novoespaço institucional de discussão do cinema (como o fez o underground,longe do mercado e da indústria cultural). Ou era fazer crítica políticaapoiada num senso de que a própria lógica engendrada na fatura (modo deprodução e linguagem) dos filmes era já uma nietúfara de uma outra formade viver e trabalhar, ou seja. a idéia do alternativo trazia um quê deantecipatório, próprio a quem sente o tempo a tavor, apesar dos entraves.Agora, o senso maior é de resistência. de quem sente o tempo contra, e levao barco como uma assembléia dos sobreviventes, dos que ainda nãoaderiram ao consenso e á festa da indústria cultural. O próprio Dogma,notadamente pari nós, brasileiros. que Vivenios já a experiência da estéticainventada na escassez, tem esta conotação. mesmo que sejamos simpáticosao grupo e gostemos do que faz Lars Von Trier, por exemplo. O processo dedomesticação da transgressão se acelerou, trazendo a cada exemplo decinema de invenção um destino de rápida classicização: ganha-se respeito,

entra-se para o cânon, o que nos incomoda quando consideramos aintensidade corri que se vivem determinadas descobertas logo reduzidas a

mais um item na prateleira. Não há aduela excitação "sustentável" deesforço teórico novo e prática nova, com aquelas "great expectations"juvenis. O que não significa que não tenhamos todos um elenco razoável de 147

boas experiências e Ótimos filmes a listar a cada ano. Falta o clima, aconfiguração histórica mais ampla capaz de catalisar a invenção que ressoa

e "faz época". algo que poderia ser atinado aos 1920 ou 1960.

12. DocumentárioNa introdução do Discurso Cinematográfico, você recorta o objeto deanálise no cinema ficcional. E faz a seguinte ressalva: "Aqui é assumido queo cinema, como discurso composto de imagens e sons é, a rigor, sempreficcional, em qualquer dc suas modalidades: sempre um fato de linguagem,um discurso produzido e cortrolado, de diferentes formas, por uma fonteprodutora." Algumas das recentes teorias sobre o documentário - como aformulada por Bill Nichols, por exeniplo -. defendem uma certa especificidadepara o campo do documentário, baseadas no princípio de que as narrativasaudiovisuais são socialmente inclexadas como ficção ou documentário, apartir de determinações diversas: narrativas e extranarrativas, o que implicaem diferentes condições de espcctatorialidadc e portanto de diálogo entrepúblico e obra. Qual é sua re. ,exão nesse sentido? Será realmentenecessário pensar urna especificidade para o campo do documentário? E emque bases analíticas tal reflexão deve ser feita?

CO NTRA (A 51 P0

Page 24: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

RESPOSTA:

O Bili Nichois tem razão. Assim como o Roger Odin quando desloca aquestão com suas noções de leitura ficcionalizante e leituradocumentarizante. O problema da distinção entre documentário e ficção émais complexo. E eu já havia reconhecido isto na segunda edição do livro,quando citei a Zulmira Ribeiro Tavares que havia me advertido para asimplificação contida nesta frase que vocês citam. Há um jogo de palavrasque faz confundir "representação" (ou mesmo "discurso") com "ficção". Oque ela argumentava era o seguinte: a ficção é um processo criativo, uminventar, imaginar. Não é apenas um realismo equivocado que não sereconhece como tal, ou mera vontade de enganar, mentira com aparência deverdade. Estamos habituados a desqualificar um discurso que deseja oefeito de verdade dizendo que é "ficção", o que na época levava a estaequação: cinema=linguagem=não real=ficção. Não é absurdo talnivelamento, mas ele toma "ficção" num sentido bem redutor e puramentenegativo. Estão certos os que assumem ficção e documentário comosinalizações de gêneros de discurso (ou de expectância) diferentes. Por maisque seja palpável a zona cinzenta em que estaria a fronteira, vale a penaexplorar caminhos teóricos que a supõem e tentam tornar mais nítido oespaço em que ela se encontra. As bases analíticas para tanto não poderãovir de uma postura estritamente "estrutural", ou seja, supondo que pela

148 exclusiva observação da imagem, em radical imanência, podemos resolver oproblema. É preciso retirar o mundo do parêntese que a fenomenologia (soloda postura estrutural moderna) o colocou e voltar a assumir com maiorênfase a conexão entre produto (imagem e som na tela) e processo. Eprocesso, aqui, entendido em duas pontas: na gênese (a produção, osmétodos de trabalho) e na função social (enfim, a recepção, as atitudes derecepção que dependem do contexto e da moldura, e não apenas dasqualidades intrínsecas à obra). Enfim, é isto que os teóricos estão fazendo.Para resumir, a categoria que deve ser questionada, neste caso, é a darepresentação, pelo menos em seu sentido clássico. O que um documentárioengendra é uma relação entre câmera e sujeitos (as "personagens" doCoutinho) capaz de produzir um acontecimento singular (que tem algo deteatro como toda ação feita para o olhar, mas não o é em sentido estrito); háalgo difícil de nomear, que o filme dá a ver e que exige de nós a construçãodas noções capazes de dar conta do ocorrido. Certamente ficção não é otermõápropriado.Todaíiagem tem o seu sentido alterado pela moldura, pelo contexto, pelalegenda, formas variadas de montagem, mas é preciso reconhecer que háalgo mais na franja entre a força intrínseca do registro e o poder damontagem. Algo que tem a ver com o que Balázs denominou a fisionomiadas coisas, a face do homem, noções que Eisenstein retonou lembrando

CONTRACAMPO

Page 25: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

que, embora a noção de fisionomia tenha perdido a dimensão científica quetinha no século XVIII, algo nomeado por ela, que se liga ao senso depregnância e expressividade da forma, age decisivamente sobre nós pelaimagem de um rosto, pelo grão de uma voz, pelo pitoresco da paisagem, pelacontundência de um fato. Há algo mais cio que montagem e desconstruçãoem Vertov, e tem razão Kracauer quando se contorce para explicar a questãoda empatia (no sentido de relação intersubjetiva) diante da imagem, e seesforça em elogiar um certo realismo (estranho realismo, como diria Adorno)como vocação do cinema, em total paralelo e COlhO uma espécie de versãolaica do evangelho de Bazin. Pensar o documentário, para além dastipologias, é repor estas questões que passam pelo encontro entre olhar eobjeto pelo que há de drama, hesitação, contenção e exibicionismo, pelopeculiar teatro, enfim, que ocorre no aqui-agora da filmagem.

13. O Cinema Brasileiro ModernoPublicado originalmente em 1995. a nova versão de "O Cinema BrasileiroModerno" nos dá um quadro sintético e nem por isto menos rigoroso datrajetória do cinema brasileiro desde os anos 1960. Ao abordar a década de1990, você se empenha em atualizar algumas premissas do diagnósticosessentista de Paulo Emílio, sobretudo a do "cinema subdesenvolvido",hipótese que, segundo você escreve textualmente "não se pode vislumbraro momento em que podemos descartá-la". Como você avalia, no bojo destas 149

formulações, o notável e inegável avanço tecnológico do cinema brasileiro,que está sofrendo presentemente uma "pequena" revolução que é a adoçãoda tecnologia digital que agiliza e barateia o antes insuportavelmente caroprocesso de produção cinematográfica? Este acesso às tecnologias deponta não significará, em primeiro lugar. um aumento significativo naprodução brasileira (ainda que o problema do mercado pareça insolúvel),gerando uma situação peculiar, cm que, sem mercado e com público limitado(baixa demanda) a produção brasileira (de ficção, documentária,experimental) tende a crescer veriginosamente, pela simplificação edesinflação da produção cinematográfica?

RESPOSTA:É, sem dúvida, inegável a facilitação que as tecnologias digitais produz,permitindo viabilizar filmes localizados numa gama variada de opçõesestéticas. Enfim, há aí a combinação de potencial criador, liberdade delinguagem e baixo custo. Algo como a tecnologia atual oferecendo umaexperiência que tem o efeito viabilízador da estética da fome. mas dentro deoutro protocolo estético que teria a vantagem de ser mais elástico no ajustea diferentes linguagens e estilos de autor. OK. Há aí uma r nevolução a

CONTRACAMPO

Page 26: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

produção e um salto quantitativo decisivo, no entanto travado em seualcance pelo que sabemos: o poder na mídia hoje está concentrado noscanais de distribuição e circulação dos produtos, não tanto no fazer. Paracompletar seria necessário fazer a revolução na distribuição, o que exigemais do que Leis de Incentivo e muito cacife político, lances que, na ordemde coisas atual, são verdadeira miragem. Se vocês têm razão quanto àpromessa de crescimento da produção, resta o fantasma que assombra ocinema brasileiro: a questão da "legitimidade" perante a "opinião pública"(por mais vago e clichê que isto pareça). Com baixo ou alto orçamento, comimagem digital ou não, a produção se apóia na Lei, e o mercado não devolveo capital, mesmo que modesto. É o plano da política do Estado, onde entramainda questões nacionais como identidade, importância estratégica do nívelsimbólico, e o plano dos interesses da corporação que sustentamideologicamente tal aparato legislativo indispensável, o que pressionafortemente os cineastas a buscar os milhões de espectadores. Comojustificar a renúncia fiscal e dizer que o cinema brasileiro interessa a todosse não há público, mesmo que expliquemos as razões históricas disto? Aestética, os festivais, a crítica, os cinéfilos, tudo isto ajuda, e bastante,porque, não fora a adesão destes setores a um senso de que é imperativa aexistência do cinema brasileiro, talvez o modesto aparato legal não estaria aí.Mas a crítica, por si, não leva o grande público ao cinema. E o processo deafirmação do cinema como instituição forte na esfera pública da mídia fica

150 travado, levando a esta idéia de que não dá para descartar o diagnóstico dosubdesenvolvimento econômico, ou seja, um cinema cuja infraestrutura ejiesença na sociedade estão aquém do que deveria.Na dinâmica que envolve autores, obras e público, este último é o pólofrágil, esgarçado, que impede a consolidação do sistema do cinemabrasileiro na acepção de Antonio Candido (formação da literatura) quePaulo Emílio assume como horizonte não nomeado e que meu texto comentaexplicitamente. Claro que há aí possíveis mudanças de escala quepermitiriam propor a idéia de um cinema "formado" no plano de suatrajetória estética, cinema que encontraria seu momento decisivo no cinemamoderno (a produção da retomada recente confirmaria tal idéia de que ocinema brasileiro "faz sistema", neste sentido mais restrito de autores, obrase críticos). Neste caso, estaríamos descartando a pedra de toque trazidapelo que chamei de esfera pública da mídia, e estaríamos dizendo que, na erada televisão, o cinema virou coisa para poucos. Mas temos de reconhecerque, de fato, não é isto o que ocorre em outros países como Estados Unidose França, ou Índia e os asiáticos emergentes. Ou seja, o cinema tem umpotencial de disseminação social (fundamental para sua relevância naformação do imaginário hegemônico) que aqui não chegou a termo, emboraacumulemos conquistas estéticas e uma diversidade de experiências que

CONTRACAMPO

Page 27: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

compreende o curta-metragem, o longa narrativo-dramático, odocumentário, o filme experimental. Tomando as idéias de José Paulo Paespara a literatura, o que nos falta é a produção média, o cinema deentretenimento forte. Será que a tecnologia digital vai permitir criar talsegmento e dar-lhe força para furar os bloqueios?A questão aqui é que pensar numa cinematografia nacional não permite quevocê se restrinja a unia reflexão e aos problemas do "cinema de arte" que amim, por exemplo, satisfaz e "faz sistema" em diálogo com a cultura dosfestivais e das mostras, das universidades e das cinematecas. Nestesentido, contribuir pua uma resposta positiva à pergunta feita acima, éretomar a postura de Glauber Rocha eni sua aparição no filme Vento do

Leste (1969). de Godard, quando polemizou com o diretor francês e afirmouque o caminho do cinema do terceiro mundo não era propriamente adesconstrução como palavra de ordem geral, mas a construção decinematografias nacionais que exigiriam Outras opções de linguagem, pormais dolorido que isto fosse. Ele foi aí pragmático e verbalizou o que seusfilmes nunca seguiram, pois sempre reafirmaram o experimental, corri levesacenos de comunicação de massa em O dragão da maldade. Foi com estedilema - a distância entre o que a gente pensa, em tese. sobre o que deveriaser feito coletivamente. e o que a gente investe criticamente em debatesque, para nós, são indispensáveis na defesa da qualidade - que terminei, láatrás, o livro corri que começamos esta conversa, O discurso

ciiieiiiatográJïco. O tempo passou, mas certos inipasses se reiteram. 151

Nota dos entrevistadoresIsmail Xavier se refere ao projeto de indexação da revista CINEA.RTE, feitopor Lécio Augusto Ramos, Hernani l-leffner. Lúcia Maria Pereira Bravo eOsmar José Guimarães da Silva para a extinta Embrafilme (1984).

CoNrRAcAMP0

Page 28: ENTREVISTA - Universidade Federal Fluminense

15Z

CON]RACAMPO