entrevista michael pollan veja

4/10/2014 VEJA.com

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ESPECIAL30 de abril de 2008

Saudvel a comida da me

O ensasta americano Michael Pollan,de 53 anos, autor do livro h maistempo na lista dos mais vendidos dojornal americano The New YorkTimes: est h quinze semanasentre os primeiros colocados. InDefense of Food (Em Defesa daComida) a mais recente de suasobras sobre a indstria alimentar.Seu livro anterior, O Dilema doOnvoro, publicado no Brasil pelaEditora Intrnseca, outro best-seller sobre o tema. Pollan radicalem sua averso aos exageros dacincia da nutrio. Ele diz que ahumanidade est negativamenteobcecada pelos benefcios daalimentao sade e que nodeveramos nos pautar unicamente pelos conselhos dos nutricionistasna hora de decidir o que comer. Pollan deu a seguinte entrevista aoreprter Thomaz Favaro de sua casa, na Califrnia:

Veja Por que cada vez mais complicado decidir o que almoar?Pollan Atualmente, os alimentos so vendidos apenas com base emseus benefcios para a sade: um capaz de reduzir seu colesterol,outro tem muitas fibras. Os nutrientes tornaram-se mais importantesque a comida em si. O alimento apenas um intermedirio na entregadestas substncias. Como os nutrientes so invisveis para todos,exceto para o cientista e seu microscpio, escolher o que comertornou-se uma deciso para profissionais, e no para amadores. Tem-se a impresso de que necessrio ter um diploma de bioqumicapara tal escolha, o que no correto. Alm disso, as mensagenscientficas com relao comida so muito confusas. H muitadivergncia entre nutricionistas sobre o que ou no saudvel.

Veja O senhor afirma que estamos vivendo a era donutricionismo. O que quer dizer com isso?Pollan Nutricionismo a atual ideologia em torno da comida. Onutricionismo parte de alguns pressupostos, muitos dos quais nscompartilhamos sem perceber. Acreditamos, por exemplo, napossibilidade de dividir o mundo em nutrientes bons e ruins. Os ruinsprecisam ser removidos da comida, enquanto os bons, quanto mais,melhor. Atualmente o bom o mega-3 e o ruim a gordura trans,mas isto muda constantemente ao longo da histria. Cem anos atrs,as protenas eram os nutrientes ruins, que deveriam ser substitudospor carboidratos. Outra premissa que comemos para manter asade. Alimentamo-nos para melhorar ou piorar nossa sade, eapenas isto. Na verdade, comemos pelas mais diversas razes: porprazer, para socializar com os amigos, para participar de rituaisfamiliares e at para demonstrar nossa identidade cultural e religiosa.A sade s uma das razes, e por isso no pode se tornar nossonico parmetro de escolha dos alimentos.

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Veja H muitos alimentos que, como o ovo, eram consideradosviles da sade e hoje foram reabilitados pela cincia. Por que todifcil encontrar um consenso entre nutricionistas?Pollan Os nutricionistas tm uma tarefa muito difcil. muitocomplicado entender o que se passa no fundo da alma de uma cenouraou de um ovo. Estas comidas so mais do que a soma de seusnutrientes, so verdadeiros sistemas com relaes complexas entresi. Quando se isola um nutriente da comida para ver como funciona, eleno se comporta da mesma maneira que dentro do alimento. Eis umexemplo: o betacaroteno, nutriente presente na cenoura, umantioxidante que se converte em vitamina A. Quando extrado dacenoura e ingerido em forma de plula, no funciona. Tambmsabemos pouco sobre o outro lado da cadeia alimentar o corpohumano. Ainda no se conhece muitos aspectos da digesto humana,como funciona exatamente nosso metabolismo ou como o corpo reagea diferentes acares. A nutrio uma cincia nova e imperfeita, epor isto no deveramos nos apoiar unicamente nela para escolhernossos alimentos. A nutrio est na mesma posio que a cirurgiano sculo XVII: uma cincia jovem e promissora, mas voc noquer ser sua cobaia.

Veja Quais as dificuldades dos estudos de nutrio atuais?Pollan muito difcil estudar as propriedades dos nutrientesdentro de um contexto. No comemos apenas nutrientes, fazemosrefeies completas. Comer tomate com azeite diferente de com-lo sozinho, pois o azeite aumenta a quantidade de antioxidantes dotomate que o organismo capaz de absorver. Alm da combinaode alimentos, preciso levar em conta a quantidade de exerccio queuma pessoa pratica, seu estilo de vida, sua cultura. So estudos muitocomplexos. Cortadores de cana em Cuba comem 6.000 calorias por dia,a maior parte puro acar. Isso faria de qualquer um de nsdiabtico, mas eles no ficam doentes. No ficam sequer gordos, poisesto queimando todo este acar no trabalho. Outro problema aoestudar a alimentao de populaes que difcil conseguirrespostas honestas dos entrevistados. Se voc der um questionriopara uma pessoa escrever o que ela comeu nos ltimos trs meses,ela no vai se lembrar de tudo e vai mentir. As pessoas se esquecemdo que comeram.

Veja Ns possumos instintos naturais de seleo dos alimentos?Pollan Sim, h testes que comprovam isso. Foram entregues acrianas dez tipos diferentes de alimentos integrais, in natura.Algumas vezes elas comiam apenas um tipo de alimento o dia todo,mas ao longo de uma semana, estas crianas, usando apenas seusinstintos naturais, construram uma dieta muito saudvel. umaprova de que em algum lugar, perdido no meio deste turbilho deinformaes sobre o que devemos comer, possumos instintosnaturais para escolher nossos alimentos. Usamos o olfato para saber sea comida est estragada. Comidas muito amargas tambm no nosapetecem, justamente porque a maioria das toxinas tm esse sabor. Amaioria de ns percebe que comer fast-food em grandes quantidadesnos faz sentir mal depois. Ns temos instintos, mas est difcilconfiar neles, sobretudo depois de tanta exposio ao sal e acar.

Veja Por qu?Pollan Atualmente muito fcil manipul-los. Biologicamente,estamos condicionados a acar e gordura. Quando se coletavaalimentos diretamente da natureza, isto no era um problema. Hpoucas fontes de doces disponveis alm de mel e frutas maduras. Nopassado, s era possvel conseguir gordura animal depois de uma boacaada, o que no acontecia todo dia. Mas com a agricultura e a

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pecuria modernas, dar acar e gordura para as pessoas tornou-sefcil demais. Os alimentos processados e fast-foods contm nveisaltssimos de acar, gordura e sal. Os cientistas da comida tambmpodem criar substncias que mentem para o nosso corpo, comoadoantes e gorduras artificiais. A manipulao dos alimentos tornamais difcil confiar em nossos instintos.

Veja H 50 anos, no havia tanta informao detalhada a respeitode nossas comidas, mas tambm no tnhamos tantos problemas desade relacionados alimentao. Estamos mais inteligentes oumais burros em relao nutrio?Pollan Um pouco de cada. Um dos principais guias sobre o que nsdeveramos comer a cultura, que na verdade s uma palavrarebuscada para referir-se a nossas mes. atravs das mes que asabedoria da comida transmitida atravs das geraes. Nsatualmente rejeitamos a culinria em nome desta dietapseudocientfica, e passamos a ouvir cientistas e vendedores decomida ao invs de nossas mes. Ignorar nossa cultura alimentar uma burrice. Quando eu era pequeno, cientistas e o governo americanodiziam que manteiga era ruim para a sade e margarina fazia bem, porser uma gordura vegetal. Minha me, a contragosto, resolveu ouvir asabedoria deles e nos deu margarina. Ela dizia que eles estavamerrados, mas ns dvamos risada. Hoje a cincia provou que elaestava certa. Quando se interpreta a cultura como uma histria dacarochinha, corre-se o risco de perder conhecimentos importantes.Porm nem tudo foi perdido: ns realmente aprendemos algo com osestudos acadmicos. A cincia da nutrio no uma perda detempo. H muitas coisas que sabemos sobre composio dosalimentos e sobre metabolismo que ns no conhecamos hcinqenta anos. Muito desse aprendizado est justamentecomprovando que a sabedoria popular estava certa.

Veja De qual culinria estamos falando? Japonesa, francesa,italiana, brasileira?Pollan No importa. No existe algo como uma culinria tpicamalfica: ela no teria durado at hoje se no mantivesse aspessoas vivas e saudveis. Qualquer comida tradicional melhor quea moderna dieta ocidental. As pessoas podem escolher de acordo com asua preferncia. Mas ateno: ir a um restaurante japons oufrancs no garantia de que voc estar comendo a comidatradicional do pas. Em muitos lugares, serve-se a comida dosbanquetes, que diferente do que aquela nacionalidade comecotidianamente. Muito do que achamos que comida chinesa sopratos servidos em ocasies especiais, pois so repletos de carne.

Veja H cada vez mais produtos disponveis nas prateleiras dossupermercados. Temos realmente mais tipos de comida disponveis?Pollan Sim e no. fato que atualmente podemos encontrardiferentes frutas e vegetais do mundo todo no supermercado, muitomais do que encontraramos cinqenta anos atrs. Por outro lado, aoanalisar as fontes de calorias, nota-se que a nossa dieta est menosdiversificada. Mais de dois teros das calorias consumidas diariamentevm de apenas quatro vegetais: milho, soja, trigo e arroz. Um sculoatrs, havia maior diversidade. Esta aparente diversidade nosupermercado obscurece a realidade de que a diversidade de nossadieta vem encolhendo.

Veja A comida recebe cada vez mais poderes de definio sobrenosso humor e carter. Estamos colocando propriedades mgicas nosalimentos?Pollan A comida tem, de fato, uma dimenso espiritual. umamaneira de conectar-se com o mundo, com as outras espcies com as

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quais convivemos e tambm com outros seres humanos. Umacomunho acontece toda vez que se faz uma refeio com a famliaou amigos. Mas h uma obsesso em obter os nutrientes corretos, euma percepo errnea de que basta comer a comida correta quetudo estar bem com voc e o mundo todo. No to simplesassim. Precisamos voltar a nos preocupar com toda a cadeia produtivados alimentos e no ficarmos obcecados com este ou aquele nutriente.A manuteno da sade deve ser apenas uma conseqncia, e noo objetivo de comer bem. claro que se voc est doente, a comidapode ser um excelente remdio. Mudanas na dieta podem ter umenorme efeito em sua sade. Mas a maioria de ns no est doente,ento no precisamos nos preocupar tanto com isso. H um distrbioalimentar chamado ortorexia, que a obsesso por alimentar-se demaneira saudvel. Acho que muitas pessoas atualmente sofrem comeste mal.

Veja Como a industrializao dos alimentos mudou nossa relaocom a comida?Pollan Ns no sabemos mais de onde vem nossa comida. A cadeia to grande que muita gente acha que a comida vem dosupermercado. Muitas crianas hoje no entendem que a cenoura uma raiz. Elas se perguntam de que parte da planta so estespedaos laranjas dentro de um saco plstico. A indstria alimentarnos desconectou do fato de que dependemos destas outras espcies,com as quais compartilhamos o planeta, para sobreviver.

Veja Quais so as conseqncias desta desconexo?Pollan Ns entregamos a preparao dos alimentos para empresasde grande escala. Isto pode ser conveniente, pode nos ajudar aconseguir uma hora a mais na frente da televiso ou da internet, masestas empresas no cozinham bem. Elas usam muito sal, gordura eacar. A comida se torna altamente calrica e no to nutritiva. Aconseqncia que nos tornamos mais vulnerveis. Somos vtimasmais fceis das manipulaes dos alimentos fast-food e daspropagandas de dietas milagrosas. uma das razes pela qual nstemos tantos problemas de sade relacionados alimentao. Noconfiamos mais em nossas tradies, no sabemos mais comocozinhar. Precisamos tomar de volta a deciso sobre nossas escolhasalimentares e sobre a preparao das refeies.

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