entrevista: leopoldo de meis ciênciacom arte eemoção · 2015. 4. 6. · nosso congresso não tem...

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HUMANIDADES ENTREVISTA: LEOPOLDO DE MEIS Ciência com arte e emoção L eopoldo de Meis, 63 anos, é uma figura excepcional dentro da comunidade ci- entífica brasileira. Médico formado pela Universida- de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor titular de Bioquímica no Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ e pesquisador dos mais respeita- dos em sua área, ele publica sem cessar nas mais importantes revistas científi- cas internacionais de Bioquímica. Suas linhas de pesquisa: Mecanismos de transdução de energia em siste- mas biológicos, transporte ativo de íons, e síntese e hidrólise de ATP (adenosina trifosfato). Até aí, temos traços de um currícu- lo que não o distinguiria muito de outros bons pesquisadores brasileiros. O que então singu- lariza esse brasileiro e carioca, nascido na Itália e trazido para o Brasil em decorrência da bus- ca de seu pai - músico de for- mação erudita, violoncelista - por melhores condições de vida no pós-guerra, é seu esforço per- sistente para tornar a ciência mais compreensível. E aqui en- tenda-se a ciência tanto como um corpus global de conheci- mentos quanto em sua condi- ção de poderosa prática social. Trata-se de torná-Ia mais com- preensível, primeiro, para si mes- mo. Porque é de seu desejo pes-. soal de compreensão que sem dúvida De Meis fala, ainda que assim termine por abarcar seus pares, quando diz "como seria bom se fosse permitido a cada especialista trabalhar também na claridade dos demais': Em segundo - e talvez mais funda- mental-lugar, seu esforço diri- 88 . NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2())1 PESQUISA FAPESP ge-se para reduzir a opacidade da ciên- cia para os não-especialistas, para a so- ciedade em geral. E é por força desse objetivo admirável que de Meis inclui "Educação, gestão e difusão para Ciên- cia" entre suas linhas de pesquisa e pro- cura, incansavelmente, formas de tradu- zir a ciência, com emoção, para os leigos. Essas buscas o conduziram, por um tempo, à política científica, depois, a experiências educacionais e, mais re- centemente, a um diálogo com a arte e com outras linguagens de comunica- ção fácil. O resultado disso são livros em quadrinhos sobre ciência, uma peça de teatro, um filme de divulgação cien- tífica com belíssimas e vertiginosas ima- gens produzidas por computação grá- fica e novas idéias que jorram de sua imaginação. O texto que se segue con- tém apenas os trechos principais da entrevista que Leopoldo de Meis con- cedeu a Pesquisa FAPESP, em sua lin- guagem viva, apaixonada, coloquial, atravessada por gírias - carioca, enfim. • Embora já fosse há muito tem- po um pesquisador respeitado em sua área, o senhor tornou-se bem mais conhecido depois da publi- cação de seu livro Perfil da Ciên- cia Brasileira. Como começou seu interesse por esses estudos? - Houve uma época em que fiz política científica. Hoje, não faço mais, embora respeite mui- to as pessoas que sabem fazer isso. Eu não tenho vocação. Mas o trabalho foi feito em 1988, 1989, e foi publicado em 1990. Eu mostrei os dados do cresci- mento da pós-graduação no Brasil, comparando com os da- dos externos que consegui. Mos- trei o tempo gasto, publicações por ano, a qualidade das revis- tas em que se publicava, seu im- pacto, etc. E o resultado dessas comparações é que, na realida- de, não havia nenhuma diferen- ça significativa entre os que fize- ram pós-graduação no Brasil e os que fizeram lá fora. Em rela- ção ao pós-doe, sim, fazia uma grande diferença ir lá fora. Gibi sobre termodinâmica: ensino mais divertido

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Page 1: ENTREVISTA: LEOPOLDO DE MEIS Ciênciacom arte eemoção · 2015. 4. 6. · nosso Congresso não tem a menor ... samba do crioulo doido. • E qual é a sua preocupação específica

HUMANIDADES

ENTREVISTA: LEOPOLDO DE MEIS

Ciência com arte e emoção

Leopoldo de Meis, 63 anos,é uma figura excepcionaldentro da comunidade ci-entífica brasileira. Médicoformado pela Universida-

de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),professor titular de Bioquímica noInstituto de Ciências Biomédicas daUFRJ e pesquisador dos mais respeita-dos em sua área, ele publica sem cessarnas mais importantes revistas científi-cas internacionais de Bioquímica. Suaslinhas de pesquisa: Mecanismos detransdução de energia em siste-mas biológicos, transporte ativode íons, e síntese e hidrólise deATP (adenosina trifosfato). Atéaí, temos traços de um currícu-lo que não o distinguiria muitode outros bons pesquisadoresbrasileiros. O que então singu-lariza esse brasileiro e carioca,nascido na Itália e trazido parao Brasil em decorrência da bus-ca de seu pai - músico de for-mação erudita, violoncelista -por melhores condições de vidano pós-guerra, é seu esforço per-sistente para tornar a ciênciamais compreensível. E aqui en-tenda-se a ciência tanto comoum corpus global de conheci-mentos quanto em sua condi-ção de poderosa prática social.

Trata-se de torná-Ia mais com-preensível, primeiro, para si mes-mo. Porque é de seu desejo pes-.soal de compreensão que semdúvida De Meis fala, ainda queassim termine por abarcar seuspares, quando diz "como seriabom se fosse permitido a cadaespecialista trabalhar tambémna claridade dos demais': Emsegundo - e talvez mais funda-mental-lugar, seu esforço diri-

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ge-se para reduzir a opacidade da ciên-cia para os não-especialistas, para a so-ciedade em geral. E é por força desseobjetivo admirável que de Meis inclui"Educação, gestão e difusão para Ciên-cia" entre suas linhas de pesquisa e pro-cura, incansavelmente, formas de tradu-zir a ciência, com emoção, para os leigos.

Essas buscas o conduziram, por umtempo, à política científica, depois, aexperiências educacionais e, mais re-centemente, a um diálogo com a artee com outras linguagens de comunica-

ção fácil. O resultado disso são livros emquadrinhos sobre ciência, uma peçade teatro, um filme de divulgação cien-tífica com belíssimas e vertiginosas ima-gens produzidas por computação grá-fica e novas idéias que jorram de suaimaginação. O texto que se segue con-tém apenas os trechos principais daentrevista que Leopoldo de Meis con-cedeu a Pesquisa FAPESP, em sua lin-guagem viva, apaixonada, coloquial,atravessada por gírias - carioca, enfim.

• Embora já fosse há muito tem-po um pesquisador respeitado emsua área, o senhor tornou-se bemmais conhecido depois da publi-cação de seu livro Perfil da Ciên-cia Brasileira. Como começou seuinteresse por esses estudos?- Houve uma época em quefiz política científica. Hoje, nãofaço mais, embora respeite mui-to as pessoas que sabem fazerisso. Eu não tenho vocação. Maso trabalho foi feito em 1988,1989, e foi publicado em 1990.Eu mostrei os dados do cresci-mento da pós-graduação noBrasil, comparando com os da-dos externos que consegui. Mos-trei o tempo gasto, publicaçõespor ano, a qualidade das revis-tas em que se publicava, seu im-pacto, etc. E o resultado dessascomparações é que, na realida-de, não havia nenhuma diferen-ça significativa entre os que fize-ram pós-graduação no Brasil eos que fizeram lá fora. Em rela-ção ao pós-doe, sim, fazia umagrande diferença ir lá fora.

Gibi sobre termodinâmica:ensino mais divertido

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• Mas a essa altura, não está na hora defortalecer o pós-doe internamente?- Ah, claro. Tem uma quantidadeenorme de grupos brasileiros de pes-quisa que não deve absolutamentenada para ninguém. Podem-se contardezenas desses grupos que são de al-tíssimo nível para oferecer pós-doe.

• Haveria ainda no país um entendi-mento insuficiente de qual é o papel daciência para o desenvolvimento nacional?- Eu acho que sim. A maior parte donosso Congresso não tem a menoridéia do que é ciência. E não só ele. Háuns poucos anos fiz um trabalho ba-seado em entrevistas com os técnicosdo CNPq, e a filosofia vigente era queciência básica devia ser feita somentelá fora, porque não tínhamos condi-ções econômicas para desenvolvê-Iaaqui. Deveríamos fazer ciência aplica-da. Ora, isso é coisa de quem realmen-te não tem a menor idéia do que sejaciência. Não existe ciência e ciênciaaplicada ... Quem começa a classificarassim, comigo já leva nota zero. Gos-to, nesses casos, de citar Pasteur, quedizia que não há ciência básica e apli-cada, mas o conhecimento e sua utili-zação. Eu pergunto como é que vocêvai classificar o projeto Genoma daXylella? Vai dizer que é ciência aplica-da? É um somatório de coisas, in-cluindo formação de gente.

.A que se deve essa visão?Acho que a ciência é muito nova noBrasil. Alguns países, pouco tempodepois do começo da ciência moder-na, a incorporaram logo, em termosnão só econômicos, mas culturais. Eaté agora 70% ou 80% da ciência éfeita nesses países precursores.

• Enquanto nós estamos ali com 1,2%da produção científica mundial.- Mas isso é espetacular, se você con-siderar que antes do desenvolvimentoda pós-graduação o Brasil inteiro pu-blicava 50, 60 trabalhos, em todas asáreas do conhecimento. Portanto, aciência no Brasil é muito nova ...

• Ou seja, a ciência só começa a se ins-titucionalizar no Brasil no pós-guerra.

- Sim, e portanto é um traço cultu-ral novo, que ganha um vigor enormeapós a pós-graduação, a melhor bola-ção jamais feita no Brasil. Ela cresceude uma forma vigorosa, e é funda-mental para o país nesse processo deglobalização.

• Qual é, aliás, a sua análise sobre nos-sa articulação com as tendências, as li-nhas dominantes de pesquisa nessemundo globalizado?- Estamos agora cada vez mais expos-tos às coisas que acontecem em outrospaíses. Coisas culturais, econômicas ...Estamos num momento muito deli-cado, porque em qualquer lugar domundo começa-se a ter idades cultu-rais, idades de conhecimento, distintas.São grupos populacionais enormescom grandes discrepâncias de exposi-ção, aquisição e entendimento do quenós, espécie humana, já descobrimos.

• E isso explica suas preocupações emtorno da educação e difusão científicas.- Sim, porque enquanto estamos fa-lando do desconhecimento sobre ocarro, o computador, etc., é uma coisa,mas quando você passa para outrosníveis, por exemplo, para a medicaçãoda alma, digamos assim, a coisa ficacomplicada. Hoje pode-se ir à farmá-cia, tomar um Prozac e medicar a alma.Ora, lidar com o relógio e não enten-dê-lo, tudo bem, mas quando come-ça-se a dispor de coisas que mexemcom toda a estrutura do indivíduo enão se as entende, isso pode dar numsamba do crioulo doido.

• E qual é a sua preocupação específicanesse âmbito?- É o conflito humano-tecnológicoque está surgindo. Os conceitos mile-nares de paternidade, maternidade, etc.estão mudando com esse negócio deinseminação artificial, clonagem ...Há-bitos milenares estão mudando deforma muito rápida. E se as pessoasnão têm a possibilidade de entender oalcance das mudanças, elas estarãonão só alienadas de seu próprio uni-verso social, mas sofrendo. Não esta-mos lidando com algo só econômico,mas com o que é humano, e o terrormaior é que os homens das ciênciasexatas e das humanas não se falam.

• Daí o senhor defende um processo deeducação e de difusão constantes dessasconquistas novas da ciência e da tecno-logia para que a sociedade se preparepara as mudanças que estão em curso.- Isso é muito ambicioso. Antes depensar tão longe,penso no entendimen-to entre os próprios cientistas. Veja, omatemático tem uma visão do univer-so muito precisa, mas muito distanteda visão que um biólogo tem. Muitodiferente da visão de um físico, de umquímico. A quantidade de conhecimen-to que temos é tamanha, que é impos-sível uma pessoa controlar todas asáreas do conhecimento. Até um século,dois, o volume de conhecimento era

Lavoisier em quadrinhos: à frente de umasilenciosa revolução nos laboratórios

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pequeno e o cérebro podia absorver,digerir um pouquinho de cada coisa eisso tudo se misturava. Gosto do exem-plo de Descartes: era um grande filó-sofo, um grande matemático (as coor-denadas cartesianas) e um grandebiólogo (descobriu a hipófise). Com aenorme quantidade de pesquisas, hoje,quando só nas revistas indexadas pu-blica-se anualmente 1,2 milhão de tra-balhos, isso é impossível. A produçãode novos dados acontece numa velo-cidade avassaladora, porque a quanti-dade de pessoas no planeta que traba-lha em ciência aumentou de maneiraincrível: no começo dos 1900 se calcu-lava algo em torno de 2 mil, 3 mil pes-soas, e hoje o número estimado é aci-ma de 20 milhões. A velocidade daprodução obrigou a superespecializa-ção: o que fazemos é cavar em pro-fundidade e um especialista não con-segue entender o universo do outro.

• E o que poderia articulá-losi- Uma nova linguagem que permi-tisse às diversas ciências se comunicarcom rapidez e clareza. Se conseguísse-mos cada um trabalhar também na cla-ridade dos demais, acho que encon-traríamos saídas e entenderíamos ouniverso muito mais depressa.

• Mas aí não seriam os 20 milhões deespecialistas que entenderiam um pou-co mais de tudo enquanto os outros fi-cariam cada vez mais à margem?- Primeiro os cientistas. Isso já pro-vocaria um grande salto. O outro pe-daço, onde eu também procuro traba-lhar, é diferente. Veja, quando se falade ciência nos jornais, revistas, etc., namaior parte das vezes aborda-se o as-pecto muito importante da aplicaçãoda ciência, de sua utilidade, de sua im-portância para a economia de umpaís, para o desenvolvimento econô-mico, social, o que é absolutamentecorreto, mas raramente fala-se sobreum outro lado que é o do desejo do ho-mem de entender o universo. Essa é aparte lúdica da ciência, suas motivaçõesoriginais e, depois, as emoções associa-das com a ciência. Isso ninguém ensi-na e por isso as nossas aulas de ciênciasão tão chatas.

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• Mas as aulas não são chatas tambémpela falta de motivação dos professores?- Sem dúvida isso contribui. Mas, ti-rando isso, o fato é o seguinte: só mos-tramos o lado utilitário da ciência, e ooutro lado, igualmente importante efundamental para o menino em forma-ção, fica esquecido. Ora, um meninode 7, 10, 15 anos, excepcionalmentepode até estar interessado em ProdutoInterno Bruto, mas está muito mais in-teressado no que ele gosta e no quenão gosta. E mostrar que a ciência trazalgo muito maior, por exemplo, enten-der o universo, pode ser, para eles, umnegócio importante.

• O seu trabalho teatral com o métodocientífico se insere exatamente aí.- Exatamente aí. Começou comoum trabalho de pesquisa. Queria vercomo é que as crianças viam a ciênciae pedi que desenhassem o cientista. Apartir de uma amostra grande feita noBrasil e nos Estados Unidos, vimosque o desenho não muda desde que acriança tem 6 ou 7 anos até ela entrarna universidade. É sempre o mesmodesenho machista, não tem mulherfazendo ciência ... A coisa passa peloestereótipo do homem sempre solitá-rio, com a cara meio entediada, nãohá comunicação. Mais de 30% dessesdesenhos mostravam pessoas quevocê não convidaria para tomar cháem sua casa. Umas caras horríveis,loucos, desvairados ... Depois, em ou-tros trabalhos, perguntamos a univer-sitários o que era ciência. Escolhemosos que tinham acabado de passar novestibular de Medicina, porque é omais difícil e que requer mais conhe-cimento da ciência que se ensina nocolégio, e os meninos da Escola de Be-las-Artes. Esperava respostas diferen-tes. Nada! Todos diziam que ciência éum negócio lógico e não precisa decriatividade, porque se descobre o quejá está aí.

• É só observação.- É. Lógica, observação, precisão ...nenhuma emoção, nenhum senti-mento. Aí perguntei "o que é arte?", ediziam o contrário: é emoção, criati-vidade, criar coisas novas, universos.

• Mas de onde vem essa visão?- Não sei. Eu pedi a um colega meudos Estados Unidos, Harvey Penefsky,um dos descobridores da transduçãomitocondrial, para fazer a mesma coi-sa no College Siracuse, no segundo anode college, quando o menino tem quetomar sua decisão de carreira. O re-sultado foi idêntico. Portanto, não éuma qualidade brasileira essa visãodistorcida. E, então, comecei a pensarde que maneira poderia tentar fazeralguma coisa sobre isso e fui criticadopor muitos colegas (fui elogiado poroutros também), que diziam: "Comovocê vai fazer sociologia da ciência?':Fiquei angustiado porque realmentenão tinha leitura suficiente disso.

• Isso foi nos anos 1980, não?- Nos anos 80. Naquela época eu jo-gava bastante bola, e quando se jogabola, você está correndo, mas de vezem quando está parado e, enquanto aspernas estão correndo, a cuca funcio-na. Aí fiquei muito angustiado, até quedisse: "Besteira, cara! Desde os 18 anoseu faço sociologia da ciência, estou in-teragindo com pessoas de ciência, voufazer!" É minha tribo, são meus índios,qual é? Aí comecei a fazer. Se certo,errado, não sei, mas alguma coisa estáacontecendo. E uma das coisas que eucomecei há muito tempo foi a darcursos para meninos de colégio quan-do eles entram em férias. Um negóciomaravilhoso. No princípio, eu mesmodava o curso, mas desde o fim dos anos80 os pós-graduados ficaram muitoentusiasmados com isso. Então, o es-quema é assim: um professor pegaum tema, os pós-graduados durante aépoca letiva preparam um curso pu-ramente experimental, cuja caracte-rística não é fazer o menino ver, masdescobrir. São 80, 90 meninos, emcada rodada. Depois, os pós-gradua-dos começaram a reclamar comigoporque as professoras criavam caso,então elas vieram. Umas 50 por ano.Enfim, temos um bom programa dosmeninos de baixa renda que traba-lham em laboratório. Escolho um me-nino que tem que ser bom no curso.Boto no laboratório para trabalharcom o pós-graduado que passa a ser o

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tutor dele, tem que cuidar, acompa-nhar o boletim, explicar os deveres decasa, tudo.

• E que idade têm esses meninos?- Em torno de 15, 16 anos. Em com-pensação, o menino funciona comouma espécie de técnico, ajuda o pós-graduado a trabalhar. E mostra para opós-graduado uma realidade, extre-mamente cruel muitas vezes, a quenormalmente ele não é exposto. E oobjetivo não é o menino ficar melhor-zinho, é entrar para uma faculdadepública. E já são mais de 40 que con-seguiram isso, tem um ótimo, brilhan-te, que está fazendo doutorado.

• Depois veio o teatro mesmo.- Sim. Os cursos ainda não me satis-faziam. E aí pensei, outra vez jogandobola: a linguagem da arte é muito im-portante se você quer transmitir emo-ção. O cientista tem os seus momen-tos de emoção, o problema é comotransmitir essa emoção. Os bons cien-tistas, os que se destacam, falam des-sas emoções, falam da intuição .

• E isso levou a quê?- Eu não tinha a menor idéia do quefazer. Então comecei a ir a tudo quan-to era palestra que aparecia sobre "ci-ência e arte". A maior parte era inte-ressante, algumas brilhantes, outraschatas. Mas o fato é que em nenhumadelas eu entendi qual é a relação entreciência e arte. Era bonito, mas não ti-nha nada a ver "habeas corpus" com"corpus christi". Então eu disse "bah,vou tentar aprender a linguagem dasartes': E tem uma colega maravilhosada escola de Belas-Artes, a LourdesBarreto, com quem comecei a conver-sar. Primeira coisa que percebi: o ma-terial de ciência que vai para as esco-las é chato pra caramba; dois: é feio;três: é difícil de entender; quatro: nãofala a linguagem dos garotos. Aí lem-brei que quando eu era garoto adora-va o almanaque. Quando chegava ofim do ano tinha três coisas maravi-lhosas que aconteciam: primeiro, fé-rias, ficava livre do colégio, ah, que ma-ravilha, ficar livre daquela porcaria.Número dois, ia chegar o Natal, ia ter

festa. E, número três, apareciam os al-manaques. Eu adorava gibi, PríncipeValente, Tarzan ... Aí pensei, "vou fazerum". Procurei com meus colegas daBelas-Artes um cara bom para fazergibi, eles indicaram o Diucênio Ran-gel e fizemos O Método Científico.

• Quando foi publicado?- A primeira edição foi em 1996. Fo-ram 4 mil exemplares, feitos comapoio da Academia Brasileira de Ciên-

aquilo que estaria nos slides". Os estu-dantes de pós-graduação ficaram ani-mados, começaram a inventar coisasmaravilhosas para fazer com o proje-tor, roupas, papéis. E aí nós fizemos.Os meninos adoraram, bateram pal-mas de pé, gritaram ... Depois, a Uni-versidade Mackenzie soube da histó-ria, pediu que levássemos para SãoPaulo. O pessoal do Sul chamou, fize-mos uma turnê começando por PortoAlegre, e de repente estavam 8,5 mil

De Meis:"O cientista tem seus momentos de emoção; o problema é como transmitir"

cias, do CNPq, e distribuídos gratui-tamente nas escolas, graças ao apoioda Fundação Vitae. Depois, foram mais4 mil exemplares na segunda edição, eaí a FAPESP foi preciosa: comproumetade, distribuiu nas escolas. De-pois, em 1998, veio no mesmo estilo"A respiração e a P lei da termodinâ-mica ou ... a alma da matéria': Estoutentando fazer um agora sobre a his-tória das vacinas.

• Mas como aconteceu o teatro?- Foi uma coisa gozada. Toda vezque eu faço o curso de férias, trago umconferencista que possa mexer com acabeça dos meninos. Aí um conferen-cista programado não pôde vir e opessoal disse: "Você vai dar a palestra,Leopoldo", e eu, "Deixa estar, vamosfazer o seguinte: em vez de apresentarslides, eu falo e vocês representam

crianças dentro do anfiteatro na Uni-versidade Federal do Rio Grande doSul (UFRGS). A cada vez que viajáva-mos, íamos mudando, botando maismúsica, mais figurino. Fomos a SantaMaria, Pelotas, Caxias do Sul, Vitória,São Carlos, Campinas e, há pouco, SãoPaulo de novo, na Escola Paulista(Universidade Federal de São Paulo,Unifesp). Agora as sociedades brasilei-ras de Bioquímica e de Química nosconvidaram para apresentar. E nós va-mos. Fomos a diversos colégios, aoPedro Il, etc., sempre em grupo de 13a 16 pessoas, entre professores e pós-graduados. Agora, finalmente, o queestou mais envolvido é com compu-tação gráfica e cinema. Mitocôndriaem três atos, filme de animação é o pe-daço mais novo dessa jornada. Anossa sala de cinema no laboratórioacabou de ser montada. •

PESQUISA FAPESP . NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001 • 91