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ENTREVISTA Foto Paulo Rodrigues A entrevista do mês em que se comemora o dia das crianças traz para você um pouco sobre a arte de contar histórias. Por isso, conversamos com a querida e sempre solí- cita Bia Bedran, compositora, cantora, atriz, .escritora, educadora musical e contadora de histórias. Como você se prepara para contar uma história? Primeiramente leio o texto inúmeras vezes, muitas mesmo. Até que o texto esteja bem firme na minha memória, mas uma memó- ria mais afetiva do que racional, pois não é preciso "decorar" o texto como se fosse no teatro. O importante é gostar da história e querer muito passá-Ia adiante. Isso é um bom começo ... Qual a importância das histórias para o desenvolvimento infantil? As histórias são como um espelho onde o indivíduo se reconhece ou não. Ela fornece parâmetros para você medir até que pon- to você conseguiria seguir como aquele tal personagem seguiu ou pelo menos pensar o quanto seria impossível você agir assim ... Considero as histórias como um patrimônio imaterial da humanidade, portanto, funda- " j:' ~. ~' ",E mentais para o crescimento e o auto-co- nhecimento das pessoas, não somente das crianças. Qual a duração ideal de uma história? Para meu modo de atuar, elas devem ter no máximo uns 7 minutos de duração, de modo que junto 6 histórias com diferentes temas e formas de contar gerando um mini espetá- culo de 45 minutos aproximadamente. Mas isso pode variar muito de acordo com cada projeto de criação e pesquisa em que estou inserida. A escolha das histórias deve ser baseada no público ou no envolvimento do contador com a história? É impossível um contador sem o seu ouvinte e vice versa. Também não é possível contar bem uma história sem que o contador es- teja intimamente conectado (sem internet ... rsrs) com o enredo escolhido. Portanto é uma estrada de mão dupla: a percepção do outro e de si mesmo no processo criativo tanto da escolha quanto da interpretação do conto . Quais as principais etapas do trabalho de um contador? Ler muito, encontrar histórias que toquem profundamente seu coração; dizer em voz alta o texto já adaptado para seu estilo de contar; não desejar ser um ator no momen- to da narrativa, mas sentir-se como um ins- trumento pelo qual a narrativa se dá; gostar muito de fazer isso e não ter cansaço ao re- petir dezenas ou centenas de vezes o conto, pois sempre será diferente o encontro do conto com o ouvinte. Contoção de histórias teatralizadas ou musicalizadas conseguem envolver mais os ouvintes? Eu acho que o simples fato de você se pro- por a contar e dar voz às palavras antes si- lenciosas de uma história já implica numa performance, num ato interpretativo, mes- mo que parado, sentado numa cadeira, apenas usando as mãos, os olhos, a alma e a voz. Se colocar uma pequena intervenção musical, amplia esta comunicação ao extre- mo. Os ouvintes não resistem ... Ouvir histórias desperta o interesse pela leitura? Com certeza! Ao contrário do que possa parecer, de que uma criança se sente rea- lizada ao ouvir e ver um contador contar e interpretar um conto, ela corre em direção ao livro que foi a fonte daquela performan- ce. Ela precisa encontrar a palavra impressa para realmente registrar a beleza daquele momento mágico que foi vivenciado. O que é fundamental para se contar uma história? Além de tudo o que falei e acima de tudo, gostar da história e ter vontade de passar adiante aquele encantamento todo que uma história possa ter proporcionado. Em geral, a suo pIa teia é composta predominantemente por crianças? Sabe que não? Na verdade a maioria é com- posta de educadores, pais e mães, enfim, adultos que estão ao lado das crianças. O trabalho que faço tem o papel de formação de platéia, de repasse de fazeres artísticos e também de sensibilizar adultos e crianças através da poesia e da ludicidade. Toda história infantil deve terminar com "e foram felizes para sempre"? Claro que não. Este jargão tem sido até ques- tionado por vários escritores e contadores. Eu mesma gosto de dizer, por exemplo, "e eles foram quase felizes para sempre"; ou, "e eles quase foram felizes para sempre"; ou, "e eles foram felizes para quase sempre" ... Você acha que é possível aprender a ser um contador de histórias ou é uma vocação que deve ser desenvolvida? Claro que é possível aprender a ser um con- tador de histórias, pois todos nós nascemos para contar nossa história e nossa passa- gem pelo mundo. Todas as pessoas, mesmo sem saber, estão deixando suas histórias por onde passam. "Passas sem ver teu vigia, catando a poesia, que entornas no chão". Chico Buarque respondeu muito bem a esta última pergunta: todos nós temos histórias e as contamos sem nem notar. Mas há um vigia que vai cuidar especialmente disso, de não deixar que esta história coletiva se per- ca na poeira dos caminhos. Os contadores de histórias são guardiões da memória, são jardineiros do tempo. Somos todos, se qui- sermos. Assista ou reveja alguns filmes que utilizam a história oral como fonte de narrativa.

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Page 1: ENTREVISTA - Bia Bedranbiabedran.com.br/wp-content/uploads/2011/09/digitalizar...ENTREVISTA Foto Paulo Rodrigues A entrevista do mês em que se comemora o dia das crianças traz para

ENTREVISTA

Foto Paulo Rodrigues

A entrevista do mês em que se comemorao dia das crianças traz para você um poucosobre a arte de contar histórias. Por isso,conversamos com a querida e sempre solí-cita Bia Bedran, compositora, cantora, atriz,

.escritora, educadora musical e contadora dehistórias.

Como você se prepara para contar umahistória?Primeiramente leio o texto inúmeras vezes,muitas mesmo. Até que o texto esteja bemfirme na minha memória, mas uma memó-ria mais afetiva do que racional, pois nãoé preciso "decorar" o texto como se fosseno teatro. O importante é gostar da históriae querer muito passá-Ia adiante. Isso é umbom começo ...

Qual a importância das histórias para odesenvolvimento infantil?As histórias são como um espelho onde oindivíduo se reconhece ou não. Ela forneceparâmetros para você medir até que pon-to você conseguiria seguir como aquele talpersonagem seguiu ou pelo menos pensaro quanto seria impossível você agir assim ...Considero as histórias como um patrimônioimaterial da humanidade, portanto, funda-

" j:' ~.

~' • ",Ementais para o crescimento e o auto-co-nhecimento das pessoas, não somente dascrianças.

Qual a duração ideal de uma história?Para meu modo de atuar, elas devem ter nomáximo uns 7 minutos de duração, de modoque junto 6 histórias com diferentes temase formas de contar gerando um mini espetá-culo de 45 minutos aproximadamente. Masisso pode variar muito de acordo com cadaprojeto de criação e pesquisa em que estouinserida.

A escolha das histórias deve ser baseadano público ou no envolvimento do contadorcom a história?É impossível um contador sem o seu ouvintee vice versa. Também não é possível contarbem uma história sem que o contador es-teja intimamente conectado (sem internet ...rsrs) com o enredo escolhido. Portanto éuma estrada de mão dupla: a percepção dooutro e de si mesmo no processo criativotanto da escolha quanto da interpretaçãodo conto .

Quais as principais etapas do trabalho deum contador?Ler muito, encontrar histórias que toquemprofundamente seu coração; dizer em vozalta o texto já adaptado para seu estilo decontar; não desejar ser um ator no momen-to da narrativa, mas sentir-se como um ins-trumento pelo qual a narrativa se dá; gostarmuito de fazer isso e não ter cansaço ao re-petir dezenas ou centenas de vezes o conto,pois sempre será diferente o encontro doconto com o ouvinte.

Contoção de histórias teatralizadas oumusicalizadas conseguem envolver mais osouvintes?Eu acho que o simples fato de você se pro-por a contar e dar voz às palavras antes si-lenciosas de uma história já implica numaperformance, num ato interpretativo, mes-mo que parado, sentado numa cadeira,apenas usando as mãos, os olhos, a alma ea voz. Se colocar uma pequena intervenção

musical, amplia esta comunicação ao extre-mo. Os ouvintes não resistem ...

Ouvir histórias desperta o interesse pelaleitura?Com certeza! Ao contrário do que possaparecer, de que uma criança se sente rea-lizada ao ouvir e ver um contador contar einterpretar um conto, ela corre em direçãoao livro que foi a fonte daquela performan-ce. Ela precisa encontrar a palavra impressa

para realmente registrar a beleza daquelemomento mágico que foi vivenciado.

O que é fundamental para se contar umahistória? Além de tudo o que falei e acimade tudo, gostar da história e ter vontade depassar adiante aquele encantamento todoque uma história possa ter proporcionado.

Em geral, a suo pIa teia é compostapredominantemente por crianças?Sabe que não? Na verdade a maioria é com-posta de educadores, pais e mães, enfim,adultos que estão ao lado das crianças. Otrabalho que faço tem o papel de formaçãode platéia, de repasse de fazeres artísticose também de sensibilizar adultos e criançasatravés da poesia e da ludicidade.

Toda história infantil deve terminar com "eforam felizes para sempre"?Claro que não. Este jargão tem sido até ques-tionado por vários escritores e contadores.

Eu mesma gosto de dizer, por exemplo, "eeles foram quase felizes para sempre"; ou, "eeles quase foram felizes para sempre"; ou, "eeles foram felizes para quase sempre" ...

Você acha que é possível aprender a ser umcontador de histórias ou é uma vocação quedeve ser desenvolvida?Claro que é possível aprender a ser um con-tador de histórias, pois todos nós nascemospara contar nossa história e nossa passa-gem pelo mundo. Todas as pessoas, mesmosem saber, estão deixando suas históriaspor onde passam. "Passas sem ver teu vigia,catando a poesia, que entornas no chão".Chico Buarque respondeu muito bem a estaúltima pergunta: todos nós temos históriase as contamos sem nem notar. Mas há umvigia que vai cuidar especialmente disso, denão deixar que esta história coletiva se per-ca na poeira dos caminhos. Os contadoresde histórias são guardiões da memória, sãojardineiros do tempo. Somos todos, se qui-sermos.

Assista ou reveja alguns filmes que utilizama história oral como fonte de narrativa.