entre panos e modas de nossa senhora de desterro

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Luíza Helena Freitas de Oliveira Entre panos e modas de Nossa Senhora de Desterro “Andei guardando, durante uns trinta anos, uma vintena de cadernos com apontamentos colhidos nos arquivos do Palácio e da Prefeitura, bem como na coleção de jornais da segunda metade do século passado (XIX SCS) que, em- bora desfalcada, constitui ainda o mais precioso manancial de informações de todo o gênero sobre a cidade de Desterro e sua vida. Andei guardando porque sempre pensei em escrever esta obra Nossa Se- nhora do Desterro e não outras, com as quais contribuí para as letras histó- ricas de Santa Catarina e para adquirir um modesto renome, maior do que o merecido, de um estudioso da nossa História. Este foi, em verdade, o livro que eu sempre quis escrever, não passando “Medicina, Médicos e Charlatães do Passado” e “Casas, Sobrados e Chácaras” de simples balões de ensaio. Faltou-me, entretando, tempo para fazê-lo”. E Esta confissão de Oswaldo Rodri- gues Cabral (1903-1978) revela mui- tas verdades sobre este pesquisador da terra catarinense, considerado um dos mais atuantes historiadores bra- sileiros de sua época: primeiro, cor- robora a descrição de Santos, de que foi “um autodidata como historiador, folclorista e antropólogo”, e segundo, justifica o nível de detalhamento e or- ganização do paciente estudo realiza- do sobre a história florianopolitana, por ele registrada, em sua maioria, em manuscritos, com a colaboração de sua esposa, Dona Olívia. “Esta notícia, história autêntica, sincera e pitoresca da Vila e depois Cidade de 'Nossa Senhora do Des- terro da Ilha de Santa Catarina', é a crônica modesta e simples de gente que não costuma fregiientar as pá- ginas da História, ao lado de figuras imponentes de farda e anel”. É com estas palavras de Oswaldo Cabral que o livro Nossa Senhora do Desterro se inicia. Lançado em 1979, a obra é, de certa forma, uma história da vida privada da ilha catarinense, o que antecede mesmo o grande proje- to editorial francês, datado de 1985, dirigido por Philippe Ariês e George Duby. Dentre os hábitos dos moradores locais, Cabral descreve as vestimentas e adornos utilizados entre os séculos XVII e XIX de forma detalhada e com um toque de bom humor, pró- prio dos escritos do autor, permitin- do-nos considerá-lo o primeiro autor catarinense a narrar e discutir os cos-

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Page 1: Entre panos e modas de Nossa Senhora de Desterro

Luíza Helena Freitas de Oliveira

Entre panos e modas de

Nossa Senhora de Desterro

“Andei guardando, durante uns trinta anos, uma vintena de cadernos com

apontamentos colhidos nos arquivos do Palácio e da Prefeitura, bem como na

coleção de jornais da segunda metade do século passado (XIX — SCS) que, em-

bora desfalcada, constitui ainda o mais precioso manancial de informações de

todo o gênero sobre a cidade de Desterro e sua vida.

Andei guardando porque sempre pensei em escrever esta obra — Nossa Se-

nhora do Desterro — e não outras, com as quais contribuí para as letras histó-

ricas de Santa Catarina e para adquirir um modesto renome, maior do que o

merecido, de um estudioso da nossa História.

Este foi, em verdade, o livro que eu sempre quis escrever, não passando“Medicina, Médicos e Charlatães do Passado” e “Casas, Sobrados e Chácaras” de

simples balões de ensaio. Faltou-me, entretando, tempo para fazê-lo”.

E

Esta confissão de Oswaldo Rodri-

gues Cabral (1903-1978) revela mui-

tas verdades sobre este pesquisadorda terra catarinense, considerado um

dos mais atuantes historiadores bra-

sileiros de sua época: primeiro, cor-

robora a descrição de Santos, de quefoi “um autodidata como historiador,folclorista e antropólogo”, e segundo,justifica o nível de detalhamento e or-

ganização do paciente estudo realiza-

do sobre a história florianopolitana,por ele registrada, em sua maioria,em manuscritos, com a colaboraçãode sua esposa, Dona Olívia.

“Esta notícia, história autêntica,sincera e pitoresca da Vila e depoisCidade de 'Nossa Senhora do Des-

terro da Ilha de Santa Catarina', é a

crônica modesta e simples de gente

que não costuma fregiientar as pá-ginas da História, ao lado de figurasimponentes de farda e anel”.

É com estas palavras de Oswaldo

Cabral que o livro Nossa Senhora do

Desterro se inicia. Lançado em 1979,

a obra é, de certa forma, uma história

da vida privada da ilha catarinense, o

que antecede mesmo o grande proje-to editorial francês, datado de 1985,

dirigido por Philippe Ariês e GeorgeDuby.

Dentre os hábitos dos moradores

locais, Cabral descreve as vestimentas

e adornos utilizados entre os séculos

XVII e XIX de forma detalhada e

com um toque de bom humor, pró-prio dos escritos do autor, permitin-do-nos considerá-lo o primeiro autor

catarinense a narrar e discutir os cos-

Page 2: Entre panos e modas de Nossa Senhora de Desterro

tumes vestimentares nas terras catari-

nenses.

Desde sua fundação, a Vila de Des-

terro carecia tanto de roupas para ves-

tir que os moradores, ao realizar trocas

com os estrangeiros, mostravam sua

preferência estimando mais os trapos

FARIA& MALHEIROS+FanPREÇOS FIXOSE RR DINHEIRO

que traziam do que dinheiro, pois este

não tinha tanto valor numa terra em que

pouco poderia ser comprado. Com a vin-

da dos povoadores açorianos, esta situ-

ação mudou e já era possível encontrar

tecidos no comércio local — tanto para

as classes mais pobres, quanto para as

mais abonadas.

Era hábito restringir as vestimentas

ao preto e às cores sóbrias: “Não havia

senhora casada, de qualquer idade, que

não tivesse o seu vestido prêto [sic], de

sêda [sic] ou de qualquer outra fazen-da”. Azul e branco era “para mocinhas,

meninas de cacho, donzelas no pontode tomar estado”. A última vez em que ea Desterro.

SOCOMPRANDO

Equeseeme4quandoredaçãodspoçosparqueseven 1hand

maospmFARIA&MALHEIROS

be;

Tg daparamEmp é tema

se utilizava o branco era no casamento, Fonte Nossa Senhora doDesterro. 1979.

ou no enterro se a jovem morresse sol-

teira. Vermelho ou verde só era utilizado por negra

ou “mulher da vida”. O amarelo era considerado ridí-

culo e era utilizado por quem estivesse com icterícia,

pois a crendice existente afirmava que esta cor auxi-

liava a cura. Apesar do calor intenso, como se pode

ver, foi uma época fúnebre.

Para os homens, o comum era a calça compri-

da, preta, sempre muito mal passada, pois o vinco

não era do “tom”. Os peitilhos postiços eram engo-

mados, duros, assim como as golas e punhos, igual-mente postiços, engomados e duros, escondendo a

camisa branca de algodão barato ou de tecido mais

leve. A goma tinha que ser resistente para suportar O

suor constante do cavalheiro que saía de casa. A gra-

vata era frequentemente preta, de laço já feito, para

amarrar no pescoço ajudando a manter o colarinho

"Era hábito

restringir as

vestimentas

ao preto e às

cores sóbria”.

Page 3: Entre panos e modas de Nossa Senhora de Desterro

rígido depois de receber alguns litros

de transpiração. “A barba fazia o res-

to, ou seja, mascarava os desaran-

Jos”.As ceroulas, em geral, de pano

americano — algodão grosso e creme

— eram presas da cintura às pantur-

rilhas, junto aos tornozelos. A indu-

mentária era completada com camisa,

peitilhos, colarinho, punhos, botina,

chapéu, luvas e bengala. Porém, mal

chegavam em casa, tiravam tudo e

ficavam só de ceroulas e camisa para

poderem se refrescar.

As damas se vestiam de modo

muito mais complexo. A “calcinha”

se tratava de um verdadeiro cinto de

castidade, de algodão grosso, amarra-

do na cintura por cadarços, ia até aos

joelhos, e era adornada, na barra, por

uns franzidos e babados. O sutiã não

era muito diferente, na época chama-

do de “corpinho”, era de tecido encor-

pado para resistir à pressão. Por cima

vinha a camisa fina de cambraia e a

primeira saia ampla de tecido leve. O

espartilho era vestido sobre a camisa,

com canaletas verticais por onde cor-

riam lâminas de aço ou barbatanas de

baleia.Depois, mais uma saia, de vá-

rios babados, para dar

maior volume. Mais

uma anágua, ou duas,

para compor, protejer,mascarar umas coisas

e exaltar outras, até

chegar (finalmente)a vez do vestido, com

mangas justas nos an-

tebraços, decotado ou

fechado até o pescoço,

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Mocadên.americanomeramdio13 Lrilasa cretalacasa Deca.a 0400 EAnúncio. Desterro.

Fonte: Nossa Senhora do Desterro. 1979.

conforme a moda da ocasião.

O cuidadoso detalhamento per-

mite aos leitores do presente com-

preender a engenhosa arte de vestir

de nossos antepassados ilhéus e agra-

decer o despojamento de hoje, que

garante a praticidade e a higiene tão

valorizadas atualmente.

É interessante notar também o

comércio de tecidos nesse período.De uma realidade em que havia pou-

ca oferta na região, o século XVIII foi

encerrado com a presença de 18 lo-

jas de tecidos espalhadas pelo centro

urbano, principalmente para o lado

direito da Praça XV, olhando da Ma-

triz para as marinhas. Oswaldo Ca-

bral cita a Casa de Costa & Leoni, a

La Ville de Rio, a Pampeiro do Sul, a

Faria & Malheiros, a Loja do Barato,

dentre outros estabelecimentos que,

Moda feminina no século XIX. Dama

jovem com seu vestido de anquinhas.Desterro. Fonte: Nossa Senhora do Desterro. 1979.

Page 4: Entre panos e modas de Nossa Senhora de Desterro

na época, realizavam anúncios As senhoras costuma-

vam mandar o “moleque” da casa buscar, nas lojas,amostras dos tecidos para elas escolherem, em casa.

As amostras vinham em pequenos álbuns de

capa dura, de papelão grosso, contendo vários cen-

tímetros quadrados de tecidos variados, com as in-

dicações de largura, cores, preços e outras informa-

ções. Os moleques voltavam à loja com a encomenda,

alguns com dinheiro, outros com o recado de que o

chefe passaria depois para pagar. Os tecidos ofereci-

dos eram dos mais variados: algodão, linho branco,cetins de seda, mantas de lã, sarjas, veludos, chitas,tafetás, dentre outros que já não existem mais ou

mudaram de nome com o passar do tempo.Até certa época, as mulheres não podiam usar

seda, por ser, este tecido, considerado como o pano

preferido das “cocotes” francesas (mulheres fáceis)da Corte e das grandes cidades. Por exemplo, em

185, a Sociedade de bailes “União Catarinense” dis-

punha, no Artº. 14 do seu relugamento ser “[...Jex-

pressamente proibido às damas o uso de jóias de

valor, assim como dos vestidos de sêda [sic]”. Por

volta de 1854 ou 1855 iniciou-se a abolição de certos

estereótipos da moda feminina e o preconceito com o

uso da seda foi sendo, cautelosamente, vencido.

Essas e outras histórias são encontradas no livro

Nossa Senhora do Desterro, escrito com esmero e le-

veza por Oswaldo Cabral, recomendado por diversos

historiadores catarinenses. Ler sua obra é mergulharno cotidiano da ilha e compreender a origem de sua

construção histórica e sociocultural, tendo a oportu-nidade de conhecer os hábitos que envolviam as ex-

periências estéticas em torno da aparência e das ten-

dências de moda de outros séculos. HC

Luíza Helena Freitas de Oliveira é Designer de Moda,

pela UDESC (2011) e bolsista de iniciação científica do pro-

jeto de pesquisa “Brasil por suas aparências”, coordenado

pela Profa. Dra. Mara Rúbia Sant'Anna, em 2008. Pe RD

CABRAL,OswaldoR.NossaSenhorado Florianópolis:Lunardelli,1979.1 v. Notícia. —

"As amostras de

tecido vinham

em pequenosálbuns de capa

dura, contendo

vários pedaçosde tecidos va-

riados, com as

indicações de

largura, cores,

preços e outras

informações”.

Modelodevestido

deanquinha.1872