entre o “like e o match perfeito”: medo raiva … · 1 aplicativo é um termo da língua...

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ENTRE O “LIKEE O MATCH PERFEITO”: MEDO, RAIVA, HUMILHAÇÃO... INVADINDO SITES DE RELACIONAMENTO Tatiana M. S. P. Filha UFRGS Maria Lúcia C. WortmannULBRA/UFRGS O advento e a ampliação do acesso à internet - e com ela à cultura digital - possibilitou o surgimento das mídias sociais, da convivência instantânea, da cultura colaborativa e integrativa, da conexão social e permanente etc. Castells (2007: 255) indica que a Internet constitui-se em um meio de comunicação e de relação essencial para a nova forma de sociedade em que vivemos denominada “sociedade em rede” -, de maneira que a internet não é simplesmente uma tecnologia, mas o meio organizativo que permite o desenvolvimento de uma série de novas formas de relações sociais e de comunicação. Para o autor, a [...] Internet é o tecido de nossas vidas neste momento. Não é futuro. É presente. Internet é meio pra tudo, que interage com o conjunto da sociedade e, de fato, apesar de tão recente (...), não precisa de explicação, pois já sabemos o que é Internet. Conforme Santaella (2013: 29), [...] a circulação e a polissemia consolidam-se como características básicas desta sociedade interconectada e em rede, o que possibilita a ocorrência de situações que nos instigam a refletir sobre os modos como os sujeitos têm sido capturados por “novas” tecnologias e mídias em suas práticas de afetividade. Uma das muitas consequências dessa “vida em rede” é que se ampliaram as possibilidades de experiências interativas dos sujeitos, as quais têm implicações nas compreensões e opções por modos de ver e de se relacionar com e no mundo. Como nos ensinou Foucault (2009: 10), [...] a experiência pode ser compreendida como a correlação, em uma cultura, entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade e as considerações que fazemos neste texto assumem esse modo de configurá-la. Este estudo decorre de uma tese de doutorado em desenvolvimento na linha de pesquisa dos Estudos Culturais em Educação, na qual examinamos narrativas postadas em páginas do Facebook, que versam sobre os usos e apropriações do aplicativo Tinder, relativamente a dinâmicas ou práticas que caracterizam relacionamentos entre homens e mulheres que dele se valem. Discutimos como o Tinder tem atuado na produção de subjetividades, no que tange à afetividade, e que tipos de encontros de parceiros e de afetos têm sido referidos como possibilitados a seus usuários. Alguns comentários levantados a

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ENTRE O “LIKE” E O “MATCH PERFEITO”: MEDO, RAIVA, HUMILHAÇÃO... INVADINDO SITES

DE RELACIONAMENTO

Tatiana M. S. P. Filha – UFRGS

Maria Lúcia C. Wortmann– ULBRA/UFRGS

O advento e a ampliação do acesso à internet - e com ela à cultura digital - possibilitou

o surgimento das mídias sociais, da convivência instantânea, da cultura colaborativa e

integrativa, da conexão social e permanente etc. Castells (2007: 255) indica que a Internet

constitui-se em um meio de comunicação e de relação essencial para a nova forma de

sociedade em que vivemos – denominada “sociedade em rede” -, de maneira que a internet

não é simplesmente uma tecnologia, mas o meio organizativo que permite o desenvolvimento

de uma série de novas formas de relações sociais e de comunicação. Para o autor, a [...]

Internet é o tecido de nossas vidas neste momento. Não é futuro. É presente. Internet é meio

pra tudo, que interage com o conjunto da sociedade e, de fato, apesar de tão recente (...), não

precisa de explicação, pois já sabemos o que é Internet. Conforme Santaella (2013: 29), [...] a

circulação e a polissemia consolidam-se como características básicas desta sociedade

interconectada e em rede, o que possibilita a ocorrência de situações que nos instigam a

refletir sobre os modos como os sujeitos têm sido capturados por “novas” tecnologias e

mídias em suas práticas de afetividade. Uma das muitas consequências dessa “vida em rede” é

que se ampliaram as possibilidades de experiências interativas dos sujeitos, as quais têm

implicações nas compreensões e opções por modos de ver e de se relacionar com e no mundo.

Como nos ensinou Foucault (2009: 10), [...] a experiência pode ser compreendida como a

correlação, em uma cultura, entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de

subjetividade e as considerações que fazemos neste texto assumem esse modo de configurá-la.

Este estudo decorre de uma tese de doutorado em desenvolvimento na linha de

pesquisa dos Estudos Culturais em Educação, na qual examinamos narrativas postadas em

páginas do Facebook, que versam sobre os usos e apropriações do aplicativo Tinder,

relativamente a dinâmicas ou práticas que caracterizam relacionamentos entre homens e

mulheres que dele se valem. Discutimos como o Tinder tem atuado na produção de

subjetividades, no que tange à afetividade, e que tipos de encontros de parceiros e de afetos

têm sido referidos como possibilitados a seus usuários. Alguns comentários levantados a

partir das postagens feitas nestas páginas, no entanto, reproduzem discursos machistas,

misóginos, homofóbicos ou racistas, ora enunciados sob a forma de piadas, ora como opiniões

impregnadas de “desprezo” e “ódio” em relação a todos aqueles/aquelas que não se

enquadram em determinados padrões considerados desejáveis por grupos de sujeitos que

postulam visões monológicas de cultura, sexualidade, etnia etc. Destacamos a importância de

procederem-se análises de tais conteúdos, propagados cada vez com maior frequência via

redes sociais, mais especificamente via Facebook, pois, se anteriormente esses circulavam na

ordem do privado, nos dias de hoje esses ganharam projeção nos espaços virtuais através de

mobilizações, que incitam ao que Skliar & Duschatzky (2001) refeririam ser “atos

expulsores” perpetrados não apenas através de violência física, mas também simbólica. Aliás,

as mobilizações possibilitadas pelo uso dos espaços virtuais têm caracterizado a vida social

nos dias de hoje, sendo importante ressaltar que a cultura digital, ao mesmo tempo em que

possibilitou a uma parcela da população a democratização do acesso e do diálogo, também

potencializou a intolerância, o desrespeito e a emissão descompromissada e leviana de

opiniões pessoais que podem gerar o fortalecimento de discursos de ódio. Exemplos da

intolerância se multiplicam, muitos deles aplaudidos/incentivados por programas midiáticos

jornalísticos e de entretenimento [...]. Noticiários estão repletos de casos de linchamentos

por suspeitas de crimes (e, ressalte-se, são injustificáveis em quaisquer circunstâncias) [...]

(CARVALHO, 2016:2).

Facebook e Tinder: ambientes de investigação

Tanto para a tese como para a reflexão que constitui esse texto selecionamos Páginas e

comunidades do Facebook, nas quais usuários do aplicativo de relacionamento Tinder, espaço

interativo midiático disponibilizado no telefone celular, narram suas experiências afetivas.

Salientamos que o Tinder é um aplicativo (app)1 gratuito que conta, no entanto, com alguns

recursos pagos, disponíveis para iOS e Android. Para utilizá-lo é necessário ter uma conta no

Facebook e fazer login com o perfil no Facebook. O aplicativo mostra, então, quem está no

mesmo raio de distância da área selecionada pelo usuário.

1 Aplicativo é um termo da língua inglesa “application”. É um software desenvolvido para ser instalado em um

dispositivo eletrônico móvel, como um PDA (assistente pessoal digital), um telefone celular, um smartphone ou

um leitor de MP3. Pode ser instalado no dispositivo pelo fabricante ou, se o aparelho permite que ele seja

baixado pelo usuário através de uma loja on-line. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Aplicativo_m%C3%B3vel,

acessado em 07/01/2016. A grande parte dos Apps é gratuita, mas há também os pagos como, por exemplo,

aplicativos para jogos, revistas, músicas, livros etc. Há também a possibilidade das pessoas criarem seus próprios

Apps.

Ainda sobre este aplicativo, é oportuno lembrar ter sido ele criado em 2012, por alunos

da Universidade do Sul da Califórnia, Estados Unidos, e ser sustentado por investidores. Em

entrevista ao site da UOL, no dia 23/04/20142, Justin Mateen, um dos fundadores da

plataforma, explicou que o aplicativo foi criado para permitir a apresentação e a aproximação

de pessoas, podendo ser para um relacionamento amoroso, amizade, ou para fazer negócios,

sendo os usuários que definem a forma de uso da ferramenta. Ou seja, o aplicativo foi criado

com o objetivo principal de possibilitar conexões entre as pessoas, não decorrendo disso,

necessariamente, encontros pessoais. Em janeiro de 2016, a direção do aplicativo informou à

imprensa, que o Tinder atingiu o recorde de usuários ativos e de downloads no dia 03 de

janeiro do referido ano3, indicando o Rio de Janeiro como a cidade com maior número de

combinações (matches) entre usuários do mundo, com um percentual de 7,3% maior do que a

média global. Em, 2016, de acordo com censo da empresa, o aplicativo está disponível para

196 países, sendo utilizado por cerca de 5% da população, em torno de 10 milhões de pessoas.

Ao navegar pelos perfis (tanto de homens como de mulheres), há duas possíveis

escolhas: apertar o botão do coração, sendo essa a ação para demonstrar interesse, também

chamada de like, ou curtida, ou, se o usuário não se interessou pela pessoa visualizada na foto,

ele deve apertar no X, e a descartar. Se a resposta foi uma “curtida”, isso aparecerá na tela

com a seguinte mensagem: “It’s a match!”, termo usado para as combinações feitas pelo

aplicativo. Neste caso, em que se configura um interesse mútuo, aparecerá na tela a

possibilidade de acesso à função bate-papo. Então, como se pode ver, a “conversa” só se

estabelece se há interesse mútuo, sendo o primeiro contato entre as pessoas definido,

inicialmente, pela análise da foto disponibilizada pelo usuário. Cabe ainda salientar, que,

dentre os aplicativos de relacionamento disponíveis no país, selecionamos o Tinder, por sua

popularidade entre os brasileiros, bem como pela recorrência de reportagens sobre o mesmo,

em sites de veículos de informação digital: impressos como Clic RBS (Zero Hora), Folha

Oline (Folha de São Paulo), Estadão Online; revistas digitais e impressas como Veja, Isto É,

Exame, Nova.

2 Fonte: O Brasil tem 10 milhões de usuários do Tinder. O criador explica o sucesso do app:

http://tecnologia.uol.com.br/noticias/redacao/2014/04/23/brasil-tem-10-milhoes-de-usuarios-do-tinder-criador-

explica-sucesso-do-app.htm Acessado em 15/01/2016. 3 Fonte: Tinder registra recorde no número de usuários ativos e downloads no Brasil.

http://canaltech.com.br/noticia/apps/tinder-registra-recorde-no-numero-de-usuarios-ativos-e-downloads-no-

brasil-55899/ Acessado em 13/03/2016.

Cabe ainda salientar que o Facebook4 é definido, usualmente, como um site e um

serviço de rede social que surgiu do aprimoramento do site Facemash, criado pelos estudantes

de Harvard, Mark Zuckerberg, Edurado Saverin, Chris Hughes e Dustin Moskovitz, tendo

sido originalmente desenvolvido para ser um jogo entre os estudantes. Em 2004, no entanto,

ele se transformou em um site endereçado, inicialmente, apenas a estudantes da mesma

universidade. No início de 2005 seu uso se expandiu por 21 universidades do Reino Unido e,

em dezembro do mesmo ano, já estava presente em 2000 universidades e dele participavam

25000 colegiais de todo EUA, Canadá, México, Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia e

Irlanda.

Em 2010, o Facebook começou a convidar seus usuários para serem usados como

testadores-beta, depois de passarem por um processo de seleção baseado em perguntas e

respostas e de realizarem um conjunto de quebra-cabeças de engenharia, no qual resolveriam

problemas computacionais. O objetivo de tais “testagens” era efetuar a contratação desses

usuários para trabalharem com o Facebook. Em fevereiro de 2011, o Facebook se tornou o

maior servidor e agregador de fotos online, Pixable, com a expectativa de ter 100 bilhões de

fotos no verão de 2011. Em novembro de 2015, Mark Zuckerberg divulgou através do seu

perfil no Facebook os resultados dos serviços prestados pelo Facebook no terceiro trimestre

de 2015. Dentre os dados divulgados, ele indicou que em setembro de 2015 já contava com

1,5 bilhão de usuários mensais e 01 bilhão acessando a rede social diariamente, sendo, dentre

esses, 900 milhões de acessos anuais via WhatsApp, 700 milhões de acessos anuais via

Messenger e 400 milhões de acessos anuais via Instagram. David Wehner, diretor financeiro

do Facebook, revelou que a rede social terminou setembro de 2015 com 1,39 bilhões de

usuários/mês acessando a rede social através de smartphones, sendo um bilhão deles através

de dispositivos Android.

Usar a internet como objeto, local e instrumento de pesquisa tem sido cada vez mais

comum. Contudo, trata-se de algo recente utilizar a internet como lócus de investigação; ou

seja, essa pode ser uma opção muito produtiva, mas cabe indicar ter ela muitos limites e

desafios éticos específicos. Hine (2005: 13) salienta que [...] as novas tecnologias ampliam a

questão da multiplicidade metodológica por transpor a discussão da evolução tecnológica em

4 Fonte: Facebook supera 1,5 milhões de usuários por mês, WhatsApp tem 900 milhões:

http://idgnow.com.br/mobilidade/2015/11/06/facebook-tem-1-55-bilhao-de-usuarios-por-mes-e-o-whatsapp-900-

milhoes/ e https://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_do_Facebook Acessado em 14/04/2016.

si para as questões de sociabilidade e apropriação: já o agente de mudança não é a

tecnologia, e sim os usos e as construções de sentido ao redor dela. Por essas, e outras razões,

ainda há muito a ser pensado, discutido, estudado e problematizado neste campo (Uwe

FLICK, 2009; Suely FRAGOSO; Raquel RECUERO; Adriana AMARAL, 2015).

Entre um “Like” e um “Match”: Disseminação de medo, raiva, humilhação...

Estamos compondo o corpus de análise da tese através da seleção de postagens dos

perfis fictícios do Facebook “Omi no Tinder”, “Eu no Tinder e da Comunidade do Facebook

“Pérolas do Tinder”. Contudo as postagens analisadas e socializadas aqui não são

necessariamente as mesmas da tese, visto que foram selecionadas através de critérios

distintos. Para essa reflexão nos detivemos em postagens que expressassem direta ou

indiretamente algum preconceito relacionado a gênero, sexualidade, etnia e faixa etária

Tanto Kozinets (2014) como Fragoso, Recuero e Amaral (2015) indicam a

necessidade de atentarmos eticamente para a participação em espaços virtuais, bem como para

a coleta e análise dos dados disponibilizados na internet. Segundo Fragoso, Recuero e Amaral

(2015:21), há autores como Elm (2009) e Ess (2009), que se dedicam a discutir e delimitar

aspectos que pertencem à esfera do público ou à esfera do que é considerado privado, sendo

possível classificar os ambientes virtuais em quatro níveis de privacidade, ressalvando-se não

serem essas categorias estanques. São estes os níveis apontados: Público (aberto e disponível

a todos); semipúblico (requer cadastro ou participação); semiprivado (requer convite ou

aceitação) e privado (requer autorização direta) (ELM, 2009:75).

O acesso às Páginas, perfis fictícios e comunidades do Facebook é publico, mas como

esses estão disponíveis a quaisquer usuários do Facebook, ou seja, é necessário ter um perfil

no Facebook para acessá-las, esses podem ser categorizados como semipúblicos. Como

possuo perfil no Facebook, e como já acesso tais Páginas, perfis e comunidades, estamos

considerando que os dados coletados não precisarão ser autorizados. No entanto ocultamos os

nomes dos usuários que as postaram, bem como dos que as comentaram.

Com o advento das tecnologias da comunicação à distância, através de artefatos como

carta, telégrafo, telegrama, fax, telefone, internet, e-mail, comunicadores instantâneos, entre

outros, a interação entre as pessoas tem sido alterada. Os artefatos acionados via internet

possibilitam comunicações mais frequentes e rápidas, sendo sempre ressaltadas as

possibilidades que essas oferecem à ampliação e ao fortalecimento de redes sociais e ao

estreitamento de laços afetivos, mesmo que à distância. No entanto, fala-se sobejamente dos

distanciamentos gerados entre pessoas fisicamente próximas, sendo muitos os exemplos

satíricos apresentados sobre tais situações. Mas adesões e críticas à parte, é inegável que as

tecnologias de comunicação alteram nossos modos de interagir e de estabelecer vínculos

afetivos. A internet e suas possibilidades de contato instantâneo oferecem recursos e

possibilidades de interação, talvez, nunca antes imaginados, que são potencializados através

da construção de redes sociais e de comunidades online integradas, muitas vezes, por pessoas

que nunca se encontraram face a face, mas que constituem coletividades, laços afetivos e

vínculos pautados, na situação examinada neste estudo, em preconceitos, ódio e na

humilhação de pessoas eleitas como foco de tais atitudes.

O Tinder, dentre outros aplicativos de relacionamento, como já referido, possibilita a

aproximação e o diálogo entre pessoas em um determinado raio de distância e as relações

estabelecidas a partir desse contato são as mais variadas. Para essa reflexão nos detivemos a

examinar a maneira agressiva e preconceituosa como alguns usuários se expressam,

compartilhando e/ou comentando em páginas e comunidades específicas opiniões sobre o

aplicativo. Em tais postagens estão presentes estratégias associadas à naturalização do

preconceito e que servem, igualmente, à banalização da intolerância, do desrespeito e da

agressividade. Percebe-se que pessoas “raivosas” têm se encorajado a expressar com maior

frequência suas opiniões em tais espaços, uma vez que a virtualidade permite o uso de nomes

e perfis “fake”5. Como salientou Carvalho (2016:11)

A internet, como terra de ninguém, pode ser, contraditoriamente, um promissor

lócus para o exercício da pluralidade, da democracia, da diversidade e do convívio

na aceitação e pleno reconhecimento das diferenças, mas também o oposto, terreno

onde vicejam o ódio, o preconceito, o desrespeito às leis e aos direitos humanos

elementares

Comentamos a seguir o caso de Fernanda Teixeira, que criou um perfil no Tinder nele

incluindo sua foto e descrição, e afirmando ser mãe e feminista. Tais características

motivaram vários “pretendentes” a insultá-la. Ela compartilhou essa sua experiência no

Facebook e no Instagram e o número de ‘indignados’ – agora os usuários da internet – se

multiplicou, pois esses recompartilharam alguns dos diálogos por ela compartilhados em seus

5 Em inglês “fake” significa “falso”, ou seja, um nome ou perfil falso.

perfis, blogs, etc. Reproduzimos, abaixo, alguns dos diálogos compartilhados por Fernanda

Teixeira.

Figura 1: “Mãe solo”

Muitas pessoas se surpreenderam com os comentários e reações agressivas dos

homens que conversaram com Fernanda através do Tinder, creio que a intensidade dos

comentários se deva, entre outras razões, por ter sido a declaração de Fernanda compartilhada

no final de semana do dia das mães do corrente ano. Cabe no entanto salientar que há vários

post com conteúdos muito semelhantes a esse em circulação nas Páginas e comunidades do

Facebook que temos analisado. Ou seja, a experiência de Fernanda não é isolada como se

pode ver no recorte reproduzido abaixo.

Figura 2: “Mulher de fé. Não quero mulher para consumo.”- “Omi no Tinder’:

No perfil de apresentação, o rapaz já indica que “tipos” de mulheres não lhe

interessam. Frente ao que ele postou é possível perguntar: O que seria uma mulher para

consumo? Ou uma Mulher rodada? Que características fazem de uma mulher um lixo? Ao

que parece ele pretende definir a priori que mulheres podem dele se aproximar. É ele que

estabelece as condições prévias para um possível relacionamento. E esse estabelecimento de

condições prossegue no diálogo que mantém com alguém que lhe respondeu – ele não quer

ser enganado por fotos incompletas! Mas a “garota” com quem dialoga parece ter “virado” os

termos do jogo ao indicar que ela também poderia ser enganada!

Ele estabelece um “padrão” de mulher que o interessa e se autoriza a pedir provas para

“descartar” e ao fazer isso desrespeita e humilha quem não se enquadra no padrão por ele

definido. Pretendemos mostrar, a partir de uma postagem como essa, bem como dos diálogos

que a partir dela se desenrolam, os modos como os relacionamentos se processam em uma

artefato como esse, ao mesmo tempo em que buscamos salientar como nessa instância de

comunicação são explicitados talvez como em nenhuma outra instância, preconceitos de

diferentes ordens.

Por certo, o preconceito não se instaura apenas em postagens realizadas por homens,

como podemos ver na postagem abaixo.

Figura 3: “Se quisesse velho, aumentava a idade no filtro” – “Perolas do Tinder”

Nos comentários sobre esse perfil é explícito o preconceito etário. O Tinder se vende

com o discurso de ser um dos aplicativos que possui maior número de filtros de seleção do

perfil de quem cada usuário deseja localizar. Sendo assim, o diálogo ocorreria somente entre

pessoas que aceitam o “like” que possibilita o esperado “match”. Nesse caso, o “match” se

deu para que “alguém” se divertisse as custas do seu interlocutor. E assim, um homem mais

velho tornar-se piada e passa a ser rejeitado e ridicularizado. Ao que parece sua interlocutora

não lhe atribui o direito de ocupar um espaço neste aplicativo e ela desconta sua “ira” por

encontrá-lo lá despejando sobre ele comentários irônicos.

Outros tipos de postagens são ainda mais agressivas e debochadas, tal como a que está

reproduzida na Figura 4, na qual possivelmente algum/a usuário/a fez print de um perfil e o

alterou tornando explícito o preconceito etário.

Figura 4: “Tenho parkinson. Fui mijar, gozei” – “Perolas do Tinder”

Figura 5: “Uhh ela da direito à sobremesa” – “Perolas do Tinder”

Já na figura 5 a postagem associa uma mulher negra com o docinho brigadeiro,

também referido como “negrinho”. Tanto essa postagem, quanto a anterior parecem ser

montagens, mas em ambas o preconceito está expresso na intenção de fazer humor. Tal

postagem pode ser vista como uma “piada internética”, que banaliza e naturaliza preconceitos,

estereótipos e dá legitimidade a discriminações, tal como anteriormente ocorria em programas

humorísticos veiculados no rádio e na televisão. Continua, portanto, a ser necessário que,

como salientou Carvalho (2016: 14) que se examinem tais interações virtuais “[...] em termos

de disputa de sentido, de jogos de poder, e não como uma seara romanticamente vista como o

reino das interações, como primado do relacional que desconhece tais hierarquias”.

Como já indicamos anteriormente, somos convocados de diferentes maneiras a ser

usuários de tais artefatos; contudo, o uso e a relação que estabelecemos com eles são

produzidos por nós. Ainda que o Whatsapp faça com que o nosso celular vibre e pisque

incessantemente nos “chamando” para a conversa, somos nós que estabelecemos a relação de

dependência, necessidade, indiferença, enfim, o modo como nos apropriamos e nos utilizamos

de tais artefatos. Muitos dos nossos hábitos têm sido alterados pela inserção dos artefatos de

tecnologia digital, não só quando acessamos suas funcionalidades originais, mas, também,

quando as adaptamos, recriamos ou significamos. Como Sibilia (2008) indicou, vivemos uma

“tirania da visibilidade”, na qual práticas como o selfie e compartilhamentos de ações

cotidianas em redes sociais e aplicativos borram e hibridizam as fronteiras entre

público/privado, real/virtual, individual/coletivo.

A banalização da violência, a disseminação do preconceito de maneira agressiva e

maldosa parece ter sido intensificada nos últimos dois anos, pois não raro nos defrontamos

com atitudes, piadas e desrespeito no nosso cotidiano. As estatísticas que mapeiam a

impunidade do feminicídio e de crimes de homofobia são exemplos de situações reais que

enfrentamos no país. Em nove de abril de 2016 a ONUBR6 divulgou que a taxa de

feminicídio no Brasil é a quinta maior no mundo, 4,8 para 100 mil mulheres – segundo dados

da Organização Mundial da Saúde (OMS). No dia 23 de novembro de 2016, o especialista da

ONU Vitit Muntarbhorno denunciou a proliferação de discursos de ódio e ataques

“desenfreados” de violência e discriminação a homossexuais nas redes sociais.7 Depois de

termos vivido por muitos anos crendo no mito da democracia racial no país, provar a

intencionalidade do racismo tem se revelado como uma tarefa árdua se a atitude racista não

for completamente explícita. Enfim, como também salientou Carvalho (2016: 03), a

6 Organização Nações Unidas no Brasil, fonte https://nacoesunidas.org/onu-feminicidio-brasil-quinto-maior-

mundo-diretrizes-nacionais-buscam-solucao/ Acessado em 17/05/17. 7 Fonte: https://nacoesunidas.org/pessoas-lgbti-enfrentam-turbilhao-de-violencia-e-discriminacao-diz-relator-da-

onu/ Acessado em 17/05/17.

intolerância às diferenças parece ter se tornado “uma característica atávica da nossa

sociedade, cultivadora do cinismo e do faz de conta, hábil em varrer para debaixo do tapete

nossas dificuldades de convívio plural, em todas as dimensões culturais, religiosas,

comportamentais e políticas [...]”. Faz-se necessário, portanto, revelar e denunciar situações e

discursos de ódio e intolerância que geralmente se utilizam de “roupagens” sedutoras como o

humor, a liberdade de expressão, entre outras, impedindo que a banalização das mesmas se

cristalize em nosso cotidiano, uma vez que estas inviabilizam a convivência com a pluralidade

e a concretização da alteridade. Assim sejamos todos/as Fernanda: botemos a “boca no

trombone” e façamos muito barulho para que a raiva, a intolerância e o desrespeito não

“choquem seus ovos” em nosso meio social, estejamos nós no território que estivermos,

virtual ou não. E par que o nosso respeito à diversidade e ao direito de ser quem se é

“viralize” em todas as esferas dos nossos relacionamentos.

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