entre o cinema e a histÓria: a guerra de ruanda a partir das representaÇÕes · 2018. 10. 29. ·...

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ENTRE O CINEMA E A HISTÓRIA: A GUERRA DE RUANDA A PARTIR DAS REPRESENTAÇÕES FÍLMICAS “HOTEL RUANDA” E “A HISTÓRIA DE UM MASSACRE”. Bruna Tais dos Santos 1 Resumo: Este artigo versa sobre a importância do estudo das relações entre o cinema e a história, partindo do cotejamento entre as representações construídas pelas narrativas fílmicas e a historiografia existente sobre o tema em questão. Analisando as narrativas dos filmes Hotel Ruanda e História de Um Massacre, com o intuito de perceber algumas das estereotipias que constituíram sobre o evento do massacre de Ruanda, indagando sobre os motivos que justificaram a produção e feitura destas narrativas. O presente trabalho resulta de uma pesquisa ainda em andamento para a dissertação do mestrado do programa PPGEAFIN da UNEB. Palavras-chave Representação; Cinema; Ruanda; Massacre. Abstract: This article deals with the importance of the study of the relations between cinema and history, starting from the comparison between the representations constructed by the film narratives and the existing historiography on the subject in question. Analyzing the narratives of the films Hotel Rwanda and History of a Massacre, with the intention to perceive some of the stereotypes that constituted on the event of the massacre of Rwanda, investigating on the reasons that justified the production and making of these narratives. The present work results from a research still in progress of the master’s thesis of the PPGEAFIN program of UNEB. key words Representation; Movie Theater; Rwanda; Massacre. Introdução Todo bom cinema nasce de uma boa história. Já ouvimos essa frase inúmeras vezes na história do cinema. Raras vezes o cinema consegue transcender a barreira da história e produzir bons conteúdos partindo de narrativas frágeis, sem bons enredos. Mas, e quando acontece o 1 Mestranda em história pelo programa PPGEAFIN UNEB, e-mail: [email protected].

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  • ENTRE O CINEMA E A HISTÓRIA: A GUERRA DE RUANDA A PARTIR DAS

    REPRESENTAÇÕES FÍLMICAS “HOTEL RUANDA” E “A HISTÓRIA DE UM

    MASSACRE”.

    Bruna Tais dos Santos1

    Resumo: Este artigo versa sobre a importância do estudo das relações entre o cinema e a

    história, partindo do cotejamento entre as representações construídas pelas narrativas fílmicas

    e a historiografia existente sobre o tema em questão. Analisando as narrativas dos filmes Hotel

    Ruanda e História de Um Massacre, com o intuito de perceber algumas das estereotipias que

    constituíram sobre o evento do massacre de Ruanda, indagando sobre os motivos que

    justificaram a produção e feitura destas narrativas. O presente trabalho resulta de uma pesquisa

    ainda em andamento para a dissertação do mestrado do programa PPGEAFIN da UNEB.

    Palavras-chave

    Representação; Cinema; Ruanda; Massacre.

    Abstract: This article deals with the importance of the study of the relations between cinema

    and history, starting from the comparison between the representations constructed by the film

    narratives and the existing historiography on the subject in question. Analyzing the narratives

    of the films Hotel Rwanda and History of a Massacre, with the intention to perceive some of

    the stereotypes that constituted on the event of the massacre of Rwanda, investigating on the

    reasons that justified the production and making of these narratives. The present work results

    from a research still in progress of the master’s thesis of the PPGEAFIN program of UNEB.

    key words

    Representation; Movie Theater; Rwanda; Massacre.

    Introdução

    Todo bom cinema nasce de uma boa história. Já ouvimos essa frase inúmeras vezes na

    história do cinema. Raras vezes o cinema consegue transcender a barreira da história e produzir

    bons conteúdos partindo de narrativas frágeis, sem bons enredos. Mas, e quando acontece o

    1Mestranda em história pelo programa PPGEAFIN – UNEB, e-mail: [email protected].

  • contrário? Quando a história pode se valer do cinema para difundir um conteúdo, um fato, uma

    situação?

    A história tem sido um campo fértil de material para o cinema. Inúmeros filmes bebem

    da fonte da história, retratando eventos, guerras, histórias de amor, biografias, normalmente

    acompanhada da inscrição “baseado em fatos reais”. A grande questão nasce do fato do cinema,

    como linguagem artística, está submetido apenas aos parâmetros estéticos, por vezes

    econômicos, mas não tem um compromisso com os fatos, com a verdade. Isso nos aponta para

    uma questão: se a história poderia se valer do poder de propagação do cinema para ampliar seu

    público e para difundir fatos históricos.

    Esse dilema será o ponto de partida para pensar e analisar um evento histórico

    específico: o massacre de Ruanda. Fato ignorado pela grande mídia, encontrou nas

    representações fílmicas um poder de propagação e uma ferramenta de difusão no resto do

    mundo. Através dos filmes analisados neste artigo, muitas pessoas souberam inclusive da

    existência deste país localizado na África. Mas são dois filmes, dois pontos de vista, contestados

    por uns, validados por outros, com maior ou menor cunho histórico, refletiremos sobre isso nas

    linhas a seguir.

    Breviário sobre Ruanda antes da matança de 1994 - Das bibliografias, à história

    Para entender o processo da guerra que ocorreu em Ruanda 1994 e que ganhou as telas

    cinematográficas nos anos correntes no intuito de reproduzir o episódio que comoveu o mundo

    diante do massacre dos tutsis, denominados como grupo étnico, faz-se necessário conhecer um

    pouco a história desse país e entender o contexto desse período pré-massacre.

    Ruanda é um país do continente africano localizado na região dos grandes lagos da

    África centro-oriental. Com área aproximada de 26.3338 km², faz fronteira com a república

    Democrática do Congo (ex-Zaire), Uganda, Tanzânia e Burundi. Os povos habitantes de

    Ruanda são reconhecidos inicialmente por uma única etnia e tronco linguístico, os

    Banyarwanda, que são divididos em três sub-grupos: Tutsi, Twa, Hutu. E assim formam a

    população de Ruanda reconhecidos desde o estado pré-colonial.

    Os Tutsis ocupavam as camadas mais altas, trabalhavam com gados, tinha maior poder

    aquisitivo. Conhecidos também por seus traços finos, cor de pele um pouco mais clara e

    erguidos, essa característica passava a ideia de semelhanças com os europeus. Já os Hutus

    https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Banyarwanda&action=edit&redlink=1

  • ocupavam as camadas mais baixas e viviam do trabalho no campo. Ser tútsi era sinônimo de

    riqueza, status, mas era possível ao hútu de renda financeira considerável se tornar um tútsi, da

    mesma forma, o tútsi que tinha suas finanças rebaixadas passavam a pertencer ao grupo hútu.

    Michel Sitbon cita em seu livro2 os tútsis como uma raça superior, os chamados brancos de pele

    negra (essa definição se dava além do favorecimento da renda superior, aos traços finos e o tom

    de pele ser mais claro que o hútu, associando os tutsis a descendência branca). Pertencer a uma

    categoria tútsis era sinônimo de prestígios, elegância, superioridade.

    Prior to the colonial era, Tutsis generally occupied the higher strata in

    the social system and the Hutus the lower. However, social mobility

    was possible, a Hutu who acquired a large number of cattle or other

    wealth could be assimilated into the Tutsi group and impoverished Tutsi

    would be regarded as Hutu.3

    Com a chegada dos europeus, principalmente os belgas ocorrem o favorecimento dos

    tútsis, acentuando as diferenças entre os grupos, gerando assim uma classificação por etnias

    que se “reconhecem” até hoje, os Tútsis e os Hútus, e minimização do grupo Twa que

    representava 1% da população. Como relata Gourevitch (2006, apud FRUCTUOZO, 2016, p.8).

    As diferenças apontadas pelos belgas iniciaram-se pelo aspecto físico:

    hutus teriam a pele mais escura, nariz mais achatado e os lábios mais

    grossos, rosto redondo e queixos quadrados, enquanto os tutsis teriam a

    pele mais clara, nariz e lábios mais finos, queixo estrito, rosto comprido

    e seriam também mais altos que os hutus. Por considerá-los superiores,

    a Bélgica deu aos tutsis os melhores e mais altos cargos políticos,

    militares e administrativos. Entre 1933 e 1934 a Bélgica realizou um

    censo e emitiu carteiras de identidade “étnicas” para rotular o cidadão

    ruandês, onde os hutus compreendiam 85% da população, os tutsis

    representavam 14% e de apenas 1%.

    Em 1931 ocorre a implantação das carteiras de identidade definindo a separação total

    de tútsi e hútu, impedindo a mobilidade social de um grupo para o outro, vistos agora como

    grupos étnicos e registrados em suas carteiras de identificação, ficaram ainda mais acentuadas

    as diferenças e os privilégios que os tútsis já vinham tendo, desfavorecendo os hútus.

    2 Ruanda, um genocídio na consciência, tradução Conchita Martins, Lisboa, 2000. Michel Sitbon utiliza desse

    termo para relatar a prática da colonização no favorecimento dos tutsis. 3 Tradução: Antes da era colonial, os tutsis geralmente ocupavam as camadas mais altas do sistema social e os

    hutus, os inferiores. Contudo, a mobilidade social era possível, um hutu que adquirisse um grande número de gado

    ou outras riquezas poderia ser assimilado ao grupo tutsi e os tutsis empobrecidos seriam considerados hutus.

    Rwanda: A Brief History of the Country

    . Acesso em 06.07.2018

    http://www.un.org/en/preventgenocide/rwanda/education/rwandagenocide.shtml

  • O ano de 1994 foi um divisor de águas na vida dos ruandeses. Um país que vivia as

    margens da invisibilidade no mundo ganha destaque após o episódio que ceifa mais de 800 mil

    almas inocentes, levando-o a ser tema dos cinemas de Hollywood e Toronto. Sua história

    desperta curiosidade de estudiosos, cineastas, historiadores, escritores, jornalistas e a mídia em

    geral. O que antes era conhecido por seus planaltos, colinas suaves e os raros gorilas-das-

    montanhas que movimentavam o setor turístico, teve sua história reformulada e marcada por

    uma tragédia que cerca todos os sobreviventes e descendentes do local.

    No fim da tarde de 6 de abril de 1994 a população de Ruanda é surpreendida com a

    notícia de que o avião em que viajava o presidente Juvénal Habyarimana foi abatido próximo

    ao aeroporto de Kigali, levando a morte todos abordo, como destaca O jornalista francês Jean

    Hatzfeld:

    Quando, na noite de 6 para 7 de abril, seis ou sete horas depois da

    explosão do avião, deu-se o sinal verde a um grupo restrito, o Exército,

    a polícia e a administração estavam operando. [...] As matanças

    começaram dia após dia, em ritmos diferentes de acordo com as regiões,

    mas nenhum obstáculo entravou o bom andamento do massacre.

    (Hatzfeld, 2005, p.67).

    A partir daqui segue a tentativa do cinema de narrar este episódio que culminou a vida de mais

    800 mil ruandeses.

    Cinema como contador de história - A necessidade de representação

    Contar uma história sobre um acontecimento real sempre fora o trabalho dos livros,

    fotografias e literatura oral. Os livros sempre foram vistos como ferramentas para essas

    narrativas. Há um tempo a sociedade vem sentido a necessidade de tornar essa experiência mais

    forte, com o avanço da tecnologia, a metodologia e a resignificação da comunicação essas

    narrativas também evoluiram. Parafraseando Carriére (1995) é muito mais forte e duradouro o

    entendimento dos acontecimentos por meio das representações em imagens do que pelas frases

    e palavras de um livro. Chartier (2002) também destaca a representação por meio das imagens

    como facilitador no reconhecimento mediato e importante para reconstruir a memória. Também

    destaca: “[...] a representação e instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente

    através da sua substituição por uma «imagem» capaz de o reconstituir em memória e de o figurar tal

    como ele é”.

  • O cinema é o meio que as pessoas tem mais acesso a história do que através dos livros,

    o que torna ele o produto de maior projeção e disseminação4. Embora possua uma linguagem

    individual, sem compromisso com a verdade, o cinema tem se destacado na tarefa de contar a

    história e se tornado cada vez mais um produtor de conteúdo histórico, despertando a atenção

    dos historiadores que se utilizam das imagens cinematográficas para trabalhar seus estudos e

    analisar sua representação.

    Ainda é muito discutido a utilização do cinema como fonte histórica, mas a verdade é

    que o cinema, apesar de ter linguagem própria e sua maneira diferente dos livros na narrativa,

    tem sido uma forma de representação, e assim não deve ser negada sua influência e interferência

    na história, mas sim, estudar e esmiuçar a história/narrativa, imagens e seus significados,

    permitindo ao historiador um estudo sistematizado das práticas e representação cultural, como

    destaca Barros (2007):

    “Qualquer obra cinematográfica – seja um documentário ou uma pura

    ficção – é sempre portadora de retratos, de marcas e de indícios

    significativos da sociedade que a produziu. É neste sentido que as obras

    cinematográficas devem ser tratadas pelo historiador como fontes

    históricas significativas para o estudo das sociedades que produzem

    filmes, o que inclui todos os géneros fílmicos possíveis.”

    Assim, ao trabalhar o cinema como produto-história, cabe ao historiador analisar a

    dramaturgia e contrapor com os dados bibliográficos, observando se o relato é crível.

    Como aborda Ferreira (2009) “O pesquisador deve estar atento à forma pela qual o episódio é

    retratado, quem é o narrador, a importância das cenas apresentadas e sua relação com o fato

    histórico com o qual o enredo se relaciona e, especialmente, que aspectos podem s aproximar

    dos fatos reais.”. Porém, neste trabalho não iremos adentrar na história do cinema como fato

    decisivo ou não, apenas me permiti discorrer em pequenos parágrafos a justificativa da

    utilização do cinema como ponto de análise para a história.

    O cinema sobre Ruanda

    O cinema foi uma das mídias, que junto com o jornalismo mais propagou o episódio do

    massacre em Ruanda. Sendo que o filme tem a possibilidade de atingir um maior numero de

    4 O cinema tem a seu favor a capacidade de atingir um grande público sem grandes esforços – ainda mais quando falamos de filmes que contam com uma grande campanha publicitária para divulgação.

    GUZZO, Morgani, TEIXEIRA Níncia Cecília Ribas Borges. O genocídio em Ruanda: intersecções entre

    jornalismo, história e cinema. Verso e Reverso, XXIV(56):83-94, maio-agosto 2010.

  • espectadores, consegue transmitir sensibilidade através das imagens permitindo de forma mais

    direta traduzir através das emoções o percurso dessa história que mexe com intelecto da

    imaginação de qualquer pessoa e supri a necessidade da representação, como relata Schurmans

    (2010)5 “Com a ausência de imagens fotografias de qualidade e clareza, o cinema acaba por

    preencher o vazio audiovisual com a representação supostamente fies as experiências contadas

    pelos sobreviventes assim como pelos executores.”.

    Entendendo a necessidade de preencher o vazio desta representação e sabendo da

    dificuldade que é contar a história de forma tão plausível como aconteceu na realidade sobre o

    episódio em Ruanda, é impossível mostrar o que realmente se passou. Ninguém estaria

    preparado para viver, ainda que como espectador, a guerra brutal que sofreram os sobreviventes

    e parentes, vítimas que viram seus entes e amigos morrerem de forma tão cruel que não traduz

    um terço as tentativas nas representações. Assim, ficou para o cinema a incumbência de

    representar a história desse massacre com base nos informes jornalístico que cobriram o caso e

    os relatos de sobreviventes e assassinos que declararam seus crimes.

    Hotel Ruanda (2004)6

    O filme Hotel Ruanda é um longa-metragem de 121 minutos que conta a história do

    massacre a partir da narrativa do gerente do hotel em Kigali, Paul Rusesabagina, um hútu

    casado com uma tútsi que luta para manter a salvos sua família e demais refugiados que

    procuram o hotel em busca de abrigo. Paul Rusesabagina, interpretado por Don Cheadle é um

    negociante que consegue manter a salvos milhares de pessoas através da compra de favores aos

    militares e política fora de seu país em busca de ajuda, o dinheiro e a bebida foram o preço para

    manter o hotel longe do alcance dos exterminadores.

    O filme começa com um off da Rádio RTLM (rádio local de Ruanda) narrando a

    insatisfação dos hútus em ter os tútsis novamente convivendo entre eles. A rádio RTLM aparece

    sempre com a narrativa de propagação de ódio porém sem muitos esclarecimentos do que se

    passa na história. Deixando clara que a classificação por etnias fora dado pelos belgas, explicita

    5 Artigo publicado por Fabrice Schurmans para a Oficina do CES n.º 336, janeiro 2010. 6 Hotel Ruanda, título original Hotel Rwanda. Direção: Terry George. Roteiro: Keir Pearson e Terry George.

  • no diálogo entre o jornalista e um tútsi que descreve a atuação dos Belgas e o motivo dos

    conflitos no país:

    “Segundo os belgas os tútsis são mais altos e elegantes, foram eles que

    criaram essa divisão, escolhiam pessoas com narizes mais finos e pele

    mais claras. Os belgas usaram os tútsis para governar, quando foram

    embora deixaram o poder com os hútus que se vingaram dos tútsis pelos

    anos de opressão”.

    Embora esse diálogo permita a quem assiste relacionar as diferenças entre as duas etnias criadas

    pelos belgas, as diferença citadas pelos belgas não era possível identificar quem era quem e

    esse ponto é também abordado nos documentos históricos, e também na narrativa inicial da

    rádio RTLM de tentar resumir o motivo da indiferença entre eles, o entendimento sobre ponto

    da história é vazio, é insuficiente para compreensão do tamanho do problema instalado no país,

    a dramaturgia não resolve o entendimento plausível desses fatos.

    Os capítulos seguintes narram a predição dos assassinatos aos tútsis, chamados de

    baratas e árvores altas e assim o início do caos quando o avião que transportava o presidente

    Juvénal Habyarimana cai, acusando os rebeldes hútus pelo assassinato a fim de concretizar as

    ameaças de acabar com os tútsis, ao mesmo tempo que a rádio acusava os tútsis de ter cometido

    o ato contra o presidente, e assim passa a convocar todos os hútus a exterminar as baratas, cortar

    todas as árvores altas. Durante o massacre, Paul tenta proteger sua família e os refugiados que

    com ele se encontra, mesmo com a situação cada vez mais desesperadora e as ameaças

    constantes a todos do hotel, Paul tenta ajuda com autoridades fora do país que conhecera e

    conquistou o apreço através dos favores fornecidos durante a estadia no hotel.

    Embora a narrativa gire em torno de Paul Rusesabagina, outras histórias são contadas

    através do general da ONU, dos jornalistas e uma residente da casa de saúde que ajudam a

    narrar as tragédias que estavam ocorrendo, mas que em dado momento são retirados do país

    juntamente com as tropas estrangeiras deixando Ruanda sobre o extermínio dos tútsis pelos

    hútus que a todo custo tentam invadir o hotel e matar todos que ali se encontram, tútsis, hútus

    e moderados. Nesse momento o filme faz uma crítica severa a postura das autoridades belgas,

    francesas e americanas chamando-os de covardes e negligentes com a situação caótica

    estabelecida em Ruanda.

    Afim de que todos saibam o que está se passando em Ruanda e como suas vidas estão

    por um fio, abandonados à própria sorte Paul sugere que todos os refugiados liguem para seus

  • conhecidos fora do país e suplicassem para que eles intervissem junto as autoridades para

    mandar socorro. O filme não demostra que tal atitude tenha sido o ajudador, ao contrário, deixa

    evidente que a FRP, chamados de rebeldes, teriam sido os salvadores de Ruanda quando o

    mundo lhe dera as costas, dando fim aos cem dias de guerra.

    Em poucas palavras, hotel Ruanda é um filme romanceado com a narrativa crescente

    desde os primeiros minutos, mas que não prende muito a atenção. Embora seja baseado em

    fatos reais, não dispõe de informações suficientes que dê entendimento mais amplo dos fatos,

    apesar de seu apelo emocional ser muito forte, a dificuldade de se entender o cruzamento das

    informações acaba impossibilitando o mergulho na trama e desenvolver relação com a história.

    Representar os acontecimentos ocorridos na região e dentro do hotel é o principal objetivo da

    trama, retratar o ato de bravura de Paul é inenarrável para conhecer a partir de outros ângulos

    como o episódio se desenvolvera em outras localidades e como Paul Rusesabagina marca sua

    história na vida dos ruandeses com muita bravura e humanidade.

    História de um Massacre (2007)7

    O filme História de um Massacre, versão original “Shake Hands with the Devil” é um

    longa de 115 minutos, sob a direção de Roger Spottiswoode. O filme conta a história do

    massacre em Ruanda pela perspectiva do general Roméo Dellaire que na época do ocorrido

    comandava a equipe de observação da ONU, com o objetivo de preservar o acordo de paz entre

    a FPR e o governo Ruandês.

    O filme começa com um off explicando a chegada da Bélgica depois da I Guerra

    Mundial e suas interferências na cultura dos ruandeses, como a implantação das carteiras de

    identidade, classificação dos grupos por etnias, privilégios aos tútsis e assim gerando conflitos

    entre os grupos (no filme tratados como etnias) e a rebelião dos hútus que em 1959 deportam e

    matam os tútsis. Para chegar na entrada da tropa da ONU faz um salto para 1990, quando uma

    rebelião multiétnica liderada pelos tútsis invade Ruanda gerando uma série de conflitos internos

    e vem a necessidade de as tropas francesas intervirem através do um tratado de paz em 1993,

    onde a ONU é enviada para preservar essa união e manter o acordo de paz. Toda essa narrativa

    7 Diretor: Roger Spottiswoode. Roteiro: Michael Donovan, baseado no livro autobiográfico de Roméo Dallaire. Música: David Hirschfelder. Fotografia: MiroslawBaszak. Elenco: Owen Sejake, Roy Dupuis, Michel Mongeau,

    Akin Omotoso.

  • é importante para compreensão dos fatos, explicar sua atuação no país e os motivos que

    nortearam o episódio de 6 de abril de 1994.

    O filme gira em torno das consultas psicológicas do comandante Roméo Dallaire,

    interpretado por Roy Dupuis, que passa por tratamento após presenciar as atrocidades vividas

    durante o massacre. Dallaire vê sua vida na África mudar feito um ladrão na noite, em um dia

    admirava as belezas de Ruanda, paisagem que por sinal, diferente de outras representações

    cinematográfica, mostra um povo trabalhador, alegre e risonho, uma região de belas paisagens.

    A primeira frase do general respira também dentro de mim acostumada a uma outra versão da

    África cinematográfica: “ninguém mencionou que isso aqui era tão bonito”. Sobre estas

    paisagens, risos e cantorias que nos primeiros capítulos do filme se desenvolvem a narrativa do

    general de tentar levar harmonia entre os dois grupos étnicos, sobre a missão de guardiões da

    paz, através da imparcialidade e exibição de uma força de paz presente.

    Nos capítulos seguintes o filme já destaca a rivalidade forte e presente entre os dois

    grupos. Esses discursos se personifica no diálogo com a primeira ministra que é hútu e logo

    após em um conversa com Kagame líder da FPR que anuncia de forma indireta que algo terrível

    está para acontecer, a partir daí segue a tentativa do general Dellaire de estabelecer a paz entre

    eles.

    A narrativa do filme acontece dos flashbacks que o general tem em sua terapia

    psicológica, devido ao resultado de presenciar as atrocidades vividas e a culpa por não ter

    conseguido ser mais ativo e definitivo para impedir o evento. Na trama, o general Roméo luta

    contra as dificuldades e impotência contra o massacre dos tútsis tentando, sem o apoio do

    governo, impedir a matança. Nos 27 minutos de filme começa a narrar os acontecimentos do

    episódio do atentado ao avião que estava a bordo o presidente Juvénal Habyarimana, o chefe

    de gabinete e o presidente de Burundi. Instalado o caos, ruas cercadas e iniciada a caça aos

    tútsis para exterminar, Roméo se vê na contramão sem o apoio do governo para ajudar a

    amenizar a situação e tentar salvar ao menos as pessoas sob seu abrigo na área militar instalada

    para os mantedores da paz e sob o domínio do hotel Des Mille Collines8, além de driblar a

    8 O Hôtel Des Mille Collines durante o massacre abrigou 1200 tútsis sob a proteção do gerente Paul Rusesabagina, um hútu casada com uma tútsi, que na tentativa de salvar a sua família se vê responsável por

    outros tútsis que procuram o hôtel em busca de socorro.

  • guerra que nesta altura já era alarmante, também teve que lidar com fome e a doença, que

    juntamente com a guerra matava muitas pessoas nos acampamentos.

    Ao saber do avanço da guerra, classificada no filme como guerra étnica, números de

    mortos atingido, inclusive de soldados brancos, os governos francês e belga ordenam retirada

    de suas tropa, patriotas e demais brancos do país. Com essa decisão e descaso pela situação,

    deixa o general de mãos atadas frente a um episódio que a cada segundo ceifava centenas de

    vidas, colocando a sua e de seus colegas em risco na tentativa de alguma forma intervir nessa

    guerra étnica ou mesmo um genocídio. Seria aquele episódio uma guerra étnica ou um

    genocídio? Indaga o general na tentativa de tentar traduzir sem resposta aquela cena de centenas

    de corpos espalhados pelo chão mortos a foices de facão e machado, transformando ruas e locais

    em tapete de corpos tútsis e moderadores.

    O filme transcorre no apelo emocional, através da música e representação dos

    personagens tentando trazer o entendimento sobre as mortes e o extermínio da população tútsis.

    De fato o filme consegue nos atravessar a pensar sobre o acontecimento e as mãos atadas do

    general diante de tal barbárie. Impressionante como a escolha dos personagens, assim como a

    descrição dos fatos, são tão semelhantes a realidade conhecida pelo jornalismo e confirmada a

    representação dos fatos em entrevista com o comandante da marinha João Bôsco, que trabalhou

    junto com a ONU durante o período do massacre. Questionei sobre a versão do filme junto aos

    fatos reais, ele foi incisivo ao dizer que o filme é uma representação fiel na medida das

    possibilidades fílmicas aos fatos ocorridos em Ruanda e a postura do general Roméo diante do

    atentado e abandono das autoridades mundiais9. O filme a” História de um massacre” é

    assustador e desumano e consegue com clareza prender a atenção e contar a história do massacre

    em Ruanda sem se utilizar de apelos fictícios para amarrar o espectador pelos seus 115 minutos

    de trama.

    Das analises à consideração

    A matança que aconteceu em Ruanda 1994 tem pontos tão profundos que sua

    representação, por mais similar que tentar ser, dificilmente conseguirá descrever com tanta

    maestria o episódio e suas causas. Por mais que a filmografia se dedique a retratar os fatos, sua

    reprodução ainda seria passível de interpretações e apresentaria lacunas, pela diversidade

    9 Entrevista com o comandante João Bôsco, cedida no Comando do 2 Distrito Naval da Marinha em salvador.

  • cultural e sapiência de cada pessoa. A representação da história em Ruanda percebe-se ser tão

    hermético até mesmo para os que presenciaram os fatos, como fora citado nos capítulos acima

    que motivou esse artigo, que apresentaria sempre uma cavidade, principalmente para o público

    que deseja entender as minúcias da história.

    Nesse sentido, aos filmes analisados ficaram a retratação a partir de um certo dado, mas

    que de uma certa forma se completam e permitem um certo entendimento dos fatos ocorridos.

    Ao trabalhar uma narrativa como documento-história o cinema passa de um simples objeto de

    entretenimento e assume uma postura de produtor de conteúdo histórico, onde seu maior intuito

    é a representação da forma mais crível possível.

    Os filmes “Hotel Ruanda” e “A História de um Massacre”, têm como foco de narrativa

    contar o episódio do massacre por um ponto central, então nesse ponto é possível entender sua

    contextualização se formos dialogar somente com essa questão, mas para entendimento

    concreto de toda a história que o envolve, ainda que em “A História de um Massacre” exista

    uma narrativa introdutiva mais precisa que em “Hotel Ruanda”, encontram-se lacunas

    responsáveis pelas ausências dos elementos que sucedem o fato.

    Se a discussão for a eficácia da representação das imagens através dos filmes e o mesmo

    como elemento indispensável para trabalhar e ensinar história, por meio destes mesmos filmes

    ouso a dizer: os dois filmes possuem narrativas de off que tentam explicar os motivos que

    antecederam o massacre e assim tentar justificar toda a narrativa do filme. Mas somente o áudio

    não é suficiente para entender, o uso das imagens no decorrer do filme se consolidam na forma

    passada e ignorada inicialmente. A utilização do filme alicerçada aos documentos históricos

    complementa e atravessa as mensagens ao subconsciente com mais rapidez e por muito mais

    tempo. Assim, entendemos que as narrativas fílmicas apresentam para o grande público fatos

    históricos, mas não desprezam a necessidade do suporte em documentos, livros e demais

    registros históricos, uma vez que eles são indispensáveis para que se possa entender todo o

    contexto histórico complexo. Sem a representação dos filmes o episódio em Ruanda não teria

    alcançado tantas pessoas em todo o mundo. Em miúdos, o filme não pode ser desprezado como

    documento histórico, mas sozinho não dá conta de explicar a história.

    Referências Bibliográfica

  • - AMSELLE, Jean-Loup; M’BOKOLO, Elika. No Centro da Etnia: Etnias, Tribalismo e

    Estado na África. Tradução: Maria Ferreira. Petrópolis: Vozes, 2017.

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