entre o cinema e a histÓria: a guerra de ruanda a partir das representaÇÕes · 2018. 10. 29. ·...
TRANSCRIPT
-
ENTRE O CINEMA E A HISTÓRIA: A GUERRA DE RUANDA A PARTIR DAS
REPRESENTAÇÕES FÍLMICAS “HOTEL RUANDA” E “A HISTÓRIA DE UM
MASSACRE”.
Bruna Tais dos Santos1
Resumo: Este artigo versa sobre a importância do estudo das relações entre o cinema e a
história, partindo do cotejamento entre as representações construídas pelas narrativas fílmicas
e a historiografia existente sobre o tema em questão. Analisando as narrativas dos filmes Hotel
Ruanda e História de Um Massacre, com o intuito de perceber algumas das estereotipias que
constituíram sobre o evento do massacre de Ruanda, indagando sobre os motivos que
justificaram a produção e feitura destas narrativas. O presente trabalho resulta de uma pesquisa
ainda em andamento para a dissertação do mestrado do programa PPGEAFIN da UNEB.
Palavras-chave
Representação; Cinema; Ruanda; Massacre.
Abstract: This article deals with the importance of the study of the relations between cinema
and history, starting from the comparison between the representations constructed by the film
narratives and the existing historiography on the subject in question. Analyzing the narratives
of the films Hotel Rwanda and History of a Massacre, with the intention to perceive some of
the stereotypes that constituted on the event of the massacre of Rwanda, investigating on the
reasons that justified the production and making of these narratives. The present work results
from a research still in progress of the master’s thesis of the PPGEAFIN program of UNEB.
key words
Representation; Movie Theater; Rwanda; Massacre.
Introdução
Todo bom cinema nasce de uma boa história. Já ouvimos essa frase inúmeras vezes na
história do cinema. Raras vezes o cinema consegue transcender a barreira da história e produzir
bons conteúdos partindo de narrativas frágeis, sem bons enredos. Mas, e quando acontece o
1Mestranda em história pelo programa PPGEAFIN – UNEB, e-mail: [email protected].
-
contrário? Quando a história pode se valer do cinema para difundir um conteúdo, um fato, uma
situação?
A história tem sido um campo fértil de material para o cinema. Inúmeros filmes bebem
da fonte da história, retratando eventos, guerras, histórias de amor, biografias, normalmente
acompanhada da inscrição “baseado em fatos reais”. A grande questão nasce do fato do cinema,
como linguagem artística, está submetido apenas aos parâmetros estéticos, por vezes
econômicos, mas não tem um compromisso com os fatos, com a verdade. Isso nos aponta para
uma questão: se a história poderia se valer do poder de propagação do cinema para ampliar seu
público e para difundir fatos históricos.
Esse dilema será o ponto de partida para pensar e analisar um evento histórico
específico: o massacre de Ruanda. Fato ignorado pela grande mídia, encontrou nas
representações fílmicas um poder de propagação e uma ferramenta de difusão no resto do
mundo. Através dos filmes analisados neste artigo, muitas pessoas souberam inclusive da
existência deste país localizado na África. Mas são dois filmes, dois pontos de vista, contestados
por uns, validados por outros, com maior ou menor cunho histórico, refletiremos sobre isso nas
linhas a seguir.
Breviário sobre Ruanda antes da matança de 1994 - Das bibliografias, à história
Para entender o processo da guerra que ocorreu em Ruanda 1994 e que ganhou as telas
cinematográficas nos anos correntes no intuito de reproduzir o episódio que comoveu o mundo
diante do massacre dos tutsis, denominados como grupo étnico, faz-se necessário conhecer um
pouco a história desse país e entender o contexto desse período pré-massacre.
Ruanda é um país do continente africano localizado na região dos grandes lagos da
África centro-oriental. Com área aproximada de 26.3338 km², faz fronteira com a república
Democrática do Congo (ex-Zaire), Uganda, Tanzânia e Burundi. Os povos habitantes de
Ruanda são reconhecidos inicialmente por uma única etnia e tronco linguístico, os
Banyarwanda, que são divididos em três sub-grupos: Tutsi, Twa, Hutu. E assim formam a
população de Ruanda reconhecidos desde o estado pré-colonial.
Os Tutsis ocupavam as camadas mais altas, trabalhavam com gados, tinha maior poder
aquisitivo. Conhecidos também por seus traços finos, cor de pele um pouco mais clara e
erguidos, essa característica passava a ideia de semelhanças com os europeus. Já os Hutus
https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Banyarwanda&action=edit&redlink=1
-
ocupavam as camadas mais baixas e viviam do trabalho no campo. Ser tútsi era sinônimo de
riqueza, status, mas era possível ao hútu de renda financeira considerável se tornar um tútsi, da
mesma forma, o tútsi que tinha suas finanças rebaixadas passavam a pertencer ao grupo hútu.
Michel Sitbon cita em seu livro2 os tútsis como uma raça superior, os chamados brancos de pele
negra (essa definição se dava além do favorecimento da renda superior, aos traços finos e o tom
de pele ser mais claro que o hútu, associando os tutsis a descendência branca). Pertencer a uma
categoria tútsis era sinônimo de prestígios, elegância, superioridade.
Prior to the colonial era, Tutsis generally occupied the higher strata in
the social system and the Hutus the lower. However, social mobility
was possible, a Hutu who acquired a large number of cattle or other
wealth could be assimilated into the Tutsi group and impoverished Tutsi
would be regarded as Hutu.3
Com a chegada dos europeus, principalmente os belgas ocorrem o favorecimento dos
tútsis, acentuando as diferenças entre os grupos, gerando assim uma classificação por etnias
que se “reconhecem” até hoje, os Tútsis e os Hútus, e minimização do grupo Twa que
representava 1% da população. Como relata Gourevitch (2006, apud FRUCTUOZO, 2016, p.8).
As diferenças apontadas pelos belgas iniciaram-se pelo aspecto físico:
hutus teriam a pele mais escura, nariz mais achatado e os lábios mais
grossos, rosto redondo e queixos quadrados, enquanto os tutsis teriam a
pele mais clara, nariz e lábios mais finos, queixo estrito, rosto comprido
e seriam também mais altos que os hutus. Por considerá-los superiores,
a Bélgica deu aos tutsis os melhores e mais altos cargos políticos,
militares e administrativos. Entre 1933 e 1934 a Bélgica realizou um
censo e emitiu carteiras de identidade “étnicas” para rotular o cidadão
ruandês, onde os hutus compreendiam 85% da população, os tutsis
representavam 14% e de apenas 1%.
Em 1931 ocorre a implantação das carteiras de identidade definindo a separação total
de tútsi e hútu, impedindo a mobilidade social de um grupo para o outro, vistos agora como
grupos étnicos e registrados em suas carteiras de identificação, ficaram ainda mais acentuadas
as diferenças e os privilégios que os tútsis já vinham tendo, desfavorecendo os hútus.
2 Ruanda, um genocídio na consciência, tradução Conchita Martins, Lisboa, 2000. Michel Sitbon utiliza desse
termo para relatar a prática da colonização no favorecimento dos tutsis. 3 Tradução: Antes da era colonial, os tutsis geralmente ocupavam as camadas mais altas do sistema social e os
hutus, os inferiores. Contudo, a mobilidade social era possível, um hutu que adquirisse um grande número de gado
ou outras riquezas poderia ser assimilado ao grupo tutsi e os tutsis empobrecidos seriam considerados hutus.
Rwanda: A Brief History of the Country
. Acesso em 06.07.2018
http://www.un.org/en/preventgenocide/rwanda/education/rwandagenocide.shtml
-
O ano de 1994 foi um divisor de águas na vida dos ruandeses. Um país que vivia as
margens da invisibilidade no mundo ganha destaque após o episódio que ceifa mais de 800 mil
almas inocentes, levando-o a ser tema dos cinemas de Hollywood e Toronto. Sua história
desperta curiosidade de estudiosos, cineastas, historiadores, escritores, jornalistas e a mídia em
geral. O que antes era conhecido por seus planaltos, colinas suaves e os raros gorilas-das-
montanhas que movimentavam o setor turístico, teve sua história reformulada e marcada por
uma tragédia que cerca todos os sobreviventes e descendentes do local.
No fim da tarde de 6 de abril de 1994 a população de Ruanda é surpreendida com a
notícia de que o avião em que viajava o presidente Juvénal Habyarimana foi abatido próximo
ao aeroporto de Kigali, levando a morte todos abordo, como destaca O jornalista francês Jean
Hatzfeld:
Quando, na noite de 6 para 7 de abril, seis ou sete horas depois da
explosão do avião, deu-se o sinal verde a um grupo restrito, o Exército,
a polícia e a administração estavam operando. [...] As matanças
começaram dia após dia, em ritmos diferentes de acordo com as regiões,
mas nenhum obstáculo entravou o bom andamento do massacre.
(Hatzfeld, 2005, p.67).
A partir daqui segue a tentativa do cinema de narrar este episódio que culminou a vida de mais
800 mil ruandeses.
Cinema como contador de história - A necessidade de representação
Contar uma história sobre um acontecimento real sempre fora o trabalho dos livros,
fotografias e literatura oral. Os livros sempre foram vistos como ferramentas para essas
narrativas. Há um tempo a sociedade vem sentido a necessidade de tornar essa experiência mais
forte, com o avanço da tecnologia, a metodologia e a resignificação da comunicação essas
narrativas também evoluiram. Parafraseando Carriére (1995) é muito mais forte e duradouro o
entendimento dos acontecimentos por meio das representações em imagens do que pelas frases
e palavras de um livro. Chartier (2002) também destaca a representação por meio das imagens
como facilitador no reconhecimento mediato e importante para reconstruir a memória. Também
destaca: “[...] a representação e instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente
através da sua substituição por uma «imagem» capaz de o reconstituir em memória e de o figurar tal
como ele é”.
-
O cinema é o meio que as pessoas tem mais acesso a história do que através dos livros,
o que torna ele o produto de maior projeção e disseminação4. Embora possua uma linguagem
individual, sem compromisso com a verdade, o cinema tem se destacado na tarefa de contar a
história e se tornado cada vez mais um produtor de conteúdo histórico, despertando a atenção
dos historiadores que se utilizam das imagens cinematográficas para trabalhar seus estudos e
analisar sua representação.
Ainda é muito discutido a utilização do cinema como fonte histórica, mas a verdade é
que o cinema, apesar de ter linguagem própria e sua maneira diferente dos livros na narrativa,
tem sido uma forma de representação, e assim não deve ser negada sua influência e interferência
na história, mas sim, estudar e esmiuçar a história/narrativa, imagens e seus significados,
permitindo ao historiador um estudo sistematizado das práticas e representação cultural, como
destaca Barros (2007):
“Qualquer obra cinematográfica – seja um documentário ou uma pura
ficção – é sempre portadora de retratos, de marcas e de indícios
significativos da sociedade que a produziu. É neste sentido que as obras
cinematográficas devem ser tratadas pelo historiador como fontes
históricas significativas para o estudo das sociedades que produzem
filmes, o que inclui todos os géneros fílmicos possíveis.”
Assim, ao trabalhar o cinema como produto-história, cabe ao historiador analisar a
dramaturgia e contrapor com os dados bibliográficos, observando se o relato é crível.
Como aborda Ferreira (2009) “O pesquisador deve estar atento à forma pela qual o episódio é
retratado, quem é o narrador, a importância das cenas apresentadas e sua relação com o fato
histórico com o qual o enredo se relaciona e, especialmente, que aspectos podem s aproximar
dos fatos reais.”. Porém, neste trabalho não iremos adentrar na história do cinema como fato
decisivo ou não, apenas me permiti discorrer em pequenos parágrafos a justificativa da
utilização do cinema como ponto de análise para a história.
O cinema sobre Ruanda
O cinema foi uma das mídias, que junto com o jornalismo mais propagou o episódio do
massacre em Ruanda. Sendo que o filme tem a possibilidade de atingir um maior numero de
4 O cinema tem a seu favor a capacidade de atingir um grande público sem grandes esforços – ainda mais quando falamos de filmes que contam com uma grande campanha publicitária para divulgação.
GUZZO, Morgani, TEIXEIRA Níncia Cecília Ribas Borges. O genocídio em Ruanda: intersecções entre
jornalismo, história e cinema. Verso e Reverso, XXIV(56):83-94, maio-agosto 2010.
-
espectadores, consegue transmitir sensibilidade através das imagens permitindo de forma mais
direta traduzir através das emoções o percurso dessa história que mexe com intelecto da
imaginação de qualquer pessoa e supri a necessidade da representação, como relata Schurmans
(2010)5 “Com a ausência de imagens fotografias de qualidade e clareza, o cinema acaba por
preencher o vazio audiovisual com a representação supostamente fies as experiências contadas
pelos sobreviventes assim como pelos executores.”.
Entendendo a necessidade de preencher o vazio desta representação e sabendo da
dificuldade que é contar a história de forma tão plausível como aconteceu na realidade sobre o
episódio em Ruanda, é impossível mostrar o que realmente se passou. Ninguém estaria
preparado para viver, ainda que como espectador, a guerra brutal que sofreram os sobreviventes
e parentes, vítimas que viram seus entes e amigos morrerem de forma tão cruel que não traduz
um terço as tentativas nas representações. Assim, ficou para o cinema a incumbência de
representar a história desse massacre com base nos informes jornalístico que cobriram o caso e
os relatos de sobreviventes e assassinos que declararam seus crimes.
Hotel Ruanda (2004)6
O filme Hotel Ruanda é um longa-metragem de 121 minutos que conta a história do
massacre a partir da narrativa do gerente do hotel em Kigali, Paul Rusesabagina, um hútu
casado com uma tútsi que luta para manter a salvos sua família e demais refugiados que
procuram o hotel em busca de abrigo. Paul Rusesabagina, interpretado por Don Cheadle é um
negociante que consegue manter a salvos milhares de pessoas através da compra de favores aos
militares e política fora de seu país em busca de ajuda, o dinheiro e a bebida foram o preço para
manter o hotel longe do alcance dos exterminadores.
O filme começa com um off da Rádio RTLM (rádio local de Ruanda) narrando a
insatisfação dos hútus em ter os tútsis novamente convivendo entre eles. A rádio RTLM aparece
sempre com a narrativa de propagação de ódio porém sem muitos esclarecimentos do que se
passa na história. Deixando clara que a classificação por etnias fora dado pelos belgas, explicita
5 Artigo publicado por Fabrice Schurmans para a Oficina do CES n.º 336, janeiro 2010. 6 Hotel Ruanda, título original Hotel Rwanda. Direção: Terry George. Roteiro: Keir Pearson e Terry George.
-
no diálogo entre o jornalista e um tútsi que descreve a atuação dos Belgas e o motivo dos
conflitos no país:
“Segundo os belgas os tútsis são mais altos e elegantes, foram eles que
criaram essa divisão, escolhiam pessoas com narizes mais finos e pele
mais claras. Os belgas usaram os tútsis para governar, quando foram
embora deixaram o poder com os hútus que se vingaram dos tútsis pelos
anos de opressão”.
Embora esse diálogo permita a quem assiste relacionar as diferenças entre as duas etnias criadas
pelos belgas, as diferença citadas pelos belgas não era possível identificar quem era quem e
esse ponto é também abordado nos documentos históricos, e também na narrativa inicial da
rádio RTLM de tentar resumir o motivo da indiferença entre eles, o entendimento sobre ponto
da história é vazio, é insuficiente para compreensão do tamanho do problema instalado no país,
a dramaturgia não resolve o entendimento plausível desses fatos.
Os capítulos seguintes narram a predição dos assassinatos aos tútsis, chamados de
baratas e árvores altas e assim o início do caos quando o avião que transportava o presidente
Juvénal Habyarimana cai, acusando os rebeldes hútus pelo assassinato a fim de concretizar as
ameaças de acabar com os tútsis, ao mesmo tempo que a rádio acusava os tútsis de ter cometido
o ato contra o presidente, e assim passa a convocar todos os hútus a exterminar as baratas, cortar
todas as árvores altas. Durante o massacre, Paul tenta proteger sua família e os refugiados que
com ele se encontra, mesmo com a situação cada vez mais desesperadora e as ameaças
constantes a todos do hotel, Paul tenta ajuda com autoridades fora do país que conhecera e
conquistou o apreço através dos favores fornecidos durante a estadia no hotel.
Embora a narrativa gire em torno de Paul Rusesabagina, outras histórias são contadas
através do general da ONU, dos jornalistas e uma residente da casa de saúde que ajudam a
narrar as tragédias que estavam ocorrendo, mas que em dado momento são retirados do país
juntamente com as tropas estrangeiras deixando Ruanda sobre o extermínio dos tútsis pelos
hútus que a todo custo tentam invadir o hotel e matar todos que ali se encontram, tútsis, hútus
e moderados. Nesse momento o filme faz uma crítica severa a postura das autoridades belgas,
francesas e americanas chamando-os de covardes e negligentes com a situação caótica
estabelecida em Ruanda.
Afim de que todos saibam o que está se passando em Ruanda e como suas vidas estão
por um fio, abandonados à própria sorte Paul sugere que todos os refugiados liguem para seus
-
conhecidos fora do país e suplicassem para que eles intervissem junto as autoridades para
mandar socorro. O filme não demostra que tal atitude tenha sido o ajudador, ao contrário, deixa
evidente que a FRP, chamados de rebeldes, teriam sido os salvadores de Ruanda quando o
mundo lhe dera as costas, dando fim aos cem dias de guerra.
Em poucas palavras, hotel Ruanda é um filme romanceado com a narrativa crescente
desde os primeiros minutos, mas que não prende muito a atenção. Embora seja baseado em
fatos reais, não dispõe de informações suficientes que dê entendimento mais amplo dos fatos,
apesar de seu apelo emocional ser muito forte, a dificuldade de se entender o cruzamento das
informações acaba impossibilitando o mergulho na trama e desenvolver relação com a história.
Representar os acontecimentos ocorridos na região e dentro do hotel é o principal objetivo da
trama, retratar o ato de bravura de Paul é inenarrável para conhecer a partir de outros ângulos
como o episódio se desenvolvera em outras localidades e como Paul Rusesabagina marca sua
história na vida dos ruandeses com muita bravura e humanidade.
História de um Massacre (2007)7
O filme História de um Massacre, versão original “Shake Hands with the Devil” é um
longa de 115 minutos, sob a direção de Roger Spottiswoode. O filme conta a história do
massacre em Ruanda pela perspectiva do general Roméo Dellaire que na época do ocorrido
comandava a equipe de observação da ONU, com o objetivo de preservar o acordo de paz entre
a FPR e o governo Ruandês.
O filme começa com um off explicando a chegada da Bélgica depois da I Guerra
Mundial e suas interferências na cultura dos ruandeses, como a implantação das carteiras de
identidade, classificação dos grupos por etnias, privilégios aos tútsis e assim gerando conflitos
entre os grupos (no filme tratados como etnias) e a rebelião dos hútus que em 1959 deportam e
matam os tútsis. Para chegar na entrada da tropa da ONU faz um salto para 1990, quando uma
rebelião multiétnica liderada pelos tútsis invade Ruanda gerando uma série de conflitos internos
e vem a necessidade de as tropas francesas intervirem através do um tratado de paz em 1993,
onde a ONU é enviada para preservar essa união e manter o acordo de paz. Toda essa narrativa
7 Diretor: Roger Spottiswoode. Roteiro: Michael Donovan, baseado no livro autobiográfico de Roméo Dallaire. Música: David Hirschfelder. Fotografia: MiroslawBaszak. Elenco: Owen Sejake, Roy Dupuis, Michel Mongeau,
Akin Omotoso.
-
é importante para compreensão dos fatos, explicar sua atuação no país e os motivos que
nortearam o episódio de 6 de abril de 1994.
O filme gira em torno das consultas psicológicas do comandante Roméo Dallaire,
interpretado por Roy Dupuis, que passa por tratamento após presenciar as atrocidades vividas
durante o massacre. Dallaire vê sua vida na África mudar feito um ladrão na noite, em um dia
admirava as belezas de Ruanda, paisagem que por sinal, diferente de outras representações
cinematográfica, mostra um povo trabalhador, alegre e risonho, uma região de belas paisagens.
A primeira frase do general respira também dentro de mim acostumada a uma outra versão da
África cinematográfica: “ninguém mencionou que isso aqui era tão bonito”. Sobre estas
paisagens, risos e cantorias que nos primeiros capítulos do filme se desenvolvem a narrativa do
general de tentar levar harmonia entre os dois grupos étnicos, sobre a missão de guardiões da
paz, através da imparcialidade e exibição de uma força de paz presente.
Nos capítulos seguintes o filme já destaca a rivalidade forte e presente entre os dois
grupos. Esses discursos se personifica no diálogo com a primeira ministra que é hútu e logo
após em um conversa com Kagame líder da FPR que anuncia de forma indireta que algo terrível
está para acontecer, a partir daí segue a tentativa do general Dellaire de estabelecer a paz entre
eles.
A narrativa do filme acontece dos flashbacks que o general tem em sua terapia
psicológica, devido ao resultado de presenciar as atrocidades vividas e a culpa por não ter
conseguido ser mais ativo e definitivo para impedir o evento. Na trama, o general Roméo luta
contra as dificuldades e impotência contra o massacre dos tútsis tentando, sem o apoio do
governo, impedir a matança. Nos 27 minutos de filme começa a narrar os acontecimentos do
episódio do atentado ao avião que estava a bordo o presidente Juvénal Habyarimana, o chefe
de gabinete e o presidente de Burundi. Instalado o caos, ruas cercadas e iniciada a caça aos
tútsis para exterminar, Roméo se vê na contramão sem o apoio do governo para ajudar a
amenizar a situação e tentar salvar ao menos as pessoas sob seu abrigo na área militar instalada
para os mantedores da paz e sob o domínio do hotel Des Mille Collines8, além de driblar a
8 O Hôtel Des Mille Collines durante o massacre abrigou 1200 tútsis sob a proteção do gerente Paul Rusesabagina, um hútu casada com uma tútsi, que na tentativa de salvar a sua família se vê responsável por
outros tútsis que procuram o hôtel em busca de socorro.
-
guerra que nesta altura já era alarmante, também teve que lidar com fome e a doença, que
juntamente com a guerra matava muitas pessoas nos acampamentos.
Ao saber do avanço da guerra, classificada no filme como guerra étnica, números de
mortos atingido, inclusive de soldados brancos, os governos francês e belga ordenam retirada
de suas tropa, patriotas e demais brancos do país. Com essa decisão e descaso pela situação,
deixa o general de mãos atadas frente a um episódio que a cada segundo ceifava centenas de
vidas, colocando a sua e de seus colegas em risco na tentativa de alguma forma intervir nessa
guerra étnica ou mesmo um genocídio. Seria aquele episódio uma guerra étnica ou um
genocídio? Indaga o general na tentativa de tentar traduzir sem resposta aquela cena de centenas
de corpos espalhados pelo chão mortos a foices de facão e machado, transformando ruas e locais
em tapete de corpos tútsis e moderadores.
O filme transcorre no apelo emocional, através da música e representação dos
personagens tentando trazer o entendimento sobre as mortes e o extermínio da população tútsis.
De fato o filme consegue nos atravessar a pensar sobre o acontecimento e as mãos atadas do
general diante de tal barbárie. Impressionante como a escolha dos personagens, assim como a
descrição dos fatos, são tão semelhantes a realidade conhecida pelo jornalismo e confirmada a
representação dos fatos em entrevista com o comandante da marinha João Bôsco, que trabalhou
junto com a ONU durante o período do massacre. Questionei sobre a versão do filme junto aos
fatos reais, ele foi incisivo ao dizer que o filme é uma representação fiel na medida das
possibilidades fílmicas aos fatos ocorridos em Ruanda e a postura do general Roméo diante do
atentado e abandono das autoridades mundiais9. O filme a” História de um massacre” é
assustador e desumano e consegue com clareza prender a atenção e contar a história do massacre
em Ruanda sem se utilizar de apelos fictícios para amarrar o espectador pelos seus 115 minutos
de trama.
Das analises à consideração
A matança que aconteceu em Ruanda 1994 tem pontos tão profundos que sua
representação, por mais similar que tentar ser, dificilmente conseguirá descrever com tanta
maestria o episódio e suas causas. Por mais que a filmografia se dedique a retratar os fatos, sua
reprodução ainda seria passível de interpretações e apresentaria lacunas, pela diversidade
9 Entrevista com o comandante João Bôsco, cedida no Comando do 2 Distrito Naval da Marinha em salvador.
-
cultural e sapiência de cada pessoa. A representação da história em Ruanda percebe-se ser tão
hermético até mesmo para os que presenciaram os fatos, como fora citado nos capítulos acima
que motivou esse artigo, que apresentaria sempre uma cavidade, principalmente para o público
que deseja entender as minúcias da história.
Nesse sentido, aos filmes analisados ficaram a retratação a partir de um certo dado, mas
que de uma certa forma se completam e permitem um certo entendimento dos fatos ocorridos.
Ao trabalhar uma narrativa como documento-história o cinema passa de um simples objeto de
entretenimento e assume uma postura de produtor de conteúdo histórico, onde seu maior intuito
é a representação da forma mais crível possível.
Os filmes “Hotel Ruanda” e “A História de um Massacre”, têm como foco de narrativa
contar o episódio do massacre por um ponto central, então nesse ponto é possível entender sua
contextualização se formos dialogar somente com essa questão, mas para entendimento
concreto de toda a história que o envolve, ainda que em “A História de um Massacre” exista
uma narrativa introdutiva mais precisa que em “Hotel Ruanda”, encontram-se lacunas
responsáveis pelas ausências dos elementos que sucedem o fato.
Se a discussão for a eficácia da representação das imagens através dos filmes e o mesmo
como elemento indispensável para trabalhar e ensinar história, por meio destes mesmos filmes
ouso a dizer: os dois filmes possuem narrativas de off que tentam explicar os motivos que
antecederam o massacre e assim tentar justificar toda a narrativa do filme. Mas somente o áudio
não é suficiente para entender, o uso das imagens no decorrer do filme se consolidam na forma
passada e ignorada inicialmente. A utilização do filme alicerçada aos documentos históricos
complementa e atravessa as mensagens ao subconsciente com mais rapidez e por muito mais
tempo. Assim, entendemos que as narrativas fílmicas apresentam para o grande público fatos
históricos, mas não desprezam a necessidade do suporte em documentos, livros e demais
registros históricos, uma vez que eles são indispensáveis para que se possa entender todo o
contexto histórico complexo. Sem a representação dos filmes o episódio em Ruanda não teria
alcançado tantas pessoas em todo o mundo. Em miúdos, o filme não pode ser desprezado como
documento histórico, mas sozinho não dá conta de explicar a história.
Referências Bibliográfica
-
- AMSELLE, Jean-Loup; M’BOKOLO, Elika. No Centro da Etnia: Etnias, Tribalismo e
Estado na África. Tradução: Maria Ferreira. Petrópolis: Vozes, 2017.
- BARROS, José d’Assunção. Cinema e história – as funções do cinema como agente, fonte
e representação da história. Ler História, 52 | 2007, 127-159.
- CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia: A História entre certezas e Inquietudes.
Tradução: Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Universidade/UFRGS, 2002.
- CHARTIER, Roger. A história Cultural entre Práticas e Representações. Tradução de
Maria Manuela Galhardo. Portugal: Difusão Editorial, S.A. 2002.
- CARRIÈRE, Jean. A linguagem secreta do Cinema. Tradução: Fernanda Albagli, Benjamin
Albagli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
- GONÇALVES, Eliane. A Narrativa do Genocídio de Ruanda a partir do Jornal “Folha
de São Paulo”. São Paulo: Revista Diversitas, n. 4, p. 58-101, apr. 2016.
- GUZZO, Morgani, TEIXEIRA Níncia Cecília Ribas Borges. O genocídio em Ruanda:
intersecções entre jornalismo, história e cinema. Verso e Reverso, XXIV(56):83-94, maio-
agosto 2010.
- HATZFELD, Jean. Uma Temporada de Facões: Relatos do Genocídio em Ruanda.
Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
- NKRUMAH, Kwame. Lutas de Classes em África. 2ed. Nova Cultura, 2018.
- SCHURMANS, Fabrice. O genocídio do Ruanda no Cinema: Ausências, representações,
manipulação. Artigo publicado a Oficina do CES n.º 336, janeiro 2010. Disponível em:
Acesso em: 08.07.2018.
- SITBON, Michel. Ruanda: Um genocídio na Consciência. Tradução: Conchita Martins.
Lisboa: Dinoussauro, 2000.