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ENTRE NOVIDADES E HEGEMONIAS: UMA ANÁLISE DOS ATORES E DOS CONTEÚDOS DA REVISTA DA ANPEGE (2003-2018)
VAGNER ANDRÉ MORAIS PINTO1
JOSELI MARIA SILVA2 Resumo: O objetivo da pesquisa é evidenciar os atores, conceitos e temas na Revista da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Geografia (ANPEGE). A produção científica se materializa fundamentalmente a partir de produtos científicos, dentre os quais os artigos são atualmente os mais valorizados na disputa do campo da burocracia estatal, principal promotora desta atividade no país. Nestes termos, compreender o comportamento dos periódicos científicos e a distribuição de notas é um dos elementos principais para legitimar determinadas teorias e atores. A escolha da Revista da ANPEGE decorre da relevância de sua visibilidade e qualificação na comunidade acadêmica da Geografia . Este periódico tem uma história recente, seu surgimento é de 2003, período concomitante ao de expansão dos programas de pós-graduação em geografia no país, conforme apontou Sant'anna Neto (2014). A sistematização consistiu em extrair e armazenar os metadados de 243 artigos, publicados entre 2003 e 2018, na plataforma digital Zotero. Os metadados automatizados como título, autoria, resumo, palavras-chave e data foram complementados com outros campos como procedência institucional dos autores e temáticas. As instituições produtoras da geografia brasileira foram classificadas pelos conceitos atribuídos na Avaliação Quadrienal de 2017 da Capes. Considerou-se as instituições centrais, ou de excelência, aquelas com nota 7 e 6; as intermediárias com nota 5; e as instituições de margem aquelas de nota 4 e 3. Os resultados demonstram, primeiramente, a descentralização da origem das publicações na última década. Enquanto nos anos 2003-2008 as instituições centrais detinham quase 60% do volume das publicações, nos períodos seguintes da análise, 2009-2013 e 2014-2018, este percentual diminuiu para 43% e 29% do montante, respectivamente. Nesse ínterim, as instituições intermediárias e as instituições periféricas contabilizaram um aumento de 500% nas publicações desde 2003, registrando na atualidade mais artigos que as instituições de excelência. Noutro plano, são observadas relações entre a utilização dos conceitos e das temáticas. O espaço enquanto conceito fundamental e mais amplo do saber geográfico foi o mais utilizado em toda temporalidade analisada da Revista da ANPEGE. Assim como verificou Suertegaray (2016) em abordagem similar, o espaço geográfico em sua concepção tradicional se encontra pulverizado e sob novas roupagens. Todavia, merece destaque o significativo incremento de reflexões que se valeram do território e da paisagem nos últimos anos, com emprego dez vezes maior desde 2008. Isto se vincula fundamentalmente neste período com o expressivo aumento de publicações sobre as temáticas urbanas, políticas e sociais, atreladas à discussões embasadas no território; bem como, a temática de maior crescimento, a ambiental, que incorporou reflexões a partir da paisagem. Desta feita, são apresentados indicativos de uma reconfiguração em curso das geometrias de poder (MASSEY, 2009) e no campo científico geográfico brasileiro (BOURDIEU, 2004), uma vez que, a maior parcela deste movimento temático e conceitual advém de universidades consideradas periféricas.
Palavras-chave: Produção científica, poder, epistemologia, Geografia, Revista da ANPEGE. Abstract: The aim from this research is to show the actors, concepts and themes in the Revista da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Geografia (ANPEGE). The scientific production is structured by scientific products, of which the articles are the most valued in the field of state bureaucracy, the main promoter of this activity in Brazil. In these sense, understanding the behavior of scientific journals and the distribution of ranking is one of the principal elements to
1 Acadêmico do programa de pós-graduação em Geografia da Universidade Estadual de Ponta
Grossa. E-mail de contato: [email protected]. 2 Docente do programa de pós-graduação em Geografia da Universidade Estadual de Ponta
Grossa. E-mail de contato: [email protected].
legitimize certain theories and actors. The choice of Revista da ANPEGE is based on the relevance of its visibility and qualification in the academic community of Geography. This journal it's recent, since 2003, a period concomitant with the expansion of graduate programs in Geography in the country, as Sant'anna Neto (2014). The methodology consisted in extracting and storing the metadata of 243 articles, published between 2003 and 2018, on the Zotero digital platform. The automatic capture of metadata such as title, authorship, abstract, keywords and date were complemented with other fields as institutional origin of the authors and themes. The institutions with productions in Geography were classified by the concepts attributed in the Avaliação Quadrienal de 2017 da Capes. The central institutions were considered those with notes 7 and 6; the intermediates with note 5; and the marginal institutions those of note 4 and 3. The results demonstrate, firstly, the decentralization of the places of the publications in the last decade. While in the years 2003-2008 the central institutions held almost 60% of the volume of publications, posteriorly this percentage decreased to 43% and 29% of the amount, respectively in 2009-2013 and 2014-2018. At the same time, intermediate institutions and peripheral institutions have accounted for a 500% increase in publications since 2003. On another point, relationships between the use of concepts and themes are observed. Space as a fundamental and broader concept of geographical knowledge was the most used in the analyszed period. As Suertegaray (2016) found in a similar research the widespread use of geographical space. Also worth mentioning is the significant increase of the territory and the landscape in recent years, with employment ten times greater since 2008. This is linked in this period with the significant use in publications on urban, political and social issues, that relates to the discussions based on the territory; as well as the theme of greater growth, the environmental theme, that incorporated reflections from the landscape. in this text are shown indicative of an reconfiguration of the power geometries (MASSEY, 2009) and in the Brazilian geographic scientific field (BOURDIEU, 2004), since this theme and conceptual movement results universities peripheral considered.
Keywords: Scientific production, power, epistemology, Geography, Revista da ANPEGE. 1 – Introdução
Nos últimos 20 anos ocorreu um expressivo aumento do número de
programas de pós-graduação pelo Brasil, não o sendo diferente no saber geográfico,
o qual atualmente conta com 65 cursos stricto sensu na área, mais que o triplo em
relação aos 19 existentes em 1998 (DANTAS, 2017). Concomitante a este fenômeno
também ocorreu um processo de interiorização destes cursos, ampliando a oferta
para além do Sudeste e de algumas capitais no Sul e Nordeste, com vistas de
mitigar assimetrias regionais e promover um desenvolvimento mais generalizado no
território nacional (SANT’ANNA NETO, 2014). Contudo, conforme terminologia
utilizada por Dantas (2017) na última avaliação de área da CAPES, os programas de
pós-graduação em Geografia no país são categorizados em área core (das
metrópoles São Paulo e Rio Janeiro, com evidente destaque para USP e UFRJ), em
periferia próxima (interior de São Paulo, com UNESP-PP e UNICAMP, e do Rio, UFF,
e Minas Gerais, sobressaindo UFMG) e periferia distante (nas regiões Nordeste,
como UFC e UFPE; Sul, com UFRGS e UFPR; e Centro-Oeste, UFG e UnB).
Na atualidade, então, como estas assimetrias estão configuradas? Como a
visibilidade e a influência no campo científico geográfico são condicionadas e
potencializadas por elementos como a tradição e a pujança econômica? Dentre
muitos possíveis questionamentos, uma importante hipótese foi lançada por César
(2015) ao investigar as causas da escassa representatividade feminina na produção
científica geográfica brasileira. Ao verificar que as mulheres de universidades
periféricas publicavam um volume relativamente maior em periódicos de menor
qualificação por tratarem de temáticas pouco estabelecidas no campo, foi
considerada a possibilidade de que a inovação temática seria mais expressiva longe
dos grandes centros. O levantamento de Suertegaray (2016) a partir publicações
entre os anos 2000-2015 em 8 periódicos3 indica certa diversidade de temáticas e de
conceitos nos diferentes subcampos geográficos, todavia, tal amostra não possibilita
uma real dimensão desta diversidade, sobretudo se considerados os periódicos mais
jovens e menos qualificados.
Neste seguimento, Sposito (2016) com vistas de compreender o intercâmbio
entre os programas de pós-graduação a partir dos membros externos convidados
para bancas de mestrado e doutorado em Geografia no país, identificou conexões
muito expressivas e intensas entre USP, UFRJ e UNESP-PP. Conexões menos
expressivas, mas com significativa reciprocidade, foram observadas entre
universidades da periferia próxima e das periferias distantes.
Temos indicativos, assim, que o campo da geografia é hierarquizado e
articulado por relações assimétricas envolvendo a disputa e a manutenção de
objetos materiais e simbólicos.
2 – Espacialidades e poder na produção científica
Na discussão que será estabelecida, o conceito de campo é uma importante
composição teórica inicial, o qual foi elaborado por Bourdieu na busca compreensiva
de um dado tipo de produção cultural (ciência, literatura, política, economia, etc.)
escapando à suposição da existência de certa partenogênese (engendramento
próprio, sem intervenção do contexto social), bem como enquanto derivada de uma
3 Geographia (UFF), Geografares (UFES), Mercator (UFC), Terra Livre (AGB), GEOUSP (USP),
Cidades (Unesp-Prudente), Revista Brasileira de Geomorfologia (UGB) e Revista Brasileira de Climatologia (ABCLIMA).
relação direta entre o texto, em si, e o contexto, externo. O autor defende uma
hipótese que
[...] consiste em supor que, entre esses dois polos, muito distanciados, entre os quais se supõe, um pouco imprudentemente, que a ligação possa se fazer, existe um universo intermediário que chamo o campo literário, artístico, jurídico ou científico, isto é, o universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência. Esse universo é um mundo social como os outros, mas que obedece a leis sociais mais ou menos específicas [...] A noção de campo está aí para designar este espaço relativamente autônomo, esse microcosmo dotado de suas próprias leis (BOURDIEU, 2004, p. 20).
Deste modo, a legitimação de uma dada produção científica é resultado de
discussões intensas entre sujeitos com distintas possibilidades de ação e de
credibilidade em produzir o efeito almejado no âmbito acadêmico. Por exemplo, o
êxito de um artigo científico, desde o seu aceite para publicação à obtenção um
elevado número de citações, depende, entre outros aspectos “do número de atores
na área, do caráter inédito do que está em jogo, da personalidade e da filiação
institucional dos autores, das apostas e do estilo do artigo” (LATOUR; WOLGAAR,
1997, p. 268). Ademais, este embate intelectual “tem e mantém suas regras de jogo:
o respeito aos dados, por um lado; a obediência a critérios de coerência, por outro”
(MORIN, 2005, p. 24).
A curiosidade acerca dos elementos implicados quando tratamos das
espacialidades acadêmicos em suas relações instituintes é a motivação desta
pesquisa. O conceito de campo fornece interessante capacidade explicativa para o
fenômeno que buscamos construir inteligibilidade. Todavia, ele é deveras limitado e
limitante quando se busca compreender a complexa dinâmica escalar da geografia
produzida no país.
Como argumenta Massey (2009) o modo como o espaço é imaginado, seja
no trabalho intelectual, na vida social ou na prática política, importa. Ao conceber o
espaço como tão somente forma e materialidade e as instituições como entidades
autônomas e imutáveis, negamos o caráter múltiplo e sempre inacabado das
relações humanas, bem como do inerente exercício de poder pelas mesmas. Deste
modo, conforme a autora, o poder em si possui uma geografia, uma cartografia
própria pode ser expressa através do conceito de geometrias do poder.
Esta proposição conceitual está fundamentada na premissa de que, se o
poder é relacional, deve-se imaginar um jogo escalar muito variado em que os mais
diversos grupos sociais, lugares ou mesmo países interagem em termos culturais,
econômicos e políticos em intensidades múltiplas. Assim, se deve compreender as
geometrias de poder como feixes conjunturais dinâmicos e nunca específicos. Os
diferentes elementos que configuram a pesquisa geográfica, da materialidade dos
recursos financeiros e infraestrutura de instalações ao poder simbólico das
representações de vanguarda e prestígio acadêmico, estão implicados
indissociavelmente neste emaranhado de interações.
Neste sentido, o que formam ‘centros’ e ‘periferias? Latour (2000) argumenta
como estas relações interdependentes e assimétricas se estabelecem a partir do
conhecimento científico:
Como atuar a distância sobre eventos, lugares e pessoas pouco conhecidos? Resposta: trazendo para casa esses acontecimentos, lugares e pessoas. Como fazer isso se estão distantes? Inventando meios que (a) os tornem móveis para que possam ser trazidos, (b) os mantenham estáveis para que possam ser trazidos e levados sem distorções, decomposição ou deterioração, e (c) sejam combináveis de tal modo que, seja qual for a matéria de que são feitos, possam ser acumulados, agregados ou embaralhados como um maço de cartas. Se essas condições forem atendidas, então uma cidadezinha provinciana, um obscuro laboratório ou uma empresa de fundo de quintal, inicialmente tão fracos quanto qualquer outro lugar, se transformarão em centros capazes de dominar a distância muitos outros lugares (LATOUR, 2000, p. 362).
Considerada esta retroalimentação diferenciada, as geometrias de poder nos
ajudam a compreender que os lugares não são/estão estanques e que em menor ou
maior grau, frequência e duração relações estão acontecendo e influenciando
espacialidades. Podemos, assim, realizar questionamentos como: o que acontece
quando a CAPES rebaixa ou promove os programas de pós-graduação? O que está
por trás da emergência ou do declínio de dadas temáticas de pesquisa? Como os
poderes político, econômico e científico interagem?
Massey (2009) aponta, então, que não se tratam de ‘conexões ritualísticas’
com um ‘sistema mais amplo’, mas sim de relações reais e com conteúdo real
(político, econômico, científico, cultural) que acontecem entre locais diversos,
estejam ‘próximos’ ou ‘distantes’. Tal concepção pressupõe, por sua vez, uma
análise que não enfoque apenas o lugar isoladamente, mas em seu caráter global, a
citar, por exemplo, que “na geografia econômica, há muito tempo se aceita o
argumento de que não é possível entender o ‘centro da cidade’ – [como] a perda de
empregos ou o declínio do trabalho de manufatura que lá ocorre – somente pela
observação do centro (MASSEY, 2000, p.184).
Conforme Latour (2000) explana, a ciência possui um caráter cumulativo, que
consiste da articulação entre o que entende por conhecimentos locais e
conhecimentos em rede, sendo estes últimos os que, efetivamente, sobressaem
num ciclo de acumulação e mobilização do mundo. Novamente, isto tudo está
implicado por imaginações espaciais:
Comparada à cartografia, à zoologia, à astronomia e à economia, parece que cada etnogeografia, etnozoologia, etnoastronomia, etnoeconomia é peculiar a um só lugar e estranhamente não-cumulativa, como se estivesse para sempre cravada num cantinho do espaço e do tempo [...] A maior parte da dificuldade que temos na compreensão da ciência e da tecnologia provém de nossa crença em que espaço e tempo existem independentemente como estruturas inflexíveis de referência em cujo interior ocorreriam acontecimentos e lugares: Essa crença impossibilita entender que diferentes espaços e diferentes tempos podem ser produzidos no interior das redes construídas para mobilizar, acumular e recombinar o mundo (LATOUR, 2000, p. 371).
Em tais conjunturas, é primordial a consideração acerca da escala.
Conforme argumenta Smith (2000), a construção dos lugares implica
necessariamente a produção da escala enquanto um critério de diferença. Diferença
esta “não tanto entre lugares, mas sim entre tipos diferentes de lugares” (p. 157,
grifo nosso). Entendida também pelo autor como uma resolução geográfica de
distintos e, muitas vezes contraditórios, processos sociais, a escala é forte
expressão das disputas que visam o estabelecimento de fronteiras entre as várias
espacialidades. Portanto, a motilidade e a diferenciação das geometrias de poder
está intimamente ligada ao jogo escalar que diversamente afeta os lugares.
3 – Conceituando discussões na Revista da ANPEGE
A produção científica se materializa na forma de produtos científicos, dentre
os quais os artigos são atualmente os mais valorizados em termos de disputa no
campo da burocracia estatal. Nestes termos, compreender o comportamento dos
periódicos científicos e a distribuição de notas é um dos elementos principais para
legitimar determinadas teorias e atores. A escolha da Revista da ANPEGE se pauta
pela relevância de sua visibilidade na comunidade acadêmica da Geografia e por
sua alta qualificação no Sistema Qualis-CAPES. Este periódico tem uma história
recente, seu surgimento é de 2003, o que coincide com o período de expansão dos
programas de pós-graduação em geografia no país, conforme apontou Sant'anna
Neto (2014). Anteriormente, em 1997, quando ainda fazia poucos anos da criação da
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia (ANPEGE), a
Capes considerou como importante que tal entidade criasse uma revista nacional
que veiculasse a produção científica da área, uma vez entendia ser a ANPEGE uma
importante instância para consulta e interlocução nos assuntos ligados à pós-
graduação no país (GERARDI, 2003).
A sistematização da pesquisa consistiu, primeiramente, em extrair e
armazenar os metadados de 243 artigos, publicados entre 2003 e 2018, na
plataforma digital Zotero. Os metadados automatizados como título, autoria,
resumo, palavras-chave e data foram complementados com outros campos como
procedência institucional dos autores e temáticas. Este procedimento possibilitou a
homogeneização da entrada dos dados, bem como a organização dos campos de
análise. Na sequência, com os dados exportados em planilhas no formato .csv foi
possível a sistematização destes em gráficos.
No Gráfico 1, está representada a quantidade de artigos publicados na
Revista da ANPEGE da procedência institucional da primeira autoria das
publicações. As instituições produtoras da geografia brasileira foram classificadas
pelos conceitos atribuídos na Avaliação Quadrienal de 2017 da Capes. Considerou-
se as instituições centrais, ou de excelência, aquelas com nota 7 e 6; as
intermediárias com nota 5; e as instituições de margem aquelas de nota 4 e 3
Gráfico 1 – Artigos publicados na Revista da ANPEGE – por conceito Capes da instituição de autoria e por ano. Organizado pelos autores.
Os resultados evidenciam a descentralização da origem das publicações na
última década. Enquanto nos anos 2003-2008 as instituições centrais representavam
quase 60% do volume das publicações, nos períodos seguintes da análise, 2009-
2013 e 2014-2018, reduziu significativamente para 43% e 29% do montante,
respectivamente. Concomitante a isto, as instituições intermediárias e as instituições
periféricas contabilizaram um aumento de 500% nas publicações desde 2003,
registrando na atualidade mais artigos que as instituições de excelência.
No Gráfico 2, estão agrupadas as publicações a partir dos conceitos
proeminentes em cada texto do periódico. Foram considerados seis conceitos
principais: espaço, território, paisagem, escala, região e lugar.
Gráfico 2 – Artigos publicados na Revista da ANPEGE – por conceito geográfico e por ano. Organizado pelos autores.
O espaço enquanto conceito fundamental e mais genérico do saber
geográfico é hegemônico em toda temporalidade analisada da Revista da ANPEGE.
Faz valer a clássica reflexão de Corrêa (1995) sobre a multidimensionalidade do
espaço: “Absoluto, relativo, concebido como planície isotrópica, representado
através de matrizes e grafos, descrito através de diversas metáforas, reflexo e
condição social, experienciado de diversos modos, rico em simbolismos e campo de
lutas” (CORRÊA, 1995, p.44). Desta feita, assim como constatou Suertegaray (2016)
em abordagem similar, o espaço geográfico em sua concepção tradicional se
encontra pulverizado e sob novas roupagens, como o espaço social e
espacialidades, ou mesmo questionado por atores como Silva et al. (2015) a respeito
da estabelecida dicotomia do espaço público|privado.
Merece destaque, todavia, a guinada que território e paisagem obtiveram nos
últimos anos, com emprego dez vezes maior desde 2008. Isto se vincula
sobremaneira neste período com o expressivo aumento das temáticas urbanas,
políticas e sociais, atreladas à discussões embasadas no território; bem como, a
temática que mais cresceu, a ambiental, incorporou reflexões a partir da paisagem
(ver Gráfico 3).
Gráfico 3
– Artigos
publicados na Revista da
ANPEGE – por temática
e por ano. Orga
nizado pelos autores.
O entendimento do que caracteriza um conceito deve partir, primeiramente, da
consideração do que é uma categoria, constructo mental mais amplo que o primeiro.
Conforme Claval (2014) “o real não se apresenta ao observador de acordo com
categorias que fariam parte da ordem natural: as divisões foram construídas pelos
homens e colocam ordem na confusão das primeiras impressões (CLAVAL, 2014, p.
17). Desde Kant, as questões epistêmicas mudaram de “como as coisas são?” para
“por quê vemos as coisas como estão?”, mudança esta que definiu a necessidade
de elaborarmos parâmetros racionais manuseáveis para o trabalho intelectual. Tal
como afirma Bernardes (2011) em diálogo com Silva (1986) as categorias definem
os modos de ser e o conteúdo dos conceitos, ao passo que estes últimos são uma
representação dos objetos do pensamento, determinando seus aspectos
fundamentais. Por exemplo: “para entender o conceito de trabalho em Marx, é
preciso verificar as categorias que ele utiliza em seus escritos, a saber: contradição,
determinação, valor etc. (SILVA, 1986, p. 27 apud. BERNARDES, 2011, p. 167).
No contexto da ciência geográfica, tal discussão epistemológica é
constantemente avivada, visto que por ter sido disciplina escolar antes de
conformar um campo científico a Geografia demorou a se aproximar da Filosofia.
Embora remetam aos objetos em suas determinações, os conceitos são mais
plásticos que as definições, pois, podem abarcar várias destas e também possuem
contorno irregular e articulável. Deste modo, os conceitos devem ser estudados por
meio de seu condicionamento histórico e de suas constantes incorporações e
transformações ao longo do tempo e do espaço (SPOSITO, 2004).
Souza (2015) compreende existirem dois polos epistemológicos na Geografia
com orientações para o conhecimento sobre a natureza, de um lado, e de
conhecimento sobre a sociedade, por outro. No polo social, ou humano, o espaço
social seria entendido como um conceito mais específico que o de espaço
geográfico, uma vez que diria respeito diretamente às relações sociais, dos quais
emergiriam, inclusive conceitos derivados como o de território (componente político)
e de lugar (componente cultural). Enquanto que a paisagem seria um conceito bem
permeável nesta bipolaridade na comunidade geográfica, por transitar tanto entre a
materialidade natural e as representações sociais, sendo, deste modo, muito
operacional na análise ambiental, por exemplo (SOUZA, 2015).
Por fim, Gomes (1996) entende que ao longo do último século – e mais
intensamente depois de 1970 - as diferentes correntes do pensamento geográfico
privilegiaram um ou outro conceito em detrimento de outros e, ademais, a
conformação dos conceitos utilizados foi bem distinta conforme o viés e o tempo;
como exemplificou Corrêa (1995) sobre o espaço. Todavia, apesar de expressarem
tal curso, “as 'revoluções' da geografia partiram sempre do anúncio de uma ruptura
definitiva ou do rompimento deste ciclo. Entretanto, ao recorrerem à mesma
dinâmica, estas correntes reforçaram ainda mais esta estrutura fundamental, que
procuravam ultrapassar” (GOMES, 1996, p. 341).
Por mais que tal movimento de retroalimentação esteja presente, nos últimos
anos se verificou, de fato, a emergência de discussões que retratavam
espacialidades antes pouco exploradas. A interiorização dos programas de pós-
graduação possibilitou que novos fenômenos fossem analisados, ou, até mesmo,
que explicações consagradas nos grandes centros fossem postas à prova em outros
lugares e escalas. Desta feita, não se deve observar a produção científica expressa
na Revista da ANPEGE de modo totalizante, pois,
[…]a sociedade ou a economia não existem enquanto realidades globais; elas são feitas da coexistência, da imbricação e da integração de células locais [...] As realidades globais resultam de uma ação frequentemente lenta e sempre de difícil organização, e não da assinatura de um contrato social imaginário que apagaria de uma vez o espaço geográfico […] (CLAVAL, 2014, p. 375).
A compreensão deste movimento conceitual passa, então, pela constatação
de que “não se pode isolar o cientista e sua produção de seu grupo social, de seu
laboratório, de sua universidade, de sua comunidade para compreender sua
produção científica” (SPOSITO, 2004, p. 196). São, portanto, indicativos
importantes de uma reconfiguração das geometrias de poder (MASSEY, 1995) e no
campo científico geográfico brasileiro (BOURDIEU, 2004), pois, a maior parcela
deste movimento temático e conceitual provém de universidades consideradas
periféricas.
4 – Referências
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