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No final da década de 80, Raymond Bellour escreve que a sequência fo-
tográfica não é uma ideia clara, encontrando o seu lugar de eleição num
tempo que retira a sua força da desagregação das especificidades, mesmo
quando estas ainda são garantidas pelo afastamento entre as suas condi-
ções técnicas, como é o caso da fotografia e do cinema1.
Vinte anos depois, ao afirmarmos que a sequência fotográfica é uma
figura paradoxal, na medida em que reintroduz a experiência da duração
no registo da imagem fixa e aproxima a fotografia do cinema, não pode-
mos deixar de concordar com Bellour. Todavia, devemos acrescentar que,
se a posição de destaque ocupada pela sequência fotográfica se prolonga
até hoje, as origens da sua utilização em larga escala remontam aos anos
60, momento em que a fotografia é apropriada por campos como a perfor-
mance e a arte conceptual. Período conturbado em que se começa a ques-
tionar a especificidade dos meios e em que se assiste ao desenvolvimen-
to de uma sensibilidade em tudo contrária ao paradigma do “instante
decisivo” formulado por Henri Cartier-Bresson, a qual se traduz por uma
tendência para a expansão da temporalidade das obras, expressa, entre
outras formas, no recurso à série e à sequência de imagens.
Não obstante a multiplicidade de configurações assumidas pela
sequência fotográfica, se as suas utilizações recentes desenvolvem em
grande parte o legado taxinómico característico do século xix, como o
demonstram os trabalhos de Christian Boltanski ou de Thomas Ruff,
e se se verifica uma revisitação esporádica do modelo histórico da cro-
no fotografia (também ele associado a esse impulso para a classificação),
Entre movimento e narratividade:paradoxos da sequência fotográfica
Joana Ascensão
1. Raymond Bellour, “La Durée-Cristal” (1987), L’Entre-Images: Photo, Cinéma, Vidéo, Paris, La Différence, 2002, p. 97.
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tem-se evidenciado um outro tipo de sequência, não tanto assente em
princípios seriais ou de movimento, mas sobretudo em questões narra-
tivas. Divisão que se tem reflectido em várias tipologias que analisam
esta forma particular do fotográfico, entre as quais as elaboradas por
Philippe Dubois e por Perin Emel Yavuz.
Philippe Dubois, na sua procura das relações entre o cinema e a
fotografia contemporânea, que o conduziu à concepção da exposição
L’effet-film, matières et formes du cinéma en photographie2, distingue basica-
mente estes mesmos dois tipos de sequência: aquelas que lidam com a
questão do movimento e aquelas que, sem relação directa com as dife-
rentes fases do movimento, se reportam a questões formais e narrativas.
Perin Emel Yavuz, por seu lado, descreve outros dois tipos de
sequência que, embora englobem os descritos por Dubois, não os reco-
brem3. O primeiro, que associará à monstration du temps, baseia-se no prin-
cípio serial e na exibição do fluxo temporal na sua duração, e consiste
na sucessão ordenada de imagens com uma ligação muito forte entre si,
captadas com intervalos mais ou menos regulares. Compreendendo as
sequências de movimento apresenta-se, no entanto, como uma categoria
mais abrangente. A segunda dessas formas, que Yavuz relacionará com a
configuration du temps, assenta no desenvolvimento de uma lógica narrati-
va como princípio orientador da organização e montagem das imagens,
que, por não estar subordinada a uma ordem predefinida, possibilita a
criação de uma nova temporalidade.
Embora a distinção entre as categorias propostas por Dubois radi-
que na representação do movimento, e a divisão de Yavuz na representa-
ção do tempo, as duas tipologias são em parte coincidentes, pois ambos
os autores opõem o que definem como formas elementares de represen-
tação do tempo e do movimento à construção narrativa. Ultrapassando
2. Exposição apresentada em Lyon, Galerie Le Réverbère II, 1999.3. Perin Emel Yavuz, “Le filmique à l’épreuve de la fixité. La photographie sequentielle dans les années 60 e 70”, Cinémaction, Paris, n.o 122, 2007, p. 145-152.
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as diferenças entre as duas perspectivas, estas tipologias ajudar-nos-ão a
pensar a pertinência da bipolarização da sequência fotográfica e a escla-
recer algumas das suas características essenciais, entre as quais as várias
modalidades do seu relacionamento com o fílmico e com a ideia de filme.
Se, por um lado, as sequências que reproduzem as fases sucessivas
de um movimento, se inscrevem claramente no território onde se cruza
a imagem fotográfica e o fotograma cinematográfico, incorporando a sua
tensão, por outro lado, as sequências fotográficas, assentes não tanto no
princípio do movimento mas sobretudo em questões narrativas, embora
manifestem uma relação menos clara com o cinema, não deixam de re-
velar um explícito “efeito-filme”. Mas enquanto nestas últimas o sentido
se constrói pela aplicação do princípio da montagem à organização das
imagens que as compõem, a conexão entre as sequências de movimento
e o cinema é tanto mais evidenciada quanto maior a regularidade dos
intervalos com que são captadas as suas imagens. Facto testemunhado
pelas primeiras experiências científicas de registo do movimento em
sequências de instantâneos equidistantes, desenvolvidas por Eadweard
Muybridge e por Étienne-Jules Marey, que anteciparam o próprio cinema-
tógrafo, sem contudo abandonarem a condição de conjuntos de imagens.
Se Marey recusa explicitamente a síntese das imagens registadas
através da cronofotografia, pois não acredita que a ilusão do movimento
possa acrescentar algo de benéfico a uma análise atenta das imagens isola-
das, Muybridge, ao utilizar um zoopraxinoscópio para animar as fotogra-
fias com que ilustrava as suas conferências sobre locomoção animal, será
aquele que mais se aproxima do cinematógrafo, sem contudo ultrapassar
o que poderemos classificar como um “cinema fotográfico”. Mas, obser-
vando mais detalhadamente o caso particular de Muybridge, são vários os
aspectos que contrariam a visão estritamente científica e documental do
projecto associada à neutralidade e à equidistância das várias poses, pois,
para além da frequente omissão de imagens pertencentes a uma sequên-
cia em virtude do seu menor interesse estético, nos seus últimos trabalhos
a questão do movimento parece surgir como um pretexto para a apresen-
tação de vários temas com uma forte componente narrativa.
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A tendência para a ficção e para a narrativização destes conjuntos de
imagens, em que a definição de sequência de movimento parece assumir
uma das suas formas mais puras e um grau mais elevado de identifica-
ção com o cinema, não apontará para o questionamento da divisão entre
sequência de movimento e sequência narrativa?
Interessa-nos de seguida abordar esta questão a partir do caso par ti -
cu lar das séries e sequências fotográficas realizadas por Helena Almei da.
Imagens que sugerem o registo de uma sucessão de movimentos, mas
cujo objecto se distingue da representação desse mesmo movimento.
Sequências aparentemente cronofotográficas que se revelam longe da
cronofotografia, apontando para uma imbricação das duas tendências.
o caso particular das sequências de helena almeida
Ao longo de mais de 40 anos Helena Almeida tem desenvolvido uma
obra que experimenta incessantemente os limites dos diferentes meios
que envolve, sejam eles a pintura, o desenho, o vídeo ou a fotografia,
na qual a auto-representação e a sequência fotográfica assumem um
papel determinante.
Para além da utilização ocasional de imagens isoladas, a artista
recorre, de forma sistemática, a conjuntos de imagens fotográficas que
aparentam documentar momentos sequenciais de uma acção, em que
deparamos invariavelmente com Helena a pintar, a desenhar ou a inter-
agir com o espaço e com os objectos que a rodeiam. Dentro de mim (1998),
sequência composta por dezoito fotografias em que o seu corpo roda em
torno de si próprio, ou um trabalho sem título, realizado em 1999, em
que a artista se representa em diferentes posições de corrida, são exem-
plos de séries com uma componente cronofotográfica muito acentuada,
na medida em que apreendemos em contínuo o movimento de um corpo
que aparece e desaparece entre as várias imagens. Porém, uma análise
atenta destes trabalhos complexifica a questão. Se o movimento e a sua
aparente decomposição parecem surgir como uma vertente essencial de
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uma obra onde domina a sequência fotográfica, esta indicia obedecer a
um propósito distinto da representação desse mesmo movimento.
Enquanto na sequência de movimento, considerada em termos
genéricos, o instante fotográfico corresponderá a uma fase qualquer do
movimento que, por não ter de obedecer aos princípios de regularidade
e de equidistância exigidos pelo cinema ou pela sequência cronofotográ-
fica, poderá ser objecto de selecção posterior, nos trabalhos de Helena
Almeida, sob a simulação do registo de um movimento composto por
instantes quaisquer, deparamos com uma sucessão de instantes verda-
deiramente privilegiados que correspondem à eleição de um conjunto
de poses fixas e à sua apresentação em séries narrativas. Poses que, na
sua aparente simplicidade, são cuidadosamente esboçadas e preparadas
pela artista, e que só pela sua exposição em sequência nos conduzem a
uma ilusão de movimento.
Esta imobilidade de base é tanto mais paradoxal quanto maior a
instabilidade dos gestos que Helena Almeida auto-encena, como exem-
plificam as séries Voar (2001), em que o seu corpo, após um voo simulado,
sucumbe à queda. E é tanto mais clara quanto maior o nível de elabora-
ção cénica envolvido pelas suas obras, o que é particularmente evidente
nas sequências que incluem a utilização de pigmento, pois a concretiza-
ção de cada uma das imagens apresentadas em sucessão exige um longo
trabalho prévio associado à reconfiguração da disposição do pigmento
com que a artista interage. Tarefa invisível que só pode ser realizada à
custa da dilatação dos intervalos que separam as várias fotografias.
Mas se a expressividade e o poder de condensação destas séries
decorrem em grande medida da força das imagens individuais que as
compõem, estas só adquirem pleno sentido na totalidade da sequência
em que se inscrevem, pois cada fotografia não pode deixar de ser con-
siderada como parte de um conjunto de poses fixas inseridas em cons-
truções ficcionais que se sucedem, citando e interrompendo o ritmo do
cinema. Recorrendo a uma afirmação de Giorgio Agamben a propósito
do projecto Mnemosyne de Aby Warburg, poderemos dizer que, no inte-
rior destas sequências, «chacune des images est envisagée moins comme
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une réalité autonome que comme photogramme»4, embora não tanto no
sentido da produção da impressão de movimento, mas devido à impor-
tância assumida pela contextualização e pela montagem.
Ao convocar a sequência como forma de conciliar a instantaneida-
de da fotografia com a continuidade do tempo para o desenvolvimento
de uma história, Helena Almeida concebe verdadeiras micro-narrativas
cujo sentido se deduz por montagem. Ficções manifestamente autobio-
gráficas que não caem no auto-retrato, nem na teatralização de várias
personagens, mas na reafirmação da sua presença, participando assim
de uma tradição fotográfica próxima da prática performativa, que incor-
pora a experiência subjectiva de quem a realiza.
Se toda a sequência fotográfica possui um carácter elíptico e des-
contínuo ditado pelos intervalos entre as suas imagens, nestas sequên-
cias esses intervalos assumem um papel particularmente relevante,
pois insinuam-se ainda no interior de cada uma das imagens que as
compõem. Terceiro modo de identificação com o cinema, não já pela
representação do movimento, ou pela montagem associada a questões
de ordem narrativa, mas pelas características que aproximam cada uma
destas imagens das propriedades do fotograma cinematográfico quan-
do extraído da sequência em que se insere. Imagem por definição instá-
vel, atravessada por qualidades como o tremido, a mancha, o desfocado,
ou um modo particularmente dinâmico de composição e de enquadra-
mento.
Não obstante a natureza cinematográfica destes trabalhos, com-
plementada por esta associação ao fotograma, não poderemos deixar de
referir que Helena Almeida, ao contrário de muitos artistas plásticos e
fotógrafos que se aproximam da forma e do pensamento cinematográfi-
co, não ultrapassa verdadeiramente a fronteira entre a sequência de ima-
gens e o fílmico5. Em 2006, quando a interrogámos sobre a sua relação
4. Giorgio Agamben, “Notes sur le geste”, Moyens sans fins: Notes sur la politique, Paris, Éditions Payot & Rivages, 1995, p. 55.
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com o cinema, Helena Almeida mencionou-nos o interesse que desde
sempre votou às fotografias publicitárias expostas nos átrios dos cine-
mas, em virtude do seu carácter metonímico e poder de condensação.
Afirmação reveladora da sua clara preferência pela sequência fotográfica
em relação ao cinema, através da qual procurará conciliar a expressivi-
dade e o poder de condensação do instantâneo com a exploração das
possibilidades narrativas da sucessão de imagens.
Na fronteira entre movimento e narratividade, as séries de Helena
Almeida contradizem esta mesma divisão, apontando para a necessida-
de do abandono das categorias estáveis a favor de uma contaminação,
que reproduz o estatuto paradoxal da própria sequência fotográfica.
Estas são sequências pontuadas por grandes vazios que contradizem
aquilo que aparenta repetir-se, fixando estados e posturas corporais
cujos intervalos devemos preencher. Envolvem «(...) une répétition
qui serait l’intensification simultanée d’une présence et d’une absen-
ce(...)»6, revelando verdadeiras “histórias” cujo protagonista é um
corpo em metamorfose permanente que, cristalizando-se numa mul-
tiplicidade de poses fixas muito construídas, se oculta e se prolonga de
modo intermitente no espaço.
5. Embora recorra frequentemente ao vídeo como esboço preparatório para a elaboração dos seus trabalhos, das duas únicas vezes que o usa como suporte final, tais utilizações são so-bretudo motivadas por questões de ordem sonora: o silêncio total do vídeo Ouve-me (1979), por contraposição à peça exclusivamente sonora Vê-me, e a vontade de reproduzir o som da presença dos joelhos que se arrastam pelo chão do atelier em A Experiência do Lugar II (2004).6. Definição de “síncope”, proposta por Louis Marin em De la représentation, Paris, Seuil, 1993, p. 365.
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