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165 No final da década de 80, Raymond Bellour escreve que a sequência fo- tográfica não é uma ideia clara, encontrando o seu lugar de eleição num tempo que retira a sua força da desagregação das especificidades, mesmo quando estas ainda são garantidas pelo afastamento entre as suas condi- ções técnicas, como é o caso da fotografia e do cinema 1 . Vinte anos depois, ao afirmarmos que a sequência fotográfica é uma figura paradoxal, na medida em que reintroduz a experiência da duração no registo da imagem fixa e aproxima a fotografia do cinema, não pode- mos deixar de concordar com Bellour. Todavia, devemos acrescentar que, se a posição de destaque ocupada pela sequência fotográfica se prolonga até hoje, as origens da sua utilização em larga escala remontam aos anos 60, momento em que a fotografia é apropriada por campos como a perfor- mance e a arte conceptual. Período conturbado em que se começa a ques- tionar a especificidade dos meios e em que se assiste ao desenvolvimen- to de uma sensibilidade em tudo contrária ao paradigma do “instante decisivo” formulado por Henri Cartier-Bresson, a qual se traduz por uma tendência para a expansão da temporalidade das obras, expressa, entre outras formas, no recurso à série e à sequência de imagens. Não obstante a multiplicidade de configurações assumidas pela sequência fotográfica, se as suas utilizações recentes desenvolvem em grande parte o legado taxinómico característico do século xix, como o demonstram os trabalhos de Christian Boltanski ou de Thomas Ruff, e se se verifica uma revisitação esporádica do modelo histórico da cro- nofotografia (também ele associado a esse impulso para a classificação), Entre movimento e narratividade: paradoxos da sequência fotográfica Joana Ascensão 1. Raymond Bellour, “La Durée-Cristal” (1987), L’Entre-Images: Photo, Cinéma, Vidéo, Paris, La Différence, 2002, p. 97.

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Page 1: Entre movimento e narratividade: paradoxos da sequência ... · PDF filecular das séries e sequências fotográficas realizadas por Helena Almeida. Imagens que sugerem o registo de

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No final da década de 80, Raymond Bellour escreve que a sequência fo-

tográfica não é uma ideia clara, encontrando o seu lugar de eleição num

tempo que retira a sua força da desagregação das especificidades, mesmo

quando estas ainda são garantidas pelo afastamento entre as suas condi-

ções técnicas, como é o caso da fotografia e do cinema1.

Vinte anos depois, ao afirmarmos que a sequência fotográfica é uma

figura paradoxal, na medida em que reintroduz a experiência da duração

no registo da imagem fixa e aproxima a fotografia do cinema, não pode-

mos deixar de concordar com Bellour. Todavia, devemos acrescentar que,

se a posição de destaque ocupada pela sequência fotográfica se prolonga

até hoje, as origens da sua utilização em larga escala remontam aos anos

60, momento em que a fotografia é apropriada por campos como a perfor-

mance e a arte conceptual. Período conturbado em que se começa a ques-

tionar a especificidade dos meios e em que se assiste ao desenvolvimen-

to de uma sensibilidade em tudo contrária ao paradigma do “instante

decisivo” formulado por Henri Cartier-Bresson, a qual se traduz por uma

tendência para a expansão da temporalidade das obras, expressa, entre

outras formas, no recurso à série e à sequência de imagens.

Não obstante a multiplicidade de configurações assumidas pela

sequência fotográfica, se as suas utilizações recentes desenvolvem em

grande parte o legado taxinómico característico do século xix, como o

demonstram os trabalhos de Christian Boltanski ou de Thomas Ruff,

e se se verifica uma revisitação esporádica do modelo histórico da cro-

no fotografia (também ele associado a esse impulso para a classificação),

Entre movimento e narratividade:paradoxos da sequência fotográfica

Joana Ascensão

1. Raymond Bellour, “La Durée-Cristal” (1987), L’Entre-Images: Photo, Cinéma, Vidéo, Paris, La Différence, 2002, p. 97.

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tem-se evidenciado um outro tipo de sequência, não tanto assente em

princípios seriais ou de movimento, mas sobretudo em questões narra-

tivas. Divisão que se tem reflectido em várias tipologias que analisam

esta forma particular do fotográfico, entre as quais as elaboradas por

Philippe Dubois e por Perin Emel Yavuz.

Philippe Dubois, na sua procura das relações entre o cinema e a

fotografia contemporânea, que o conduziu à concepção da exposição

L’effet-film, matières et formes du cinéma en photographie2, distingue basica-

mente estes mesmos dois tipos de sequência: aquelas que lidam com a

questão do movimento e aquelas que, sem relação directa com as dife-

rentes fases do movimento, se reportam a questões formais e narrativas.

Perin Emel Yavuz, por seu lado, descreve outros dois tipos de

sequência que, embora englobem os descritos por Dubois, não os reco-

brem3. O primeiro, que associará à monstration du temps, baseia-se no prin-

cípio serial e na exibição do fluxo temporal na sua duração, e consiste

na sucessão ordenada de imagens com uma ligação muito forte entre si,

captadas com intervalos mais ou menos regulares. Compreendendo as

sequências de movimento apresenta-se, no entanto, como uma categoria

mais abrangente. A segunda dessas formas, que Yavuz relacionará com a

configuration du temps, assenta no desenvolvimento de uma lógica narrati-

va como princípio orientador da organização e montagem das imagens,

que, por não estar subordinada a uma ordem predefinida, possibilita a

criação de uma nova temporalidade.

Embora a distinção entre as categorias propostas por Dubois radi-

que na representação do movimento, e a divisão de Yavuz na representa-

ção do tempo, as duas tipologias são em parte coincidentes, pois ambos

os autores opõem o que definem como formas elementares de represen-

tação do tempo e do movimento à construção narrativa. Ultrapassando

2. Exposição apresentada em Lyon, Galerie Le Réverbère II, 1999.3. Perin Emel Yavuz, “Le filmique à l’épreuve de la fixité. La photographie sequentielle dans les années 60 e 70”, Cinémaction, Paris, n.o 122, 2007, p. 145-152.

Entre movimento e narratividade: paradoxos da sequência fotográfica

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as diferenças entre as duas perspectivas, estas tipologias ajudar-nos-ão a

pensar a pertinência da bipolarização da sequência fotográfica e a escla-

recer algumas das suas características essenciais, entre as quais as várias

modalidades do seu relacionamento com o fílmico e com a ideia de filme.

Se, por um lado, as sequências que reproduzem as fases sucessivas

de um movimento, se inscrevem claramente no território onde se cruza

a imagem fotográfica e o fotograma cinematográfico, incorporando a sua

tensão, por outro lado, as sequências fotográficas, assentes não tanto no

princípio do movimento mas sobretudo em questões narrativas, embora

manifestem uma relação menos clara com o cinema, não deixam de re-

velar um explícito “efeito-filme”. Mas enquanto nestas últimas o sentido

se constrói pela aplicação do princípio da montagem à organização das

imagens que as compõem, a conexão entre as sequências de movimento

e o cinema é tanto mais evidenciada quanto maior a regularidade dos

intervalos com que são captadas as suas imagens. Facto testemunhado

pelas primeiras experiências científicas de registo do movimento em

sequências de instantâneos equidistantes, desenvolvidas por Eadweard

Muybridge e por Étienne-Jules Marey, que anteciparam o próprio cinema-

tógrafo, sem contudo abandonarem a condição de conjuntos de imagens.

Se Marey recusa explicitamente a síntese das imagens registadas

através da cronofotografia, pois não acredita que a ilusão do movimento

possa acrescentar algo de benéfico a uma análise atenta das imagens isola-

das, Muybridge, ao utilizar um zoopraxinoscópio para animar as fotogra-

fias com que ilustrava as suas conferências sobre locomoção animal, será

aquele que mais se aproxima do cinematógrafo, sem contudo ultrapassar

o que poderemos classificar como um “cinema fotográfico”. Mas, obser-

vando mais detalhadamente o caso particular de Muybridge, são vários os

aspectos que contrariam a visão estritamente científica e documental do

projecto associada à neutralidade e à equidistância das várias poses, pois,

para além da frequente omissão de imagens pertencentes a uma sequên-

cia em virtude do seu menor interesse estético, nos seus últimos trabalhos

a questão do movimento parece surgir como um pretexto para a apresen-

tação de vários temas com uma forte componente narrativa.

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A tendência para a ficção e para a narrativização destes conjuntos de

imagens, em que a definição de sequência de movimento parece assumir

uma das suas formas mais puras e um grau mais elevado de identifica-

ção com o cinema, não apontará para o questionamento da divisão entre

sequência de movimento e sequência narrativa?

Interessa-nos de seguida abordar esta questão a partir do caso par ti -

cu lar das séries e sequências fotográficas realizadas por Helena Almei da.

Imagens que sugerem o registo de uma sucessão de movimentos, mas

cujo objecto se distingue da representação desse mesmo movimento.

Sequências aparentemente cronofotográficas que se revelam longe da

cronofotografia, apontando para uma imbricação das duas tendências.

o caso particular das sequências de helena almeida

Ao longo de mais de 40 anos Helena Almeida tem desenvolvido uma

obra que experimenta incessantemente os limites dos diferentes meios

que envolve, sejam eles a pintura, o desenho, o vídeo ou a fotografia,

na qual a auto-representação e a sequência fotográfica assumem um

papel determinante.

Para além da utilização ocasional de imagens isoladas, a artista

recorre, de forma sistemática, a conjuntos de imagens fotográficas que

aparentam documentar momentos sequenciais de uma acção, em que

deparamos invariavelmente com Helena a pintar, a desenhar ou a inter-

agir com o espaço e com os objectos que a rodeiam. Dentro de mim (1998),

sequência composta por dezoito fotografias em que o seu corpo roda em

torno de si próprio, ou um trabalho sem título, realizado em 1999, em

que a artista se representa em diferentes posições de corrida, são exem-

plos de séries com uma componente cronofotográfica muito acentuada,

na medida em que apreendemos em contínuo o movimento de um corpo

que aparece e desaparece entre as várias imagens. Porém, uma análise

atenta destes trabalhos complexifica a questão. Se o movimento e a sua

aparente decomposição parecem surgir como uma vertente essencial de

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uma obra onde domina a sequência fotográfica, esta indicia obedecer a

um propósito distinto da representação desse mesmo movimento.

Enquanto na sequência de movimento, considerada em termos

genéricos, o instante fotográfico corresponderá a uma fase qualquer do

movimento que, por não ter de obedecer aos princípios de regularidade

e de equidistância exigidos pelo cinema ou pela sequência cronofotográ-

fica, poderá ser objecto de selecção posterior, nos trabalhos de Helena

Almeida, sob a simulação do registo de um movimento composto por

instantes quaisquer, deparamos com uma sucessão de instantes verda-

deiramente privilegiados que correspondem à eleição de um conjunto

de poses fixas e à sua apresentação em séries narrativas. Poses que, na

sua aparente simplicidade, são cuidadosamente esboçadas e preparadas

pela artista, e que só pela sua exposição em sequência nos conduzem a

uma ilusão de movimento.

Esta imobilidade de base é tanto mais paradoxal quanto maior a

instabilidade dos gestos que Helena Almeida auto-encena, como exem-

plificam as séries Voar (2001), em que o seu corpo, após um voo simulado,

sucumbe à queda. E é tanto mais clara quanto maior o nível de elabora-

ção cénica envolvido pelas suas obras, o que é particularmente evidente

nas sequências que incluem a utilização de pigmento, pois a concretiza-

ção de cada uma das imagens apresentadas em sucessão exige um longo

trabalho prévio associado à reconfiguração da disposição do pigmento

com que a artista interage. Tarefa invisível que só pode ser realizada à

custa da dilatação dos intervalos que separam as várias fotografias.

Mas se a expressividade e o poder de condensação destas séries

decorrem em grande medida da força das imagens individuais que as

compõem, estas só adquirem pleno sentido na totalidade da sequência

em que se inscrevem, pois cada fotografia não pode deixar de ser con-

siderada como parte de um conjunto de poses fixas inseridas em cons-

truções ficcionais que se sucedem, citando e interrompendo o ritmo do

cinema. Recorrendo a uma afirmação de Giorgio Agamben a propósito

do projecto Mnemosyne de Aby Warburg, poderemos dizer que, no inte-

rior destas sequências, «chacune des images est envisagée moins comme

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une réalité autonome que comme photogramme»4, embora não tanto no

sentido da produção da impressão de movimento, mas devido à impor-

tância assumida pela contextualização e pela montagem.

Ao convocar a sequência como forma de conciliar a instantaneida-

de da fotografia com a continuidade do tempo para o desenvolvimento

de uma história, Helena Almeida concebe verdadeiras micro-narrativas

cujo sentido se deduz por montagem. Ficções manifestamente autobio-

gráficas que não caem no auto-retrato, nem na teatralização de várias

personagens, mas na reafirmação da sua presença, participando assim

de uma tradição fotográfica próxima da prática performativa, que incor-

pora a experiência subjectiva de quem a realiza.

Se toda a sequência fotográfica possui um carácter elíptico e des-

contínuo ditado pelos intervalos entre as suas imagens, nestas sequên-

cias esses intervalos assumem um papel particularmente relevante,

pois insinuam-se ainda no interior de cada uma das imagens que as

compõem. Terceiro modo de identificação com o cinema, não já pela

representação do movimento, ou pela montagem associada a questões

de ordem narrativa, mas pelas características que aproximam cada uma

destas imagens das propriedades do fotograma cinematográfico quan-

do extraído da sequência em que se insere. Imagem por definição instá-

vel, atravessada por qualidades como o tremido, a mancha, o desfocado,

ou um modo particularmente dinâmico de composição e de enquadra-

mento.

Não obstante a natureza cinematográfica destes trabalhos, com-

plementada por esta associação ao fotograma, não poderemos deixar de

referir que Helena Almeida, ao contrário de muitos artistas plásticos e

fotógrafos que se aproximam da forma e do pensamento cinematográfi-

co, não ultrapassa verdadeiramente a fronteira entre a sequência de ima-

gens e o fílmico5. Em 2006, quando a interrogámos sobre a sua relação

4. Giorgio Agamben, “Notes sur le geste”, Moyens sans fins: Notes sur la politique, Paris, Éditions Payot & Rivages, 1995, p. 55.

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com o cinema, Helena Almeida mencionou-nos o interesse que desde

sempre votou às fotografias publicitárias expostas nos átrios dos cine-

mas, em virtude do seu carácter metonímico e poder de condensação.

Afirmação reveladora da sua clara preferência pela sequência fotográfica

em relação ao cinema, através da qual procurará conciliar a expressivi-

dade e o poder de condensação do instantâneo com a exploração das

possibilidades narrativas da sucessão de imagens.

Na fronteira entre movimento e narratividade, as séries de Helena

Almeida contradizem esta mesma divisão, apontando para a necessida-

de do abandono das categorias estáveis a favor de uma contaminação,

que reproduz o estatuto paradoxal da própria sequência fotográfica.

Estas são sequências pontuadas por grandes vazios que contradizem

aquilo que aparenta repetir-se, fixando estados e posturas corporais

cujos intervalos devemos preencher. Envolvem «(...) une répétition

qui serait l’intensification simultanée d’une présence et d’une absen-

ce(...)»6, revelando verdadeiras “histórias” cujo protagonista é um

corpo em metamorfose permanente que, cristalizando-se numa mul-

tiplicidade de poses fixas muito construídas, se oculta e se prolonga de

modo intermitente no espaço.

5. Embora recorra frequentemente ao vídeo como esboço preparatório para a elaboração dos seus trabalhos, das duas únicas vezes que o usa como suporte final, tais utilizações são so-bretudo motivadas por questões de ordem sonora: o silêncio total do vídeo Ouve-me (1979), por contraposição à peça exclusivamente sonora Vê-me, e a vontade de reproduzir o som da presença dos joelhos que se arrastam pelo chão do atelier em A Experiência do Lugar II (2004).6. Definição de “síncope”, proposta por Louis Marin em De la représentation, Paris, Seuil, 1993, p. 365.

Joana Ascensão