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ENTRE MEMÓRIAS: A CRIAÇÃO DO CURSO DE FORMAÇÃO DE
PROFESSORES PARA O ENSINO NORMAL
FABIANA RODRIGUES1
INTRODUÇÃO
Essa comunicação é parte integrante da pesquisa que está sendo desenvolvida para tese
de doutoramento e se insere no campo da História da Educação, especificamente, no viés da
História das Instituições Escolares. O trabalho ora apresentado tem por objetivo compreender
o processo de criação do Curso de Formação de Professores para o Ensino Normal (CFPEN)
que funcionou no Instituto de Educação do Estado da Guanabara (IEGB).
Em 1966 o IEGB criou um curso denominado Curso de Formação de Professores para
o Ensino Normal – CFPEN, o qual tinha por finalidade formar o professor do ensino
secundário, mais especificamente para atuar no ensino Normal. O curso teve uma duração
efêmera: sua primeira turma teve início em outubro de 1966 e a última turma a se formar foi
em 1974, pois, já em 1972 os concursos para ingresso foram suspensos, embora até o ano de
1976 as áreas administrativas continuassem a funcionar. Vale destacar que são raros os
estudos e pesquisas que tratam do tema.
O CFPEN foi marcado por incertezas, desde sua constituição até o seu término,
buscamos nesse trabalho discutir sobre os caminhos e as lutas para a criação do curso. É
importante compreender que esse processo foi permeado por debates e embates com o
Conselho Federal de Educação, com o Conselho Estadual de Educação e com os jornais da
época.
Pretende-se, a partir da utilização da História Oral com o cruzamento de outras fontes,
investigar quais foram as justificativas para a criação de um curso de ensino superior numa
instituição de formação secundária. A pesquisa procura identificar como os agentes que
participaram desse processo de criação construíram suas memórias sobre a necessidade e
importância desse espaço de formação de professores para o curso Normal. A pesquisa nos
possibilitou perceber diferentes justificativas para a criação do curso. No entanto, as
diferentes versões para a criação do CFPEN não são tão divergentes entre si, entre elas existe
1 Doutoramento UFRJ, mestre em Educação, Professora da rede estadual do Rio de Janeiro.
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a mesma ideia de ressaltar a excelência do IEGB, fato que se ancora na memória coletiva e
suas representações sobre a instituição estudada.
Um conceito que nos ajuda a entender as representações individuais e coletivas
construídas pelos diferentes agentes, é o conceito de memória. Le Goff (1990), em seu
trabalho sobre memória, infere que é a partir da memória que o homem atualiza o passado ou
representa esse mesmo passado. Através deste trabalho, nos valemos do conceito de memória
coletiva e sua relação com a memória individual. Para tanto, buscamos nos ancorar em outros
autores como Maurice Halbwachs (2003) e Michael Pollack (1989). Procurar investigar a
constituição de um determinado curso numa instituição de prestígio é lidar com as memórias
coletivas construídas em torno da instituição e das vivências e experiências dos agentes que
são objeto de estudo dessa pesquisa.
É a partir dessas vivências e experiências dos agentes, dos documentos oficiais,
notícias de jornais e, principalmente, da História oral que esse trabalho se fundamentou.
Atualmente a História não se faz apenas com documentos escritos e oficiais, como nos lembra
Febvre.
A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Mas
pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem. Com
tudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar para fabricar seu mel, na
falta de flores habituais. Logo, com palavras, signos. Paisagens e telhas. Com as
formas do campo e das ervas daninhas. Com os eclipses da lua e a atrelagem dos
cavalos de tiro. Com os exames de pedras feitos pelos geólogos e com as análises de
metais feitas pelos químicos. Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao
homem, depende do homem, serve ao homem, exprime o homem, demonstra a
presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem (FEBVRE In LE
GOFF, 1990, p. 98).
A história oral na pesquisa é entendida como uma metodologia, em acordo com a
perspectiva de Amado e Ferreira (1996). Segundo as autoras, essa metodologia deve
estabelecer e ordenar os procedimentos de trabalho, funcionando como uma ponte entre a
teoria e a prática.
Um dos grandes benefícios de adotarmos a história oral consiste na sua possibilidade
de compreender o indescritível, ou como denomina Joutard (2000), o “mundo dos
cotidianos”. A história oral pode completar a lacuna deixada pelos documentos escritos,
auxilia na compreensão de uma realidade complexa, como a vivenciada na história da
3
educação. Ou como nos lembra Portelli (1997), a história oral evidencia a vida diária e a
cultura material.
CRIAÇÃO DO CFPEN
O CFPEN foi implementado no IEGB a partir do Decreto n° 381, de 02 de abril de
1965, e regulado pela Portaria “F”-SED n° 26, de 20 de junho de 1965, do Conselho Estadual
de Educação da Guanabara (GUANABARA, 1965). A criação deste curso se fundamentou na
LDB 4.024 de 1961, já que, em seu artigo 59, parágrafo único, facultou aos Institutos de
Educação a formação de professores para o curso Normal: “nos institutos de educação
poderão funcionar cursos de formação de professores para o ensino normal, dentro das
normas estabelecidas para os cursos pedagógicos das Faculdades de Filosofia, Ciências e
Letras.” (LDB 4.024/61, art. 59).
A partir do momento em que a legislação apontou que os cursos de formação de
professores para o ensino normal nos Institutos de Educação deveriam seguir os moldes das
Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, fomentou a ideia de que ocorreria uma
equiparação entre os dois espaços formativos. Ou seja, o CFPEN deveria organizar o seu
curso com os mesmos imperativos do curso das Faculdades de Filosofia que ofertavam o
curso de Pedagogia e, portanto, o diploma deveria ter o mesmo peso.
Ainda sobre a legislação, o professor catedrático Nilson de Oliveira2 nos alertou que o
artigo 59 parágrafo único da LDB 4.024 de 1961 foi inserido na lei para que o IEGB contasse
com um suporte legal para a criação de um curso superior. Para ele, o artigo sofreu influencia
do Lourenço Filho3 que tinha o desejo de criar um curso superior no IEGB e submeteu a
redação do artigo aos demais representantes que discutiam a LDB. A possibilidade da
inclusão do artigo 59 parágrafo único na LDB 4.024/61 para permitir a criação de um curso
superior no IEGB não tem comprovação documental, e além do mais, devemos destacar que o
professor Nilson de Oliveira somente ingressou no IEGB em 1964, posteriormente à
promulgação da LDB 4.024/1961, ou seja, não esteve presente no IEGB durante a elaboração
daquela Lei. É possível que a construção dessa memória tenha como base relatos de outros
2 Entrevista concedida a autora em 25 de junho de 2015. O professor solicitou que não fosse gravada e todas as
observações têm como base as anotações da pesquisadora. 3 Primeiro diretor do Instituto de Educação, cuja gestão se deu entre 1932 e 1937.
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professores e alunos. Para compreender de que forma isso acontece, nos alicerçamos em
Halbwachs (2003), para quem toda memória é coletiva, já que a memória individual tem a
necessidade de tomar emprestado outros fragmentos e espaços para a construção de sua
memória. Ademais, o autor assevera que,
É comum que imagens impostas pelo meio que vivemos, modifiquem a impressão
que guardamos de um fato antigo, de uma pessoa outrora conhecida. Essas imagens
talvez não reproduzam muito exatamente o passado, o elemento ou parcela da
lembrança que antes havia em nosso espírito talvez seja uma expressão mais exata
do fato – a algumas lembranças reais se junta uma compacta massa de lembranças
fictícias (HALBWACHS, 2003, p. 32).
É possível que essas lembranças estejam entremeadas por ficções, mas a partir delas
podemos começar a entender as representações que o professor Nilson de Oliveira tem do
vivido, do real. O programa institucional compreendido à luz de Dubet (2006), nos ajuda a
entender que a socialização dos agentes envolvidos com a instituição inculca habitus4,
saberes, valores e crenças que perpassam a construção da memória coletiva daqueles que
foram entrevistados. Ademais, se de fato o artigo 59 da LDB 4.024/1961 foi incluído para
possibilitar a criação do CFPEN, tal acontecimento pode evidenciar a importância do IEGB
nos rumos educacionais do país, ratificando a necessidade de criação de um curso superior.
Conforme o professor Nilson de Oliveira,5 o debate sobre a criação do CFPEN esteve
diretamente relacionado com a qualidade dos professores catedráticos do IEGB. Os
professores sentiram que não deveriam ficar contidos apenas no curso normal, já que, a seu
juízo, possuíam um grande potencial que não estava sendo bem aproveitado, e juntos
começaram os encaminhamentos para a criação do curso superior. Os docentes que
participaram do debate para a criação do CFPEN eram os catedráticos, professores que para
alçar tal cargo deveriam ter cursado o ensino superior e defendido uma tese, dentre os quais
destacamos: Prof. Vicente Tapajós, Profa. Marion Villas Boas, Prof. José D’Assumpção
Teixeira – diretor do IEGB à época, entre outros.
4 Habitus no sentido que lhe confere Bourdieu (2004, p. 26), “sistema de esquemas adquiridos que
funciona no nível prático como categorias de percepção e apreciação, ou como princípio de classificação e
simultaneamente como princípios organizadores da ação”. 5 O Professor participou do último concurso para catedrático do IEGB no ano de 1964, defendeu oralmente a sua
tese e assumiu a cátedra de Biologia Educacional, e posteriormente tornou-se diretor do IEGB.
5
O corpo docente do IEGB era composto por professores conceituados, que primavam
pela publicação de livros, participação em seminários e eventos, além de larga experiência.
Havia ali um grupo de catedráticos verdadeiramente reconhecidos como um corpo docente de
excelência e tal fato pode justificar o anseio por parte desse grupo de pertencer ao ensino
superior. Bourdieu (2013) nos convida a olhar sobre essa questão ao retratar as espécies de
capital e formas de poder no campo universitário, já que em suas análises reconhece que
existem duas espécies de poderes que se opõem. A primeira forma de poder seria o
universitário, que se baseia principalmente na “posse de um capital que se adquire na
universidade (...), e que é detido principalmente pelos professores” (p. 110). A este se opõe o
poder científico medido “ pelo reconhecimento concedido pelo campo científico (...), a
notoriedade intelectual mais ou menos institucionalizada” (p. 111). Ou seja, é possível inferir
que os professores catedráticos do IEGB eram revestidos de um poder científico, reconhecido
pela sociedade, mas ressentiam-se da falta de um poder universitário e, assim, criar um curso
que alçasse o IEGB à condição de instituição de ensino superior poderia conferir a esses
professores o poder universitário.
Já para a Professora D. M., a criação do CFPEN passou pela necessidade de atender a
uma carência do curso normal, pois segundo ela, “o curso normal estava parado em certo
nível, e nós queríamos que uma coisa mais alta acontecesse. Então, surgiu a ideia do CFPEN,
que foi, durante muitos anos, muito bom”. O CFPEN surgiu para viabilizar um
aprofundamento das questões do ensino normal.
Era também a ideia de que faltava alguma coisa para um trabalho mais elevado.
Talvez outro curso, um curso superior desse condições para os nossos alunos terem
maiores possibilidades de trabalhar com êxito. Era isso também. A ideia de
aumentar o conhecimento dos alunos. Um curso que iria complementar tudo que
tinha sido feito antes, durante o curso Normal (...). Algo que elevaria o nível do
aluno. Elevaria o nível do aluno. Num curso superior, seria muito mais positivo o
trabalho do aluno, concreto, de muito sucesso, se ele tivesse um conhecimento
maior do que aquele que ele estava tendo. Não que achassem que não era bom o
curso. Achavam o curso bom, mas queriam mais. Isso também funcionou. Queriam
ampliar os conhecimentos, um pouco mais (D.M6, 2013).
6 Professora Deise Mary Fonseca.
6
Indo ao encontro das ideias da professora D.M. (2013), o Jornal do Brasil, caderno B
do dia 15 de dezembro de 1967, publicou uma reportagem intitulada “A grandeza e
decadência de uma profissão” da jornalista Glória Nogueira. Este artigo alertou para a
diminuição do interesse pelo curso normal, inclusive asseverou que estava próximo o dia em
que as crianças não poderiam estudar numa escola primária oficial, não por falta de vagas e
sim de professores. Entre as alternativas aos problemas apresentados pelo curso Normal, a
jornalista apontou o CFPEN e coadunou suas ideias com as da professora D.M. (2013).
Segundo a reportagem
Para corrigir um certo empirismo com o qual são formados os professores das
matérias metodológicas do curso normal, foi criado o CFPEN (Curso de Formação
de Professores para o Ensino Normal), que funciona desde o ano passado no
Instituto de Educação. Este curso de quatro anos e nível universitário formará
professores para os cargos atualmente ocupados por ex-professoras primárias
requisitadas (...). (p. 04)
Algumas questões merecem reflexão. A professora D.M. (2013) afirma que o CFPEN
surgiu para suprir uma lacuna do curso de pedagogia. Para ela
O “x” do problema foi formar professores que pudessem, realmente, trabalhar os
aspectos mínimos da educação do aluno. Porque, considerava-se, àquela altura,
que o curso de pedagogia das universidades não atendia minuciosamente às
necessidades que o professor de turma de crianças, de adolescentes teria.
No entanto, como nos lembra a professora H.V. (2015)7 “a proposta do curso de
Pedagogia da UEG e da UFRJ era formar os técnicos da Educação”. A ideia defendida pela
professora D.M. (2013) pode estar influenciada por questões mais atuais, não podemos
esquecer que, como nos lembra Pollak (1989, p. 6), “o presente colore o passado”, ou seja, a
construção da memória da criação do CFPEN pode estar influenciada por debates mais
recentes sobre o lócus preferencial de formação do professor primário8.
A professora H. V. assevera que a criação do CFPEN estava prevista na Constituição
do Estado da Guanabara. Com a mudança do Distrito Federal para Brasília, instituiu-se o
Estado da Guanabara e emergiu a necessidade de promulgar uma constituição. Segundo esta
7 Professora Hedy Vasconcellos.
8 Vale destacar, que recentemente o Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro, nome dado ao antigo
IEGB, viveu intensos debates sobre qual o curso deve formar o professor dos anos iniciais: o Curso Normal
Superior ou o Curso de Pedagogia? Atualmente no ISERJ funciona o Curso de Pedagogia, por recomendação do
CFE sob forma do Parecer n.6/2006.
7
professora “a Constituição do Estado da Guanabara previa um curso específico de formação
para os professores do curso Normal (...) é lá que estava previsto a criação do CFPEN”. No
entanto, observamos que em 1961 foi publicado na Revista Documenta n° 40, o decreto
86/1961 que organizava o sistema Estadual de Educação da Guanabara, no qual o artigo 81
afirma que “o ensino superior, no sistema Estadual de Educação da Guanabara concentrar-se-
á na Universidade do Estado da Guanabara (...).” Ademais, não localizamos nenhum artigo na
Constituição do Estado da Guanabara que possa ter fundamentado a criação do CFPEN. Para
compreender essa questão, devemos pensar na construção da memória e em que bases ela se
ancora. De forma inconsciente é possível que a memória dessa professora tenha se amparado
na suposta legislação para legitimar a criação do CFPEN.
Os diferentes caminhos apresentados até agora para a criação do CFPEN passam pela
questão da construção da memória. Como já afirmamos, memória é um local de embate de
luta para a manutenção ou para a transformação de um passado que está intimamente ligado
ao presente. No mais, podemos afirmar que o lugar social ocupado pelos indivíduos reconstrói
a memória sobre determinado fato, ou seja, devemos lembrar que o presente sempre colore o
passado. As diferentes versões para a criação do CFPEN não são tão divergentes entre si,
entre elas existe a mesma ideia de ressaltar a excelência do IEGB, fato que se ancora na
memória coletiva e suas representações sobre a instituição estudada.
Analisar as memórias de professores e alunos do CFPEN é com certeza compreender
que “no entusiasmo de reviver as lembranças de sua época, [eles] constroem a memória da
instituição de forma seletiva, sem se dar conta de que suas lembranças configuram-se como
lugares de memória” (LOPES, 2008, p. 03). Os sujeitos guardam na memória a relação entre
a qualidade do Instituto de Educação e a necessidade de criação do CFPEN para uma melhor
formação dos professores para o ensino normal. Os agentes procuraram nos marcos legais a
ratificação de suas lembranças, confirmando, dessa maneira, a memória coletiva que se
construiu em torno do IEGB e, consequentemente, do CFPEN.
Houve outras justificativas para a implementação de um Curso de Formação de
Professores para o Ensino Normal no Instituto de Educação do Estado da Guanabara, desde o
mercado de trabalho, a falta de um curso para essa formação, a excelência do IEGB, entre
outros. Nos documentos produzidos pelo IEGB, e pelo Conselho Estadual de Educação, as
8
justificativas para a criação do CFPEN se centram na necessidade do mercado de trabalho em
ampliação. Um relatório produzido em 1969 para justificar a existência do CFPEN e,
consequentemente, seu reconhecimento, salienta que, “multiplicam-se as escolas normais;
aumenta a demanda de matrícula nessas escolas; precisa-se do professor qualificado” (IEGB,
1969, p. 02). Outro ponto a favor do CFPEN que, a todo momento, destacou-se nos
documentos oficiais do IEGB foi o fato de a instituição possibilitar aos discentes do CFPEN
um campo experimental único, já que possuía um número grande de turmas do curso normal
onde os alunos poderiam fazer os estágios, coisa que nenhuma faculdade/universidade que
ofertava o curso de Pedagogia proporcionaria aos seus alunos.
O passado e a História também serviram de justificativa para a criação deste curso,
como o professor Nilson de Oliveira fez questão de relembrar. Segundo ele, o CFPEN não foi
a primeira experiência de curso superior instalado no Instituto, a primeira foi a experiência da
UDF. Em 1935 foi criada a Universidade do Distrito Federal (UDF), que apesar do pouco
tempo em que manteve suas atividades (até 1939), teve um importante papel para o ensino
superior. Sua criação esteve intimamente ligada ao movimento da “educação renovada”, que
teve Anísio Teixeira como um dos principais protagonistas. Corroborando a importância da
UDF, no Anuário do IEGB de 1968, o capítulo que trata do CFPEN faz, em seu primeiro
parágrafo, referência ao curso de preparação de professores secundários.
De longa data o preparo e a formação de professôres para o ensino normal foram
aspiração de vários educadores brasileiros e, em 1934, quando se organizou a
primeira Universidade do Distrito Federal, o assunto foi planificado (IEGB, 1968,
p.112).
O documento situa a problemática da formação de professores para o ensino normal,
destacando, ainda, que para o ensino das diferentes didáticas do ensino primário, ainda eram
recrutados professores primários reconhecidos pela sua prática e que deveriam ser possuidores
de algum curso superior. O tom de crítica e a falta de uma preparação específica para o ensino
das didáticas abrem espaço para fundamentar a criação do CFPEN. Percebe-se que a questão
já situada do hiato na formação do professor para o ensino normal não era um problema
recente, era algo que já vinha se prolongando e o IEGB tentou, a partir do CFPEN, resolver
esse problema. Assim, construiu-se mais uma justificativa para a criação urgente do CFPEN:
corrigir um erro histórico do passado.
9
Sabemos que a criação do CFPEN não se deu por apenas um dos fatores citados, mas
da relação de vários pontos, interesses de diferentes agentes e fruto da negociação naquele
espaço social, ou seja, a instituição do Decreto de criação do CFPEN originou-se de um
embate entre os diferentes interesses, como nos lembra Faria Filho (1998). No entanto, é
possível considerar que, apesar de diferentes justificativas, a falta de um espaço específico de
formação do professor das matérias pedagógicas para o curso normal foi o principal ponto
para a criação do CFPEN. Não se pode desconsiderar que o sistema educacional brasileiro
estava em expansão e tinha como imperativo formar professores para atender a essa rede
escolar que crescia.
O Decreto “N” do Estado da Guanabara de 02 de abril de 1965 criou o Curso de
Formação de Professores para o Ensino Normal. Já no dia 25 de maio de 1965, o Secretário de
Educação e Cultura do Estado da Guanabara assinou a portaria “E” n° 26 no qual aprovou o
regimento do CFPEN e nomeou a professora Iva Waisberg Bonow como a primeira diretora
do Curso.
Um dos primeiros passos para o efetivo funcionamento do CFPEN foi a elaboração e a
aprovação de um Regimento. Esse Regimento foi produzido pelo setor administrativo do
IEGB e pelo corpo de docentes catedráticos. Em 25 de maio de 1965 foi aprovado pelo CEE
da Guanabara, pelo artigo 1° da portaria “E” n° 26 o regimento do curso. O referido
documento tratou das questões mais importantes para a efetivação do CFPEN, desde os
objetivos, a estrutura pedagógica e curricular, das normas, da organização administrativa,
entre outros.
Sobre a constituição do corpo docente, o regimento asseverou que deveriam ser
compostos pelos professores catedráticos do IEGB, professores efetivos dos cursos normais
do Estado que tivessem cursado o nível superior e, na falta destes professores, universitários e
secundários licenciados por universidades ou faculdades. Vale destacar que sobre a
regulamentação de professores, o IEGB se apoiou no artigo 4 da portaria n°6 de 22 de abril de
1963 do Conselho Federal de Educação, a qual estabeleceu normas para indicação de
professores regentes de nível superior, “quando se tratar de catedrático ou docente livre da
mesma disciplina em escolas oficiais ou reconhecida bastará a prova desta qualidade”. Ou
seja, não haveria necessidade de aprovação dos nomes dos professores catedráticos que
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ministrassem no CFPEN a mesma disciplina que ministravam no curso normal. Um tanto
paradoxal essa interpretação da portaria: Quem pode o menos (curso normal) pode
automaticamente o mais (CFPEN)? A entrevista da professora D. M. traz essa questão quando
a mesma afirma que daria a mesma disciplina no curso normal e no CFPEN:
Como eu estou dizendo a você, eu fiquei com a didática, que eu já tinha dado, e que
eu tive que dar em um nível, evidentemente, muito mais alto, com autores mais
elevados, com experiências mais profundas, porque tinha que ser alguma coisa mais
alta, para formar um professor num nível mais alto. Essa foi a ideia.
Especificamente mais alto. Foi a ideia básica (D.M., 2013).
Sabe-se que apenas os professores efetivos e os auxiliares precisaram de aprovação do
CFE. Nesse momento podemos nos lembrar que as legislações são apropriadas e
ressignificadas pelos agentes que estão vivenciando aquele momento, é possível que a portaria
tenha sido elaborada com uma intencionalidade, mas possibilitou um espaço de manobra
reapropriado e ressignificado pelos agentes responsáveis pela elaboração do regimento do
CFPEN.
A partir das entrevistas podemos compreender de que forma os professores efetivos
dos cursos normais do Estado foram escolhidos para ministrar aulas no CFPEN. Segundo a
professora H.V. (2015) ela foi convidada pelo catedrático da disciplina Biologia Educacional
para ser parte da equipe de professores do CFPEN. Essa professora era regente de turma na
disciplina Biologia Educacional na Escola Normal Julia Kubitschek no período da manhã e
precisou complementar sua renda, por isso solicitou uma vaga no Instituto de Educação da
Guanabara, local no qual seria possível compatibilizar os seus horários. Ao assumir uma
turma do curso Normal no IEGB em 1967 encontrou com o professor Nilson de Oliveira,
catedrático, que a convidou para lecionar no CFPEN. Segundo ela:
(...) O Nilson [professor Nilson de Oliveira] que já tinha assistido uma aula minha
no Júlia [Escola Normal Júlia Kubitschek], falou: não professora, eu quero você
num curso que está começando esse ano, estou formando uma equipe. Foi a partir
desse convite que fui ministrar aula no CFPEN (H.V., 2015).
Duas outras entrevistadas também ingressaram no CFPEN a partir de um convite. A
professora D. M. se pronunciou da seguinte maneira quando questionada sobre seu ingresso:
Eram professores catedráticos que indicaram professores da confiança deles para
assumirem as cátedras. Foi assim. Foram professores do Instituto. Eu, por
exemplo, não era catedrática, e dei didática da linguagem. A minha colega
terminou o curso quando eu não pude ficar, ela também não era catedrática, mas
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foi indicada como uma pessoa de confiança da catedrática. A catedrática não
chegou a lecionar no CFPEN, quem lecionou fui eu. Muitos catedráticos
trabalhavam. Quando não eram os catedráticos, eram os professores do Instituto
de Educação em quem eles confiaram para que tivéssemos essa honra de
trabalhar no CFPEN (D.M., 2013)
A professora E.D.9 (s/d) também foi convidada para fazer parte do corpo docente do
CFPEN. Ela fez Ciências Sociais na Faculdade Nacional de Filosofia da UFRJ e quando se
formou foi ministrar a disciplina Sociologia na Educação da Escola Normal Júlia Kubitschek,
ocasião em que foi convidada pela catedrática de Sociologia Educacional do IEGB, Lia
Tovar, para ministrar a disciplina no CFPEN. Nota-se, com essa forma de ingresso de
docentes no CFPEN, que o hiato na formação do professor para o curso normal também
atingia o CFPEN, visto que não havia um curso que preparasse os professores para as
matérias pedagógicas. Os professores convidados eram aqueles que tinham curso superior e
que, na maioria das vezes, tinham cursado o normal, ao menos todas as professoras citadas
concluíram o curso normal e depois o curso superior. Podemos destacar que o que acabou por
qualificá-las a trabalhar no CFPEN foi a experiência.
Ainda durante o processo de criação do CFPEN, o Diretor Geral do IEGB, professor
Solon Leontsinis, instituiu uma comissão para “estudar tôdas as providencias necessárias para
a instalação e funcionamento do CFPEN, bem como realizar o seu 1° concurso de vestibular”
(Portaria n° 90/EIE, de 1° de agosto de 1966). Essa comissão foi constituída pelos seguintes
professores catedráticos: Heloisa Marinho (presidente); José Teixeira D’Assumpção; Circe de
Carvalho Pio Borges e Dirce Côrtes Riedel (IEGB 1968). Tal comissão se reuniu com
professores catedráticos coordenadores das disciplinas e com professores do curso normal
para fecharem o núcleo comum desejável a todas as modalidades.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ânsia em dar início ao CFPEN fez com que o primeiro vestibular ocorresse já no
mês de setembro de 1966 e a primeira turma começasse as aulas em outubro do mesmo ano.
A rapidez com que tudo estava se organizando inviabilizou a oferta de todas as modalidades
9 Professora Eli Diniz, entrevistada pelas professoras Sonia Lopes e Maria Carolina Granato pra o
PROMEMO/ISERJ.
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descritas no Regimento e apenas cinco modalidades foram ofertadas porque apenas os
currículos de Prática de Ensino, Didática da Linguagem, Didática dos Estudos Sociais,
Didática das ciências e Didática da Matemática ficaram prontos a tempo para serem
submetidos ao parecer do Conselho Técnico. O desejo de iniciar rapidamente o curso pode ser
percebido na aprovação do currículo dessas modalidades ter acontecido três dias após o início
das aulas, ou seja, as aulas se iniciaram sem que as modalidades e as disciplinas tivessem sido
aprovadas. Tais fatos sugerem que essa pressa poderia estar ligada ao receio de que se não
iniciassem logo o CFPEN o mesmo poderia não se efetivar. Sabe-se que a legislação
educacional , as leis 5.540 de 1968 e 5.692 de 1971 já estava em elaboração e é possível que
houvesse um receio de que a mesma pudesse inviabilizar o funcionamento do CFPEN. Isso
pode ajudar a compreender como um curso tem início sem um currículo previamente
autorizado.
Em setembro de 1966 foi realizado o primeiro concurso de habilitação para preencher
as vagas oferecidas no Curso. O certame foi amplamente divulgado nos meios de
comunicação. Para uma das antigas alunas entrevistadas, M. L., esse vestibular teve ampla
divulgação no Instituto de Educação e também nos jornais da época. No intuito de corroborar
tal afirmativa, encontramos chamadas para as inscrições no concurso de habilitação nos
jornais Diário de Notícias, Correio da Manhã e Jornal do Brasil em diferentes dias dos meses
de agosto e setembro de 1966.
Esse foi o primeiro passo para o efetivo funcionamento do CFPEN, que ao longo de
sua curta experiência vivenciou momentos turbulentos e de grandes incertezas quando à sua
titulação, seu reconhecimento e sua existência.
Uma pesquisa que se proponha compreender o processo de criação do Curso de
Formação de Professores para o Ensino Normal no Instituto de Educação da Guanabara
privilegiando suas lutas e embates para existir não pode ter como base apenas a documentação
escrita, é preciso se utilizar de entrevistas e depoimentos orais que possam evidenciar a ação e
a relação dos agentes. Precisamos conhecer o indescritível, as representações desenvolvidas
pelos agentes que participaram desse curso, seus sentimentos e a construção dos seus mitos e
lendas.
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Nessa pesquisa contamos com seis entrevistas. Duas foram realizadas pelas
professoras Sonia Lopes e Maria Carolina Granato no âmbito do Projeto Memória (Promemo-
ISERJ). Outras quatro entrevistas foram realizadas pela pesquisadora com base em perguntas
abertas que possibilitam a reflexão e associação de ideias sobre o tema abordado. Entre os
entrevistados, destacamos duas alunas e quatro professores.10 As entrevistas apresentaram um
roteiro de perguntas abertas e, ao final das mesmas, convidamos os entrevistados e expor mais
alguma reflexão ou narrativa que considerasse pertinente.
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10 Vale ressaltar que um dos entrevistados não permitiu a gravação, conto apenas com as anotações que fiz e
cópia de documentos que o mesmo me entregou.
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