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ENTRE DEUS E O REI O mundo das Ordens Militares COORDENAÇÃO ISABEL CRISTINA F. FERNANDES Esta obra coletiva, com vasta participação internacional, cumpre os desígnios principais do Gabinete de Estudos sobre a Ordem de Santiago, do Município de Palmela, proporcionando a divulgação de um conjunto de estudos sobre a história das Ordens Militares, reveladores dos profícuos debates de ideias, em torno desta temática, que regularmente têm lugar em Palmela. Estrutura-se em sete capítulos: «Arquivos e Memória», «A Formação e a Prática da Guerra», «As Ordens Militares e o Serviço à Coroa», «Em Portugal como lá Fora: a Ordem do Templo em Tempos de Mudança (1274-1314)», «As Ordens Militares e o Mar», «Arte, Arquitectura e Arqueologia das Ordens Militares» e «Varia». É dada particular atenção ao conhecimento de fundos arquivísticos, aos processos de construção da memória, à vertente militar, tanto no âmbito ibérico como do Oriente latino, à vida e à intervenção dos Templários nos seus derradeiros tempos, à centralidade do mar em várias das estratégias políticas destes institutos. O capítulo dedicado ao serviço à Coroa evidencia a estreita e crescente influência régia nos destinos das Ordens e a cultura material é tratada nas perspetivas artística, arquitetónica e arqueológica. As questões da espiritualidade militar e da vida religiosa, sem se autonomizarem em apartado próprio, são transversais a muitas das abordagens. COLEÇÃO ORDENS MILITARES • 8 VOL. 1 ENTRE DEUS E O REI O mundo das Ordens Militares COLEÇÃO ORDENS MILITARES • 8 VOL. 1

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Page 1: ENTRE DEUS E O REI...ENTRE DEUS E O REI. O MUNDO DAS ORDENS MILITARES. 338 as práticas de comando e controlo nas ordens militares do ocidente peninsular (Portugal, Leão e Castela),

ENTRE DEUS E O REIO mundo das Ordens Militares

COORDENAÇÃO

ISABEL CRISTINA F. FERNANDES

Esta obra coletiva, com vasta participação internacional, cumpre os desígnios principais do Gabinete de Estudos sobre a Ordem de Santiago, do Município de Palmela, proporcionando a divulgação de um conjunto de estudos sobre a história das Ordens Militares, reveladores dos profícuos debates de ideias, em torno desta temática, que regularmente têm lugar em Palmela.Estrutura-se em sete capítulos: «Arquivos e Memória», «A Formação e a Prática da Guerra», «As Ordens Militares e o Serviço à Coroa», «Em Portugal como lá Fora: a Ordem do Templo em Tempos de Mudança (1274-1314)», «As Ordens Militares e o Mar», «Arte, Arquitectura e Arqueologia das Ordens Militares» e «Varia».É dada particular atenção ao conhecimento de fundos arquivísticos, aos processos de construção da memória, à vertente militar, tanto no âmbito ibérico como do Oriente latino, à vida e à intervenção dos Templários nos seus derradeiros tempos, à centralidade do mar em várias das estratégias políticas destes institutos. O capítulo dedicado ao serviço à Coroa evidencia a estreita e crescente influência régia nos destinos das Ordens e a cultura material é tratada nas perspetivas artística, arquitetónica e arqueológica. As questões da espiritualidade militar e da vida religiosa, sem se autonomizarem em apartado próprio, são transversais a muitas das abordagens.

COLEÇÃOORDENS MILITARES • 8VOL. 1

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ENTRE DEUS E O REIO MUNDO DAS ORDENS MILITARES

CoordenaçãoIsabel Cristina Ferreira Fernandes

ENTRE DIOS Y EL REYEl mundo de las Órdenes Militares

ENTRE DIEU ET LE ROILe monde des Ordres Militaires

BETWEEN GOD AND THE KINGThe world of the Military Orders

VOL. 1

COLEÇÃO ORDENS MILITARES 8MUNICÍPIO DE PALMELA - GEsOS

PALMELA, 2018

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CONSULTORIA CIENTÍFICA

Carlos de Ayala Martínez (Universidad Autónoma de Madrid)

Fernanda Olival (Universidade de Évora)

Helen Nicholson (Cardiff University)

Isabel Cristina Fernandes (GEsOS – Município de Palmela)

José Mattoso (Universidade Nova de Lisboa)

Kristjan Toomaspoeg (Università del Salento)

Luís Adão da Fonseca (Universidade do Porto e CEPESE)

Luís Filipe Oliveira (Universidade do Algarve)

Maria Cristina Pimenta (CEPESE-Universidade do Porto)

Nikolas Jaspert (Universität Heidelberg)

Philippe Josserand (Université de Nantes)

Vítor Serrão (Universidade de Lisboa)

FICHA TÉCNICA

Título: Entre Deus e o Rei. O Mundo das Ordens MilitaresCoordenação: Isabel Cristina Ferreira FernandesEdição: Gabinete de Estudos sobre a Ordem de Santiago / Município de Palmela

Largo do Município2951-505 Palmela+351 212 336 640 | [email protected]

Grafismo da Capa: João Luís Portel e Jorge FerreiraImagem da Capa: medalhão da Igreja de Santiago de Tavira | Foto Celso Candeias |

Museu Municipal de TaviraRevisão: Isabel C. F. Fernandes | J. F. Duarte SilvaComposição: Hugo Rios e José Luís SantosImpressão e Acabamento: ARTIPOL – Artes Tiporáficas, Lda. | www.artipol.netCódigo de Edição: CMP – 527/2018Depósitos Legais: Vol. 1 – 447614/18; Vol. 2 – 447632/18ISBN: 978-972-8497-75-0Tiragem: 800 exemplares

Todos os direitos reservados para a língua portuguesa por Câmara Municipal de Palmela

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2. A FORMAÇÃO E A PRÁTICA DA GUERRA

LA FORMACIÓN Y LA PRÁCTICA DE LA GUERRA

LA FORMATION ET LA PRATIQUE DE LA GUERRE

THE FORMATION AND PRACTISE OF WAR

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A FORMAÇÃO E A PRÁTICA DA GUERRA

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MÉTODOS DE COMANDO, CONTROLO E COORDENAÇÃO NOS

CONTINGENTES MILITARES DAS ORDENS NO OCIDENTE PENINSULAR

CARLOS AFONSOExército Português e Instituto de Estudos Medievais (FCSH-UNL)

García-Fitz, na sua obra Castilla y León Frente al Islam, interroga-se, num primeiro momento, sobre a constatação de que as estruturas, a sociedade e a economia da Castela do Século XI não são as mesmas do século XIII para o mesmo espaço geográfico. No entanto, refere que um dos propósitos do seu trabalho foi, precisamente, a perceção das mudanças militares ocorridas, mas – significativo para o nosso argumento – afirma não ter podido des-trinçar grandes mudanças na estratégia e na tática no período em estudo. Refere alterações de intensidade no modo como os monarcas cristãos se enfrentaram aos poderes muçulma-nos, mas não na natureza da confrontação. Acrescenta, ainda, que “a maneira de instrumen-talizar as ferramentas militares, ainda que estas se tivessem transformado nalguns aspetos, continuou a ser essencialmente a mesma”1. O caso específico dos métodos de comando e controlo das ações militares parece-nos constituir uma das facetas da guerra medieval em que esta relativa estabilidade, ao longo de uma cronologia alargada, se manteve2.

Sabemos, por intermédio de dois documentos excecionais, o modo como se comporta-vam (ou deviam comportar, já que ambos são documentos normativos) as forças em cam-panha. Trata-se da Regra do Templo, mais propriamente dos seus Retrais e do código legislativo de Afonso X – as Siete Partidas. É em torno destas duas balizas cronológicas, entre a segunda metade do século XII e a primeira do seguinte, que vamos tentar observar

1 García Fitz, Francisco. Castilla y León frente al Islam: estrategias de expansión y tácticas militares (Siglos XI-XIII), Sevilla, Universidad de Sevilla, 1998, p. 29.2 Acerca da estabilidade das práticas bélicas ao longo do tempo importa ter presente que os séculos XII e XIII do Ocidente Europeu se encontram perfeitamente inseridos num grande período que Éric Muraise designou de “Evolução Técnica Lenta” (Muraise, Éric, Introduction a l’Histoire Militaire, Reedição da obra de 1964, Paris, Charles Lavauzelle, 2008, p. 71-90, especialmente p. 80-81. Há especificidades ibéricas que reforçam esta ideia. Ver Nicolle, David, Arms and armour of the Crusading Era, 1050-1350: Western Europe and the Crusader States, London, Greenhill, 1999, p. 163.

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as práticas de comando e controlo nas ordens militares do ocidente peninsular (Portugal, Leão e Castela), mais acentuadamente no território português, é certo, mas não ignorando a transnacionalidade destas milícias.

Os Retrais, ou estatutos hierárquicos, da Regra do Templo foram produzidos segura-mente depois de 1165, mas são anteriores a 11873. Redigidos em francês, são resultado de um aumento rápido do efetivo e da responsabilidade territorial da Ordem, tornando necessária a regulamentação mais precisa da hierarquia, da disciplina e das obrigações religiosas e militares. Estas últimas, essencialmente (mas não só) concentradas no que se convencionou designar pelos artigos 77 a 197, são de um inestimável valor, porquanto constituem, de longe, o mais completo repositório de procedimentos técnicos e táticos re-ferentes a uma ordem militar, anterior ao século XV.

A outra referência incontornável são as Siete Partidas. Na Segunda Partida, os juristas de Afonso X elaboraram todo um capítulo dedicado à guerra: “De la guerra que han de fazer todos los de la tierra”. Não parece fazer muito sentido que uma obra da magnitude daquele conjunto legislativo se trate de um documento inovador em relação às práticas. Bem pelo contrário, o tratado afigura-se-nos como uma sistematização de práticas coevas vigentes. E nessa perspetiva constitui-se como fonte central para inferir acerca dos aspetos militares. Importa, por outro lado, ter presente que as realidades legisladas correspondem essencialmente ao espaço castelhano-leonês, mas podemos também constatar a presença de muitas delas no espaço português. Assumamos, pois, que, de um modo geral, as refe-rências militares das Siete Partidas, ainda que possam conhecer designações diferentes, se mantiveram as mesmas nos séculos XII e XIII e que o tratado, para além da sua intenção normativa, incorpora também uma dimensão retrospetiva4.

São, portanto, estas as duas fontes de primeira importância para a abordagem a que nos propomos. Infelizmente não encontramos, para a nossa cronologia, outras fontes com a mesma riqueza de informação sobre o assunto em apreço. Não sabemos, por exemplo, com exatidão quais os limites da extrapolação dos Retrais para outras ordens militares, embora possamos encontrar alguns indícios; não sabemos em que medida as Partidas podem sig-nificar continuidade ou inovação nas práticas, embora possamos inclinar-nos com alguma segurança para a continuidade, dado que também possuímos outros indícios. As restantes fontes utilizadas apresentam-nos desafios de outra ordem. As fontes narrativas mais tardias

3 Upton-Ward, J. M. “Introdução”, em A Regra dos Templários, 13-32, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2006, p. 28-29.4 Este texto teve muita difusão em Portugal. Gama de Barros refere como as Partidas“e outras compilações legaes de Affonso X davam exemplo aos ministros de Affonso III” (Barros, Henrique da Gama, História da Administração Pública em Portugal nos séculos XII A XV, Tomo I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1885, p.67). António Hespanha salienta a influência no enquadramento doutrinal dos reinos hispânicos (Hespanha, António Manuel, História das Instituições: épocas Medieval e Moderna. Coimbra, Livraria Almedina, 1982, p. 304-306 e, especialmente, p. 493, onde se apresenta a grande repercussão a partir dos fins do século XIII, como direito subsidiário em Portugal). Veja-se, também, Mattoso, José, Identificação de um país: ensaio sobre as origens de Portugal, 1096-1325, 5ª, Vol. 2º: Composição, 2 vols., Lisboa, Referência/ Editorial Estampa, 1995, p. 124.

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levantam-nos a apreensão sobre a possibilidade de estarem e descrever acontecimentos passados à luz de realidades do seu próprio tempo, como são o caso das “Crónicas dos Reis” ou da Crónica de Portugal de 1419. As fontes narrativas muçulmanas, tendencialmente mais ricas e detalhadas na descrição dos corpos militares, tendem a descrever os comba-tentes cristãos à luz dos paradigmas militares muçulmanos, pelo que não é fácil distinguir o que corresponderia a uma realidade ou a uma imagem idealizada pelo cronista. A utiliza-ção destas fontes, se por um lado é importante, por outro lado obriga a cuidados acrescidos.

Ora, as balizas cronológicas escolhidas remetem a nossa observação para um tempo em que as ordens militares alcançam maior protagonismo na guerra contra o Islão: a década de 1160 viu nascer a maioria das ordens ibéricas que se vieram juntar ao Templo e ao Hospital, já presentes no Teatro de Operações; as duas décadas seguintes representaram um período de expansão relativa das milícias, mas em que estas assumem um papel es-sencialmente defensivo, contra os almóadas; a sequência da batalha de Alarcos, 1195, representa uma espécie de pausa operacional, de que as monarquias necessitam para re-generar o seu potencial militar5. Com efeito, nos mais de doze anos de trégua (1197-1210) entre o monarca castelhano e o califa almóada, assiste-se a um rearmamento institucional que abrange praticamente todas as ordens peninsulares, incluindo-se as milícias menores, como Évora e San Julián del Pereiro6; seguiram-se as ofensivas das Navas de Tolosa (1212) e de Alcácer do Sal (1217). No caso português, o decisivo avanço para sul foi protagonizado pelas ordens, das quais se destaca Santiago, mas ao qual São João também não é alheia7.

O percurso que nos propomos desenvolver assenta em três passos: situar alguns concei-tos operatórios, visualizar os fatores da forma de combater das ordens militares que possam estar relacionados com o modo de materializar o comando e o controlo e, finalmente, em jeito de síntese, tecer as considerações possíveis sobre o comando e controlo nas ordens militares em Portugal, Leão e Castela nos séculos XII e XIII.

Comando e controlo

A expressão “comando e controlo” é, propositadamente, anacrónica e diz respeito ao modo como o mundo militar encara esta problemática no tempo presente. Atualmente en-

5 Alarcos tem lugar numa conjuntura já por si difícil no Ocidente Peninsular. Entre 1190 e 1210 assinalam-se maus anos agrícolas, fome e surtos de peste (Mattoso, Identificação de um país…, p. 22-23). Ainda assim, entre 1196 e 1199, Sancho I move guerra contra Afonso IX de Leão, materializada pelo assalto do monarca português a Tuy e Pontevedra e também pela lide de Ervas Tenras (Pinhel). Não parece, no entanto, que estivessem envolvidas ordens militares. 6 Ayala Martínez, Carlos de, Las Órdenes Militares Hispánicas en la Edad Media (Siglos XII-XV), Madrid e Arganda del Rey, Marcial Pons y Latorre Literaria, 2007, p. 417-418.7 Afonso Peres Farinha, prior do Hospital, foi responsável pela conquista de Serpa e pelo controlo da margem esquerda do Guadiana, nas décadas de 1230 e 1240. Veja-se Mattoso, José, “Dois séculos de vicissitudes polí-ticas” em História de Portugal, dir de José Mattoso, Vol. 2, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 124 e também Fernandes, Hermenegildo, D. Sancho II, Lisboa, Temas e Debates, 2010, p. 318-319.

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cerramos nesta designação as “tarefas e sistemas que apoiam o comandante no exercício da autoridade e direção”8. No entanto parece possível transpô-la, como instrumento de trabalho, para a Idade Média, podendo concentrar-nos, para o efeito, em duas ordens de ideias: (i) os conceitos de comando e de controlo e; (ii) os conceitos de tarefa e de sistema.

Quanto aos primeiros, entendemos por comando a autoridade investida num indivíduo para dirigir forças. Visto somente num plano militar, é uso comum e encontra-se consagra-da pela historiografia a designação de comandante, muitas vezes referida a um monarca, a um senhor ou a um dignitário de uma ordem militar, sempre que enquadram forças em operações. Já o conceito de controlo envolve toda uma força militar e está relacionado com a regulação dessas mesmas forças durante a ação, trate-se esta de um deslocamento, uma batalha ou qualquer outra operação militar9.

Em relação aos segundos o “comandante” medieval necessita de transmitir as ordens à sua hoste. Naturalmente que o pode fazer a priori, isto é, antes da ação, mas há um sem--número de indicações que só podem ser transmitidas já no deslocamento ou no campo de batalha, em virtude das realidades observadas em cada momento. Necessita, para isso, de desenvolver ações de comando (tarefas) e, dadas as condições do ambiente em operações (grande efetivo a comandar, grandes distâncias, necessidade de simultaneidade no cum-primento de ordens, rapidez requerida entre a ordem e a execução) necessita de sistemas que o apoiem no ato de comandar.

Encaremos, então, o comando e o controlo como atribuições a esperar de um “líder” me-dieval e que a forma prática de as exercer é através de ações ou tarefas, materializadas por intermédio de “sistemas”, com preponderância para os visuais (gestos, movimentos, estan-dartes) e os sonoros (voz e instrumentos musicais)10. Para o presente trabalho interessa-nos o comando e controlo em campanha, isto é, aquele que é exercido com as tropas no terreno, quer em deslocamento (incluindo os acampamentos temporários), quer em combate11.

8 Transcrição do Manual Escolar relativo às Operações, do Instituto de Estudos Superiores Militares (ME-20-81-00, p-31). O conceito de comando e controlo é geralmente abreviado, em ambiente militar atual, na sigla “C2”.9 Na primeira metade do século XX vigorou uma ideia, veiculada por Hans Delbrück, em 1923, de que os ca-valeiros medievais não tinham formações táticas e de que, na sequência de uma carga, o comandante deixava de poder dar ordens a uma força, já que os cavaleiros se embrenhavam num combate corpo-a-corpo em que ressaltavam a honra, a fama e o individualismo. Charles Oman (1924), Whilelm Erben (1929), Eugen Von Frauenholz (1935-37) e Ferdinand Lot (1946) pouco adiantaram nesta matéria. É Verbruggen, em 1954, que demonstra que não é ajustada a ideia e se dedica a demonstrar a existência de tática medieval (Verbruggen, J. F., The Art of Warfare in Western Europe during the Middle Ages: From the Eight Century to 1340, 2nd, Woo-dbridge & Rochester, The Boydell Press, 1997, p. 2-4).10 É, precisamente, esta divisão entre sinais visuais e sonoros que Robert Jones utiliza, na entrada correspon-dente a Signals na Oxford Encyclopedia of Medieval Technology (Jones, Robert W. “Banners”, em The Oxford Encyclopedia of Medieval Warfare and Military Technology, Vol. 1, 120-121, Oxford, Oxford University Press, 2010, p. 272). Ver também, sobre o mesmo assunto, Monteiro, João Gouveia, A Guerra em Portugal nos finais da Idade Média, 1ª, Lisboa, Editorial Notícias, 1998, p. 294-295.11 Nem todos os combates de que temos registo parecem ter beneficiado de ação de comando e controlo estabelecida. García Fitz fez notar que as lides se caraterizavam por recontros entre dois bandos de cavaleiros, não enquadrados, em que «se ayuntauan rebastosamente de la vna parte e de la outra caualleros armados, que non yuan por hazes, nin

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Métodos Visuais – o estandarte

Os métodos visuais são tão diversos quanto o uso de sinais de fumos, de fogueiras, de reflexão da luz solar, de gestos e de estandartes. Interessam-nos particularmente estes últimos, uma vez que nos debruçamos sobre o comando e o controlo de contingentes das ordens militares durante as operações.

As Siete Partidas são bem explícitas quanto à utilidade e às razões dos sinais na hoste, referindo que não é suficiente comandar com a voz12. Detalham o formato físico de cada modelo, designam quem tem competência para o transportar na hoste régia e apontam a utilidade prática do estandarte. Admitindo que aquele corpo normativo, mais do que es-tabelecer novas práticas, consagra usos correntes e regulamenta atividades já conhecidas, a hierarquização dos estandartes que apresenta fornece-nos informação com grande inte-resse tático e que nos ajuda a perceber algo da forma de comandar dos exércitos cristãos, especialmente a cavalaria. Vejamos, então, uma dedução das regras gerais: há um símbolo reservado ao monarca, o “estandarte”, pano quadrado, sem ferros, que permite distinguir claramente a sua presença na batalha13. Embora bem posterior, a Crónica de Portugal de 1419 faz referência ao pendão real, de D. Afonso Henriques, na batalha de Ourique14. Há, depois, símbolos reservados aos grandes senhores, laicos ou clérigos, que estão igual-mente associados ao comando de grandes contingentes. Estas bandeiras não só servem para identificar a unidade no deslocamento, como para indicar o local de acantonamento. Podemos verificar que coincidem com dignitários que já detêm privilégio de aposentado-ria, normalmente nos seus senhorios, mas que se estende a todo o Teatro de Operações e a todo o contingente que mobilizam, em caso de campanha15. Nas ordens militares, estão

trayan sennas.» (García Fitz, Castilla y León frente al Islam…, p. 376, com transcrição de Partidas II, XXIII-27).12 Para além dos símbolos que deve ostentar o comandante, quer no manto (ou “armadura”) da sua montada, quer no seu equipamento individual (escudo, elmo, capelina), que são fundamentais para o distinguir no cor-po-a-corpo, os “maiores sinais” e mais conhecidos são as señas ou pendões [ALFONSO X (el sabio), Las Siete Partidas, Barcelona, Linkgua, 2010, XXIII-12].13 «Estandarte llaman a la seña quadrada sin sarpas.» (Idem, 13).14 Crónica de Portugal de 1419, Edição crítica com Introdução e Notas de Adelino de Almeida Calado, Uni-versidade de Aveiro, 1998, p. 23.15 O termo “Posadas” surge aqui relacionado com o direito de aposentadoria das hostes, num conceito análogo ao privilégio de aposentadoria, pousadia ou pousada dos monarcas em relação às igrejas e mosteiros do seu pa-droado (Cf. Dicionário de História de Portugal, Vol. V, 1955, p. 154-155). Trata-se de um costume, derivado já das legiões romanas, que dispunham de um oficial, designado Primicerius mensorum, a quem competia prover acantonamento para as tropas em campanha. De acordo com Santa Rosa Viterbo, em Portugal, o Aposentador do exército era o oficial que ia adiante, com certo número de pendões, escolher e designar os arraiais, com as comodidades possíveis de águas, palhas, cevadas, lenhas e mais forragens (Viterbo, Fr. Joaquim de Santa Rosa de, Elucidario das Palavras, termos e frases que em Portugal antigamente se usaram e que hoje regularmente se ignoram: obra indispensável para entender sem erro os documentos mais raros e preciosos que entre nós se conservam. Tomo Primeiro, Segunda Edição, Lisboa, A. J. Fernandes Lopes, 1865, p. 85). O artigo não é ex-plícito quanto à cronologia em que este procedimento vigorava com significado militar, mas a alusão a Roma, conjugada com a referência explícita a pendon posadero nas Siete Partidas, na segunda metade do século XIII, aponta para a regularidade do procedimento durante o período em estudo. Não se referindo especificamente aos “pendões posaderos”, mas detalhando significativamente a aposentadoria das hostes em acampamentos,

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associados aos mestres ou aos comendadores, quando estes últimos comandam em lugar do mestre. Como estes símbolos são “ferrados”, têm a forma de pendão triangular, mais largo no topo, e estreitando em direção à haste.

Para forças entre dez e cinquenta cavaleiros, as bandeiras ou flâmulas são mais reduzi-das. É possível que esta categoria de estandartes fosse a mais comum nas mãos dos comen-dadores/ bailios, à frente dos efetivos que mobilizavam no senhorio que administravam16.

É interessante notar a presença de uma flâmula ainda mais pequena, para contingentes de dois a cinco cavaleiros. Admitimos que, para além do caráter simbólico referente ao seu portador, a flâmula pode ter uma outra finalidade em campanha: ser utilizada só quando é necessário e servir de referência não só aos cavaleiros, mas à totalidade do efetivo das suas lanças17 em todo o tipo de deslocamentos e operações que podem realizar em autonomia. Admitimos, igualmente, que para além da forma geométrica descrita nas Partidas, é pos-sível que estes pequenos símbolos, adossados às lanças dos cavaleiros, também pudessem ter um formato triangular, a que voltaremos mais adiante.

Vimos, até agora, a dimensão simbólica do estandarte relacionada com a componente de comando. O estandarte identificava o portador, tanto para os amigos como para os inimi-gos18. Funcionava como um desafio, uma ameaça ou, também, um alvo. Juntamente com o gibão e o escudo, advertia da presença daquele guerreiro específico no campo de batalha e, assim, ajudava também a assegurar que os feitos em combate eram reconhecidos. Porque era transportado por homens que comandavam guerreiros (ou por alguém em seu nome), o estandarte era também símbolo da autoridade para empreender a guerra. Indicando a presença do comandante, as bandeiras assinalam unidades táticas. Pelo seu formato e dimensão podia-se deduzir o volume da força em causa. Mas a função simbólica é com-plementada por outra função prática: a transmissão de informação e de ordens às tropas.

As ordens ou referências são essenciais, desde logo, no deslocamento, para coordenar a formação de marcha. As mesnadas seguem, em coluna, à retaguarda dos estandartes dos seus senhores. É deste modo, por exemplo, que o Poema de Almería, que se segue à Cróni-ca do Imperador Afonso VII, apresenta a hoste castelhano-leonesa em movimento para a campanha de Almería, em 114719.

para Castela e Leão, veja-se García Fitz, Castilla y León frente al Islam…, p. 157-170.16 Ver alfonso X, Partidas, II, XXIII-14.17 O termo “Lança”, para além da arma, designa uma unidade de combatentes, organizada em torno de um cavaleiro (simbolicamente, em torno da lança desse cavaleiro). Estes combatentes podem incluir alguns es-cudeiros ou serventes a cavalo, arqueiros ou besteiros montados ou outros. Ver Bradbury, Jim, The Routledge Companion to Medieval Warfare, London & New York, Routledge, 2005, p. 287.18 A própria visão do estandarte de um guerreiro de notável reputação contribuía para infundir terror no adversário. ‘Abd al-Wāhid al-Marrākuši, compositor do “Livro do admirável no resumo das notícias do Oci-dente”, na primeira metade do século XIII, descreveu Ibn ‘Iyād, defensor de Valência e Múrcia nos segundos reinos Taifas. “Os cristãos contavam-no, a ele só, como se fossem cem cavaleiros e quando viam a sua bandeira diziam: «este Ibn Iyād vale por cem ginetes»” (tradução nossa, do castelhano, Al-MarrĀkušĪ, A. M. ‘. a.-W.. Kitāb al-Mu’ŷib Fī Taljīs Ajbār al-Magrib, Lo Admirable en el resumen de las noticias del Magrib, Tradução e Notas de Ambrosio Huici Miranda. Tetuán, Editora Marroquí, 1955, p. 169).19 pérez gonzález, M., 1997, Crónica del Emperador Alfonso VII. Introducción, traducción, notas e índices.

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A ação deliberada de desfraldar estandartes frente ao inimigo é sinal de intenção de dar ba-talha, quer entre cristãos, quer entre muçulmanos. Ibn ‘Idari é muito explícito quanto a este as-peto, a propósito da campanha de Badajoz, do governador Abū Muhammad Tasfīn, em 113420.

Do mesmo modo que um estandarte desfraldado e ostentado na vertical indica pronti-dão para o combate, a sua queda ou simplesmente o baixar à horizontal indicam o contrá-rio. Como existe uma função importante de manutenção da coesão das tropas, não é viável baixar o estandarte como recurso para enganar um inimigo. Verbruggen usa a descrição da batalha de Hattin, em 1187, para ilustrar esta função tática do estandarte:

«[…] o meu pai tornou-se para mim e disse: «Cala-te e não menciones que estão derrotados até que vejas que a bandeira do rei caiu.» Um pouco mais tarde observámos a bandeira do rei a baixar. Então, o meu pai apeou do cavalo e prostrou-se no solo para agradecer a Deus, e chorou de alegria».21

Também a Crónica de 1419 aponta que a queda do pendão muçulmano, aquando do fos-sado do infante D. Sancho a Triana, precipitou a fuga das tropas que sob ele combatiam22.

O estandarte era a referência em redor da qual os combatentes reagrupavam. Este pro-cedimento, quase espontâneo, garantia, por um lado, a coesão da unidade e, por outro, a proteção física do próprio portador, o Signifer23. Interessa notar a coexistência de um Sub signifer do rei, personagem que constitui demonstração da extrema importância daquele símbolo, a ponto de se planear o recurso a um substituto, caso algo falhasse com o titular24.

O movimento do estandarte no campo de batalha constituía um modo eficaz de coman-dar visualmente. O pendão real serviria de “condutor natural da hoste”, referência para

León, Universidad de León., p. 134.20 Ibn ‘Idari. Al-Bayān al-Mugrib fi Ijitisār Ajbār Muluk al-Andalus Wa al-Magrib - Los Almohades, Tomo I, ed. Ambrosio Huici Miranda. Tetuan, Editora Marroqui, 1955, p. 203-204; Al-Hulal al-Mawšiyya, p. 147-148. Sobre este episódio, ver também García Fitz, Castilla y León frente al Islam…, p. 304-305. Para uma visão muçulma-na do século XIV acerca da utilidade das bandeiras e dos instrumentos musicais no campo de batalha, veja-se Ibn Khaldun, Les Prolégomènes – Deuxième Partie, trad. de M. de Slane, Imprimerie Impériale, Paris, 1865. 21 Verbruggen utiliza esta passagem na esteira do que já tinham feito Oman, Delpech e Grousset. A descrição é alegadamente feita pelo filho de Saladino, al-Afdal, e depois reproduzida pelo cronista Ibn al-Athir. Ver Verbruggen, The Art of Warfare..., p. 89.22 Crónica de Portugal de 1419…, p.72.23 Em Portugal vemos coexistir essa designação genérica, nos documentos em latim, com designações mais específicas. Entre as que se referem ao comandante das forças militares do soberano, contam-se, para a crono-logia em estudo, o Armiger – frequente entre os confirmantes dos diplomas condais: «Nunnu Pelaiz, Armiger Comis, confirmo» (Scriptores, “Portugaliae Monumenta Historica a Saeculo Octavo post Christum usque ad Quintum Decimum”,Lisboa, Academia Real das Ciências de Lisboa, 1856 e s. - PMH-DC, doc DCCCLXIV, p. 513) e o Alferes-mor. O papel deste último está sobejamente descrito e estudado, mas veja-se Martins, Miguel Gomes, Para Bellum: Organização e prática da guerra em Portugal na Idade Média (1245-1367), Coimbra, Tese de Doutoramento, 2007, p. 612. Para um percurso evolutivo dos termos Signifer, Armiger e Alferes, veja-se Mateu Ibars, Josefina, “La confirmatio del “Signifer”, “Armiger” y “Alférez” en la documentación astur-leo-nesa y castellana, 740-1217”, em En la España Medieval: estudios dedicados al Profesor D. Julio González González, 263-316, Madrid, Universidad Complutense de Madrid, 1980.24 Ver Martins, Para Bellum…, p. 618.

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a manobra e para o posicionamento relativo dos comandantes subordinados. Dado que o senhor e a sua bandeira formavam o coração de um exército, o seu movimento através do campo de batalha arrastava toda a força com ele25. Dispomos de alguma informação em relação a este papel do estandarte no espaço peninsular. Afonso VIII de Castela, comunica ao papa Inocêncio III a grande vitória das Navas de Tolosa, em 16 de julho de 1212. A carta é longa, mas refere o papel do rei e da carga do seu estandarte26. Este efeito é ainda frequentemente notado na Crónica de 1419 onde, para a nossa cronologia, detetamos dois registos bem claros. Um referido à batalha de Ourique:

«[…] E, quando el-rey dom Afonso vio que era tempo de mover, falou a dom Pero Paeez, seu alferes, que movese com seu pendom, e loguo todolos da sua aaz moverom juntos»27

E outro ao fossado do, ainda infante, D. Sancho a Sevilha:

« […] e o ifante fez mover a sua bandeira, e deshy todolos outros, e asy forom regrados ata chegar onde estavam os mouros.»28

Mas, naturalmente que não era somente o pendão real que servia de guia no campo de batalha. A tática exigia que cada pequena unidade utilizasse uma bandeira própria. Isto era particularmente evidente entre os cavaleiros, que para carregarem sobre as hostes ini-migas tinham de se organizar em pequenos grupos coesos e com as fileiras cerradas. Nor-malmente, os elementos que os compunham pertenciam a um grupo socio-militar estável, vinculado por laços de parentesco ou dependência formal. Estas formações designavam-se por conrois, no mundo francófono29.

25 Jones, Robert W. “Banners”, In The Oxford Encyclopedia of Medieval Warfare and Military Technology, Vol. 1, 120-121, Oxford, Oxford University Press, 2010, p. 272.26 Mansilla, Demetrio (ed.). “La documentación pontificia hasta Inocencio III (1198-1216),” em Monumenta Hispaniae Vaticana, Sección Registros, I, Roma, Instituto Español de Estudios Eclesiasticos, 1955, doc. 483, p. 513. O mesmo episódio é descrito pelo arcebispo de Toledo, Rodrigo Jiménez de Rada, presente na batalha, embora este lhe empreste um caráter miraculoso (Jiménez de Rada, Rodrigo, Historia de Rebvs Hispane sive Historia Gothica, trad. e estudo de Juan Fernández Valverde, Turnhout, 1987, Cap. X, p.273. Ver também Alvira Cabrer, Martín, Guerra e Ideología en la España Medieval: cultura y actitudes históricas ante el giro de principios del siglo XIII. Batallas de Las Navas De Tolosa (1212) y Muret (1213). Tese de doutoramento não publicada. Madrid, Universidad Complutense de Madrid, 2000, p. 286.27 Crónica de Portugal de 1419, p. 23.28 Idem, p. 71.29 Há ainda algumas questões no que respeita a esta terminologia. Estaremos a falar de unidades táticas estáveis no efetivo ou de termos que procuram agrupar aqueles combatentes que executam determinada manobra em simultâneo, independentemente do número? Verbruggen considera que o conroi tem dimensão variável e adianta um número de 12 a 24 cavaleiros. David Nicolle também perfilha a variabilidade do quantitativo de cavaleiros, mas refere 20 a 40 (Nicolle, Knights of Outremer, 1187-1334 AD., Oxford, Osprey Publishing, 1996, p. 16). Alvira Cabrer fala de 20 a 24 homens (Alvira Cabrer, Guerra e Ideología en la España Medieval…, p. 189-190). Estamos, provavelmente, perante uma questão semântica que radica na diversidade de designações que as fontes apresentam para este tipo de unidades. Verbruggen apresentou o problema como sendo de natureza etimo-lógica e avançou para a conclusão de que os textos latinos, ao ficarem ancorados às designações clássicas, não

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As insígnias utilizadas para coordenar a condução das cargas ao nível dos conrois talvez se inserissem nas categorias inferiores expostas nas Siete Partidas e que Miguel Gomes Martins associa aos sinais identificadores que os senhores das mesnadas apresentavam. Tratar-se-ia, frequentemente, de pequenas bandeiras de formato triangular ou trapezoidal, visíveis nalgumas iluminuras das “Cantigas de Santa Maria” e da “Crónica Troyana”30.

De notar também que, na sequência de uma carga, o conroi desorganiza, muitas vezes penetrando para a retaguarda da primeira linha do opositor31. Mas como a cavalaria possui grande mobilidade, tem facilidade relativa em abandonar o corpo a corpo e reagrupar. Os estandartes de menor dimensão, correspondentes a estas pequenas unidades, teriam um papel importante também nesta fase do combate. Sobre este assunto, a organização das ordens militares fornece-nos mais pistas.

Como tentámos fazer notar, os sinais visuais eram presença constante nas ações mili-tares, com função no estacionamento, na formação da hoste, nos dispositivos de marcha e nos movimentos em combate. Estão associados à transmissão de ordens e, portanto, ao co-mando, mas podemos considerá-los, acima de tudo, um instrumento de controlo de tropas. Para o exercício do comando e a transmissão de ordens de execução imediata e simultânea, os sinais sonoros revelam-se mais eficazes, como veremos a seguir.

facilitam o estudo das unidades táticas medievais (Verbruggen, The Art of Warfare..., p. 13-14). Recentemente, David Nicolle revisitou o assunto e fez notar que a maioria da terminologia para unidades militares medievais teve origem na época carolíngia e foi depois adotada (e adaptada) nos diferentes espaços do ocidente europeu. No século XIII, os exércitos da Europa Ocidental estavam divididos em batalhas. Estas estariam compostas por échelles (esquadrões). É possível que um esquadrão fosse constituído por diversos conrois (Nicolle, David “Es-cadron”, em Prier et Combattre, Dictionaire Européen des ordres militaires au Moyen Age, Dir. de Nicole Bériou et Philippe Josserand, Paris, Libraire Arthème Fayard, 2009, p. 335). De acrescentar, somente que, segundo Alvira Cabrer, as batalhas assumiam a designação de azes na Península Ibérica (Alvira Cabrer, Martín, Las Navas de Tolosa, 1212: Idea, liturgia y memoria de la batalla, Madrid, Sílex, 2012, p. 189). Com efeito, García Fitz fez notar que nas fontes peninsulares ressalta o termo de az, que designa uma formação extensa, que podia ser composta por várias linhas e que, dependendo da quantidade de combatentes, ocupava um amplo espaço (García Fitz, Francisco, Las Navas de Tolosa, Barcelona, Ariel, 2012, p. 502-503).30 Martins, Para Bellum…, p. 256. Para a cronologia que estudamos, estamos em crer estar perante uma trans-ferência de um destes sinais, patente num testamento escriturado em Coimbra, em 1185. Naquela data, João Pe-res, provavelmente um cavaleiro da urbe, lega a maioria dos seus bens à Sé, mas também a familiares e a causas pias. Para o irmão deixa: «(…) duos boves meliores et I vacam, et pallium meum, et scutum et lanzam et ensem». Estamos em crer que o termo “ensem” possa já significar algo semelhante a “enseña” ou insígnia. Trata-se de alguém abastado, a julgar pelos bens de que dispõe em herança e pela profusão de beneficiários. Para além do seu armamento pessoal, deteria o privilégio de transportar um pequeno estandarte no campo de batalha, de modo a poder coordenar a ação da sua, provavelmente, pequena mesnada ou lança. “Ensem”, em latim clássico é o acusativo singular de ensis, que também significa espada ou lâmina. Também pode significar “poder” (Torrinha, Francisco, Dicionário latino-português, Maranus, Porto, 1945). Por um lado, faz sentido que um cavaleiro possa possuir, para além da lança, uma espada; a norma é esta vir referida como “spada”, na documentação coeva. Em occitano, a palavra “ensem” significa “em conjunto”, ou “ao mesmo tempo” (Levy, Emil, Petit dictionnaire Ancien Occitan (Provençal) – Français, Institut d’Estudis Occitans de Paris, Heidelberg, 1909).31 Verbruggen diz-nos que, quanto mais pequena é a unidade que penetra, mais risco corre de ser aniquilada pela segunda linha inimiga. Daí a urgência em dar meia-volta e retirar. Ver Verbruggen, The Art of Warefare…, p. 103.

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Métodos Sonoros

A “voz de comando” ou a voz do comandante constitui o método sonoro mais evidente, mas isto não significa que seja o mais simples. Na verdade, o uso direto da voz acarreta duas principais dificuldades. É inaudível a grandes distâncias e, portanto, não é compatível com o comando de efetivos volumosos ou tropas dispersas; mesmo a curtas distâncias, é difícil de co-locar em prática durante o combate, dados o ruído e vozearia que se fazem sentir no momento.

Verbruggen utiliza fontes bizantinas, bem pormenorizadas no que respeita às vozes de comando, nomeadamente o Strategikon, atribuído ao imperador Maurício I, no século VI. Através do documentado para Bizâncio, identifica indícios e manifestações de práticas si-milares por parte dos exércitos de cavaleiros do ocidente europeu. Os bizantinos recorriam a vozes de comando, executadas pelo mandator (um comandante e não um simples men-sageiro), como “Em frente!” ou “Alto” ou ainda vozes para manter os alinhamentos, alterar a formação ou a direção de marcha e abrir e cerrar fileiras. Tal como o autor identificou equivalentes ocidentais para estas ordens verbais, também é possível fazer o mesmo exer-cício para o Ocidente Peninsular. A Crónica de 1419 representa o Pero Pais a dar ordens diretas durante o fossado do infante D. Sancho a Sevilha:

«Dom Pero Paiz, quando os vio estar asy todos jumtos com o pendom de Sevilha, não atendeo mais e deu vozes a Mem Moniz e a outros senhores e foy loguo meter o pendom do ifante amtre eles e aly se fez grande batalha e forte.»32

As ordens verbais mais complexas ou a maiores distâncias eram reproduzidas pelos pregoeiros, que as ouviam dos comandantes e depois replicavam junto dos destinatários. Os pregoeiros também percorriam o arraial, mandando os combatentes tomarem a ordem de marcha ou formarem em ordem de batalha, como nos diz Rodrigo Jimenez de Rada da manhã das Navas de Tolosa:

«No dia seguinte, pela meia-noite, soou a voz da exultação e confissão no acampamento cristão e pela voz dos pregoeiros foi aclamado que todos se armassem para a batalha do Senhor»33

32 Crónica de Portugal de 1419, p. 19. Não é certo que o alferes se tratasse de Pero Pais, embora seja possível, uma vez que temos registo da sua presença até 1186. O fossado de Triana foi em 1178 e nessa data não dispomos de dados quanto ao ocupante do cargo. Maria João Branco demonstrou que após o afastamento do irmão ilegítimo de Sancho, Fernando Afonso, em 1173, sucedeu, como alferes-mor, Mem Gonçalves, até 1176. O alferes-mor seguinte de que temos registo é Pedro Afonso, a partir de 1179. Ver Branco, Maria João Violante, D. Sancho I, Lisboa, Temas e Debates, 2010, p. 65, 87 e 272. Este debate transportar-nos-ia para um capítulo da crítica relacionado com a in-tencionalidade de Fernão Lopes na sua redação, mas estaríamos a afastar-nos debalde do assunto do presente texto. 33 «Sequenti uero die circa mediam noctem uox exultationis et confessionais insonuit in tabernaculis christianis et per uocem preconis inclamatum est ut omnes ad bellum Domini se armarent» (Jiménez de Rada, Historia de

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Talvez possamos incluir também nesta categoria o cantator, personagem presente tanto nos exércitos bizantinos como nos ocidentais. O seu dever era dirigir-se às tropas com arengas e com cantos marciais34. Os contingentes muçulmanos também apresentavam pre-goeiros que, para além de transmitirem as ordens, tinham um papel no moral, análogo ao do cantator. Ibn Abi Zar apresenta-nos os pregoeiros do xeque Abū Yahyà ben Abī Hafs, na batalha de Alarcos, 1195, que depois de formada a az gritaram:

«Companheiros muçulmanos! Resisti nas vossas fileiras, não abandoneis os vossos postos, oferecei a vossa intenção e as vossas obras a Deus, e tende-o muito presente em vossos corações porque, das duas uma: ou conseguis o martírio e o paraíso ou o mérito e o saque!»35

Naturalmente que o autor emprestou alguma eloquência ao papel dos pregoeiros, mas o importante a constatar é a sua existência e a capacidade de transmitir ordens verbais a toda uma hoste.

A outra via de utilização de métodos sonoros consiste no recurso a instrumentos. Estão documentados instrumentos de sopro, como tubas, trompas, anafis, cornetas, trombetas, buzinos, cornos e olifantes36. Sinos, sinetas ou chocalhos podem ser usados, especialmente para sinais de alerta. Temos notícia da utilização de tambores, especialmente entre os exér-citos muçulmanos37. Não é fácil situar no espaço e no tempo cada um destes instrumentos, ao que se pode acrescentar a diversidade de designações, para além das apresentadas, que um mesmo instrumento pode ter. Verbruggen, recorrendo ao já mencionado Strategikon, fala na buccina ou boukinon, em uso no exército bizantino, afirmando que se tratava de uma trombeta, instrumento este que também deteta já nos exércitos merovíngios do século IX38.

Robert Jones especifica que os sinais sonoros por instrumentos têm uma dimensão estra-tégica, que não é possível à voz, e uma dimensão tática39. A utilização mais direta e elemen-tar dos instrumentos integra-se nessa função estratégica. É o toque de alerta ou de chama-mento, alcançando distâncias muito maiores e produzindo sons muito mais distintos do que

RebvsHispane…, p. 270, tradução nossa).34 Verbruggen, The Art of Warfare…, p. 85.35 Ibn Abi Zar’, Rawd al-Qirtas, ed. Ambrosio Huici miranda, Valência, s.n., 1964, p. 441-442.36 A tábua de concordância da Bíblia de Alcobaça, dos finais do século XII, representa uma cena de guerra, com um ataque e defesa de uma fortificação. No topo da iluminura (e da fortificação) encontra-se um soldado que toca um olifante, procedendo ao chamamento (Barroca, Mário Jorge, “Armamento Medieval Português”, em Pera Guerrejar: Armamento Medieval no espaço português, Palmela, Câmara Municipal de Palmela, 2000, p. 81).37 Veja-se, como exemplo, Ibn Abi Zar, Rawd al-Qirtas, p. 444, ou ainda o “soar do tambor” figurativo que «juntou toda a gente de todas as cábilas e al-Mansur partiu de Sevillha (…)» (Ibn ‘Idari, Al-Bayān…, p. 198). Ibn Abi Zar’ menciona, em 1275, a vanguarda de um exército muçulmano no al-Andalus constituída por “5000 cavaleiros, bandeiras e tambores” (Ibn Abi Zar’, Rawd al-Qirtas, p. 597).38 Verbruggen, The Art of Warfare…, p. 87.39 Jones, Banners…, p. 272.

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a voz humana. A aproximação de uma ameaça – quer fosse de um aglomerado populacional, quer de uma fortaleza ou de uma força estacionada – era sinalizada, a fim de que os homens pudessem acorrer às armas ou às funções específicas de cada um, no caso do apelido40.

Quanto à dimensão tática, na Hispânia Ocidental, de um e de outro lado, o uso de ins-trumentos de sopro é comum. No recontro entre os benimerines e os castelhanos, junto a Écija em 1275, as forças comandadas por Nuno Gonzalez de Lara foram retratadas por Ibn Abi Zar’a avançar ao som de clarins41. Uma vez que as trombetas eram tocadas quer para ordenar o avanço, quer para ordenar a retirada, deveria haver toques distintos para estes dois movimentos, mas esses detalhes perderam-se42.

O combate nas ordens militares: caraterísticas comuns nos dois lados do Mediterrâneo e especificidades peninsulares

Na Península Ibérica, as forças das ordens militares, apesar de terem um peso relativo significativamente inferior a outros contingentes, quando comparados com a realidade da Terra Santa, mantiveram uma preponderância qualitativa. Com efeito, as milícias desem-penham um papel central na guerra ao longo de toda a cronologia em estudo43.

No plano estratégico, a colocação de territórios de fronteira à sua guarda garante a pre-sença de forças eficazes na defesa dos reinos cristãos, ao mesmo tempo que os coloca em situação privilegiada para o desencadeamento de operações ofensivas. Trata-se de corpos al-tamente especializados que, ao contrário da maioria dos contingentes mobilizáveis pelo mo-narca de modo sazonal, garantem serviço militar permanente. Os mestres/ priores das ordens são presença frequente nos conselhos de guerra dos soberanos, como no caso de Paio Peres Correia, figura incontornável junto de Fernando III, na conquista de Sevilha, em 1247-4844.

No plano tático, as ordens militares, quando intervêm, são fundamentais. Em 1212, constituem o centro da vanguarda cristã das Navas. Em 1247, Fernando III confia-lhes a tarefa decisiva de controlo do Aljarafe, para permitir a conquista de Sevilha. Em Portugal, um dos expoentes máximos da importância de uma ordem militar na guerra é a campanha de conquista do Algarve, protagonizada em grande parte pela Ordem de Santiago.

40 Sobre as tarefas das populações quando chamadas ao apelido, veja-se Gonçalves, Iria, Por entre terras de Entre-Douro-e-Minho com as Inquirições de D. Afonso III, Porto, Afrontamento, 2011, p. 32 e seguintes.41 Ibn Abi Zar’, Rawd al-Qirtas, p. 598-599.42 Jones, Banners…, p. 27243 Veja-se As Ordens Militares e os modelos táticos de combate de um e do outro lado do Mediterrâneo – uma abordagem comparada (Monteiro, João Gouveia, Entre Romanos, Cruzados e Ordens Militares: Ensaios de História Militar Antiga e Medieval, Lousã, Salamandra, 2010, p. 255-301).44 A Crónica Geral de Espanha é explícita quanto à confiança do monarca no mestre da Ordem: “Mas el maestre dUcles, don Pelay Correa, et caualleros buenos que auie com rey sabidores de gerra, conseiaronle que fuese cercar Seuilla”, (Primera Crónica General de España que mandó componer Alfonso el Sabio y se continuaba bajo San-cho IV en 1289, publicada por Ramón Menéndez Pidal con la colaboración de Antonio G. Solalinde, Manuel Muñoz Cortés y José Gómez Pérez, Editorial Gredos, 1955, p. 747).

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A experiência militar dos freires era também um fator distintivo. Muitos cavaleiros (especialmente os de São João e do Templo) tinham experiência de vários anos na Terra Santa. Os que não tinham participado na Cruzada ao Oriente ou que ingressavam nas ordens hispânicas tinham também condições para adquirir uma experiência de combate muito superior à maioria dos guerreiros seus contemporâneos. As ordens militares guarne-ciam em permanência a frente contra o Islão. Por essa razão eram também conhecedores privilegiados do modo de atuação dos muçulmanos e das suas táticas.

A procura de fatores passíveis de influência no comando e controlo militar das ordens será feita a dois tempos. Primeiramente, verificaremos caraterísticas que seriam comuns a ambos os lados do Mediterrâneo que, por estarem já bem estudados, se permitem a um enunciado mais breve. Seguidamente apresentaremos algumas das caraterísticas distinti-vas da guerra na Hispânia.

Caraterísticas comuns dos dois lados do Mediterrâneo

Há todo um conjunto de considerações gerais acerca da atuação militar das ordens que pode ser extrapolada da Terra Santa para a Península, por comparação. Como já foi sublinhado por João Gouveia Monteiro, no caso do Templo, de um lado e do outro do Medi-terrâneo, a regra é a mesma45. Em relação ao Hospital, para a Hispânia e até para a Ordem de Santa Maria dos Teutónicos no Báltico, é também relativamente seguro estabelecer este paralelismo.

Com as devidas cautelas, utilizar-se-á o método comparativo para muitas facetas das ordens hispânicas, ou porque replicaram deliberadamente o modelo do Templo, ou ainda porque, na sua condição de filiação cisterciense ou agostiniana nos revelam tendências normativas análogas. Estas possibilidades de transposição são muito úteis e têm sido de-vidamente assinaladas desde há muito. Para a problemática em apreço, de comando e controlo, o paralelismo entre o Próximo Oriente e a Península permite-nos perceber alguns procedimentos, desde que nos asseguremos que pisamos terreno firme.

Hierarquia e obediência

A normativa das ordens é o recurso mais completo e evidente sobre este aspeto. As or-dens militares obedecem a uma regra privativa, específica para cada uma, mas com muitos pontos comuns. Para além dos textos que espelham a legitimidade inicial das milícias, o tempo foi suscitando a necessidade de acrescentos46. Podemos encontrar disposições

45 Monteiro, Entre Romanos…, p. 298.46 No caso dos templários, os retrais, já aludidos, redigidos em francês entre 1165 e 1187 (upton-Ward, In-trodução…); para os hospitalários, cuja regra primitiva era repleta de elementos da Regra dos Agostinhos, e incidia no caráter assistencial da Ordem, foi necessário proceder a acrescentos relacionados com a guerra,

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relativas à guerra em todos os normativos, mas nenhum se compara, em dimensão e em pormenor, aos Retrais do Templo. As normas tinham sido pensadas para exaltar a coesão interna, o espírito de corpo e a ação coordenada, numa época em que a guerra se baseava ainda fortemente no valor individual.

O voto de obediência das ordens militares, cuja quebra era objeto de severa punição, conferia aos cavaleiros uma vantagem extraordinária. Numa época em que a consolidação do ideário cavaleiresco passava pelo enaltecimento pessoal, as ordens militares privilegiavam o coletivo em detrimento do individual, ganhando em disciplina, coesão interna e, em última análise, em eficácia no combate. Para os freires-cavaleiros, a norma era a manutenção das formações e inclusive a renúncia a oportunidades individuais, se surgissem. A Regra de San-tiago contém uma disposição muito indiciadora da postura pretendida, neste sentido:

«Mandamos por estrito mandamento que tudo aquilo que os freires, com a ajuda de Deus, ganharem dos mouros por seu intermédio, o deem com grande caridade para sacar cativos do poder dos Mouros»47

O saque é uma das principais motivações (senão a principal) dos cavaleiros. Ao retirar a possibilidade de saque aos seus membros, a ordem estabelece uma diferença fundamen-tal entre os freires e os cavaleiros leigos.

A forte hierarquização das milícias permite-lhes um elevado nível coordenação no cam-po de batalha, a ponto de, à perda de um dignitário da ordem, os freires saberem exata-mente a quem compete substituir o comandante caído. Em terminologia atual utilizar-se-ia a designação de manutenção da “cadeia de comando” para expressar esta realidade. Com efeito, nas ordens militares, as cadeias de comando estão perfeitamente estabelecidas, não dando origem a equívocos. No Templo e no Hospital, a normativa é clara a esse respeito.

A Ordem do Templo inclui um conjunto de normas que permitem restabelecer a cadeia de comando, caso seja interrompida. Uma das mais claras diz respeito ao que acontece quando o Marechal se constitui em baixa:

«E se o Marechal for ferido de modo muito grave ou estiver tão doente que não possa comandar o ataque, aquele que transporta o estandarte enrolado deve dirigir o ataque»48.

patentes nos Estabelecimentos (García Larragueta, Santos, “Libro de los Estatutos Antiguos de la Orden de San Juan”, en Institución Príncipe de Viana, Año 63, Nº 226, 345-390, Gobierno de Navarra, 2002). As ordens hispânicas tiveram também acrescentos regulamentares semelhantes, como são o caso dos Estabelecimentos de Santiago ou das Definições de Calatrava (Ayala Martínez, Las Órdenes Militares Hispánicas…, p. 151-164).47 Rule of the Military Order of St. James, XXVI, p. 82, atualização nossa.48 Retrais, em “A Regra dos Templários”, Ed. J. M. upton Ward, Lisboa, 2006, A Esfera dos Livros, p. 164. Trata-se do cavaleiro que segue o marechal, com um estandarte de reserva. Adiante, no texto, voltar-se-á a este assunto.

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De uma forma menos direta, os estabelecimentos do Hospital apresentam o que fazer quando o mestre é capturado ou desaparece em combate:

«Também se estabeleça, Deus queira que não aconteça, que se o mestre for preso por sarracenos, eles devam estabelecer que os freires que escapem da batalha, pelo conselho e pela vontade dos homens bons da casa, sob a alçada dos quais aqueles freires estarão, esteja algum freire homem-bom o qual esteja no lugar do mestre; aquele procure para o lugar do mestre faça reunir o capítulo e devam eleger algum freire homem-bom para o lugar do mestre da sua marca ou de onde for.»49

Já Santiago, não o dizendo explicitamente, deixa subjacente a condição de interinidade de liderança, quando o mestre morre:

«Seja estabelecido lugar onde se faça Capítulo Geral em cada ano, e seja ali o Convento dos Freires. E que o Prior tenha cuidado, assi dos clérigos como dos leigos e proveja às almas deles quando for necessário. E quando o Mestre falecer desta vida, até que outro seja eleito pelos Treze Freires que para o efeito têm poder, o Prior tenha cuidado e cargo da saca e da Ordem, ao qual todos sejam obedientes como ao Mestre»50.

Todas estas disposições aludem para um “espírito da lei” que remete para a existência de um “número dois”, seja na sede conventual, seja numa província ou língua, seja numa comenda. Veremos, adiante, que no que respeita ao transporte do estandarte, esta preocu-pação nos surge quase como uma obsessão.

A carga

João Gouveia Monteiro demonstrou-nos dois aspetos centrais a este respeito: do ponto de vista tático, o inimigo nas duas margens do Mediterrâneo era muito semelhante; a técni-ca de combate mais habitual em batalha campal entre as hostes cristãs era a execução de cargas de cavalaria “bem articuladas e coesas”51. Ora, esta constatação inclina-nos a de-duzir que, de um e do outro extremo do Mediterrâneo, as ordens militares sabiam executar cargas, tinham treino e recursos para o fazer.

49 «Item si s’estalua, la qualcauraDieus no uolha, que lo maystrefos pres per sarrazis, elsdeuonestablir que los frayresescaparant de la bathalha per lo cosselh et per la voluntatdelspredomes de la mayzo en la marcha dels-qualsayselsfrayresserant, puescantalcun lo frayreprodome lo qualsai en luoc del maystre; lo cual procure pro luoc del maystrefag entro lo capitolprodavenent et deiantdelegiralcufrayreprodome en luoc del maystre de sa mar o de la y». (garcía larragueta, Libro de los Estatutos Antiguos…, p. 345-390, p. 366), tradução nossa.50 Regla, y Establecimientos, dela Orden Y Cavalleria, del Glorioso Apostol Santiago, Patron de Las Spañas, con la Historia del Origen y Prioncipiodeella. Pe. De VillafrancaSculptorRegiusft. 1655., Cap XXXV, p. 85-86.51 Monteiro, Entre romanos…, p. 279.

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No entanto, uma batalha campal era um acontecimento extraordinário, daqueles que perduram na memória. Se, para o espaço português, na cronologia em estudo, só conse-guimos documentar uma carga deste género, em Alcácer, 1217, já para o espaço castelha-no-leonês identificam-se Alarcos, 1195; Navas de Tolosa, 1212; Tejada, 1225; Alhange, 1230; Jerez de la Frontera, 1231; Torre del Campo, 1275; Écija, 1275 e Moclín, 128052, e nem em todas houve participação das ordens militares.

A carga templária da batalha da Ribeira de Sítimos, em Alcácer, contou com cerca de 500 cavaleiros comandados por Pedro Alvites, do Templo. Para reunir este efetivo, o mestre terá percorrido (ou mandado percorrer) inúmeras casas da Ordem no ocidente pe-ninsular. O ataque templário chegou até nós através do Carmen de Gosuíno:

«Mas temos apenas trezentos cavalos.De improviso, por dom divino, quinhentos cavaleiros e cavalosJuntam-se a nós, ao amanhecer»53

Miguel Gomes Martins reconstruiu esta ação, demonstrando que a combinação da ação de surpresa com o poder de choque da cavalaria foram decisivos para a derrota muçulma-na54. Parece-nos, no entanto, que a carga da Ribeira de Sítimos configura uma situação atípica em relação ao que temos vindo a falar, por duas razões: porque não se tratou de um embate frontal e porque parece ter sido desferida de uma só vez e não de forma compassa-da. O procedimento “tecnicamente” correto passava pela articulação de vagas sucessivas de modo a que a brecha aberta pelos primeiros esquadrões pudesse ser explorada pelos seguintes. Trata-se de uma ação bastante dependente de meios de comando e controlo. Como sublinha Francisco García Fitz, “a dificuldade do comandante residia em calcular adequadamente o momento em que cada linha de cavaleiros devia iniciar o ataque”55.

Os Retrais do Templo são a fonte onde encontramos mais dados para perceber como esta Ordem procedia56. Por analogia, presumimos que as restantes milícias não diferissem muito dos templários.

Quer no Oriente, quer no Ocidente, mesmo com designações diferentes, as realidades inerentes às cargas de cavalaria seriam análogas. Pensemos, também, na carga não como

52 García Fitz, Castilla y León…, p. 457-458.53 Monarquia Lusitana, Parte Quarta, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1974, reimpressão, p. 133-136 na tradução de Santos Alves.54 Martins, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota: A Guerra na Idade Média, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2011, p. 138.55 García Fitz, Castilla y León…, p. 394-395.56 A ponto de Mathew Bennet ter redigido um excelente ensaio que intitulou: “A Regra do Templo como Manual Militar ou Como executar uma carga de cavalaria (Bennet, Mathew, “A Regra do Templo como manual militar ou como executar uma carga de cavalaria”, em A Regra dos Templários, Ed. J. M. Upton-Ward, 219-235. Lis-boa, A Esfera dos Livros, 2006).

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um exclusivo dos freires-cavaleiros, mas como uma ação em que participam também outros elementos montados ao serviço das ordens57.

Posição das milícias em ordem de batalha

Um outro aspeto comum é o posicionamento dos contingentes das ordens militares no seio dos exércitos em ordem de batalha. Como constata Alan Forey para a Palestina, às ordens militares são frequentemente atribuídos os lugares onde a ação é mais crítica: a vanguarda, a retaguarda e, em ambos os casos, ao centro58. Em Damieta, 1249, o contin-gente templário assegura a vanguarda do exército do rei Luís de França, tendo resolvido a questão com uma só carga, comandada pelo marechal Reinaud de Vichiers59.

Na Península Ibérica o procedimento é o mesmo. Rodrigo Jiménez de Rada mostra-nos que o posicionamento inicial dos contingentes das ordens militares nas Navas de Tolosa, ao centro, se destina à exploração do sucesso através de uma brecha a abrir pelos cavaleiros de Castela, sob o comando de Diego Lopez II de Haro:

«(…) A disposição das azes foi como coordenado entre os príncipes castelhanos. Diego Lopez com os seus daria o primeiro golpe. A meia az, o conde Gonçalo Nunes, com os freires do Templo, Hospital, Uclés e Calatrava»60.

Coordenação com outros contingentes

Comando e controlo sugerem uma relação hierárquica vertical, entre quem comanda e quem obedece. Há, no entanto, um aspeto que nos parece também merecer ser contem-plado nesta análise. Trata-se da coordenação com outros contingentes em que, por vezes, existe uma relação de subordinação. No exército régio, por exemplo, as ordens militares subordinam-se ao rei e atuam a par de outros contingentes.

Primeiramente, a relação entre as ordens militares e os contingentes seculares. É cer-to que se distinguem pela disciplina e prontidão, que se deslocam e permanecem em silêncio a aguardar a ordem do seu comandante, como nos diz Demurger em relação aos

57 Sabemos que, na Terra Santa, quando o efetivo o permitia, freires-cavaleiros e sargentos constituíam unida-des diferenciadas, de tal modo que, quando o Convento do Templo combatia, os freires-sargentos agrupavam-se sob o comando do sargento-mor. No entanto é de admitir que essa seria uma situação ideal e que, normalmente, os freires formavam unidades mistas. Também na Península os freires tinham a possibilidade de enquadrar outros cavaleiros – como a cavalaria vilã dos seus senhorios – nos esquadrões.58 “The Military Orders, 1120-1312”, em The Oxford History Of The Crusades, montagem por Jonathan Ri-ley-smith, 176-210, Oxford, Oxford University Press, 1999, p. 189.59 Demurger, Alain, A grande aventura dos templários…, p. 27.60 «(…) dispositisque aciebus, sicut iam dudum fuerat pertractatum inter príncipes Castellanos, Didacus Lupi cum suis habuit primus ictus; mediam aciem comes Gunsaluus Nunii cum fratribus Templi et Hospitalis et Vclesii et Calatraue» (Jiménez de Rada, Historia de RebvsHispane…, p. 270).

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templários61 mas, de um modo geral, em combate, os freires atuavam em combate como os cavaleiros leigos62.

Na Terra Santa, as ordens militares recebem os cavaleiros cruzados, transmitem-lhes a sua experiência e chegam mesmo a assumir o comando de certas operações. Na Segunda Cruzada, Luís VII, admirando a disciplina e serenidade dos templários que acompanham a sua hoste, na Ásia Menor, repartiu os seus cavaleiros leigos em grupos de cinquenta, colocando um templário no comando de cada grupo, o que permitiu que todos chegassem a Adalia com baixas irrisórias63. Mas nem sempre a colocação de freires a par dos cavaleiros seculares significava sucesso, como nos diz o patriarca Aymeric de Antioquia, numa carta a Luís VII, de França, a propósito de uma emboscada sofrida por uma coluna cristã com-posta por cavaleiros templários, hospitalários e leigos, que acabou desbaratada64.

Para Castela, as Siete Partidas incluem os dignitários das ordens em grau de paridade com senhores seculares, pelo que as equivalências estavam estabelecidas e eram diretas:

«(…) Otras (señales) ya que son quadradas& ferradas en cabo a que llaman cabdales. E este nonbre han porque no las deue otro traer sino cabdillos por razon del acabdillamiento que deuefazer. Pero no deuen ser dados sino a quien ouiere-çiencaualleros por vasallos: o dende arriba. Otrosi las pueden traer conçeios de çi-bdades de villas. E por esta razon los pueblos se deuenacabdillar por ellos porque no han otro cabdillo sino el señor mayor que se entiende por el rey o el quel pusiere por su mano. Eso mismo pueden fazer los conuentos de las ordenes de caualleria Ca maguer ellos ayancabdillos a que han de obedesçersegund su orden. Porque no deuequanto a lo tenporalauer ninguno dellos cosa estremadavnos de otros: por eso no pueden auer seña si no todos en vno.»65

As bandeiras quadradas e ferradas, em cabo, são privilégio dos senhores que coman-dem cem cavaleiros ou mais, ou então os concelhos, cidades e vilas e os conventos das ordens militares.

Se vemos, dos dois lados do Mediterrâneo, as ordens a combaterem a par de contingentes seculares, no que toca à articulação das diferentes milícias entre si, o grau de proximidade não é menor. Ainda assim, no Levante, há notícia de rivalidade entre Templo e Hospital, na Terra Santa, que terá atingido um auge de tensão entre 1240 e 124866, mas as situações em

61 Demurger, A grande aventura dos templários… p. 275.62 Verbruggen, The Art of Warfare…, p. 102.63 Demurger, A grande aventura dos templários…, p. 209.64 Aymeric de Antioquia, O Declínio do poder cristão na Terra Santa, 1164, em “The Crusades Primary Sour-ces”, intr. e comentários de Sydney Jones, ed. Marcia Merryman Means e Neil Schlager, 2004, p. 73.65 alfonso, Partidas II, Título XXIII, Lei 13.66 Wise, Terence, The Knights of Christ, Oxford, Osprey Publishing, 1984, p. 12.

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que se confrontaram mutuamente são poucas e as fontes geralmente apresentam as duas milícias lado a lado. Os freires das diferentes ordens estão juntos para o melhor e para o pior. Mateus de Paris revela-nos que, quando Jerusalém cai às mãos de Saladino, em 1244,

«(…) os mestres dos templários e hospitalários foram trucidados e também os mestres das outras ordens, com os seus freires e seguidores. Walter, conde de Brienne, e o senhor Filipe de Monfort, e todos os que combatiam sob o patriarca, foram des-pedaçados; dos templários só escaparam dezoito e dezasseis dos hospitalários, que lamentavam ter-se salvado. Adeus.»67

Mas entre as ordens militares há mais. É concebível que freires de uma ordem com-batam sob o comando direto de dignitários de uma outra ordem. Os Retrais do Templo são bem explícitos quanto a isto:

«E se suceder que um irmão não se possa dirigir para junto do seu estandarte porque se adiantou demasiado com receio dos sarracenos que se colocaram entre ele e o estandarte, ou se não sabe o que aconteceu ao estandarte, deve dirigir-se para junto do primeiro estandarte cristão que encontrar. E se encontrar o estandarte do Hospital, deve manter-se junto dele e informar quem comanda o esquadrão ou qualquer outro de que não se pode dirigir para junto do seu estandarte e depois deve ficar tranquilo e em silêncio até que possa dirigir-se ao seu estandarte.»68

Supomos que o templário assim perdido, integrado num esquadrão hospitalário, não deixaria de combater juntamente com os freires da outra ordem. Ficar tranquilo e em silên-cio, a aguardar indicações, é a postura que a disciplina exige ao cavaleiro. Se a indicação que recebesse, do dignitário da outra ordem, fosse para combater, o freire combateria.

No Ocidente, e salvo pleitos pontuais entre duas milícias69, a própria diplomática não podia ser mais clara a respeito da união de esforços. Em agosto de 1221, Santiago e Cala-trava firmam um acordo de irmandade, que incluía operações em conjunto. A novidade não é o apoio mútuo; é a possibilidade real de freires de uma milícia combaterem sob as ordens da outra, não só subordinados aos mestres, mas também aos comendadores:

67 Mateus de Paris, Chronica Majora, 1258, em “The Crusades Primary Sources”, intr. e comentários de Sydney Jones, ed. Marcia merryman Means e Neil schlager, p. 52.68 Retrais..., p. 167.69 Ocasionais, normalmente em torno de reclamação de privilégios. Veja-se, por exemplo, o caso da Ordem de Alcântara com o Templo, que se arrastou por vários anos, e que obrigou Afonso X, em 1257, a nomear dois ca-valeiros para arbitrar o conflito (Colección Diplomática Medieval de la Órden de Alcántara. Ed. Bonifácio pala-cios martín, Fundación San Benito de Alcántara, Editorial Complutense, Madrid, 2003, doc. 285, p. 174-175).

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«En qualquier hueste, ò cabalgada, los Freyles de aquestas ya dichas Ordenes en sembla anden, è passen. E si batalla debieren aver, en sembla estén, si por aventura el Rey non los departiere, potptò de la hueste. E do quier que fueren, siempre se esfuercen de posar, è de estar en sembla, alsi como si fuesen (683) Freyles duna Orden. O quier que el Maestre qualquierdestas Ordenes, con los Freyles de ambas estas Ordenes, acaescier no estando í el Maestre de la otra Orden, todos los Freylies, tan bien los otros, como los suyos, todos le obedezcan. Otrosi do quier que los Freyles de aquestas Ordenes acaescieren non estando í los Maestres, nin Comendador, à un Comendador obedescan.»70

Os acordos entre estas duas ordens não são novos. Em 1188 tinha já havido uma con-córdia entre ambas no sentido de resolver pleitos71. Em 1202, Santiago tinha também já celebrado, com S. Julião do Pereiro, ajuda mútua, salvo contra o rei de Leão72. Em 1224, é celebrado um acordo semelhante entre as ordens castelhanas do Templo, Hospital, San-tiago e Calatrava de que, quando integrassem a hoste régia ou operassem em conjunto, deviam as ordens permanecer unidas (entenda-se, sob comando unificado).

Mais ainda: se os freires de uma ordem entrarem na área de operações da outra, passem a obedecer aos comandantes que têm “responsabilidade” sobre aquele território:

«Establecemos aun, que quantas vegadas los Freyles de Calatrava en tierra de Moros entraren por las partes de Uclés, ò de su termino, al Comendador de Uclès siguan en aquella carrera, è aquel hayan por Cabdiello. Otrosi, si los Freyles de Uclés entraren por partes de Calatrava, ò de su termino, al Comendador de Calatrvasiguan en la carrera, è aquel hayan por Cabdiello.»73

Podemos constatar, portanto, que quer na Terra Santa, quer no Ocidente Peninsular, as ordens militares atuavam em coordenação estreita quer com os contingentes seculares, quer entre si.

Missões em autonomia com efetivos reduzidos

As missões mais frequentes não conduziriam a batalhas campais. Na Terra Santa, os freires tinham a incumbência de vigiar itinerários, manter a ligação entre fortalezas, escol-tar colunas de peregrinos ou de abastecimentos. Se não estivesse nas imediações um exér-cito inimigo volumoso (e isso era relativamente fácil de acautelar, através do permanente

70 Bullarium Ordinis Militiae de Calatrava per annorum seriem nonnullis... Org. Inacio Jose de ortega y cotes, Juan Francisco alvarez de baquedano y Pedro de Ortega zuñiga y aranda, Madrid, 1761, doc. 683.71 Idem, p. 2572 Colección Diplomática Medieval…, doc. 45, p. 24.73 Idem.

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sistema de atalaias), poucas lanças ou destacamentos de cavaleiros conseguiriam manter a segurança de um itinerário durante o tempo que fosse necessário74.

Carlos de Ayala Martínez refere que os freires assumiam nos reinos hispânicos, com frequência, tarefas específicas relacionadas com a sua condição de prontidão permanente. As ordens militares tiveram, por exemplo, um papel destacado na custódia das cabeças de gado durante a campanha de Sevilha de 124875.

São-lhes solicitadas, também, as missões mais exigentes, que não poderiam ser atribuí-das a outro corpo qualquer. Entre os homens de confiança de Afonso Henriques, contam-se os templários, personalizados por Gualdim Pais. Em Santarém, 1147, a Crónica de 1419 apresenta-os com um papel de destaque na escalada dos muros da cidade76.

Em síntese, quanto às características comuns suscetíveis de relação mais direta com o comando e o controlo, verificamos que as ordens militares:

- Distinguem-se dos restantes contingentes pela disciplina, obediência e hierarquia bem definida;

- Têm a possibilidade de efetuar cargas mantendo um elevado grau de coesão;- Assumem posições de destaque nos contingentes cristãos, criando condições para

serem o fator decisivo na batalha;- Têm elevado grau de interoperabilidade com os contingentes seculares e com os con-

tingentes das outras ordens;- Devido ao elevado grau de treino e prontidão superior, são incumbidas de tarefas em

autonomia, frequentemente com elevado grau de responsabilidade e risco.

Especificidades peninsulares – uma tentativa de aproximação

Infelizmente não temos, para a Península Ibérica, o mesmo grau de conhecimento sobre o modo de atuação das ordens militares de que dispomos em relação à Terra Santa. Se, por um lado, há procedimentos documentados e outros que estimamos que seriam análogos, dada a própria natureza das milícias, há todo um conjunto de particularidades do “ambiente opera-cional” peninsular que nos levam a colocar várias questões. Para algumas existem respostas consolidadas e caminhos bem trilhados. Para outras há o silêncio das fontes e hipóteses de trabalho. Como início desta abordagem, parece-nos fundamental perceber os teatros de ope-rações oriental e ocidental e, em função deles, colocar algumas perguntas que, ainda que fre-

74 No século XII, muitas fortalezas hospitalárias e templárias estavam dispostas ao longo dos itinerários de peregri-nação e as funções primordiais dos cavaleiros eram a escolta e proteção dos peregrinos. Ao contrário da Península, desde muito cedo as operações militares das ordens deixaram de ser de conquista territorial, remetendo-se para uma postura defensiva dos estados latinos do Oriente (Forey, “The Military Orders, 1120-1312”, en The Oxford History Of The Crusades, montagem por Jonathan Riley-Smith, 176-210, Oxford, Oxford University Press, 1999, p. 184).75 Ayala Martínez, Las Órdenes Militares Hispánicas…, p. 597.76 Crónica de Portugal de 1419, p. 44. Note-se que Gualdim Pais não era ainda mestre da Ordem, mas a sua aura, no século XV, já seria de tal modo brilhante, que o cronista não hesitou em colocá-lo nesse cargo numa data tão recuada.

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quentes, podem assumir novos prismas se conjugadas com a perspetiva espacial dos teatros. Por que razão, contrariamente ao que se passou na Terra Santa, o peso relativo das ordens mi-litares nos contingentes dos reinos nunca aumentou? Como se relacionam, militarmente, os freires com os contingentes autóctones? Como se relacionam os freires das diferentes ordens?

Teatros de operações e profundidade estratégica

Um fator determinante no modo de combater de qualquer força é o espaço que tem disponível para o fazer. As implicações de espaço acabam por condicionar o leque de opções que as instituições têm para alcançarem os seus objetivos. Quando, de uma forma genérica, nos referimos às “duas frentes da cristandade contra o Islão”, temos tendência para assumir as similitudes. Mas as situações são militarmente bem diferentes.

Os estados latinos do Oriente são resultado de uma ação ofensiva cristã em território controlado por poderes islâmicos, nomeadamente os turcos seljúcidas. Por várias razões, o território que os estados cruzados controlavam consistia numa região alongada, que ini-ciava na Cilícia Arménia, e se prolongava para sul, pela costa, até ao Reino de Jerusalém. O Condado de Edessa, que constituía a maior área para o interior continental, subsistiu somente meio século (de 1098 a 1150, tendo a própria cidade de Edessa caído em 1148). Até à queda dos restantes poderes, no final do século XIII, o controlo cruzado do Oriente resume-se à faixa costeira, depende do mar para subsistir e requer um permanente esforço militar para o seu controlo. Não existe, propriamente, uma “zona do interior”, afastada do conflito, atraente a colonos, aliás, o povoamento franco do território é muito fraco, atingiu o expoente nas décadas de 1150 a 1170, mas nunca ultrapassou os 150 000 povoadores77.

Na Península Ibérica o cenário é bem distinto. O avanço dos cristãos para sul foi sendo fruto de dinâmicas mais prolongadas no tempo, que deram origem a sistemas sociais novos e a diferentes reinos, assentes em políticas de povoamento e contínuo reforço de poder ré-gio. A fronteira avançou mais profundamente no ocidente peninsular, ainda no século XI: entre 1055 e 1064 consolida-se a linha do Mondego e os territórios de Viseu e Coimbra. Toledo cai às mãos de Afonso VI de Castela e Leão em 1085. Quando entramos no século XII, os reinos ocidentais têm uma extensão territorial que lhes permite bastante liberdade de ação e um conjunto de instituições funcionais bem adaptadas ao território, como os municípios ou a cavalaria vilã.

As implicações nas ordens militares são drásticas. Quanto ao espaço, no Oriente não há margem para recuar, para retardamentos ou ações de flagelação sobre o inimigo; não se pode trocar terreno por tempo. A penetração de um contingente muçulmano na malha de fortalezas cristãs obriga a intervenção imediata de forças suficientemente numerosas para reduzirem a ameaça. Quando ocorre o recontro, este é decisivo. É o tudo ou nada. Por esta

77 Demurger, A grande aventura dos templários…, p. 220.

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razão as ordens militares têm de manter efetivos elevados nas fortalezas, mas este é um assunto a que voltaremos quando falarmos do número.

No Ocidente, é possível outra forma de atuação por duas vias principais. A primeira, tem a ver com a capacidade de “amortecimento” das ações ofensivas muçulmanas. A profundi-dade territorial permite a entrada de forças nos domínios dos reinos cristãos sem que estes corram o risco de desmantelamento imediato. As distâncias a percorrer e a própria organi-zação social cristã constituem um dissuasor a incursões na profundidade com contingentes pouco numerosos. As ordens têm efetivo para fazer face a pequenas ameaças e, quando o atacante vem em maior número, têm tempo suficiente para desenvolver uma estratégia de defesa concertada com a hoste régia ou outros contingentes. A segunda é a diversidade de opções de recrutamento e mobilização. Na Península Ibérica as ordens militares contam com os vassalos dos seus senhorios e ainda com a possibilidade de obter reforços de contin-gentes conjunturais, provenientes da zona do interior e, portanto, não tão exposta à guerra78.

A profundidade territorial tem, por conseguinte, implicações indiretas no comando e controlo das forças das ordens porque as tem diretas: (i) no efetivo das ordens e na sua rela-ção numérica com os outros contingentes cristãos que operam no mesmo território; (ii) nos mecanismos que as ordens militares tiveram de desenvolver para coordenarem a sua ação com os outros contingentes; (iii) no modo como as ordens militares tiveram de se relacionar entre si tendo em vista o combate.

A configuração territorial também apresenta outra caraterística com impacto nas ordens militares: o posicionamento das sedes conventuais. Na Terra Santa, os conventos centrais são em Jerusalém, no extremo sul da faixa costeira já aludida, ou seja, estão situados de forma bastante excêntrica em relação às áreas de responsabilidade das milícias. Na Hispâ-nia, as ordens (e os soberanos têm um papel importante, considerando que são eles quem atribui honras às ordens e lhes confia o território) têm a possibilidade de posicionar estra-tegicamente em locais propícios aos objetivos da ordem. Ou seja, a posição da sede con-ventual na Península coloca o prior/mestre na condição de poder comandar pessoalmente as principais ações, mesmo que tenha de atuar em reação, numa situação de emergência. A implicação para o comando e controlo é que se eliminam patamares intermédios.

Efetivo (número e composição)

No oriente latino (e, mais tarde, no Báltico), as ordens militares chegarão a representar metade das tropas combatentes, mas na Península Ibérica permanecerão sempre em torno dos dez por cento79. Mesmo quando observamos os efetivos totais e vemos que, nalguns

78 É exemplo bastante ilustrativo deste tipo de forças, a mesnada de Martim Anes de Vinhal, que acompanhou a Ordem de Santiago a partir da década de 1230.79 Rodríguez-Picavea, Enrique, Los monges guerreros en los reinos hispánicos – las órdenes militares en la Pe-nínsula Ibérica durante la Edad Media, Madrid, La Esfera de los Libros, 2008, p. 145.

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casos, se podiam aproximar da centena de freires-cavaleiros nas ordens mais numerosas, estes dados são ilusórios porque os freires-cavaleiros estariam dispersos no território, pe-las fortalezas e comendas. O foral de Tomar de 1174 foi confirmado por oito freires80. Pode colocar-se a questão de que nem todos os residentes na sede conventual foram confirman-tes, mas em 1201 havia cinco freires em Almourol81.

No conhecimento destes dados, interessa-nos perceber que implicações resultarão para a tática de um efetivo tão pequeno. Na Terra Santa, as ordens militares têm capacidade para a condução de grandes operações ofensivas em autonomia. Aqui não. Há exceções, como os templários que intervêm em 1217 e a Ordem de Santiago no Algarve. No primeiro caso, foi à custa de um esforço enorme por todas as casas do ocidente peninsular (e prova-velmente sabendo de antemão que viria um exército muçulmano de socorro); no segundo caso, só a atuação em coordenação com contingentes conjunturais e não necessariamente vassalos, como é o caso da hoste de Martim Anes de Vinhal.

Em todo o caso, se fizermos uma simples comparação entre as perdas em combate na Terra Santa e na Hispânia, verificamos grandes diferenças e implicações. Em 1187, em Cresson, os templários perderam 60 cavaleiros e em Hattin, pouco depois, deixaram no campo de batalha 230. Em La Forbie, 1244, cada uma das ordens, templários e hospi-talários, perdeu 300 irmãos, totalizando 600. Na Península Ibérica os efetivos totais das ordens são tão reduzidos que, em 1217, Avis não terá estado presente em Alcácer por ainda não se ter recomposto das perdas de Alarcos, em 119582. Quando Santiago perdeu o seu mestre e 55 freires na batalha de Moclín, em 1280, foi necessário fundir a Ordem com a de Santa Maria de Espanha83.

A grande implicação do efetivo na tática dos dois lados do Mediterrâneo é que as or-dens no oriente contavam com contingentes próprios e grandes concentrações de efetivo nas fortalezas, que lhes permitia apresentarem-se para combate em grande número84. Isto conduzia a que, como Forey demonstrou, as milícias tivessem um papel central que de-terminava o curso das atividades bélicas e condicionava os soberanos. No Oriente, um tão

80 Leges (et consuetudines), “Portugaliae Monumenta Historica a Saeculo Octavo post Christum usque ad Quin-tum Decimum”, Lisboa, Academia Real das Ciências de Lisboa, 1856 e ss., p. 400. 81 Martins, 2011, De Ourique a Aljubarrota…, p. 30. Veja-se, para uma ideia dos efetivos implicados nos outros reinos hispânicos, os quadros elaborados por Rodríguez-Picavea (Rodríguez-Picavea, Los monges guerreros…, p. 132 e seguintes).82 Um outro indício é a Ordem não ter visto crescer o número de castelos à sua guarda durante esse período (Martins, De Ourique a Aljubarrota…, p. 131).83 France, John, Western Warfare in the Age of the Crusades 1000-1300, London, UCL Press, 1999, p. 188.84 Na Terra Santa, as ordens têm possibilidade de manter efetivos mais regulares do que os príncipes dos estados lati-nos, que obtinham a maioria dos proventos localmente, ao passo que o financiamento e os recursos das ordens provi-nham das suas posses no ocidente e o fluxo era regular (forey, The Military Orders…”, p. 193). O Crac dos Cavaleiros era permanentemente guarnecido por 60 cavaleiros hospitalários, em 1255, e 80 templários para a fortaleza de Safad, cifras muito difíceis de igualar por qualquer fortaleza ibérica. Também por esta razão, castelos como o de Belvoir resistiram mais de um ano depois da batalha de Hattin e Saladino foi incapaz de tomar o Crac dos Cavaleiros e Margat (Idem, p. 186-187). À medida que se entrou no século XIII, as ordens na Terra Santa não podiam contar com exércitos de socorro. Na Península, a estreita ligação e apoio mútuo com as coroas garantiam que as ordens não estavam sós.

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grande efetivo em campo, requer um marechal ou grande comandante. No Ocidente não é preciso85. Eliminam-se graus na cadeia hierárquica, o que deve ter implicações na simpli-ficação do comando e controlo.

Na Península, aliás, as ordens correm o risco de sucumbir – por isso evitam os com-bates decisivos e ficar muito tempo estacionados num mesmo local, como num cerco, por exemplo. Privilegiam outros métodos de ataque a fortalezas, como o uso de ardis ou o as-salto de surpresa, e têm necessidade de ter a mesma mobilidade que os muçulmanos, pois podem ter que se desempenhar do combate, retirando apressadamente. Vemos isto com a atuação santiaguista no Algarve. Das mais de duas dezenas de fortalezas que caíram às mãos dos espatários, direta ou indiretamente, temos indícios de que Mértola, Estômbar e Tavira foram obtidas por intermédio de ataques de surpresa; Silves foi tomada com com-bate duro, mas depois de ter sido iludida grande parte da guarnição, que saiu da fortaleza em perseguição de uma força santiaguista que simulou dirigir-se mais para ocidente. A “Crónica da Conquista do Algarve” só nos dá indícios de um possível cerco a Salir que não se tratava de um hîsn, mas sim de uma fortaleza subsidiária86.

Um outro fator diferenciador que pode ter relação com o modo como se exercia o coman-do e controlo, era a composição dos contingentes. A maioria dos freires na Hispânia era de origem ibérica e as afinidades linguísticas não constituiriam problema. Na Terra Santa, à exceção dos teutónicos, que eram maioritariamente germânicos, tanto o Templo como o Hospital eram “multinacionais”, embora com especial incidência no espaço francês87.

Enquadramento de outros contingentes

Na Terra Santa as ordens militares empregaram contingentes de nativos – os turcópolos – de origem ainda não muito bem esclarecida, mas que podiam ser nativos recrutados lo-calmente88 ou súbditos bizantinos cristianizados, de ascendência turca. O que sabemos, e nos interessa mais para o presente trabalho, é a forma como combatiam. Os poderes cristãos, entre eles as ordens militares, empregavam-nos como cavalaria ligeira, em incursões em território inimigo e emboscadas. Em batalhas de maior envergadura, parecem surgir mis-turados com a cavalaria pesada franca, embora também saibamos, pela Regra do Templo, que formavam unidades próprias que tinham um freire-cavaleiro como oficial comandante: o turcopolier89que dispõe de um estandarte próprio, do mesmo modo que o marechal90.

85 Idem, 1999, p. 200.86 Scriptores, p. 415-420.87 Forey, The Military Orders…”, p. 197.88 Idem, p. 182.89 Ver France, Western Warfare…, p. 219. Para um ponto de situação em relação ao debate sobre a proveniência dos turcópolos, veja-se Idem, p. 291. Na sua edição crítica à Regra do Templo, Upton Ward expõe as funções do turcopolier (upton-Ward, Introdução…, p. 61). A ideia de que eram tropas nativas foi recentemente reforçada por A. G. C. Savvides, “Late Byzantine and crusader historiographers on Turkish mercenaries in Greek and Latin armies: the Turcopoles/ Turkopoloi”, em The Making of Byzantine history: essays dedicated to D.M.N.90 Retrais…, p. 170.

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Para além dos turcópolos, as opções das ordens na Terra Santa eram bastante limitadas porque tinham dificuldade em fixar vassalos nos seus domínios. Os muçulmanos saíam ou eram expulsos e era necessário colonizar os territórios com cristãos vindos da Europa – o que não era fácil, devido à instabilidade e guerra constantes91.

A profundidade estratégica da Península Ibérica assegurava às ordens que aqui opera-vam a possibilidade de reforços mais estáveis. A organização social alargava bastante o le-que de combatentes disponíveis e as relações que as milícias com eles estabeleciam eram de outro cariz. A atuação nas vastas faixas de fronteira, a partir dos castelos que tinham à sua guarda, acarretaria para os freires a especialização em tarefas críticas que, mesmo não desempenhando pessoalmente, seriam responsáveis por coordenar, enquadrando tropas provenientes dos seus senhorios (e isto incluiria não só peões, mas também cavalaria vilã). A fronteira implicaria patrulhas frequentes, guarnição de atalaias, estreita ligação com os almogávares92 e as outras gentes de fronteira.

Esta interação implicaria, também, um certo grau de compatibilidade com a cavalaria vilã93. Não sabemos até que ponto o modo de combater dos freires se aproximava do desta cavalaria, mas é de supor que, para desempenharem ações em conjunto, fossem os freires a adaptar alguns dos seus procedimentos táticos e, inclusive, técnicos, montando também “à gineta”, segundo a tradição ibérica. Em relação ao resto da Europa Ocidental, a Hispânia desenvolveu uma tendência para uma cavalaria mais ligeira, que deveria ser acompanhada pelos próprios freires e que lhes traria, para além de compatibilidade com a restante cava-laria, os ginetes andaluzes94, maior mobilidade do que os seus congéneres da Terra Santa.

91 Forey, Alan J., “The Military Orders and the Spanish Reconquest in the twelfth and thirteenth centuries”, In Traditio, Vol. 40, 197-234, Fordham, Fordham University, 1984, p. 186.92 Bem documentados para Aragão, onde constituíam um contingente significativo na hoste régia, também exis-tiam no ocidente peninsular. Tratava-se de gentes que viviam exclusivamente da guerra nas zonas de fronteira, o que lhes permitia penetrar facilmente em território inimigo para obterem volumosos espólios (Martins, De Ourique a Aljubarrota…, p. 31). A presença de almogávares encontra-se registada na “Crónica da Conquista do Algarve”, quando se descreve o avanço dos Espatários em direção a sul: «então cavalguarão os almagraves do mestre [de Santiago, D. Paio Peres Correia e partirão de azulltrell e passarão a serra pella torre de orique e andarão mui mançamente por os moros não haverem sentido deles» (Scriptores, p.416). Ver, também, a entrada que Frei de Santa Rosa Viterbo lhes reserva, no seu Elucidário (Viterbo, Elucidário…, p. 66).93 Esta classe tinha nascido entre os camponeses livres que se tinham arriscado a ocupar as regiões planas do Douro no século X, quando a transferência para as terras baixas tinha obrigado os soberanos a organizar rapidamente uma força respeitável de ginetes. O método para a geração deste tipo de forças foi oferecer a isen-ção de impostos a todo o camponês livre que comprasse um cavalo e armas e aprendesse a combater montado (LomaX, Derek, La Reconquista, Barcelona, Crítica, 1984, p. 132).94 Sobre a prevalência de ginetes andaluses sobre uma cavalaria mais pesada na Península Ibérica, ver (Conta-mine, Phillippe, La Guerre au Moyen Âge, Paris, Nouvelle Clio, 1980, p. 144-149) e também (Monteiro, Entre Romanos…, p. 257). Convém não esquecer que o recrutamento nas ordens militares ibéricas é de proveniência autóctone e que, mesmo nas universais, para a Península Ibérica, a maioria dos freires são hispânicos. Não há registo de que as ordens funcionassem como “escola” de cavalaria, aliás, o tipo de recrutamento demonstra que os homens que ingressavam nas milícias eram já, na sua maioria, cavaleiros seculares. Sem necessitar de entrar no estudo das origens sociais dos freires, assunto bastante estudado, podemos concluir que, uma vez que a maioria dos freires já dominava a técnica quando entrava na ordem e os que pudessem não dominar apren-deriam com quem sabia, a forma de montar das ordens na Península Ibérica deveria utilizar também correias de estribo encurtadas, sela mais baixa, bridão modificado, bem diferente dos cavaleiros do resto da Europa.

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Há ainda um outro fator associado aos contingentes mobilizáveis pelas ordens. O pla-neamento das campanhas tem de ser pensado para limites temporais bem definidos, dado que os vassalos que acompanham a milícia só o podem fazer por um período limitado. Isto tem implicações no delinear dos objetivos.

Se, por um lado, para a Ordem do Templo, em ambos os lados do Mediterrâneo, havia combatentes conjunturais que se vinculavam à instituição por um período de um ano ou dois, durante o qual serviam como se se tratassem de freires95, na Hispânia assistimos a mesnadas inteiras, sob um senhor, associadas às milícias. É o caso de Martim Anes do Vinhal e a sua associação à Ordem de Santiago, que lhe trouxe privilégios e honras, e que encontramos bem espelhada na concessão que a instituição lhe faz de herdades nos reinos de Portugal e Leão. O documento é uma confirmação de um outro, que já estaria na posse do rico-homem, e que ele levou à presença do Capítulo, em Mérida, em março de 1274. A carta é bastante extensa e apresenta um trecho que constitui autêntico louvor por feitos guerreiros:

«Estos logares uos damos por uosso heredamiento pora todo semper, e a uossos sucessores porque uos, por uosso corpo iouuestes na bastida de Segura ata que nossa Orden guannhou. E fostes connosco en guaanhar toda la castelã de Serra de Segura. Ear, fostes connosco en acorrer a Lorca en aquel tempo que se perdeu Murça. E quando Galeyra foy perdida vos per vosso corpo entrastes en Osca e defendiestesla a os mouros quan non perdemo. E outrossi, entrastes en Teyuella quando se perdeu Moratalla e acorrestesla e defendesteslas que non tomaron os mouros. Ear, fostes uos e uossos yrmaos com noss Orden quando filliaron Mertola a mouros. E fostes outrossi quando fillaron Montemolin a mouros que non as poderamos fillar sem uossa aiuda. Estas aiudas e outras nos feceis (impercetível) de afan e a grandes perigros de uosso corpo e de uosso linage e de grande uossa companha com que nos aiudastes a muy grade cuita de uosso auer. E outrossi, por cento e sesaenta mouros que de uos recebemos emprestados e quinçe pares de lourigas e de brafoneiras e de lourigas de caualo de lauor de Gennoa (…) E estos mouros, e esta lourigas, e este trigo, e estos marauedis ouuemos en o tempo de guerra dos mouros que nos era muy mester para acorrer a nossos castelos que estaban en grande perigro pera se perderem»96.

Mais do que um reforço às hostes santiaguistas, estas mesnadas deveriam constituir mes-mo o corpo principal de certas operações, como sugere a referência à tomada de Montemolín.

95 Rodríguez-Picavea, Los monges guerreros…, p. 126. Ver também marquis d’albon, Cartulaire Général de l’Ordre du Temple – 1119 ?-1150, Paris, Libreirie Ancienne Honoré Champion, 1913, doc. LXXII, p. 55. Trata-se de uma carta de recrutamento para serviço à ordem por um tempo determinado (a maioria dos casos um ano, mas também há de dois anos) de mais de duas dezenas de cavaleiros, acompanhados de doações de Raimundo Bérenguer, conde de Barcelona e de outros.96 lopéz fernandéz, M., 2010, Apêndice Documental, em Pelay Pérez Correa: historia y leyenda de un maestre santiaguista, Badajoz, Diputación Provincial, p. 561-643, doc. 42, p. 633-639.

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Em síntese, podemos observar que, no Ocidente Peninsular, as ordens militares, para além das preocupações de comando e controlo que têm em comum com a Terra Santa, vêem ainda acrescidas especificidades, relacionadas com o efetivo e com as forças com quem cooperam. Em relação ao efetivo, têm de privilegiar operações exequíveis com as reduzidas forças de que dispõem (golpes de mão, flagelações, etc.). Em relação à tipologia de forças, os freires combatem de modo muito semelhante aos ginetes e têm de estar pre-parados para enquadrar e coordenar a atuação de contingentes de proveniências diversas, frequentemente sazonais e com pouca experiência de combate.

O comando e controlo nas ordens militares no Ocidente Peninsular

Vistos os métodos de comando e controlo de operações militares e as caraterísticas que essas operações assumiriam no Ocidente Peninsular em relação às ordens militares, resta-nos a reflexão sobre a relação entre estas duas dimensões. Há um conjunto de indí-cios identificados nas fontes (não tão vastos como gostaríamos) que nos permitem traçar um quadro geral de procedimentos gerais. Há outros em relação aos quais não dispomos de documentação, pelo que tiveram de ser obtidos por via do percurso metodológico a que nos propusemos.

Primeiro, o que sabemos dos métodos visuais. À semelhança de quaisquer outros cor-pos medievais, quer cristãos, quer muçulmanos, os comandantes fazem-se apresentar em operações e, em especial, no campo de batalha, com o seu estandarte.

Todas as milícias têm estandarte próprio, sempre associado ao seu dignitário máximo e ao convento central. As referências são inúmeras, quer na normativa, quer nas próprias bulas pontifícias que, frequentemente, aludem aos que combatem “sob o estandarte da ordem”97. O estandarte surge associado à vocação militar. Interessante notar que Anastasio de Figueiredo, no século XVIII, associava a atribuição de estandarte à Ordem do Hospital, pelo Papa Inocêncio II, em 1130, como sinal da sua militarização98.

Na coluna de marcha, o estandarte marca o ritmo (pelo deslocamento do seu portador) e assinala as paragens (quando aquele apeia):

«Quando o Convento inicia a marcha, o Porta-Estandarte deve ir à frente do estandarte e deve ser transportado por um escudeiro ou uma sentinela, e deve ir à frente da linha de marcha do modo como for ordenado pelo Marechal.»99

97 Veja-se o caso da bula Inter alia salutem, de Gregório IX, dirigida ao mestre de freires de Calatrava, em 1240 (Monumenta Henricina, vol. 1, Manuel Lopes de Almada, Idalino Ferreira da Costa Brochado e António Joaquim Dias Dinis, Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário do Infante D. Henrique, Coimbra, 1960, p. 76).98 Ribeiro, José Anastasio de Figueiredo, Historia da Ordem do Hospital, hoje de Malta e dos senhores grão--priores della em Portugal, Parte I. Até à morte do senhor Rei D. Sancho II, Lisboa, Officina de Simão Thadeo Ferreira, 1793, p. 6-7.99 Retrais…, p. 179.

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Este símbolo é de tal importância que está, nominalmente, à guarda de um dos elemen-tos mais graduados e experientes da milícia. No caso do Templo, na Terra Santa, é o Ma-rechal. Na Península deveria ser o mestre Provincial. No entanto, no Ocidente dever-se-ia proceder de modo análogo que para o Oriente: embora o possa fazer, o detentor nominal do estandarte da ordem não é quem, efetivamente, o transporta em campanha. Um comandan-te de um grande efetivo, como é o caso de um Marechal, tem de ter toda a disponibilidade física e mental para exercer o seu comando, caso contrário pode perigar desnecessaria-mente as vidas dos seus homens. Por essa razão, é nomeado um porta-estandarte efetivo cuja função é, precisamente, transportar o estandarte:

«O Marechal do Convento pode nomear o Sub-Marechal e o Porta-Estandarte se assim o desejar, pedindo conselho.»100

A mesma disposição também é esclarecedora quanto a outro ponto: a designação de um sub-marechal, que se segue na hierarquia se o marechal deixar de ter condições para comandar. Em Portugal, o segundo na hierarquia do Templo, a seguir ao mestre provincial, parece ter sido o comendador responsável pela casa de Tomar.

Existe, depois, todo um conjunto de normas que garantem que o estandarte está sempre escoltado:

«E depois o Marechal deve ordenar a cinco ou seis, até dez irmãos cavaleiros, que o protejam e ao estandarte; e esses irmãos devem derrotar os seus inimigos em torno do estandarte, o melhor que possam, e não devem ausentar-se nem afastar-se, devem ficar o mais próximo possível do estandarte de modo a que, se for necessário, o protejam.»101

Mas o Templo não deixa estes assuntos de comando e controlo por mãos alheias. Mais adiante, estabelece tudo numa disposição só:

«E o Marechal deve ordenar ao Comandante dos Cavaleiros que conduza um estandarte enrolado na sua lança, e o Comandante deve ser um deles. E este irmão não deve afastar-se do Marechal, antes deve manter-se tão perto dele quanto possível, de modo a que se o estandarte do Marechal for tomado ou rasgado ou lhe acontece

100 Retrais…, p. 106. O porta-estandarte tem a designação de gonfanonier, que transporta o gonfalão ou bolsão, o estandarte bipartido branco e negro, do Templo. Ver (Demurger, A grande aventura dos templários…, p. 277). A orgânica do Hospital também contempla o gonfanonier: «Que deu auer lo Manescal. Lo Manescal del couent deu auer .IIII. caualgadurass et .I. gafamonier et .II. escudiers», Estabelecimentos de 1302, tercium (garcía larragueta, Libro de los Estatutos Antiguos…, p. 365). 101 Retrais…, p. 164.

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alguma desgraça, Deus não permita, ele possa desfraldar o seu estandarte; e se não puder, deve atuar de modo a que os irmãos se juntem em torno do seu estandarte se for necessário. E se o Marechal for ferido de modo muito grave ou se estiver tão doente que não possa comandar o ataque, aquele que transporta o estandarte enrolado deve dirigir o ataque. E aqueles a quem foi dada a ordem para protegerem o estandarte devem ir com ele; nem o Marechal (84) nem aquele que transporta o estandarte enrolado em combate pode carregar com ele ou baixá-lo para carregar por nenhuma razão.»102

Na batalha campal, os freires formam em esquadrões, de modo a poderem carregar. Os Retrais mostram que cada esquadrão tem o seu comandante ou comendador dos cavaleiros, que este tem estandarte próprio e que, à semelhança do marechal, pode nomear até dez homens para a proteção próxima da insígnia103.

O estandarte é de tal modo importante que a condição formal para o poder transportar é exatamente a mesma que capacita um freire para tomar parte na eleição do mestre. Baixar o estandarte, ainda que seja para combater o inimigo, pode implicar a perda do hábito. De igual gravidade é o porta-estandarte carregar sobre o inimigo sem ordem para tal. A Ordem do Hospital não funcionaria de modo muito diferente e é expressivo o estabelecimento que alude ao estandarte como significante da unidade:

«Também [perder a Casa] se ele abandonar o gonfalão e os freires da Casa em batalha contra sarracenos»104

Para o espaço ocidental da Hispânia, não conhecemos muitos indícios explícitos, mas os que temos permitem-nos estabelecer paralelismos. A “Crónica da Conquista do Algar-ve”, em qualquer das versões, faz menção explícita à função do estandarte do Mestre Paio Peres Correia, aquando de uma emboscada que sofreu, no regresso de Loulé para Tavira. Segundo o cronista, as atalaias santiaguistas teriam detetado, ao anoitecer, a presença de um contingente muçulmano mais adiante, no itinerário. O mestre terá mandado estacionar a sua hoste, aguardar a noite, e mandar formar em ordem de batalha ao amanhecer do dia seguinte. Enfrentou os muçulmanos num combate que ficou conhecido, segundo a Crónica, como “Desbarato”:

«Despois que a noite foi gastada, e o ar da manhan vehio e foi o dia claro não tardou munto o mestre que logo ordenou suas gentes em batalha com sua bandeira estendida e moverão todos dali onde estavaõ»105

102 Retrais…, p. 165.103 Retrais…, p. 166. Ver, também, Bennet, A Regra do Templo…, p. 229.104 «Item si el laysa lo gonfane et los frayres de la mayzo en batalhadelssarrazis» (García Larragueta, Libro de los Estatutos Antiguos…, p.370).105 Scriptores, III, p.417.

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Tratar-se-ia, não do estandarte de Santiago, mas um outro, talvez de hierarquia inferior, que fosse autorizado ao comendador-mor de Portugal (de Alcácer), dignidade que Paio Pe-res Correia detinha durante a campanha. O estandarte máximo da ordem estaria reservado ao mestre (Paio Peres tê-lo-á usado, mas anos mais tarde) e, esse sim, deveria corresponder ao que as Siete Partidas enquadram como as “señales que pueden fazer los conuentos de las ordenes de caualleria”. Vejamos o que dizem os estabelecimentos de 1252106:

«Stablescido es que la senna de Santiago que ningund comendador de los regnos que non lieue sino en hueste del rey, e el maestre lieuela do el touiere por bien»107

Não conhecemos nenhuma disposição posterior que contrarie este artigo. Portanto, su-pomos que os comendadores-mores dos reinos não estão autorizados a levar o estandarte de Santiago, a não ser que a sua hoste esteja integrada no exército do rei.

À semelhança do que era permitido para o estandarte da casa-mãe da ordem, um comendador-mor ou um prior, no comando de uma hoste, poderiam nomear um porta-estandarte de modo a ficar com liberdade de movimentos. Os Retrais permitem-no no caso do Marechal, e indicam inclusivamente a possibilidade de nomeação de um “escudeiro ou sentinela”.

Também no Ocidente Peninsular fica claro o papel do estandarte quando as ordens têm de combater em conjunto. A concórdia entre Calatrava e Santiago, de 1221, determina que:

«Establecemos, è firmamos assi, que quando Nos ambas las Ordenes ovieremos de ir en hueste, ò en otros Lugares, ò nuestras señas avemos de sacar, que la una Orden también aguarde la seña de la otra Orden, como la suya misma, è la otra Orden esto mismo sea tenida de fazer.»108

Do lado português, esta disposição seria extensiva à relação entre Avis e Santiago? Não vemos razões para que assim não acontecesse. Em 1201, quando Inocêncio III tomou sob a sua proteção a milícia de Évora, estava bem patente a sua filiação em Calatrava. Em 1238, quase duas décadas após esta concórdia, Calatrava procedia a uma visitação a Avis e Carlos de Ayala Martínez sublinha que há indícios de visitações anteriores109.

106 É possível que esta norma tenha sido já produzida em León, sob o primeiro mestre, Pedro Fernandes, em 1181, e replicada no mestrado de Paio Peres Correia, dado que no corpo do texto surge, dois fólios antes: «Stablescimientos fechos en Leon por el primero maestre don Pero Fernandez en la era de mill e dozientos e diez e nueve annos los quales son estos que siguen”, (Lopez Fernandes, Manuel, Pelay Pérez Correa: Historia Y Leyenda De Un Maestre Santiaguista, Badajoz, Diputación Provincial, 2010, p. 566).107 lopéz fernandéz, Apêndice Documental, doc. 1, p. 568.108 Hermandad entre el Maestre de Santiago Y el de Calatrava, 1 de agosto de 1221 (Bullarium Ordinis Militiae de Calatrava per annorum seriem nonnullis... Org. Inacio Jose de ortega y cotes, Juan Francisco alvarez de baquedano y Pedro de Ortega zuñiga y aranda, Madrid, 1761, Scriptura I, p. 683).109 Sobre a visitação de 1238, veja-se Bulario de Calatrava…, Scriptura XIV, p. 69: Visitatio Domus de Avis, in qua non nulla circa electionem Magistri ejusdem Domus, & Militia referunsur. Sobre a filiação de Avis em

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Também na Hispânia o pendão da ordem deveria servir de pendon posadero e assinalar o local da milícia no acampamento. Comendadores ou bailios no seio de hostes maiores ou em operações com contingentes conjunturais não deixariam de usar o seu estandarte como marcador da área de aposentadoria da sua força.

E como funcionariam os mais baixos escalões? Os estabelecimentos de Santiago de-terminam que cada comendador traga consigo, pelo menos, um freire morador, mais dois homens a cavalo e cinco homens a pé, mas que em tempo de guerra cada um se faça acom-panhar o melhor que puder110. Numa cavalgada, o comendador pode ter que enquadrar dezenas de cavaleiros-vilãos. Os dignitários da ordem têm se ser bem visíveis pelos seus vassalos. Mais: uma vez que, em teoria, qualquer freire-cavaleiro poderia ser incumbido de comandar um destacamento de reconhecimento, ou até um conroi, admitimos a possi-bilidade de, para além do estandarte da comenda, a unidade transportar consigo pequenos estandartes de forma triangular a que Miguel Gomes Martins alude (ver nota 30). Convém relembrar que estas expedições com vassalos mobilizados têm, normalmente, uma periodi-cidade anual e que a sul do Tejo só devem ter começado a ser substituídas pelo pagamento de fossadeira depois da conquista do Algarve111.

Ainda que as diferentes normativas estabeleçam processos formais de nomeação ou eleição de comendadores no caso da morte de um titular, a hierarquia, dentro de cada comenda, deveria estar bem estabelecida. Assim, na ausência ou impossibilidade do co-mendador, não haveria dúvidas sobre quem assumiria o comando até que as instâncias superiores pudessem restabelecer o processo regulamentar.

Se, para os métodos visuais, dispomos de pouca informação, para os sonoros temos menos ainda. Primeiramente, a voz. Trata-se, como já tivemos ocasião de referir, de algo que não deveria oferecer obstáculos de maior no Ocidente Peninsular porque na maioria das ações o efetivo seria suficientemente pequeno para o método ser eficaz e porque não se assistiria a questões relacionadas com diferenças idiomáticas.

Algumas das vozes utilizadas pelos templários vêm expressas nos Retrais. É muito na-tural que fossem dadas, ipsis verbis, e até no idioma vernacular mais adequado à força comandada. As instituições militares têm tendência para tornar como que “naturais” vozes de comando que podem não fazer muito sentido noutros contextos mas, quando entoadas em contexto militar, são imediatamente percebidas. A ordem para iniciar a instalação do equipamento segue-se ao grito: «Abrigai-vos, senhores irmãos, em nome de Deus!»112. O preceito seguinte da norma determina que o pregoeiro das ordens se deve instalar junto do

Calatrava veja-se Cunha, Maria Cristina Almeida e, Estudos sobre a Ordem de Avis (Séc. XII-XV), Porto, FLUP - Biblioteca Digital, 2009, p. 97-100 e ainda Ayala Martínez, Las Órdenes Militares Hispánicas…, p. 89-90.110 lopéz fernandéz, Apêndice Documental…, doc. 1, p. 564.111 O foral de Seda, por exemplo, outorgado pelo Mestre de Avis e pelo comendador local, em 1273, continua a contemplar o fossado uma vez por ano, em que devem tomar parte dois terços dos cavaleiros da vila (Leges, p. 720).112 Retrais…, p. 148.

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A FORMAÇÃO E A PRÁTICA DA GUERRA

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porta-estandarte e que quem determinou a ordem também a deve cumprir113. Vemos, aqui, bem patente, a intencionalidade de manter os intermediários no comando e controlo bem próximos, e ao alcance imediato do comandante.

O Retrais respeitante ao afastamento do local do acampamento e ao sistema de alarme fala do chamamento e do sino:

«Quando os irmãos estão acampados não devem sair por prazer sem permissão, exceto até uma distância em que possam ouvir o chamamento ou o sino, nem mesmo para os seus alojamentos exceto até uma distância que lhes permita ouvir o sino.»114

São dois sistemas de alarme, simultâneos e redundantes, ambos sonoros. Se dúvidas houvesse em relação ao uso da voz em simultâneo com o sino, um Retrai seguinte desfaz as questões:

«Se for dado o alarme no acampamento, os que estiverem próximos do pregão devem abandonar essa área com escudos e lanças, e os outros irmãos devem dirigir-se à capela para ouvirem as ordens que forem dadas»115

Já abordaremos o sino mas, por agora, concentremo-nos no pregão e na capela. Não há dúvida que o alarme é vocalizado e também está patente uma outra medida importante de comando e controlo: a existência de um ponto de reunião, onde os freires que não estiverem empenhados aguardam indicações… verbais.

Pelo menos entre os templários, seria comum o transporte e a utilização de um sino, em campanha, não só para o caso de alarme às armas, mas também (e principalmente) para o ofício divino. Não encontrámos nas fontes a que recorremos nenhuma outra referência a instrumentos ou outros sistemas, mas o sino ou campainha está igualmente presente na Ordem do Hospital, embora nos Estabelecimentos este não venha associado ao comando em campanha116.

Verbruggen refere que, para os cavaleiros seculares, a marcha começava ao som da buc-cina ou boukinon – um instrumento similar ao trompete – ou ainda à voz de comando que gritava “Em frente!”. Esta ordem, “Mouvez!”, foi dada em Courtrai por Artois. No caso es-pecífico dos templários, as mesmas indicações eram dadas pelo movimento do estandarte117.

Ainda a voz, relacionando-a com as frequentes operações com poucos efetivos, cara-terísticas das milícias nos reinos ocidentais da Península. As Siete Partidas descrevem

113 Retrais…, p. 149.114 Retrais…, p. 376.115 Retrais…, p. 155.116 garcía larragueta, Libro de los Estatutos Antiguos…, p. 380 e 383.117 Verbruggen, The Art of Warfare…p. 85-86.

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ENTRE DEUS E O REIO MUNDO DAS ORDENS MILITARES

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duas formas de fazer cavalgadas: uma declarada, quando se dispõe de um grande efetivo e outra encoberta, privilegiando deslocamentos de noite e repouso de dia, adequada para pequenos efetivos118. Ora, apesar de nada ser dito quanto ao comando e controlo destas operações específicas, estamos em crer que o uso da voz seria bastante mais necessário nas cavalgadas encobertas, pelo efetivo reduzido (que favorecia esta modalidade) e pela impossibilidade de usar os outros sinais visuais e sonoros no período noturno sem revelar a posição. Esta abordagem favorece, uma vez mais, a hipótese de ser a voz o recurso sonoro mais utilizado nas ordens militares na Hispânia.

A problemática do comando e controlo de tropas nas ordens militares portuguesas, leonesas e castelhanas, bem como nas ordens originárias da Terra Santa que operaram na Península, parece-nos ainda um assunto que pode conhecer maior aprofundamento para os séculos XII e XIII. Uma outra abordagem possível, diferente da adotada neste trabalho, seria uma análise regressiva, tomando como ponto de partida os métodos conhecidos para cronologias mais recentes. É, provavelmente, a análise mais necessária e que serviria para aclarar muitos aspetos nebulosos. Seria o complemento ideal – a outra dimensão – comple-mentar ao método a que recorremos. Dispusemo-nos a procurar nas fontes mais remotas, coevas da cronologia escolhida, e a arriscar uma visualização das principais condicionan-tes à forma de combate que as ordens militares tiveram que assumir. O resultado pode não ser conclusivo em muitos aspetos, mas estamos em crer que valeu a pena.

118 alfonso X, Partidas, II, XXIII-28.