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1 ENTRE CATAPLASMAS E SALMOS: AS PRÁTICAS MÉDICAS MEDIEVAIS CUSTÓDIO, José de Arimathéia Cordeiro (UEL) Introdução A pecha de “era das trevas” da Idade Média é lembrada em cada produção de cinema e TV quando se trata de Medicina. O preconceito do clichê é tão forte que atinge não apenas as práticas e saberes medievais europeus, mas até o conhecimento milenar chinês, empregado até hoje. Mitos. Assim como houve com outras áreas do conhecimento, a Medicina também avançou no medievo. Mas, evidentemente, tinha uma relação estreita com a religião cristã, sua cosmologia e perspectiva da realidade. Não foram mil anos sem banho, ou mil anos de obscuridade entre a Antiguidade Clássica e o Renascimento. Na Idade Média, mais do que em qualquer outra época, porém até hoje, Medicina era uma questão de fé. Tratava-se mais de uma filosofia do que uma ciência, aplicando aqui um sentido moderno para os dois conceitos. Saúde e salvação eram conceitos totalmente interligados, na perspectiva de que corpo e alma necessitam de cuidados. A Medicina, que cuida do corpo, tinha seu limite. A partir dali, a religião assumia, com seus ritos e mistérios pouco compreendidos, mas aceitos sem muito questionamento na Idade Média. Este estudo não aborda a questão dos reis taumaturgos e da cura das escrófulas, bem desenvolvidas por Marc Bloch e outros historiadores. Tal tema é suficiente vasto para gerar outro artigo. Cabe apenas mencioná-lo aqui para constatar que não é dessconhecido, mas que este trabalho se orienta em outra direção – a da prática médica de Hildergard de Bingen. É verdade que o clero detinha o conhecimento clássico das terapias e medicamentos. Mas é igualmente verdade que, sem os monges, tais conhecimentos poderiam ter se perdido. É sabida a contribuição da Igreja para a sobrevivência da cultura antiga - e pagã. Um bom exemplo da relação entre saúde e salvação era a prática do jejum na Quaresma, hábito que unia saúde alimentar, religião, ecologia e economia – separação cartesiana moderna, mas evento único na mentalidade medieval. A chegada da Quaresma

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ENTRE CATAPLASMAS E SALMOS:

AS PRÁTICAS MÉDICAS MEDIEVAIS

CUSTÓDIO, José de Arimathéia Cordeiro (UEL)

Introdução

A pecha de “era das trevas” da Idade Média é lembrada em cada produção de cinema

e TV quando se trata de Medicina. O preconceito do clichê é tão forte que atinge não apenas

as práticas e saberes medievais europeus, mas até o conhecimento milenar chinês, empregado

até hoje.

Mitos. Assim como houve com outras áreas do conhecimento, a Medicina também

avançou no medievo. Mas, evidentemente, tinha uma relação estreita com a religião cristã, sua

cosmologia e perspectiva da realidade. Não foram mil anos sem banho, ou mil anos de

obscuridade entre a Antiguidade Clássica e o Renascimento.

Na Idade Média, mais do que em qualquer outra época, porém até hoje, Medicina era

uma questão de fé. Tratava-se mais de uma filosofia do que uma ciência, aplicando aqui um

sentido moderno para os dois conceitos. Saúde e salvação eram conceitos totalmente

interligados, na perspectiva de que corpo e alma necessitam de cuidados. A Medicina, que

cuida do corpo, tinha seu limite. A partir dali, a religião assumia, com seus ritos e mistérios

pouco compreendidos, mas aceitos sem muito questionamento na Idade Média.

Este estudo não aborda a questão dos reis taumaturgos e da cura das escrófulas, bem

desenvolvidas por Marc Bloch e outros historiadores. Tal tema é suficiente vasto para gerar

outro artigo. Cabe apenas mencioná-lo aqui para constatar que não é dessconhecido, mas que

este trabalho se orienta em outra direção – a da prática médica de Hildergard de Bingen.

É verdade que o clero detinha o conhecimento clássico das terapias e medicamentos.

Mas é igualmente verdade que, sem os monges, tais conhecimentos poderiam ter se perdido.

É sabida a contribuição da Igreja para a sobrevivência da cultura antiga - e pagã.

Um bom exemplo da relação entre saúde e salvação era a prática do jejum na

Quaresma, hábito que unia saúde alimentar, religião, ecologia e economia – separação

cartesiana moderna, mas evento único na mentalidade medieval. A chegada da Quaresma

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coincidia com o final do inverno, época em que os europeus abusavam dos alimentos fortes,

gordurosos, calóricos, e das bebidas alcolílicas, a fim de combater o frio rigoroso.

O consumo destes alimentos vinha desde o Natal. Porém, próxima a primavera, era

hora de deter a gula e a glutonia e se preparar para o trabalho nos campos. Entrava então o

jejum e a abstinência. Para o homem medieval, tratava-se de um ciclo natural estabelecido

pela vontade divina, ou seja, totalmente provido de lógica, sentido e finalidade, cabendo

apenas obedecê-lo, como cristão devoto. Assim, ficou estabelecido o Carnaval, ou carne vale

como afirmam alguns, em que “a carne se vai”. A carne era (ainda é) símbolo da

materialidade, do efêmero, da fraqueza.

Contra esta ideia de que “a carne é fraca” (que tem respaldo no evangelho de Marcos,

capítulo 14, versículo 38), surgiu uma representação popular do Christus medicus, a partir das

curas bíblicas. Da mesma forma, a existência de plantas curativas e outros elementos naturais

com propriedades terapêuticas fazia parte da providência divina, que fornecia meios para

alívio e cura, assim como o conhecimento para que o homem os utilize. Deus permitia as

doenças, mas também havia provido o mundo com remédios e o homem com a inteligência

para aprender a curar. Para a Medicina medieval, tudo no mundo se desenrolava de maneira

calculada e ordenada.

Crente em sinais do Céu e da Terra, o médico medieval desenvolveu todo um

conhecimento de anamnese, diagnóstico e terapia a partir de uma sintomatologia peculiar e

prenhe de sentidos misteriosos, mas legitimados pela aura da tradição e pelo respeito aos

conhecimentos antigos. “Se aparecer uma bola negra no joelho, o doente morre no oitavo dia.

Se a excrescência se encontra no pescoço, no terceiro dia – se ele tiver tido muita sede no dia

de sua aparição” (SCIENTIFIC AMERICAN, p. 54). A Astrologia também fazia parte destes

saberes: “Acreditava-se, por exemplo, com base em outros tratados, que a constelação em

evidência no dia do começo da doença decidia seu desfecho” (idem).

Assim, mais importante que o diagnóstico, era a indicação do curso e desfecho da

doença – a morte era quase sempre o prognóstico, e aí entravam as orações, súplicas por cura,

promessas devocionais e, eventualmente, os milagres. Em todo caso, se o corpo não pudesse

ser curado, tornar-se-ia prioritária a salvação da alma. O médico cedia lugar ao padre. Os

unguentos passavam a dividir espaço com velas e crucifixos.

É desta Medicina ao mesmo tempo natural e litúrgica, cósmica e misteriosa, científica

e ritualística, que trata este trabalho.

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Cataplasmas e salmos

Num mundo em que a Teologia se ligava à Medicina, e Céu e Terra estavam ligados

material e espiritualmente, a Geometria Celeste influenciava a realidade terrestre - e humana.

Os números, portanto, também eram sinais. Os planetas exerciam poder sobre os órgãos do

corpo humano. Netuno, por exemplo, afeta os fluidos corporais. Marte e Vênus influenciam,

respectivamente, os genitais masculino e feminino – até hoje, os símbolos dos planetas são os

símbolos do homem e da mulher. O Zodíaco a as horas do dia e da noite, todos divididos em

12 unidades, tinham sua relevância na arte médica.

O calendário medieval possuía esta correspondência micro e macrocósmica. Um livro

de economia doméstica do fim da Idade Média advertia: “em maio, não faze sangria da artéria

hepática (a veia do antebraço, do lado do polegar). Toma bebidas laxativas. Sabe apreciar um

banho quente. Não come, de nenhum peixe ou animal, a cabeça ou os pés. Tuas refeições

serão quentes, pois o sangue se encontra resfriado” (SCIENTIFIC AMERICAN, p. 55).

O número 4 gozava de particular valor. Quatro são os evangelhos; quatro eram os

Padres da Igreja – Agostinho, Ambrósio, Gregório e Jerônimo. E quatro eram, para o homem

do século XII - a partir dos conhecimentos de Galeno e da tradição hipocrática - os humores

do corpo que definiam a chamada “Medicina dos Humores”, assim como a “patologia

humoral”. Este modelo conseguiu sobreviver entre os médicos até o século XIX.

De acordo com a Medicina dos Humores, toda doença resultava de um desequilíbrio

entre o sangue, a fleuma, a bile negra (do baço) e a bile amarela (do fígado), e que definiam

os quatro temperamentos: sanguíneo, fleumático (linfático), colérico e melancólico. Os quatro

humores correspondem ainda aos quatro elementos naturais - ar, água, fogo e terra, aos quatro

pontos cardeais, às quatro estações, quatro idades da vida, entre outras relações.

Da mesma forma, saúde e doença eram definidas pelo equilíbrio e desequilíbrio entre

o quarteto frio, quente, seco e úmido. A fleuma é frio-úmida: água, inverno, infância e o

norte. O sangue é quente-úmido, e considerado assim equilibrado e são. É o ar, a primavera, a

juventude, o leste. O temperamento sanguíneo, portanto, é o mais positivo. A bile amarela,

quente e seca, é o fogo, o verão, a virilidade e o sul. É insalubre. Por fim, o melancólico é

frio-seco, a combinação menos favorável de todas. É a bile negra, a terra, o outono, a velhice,

o oeste.

Uma febre é quente, mas também pode ser seca ou úmida, o que faz toda a diferença

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no diagnóstico, prognóstico e tratamento. Vale a regra da oposição, para provocar um efeito

compensatório. Daí até hoje receitar uma canja de galinha no caso de gripe com febre.

Uma refeição quente não se referia à temperatura da comida, mas de alimentos

classificados conforme a Medicina Humoral. Carnes, frutas, especiarias, legumes, mel e vinho

são comidas quentes. Peixes, miolos e pés de animais são frios, e assim não recomendávis

para consumo em maio. Este mês, embora primaveril no hemisfério boreal, era considerado

frio na maior parte dos dias, portanto, era necessário preservar a saúde e prevenir doenças

com alimentos quentes.

Igualmente, sangrias, banhos frios ou quentes, a prática do “suadouro”, as ventosas,

todos eram parte do conhecimento médico modelado por uma visão de mundo. Ainda hoje,

terapias de desintoxicação obedecem aos mesmos princípios da Medicina Humoral.

Ao lado desta complexa ciência humoral, os medievais apelavam para fórmulas

mágicas, ora conforme a fé cristã, ora através de simpatias e talismãs ou relíquias. A história

de Jó era particularmente apreciada. Procissões, missas, promessas, peregrinações,

benzimentos, a tudo o doente recorria. A crença da existência do mau-olhado era muito forte.

Os exames de urina e sangue eram comuns, a ponto de o símbolo da Medicina ser o

frasco para coleta, e não a serpente de Esculápio. Os exames de tais materiais permitia ao

médico um diagnóstico à distância, uma vez que nem sempre ele poderia ir até onde o

paciente estava, e muito menos o contrário. Além disso, deslocar os materiais era menos

oneroso que deslocar o médico. Conforme fosse, ele enviaria de volta um remédio e pronto. Já

estava criado o que hoje se chama de plantão à distância.

Barbeiros faziam as vezes de cirurgiões, e podiam fazer sangrias nos pacientes.

Garroteavam um braço, cortavam uma veia com um tipo de bisturi, e enchiam uma bacia de

sangue. Prescreviam também vomitivos, faziam curativos em ferimentos e extraíam dentes

cariados.

Uma prática da época era o “banho da alma” - banhos em termas ou saunas, com

vapores, com ervas, enxofre ou sal. Em certas ocasiões especiais, como festas, os mais ricos

doavam um destes banhos aos mais pobres ou aos pacientes psiquiátricos. Podiam ser usados

também sanguessugas e ventosas. Os banhos duraram até o final do século XV, quando a

sifílis levou à sua extinção. Os banhos haviam se tornado ponto de prostituição.

A Idade Média foi também a era dos remédios milagrosos e fantásticos, como uma

poção feita a partir do pó do chifre de um unicórnio.

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O conhecimento farmacêutico medieval se preservou, como outros, através dos

mosteiros. É por eles, por exemplo, que foram encontrados textos sobre as propriedades

medicinais das mais variadas plantas. O lírio branco era remédio para picada de cobra; o

absinto curava vertigens, cefaleias, febres e má digestão, desde que administrado nas doses

corretas. O alface era recomendado contra a sede, a acidez estomacal, além de efeitos

depurativos do sangue e bons resultados contra picadas de cobras, vespas e escorpiões. A

anestesia era feita com mandrágora ou papoula.

Carne e peixe, estes especialmente de água corrente, também podiam ser usados. A

carne de cobra era usada contra venenos e tratamento de lepra e ferimentos. O leite era a base

de muitos unguentos e remédios para crianças.

Minerais eram eventualmente empregados. Um dos mais comuns era o ferro, por suas

propriedades megnéticas. Os minerais podiam ser usados em forma de pedra, em uso tópico,

ou pulverizados e misturados aos remédios de ingestão. Carvão, por exemplo, é recomendável

contra envenenamento e intoxicação.

A crisoterapia (tratamento com ouro) era recomendada para doenças do coração e

epilepsia. Pérolas ajudavam no tratamento da vista e de dores de cabeça. Pedras-pome eram

usadas na cura de ferimentos e lavagem de dentes. Corais e vermelhos e rubis eram indicados

contra hemorragias e vermelhidões – uma relação simbólica de natureza cromática. Contra a

tosse, uma mistura de frutas e raízes com óleo de amêndoas e hidromel. Para tratar de tumores

de útero, óleo de manjerona, canela e tomilho.

Todo este saber medicinal era bem conhecido de uma figura histórica, famosa não só

por suas habilidades curativas, mas também pela sabedoria aconselhadora, pelas composições,

pelas visões místicas, e pela santidade.

Hildegard de Bingen

Apenas dois tratados de Medicina ocidentais do século XII sobreviveram até nossos

dias. Ambos foram escritos por Hildegard, abadessa do claustro de Rupertsberg, que ela

fundou próximo à cidade de Bingen, por volta de 1149. PERNOUD (1996, p. 84) anota que “a

medicina hildergardiana vem despertando a atenção do público há bastante tempo e tem

suscitado numerosos trabalhos...”. A autora informa ainda que “abriu-se até uma casa de

saúde que utiliza os métodos preconizados por Hildergard” (idem).

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A menina Hildegard nasceu em 1098, filha dos nobres Hildebert e Mathilde, em

Alzey, no Condado de Spanheim. Era o décimo filho do casal e sempre teve saúde frágil. A

tradição conta que sua infância foi marcada por visões e premonições. Aos oito anos, iniciou

seus estudos no mosteiro de Disibodenberg, no Vale do Nahe. Aos 14 anos, vestiu o hábito

beneditino. Como tal, abraçou a vida do claustro e exercia os ofícios divinos abnegadamente.

Há milagres atribuídos à intercessão de Hildegard, além de sua reputação como

médica. Normalmente, são relatos de doenças pouco descritas: febres, tumores, fluxos de

sangue. Hildegard os curou com água benta, orações e até com o sinal da cruz.

Consta que Hildegard não gostava de médicos, que, para ela, exerciam seu ofício sem

amor pelo doente.

A obra de Hildegard sobre Medicina é a Physica e compreende nove livros, mais tarde

publicados com outros títulos, como O Livro das Sutilezas das Criaturas Divinas, Livro de

Medicina Simples, Livro de Medicina Composta e Causa et curae. É bom lembrar que ela os

escreveu vivendo a maior parte de sua vida no claustro. E se para uns este é um motivo para

lamentar a limitação de conhecimentos que a abadessa teve, como filha de sua época e

contexto, por outro é causa de admiração que tenha adquirido os conhecimentos que legou. E

isto não refere apenas aos conhecimentos médicos, mas também geográficos, históricos,

políticos, alimentares e outros saberes.

Assim, Hildegard é também autora de uma visão ecológica, ao tratar das sutilezas

naturais. “Aliás, o valor sutil, aos olhos de Hildegard, é o valor curativo, benéfico, que as

plantas, as frutas, os animais, os peixes etc. podem proporcionar ao homem. Cada elemento

da natureza possui o seu valor, salutar ou prejudicial, que os trabalhos da abadessa nos

ensinam a discernir” (PERNOUD, 1996, p. 86).

Para Hildegard, o processo de cura implicava igualmente um processo de conversão.

Antes de tratar os sintomas, ela exigia uma mudança no estilo de vida do paciente pois, sob

sua perspectiva, tal estilo era, no fundo, a causa das doenças. Assim, além de prescrever um

remédio para curar dores de barriga, por exemplo, aconselhava o paciente a jejuar mais e

combater a gula.

Hildegard escreveu vários manuais de medicina natural e também de botânica, nos

quais classificou os remédios conforme sua origem, indicação, preparação e ação curativa.

Dentro da concepção medieval das patologias de humores, estabeleceu associações entre

partes do corpo e do espírito e os quatro elementos fundamentais.

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Assim, o fogo corresponde ao cérebro e à medula, enquanto o ar está associado à

respiração e à razão. A água está ligada ao sangue, e a terra aos tecidos e ossos. O ser

humano, para Hildegard, era marcado por alegorias: a caixa torácica abriga o coração, o

fígado e os pulmões, assim como lá ficam o calor, a secura ou a umidade das esferas. O sopro

do espírito se move no cérebro (daí a associação respiração/razão), portanto este deve ser

sempre bem arejado (oxigenado, diz-se modernamente), graças aos olhos, orelhas, nariz e

boca, orifícios que o permitem ficar mole e úmido.

Saúde e doença tinham, na Idade Média e portanto para Hildegard, uma relação

cosmológica. Em sua obra, ela descreve os quatro ventos principais e sua ação sobre o ser

humano, influenciando seu pensamento, palavra, intenção e vida afetiva. O vento sul (Afer,

ou Africus) traz o calor, os pensamentos santos, que, com a ação do fogo do Espírito Santo,

geram zelo e boas intenções. Já o vento oeste (Zéfiro), é frio, provoca pensamentos

desonestos e fúteis, e portanto ações de igual quilate. O vento norte (Boreas) atinge as

consciências e sua percepção do bem e do mal.

Plantas e seres humanos foram classificados por Hildegard segundo seu

temperamento: quentes, frios, secos e úmidos. Pernoud informa que a classificação tem

origem em Aristóteles.

Curiosamente, as receitas de Hildegard careciam de precisão em suas medidas –

prática absolutamente comum na Idade Média, quando algarismos eram poucos familiares.

Ela dizia então assim: “reduzir a pó uma parte de gengibre, uma meia parte de alcaçuz e uma

terceira parte feita de zedoária e outro tanto de gengibre” (PERNOUD, 1996, p. 87). Ou então

a medida era uma ponta de faca ou meia casca de ovo.

Hildergard concebeu as viriditas (ou viridez). Trata-se de uma força vital própria de

certos elementos minerais, de algumas plantas medicinais e também de alguns animais. No

ser humano, tal força se manifesta por uma capacidade curativa natural, ligada à energia

germinadora e criativa do homem. Há um fundo teológico e cristão sob este conceito: é a

vitória da vida sobre a doença e a morte.

Ao mesmo tempo, é uma perspectiva que voltou a ganhar fôlego no final do século

XX, só que com um nomme diferente: Medicina Holística. Hildergard obviamente não era

cartesiana, e não separava o ser humano em partes para administrar-lhe as curas. Corpo e alma

deviam ser tratados e curados juntos. Assim, ela cuidava da melancolia, causada pela bile

negra. Distúrbios de metabolismo causam depressão, gota e reumatismos. Para combater esta

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bile negra, o remédio são boas refeições, bem preparadas, pois Hildergard defendia um “sábio

regime alimentar”. Rosa e sálvia são remédios contra cólera: “a sálvia apazigua e a rosa

alegra”.

Pode parecer simplista e até ingênuo, do ponto de vista da Medicina moderna, mas é

preciso assinalar o interesse em cuidar do doente, e não da doença, em busca de uma

harmonia no organismo humano. Para Hildergard, a saúde é o estado natural do homem; a

doença é um erro a ser corrigido: “Recuperar, manter, proteger a saúde, natural ao homem,

assegurar o pleno exercício de suas capacidades, é questão de vigilância cotidiana, dirigida ao

espírito e ao corpo ao mesmo tempo” (PERNOUD, 1996, p. 88-9). Para tanto, basta saber

discernir, na Natureza – reserva inesgotável de elementos – as sutilezas que ela encerra, e daí

preservar o equilíbrio, ou reencontrá-lo, se tiver sido perdido. Daí o sábio regime alimentar,

que inclui, por exemplo, um jejum moderado para o que hoje se chama de “desintoxicação”.

A alimentação deve estar relacionada ao estado geral do indivíduo, ao mesmo tempo

em que deve se adaptar à estação do ano. Para manter a viridez, alguns alimentos são

inteiramente benéficos: a espelta (cereal incomum), usada para fazer pão, e que proporciona

ao ser humano “boa carne e bom sangue”. A aveia é recomendável aos saudáveis, mas não

aos doentes. E o centeio, que deixa o homem forte e vigoroso.

A castanha é ótima para combater a fraqueza humana, e deve ser consumida

frequentemente, “seja na estação, seja em forma de farinha” (PERNOUD, 1996, p. 89). O

funcho “torna o homem jovial, assegura-lhe uma bela cor de rosto, um bom odor corporal e

uma boa digestão” (idem). Entre as frutas, Hildergard recomenda sobretudo a maçã, crua,

cozida ou assada, para saudáveis e doentes.

Tudo o que alegra ao coração do homem é remédio na visão de Hildegard. Assim

também os olores, como o lírio e a lavanda. Esta, misturada ao vinho ou à agua com mel, e

bebida morna acalma as dores do fígado e do pulmão. Aliás, a abadessa de Bingen gostava de

preparar os remédios naturais com vinho. As cataplasmas de plantas quentes, envoltas em

panos de linho, eram bastante recomendadas.

Hildegard igualmente receitava bolachas para um cérebro fatigado, a partir da mistura

de serpilho em pó e água, a serem consumidas com frequência. Para o mesmo mal,

recomendava também um remédio à base de noz moscada, canela e cravo, reduzidos a pó

(farinha), misturados com água e feitos em forma de bolacha. “Essa preparação ameniza a

amargura do corpo e do espírito, abre o coração, aguça os sentidos embotados, alegra a alma,

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purifica os sentidos, diminui os humores nocivos, traz bom açúcar ao sangue e fortifica”

(PERNOUD, 1996, p. 90).

O funcho também é recomendado na hora dos partos difíceis: “escorrer a água e

colocar as ervas ainda quentes em volta das coxas e no dorso; envolvê-las com um pano de

linho, com cuidado, para que a dor desapareça e seu ventre se abra mais facilmente e de modo

menos doloroso” (Idem, p. 90-91). Hildegard receita ainda a barba-de-júpiter contra a

esterilidade masculina e a escarola para “acalmar o desejo amoroso do homem”. A escarola

deve ser administrada na água do banho. Para as mulheres menstruadas, infusão de camomila.

Aos surdos, marroio cozido na água, para que formem um vapor a ser absorvido pelos

ouvidos, assim como a erva quente deve ser aplicada sobre as orelhas e a cabeça. Para

problemas de visão, o dente-de-leão, colocado sobre os olhos, durante o sono. Miopia e

presbiopia podem ser atenuadas pela simples contemplação contínua do verde. Água virgem

(não usada, como orvalho da manhã) também é recomendável para males oftalmológicos.

Luzendro para o homem triste; violeta contra a melancolia; betônica para quem precisa

estudar muito; tomilho para melhorar a visão de longe; garança para combater a febre; mirra

para afastar fantasmas; fava para fortificar - melhor que a ervilha. PERNOUD (1996, p. 92)

sentencia: “Percebe-se, ao ler seus livros, que a natureza precisava ser redescoberta em nossos

dias; e nossos modernos ecologistas talvez aperfeiçoem seus conhecimentos lendo esses

livros”.

Hildegard ajudava os doentes desinteressadamente. Curava-os das doenças do corpo

ao mesmo tempo em que procurava guiá-los espiritualmente. Tais atitudes lhe deram enorme

popularidade. É bom lembrar que ela não era apenas uma médica e abadessa, mas também

escritora, poetisa, compositora, musicista e pregadora. Até um novo alfabeto e uma nova

língua ela quis criar. Reis, nobres e bispos a consultavam antes da tomada de importantes

decisões, e viajam grandes distâncias para consultá-la, já que ela vivia no claustro. O

Imperador Frederico Barba Ruiva quis conhecê-la, logo depois de coroado. Ela não se

intimidou e lhe deu vários conselhos sobre um justo reinado. Bernardo de Claraval, a maior

autoridade espiritual de seu tempo, escrevia a Hildegard.

Considerações Finais

Antes de mais nada, é preciso afastar os mitos, clichês e preconceitos formados em

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torno dos saberes da Idade Média, inclusive na Medicina. É certo que o conhecimento era

mais empírico e os médicos não inspiravam muita confiança, de modo que o homem medieval

preferia entregar sua vida a Deus.

Contudo, a Idade Média não foi um milênio de estagnação. No período carolíngio

houve um relativo desenvolvimento da Medicina, assim como da Educação e outros campos.

Os árabes contribuíram para o avanço dos conhecimentos na área, trazendo seus próprios

saberes e traduzindo obras clássicas abandonadas havia séculos. Até os judeus colaboraram.

Tudo foi um processo histórico que culminou, mais tarde, na criação de cursos de

Medicina, ou seja, a institucionalização do ensino médico, assim como a abertura de lugares

específicos para tratamento de doentes. Um rápido exemplo, sem a pretensão de aprofundar o

tema, foram os cavaleiros hospitalários, cujo nome já basta para ilustrar.

A secularização do Ocidente e a modernização da Medicina não extinguiu totalmente a

visão medieval da saúde e da doença, especialmente no Brasil, e mais especificamente no seu

interior rural. Forte no imaginário popular, as crenças de origem medievais foram, como tudo

o mais na cultura, apropriadas pela indústria cultural, que vende livros de medicina natural e

os transformam em best-sellers e sucessos midiáticos.

No fundo destes modismos de apelo consumista, estão saberes medievais. Rejeitados

sumariamente por mentes modernas, por outro lado são abraçados quase que

inconscientemente por grupos sociais inteiros. Quem nunca ouviu falar de um chá que é bom

para isso ou aquilo? Quem nunca estabeleceu uma ligação entre uma doença, o ar, a água, e

um tratamento ligado ao frio e ao calor?

A Medicina medieval é arquetípica, está impregnada no saber coletivo. Por isso,

mesmo sob o império dos laboratórios farmacêuticos, da Medicina tecnológica e da

propaganda midiática que agiganta “epidemias”, grande parte dos pacientes contemporâneos

busca sua cura nos consultórios médicos, mas por via das dúvidas também apela para Deus

e/ou seus intercessores. Pergunte a qualquer um dos milhões de peregrinos que anualmente

visitam os santuários e lugares sagrados do mundo cristão.

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Referências

PERNOUD, Régine. Hildegard de Bingen – a consciência inspirada do século XII. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. SCIENTIFIC AMERICAN História. A ciência na Idade Média. São Paulo: Duetto, s.d.