entre a hesitação e a ação - melancolia e walter benjamin

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ PUCPR CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA MÁRCIO JAREK ENTRE A HESITAÇÃO E A AÇÃO: A MELANCOLIA, O BARROCO E A LITERATURA EM WALTER BENJAMIN CURITIBA - PR 2006

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Dissertação de mestrado em filosofia sobre Walter Benjamin

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO PARAN PUCPR CENTRO DE TEOLOGIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    MRCIO JAREK

    ENTRE A HESITAO E A AO: A MELANCOLIA, O BARROCO E A LITERATURA

    EM WALTER BENJAMIN

    CURITIBA - PR 2006

  • MRCIO JAREK

    ENTRE A HESITAO E A AO: A MELANCOLIA, O BARROCO E A LITERATURA

    EM WALTER BENJAMIN

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Pontifcia Universidade Catlica do Paran como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Filosofia.

    Orientador: Prof. Dr. Francisco Verardi Bocca.

    CURITIBA - PR 2006

  • MRCIO JAREK

    ENTRE A HESITAO E A AO: A MELANCOLIA, O BARROCO E A LITERATURA

    EM WALTER BENJAMIN

    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO PARAN PUCPR

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Pontifcia Universidade Catlica do Paran como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Filosofia.

    COMISSO EXAMINADORA

    Orientador Prof. Dr. Francisco Verardi Bocca Pontifcia Universidade Catlica do Paran - PUCPR

    Prof. Dr. Ascsio dos Reis Pereira Pontifcia Universidade Catlica do Paran - PUCPR

    Prof Dr Anita Helena Schlesener Universidade Tuiuti do Paran UTP

    Curitiba, 31 de Agosto de 2006.

  • Minha Famlia, Fan

    e amigos, que irmanados no tempero deste mesmo humor,

    continuam a rolar a pedra at o topo.

  • AGRADECIMENTOS

    Primeiramente ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Pontifcia Universidade Catlica do Paran pela bolsa que me foi concedida para realizar os estudos necessrios para este trabalho.

    Aos professores e funcionrios que colaboraram, cada um sua maneira, para que este pedao de mim viesse tona.

    Ao Professor Dr. Antonio Edmilson Paschoal pela confiana depositada a cada novo prazo estipulado. Afinal a produo filosfica no a mesma que produz mercadorias.

    Aos Professores Doutores Ascsio dos Reis Pereira e Anita Helena Schlesener e ao Professor Delcio Junkes, pelas preciosas observaes crticas comunicadas ao longo da pesquisa e no Exame de Qualificao.

    A minha irm que, pelas duras discusses, garantiu minha viso crtica. A todos os amigos e amigas que, pela presena prxima ou distante, sempre

    souberam me incentivar a permanecer na luta, especialmente ao professor Arilson Pereira do Vale, Lyard Librio, Mrcio Pheper e Leonardo P. Camargo.

    E por fim, ao meu orientador, Prof. Dr. Francisco Verardi Bocca, aquele que antes de tudo compreendeu meu trabalho com os olhos de um amigo, depositando confiana e servindo-me de palavras de estmulo.

    Minha eterna gratido.

  • Somente uma perspectiva distanciada, disposta, inicialmente, a abrir mo da viso da totalidade, pode ensinar o esprito, num processo de aprendizagem asctica, a adquirir a fora necessria para ver o panorama, sem perder o domnio de si mesmo.

    W. Benjamin

  • RESUMO

    O presente trabalho tem por objetivo tentar demonstrar a intrincada relao entre o sentimento da melancolia e a capacidade de ao crtica e criadora expressos, aparentemente, em grande parte da obra e da vida do pensador alemo Walter Benjamin. A melancolia, que influenciou o estado de esprito de muitas pocas, veio a ser determinante nos humores do Barroco do sculo XVII e pde ser observada mais facilmente na anlise das transformaes das tcnicas de produo literria durante a constituio da Modernidade, com a morte das grandes narrativas e a atrofia das experincias que lhe eram inerentes. A melancolia marcaria, ao longo dos ltimos sculos, uma subjetividade carregada de contradies, ora proporcionando a apatia, a hesitao e a inrcia, ora provocando a constituio de elementos de ao e de viso crtica por intermdio da linguagem de mltiplas significaes da alegoria presente, sobretudo, na poesia francesa do sculo XIX com Charles Baudelaire e na obra do escritor tcheco Franz Kafka. Nessa mesma perspectiva, a anlise benjaminiana do drama barroco alemo, em nosso estudo tomado como o ponto de partida e o principal referencial sobre a caracterizao da melancolia, serviu de base para a constituio de um mtodo inovador de pesquisa filosfica e que pode contribuir decisivamente para a compreenso monadolgica dos contedos de verdade dispersos na realidade histrica, bem como, assegurar instrumentos de resistncia crtica frente a uma atualidade repleta pelo sentimento de catstrofe permanente.

    Palavras-chave: Melancolia, Barroco, Alegoria, Literatura, Walter Benjamin.

  • ABSTRACT

    The present work has for objective to try to demonstrate the intricate relation enters the feeling of the melancholy and the capacity of critical and creative action expresses, parently, to a large extent of the workmanship and the life of the German thinker Walter Benjamin. The melancholy, that influenced the state of spirit of many times, came to be determinative in the moods of the Baroque one of century XVII and could more easily be observed in the analysis of the transformations of the techniques of literary production during the constitution of Modernity, with the death of the great narratives and the atrophy of the experiences that it were inherent. The melancholy would mark, throughout the last centuries, a loaded subjectivity of contradictions, however providing the apathy, the hesitation and inertia, however provoking the constitution of elements of action and critical vision for intermediary of the language of multiple meaning of the present allegory, over all, in the French poetry of century XIX with Charles Baudelaire and in the workmanship of the writer Czech Franz Kafka. In this same perspective, the Benjamins analysis of the German baroque drama, in our study taken as the starting point and the main source on the characterization of the melancholy, served of base for the constitution of an innovative method of philosophical research and that it can contribute decisively for monadological understanding of the dispersed contents of truth in the historical reality, as well as, assure instruments of critical resistance front to the present time full of the feeling of permanent catastrophe.

    Keywords: Melancholy, Baroque, Allegory, Literature, Walter Benjamin.

  • SUMRIO

    INTRODUO ........................................................................................................... 9

    1. UM HOMEM EM UM TEMPO SOMBRIO............................................................ 16

    1.1 WALTER BENJAMIN E A REPBLICA DE WEIMAR ...................................................... 16 1.2 A MODERNIDADE E SEU TEMPO DE INFERNO E DE ESQUECIMENTO ........................... 25 1.3 SOB O SIGNO DA ERLEBNIS: NARRAO, EXPERINCIA E MELANCOLIA...................... 30 EXCURSO - WALTER BENJAMIN SOB O SIGNO DE SATURNO.......................................... 37

    2. BARROCO E MELANCOLIA.............................................................................. 41

    2.1 A OBRA ORIGEM DO DRAMA BARROCO ALEMO....................................................... 41 2.2 AS QUESTES INTRODUTRIAS DE CRTICA DO CONHECIMENTO ............................ 47 2.3 O TRAUERSPIEL ................................................................................................... 52 2.4 ANTTESES SEM SNTESE: A SUBJETIVIDADE MELANCLICA ....................................... 58 2.5 HAMLET, PRNCIPE MELANCLICO.......................................................................... 64

    3. RUNAS: MELANCOLIA, ALEGORIAS E LITERATURA .................................. 70

    3.1 RUNAS E CONTEDOS DE VERDADE FILOSFICA .................................................... 70 3.2 MELANCOLIA/ALEGORIA ........................................................................................ 74 3.3 BAUDELAIRE, POETA ALEGRICO ........................................................................... 79 3.4 A PROPSITO DE KAFKA........................................................................................ 85

    PONDERACIN FINAL .......................................................................................... 92

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ........................................................................ 96

    OBRAS UTILIZADAS: ..................................................................................................... 96 OBRAS CONSULTADAS: .............................................................................................. 100

  • 9

    INTRODUO

    Seria a histria da filosofia uma imensa histria da melancolia? Certamente, o filsofo e crtico berlinense, Walter Benjamin (1892-1940)

    tambm se colocou diante deste mesmo questionamento. Segue que, ao longo de toda a trajetria do pensamento ocidental, uma figura obscura pareceu estar sempre espreita e ser o motivo para a operao de grandes e constantes especulaes. Motiva-nos questionar se seria o sentimento melanclico o principal motivo para o afastamento que o intelectual realiza na sua ao de pensar a si mesmo e, por conseqncia, pensar a realidade. Essas objees esto longe de se comportarem como novidades no panorama filosfico e mais longe esto de ganharem um termo final. A melancolia uma antiga acompanhante da humanidade e, assim como esta ltima, tambm possui uma histria cheia de inconstncias e que pode ser acompanhada atravs de inmeras manifestaes. Cabe aqui, nesta introduo, apenas um breve relato desse trajeto1.

    As primeiras referncias, ao sentimento que hoje conhecemos como melancolia, remontam ao Antigo Testamento. Por volta de 1.000 a 800 anos antes de Cristo, as passagens bblicas sobre os reis israelitas apresentam a descrio de personalidades complexas, cheias de ambigidades, clarividncias e possudas por maus espritos. Comportamentos que mais tarde, na Grcia clssica, passando pelos pr-socrticos at chegar a Hipcrates, o Pai da Medicina, encontrar seus primeiros olhares clnicos. Ainda conforme Sclyar, a medicina hipocrtica, a partir de observao emprica, atribuir ao desequilibro entre os quatro humores bsicos do corpo. O sangue, a linfa, a blis amarela e a blis negra eram os responsveis

    1 Cf. as observaes contidas nos livros Saturno nos Trpicos: A melancolia Europia chega ao Brasil

    de Moacyr Scliar e Filosofia Cinza: A melancolia e o corpo nas dobras da escrita de Mrcia Tiburi.

  • 10

    pelo surgimento das doenas e dos temperamentos humanos. Nesse sentido, o acmulo da blis negra era a causadora do temperamento mais patolgico, a melancolia. Um comportamento inconstante e ao mesmo tempo fascinante que Aristteles relacionaria genialidade.

    Aristteles que coloca o primeiro grande problema sobre as potencialidades da subjetividade melanclica: Por que razo todos os que foram homens de exceo no que concerne filosofia, cincia do Estado, poesia ou s artes so manifestamente melanclicos? 2

    Esse problema motiva boa parte da pesquisa tanto na medicina quanto na filosofia da Antiguidade. Nesse perodo, era bem aceita a concepo de que o melanclico reside por natureza no desequilbrio. A melancolia era o ethos dos homens voltados ruminao especulativa. A blis negra de natureza inconstante, sempre mutvel e voltil, modela de acordo com seu estado a personalidade do melanclico que, incessantemente, tem que estar se refazendo e se redefinindo. Tanto a medicina de Galeno de Prgamo (129 a 200 d. C.) quanto as correntes filosficas helensticas acreditavam que o tratamento para os efeitos colricos da melancolia seria a busca por elementos que propiciassem o equilbrio dos humores. Ao demasiadamente quente indica-se o frio e ao demasiadamente libertino sugere-se o estoicismo. Essa concepo invade a cultura rabe da Idade Mdia e estabelece, por volta do sculo IX, uma correlao astrolgica entre humores e planetas. Logo a melancolia, pela suas caracterstica, estaria sob o signo de Saturno, o planeta distante e de lenta revoluo. Destaca Moacyr Scliar que at hoje o qualitativo soturno, corruptela de Saturno, sinnimo de melanclico.3

    tambm com a Idade Mdia que surge a ligao crist da melancolia com o pecado da acdia ou acdia (do grego, indiferena). A acdia a inrcia do corao e est associada tentao do demnio e tentao da carne. O indivduo acometido pela acdia torna-se vagaroso, seu esprito e seu corpo sofrem um forte abatimento e h a perda pelo gosto da vida. Uma perda que nesse perodo representava a perigosa perda pelo gosto de Deus. Com o Renascimento e a Reforma Protestante, decorre o abandono do conceito de acdia e a retomada da melancolia que Aristteles relacionou produo intelectual e artstica. Com este

    2 Cf. Moacyr Scliar na Problemata XXX na obra aristotlica O Homem de gnio e a melancolia.

    3 SCLIAR, Moacyr. Saturno nos Trpicos: A melancolia Europia chega ao Brasil . p. 74.

  • 11

    fenmeno, a melancolia passa a ser novamente estudada em diferentes crculos, tanto por mdicos quanto por pensadores, que visam escapar das interpretaes estritamente teolgicas impostas pela Igreja em relao conduta humana e prenunciado a chegada da psicologia.

    na modernidade que ocorre uma espcie de obsesso pela melancolia. Multiplicam-se os trabalhos que, direta ou indiretamente, traziam a melancolia como tema, tanto no campo das artes, ao exemplo das gravuras de Drer, das pinturas de Bosch, da literatura de Shakespeare e de Erasmo de Roterd, quanto na medicina, na filosofia e na cincia com Giordano Bruno, Timothy Bright, Ren Descartes, Pascal, Robert Burton entre outros. Este novo sentimento melanclico nascia de uma conjuntura sombria de epidemias de peste, de caa s bruxas, de guerras equilibradas pelo crescente desejo capitalista de enriquecimento atravs de uma busca manaca que fez os navios atravessarem o oceano e chegarem s Amricas.

    Nesta fase, j por volta dos sculos XVI e XVII, a melancolia penetra por entre o crescente capital mercantil e nas aes da Contra-Reforma e torna-se a rainha do perodo Barroco. A falta de transcendncia desse perodo ocasiona a dura revelao da fragilidade das criaturas, da sua inexorvel finitude. Aspecto que bem explorado por Walter Benjamin em Origem do Drama Barroco Alemo (1928) e que configura para o pensador um poderoso instrumento de compreenso da histria que se seguiu a esse momento. A partir do Iluminismo no sculo XVIII, e a sua conseqente Industrializao ao longo do sculo XIX, a sensao de perda se torna crescente. Segue que da perda origina-se o luto e deste fortalece-se o sentimento ambguo da melancolia. Nesse mesmo sentido, a humanidade, por fim, chega ao sculo XX ainda sob o signo de Saturno. Logo, questiona-se: esta melancolia quer ainda mostrar sua face crtica ou provocar a inrcia entre os pensadores destes ltimos instantes da histria da humanidade?

    O mundo era to amplo e as possibilidades da razo esclarecida eram to imensas que se tornaram irreais. Acabaram perdendo-se por entre o mito do progresso rpido e administrado e pelo autoritarismo do desejo de desencantamento e dominao da natureza e do mundo e, por conseqncia, da dominao do homem pelo prprio homem. dessa maneira que os pensadores do incio do sculo XX observavam atnitos dmarche angustiante da civilizao ocidental.

  • 12

    assim que os pensadores da chamada Escola de Frankfurt recebem a herana filosfica de seu tempo e, por este caminho que traam seus focos de pesquisa. Sobre este aspecto, Olgria Matos afirma que...

    Leitores de Nietzsche, os frankfurtianos sabem que aderir razo tarefa difcil. (...) O projeto frankfurtiano procura destacar os aspectos noturnos do Iluminismo. (...) se perguntam por que as promessas iluministas no foram cumpridas, por que o mundo da boa vontade e da paz perptua no se concretizou. (...) O progresso se paga com coisas negativas e aterradoras, entre elas o desaparecimento do sujeito autnomo em um totalitarismo uniformizante.4

    Alm da sucesso filosfica carregada de pessimismo e descrena em relao sociedade, legado aos frankfurtianos atravs de suas leituras originais de autores to distintos quanto Freud, Weber, Nietzsche e Marx, os pensadores da Teoria Crtica da Sociedade, assim como boa parte dos intelectuais alemes das primeiras dcadas do sculo XX, vivenciaram o caos poltico, cultural, econmico e social de duas guerras mundiais e da fragilidade econmica da Repblica Weimar, da ascenso do nazismo e do stalinismo e da revoluo da tcnica. Quadro que tende a engrossar ainda mais o sentimento coletivo de esfacelamento de um projeto racional de esclarecimento das massas, de um reino da abundncia, da liberdade e da igualdade proposto pelo Iluminismo.

    nesse contexto que surge a figura do pensador judeu-alemo Walter Benjamin, importante contribuidor afastado, solitrio, melanclico e no menos polmico dos escritos do Instituto de Pesquisa Social da chamada Escola de Frankfurt. Pensador singular que sabia com extrema habilidade movimentar-se pelas distintas reas da crtica de arte, do ensaio, da traduo, da produo filosfica e de um certo engajamento, ou melhor, posicionamento poltico, ideolgico e, at mesmo, teolgico.

    Diante desse quadro pessimista e, modificando a expresso gramsciana, poderamos questionar: Como ser melanclico nas anlises e crtico alegre nas aes? Ou ainda, como procurar a ao diante de tanta possibilidade para a hesitao?

    Pois bem, o presente trabalho pretende identificar os traos do papel desempenhado pela melancolia na elaborao de um pensamento altamente crtico

    4 MATOS, Olgria C. F. A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo. p. 31-32.

  • 13

    e, sobretudo, criativo na obra de Walter Benjamin. Tarefa esta que passa pela anlise de conceitos contidos nos escritos que tratam, sobretudo, da literatura do perodo barroco idade contempornea.

    Walter Benjamin, que teve uma experincia dolorosa de vida, produziu textos carregados de crtica e de aspectos sombrios, compondo uma obra monumental de carter constantemente fragmentrio, aforismtico e, por vezes, desconexo. Mas que de maneira alguma diminui a importncia de sua brilhante contribuio para a tradio filosfica. Caracterstica que torna o alcance dos objetivos deste trabalho algo bastante complexo. Benjamin no deixou nenhum sistema filosfico, tampouco se disps a fazer isto, fato que possibilita infinitas composies e leituras, mas que tambm propicia facilmente os perigos da superficialidade, do irracionalismo e da disperso. Para tanto, optou-se por elaborar este trabalho em trs momentos distintos que tentam dar conta do objetivo maior de reconhecer a face crtica da melancolia nos escritos benjaminianos.

    Em um primeiro momento, sero analisados o contexto singular da Alemanha do perodo da Repblica Weimar e sua intrincada relao com os traos da personalidade sob o signo de Saturno de nosso pensador: a figura do intelectual acometido de uma constante m sorte, tentando ingressar na carreira acadmica em um pas em estado de crise. Uma crise poltica e econmica manifesta e outra crise ancestral mais profunda: a crise de toda a modernidade. Uma modernidade que tenta de modo recalcado restituir traos de um Classicismo perdido, mas que prope a todos um ritmo de tempo infernal e de esquecimento coletivo. Um perodo que marca a experincia de vida do pensador e que se torna essencial para a elaborao do genuno diagnstico do declnio da experincia coletiva (Erfharung) em um moderno mundo catico e cheio de desesperana. Um mundo que em muito se assemelha aos cenrios das peas do perodo barroco.

    O segundo captulo, o ponto principal do trabalho, dedica-se ao exame da estrutura da obra de maturidade de Benjamin, A Origem do Drama Barroco Alemo (1928). Uma obra que o ponto de partida para a identificao e a compreenso da funo da melancolia nos demais escritos bejaminianos. Ser buscada nessa anlise a interpretao do binmio Trauerspeil e Melancolia. A interpretao do drama barroco como produto de uma espcie de subjetividade melanclica. Nesta

  • 14

    etapa, haver Igualmente a tentativa de identificao dos aspectos do drama barroco que possibilitariam a valorizao de uma face criativa e crtica da melancolia. Para tanto, luz de comentadores, detalharemos as questes de teoria do conhecimento que, na introduo da referida obra, serve Benjamin de instrumentos que permitem a captao de contedos de verdade filosfica nas runas do jogo da melancolia barroca. A constituio, a partir do olhar melanclico, de um mtodo capaz de extrair as coisas de seu contexto habitual e com elas criar novos nveis de significao, relacionados figura de linguagem da alegoria.

    Na terceira e ltima parte deste trabalho dissertativo, nossa analise partir dos contedos filosficos garimpados nas runas do drama barroco para chegarmos face moderna da melancolia na literatura contempornea. Tomando por base a identificao da permanncia da linguagem do melanclico, a linguagem alegrica, e sua restaurao frente ao smbolo na esttica moderna. A alegoria que ao seu modo trai o mundo ao expressar uma verdade sem verdade. Que porta um saber que no pretende ser unvoco e totalizante, um saber prprio de um mundo que vive em estado de catstrofe constante. Um ambiente que, por sua vez, oferece alguns questionamentos: Que tipos de escritores sobreviveram ao declnio das tcnicas de narrao e de toda experincia coletiva? Que tcnicas utilizam e que temticas possuem para expressar sua auto-absoro melanclica e solitria diante da deteriorao de todas as coisas e das criaturas tornadas coisas?

    Perguntas que podem ser respondidas medida que se reconhece uma espcie de afinidade eletiva entre Walter Benjamin e o poeta francs do sculo XIX, Charles Baudelaire, que de maneira isolada restitui a dignidade da alegoria barroca na poesia moderna. Uma novidade esttica que tambm encontra ressonncia no tipo de narrativa do absurdo, a mais perfeita forma de narrativa diante da impossibilidade de narrar, realizada pelo escritor tcheco Franz Kafka. Um autor que sobrevive por entre os escombros de uma experincia inteiramente fragmentada e melanclica.

    Por fim, ao longo deste estudo sempre estar presente a preocupao de estar caminhando na tnue fronteira da alternncia dos sentimentos inerentes melancolia. Da blis negra que paralisa e deprime as pessoas, ceifando-lhe as paixes, clera presente na linguagem alegrica daquele que se afasta do

  • 15

    cotidiano e medita infinitamente. Interessa ao nosso objetivo, a segunda face de Jnus, o impulso crtico e criativo que est presente nos homens de exceo e que moveu a constituio da maioria dos escritos benjaminianos. Mas deformaes podem ser encontradas. Pois so muitas as perturbaes de um melanclico.

  • 16

    1. UM HOMEM EM UM TEMPO SOMBRIO

    ...so os melanclicos que melhor sabem decifrar o mundo.

    Susan Sontag, Sob o signo de Saturno.

    De que maneira uma poca vem a influenciar a vida de um pensador? De que maneira a vida de um autor vem a ser decisiva para a compreenso de determinados aspectos de sua obra? Ou ainda, de que maneira pensar estas peculiaridades sem apenas reduzir a capacidade crtica de um intelectual s implicaes de suas experincias individuais, as suas vivncias?

    Dentre outras observaes, estes questionamentos motivaram esta parte do presente trabalho e tm por objetivo reconstituir, ainda que em linhas muito gerais, o quadro das questes que a vida ps5 no caminho do inclassificvel6 pensador berlinense Walter Benjamin.

    1.1 Walter Benjamin e a Repblica de Weimar

    A imagem de uma determinada poca pode vir a ser decisiva na construo do pensamento de quem a vivencia. No caso de Walter Benjamin, ela nunca foi algo completamente exterior. Sobre este aspecto, em belas palavras, a filsofa alem Hannah Arendt abre um de seus artigos comentando a relao de uma era com o pensamento de um autor. Segundo ela, com freqncia uma era marca com seu selo mais distintamente os que menos foram influenciados por ela, os que estiveram mais distantes dela e, portanto, mais sofreram. Assim foi com Proust, com Kafka, com Karl Kraus e com Benjamin.7

    A poca vivenciada por Benjamin, caracterizou, atravs do sofrimento, e de

    5 KONDER, Leandro. Walter Benjamin: o marxismo da melancolia. p. 3.

    6 Cf. idia defendida por Michael Lwy no recente livro Walter Benjamin: aviso de incndio. p. 13-17. 7 ARENDT, Hannah. Homens em Tempos Sombrios. p. 149.

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    certa dose de m-sorte8, a sua formao (Bildung) e impregnou-se decisivamente sua obra. A trajetria de Benjamin enquanto tradutor, ensasta, crtico da cultura e pensador livre, foi marcada pelo que a crtica atual denomina de Modernidade. Mais especificamente marcada pela modernidade da Repblica Alem de Weimar.

    Segue que das cinzas da I Guerra Mundial e do Imprio colonialista de Guilherme II surgia na Alemanha o regime republicano. Uma Repblica fragilizada que nascia em um perodo que marcou profundamente a vida de toda uma gerao. Uma era de grandes dificuldades econmicas para todo um pas derrotado em uma guerra e para o mundo em geral. Acerca desse momento, Benjamin observa que nunca houve experincia mais radicalmente desmoralizada que a experincia estratgica pela guerra de trincheiras, a experincia econmica pela inflao, a experincia do corpo pela guerra de material e a experincia tica pelos governantes.9

    A experincia de uma guerra mundial viria a abalar seriamente a confiana na razo e no esclarecimento. O projeto iluminista e, sua variante ps-revoluo industrial, viu-se em uma encruzilhada tica aps a antiquada e ineficaz tcnica da guerra de trincheiras. Dentre as inmeras palavras-chave que fazem transparecer a auto-imagem da poca da Repblica de Weimar10, uma nos chama mais a ateno e tenta sintetizar as demais. Esta palavra crise.

    Crise. uma palavra-chave, fazendo parte da auto-imagem da poca. (...) Tratava-se de uma crise do sistema econmico e das instituies polticas, em escala mundial; mas foi na Alemanha que os abalos sociais e polticos se fizeram sentir de forma mais radical, implicando tambm profundas mudanas da histria cotidiana. Artistas e intelectuais se engajaram na busca de compreenso desses fatos novos11.

    A marca indistinta desse perodo de crise da Alemanha era um profundo pessimismo em relao ao futuro, sobretudo em relao ao futuro da Repblica. a crise que provoca o engajamento de vrios intelectuais que, como Benjamin, tentam

    8 Cf. o captulo dedicado a Walter Benjamin, Hannah Arendt dedica boa parte do escrito para falar sobre a relao do filsofo com sua constante falta de sorte. Aspecto que exploraremos adiante. 9 BENJAMIN, Walter. O Narrador. In Obras Escolhidas I. p. 198

    10 Segundo Willi Bolle, em Fisiognomia da Metrpole Moderna, p. 146-148, podem ser extradas de estudos realizados nos anos 1960 a 1980, uma constelao de sete caractersticas da poca da Repblica de Weimar: I) Mudana estrutural da esfera pblica; II) Politizao da intelectualidade; III) Esprito partidrio e vanguardismo; IV) Socialismo e Fascismo; V) Violncia; VI) Cultura de massas; e VII) Crise. 11

    BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrpole Moderna. p. 148.

  • 18

    agir diante do pessimismo e compreender os reflexos de uma nova barbrie12. As rigorosas condies impostas pelo Tratado de Versalhes criaram condies dramticas para toda a sociedade alem e revelavam os descaminhos da sociedade moderna e do modo de produo capitalista. O desemprego, a hiperinflao, o aumento de impostos, os baixos salrios, a falta de programas de proteo do trabalhador, aliadas a uma autoritria racionalizao das tcnicas de produo e consolidao do capitalismo monopolista fomentado por grandes emprstimos internacionais, vieram a marcar definitivamente todos os setores da sociedade.

    Para Benjamin, esse pessimismo, no que diz respeito Repblica, caa como uma pesada cortina escura que cobria a viso de todos em relao aos destinos da Alemanha. desse perodo um dos textos mais cheios de angstia de toda a obra de nosso autor. Em Viagem atravs da inflao alem, um texto por vrias vezes revisado e que acabou sendo includo no livro Rua de Mo nica (1928), Benjamin expressa inmeras reflexes acerca da crise da sociedade da poca, principalmente no que se refere classe dirigente alem.

    Os homens que esto encurralados no recinto deste pas perderam o olhar para o contorno da pessoa humana. Todo aquele que livre aparece-lhes como um extravagante. Imaginem-se as cadeias de montanhas dos Altos Alpes, contudo no destacadas contra o cu, mas contra as dobras de uma tela escura. S indistintamente se desenhariam as poderosas formas. Exatamente assim uma pesada cortina cobre o cu da Alemanha e no vemos mais o perfil nem mesmo dos maiores homens.13

    A arte, a cultura, os movimentos sociais, os partidos polticos, as universidades, os movimentos filosficos, entre outros setores da sociedade alem, tomavam o ocidente capitalista como fonte de inspirao, ou ento, depositavam suas esperanas no surgimento de uma nova sociedade socialista na Unio Sovitica. A Alemanha no dispunha mais de motivos que provocassem em seu povo algum sentimento nobre, de nacionalismo crtico e progressista. Por todos os lugares a misria aflorava e influenciava a conscincia de todos.

    No em vo que se costuma falar de misria nua. Em sua exibio, que comeou a tornar-se costume sob a lei da calamidade e, no entanto, torna visvel um milsimo apenas do escondido, o que mais funesto que no a compaixo ou a conscincia igualmente terrvel da prpria incolumidade que despertada no observador, mas sua vergonha.

    12 Cf. BENJAMIN, Walter. Experincia e Pobreza. In: Obras Escolhidas I. p. 115-116. 13 BENJAMIN, Walter. Panorama Imperial. Viagem atravs da inflao alem. In: Obras Escolhidas II Rua de Mo nica. p. 24.

  • 19

    Impossvel viver em uma grande cidade alem, na qual a fome fora os mais miserveis a viver das notas com as quais os passantes procuram cobrir uma nudez que os fere.14

    Essa misria, a que Benjamin faz referncia, era composta por uma massa de mais de 4 milhes de desempregados envoltos por um quadro dramtico de hiperinflao e de acelerada desvalorizao da moeda. Esse quadro teve seu ponto culminante em 1923 quando um dlar chegou a valer 4,2 bilhes de marcos alemes. No raro so os filmes da poca que noticiam tamanho drama. Nesses filmes costumam ser exibidas imagens de pessoas carregando milhares de cdulas de marcos alemes para realizarem a compra de apenas um po15. A misria leva Benjamin a refletir sobre os caminhos da sociedade capitalista. Ao refletir sobre as condies do fortalecimento de uma parte da burguesia alem, que enriquecia com a modernizao das indstrias conseguidas atravs de grandes emprstimos externos, verifica a existncia de uma outra misria nua. Nas suas palavras:

    No tesouro daqueles modos de falar com os quais se trai cotidianamente o modo de vida do burgus alemo, composto de uma amlgama de estupidez e covardia, o da catstrofe iminente j que assim no pode mais continuar particularmente digno de reflexo. (...) Mas relaes estveis no precisam nunca e em tempo algum ser relaes agradveis e j antes da guerra havia camadas para as quais as relaes estabilizadas eram a misria estabilizada.16

    Walter Benjamin vivera at ento apenas as idiossincrasias da vida acadmica. No perodo compreendido entre 1917-1919, decidiu fugir do alistamento no exrcito alemo e tentar ingressar na carreira universitria, atravs da elaborao de sua tese de doutoramento intitulada Sobre o conceito de crtica de arte no romantismo alemo (1920) na Universidade de Berna da Sua. Nesse perodo tambm Benjamin casa-se com Dora Benjamin, com quem tem um filho, chamado Stefan. A tese sobre o romantismo foi defendida e recebeu a aprovao Summa Cum Laude17. Como exemplo da constante m-sorte que acompanhava o pensador, a tese foi recomendada pelo orientador e editada pela Universidade, entretanto um incndio destruiu o depsito onde se achava guardado o grosso da

    14 Idem, p. 22. 15

    Podemos encontrar exemplos dessas imagens na srie produzida pela TV Cultura e intitulada Anos de Chumbo. Essa srie trata, entre outros aspectos, dos diferentes momentos que precederam a Segunda Guerra Mundial. Tambm podemos destacar uma srie de filmes que abordam esta temtica, ao exemplo do polmico O Ovo da Serpente do cineasta sueco Ingmar Bergman. 16

    Idem, p.20. 17

    Tese de reconhecida qualidade; Tese de destaque.

  • 20

    edio, restando para Benjamin a distribuio de alguns poucos exemplares entre os amigos18.

    O atual quadro social, poltico e econmico da Alemanha Weimar, provoca ainda mais pavor em Benjamin quando se confunde com sua prpria recente situao. Com o doutoramento a mesada que recebia de seu pai acaba e ento Benjamin se v obrigado a retornar para Berlim com esposa, filho e um grave problema financeiro. Sobre a fuso, ou confuso, de sua situao pessoal com a situao financeira de seu pas, Benjamin escreve,

    Todas as relaes humanas mais prximas so atingidas por uma claridade penetrante, quase insuportvel, na qual mal conseguem resistir. Pois, uma vez que, por um lado, o dinheiro est, de modo devastador, no centro de todos os interesses vitais e, por outro, exatamente este o limite diante do qual quase toda relao humana fracassa, ento desaparece, cada vez mais, assim no plano natural como no tico, a confiana irrefletida, o repouso e a sade.19

    Certamente esse desaparecimento da confiana, bem como o fracasso das relaes humanas ocasionados pelo modo devastador do dinheiro na sociedade capitalista moderna, tenham provocado, mesmo que indiretamente, a sua separao de Dora Benjamin e, no campo das idias, sua aproximao ao marxismo e ao comunismo.

    Hannah Arendt escreve que, Benjamin foi provavelmente o marxista mais singular j produzido (...)20. Sua aproximao do marxismo se deu com maior nfase aps a recomendao por Ernst Bloch da leitura de Histria e Conscincia de Classe, do pensador marxista hngaro Georg Lukcs. Benjamin leu o livro durante uma viagem para a Itlia e ficou irreversivelmente marcado por ele21. Segundo Konder, as anlises luckacsianas do fenmeno da reificao o deslumbraram e pareciam-lhe proporcionar instrumentos notavelmente fecundos para a crtica da realidade existente, bem como para a desmistificao das construes ideolgicas geradoras de confuso e conformismo.

    Para Lukcs, destaca-se que a arte tem a finalidade de socorrer a existncia de seu processo de reificao. A obra de arte ope-se assim mercadoria. Elas

    18 Cf. observao de Leandro Konder em Walter Benjamin. O Marxismo da Melancolia. p.22. 19 BENJAMIN, Walter. Panorama Imperial. Viagem atravs da inflao alem. In: Obras Escolhidas II Rua de Mo nica. p. 21-22. 20 Cf. Homens em Tempos Sombrios. p. 141. 21

    KONDER, Leandro. Walter Benjamin. O Marxismo da Melancolia. p. 33.

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    devem se impor autonomamente frente realidade e oferecer uma soluo, mesmo que imaginria, s contradies sociais existentes. As obras de arte devem retirar sua essncia do real, em seguida ocultar estrategicamente esta essncia atravs de sua recriao como mensagem a ser descoberta sobre os dilemas existentes na sociedade. Nisto consiste a doutrina do realismo esttico de Lukcs que, segundo Eagleton, defende o princpio de que, na ausncia do socialismo, ento, ser necessrio se satisfazer com a arte.22 Deste modo, a esttica lukcsiana estrutura-se a partir de uma imagem espelhada do modelo dominante da esttica burguesa. A riqueza do legado humanista burgus invocado e supervalorizado enquanto continuidade rumo a um futuro socialista.23

    Por outro lado, Benjamin fala direto do interior de uma sociedade inteiramente reificada, configurando uma perspectiva que repele qualquer tipo de triunfalismo24 ou de utopias positivas. Nas palavras de Eagleton, Walter Benjamin...

    leva o dito de Marx ao extremo da pardia. A sua leitura messinica da histria probe-lhe qualquer expectativa de redeno secular, desmancha qualquer esperana teleolgica, e, num lance dialtico de extrema ousadia, localiza os sinais da salvao na prpria impossibilidade de regenerao da vida histrica, ou no impossvel esquecimento posterior do seu sofrimento e sordidez.25

    Benjamin prope uma esttica revolucionria que parte da prpria mercadoria, dos objetos vazios e sem sentido, das runas da histria, como marca negativa de um tempo messinico. Quanto mais os cacos da histria se amontoam, quanto mais desvalorizada e mortificada ela possa parecer, cada vez mais se apresenta o ndice negativo da possibilidade de transcendncia. A esse respeito, escreve Benjamin:

    A idia de um progresso da humanidade na histria inseparvel da idia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogneo. A crtica da idia do progresso tem como pressuposto a crtica da idia dessa marcha.26 Benjamin, uma espcie de historiador educado por Marx, compreende que a

    22 EAGLETON, T. O Rabino marxista: Walter Benjamin In A Ideologia da Esttica. p. 236.

    23 Idem, p. 236. Eagleton sustenta ainda a tese de que Lukcs representa valiosa contribuio ao marxismo mas que ainda assim incapaz de perceber a posio de Marx de que a histria sempre avana pelo seu lado mau. 24

    KONDER, Lendro. Walter Benjamin. O Marxismo da Melancolia. p. 8. 25

    EAGLETON, T. O Rabino marxista: Walter Benjamin In A Ideologia da Esttica. p. 237. 26

    BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito da Histria. In Obras Escolhidas I. p.229.

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    luta de classes antes de tudo uma luta pelas coisas brutas e materiais e que sem as quais no existem as refinadas e espirituais.27 Nesse mesmo sentido, Hannah Arendt destaca outro aspecto que interessava a Benjamin diante da sua aproximao do marxismo.

    O aspecto terico que acabaria por fascin-lo era a doutrina da superestrutura, que fora apenas rapidamente esquematizada por Marx (...) Benjamin utilizou essa doutrina apenas como um estmulo heurstico-metodolgico e dificilmente estava interessado em sua base histrica ou filosfica. O que a o fascinava era que o esprito e sua manifestao material estavam to intimamente ligados que parecia possvel descobrir em todas as partes as correspondances de Baudelaire (...).28

    Desta maneira, diante do agravamento da crise econmica e de sua aproximao do Marxismo parecia natural seu ingresso no Partido Comunista e na luta poltica, entretanto seus interesses pela religio judaica, claramente influenciados pelo seu amigo Gershom Scholem, o impedia desse engajamento.

    No entanto, foi no vero de 1924, na Itlia, que Benjamin teve uma aproximao ainda maior do comunismo e do pensamento marxista. Esse novo posicionamento se deu aps o seu encontro com Asja Lacis, uma bolchevique de Latvia, participante da cultura sovitica ps-revolucionria como atriz e diretora teatral, e membro do Partido Comunista. Asja era uma eminente comunista e uma das mais eminentes mulheres que Benjamin conhecera29. A paixo instantnea de Benjamin por Lacis est expressa na dedicatria de Rua de Mo nica (1928): Esta rua chama-se Rua Asja Lacis, em homenagem quela que, na qualidade de engenheiro, a rasgou dentro do autor.

    Rua de Mo nica (Einbahnstrasse) foi publicado em 1928 e desde ento causa grande polmica entre crticos e pesquisadores. A obra uma miscelnea de consideraes polticas e filosficas, anotaes de viagens, reflexes sobre a infncia, o amor e as brincadeiras, idias sobre a literatura e a esttica, especulaes sobre sonhos, pressentimentos e premonies e at notas sobre colees e colecionadores. Segundo Konder, o livro era a expresso mais eloqente das mltiplas disposies de Benjamin, tais como elas se manifestavam

    27 Idem, p. 223.

    28 ARENDT, Hannah. Homens em Tempos Sombrios. p. 141. Grifos nossos. 29

    Cf. BUCK-MORS, Susan. Dialtica do Olhar. Walter Benjamin e o Projeto das Passagens. p. 33.

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    na variedade temtica das suas resenhas.30 O objetivo maior dessa obra representar a grande cidade como espao de diversificadas experincias. Experincias sensoriais e intelectuais da Modernidade, como afirma Willi Bolle a esse respeito:

    Trata-se de uma representao da metrpole moderna, assim como ela se ergue diariamente diante de seus habitantes: uma imensa aglomerao de textos: placas de trnsito, outdoors, sinais letreiros, tabuletas, informaes, anncios, cartazes, folhetos, manchetes, luminosos uma gigantesca constelao de escrita. (...) Contramo representa a concretude surrealista de uma artria metropolitana, em forma de uma montagem de produtos grficos.31

    Mas Rua de Mo nica, muito alm de fruto de seu flerte com o Marxismo, fundamentalmente uma homenagem ao Surrealismo, inspirada sobretudo na obra O Campons de Paris (1926) de Louis Aragon, um dos grandes expoentes deste movimento. Este livro, por sua vez, uma espcie de tratado sobre a grande cidade, a cidade como o centro das mitologias modernas, ruas e passagens parisienses como imagens do pensamento e do inconsciente que, assim como a relao do sonho com a psicanlise, devem ser lidas e interpretadas.32

    Apesar do movimento surrealista ter provocado grande impacto no pensamento de Benjamin, que at escreveria em 1929 um artigo intitulado O Surrealismo: O ltimo instantneo da inteligncia europia, este fez questo de diferenciar Rua de Mo nica do autor que o inspirou. Para ele, Aragon e todos os outros surrealistas escolheram a esfera do sonho para expressar as mitologias modernas. Afirma posteriormente em um de seus fragmentos que, enquanto Aragon permanece na esfera do sonho, prope-se aqui encontrar a constelao do despertar.33 Mais uma vez, a versatilidade e a originalidade com que trabalha os conceitos de diferentes correntes filosficas e polticas impedem Benjamin de uma adeso total a determinado posicionamento. Desta vez, a aproximao que tivera do marxismo no o impediu de aproveitar o que o surrealismo tinha a oferecer mas tambm o impulsionou a continuar a procurar uma forma de despertar, um mtodo

    30 KONDER, Leandro. Walter Benjamin. O Marxismo da Melancolia. p. 39.

    31 BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrpole Moderna. p. 273. O autor traduz Einbahnstrasse por Contramo diferentemente de Rua de Mo nica utilizado pela maioria dos pesquisadores da obra de Benjamin e utilizado na traduo brasileira da obra realizada por Rubens Rodrigues Torres Filho. 32 Cf. GAGNEBIN. Jean-Marie. Uma Topografia Espiritual. In O Campons de Paris. p. 249. (no Posfcio) 33 BENJAMIN, Walter. Teoria do Conhecimento, Teoria do Progresso. Apud. BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrpole Moderna. p. 61.

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    para traduzir a linguagem inconsciente do sonho mtico da modernidade para o conhecimento consciente.

    A crise da Repblica de Weimar, a leitura e a crtica de Lukcs e a presena de Asja Lacis e do Surrealismo oferecem a Benjamin originais instrumentos de reflexo sobre os destinos do marxismo e empurravam o seu pensamento para a esquerda34 e posteriormente para algo ainda mais diverso e singular. Com Lacis conhece Moscou (1926), fato que marcaria sua percepo de um marxismo que se institucionalizava e conhece tambm, em maio de 1929, o grande dramaturgo alemo Bertold Brecht. Nesse mesmo perodo, desenvolve intensa atividade intelectual. Fazia muitas leituras e produzia grande quantidade de resenhas.

    Escreveu resenhas que iam desde o comentrio de uma edio das cartas de Lnin a Gorki at uma biografia do padre Bartolomeu de Las Casas (...). Algumas dessas resenhas so pequenas obras-primas. Tratam de temas incrivelmente variados, como uma retrospectiva de filmes de Chaplin, anotaes de viagem do russo Viktor Sklvski, incurses na rea da sociologia dos brinquedos infantis, poemas, etc.35

    Nesse momento de grande produo, seu principal adversrio era a forte burguesia alem. Fruto talvez de sua aproximao ao Marxismo, Benjamin, direta ou indiretamente, colocava a responsabilidade na burguesia pela terrvel crise da Repblica Weimar. A inflao, observava Benjamin, est corrompendo a tudo e a todos, provocando a atrofia da inteligncia e da sensibilidade dos alemes. A inflao deixou os homens encurralados e causou a perda da capacidade da populao de olhar para o contorno da pessoa humana.

    A liberdade de dilogo est-se perdendo. Se antes, entre seres humanos em dilogo, a considerao pelo parceiro era natural, ela agora substituda pela pergunta sobre o preo de seus sapatos ou de seu guarda-chuva. Fatalmente impe-se, em toda conversao em sociedades, o tema das condies de vida, do dinheiro.36

    Como prova da extrema compreenso da gravidade do quadro que se instaurava na Alemanha, Benjamin profetizava o destino trgico que todos iriam enfrentar. Dizia ele que, a crise econmica est diante da porta, atrs dela est uma

    34 Cf. Leandro Konder. Walter Benjamin. O Marxismo da Melancolia. p. 36.

    35 Idem, p. 38. 36 BENJAMIN, Walter. Panorama Imperial. Viagem atravs da inflao alem. In: Obras Escolhidas II Rua de Mo nica. p. 23.

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    sombra, a prxima guerra37. De fato, a decadncia tica, poltica, econmica e social do perodo

    observava a ascenso perigosa do nazismo e a derrota da esquerda e, com ela, a derrota de tudo o que a Repblica Weimar significava no tardou a se verificar. Em 30 de janeiro de 1933, o marechal Hindemburg, que tinha sido eleito Presidente da Repblica em 1932, designou o lder nazista Adolf Hitler como primeiro-ministro. De imediato, uma feroz perseguio contra os judeus e contra a esquerda foi rapidamente desencadeada.

    Cerca de 60 mil alemes se viram forados a partir para o exlio. Nesse clima, no dia 18 de maro de 1933, Benjamin deixa a Alemanha com o auxlio de Grete Karplus Adorno, aps rpida passagem por Ibiza, se fixa em Paris onde ir viver at o suicdio quando tentava escapar da Frana em 1940. Paris vir a marcar uma nova fase no pensamento de Benjamin. Esta nova fase marcada pela maturidade do pensador berlinense e por trabalhos decisivos como o Projeto das Passagens, o artigo revolucionrio A Obra de Arte na poca de sua Reprodutibilidade Tcnica e as teses Sobre o Conceito da Histria. Entretanto, o perodo em que viveu as angstias da Repblica Weimar deixariam seus estigmas na personalidade de um Walter Benjamin sob o signo de Saturno. As marcas de um tempo sombrio, moderno e infernal que resultariam num constante signo de uma profunda tristeza.

    1.2 A Modernidade e seu Tempo de Inferno e de Esquecimento

    Benjamin poderia ser considerado um caso exemplar, a ilustrao da essncia do que convencionamos por Modernidade alem38. No que diz respeito caracterizao desse perodo, cabem algumas consideraes. Foi somente com a historiografia atual, principalmente aquela que veio a se impor no incio dos anos de 1980, que a denominao cultura da Repblica de Weimar passou a predominar como unidade coerente de caractersticas que refletiam o padro cultural moderno e

    37 Idem. Experincia e Pobreza. In: Obras Escolhidas I Magia e Tcnica, Arte e Poltica. p. 119. 38

    Cf. BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrpole Moderna. p. 149.

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    as condies de vida de uma sociedade urbana industrial39. E, segundo Willi Bolle, em seu livro Fisiognomia da Metrpole Moderna, a Repblica de Weimar foi o momento da exploso da Modernidade, onde criou-se a primeira cultura moderna da Europa e onde Berlim era a capital da Modernidade.40

    Entretanto, Benjamin no se sentia bem com a Modernidade. Para ele o moderno o tempo do inferno41. Esse perodo marca a maturidade do pensamento de nosso autor e recebe, sobretudo, o signo pesado dos anos da Repblica de Weimar da Alemanha do perodo entre guerras e, posteriormente, da ascenso do nazismo e perseguio dos judeus.

    A guerra, a ideologia fascista e o caos poltico e econmico so frutos de uma nova barbrie ocasionada pela instituio da moderna sociedade capitalista. Esta, por sua vez, passou a ditar uma nova perspectiva de tempo baseada na produo industrial e na velocidade das exigncias imperialistas nacionais. Assim, com a modernidade uma nova concepo do tempo passa a se impor diante dos ritmos da natureza e dos ciclos caractersticos de uma vida marcada pelo trabalho artesanal e coletivo.

    Os ponteiros do relgio, na mesquinha marcao dos segundos, testemunham o sentido vazio do tempo, a cobrana dos poderosos, dos detentores dos meios de produo, enquanto, simultaneamente, indicam - via negativa que cada segundo um agora que se perde.42

    O agora que se perde um agora dos ciclos da natureza, do dia e da noite, das estaes, das fases, das pocas, das festividades e dos eventos de uma vida marcada pelo ritmo do trabalho artesanal, pelo trato com a terra e com os animais, quando a jornada de trabalho era iniciada pelo canto do galo pela manh. Escreve Mrcia Tiburi que o tempo moderno, o tempo capitalista, o avesso do tempo do sol43 e acrescenta Benjamin que:

    Quem v diante de si o nascer do Sol, acordado, vestido, em um passeio por exemplo, conserva o dia inteiro, diante de todos os outros, a soberania de algum invisivelmente coroado e, para quem ele irrompeu durante o trabalho, para este , por volta do meio-dia,

    39 Cf. BOLLE, Willi, Fisiognomia da Metrpole Moderna. p. 142. 40 Idem. p. 142. 41 Para Benjamin, no Trabalho das Passagens, a Modernidade o Tempo do Inferno. Cf. nota de Willi Bolle em Fisiognomia da Metrpole Moderna. p. 149 ou ainda conforme observao de Mrcia Tiburi em Uma outra histria da razo. p. 142. 42

    TIBURI, Mrcia. Uma Outra Histria da Razo. p. 143. 43

    Idem. p. 142.

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    como se ele mesmo se tivesse cingido a coroa.44

    Desta maneira, o Sol que coroava o trabalho de seus filhos agora esvazia-se de sentido diante do trabalho humano repetitivo e sem concluso. O tempo moderno e sombrio torna-se vazio de sentido na medida em que se prende na eterna repetio de um tempo sempre igual medido na necessidade de um constante recomear. Para Benjamin, um tempo infernal em que transcorre a existncia daqueles a quem nunca permitido concluir o que foi comeado.45 Este tempo infernal, o tempo do trabalhador assalariado, o mesmo do jogo de azar. Observa Benjamin que o jogo, assim como o trabalho assalariado, invalida a ordem da experincia, da sabedoria coletiva. Nas suas palavras:

    O jogador parte do princpio do ganho isso bvio. Seu empenho em vencer e ganhar dinheiro no poder ser considerado como um desejo no verdadeiro sentido do termo. Talvez esteja imbudo de avidez, de uma determinao obscura. Em todo o caso, ele no se encontra em condies de dar experincia a devida importncia. (...) O jogo invalida as ordens da experincia.46

    Assim como no jogo, o modo capitalista de produo, que mecanicamente regulado pelos ponteiros do relgio, possui como princpio a eterna necessidade de recomeo, de repetio. Repetem-se as rodadas e as jogadas, repete-se a linha de montagem e a jornada de trabalho. Observa Benjamin que...

    (..) o que de modo algum lhe falta (ao jogo) a inutilidade, o vazio, o no poder concluir, inerentes atividade do trabalhador assalariado na fbrica. Seu gesto, acionado pelo processo de trabalho automatizado, aparece tambm no jogo, que no dispensa o movimento rpido da mo fazendo a aposta ou recebendo a carta. O arranque est para a mquina, como o lance para o jogo de azar. Cada operao com a mquina no tem qualquer relao com a precedente, exatamente porque constitui a sua repetio rigorosa. Estando cada operao com a mquina isolada de sua precedente, da mesma forma que um lance na partida do jogo de seu precedente imediato, a jornada do operrio assalariado representa, a seu modo, um correspondente fria (dia semanal) do jogador. Ambas as ocupaes esto igualmente isentas de contedo.47

    A repetio entorpece os sentidos, oculta a falta de contedo do trabalho capitalista moderno. Este efeito entorpecente do jogo bem que poderia ser libertador, na medida em que possibilitaria tornar consciente a experincia de que o

    44 BENJAMIN, Walter. Rua de Mo nica. In Obras Escolhidas II. p. 42.

    45 BENJAMIN, Walter. Sobre alguns Temas em Baudelaire. In Obras Escolhidas III. Charles Baudelaire um lrico no auge do capitalismo. p. 129. 46

    Idem. p. 128-129. 47

    Idem, p. 127.

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    tempo nos escapa, entretanto o desejo de ganho imediato mantm com embotamento a aniquilao da experincia.48 Benjamin identificar mais tarde em Baudelaire uma personalidade que, devido ao ofcio de poeta, conseguia capturar conscientemente os efeitos da experincia de choque49 da sociedade industrial moderna. A esse respeito escreve:

    O poeta no toma parte no jogo; est em seu canto, no mais feliz do que eles os que esto jogando. Tambm ele um homem espoliado em sua experincia um homem moderno. Apenas recusa o entorpecente com que os jogadores procuram embotar o consciente, que os tornou vulnerveis marcha do ponteiro dos segundos.50

    O entorpecimento do jogo, que impede a tomada de conscincia a respeito do aniquilamento da experincia na sociedade moderna, est presente tambm no esquecimento provocado pela repetio intil e vazia. A experincia de choque do operrio industrial ou a do soldado na preparao para a guerra baseia-se em certo tipo de adestramento, suas vidas se coisificaram e passaram a ser organizadas sob conhecimentos cotidianos e fracos. Sob a experincia moderna do indivduo isolado. A sabedoria foi esquecida e este esquecimento, escreve Benjamin, no nunca individual.51 Kafka, em um de seus pequenos contos alegricos, intitulado Prometeu, ir comentar que at mesmo os deuses esqueceram:

    Sobre Prometeu do notcia quatro lendas: Segundo a primeira, ele foi acorrentado no Cucaso porque havia trado os deuses aos homens, e os deuses remeteram guias que devoravam seu fgado que crescia sem parar. De acordo com a segunda, Prometeu, por causa da dor causada pelos bicos que o picavam, comprimiu-se cada vez mais fundo nas rochas at se confundir com elas. Segundo a terceira, no decorrer dos milnios sua traio foi esquecida, os deuses se esqueceram, as guias se esqueceram, ele prprio se esqueceu. (...) Restou a cadeia inexplicvel de rochas. A lenda tenta explicar o inexplicvel. Uma vez que emerge de um fundo de verdade, ela precisa terminar de novo no que no tem explicao.52

    Esse esquecimento, que na parbola de Kafka atinge at mesmo aos deuses, o sintoma do tempo vazio de sentido a que o homem moderno se props e do qual no pode mais sair. A experincia csmica que o homem antigo possua com a terra

    48 Cf. TIBURI, Mrcia. Uma Outra Histria da Razo. p. 142.

    49 Cf. BENJAMIN, Walter. Sobre alguns Temas em Baudelaire. In Obras Escolhidas III. Charles

    Baudelaire um lrico no auge do capitalismo. p. 126. 50

    Idem. p. 130. 51 Cf. BENJAMIN. Walter. Franz Kafka. A Propsito do Dcimo Aniversrio de sua Morte. In: Obras escolhidas. Vol. I. p.142. 52

    KAFKA, Franz. Prometeu. In Narrativas do Esplio. Traduo de Modesto Carone. p. 107

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    foi completamente suplantada pela devoo ao esprito da tcnica. Benjamin, no fragmento intitulado A caminho do planetrio, o fragmento final de Rua de Mo nica, profeticamente descreve os descaminhos da tcnica nos tempos modernos:

    Massas humanas, gases, foras eltricas foram lanadas a campo aberto, correntes de alta freqncia atravessaram a paisagem, novos astros ergueram-se no cu, espao areo e profundezas martimas ferveram de propulsores, e por toda parte cavaram-se poos sacrificiais na Me Terra. Essa grande corte feita ao cosmos cumpriu-se pela primeira vez em escala planetria, ou seja, no esprito da tcnica. Mas, porque a avidez de lucro da classe dominante pensava resgatar nela a sua vontade, a tcnica traiu a humanidade e transformou o leito de npcias em um mar de sangue.53

    A sabedoria dos tempos de produo artesanal e coletiva fora trada, no existe mais, foi esquecida. Da mesma maneira as lendas, que desde a Antiguidade eram portadoras de importantes ensinamentos, agora no conseguem mais explicar o que se tornou inexplicvel. O culto da tcnica trouxe, e continua a trazer, a barbrie da guerra e do totalitarismo. A fisionomia da modernidade no consegue assim se desvencilhar da sensao de catstrofe constante e do aspecto de runa, de destroos de um aniquilamento que no cessa.

    Na esfera da tica, o esquecimento ao qual a humanidade est destinada sugere a deformao. Escreve Benjamin, quando trata dos personagens kafkianos, que a deformao o aspecto assumido pelas coisas em estado de esquecimento.54 Nisso consiste Gregor Samsa, o personagem protagonista do romance A Metamorfose de Franz Kafka, que certa manh, ao despertar de uma noite de sonhos intranqilos, encontra-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.55 Samsa, antes mesmo de sua transformao absurda, foi ainda mais absurdamente esquecido pela famlia que ajudava a sustentar, sobretudo pelo seu pai; foi esquecido tambm pela empresa onde trabalhava e pela funo vazia que desempenhava repetidamente. Assim, Kafka com A Metamorfose cria a crnica perfeita do esquecimento, a crnica de um tempo moderno e infernal que deforma as pessoas. Um tempo vazio que absurdamente consome as pessoas e que Baudelaire, um lrico no auge disto tudo, observa sem se resignar:

    53 BENJAMIN. Walter. A Caminho do Planetrio. In Rua de Mo nica. Obras escolhidas. Vol. I. p. 68-69. 54

    Idem. Franz Kafka. A Propsito do Dcimo Aniversrio de sua Morte. In: Obras escolhidas. Vol. I. p. 158. 55

    Trecho que abre A Metamorfose, a grande obra de Kafka.

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    (...) O Tempo dia a dia os ossos me desfruta, Como a neve que um corpo enrija de torpor; Contemplo do alto a terra esfrica e sem cor, E nem procuro mais o abrigo de uma gruta.

    Vai levar-me, avalanche, em tua queda abrupta?56

    Por fim, a elaborao da fisionomia desta modernidade infernal, influenciada pela perspectiva particular e crtica da existncia de uma catstrofe constante, de uma queda abrupta implica revelar aquilo que se transforma, que se atrofia, que se perde, ou ainda, aquilo que se esquece ou que se deforma em nossa sociedade. Esse sentimento de perda est presente em boa parte dos escritos de Benjamin e marca decisivamente a maioria de seus conceitos. Sobretudo o seu conceito-chave de experincia (Erfharung), que apresenta traos de uma extrema falta de esperanas de uma melanclica influncia quase barroca.

    1.3 Sob o signo da Erlebnis: Narrao, Experincia e Melancolia

    Em boa parte dos escritos de Benjamin, h referncias constantes a certo tipo de sentimento de perda. Um elemento que pode ser caracterizado como uma continuidade57 no trabalho de nosso autor. Continuidade esta, centrada na nostlgica e melanclica referncia ao lento e progressivo desmaterializar-se de algo. Podemos notar esse fenmeno j em escritos raivosos e cheios de indignao da juventude de Walter Benjamin. Um exemplo deste aspecto um artigo de 1913, intitulado Experincia onde denuncia um certo tipo de perda: o crescente empobrecimento espiritual da juventude de sua poca.

    E cada vez mais, somos tomados pela sensao de que nossa juventude no passa de uma curta noite (viva-a plenamente, com xtase!); depois vem a grande experincia, anos de

    56 BAUDELAIRE. Charles. O Gosto do Nada. In As Flores do Mal. p. 90.

    57 Cf. Leandro Konder, Op. Cit. p.26. Walter Benjamin possui uma maneira especial para trabalhar a continuidade e a descontinuidade terica em seus escritos. Segundo ele, a maior aceitao da descontinuidade acaba favorecendo, no movimento do pensamento de Benjamin, paradoxalmente, uma continuidade mais assumidamente efetiva: as idias j elaboradas dispem de maiores possibilidades de se combinarem s idias novas e de sobreviverem, no mbito de uma dinmica mais receptiva ao descontnuo.

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    compromisso, pobreza de idias e monotonia.58

    O aprimoramento da utilizao do conceito de experincia ao longo dos escritos de Benjamin decisivo para a compreenso de sua noo de perda progressiva em nossa sociedade. Os primeiros trabalhos do autor a apresentar este conceito possuem a forte influncia, ou poderia se dizer a adeso crtica do pensamento kantiano. Nesse perodo, ainda de formao acadmica, Benjamin se deteve na reflexo crtica da obra de Kant e, sobretudo das apropriaes feitas pelos neokantianos de sua poca. Pode-se, assim, afirmar que o conceito de experincia utilizado por Benjamin, objeto de nossa investigao, tem sua origem no pensamento epistemolgico de Emanuel Kant. Na obra Crtica da Razo Pura a experincia apresenta-se como decisivo elemento no processo de obteno do conhecimento. Nas palavras de Kant...

    No se pode duvidar de que todos os nossos conhecimentos comeam com a experincia, porque, com efeito, como haveria de exercitar-se a faculdade de se conhecer, se no fosse pelos objetos que, excitando os nossos sentidos, de uma parte, produzem por si mesmos representaes, e de outra parte, impulsionam a nossa inteligncia a compar-los entre si, a reuni-los ou separ-los, e deste modo elaborao da matria informe das impresses sensveis para esse conhecimento das coisas que se denomina experincia? No tempo, pois, nenhum conhecimento precede a experincia, todos comeam por ela.59

    Benjamin assume tal conceito de experincia do sistema kantiano, entretanto dedica a este conceito algumas significativas objees. Benjamin reconhece em Kant um ponto de no-retorno para a teoria do conhecimento, contudo destaca que Kant formulou a idia de experincia, e poderia se dizer todo seu sistema filosfico, sem a conscincia da estrutura global de uma singular experincia temporal60. Kant e outros filsofos de sua poca compartilharam de um mesmo horizonte e que parecia ser a nica base dada e possvel para a produo filosfica daquela poca. Um horizonte extremamente dominado pelas cincias, pelas inovaes da fsica e da matemtica. Um ambiente de perseguio e eliminao da metafsica. Enfim, um

    58 BENJAMIN, Walter. Experincia. In: A criana, o brinquedo e a educao. p.23. O termo experincia em destaque nesta citao foi traduzido do termo alemo Erlebnis (Vivncia) e contrape-se ao termo Erfahrung (Experincia coletiva). 59 KANT, Emmanuel. Crtica da Razo Pura. Na Introduo ( 1. Parte - Da Distino Entre o Conhecimento Puro e o Emprico). No original encontramos a palavra experincia representada pelo termo alemo Erfahrung. Grifos nossos. 60

    Cf. BENJAMIN, Walter. El Programa de La Filosofia Venidera. p.1.

  • 32

    horizonte dominado pelo prisma do Iluminismo. Nas palavras de Benjamin...

    Esta experincia singular era, pois, como j se insinuou, temporalmente limitada, e desde essa forma que de certo modo compartilha com toda experincia, e que podemos no sentido mais pleno chamar concepo de mundo, foi a experincia do Iluminismo. Diferencia-se dos precedentes sculos da era moderna no que so aqui traos essenciais, e ainda assim, no tanto como pudera parecer. Foi alm do mais uma das experincias ou concepes de mundo de mais baixo nvel.61

    Como um momento de mais baixo nvel, ou de pobreza e limitao espirituais. Assim Benjamin observava o contexto histrico do Iluminismo. A filosofia deste perodo sofreu um impedimento decisivo para se tornar verdadeiramente consciente de seu tempo e da eternidade. Este impedimento se situa, segundo Benjamin, na realidade, a partir de cujo conhecimento Kant quis fundar o conhecimento em geral sobre certeza e verdade, uma realidade de nvel inferior, se no a mais inferior de todas62. Esta realidade tenta declarar a certeza de um conhecimento duradouro e de vigncia intemporal e universal sem levar em conta a dignidade de um conhecimento com base nas experincias passageiras e fragmentrias. O kantismo ateve-se ao carter medocre e raso da experincia, uma experincia reduzida a um mnimo de significao. Ou seja, um conceito de experincia que concebe o conhecimento como uma relao entre um qualquer sujeito e um qualquer objeto; dessa maneira o kantismo orienta-se para o cientificismo, para as matemticas e para a mecnica.

    Essa pobreza do Iluminismo pode, segundo Benjamin, ser identificada at mesmo no imperativo do dever kantiano. O dever divulgado por Kant profere um virtuosismo muito longe daquele relacionado ao prazer e felicidade da tica da Antiguidade Clssica. O dever da Crtica da Razo Prtica e da Fundamentao da Metafsica da Moral se impe como pura forma, pura lei universal e intemporal independente de todo objeto ou fim da vontade. Esse dever deve ser exercido como coero, como violncia sobre todas as inclinaes e deve ser seguido como mandamento, ou seja, imperativamente. Esse completo enquadramento da vida, uma intensa e racional virada ao ordenamento e a classificao de rigor cientifico de tudo, observado por Benjamin no sintoma da angstia do interior burgus no qual

    61 Idem, p.2.

    62 Idem, p.1.

  • 33

    est assentado todo o Iluminismo. Essa angstia, segundo Benjamin, tem sua origem na forada limitao do campo de experincia imposta inicialmente com Iluminismo. O indivduo desse perodo impotente para reconhecer a totalidade da experincia, o exterior ao eu, o externo desse msero interno ou ainda, se permanecermos nesse quadro definido pela cincia moderna somos incapazes de metafsica63.

    O que Benjamin pretende ento com essa identificao da pobreza no pensamento kantiano? Pode-se dizer que o objetivo de Benjamin um alargamento do conceito de experincia contra a estreiteza daquele defendido pelo Iluminismo e utilizado por Kant64 e, por sua vez, os neokantianos. A inteno de Benjamin a explorao de campos polissmicos da experincia65, como os campos das experincias religiosas, lingsticas, estticas e histricas, em compensao ao solipsismo epistemolgico imposto pela experincia matemtica e mecnica proposta a partir do Iluminismo.

    Aps a obra Origem do Drama Barroco Alemo (1928), o conceito de experincia volta a aparecer de modo mais bem elaborado em outros trabalhos do autor, merecendo destaque os artigos Experincia e Pobreza e O Narrador, ambos da dcada de 30. Especialmente em O Narrador, ele destaca a progressiva perda da experincia coletiva (no sentido de Erfahrung) e assimilao de uma outra forma de experincia, mais individual e solitria (no sentido de Erlebnis termo alemo que est relacionado vivncia). Jeanne Marie Gagnebin comenta que Benjamin situa neste contexto o surgimento de um novo conceito de experincia, em oposio quele de Erfahrung, o do Erlebnis, que reenvia vida do indivduo particular, na sua inefvel preciosidade, mas tambm na sua solido.66

    Primeiramente o termo alemo Erfahrung utilizado para referir-se a uma espcie de experincia semelhante a uma sabedoria coletiva de vida. Primeiramente, a experincia se refere a algo comum a vrias geraes. Ela supe, portanto, uma tradio compartilhada e retomada na transmisso da palavra de pai a

    63 Cf. MATOS, Olgria C.F. O Iluminismo do Visionrio: Benjamin, leitor de Descartes e Kant. p.135.

    64 Idem, p. 137.

    65 Mais adiante observaremos que essa concepo de experincia ter forte implicao na adoo da

    alegoria como forma esttica mais adequada. 66

    Idem, p.59.

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    filho; uma continuidade e temporalidade das sociedades artesanais67. Ou ainda, a sabedoria coletiva passada de gerao para gerao na forma de narrao, como so as narraes de viagens. A palavra Erfahrung vem do radical fahr usado no antigo alemo no seu sentido literal de percorrer, de atravessar uma regio durante uma viagem68.

    Em O Narrador, Benjamin aponta para essa substituio de experincias, ou melhor, esse empobrecimento da experincia coletiva (no sentido de Erfahrung), como tendo seu sintoma mais marcante na maneira de produo literria. Onde antes reinava a forma das narrativas picas e coletivas, agora territrio dos solitrios romances e dos artigos de jornal. Nas suas palavras, acredita que se pode perceber...

    a experincia de que a arte de narrar est em vias de extino. So cada vez mais raras pessoas que sabem narrar devidamente. (...) como se estivssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienvel: a faculdade de intercambiar experincias.

    Uma das causas desse fenmeno bvia: as aes da experincia esto em baixa, e tudo indica que continuaro caindo at que seu valor desaparea de todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nvel est mais baixo que nunca (...)69

    Segundo Benjamin, a transformao das antigas narrativas, assim como, o desaparecimento de uma forma de experincia coletiva, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evoluo secular das foras produtivas70. Um dos indcios mais fortes desta evoluo a inveno da imprensa. A transformao da narrativa, que est intrinsecamente ligada a uma tradio oral de transmisso de uma sabedoria coletiva (experincia ou Erfahrung), se d com o surgimento do romance moderno na forma de livro. Conforme suas observaes, o romance se distingue das narrativas porque nem procede da tradio oral nem a alimenta. Segundo Benjamin,

    o narrador retira da experincia o que ele conta: sua prpria experincia ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas experincia dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance o indivduo isolado, que no pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupaes mais importantes e que no recebe conselhos nem sabe d-los. (...) Na riqueza dessa vida e na descrio dessa riqueza, o romance anuncia a

    67 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Histria e Narrao em Walter Benjamin. p.57.

    68 Idem, p.58.

    69 BENJAMIN, Walter. O Narrador. In: Obras Escolhidas. Vol. I. p.198.

    70 Idem, p.201.

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    profunda perplexidade de quem a vive.71

    O tema da morte das tcnicas de narrao na literatura, sintoma da transformao das formas de troca de experincias coletivas (Erfahrung), est presente de maneira muito clara e contundente no artigo Experincia e Pobreza, certamente um trocadilho com a idia de pobreza de experincias. Esta pobreza a pobreza das experincias comunicveis e uma das marcas do tempo infernal preconizado pela sociedade capitalista a que Benjamin se refere quando fala sobre a Repblica Weimar e o perodo hitlerista.

    pobreza de experincias deve-se muito a perda da capacidade das pessoas de intercambiarem seus conhecimentos, sua sabedoria entre si. Enfim, a perda da tradio. Benjamin constata que o fim das tradies orais, causa do surgimento de uma misria das experincias comunicveis, um fato que pode ser percebido nitidamente na volta silenciosa do campo de batalha dos combatentes da Primeira Guerra Mundial.

    Com a guerra mundial tornou-se manifesto um processo que continua at hoje. No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha no mais ricos, e sim mais pobres em experincia comunicvel.72

    Esta nova forma de misria surgiu com o monstruoso desenvolvimento da tcnica e sua sobreposio ao homem. Nota-se neste ponto que, diante da extrema falta de esperanas em relao ao possvel retorno dos modos de expresso da experincia coletiva, o que resta para a humanidade apenas a pobreza de experincia. Nas suas indignadas palavras...

    Pobreza de experincia: no se deve imaginar que os homens aspirem a novas experincias. No, eles aspiram a libertar-se de toda experincia, aspiram a um mundo em que possam ostentar to pura e to claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso.73

    Para nosso autor, essa pobreza de experincia sentida inicialmente como sendo de mbito privado, agora visivelmente de toda a humanidade. Assim surge para ele uma nova forma de barbrie. Uma barbrie que necessita da introduo de

    71 Idem, p.201.

    72 Idem, p.198. 73 BENJAMIN, Walter. Experincia e Pobreza. In: Obras Escolhidas Vol. I. p.118.

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    uma nova e positiva conceituao. Pois o que resulta para o brbaro dessa pobreza de experincia? Ela o impele a partir para a frente, a comear de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda.74 Seguindo essa definio de barbrie, Benjamin tenta demonstrar que algumas das melhores cabeas estavam se ajustando a essa situao. Artistas plsticos como Paul Klee ou os cubistas, escritores ao exemplo de Bertold Brecht e, at mesmo, arquitetos como Le Corbusier, estavam comeando a criar a partir do paradoxal ponto de vista de que h uma desiluso radical com o sculo e ao mesmo tempo uma total fidelidade a esse sculo.75

    A desiluso radical com o sculo e com o desenrolar-se da cultura ocidental provocam um efeito melanclico. Se compreendermos a melancolia como o sentimento de culpa oriundo de um impedimento de realizao de algo proposto no passado, ou ainda, concebida como a sensao nostlgica de perda de possibilidades de realizao, podemos desta maneira acreditar que Benjamin, nos escritos mencionados anteriormente, nada mais fez do que indicar a melancolia, e postar-se melanclico diante do processo histrico. Entretanto, h ainda uma paradoxal fidelidade a esse sculo melanclico, uma espcie de convivncia e incentivo criador com a presena da melancolia.

    Esse sentimento de desiluso radical e de total fidelidade a determinado perodo histrico no uma novidade do sculo XX ou nica e exclusivamente da Repblica Weimar, pois possui similitudes indiscutveis com outros perodos. Para Benjamin se sobressaem o perodo Barroco e a produo literria oriunda daquele momento como exemplos desse sentimento contraditrio que alterna entre a ao e a hesitao. Desta maneira, Benjamin em Origem do Drama Barroco Alemo tenta localizar uma espcie de pr-histria da perda da experincia e, por sua vez, da melancolia e do luto como reaes desta perda.

    74 Idem, p.116.

    75 Idem. Cf. p.116 e 117.

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    EXCURSO - Walter Benjamin sob o signo de Saturno

    Sob a influncia de Saturno como a maioria dos pesquisadores e, o prprio Walter Benjamin, costuma se referir sobre sua vida. Uma vida fascinada e ao mesmo tempo horrorizada pela modernidade de sua poca. Para a astrologia, Saturno um astro de revoluo lenta e, para Benjamin, lento tambm o lamento de uma vida arruinada ou, poderamos dizer, de uma vida assentada em runas e influenciada pela crise que o circundava. Esta experincia de choque76 perpassa toda a sua obra e configura-se em seu principal objeto de anlise. Independentemente da definio da profundidade que a experincia de vida venha a ser decisiva na influncia em relao constituio da obra de um autor. Segue que, na tentativa de evitar um reducionismo psicolgico que venha ser empregado no entendimento da obra benjaminiana, ao exemplo daquele empreendido por Hellmuth Kaiser na interpretao da obra de Kafka e duramente combatido pelo prprio Benjamin77, torna-se necessria a exposio de alguns aspectos biogrficos, sua utilizao como recurso para a anlise das relaes sociais e culturais da modernidade e o respectivo cuidado para no perder de vista o essencial sobre nosso autor e seu pensamento.

    Talvez o que era essencial na personalidade de Benjamin era o fato dele ser essencialmente melanclico. Era o que os franceses chamam un triste, observa Susan Sontag, em seu ensaio intitulado Sob o Signo de Saturno. Aps analisar a fisionomia de Benjamin atravs de suas poucas fotos, a ensasta americana retira da totalidade delas a descrio de um homem extremamente marcado desde a infncia pela presena da melancolia. Enfim, nascido sob o signo de Saturno.

    Na juventude, parecia marcado por uma profunda tristeza, escreveu Scholem. Considerava-se um indivduo melanclico, desdenhando os modernos rtulos psicolgicos, e invocava a astrologia tradicional: nasci sob o signo de Saturno o astro de revoluo mais lenta, o planeta dos desvios e das dilaes...78

    Mesmo beirando a generalizao apressada, Susan Sontag, afirma que

    76 Termo utilizado por Benjamin em Parque Central para se referir experincia de Baudelaire em relao modernizao de Paris e sua transformao em uma grande capital do sculo XIX. 77 Cf. Walter Benjamin. Franz Kafka. A propsito do dcimo aniversrio de sua morte. In. Obras Escolhidas I . p.152-53. 78 SONTAG. Susan. Sob o Signo de Saturno. In: Sob o Signo de Saturno. p. 86.

  • 38

    Benjamin projetava seu temperamento em todos os seus principais trabalhos, fato que acabava determinando suas escolhas. Descobria em todos, uma parte de seus prprios elementos saturninos. De acordo com Susan Sontag,

    Seus principais projetos, o livro publicado em 1928 sobre o drama alemo (o Trauerspiel; literalmente, a tragdia) e sua obra inacabada Paris, Capital do Sculo XIX, s podem ser plenamente entendidos desde que se compreenda at que ponto se baseiam na teoria da melancolia.79

    Basear-se na teoria da melancolia, projetando seu prprio temperamento significava, de certa maneira, escolher temas e autores que apresentavam determinadas apatias saturninas. Esta apatia singular poderia ser identificada com determinadas caractersticas presentes em seus objetos de estudo e em seu prprio estilo de pensador livre. As profundas meditaes solitrias, as freqentes reminiscncias sobre a infncia e o passado em geral, a recorrente utilizao de metforas de mapas e diagramas, memrias e sonhos, labirintos, passeios e panoramas, a indeciso e a falta de esperanas, a utilizao das idias e experincias vistas como runas, a presena constante da catstrofe e do fracasso, o sentimento de perda, as minuciosas observaes e interpretaes, a falta de jeito para a vida prtica, entre outras caractersticas mais, podem ser apresentadas como exemplos da apatia melanclica que Benjamin procurava em seus temas e em seus autores escolhidos.

    Foi essa apatia saturnina que possibilitou Benjamin a escrever a respeito de temas como o drama barroco alemo ou o romantismo ou, de maneira brilhante, escrever a respeito de escritores to distintos como Baudelaire, Proust, Kafka, Karl Kraus, Nicolai Leskov, Bertold Brecht e Goethe. Para Susan Sontag, Benjamin...

    Descobriu o elemento saturnino no prprio Goethe. Pois, apesar da posio polmica de seu grande ensaio sobre as Afinidades Eletivas de Goethe contra a tendncia a interpretar a obra de um escritor atravs de sua vida, utilizou de forma seletiva a biografia em suas mais profundas meditaes sobre os textos: revelando o ser melanclico, o solitrio. (Assim, ele descreve, falando de Proust, a solido que arrasta o mundo em seu vrtice; explica que Kafka, como Klee, era essencialmente solitrio; cita, em Robert Walser, o horror ao sucesso em vida).80

    Em A Origem do Drama Barroco Alemo (1928), Benjamin escreve que a

    79 Idem, p. 86. 80 Idem, p. 86-87.

  • 39

    influncia de Saturno torna as pessoas apticas, indecisas ou at vagarosas. Essa lentido expressa, entre outras caractersticas, pela falta de jeito, ou seja, pela falta de senso prtico em lidar com aspectos cotidianos da vida.

    Assim, chegamos a outros importantes elementos da personalidade de Walter Benjamin. Sua constante m-sorte e falta de jeito. Elementos que, segundo Hannah Arendt81, eram predominantes na vida de Benjamin. Elementos menos objetivos que o fato de ser inclassificvel, mas que, entretanto, no podem ser ignorados.

    Benjamin tinha uma extraordinria conscincia de sua falta de jeito e de sua m sorte. Em seus escritos, costumava fazer referncias figura do corcundinha, um popular personagem dos contos infantis alemes. Esse personagem era um velho conhecido de Benjamin e o acompanhou pela vida inteira. Na obra sobre suas memrias de infncia (intitulada Infncia em Berlim por volta de 1900), Benjamin fala sobre aquele que supostamente era responsvel pelas incontveis pequenas catstrofes da infncia.82

    E agora entendo do que falava. Falava do corcundinha que me havia olhado. Aquele que olhado pelo corcundinha no sabe prestar ateno. Nem a si mesmo nem ao corcundinha. Encontra-se sobressaltado em frente a uma pilha de cacos: Quando a sopinha quero tomar/ a cozinha que vou, / L encontro um corcundinha/ Que minha tigela quebrou.83

    Sem jeito mandou lembranas.84 Assim Benjamin comenta o que sua me dizia quando deixava cair ou quebrar alguma coisa. Mais uma vez o corcundinha havia olhado85 para Benjamin e trazido consigo a m sorte e a falta de jeito. Para Benjamin, a suposta presena do homenzinho provocava a total falta de ateno das pessoas que acabavam envolvendo-se em uma srie de pequenas desgraas. Assim, o sujeito de m sorte devia aprender a conviver com os escombros resultantes dessas constantes desgraas.

    Hannah Arendt comenta que, graas publicao das cartas de Benjamin, a histria da vida deste pensador agora pode ser traada num amplo escopo; e, na verdade, seria tentador cont-la como uma seqncia desses montes de

    81 Cf. Hannah Arendt, Homens em Tempos Sombrios, p. 137.

    82 Idem, p. 138. 83 BENJAMIN, Water. O Corcundinha, Infncia em Berlim por volta de 1900. In: Obras Escolhidas II, 142. 84 Idem, p. 141. 85 Idem, cf. p. 141.

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    escombros.86 Essa caracterstica possibilitou a Benjamin perceber a relao de genialidade e fraqueza que, sobretudo, rondava a vida de muitos escritores. A fraqueza encontrava-se na total incapacidade com que muitos, incluindo o prprio Benjamin, tinham em mudar as circunstncias de suas vidas, mesmo quando estavam beirando tragdias irreparveis. Para ilustrar esse fato, Hannah Arendt descreve, de maneira quase cmica, uma situao destacada da constante falta de jeito do pensador berlinense.

    Com a preciso semelhante de um sonmbulo, sua falta de jeito invariavelmente o guiava at o centro mesmo de uma desventura, ou a qualquer lugar onde algo do gnero pudesse se ocultar. Assim, no inverno de 1939-40, o perigo dos bombardeios f-lo decidir deixar Paris, mas Meaux, para onde seguira Benjamin, era um centro de concentrao de tropas e provavelmente um dos pouqussimos lugares da Frana seriamente ameaados naqueles meses de embuste blico.87

    Essa constante falta de sorte, protagonizada pela presena trgica do corcundinha - uma espcie de alegoria daqueles cuja vida marcada pela falta de jeito se encarregou de marcar dolorosamente aspectos significativos da experincia vivida de Benjamin. Devido a essas caractersticas biogrficas, o pesquisador marxista Leandro Konder, elabora um pararelo com o filsofo italiano Antonio Gramsci:

    E aqui, mais uma vez, nota-se certo paralelismo com Gramsci. O italiano passou praticamente seus ltimos dez anos de vida preso em crceres fascistas, isolado, doente, visto com desconfiana por gente do partido que ajudara a fundar e do qual se tornara secretrio-geral; Laurana Lajolo, escrevendo sobre ele, chamou-o de un uomo sconfitto, um homem derrotado. E Jeanne-Marie Gagnebin, (...) fala do autor alemo como um caso de fracasso exemplar.

    Esse fracasso torna-se exemplar porque permeou diversos aspectos de sua vida. Benjamin sofreu com infelicidades circunstanciais, fez opes erradas e catastrficas, sofreu por golpes no amor, na poltica e na profisso. Esse fracasso veio servir ao fortalecimento de seu esprito autocrtico e investigador, abolindo de suas perspectivas qualquer tipo de iluso venenosa do triunfalismo88, e poderia se dizer, capacitou-o como um grande fisionomista da sociedade moderna89.

    86 ARENDT, Hannah. Homens em Tempos Sombrios. p. 138.

    87 Idem, p.138.

    88 Idem, p. 8.

    89 Cf. BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrpole Moderna. (na introduo)

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    2. BARROCO E MELANCOLIA

    [...] O esprito que vi talvez seja um demnio. Pois o demnio tem poder para assumir

    Aspecto sedutor: talvez se prevalea Desta melancolia e deste abatimento,

    J que tem fora sobre os espritos assim [...] A conscincia do rei se trair com a pea.

    Shakespeare, Hamlet, 2, II.

    2.1 A obra Origem do Drama Barroco Alemo

    Origem do Drama Barroco Alemo a obra que termina, antes de seu incio, a carreira universitria do filsofo berlinense Walter Benjamin. Aps ter percorrido o universo kantiano no incio de seus estudos na Sua, refugiando-se assim da 1. Guerra Mundial (1914-1918) e tambm aps ter se doutorado na Universidade de Berna com trabalho sobre O Conceito de Crtica de Arte no Romantismo Alemo (1920), Benjamin, pressionado por dificuldades financeiras, decide, em 1923, concorrer livre-docncia em uma universidade alem.

    O primeiro passo para uma carreira universitria, um desejo apresentado por Benjamin j em 191690, seria a apresentao de uma Habilitation, uma tese de livre-docncia com o objetivo de se tornar professor titular (em alemo, Ordinarius) de uma universidade91. A escolha de Benjamin foi a Universidade Johann Wolfgang Von Goethe de Frankfurt am Main e baseou-se no fato de ser uma instituio nova, liberal e mais aberta do que as demais para pesquisadores judeus. Baseou-se tambm no fato de possuir ali alguns conhecidos. Entretanto, essa escolha, bem como a escolha do tema de seu trabalho, todas guiadas pelo entusiasmo e por impulsos nada convenientes comunidade acadmica da poca92, custaram a Benjamin mais um fracasso e um exemplo de sua constante falta de jeito e m sorte.

    Hannah Arendt observa que foi o artigo sobre as Afinidades Eletivas de

    90 Cf. BUCK-MORSS, Susan. A Dialtica do Olhar. Walter Benjamin e o trabalho das passagens. p. 31. J em 1916 Benjamin teria dito a Scholem que via seu futuro numa docncia de filosofia. 91

    Cf. KONDER, Leandro. Walter Benjamin: o marxismo da melancolia. p. 24. 92 Cf. BUCK-MORSS, Susan. Ibid., p. 31.

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    Goethe, produzido por Benjamin e publicado em 1924 por Hugo Von Hofmannsthal na revista Neue Deutsche Beitrge, que arruinou sua nica oportunidade de ingressar na carreira universitria. Afirma ela que:

    Como ocorre com freqncia nos textos de Benjamin, esse estudo (sobre as Afinidades Eletivas de Goethe) era inspirado pela polmica, e o ataque se referia ao livro de Friedrich Gundolf sobre Goethe. (...) a nica coisa que no deveria ter feito era uma escalada contra o membro acadmico mais proeminente e capaz daquele crculo (o influente crculo de Stefan George), de modo to veemente que todos ficavam condenados a saber (...)93

    Benjamin no conhecia o jogo das polticas acadmicas de sua poca e at, ingenuamente, no fazia opes mais tradicionais, acreditando na derrocada da ordem burguesa que influenciava o pensamento da Alemanha nesse perodo.94

    Desta maneira, nem mesmo a autoridade do editor Hofmannsthal poderia alterar o futuro da carreira universitria de Benjamin. O poder da escola de Stefan Georg era muito efetivo entre diversas entidades que mantinham entre si certa fidelidade ideolgica e familiaridade em manobras literrias. Aspectos que, em julho de 1925, foram decisivos para a rejeio do trabalho de Benjamin na Universidade de Frankfurt. Aspectos estes, duramente criticados por Hannah Arendt.

    Apesar de afetarem se situar acima da poltica, os discpulos de Georg estavam to intimamente familiarizados com os princpios bsicos das manobras literrias quanto os professores o estavam com os rudimentos da poltica acadmica, ou os escritores por encomenda e jornalistas com o abec do um bom favor merece outro.95

    Assim, passando de departamento a departamento, a tese de Benjamin foi recusada pelo professor Franz Schultz do Departamento de Literatura Alem e rejeitada pelos professores Hans Cornelius e Rudolf Kautzsch do Departamento de Esttica. Segundo eles, a tese, definitivamente, no preenchia os requisitos imprescindveis para ser acolhida pela instituio.96

    Mesmo em estudos recentes, o livro sobre o Barroco no recebe a qualidade de um trabalho de cincia literria. Nas pesquisas especializadas sobre o gnero

    93 ARENDT, Hannah. Homens em Tempos Sombrios. p. 139-40. Comentrios nossos.

    94 Cf. BUCK-MORSS, Susan. A Dialtica do Olhar. Walter Benjamin e o trabalho das passagens. p. 32 95

    ARENDT, Hannah. Ibid., p. 140. 96 Cf. KONDER, Leandro. Walter Benjamin: o marxismo da melancolia. p. 24.

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    Barroco, a obra de Walter Benjamin , por vezes, ignorada ou diminuda.97 Quem dir ser aceito na Repblica Weimar em um perodo de franca tentativa de restaurao do Classicismo. Willi Bolle comenta que, nos anos que se s