entre a cruz e a espada: uma etnografia na comunidade e no ... · de vida, o que ocasiona enormes...

12
Entre a cruz e a espada: Uma etnografia na Comunidade e no Santuário Nossa Senhora da Guia na cidade de Lucena-PB. José Adailton Vieira Aragão Melo 1 INTRODUÇÃO O referido trabalho tem como objetivo principal, tentar compreender os modos de vida da Comunidade da Guia e do Santuário Nossa Senhora da Guia, sendo este último um local de relevância histórica e turística na região do litoral norte paraibano. Neste trabalho pretendo compreender melhor as relações estabelecidas entre os moradores da comunidade e os frequentadores do Santuário, mas também as relações que os moradores estabelecem uns com os outros, a partir de seu pertencimento religioso e as possíveis tensões entre os devotos da santa e os evangélicos, uma vez que nas observações foi possível presenciar algumas situações entre católicos e evangélicos. Além de tentar apreender como é vender a imagem da santa e outros adereços católicos e em outro momento falar mal dos santos católicos e dos devotos? Essas questões são importantes para melhor compreensão do fenômeno religioso na conjuntura atual. Palavras-chave: Fé, devoção, tensão. A PROBLEMÁTICA DA PESQUISA Tendo sido, eu próprio, motivado a ir ao Santuário da Guia pelo seu apelo religioso (para pagamento de uma promessa que fizeram por mim 2 ), uma das primeiras surpresas de campo foi descobrir que a maior parte da comunidade não se diz católica, e não frequenta o Santuário – aliás, o frequenta como “meio de vida”, o que ocasiona enormes críticas entre os católicos. Segundo me contaram, o Santuário ficou abandonado durante muitos anos e 1 Mestrando em Sociologia (PPGS/UFPB). Membro do GRUPESSC (Grupo de Pesquisa em Saúde, Sociedade e Cultura – PPGA/UFPB). E-mail: [email protected] 2 Conforme analiso no meu TCC (MELO, 2014).

Upload: dokhanh

Post on 01-Dec-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Entre a cruz e a espada: Uma etnografia na Comunidade e no ... · de vida, o que ocasiona enormes críticas entre os católicos, como mostrarei aqui. Segundo me contaram, o Santuário

Entre a cruz e a espada: Uma etnografia na Comunidade e no Santuário Nossa

Senhora da Guia na cidade de Lucena-PB.

José Adailton Vieira Aragão Melo1

INTRODUÇÃO

O referido trabalho tem como objetivo principal, tentar compreender os modos de

vida da Comunidade da Guia e do Santuário Nossa Senhora da Guia, sendo este último um

local de relevância histórica e turística na região do litoral norte paraibano. Neste trabalho

pretendo compreender melhor as relações estabelecidas entre os moradores da

comunidade e os frequentadores do Santuário, mas também as relações que os moradores

estabelecem uns com os outros, a partir de seu pertencimento religioso e as possíveis

tensões entre os devotos da santa e os evangélicos, uma vez que nas observações foi

possível presenciar algumas situações entre católicos e evangélicos. Além de tentar

apreender como é vender a imagem da santa e outros adereços católicos e em outro

momento falar mal dos santos católicos e dos devotos? Essas questões são importantes para

melhor compreensão do fenômeno religioso na conjuntura atual.

Palavras-chave: Fé, devoção, tensão.

A PROBLEMÁTICA DA PESQUISA

Tendo sido, eu próprio, motivado a ir ao Santuário da Guia pelo seu apelo religioso

(para pagamento de uma promessa que fizeram por mim2), uma das primeiras surpresas de

campo foi descobrir que a maior parte da comunidade não se diz católica, e não frequenta o

Santuário – aliás, o frequenta como “meio de vida”, o que ocasiona enormes críticas entre os

católicos. Segundo me contaram, o Santuário ficou abandonado durante muitos anos e

1 Mestrando em Sociologia (PPGS/UFPB). Membro do GRUPESSC (Grupo de Pesquisa em Saúde, Sociedade e Cultura – PPGA/UFPB). E-mail: [email protected] 2 Conforme analiso no meu TCC (MELO, 2014).

Page 2: Entre a cruz e a espada: Uma etnografia na Comunidade e no ... · de vida, o que ocasiona enormes críticas entre os católicos, como mostrarei aqui. Segundo me contaram, o Santuário

nesse período a igreja evangélica Assembleia de Deus foi inaugurada no local, reunindo

grande parte dos moradores da comunidade, restando poucos católicos. Esse quadro não

teria se modificado significativamente com a reabertura do Santuário.

Tudo indica que existe uma relação ambígua e certa “tensão” entre os moradores

evangélicos e os católicos. Moradores de ambos os credos possuem comércio no Santuário,

vendendo adereços religiosos, entre outras mercadorias, embora muitos desses

comerciantes preguem a inexistência de santos intercedendo pelos homens. Nas visitas às

casas de alguns moradores evangélicos, em alguns momentos eles tentavam nos convencer

de que a Igreja da Assembleia de Deus é a única correta e abençoada por Deus, dizendo que

o Santuário e os católicos não são corretos e nem estão salvos. Já os poucos católicos da

comunidade achavam “um absurdo” falar mal da Santa e, ao mesmo tempo, possuir

barracas no Santuário onde comercializam sua imagem. As relações de tensão/cooperação

entre ambos os grupos, apenas apontadas no TCC, serão mais bem investigadas neste

segundo momento.

Esta pesquisa tentará compreender melhor como ocorrem as relações de

tensão/cooperação entre católicos e evangélicos na comunidade da Guia, e destes com os

devotos do Santuário. Acreditamos, junto com Couto (2002), entre outros autores, que a

mudança em curso do perfil religioso brasileiro tem promovido a cada vez mais a convivência

de pessoas de diferentes credos, principalmente entre diversas denominações cristãs que se

apresentam, em alguns aspectos, como fortes concorrentes no mercado de bens de salvação

(WEBER, 2004). O que nos parece interessante no caso aqui apresentado é que, apesar de

existir certa tensão entre ser evangélico e ser católico na comunidade, esta tensão parece

ser mediada pelo “negócio da Santa”, uma vez que nunca presenciamos qualquer situação

maior de intolerância, como agressão ao patrimônio ou à imagem da Santa. Antes pelo

contrário, os evangélicos são os primeiros interessados em que a devoção à Santa prospere,

pois isso lhes permite fazer negócios. Nesse sentido, pensamos que a realização deste

trabalho tem, no mínimo, três interesses/justificativas: a) permite compreender, a partir de

um caso específico, o modo como as pessoas lidam em seu cotidiano com a

pluralidade/diferença religiosa, atentando para o fato de que os moradores têm entre si

Page 3: Entre a cruz e a espada: Uma etnografia na Comunidade e no ... · de vida, o que ocasiona enormes críticas entre os católicos, como mostrarei aqui. Segundo me contaram, o Santuário

relações de muita proximidade; b) contribui com o conhecimento das dinâmicas sociais

construídas ao redor de espaços simbolicamente relevantes dentro do mapa religioso da

Paraíba; c) apresenta um registro sociológico/antropológico da comunidade e do Santuário,

respondendo assim a demandas da população e da gestão pública de Lucena, analisadas no

meu TCC (MELO, 2014).

A pretensão desta pesquisa é proporcionar algumas possíveis respostas às

indagações mencionadas e tentar compreender a dinâmica atual da Comunidade da Guia,

que ao mesmo tempo une e separa os indivíduos.

OBJETIVOS

O objetivo geral é realizar um estudo etnográfico na Comunidade e no Santuário de

Nossa Senhora da Guia, na cidade de Lucena-PB, com foco na pluralidade religiosidade e sua

manifestação no cotidiano da Comunidade e do Santuário. Registrar, verificar e tentar

compreender até que ponto a religião atua como ferramenta de exclusão, tensão, coesão e

suas dinâmicas. Como objetivos específicos, tenho a pretensão de: Analisar as relações

sociais; traçar o perfil religioso dos moradores da Comunidade da Guia; identificar como

essas diferenças são performatizadas; verificar até que ponto a identidade dos moradores

está relacionada à religião; vivenciar o cotidiano dos evangélicos e dos Católicos no

Santuário;

METODOLOGIA

Este trabalho é fruto do Projeto financiado pelo Edital CNPq nº 07/2011, intitulado:

“Etnografia da Guia: estudo antropológico sobre a comunidade de Nossa Senhora da Guia no

Município de Lucena/PB”, coordenada pela professora Ednalva Neves, juntamente com

outros pesquisadores, além de mim mesmo. Realizada em visitas regulares à comunidade e

ao Santuário da Guia, junto a outros pesquisadores e individuais. Período do projeto:

2011/2013. Em 2014 fiz visitas individuais, priorizando: As missas dos romeiros, os três

Page 4: Entre a cruz e a espada: Uma etnografia na Comunidade e no ... · de vida, o que ocasiona enormes críticas entre os católicos, como mostrarei aqui. Segundo me contaram, o Santuário

Figura 1. Imagem do Santuário de Nossa Senhora da Guia – Lucena/PB. Fonte: Arquivo do autor. 13 de abril de 2012.

momentos/eventos: o dia da festa da padroeira – 08 de dezembro, dia de Finados - 02 de

novembro, dia da Romaria da Guia - 12 de outubro. Outro recurso utilizado foi o registro

fotográfico e escritos, buscando registrar a característica do lugar e as relações entre as

pessoas, a santa e a comunidade; a relação entre fiéis e devotos.

PAISAGEM E FÉ: APRESENTANDO O LOCAL DA PESQUISA

O Santuário Nossa Senhora da Guia começou a ser construído no final do século XVI,

tendo sido concluído na segunda metade do século XVIII pelos padres Carmelitas, que

chegaram à Paraíba em 1591. O Santuário tem uma construção sólida em pedra calcária, em

estilo barroco, com detalhes de plantas silvestres, frutas típicas da região, que estão

expostas em suas fachadas externas e internas. O tombamento da Igreja de Nossa Senhora

da Guia pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) ocorreu em

16/05/1949.

Além de seu valor histórico, o Santuário possui características paisagísticas que

atraem os turistas, sendo considerado o cartão postal da cidade de Lucena. O Santuário fica

no alto de uma colina, numa área de preservação ambiental, onde há resquícios de Mata

Atlântica e pode-se observar ao mesmo tempo o mar e a zona rural, esta última composta

Page 5: Entre a cruz e a espada: Uma etnografia na Comunidade e no ... · de vida, o que ocasiona enormes críticas entre os católicos, como mostrarei aqui. Segundo me contaram, o Santuário

Figura 2. Mapa da Comunidade da Guia em Lucena – PB. Fonte: Google Satélite com adaptações do autor.

principalmente por plantações de cana-de-açúcar e coqueirais, conforme figura 2. A cada

ano o número de visitantes vem aumentando consideravelmente, principalmente no verão e

no carnaval. Essas atividades movimentam a economia da comunidade e do Santuário, seja

através do comércio local ou até o ramo imobiliário. Afora a movimentação motivada pelo

verão/carnaval, existe um calendário religioso específico no Santuário que prioriza dois

eventos: o dia em que se comemora a festa da padroeira, dia 08 de dezembro, e o dia da

Romaria da Guia, dia 12 de outubro, momentos em que centenas de devotos se dirigem ao

Santuário para o pagamento das promessas feitas ao longo do ano.

Situada ao pé do Santuário, a comunidade da Guia foi até meados da década de 1950,

uma fazenda de plantações de cana de açúcar e criação de gado, segundo relatos colhidos

em campo. Neto do antigo proprietário do terreno, seu Dore conta que o avô era funcionário

da fazenda e que sofreu um acidente no trabalho, levando-o a óbito. Os familiares

Casa dos romeiros

Cemitério

Santuário

Comunidade da Guia

Page 6: Entre a cruz e a espada: Uma etnografia na Comunidade e no ... · de vida, o que ocasiona enormes críticas entre os católicos, como mostrarei aqui. Segundo me contaram, o Santuário

Figura 3. Igreja Assembleia de Deus. Fonte: Google imagens. Julho de 2014.

receberam como indenização uma parte de terra, que foi posteriormente dividida entre os

trabalhadores e familiares, dando origem à comunidade.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Durante a pesquisa, foi possível perceber uma relação de parentesco muito forte na

comunidade. Muitos moradores atuais são membros da mesma família, ou se conhecem há

muito tempo, estreitando as relações mútuas. Nas pesquisas em campo era possível ver uma

família em ligação com outra, ora tem família de primeiro grau morando quase todos na

mesma rua, ora ocorrem casamentos entre primos e primas, reforçando as relações de

parentesco no local.

Uma das primeiras surpresas de campo foi descobrir que a maior parte da

comunidade não se diz católica, e não frequenta o Santuário – aliás, o frequenta como “meio

de vida”, o que ocasiona enormes críticas entre os católicos, como mostrarei aqui. Segundo

me contaram, o Santuário ficou abandonado durante muitos anos e nesse período a igreja

evangélica Assembleia de Deus foi inaugurada no local, conforme figura 3, reunindo grande

parte dos moradores da comunidade, restando poucos católicos. Existe uma relação

ambígua e certa tensão entre os

moradores evangélicos e os católicos.

Moradores de ambos os credos

possuem comércio no Santuário,

vendendo adereços religiosos católicos,

embora muitos desses comerciantes

preguem a inexistência de Santos

intercedendo pelos homens. Nas visitas

que fiz, foi possível perceber certa

inquietação dos católicos em ver os

evangélicos vendendo as imagens da Santa e no culto evangélico falarem mal de Nossa

Senhora da Guia.

Page 7: Entre a cruz e a espada: Uma etnografia na Comunidade e no ... · de vida, o que ocasiona enormes críticas entre os católicos, como mostrarei aqui. Segundo me contaram, o Santuário

Pelo que pude perceber, existe a comunidade da guia e o “povo da santa”, esta

última não são moradores da comunidade da Guia, são devotos e romeiros que vem de

várias regiões, seja da capital, cidades interioranas ou de outros estados. Essa comunidade é

assídua e participa das festividades e do calendário do Santuário. Muitos vão ao Santuário

para pagar promessas ou para visitação, pois é um lugar histórico e possuído de beleza

natural, fazendo parte das atrações turísticas da cidade de Lucena. A relação da comunidade

com o “povo da Santa” não é amistosa. Nas visitas à comunidade pude perceber a tensão

existente entre os evangélicos da Assembleia de Deus e os Católicos devotos da santa.

Conforme conversa informal com o Seu Zé Bil, morador e proprietário de uma barraca no

Santuário, ele confirma o fato de, a maioria dos moradores serem evangélicos e pregam

contra a Igreja Católica, em especial, o Santuário da Guia e dos Santos Católicos, pois os

protestantes só aceitam Jesus como único santo.

Perguntei ao seu Zé Bil, se ele conhecia alguma família ou alguém que fosse católico

além deles. Respondeu dizendo que não sabia de mais ninguém na comunidade que fosse

católico: “na minha rua mesmo todo mundo é evangélico”, ele olhou para a barraca do lado

e falou: “todo mundo aqui do lado é evangélico, mas vende as coisas aqui e depois vai falar

mal daqui lá na igreja evangélica, dizendo que estão salvo e que não precisam dos santos,

apenas de Jesus, mas tão aqui direto vendendo os santos pro povo”. Fiquei ouvindo as

palavras do seu Zé e depois ele acrescentou: “o povo de lá fala direto que estão salvos, que

já estão no céu, que isso e aquilo, mas por que não param de vender as coisas aqui?! É isso

que eles falam. Fiquei interessado na conversa do seu Zé, já que pude perceber certo

conflito religioso na comunidade, uma dicotomia entre o discurso e a prática dos próprios

evangélicos da comunidade e que têm as barracas no Santuário. Segundo Weber (2004),

existe a ética utilitária, ética que mercantiliza o tempo, ética que visa acumulação de

dinheiro, através dos dogmas da ética protestante. Já tinha percebido isso em outras visitas,

algo interessante para pensarmos.

Recordo que em uma visita a uma das moradoras mais antigas da comunidade, a

senhora Nevinha, mãe de Enalva que é técnica em enfermagem e trabalha no posto de

saúde da comunidade da Guia, nos falou que o Santuário ficou um tempo fechado e depois a

Page 8: Entre a cruz e a espada: Uma etnografia na Comunidade e no ... · de vida, o que ocasiona enormes críticas entre os católicos, como mostrarei aqui. Segundo me contaram, o Santuário

igreja evangélica foi instalada na comunidade, então muitos católicos foram frequentar a

igreja e se “converteram” ao protestantismo. Mesmo depois o Santuário sendo reaberto, os

moradores da comunidade continuaram frequentando e seguindo os dogmas do

protestantismo, restando poucos católicos e que frequentam o Santuário, no caso da dona

Dalva e seu Zé, pelos menos são os únicos católicos que conheci na comunidade.

Nas visitas às casas de alguns moradores evangélicos, em alguns momentos eles

tentavam nos convencer de que a Igreja da Assembleia de Deus é a única correta e

abençoada por Deus. Conforme menciona Weber (2004): “Somos ou não escolhidos para ir

para o céu? O sucesso no trabalho e resistência ao pecado, é um sinal de ser escolhido por

Deus”. Essas questões causavam alguns constrangimentos nos pesquisadores. Os moradores

da comunidade ressaltavam que o Santuário e os católicos não são corretos e nem estão

salvos. Já os poucos católicos da comunidade achavam “um absurdo” falar mal da Santa e,

ao mesmo tempo, possuir barracas no Santuário onde comercializam sua imagem e outros

adereços religiosos, como camisas e cruzes, entre outros. Para nossa pesquisa, fica claro essa

tensão entre ser evangélico e ser católico na comunidade.

O povo da santa não parece ser ciente dessas tensões, ou pelo menos, durante os

anos da pesquisa não presenciei qualquer reação das pessoas com os evangélicos que

vendem tais objetos católicos. Já as pessoas responsáveis pelo santuário conhecem essa

desavença e elaboram simbolicamente a primazia do culto católico frente ao evangélico. Frei

Geraldo, o padre responsável pela celebração das missas, nos contou que muitos moradores

falam mal da santa, mas quando precisam de alguma “ajuda”, recorrem a ela

conscientemente ou em sonhos. Conforme relato do frei: “um senhor muito evangélico teve

um sonho com a santa, ela pedia para ele não dormir sem camisa, e quando acordou vestiu a

camisa e desde então cumpriu o pedido da santa”. Segundo o frei, essas histórias são

corriqueiras, pois essas pessoas, mesmo que hoje sejam evangélicos da Assembleia de Deus,

nunca deixaram de acreditar na Santa. Hoje são evangélicos, mas sempre serão católicos.

Outro fato interessante é que alguns comerciantes evangélicos produzem os produtos que

são vendidos no Santuário, e que repassam para os outros.

Page 9: Entre a cruz e a espada: Uma etnografia na Comunidade e no ... · de vida, o que ocasiona enormes críticas entre os católicos, como mostrarei aqui. Segundo me contaram, o Santuário

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É perceptível que existe uma tensão entre a comunidade e o Santuário, devido ao

fato de grande parte dela ser evangélica da Assembleia de Deus. Os evangélicos vendem

objetos católicos e nas conversas informais percebemos que existe um respeito pela Santa.

Mesmo não admitindo que foram católicos um dia, nas conversas percebemos que em

algum momento já fizeram algum pedido à santa, pois antes da igreja protestante, a

comunidade era católica e muito assídua. Hoje, essa relação está fragmentada, mas não

rompida totalmente. Católicos e protestantes fazem parte do círculo de trocas ao redor da

Santa e os conflitos, que podem ser observados pelas críticas e boatos mútuos, são

minimizados pela existência de um interesse comum, principalmente na questão em torno

do mercado da salvação, ou o interesse de o comércio no Santuário prospere, pois será bom

para a economia da comunidade da Guia como um todo (WEBER, 2004) – embora esse

interesse também possa ser observado como um elemento de disputa, no sentido de que

católicos e protestantes são possíveis concorrentes no “negócio da santa”. A pesquisa ainda

não permitiu determinar isso, mas é um aspecto a ser considerado. Segundo Weber (2004),

essa configuração presente na comunidade, nos demonstra um modus operandi de relações

sociais e que gera um acumulo de capital.

Os estudos sociológicos/antropológicos sobre religião e seus impactos na sociedade

são relevantes e objeto de muitos debates dentro e fora da academia. Porém, existe um

relativo consenso sobre as mudanças que ocorreram em torno da temática religiosa. Entre

elas, o compartilhamento da fé, as relações de troca entre os indivíduos e as divindades e as

formas de sacrifício/promessa religiosa e o mercado religioso em volta do Santuário. Essas

questões nos levam a refletir sobre a devoção católica, as crenças dos protestantes, e as

tentativas de proximidade com os santos (católicos) e o divino (evangélicos). Para tentar

entender as dinâmicas religiosas, do Santuário e da Comunidade, foram priorizadas as

leituras do Ensaio Sobre a Dádiva (Marcel Mauss), As Formas Elementares da Vida Religiosa

(Émile Durkheim), A ética protestante e o espírito do capitalismo (Max Weber) e Sobre o

Sacrifício (Mauss e Hubert).

Page 10: Entre a cruz e a espada: Uma etnografia na Comunidade e no ... · de vida, o que ocasiona enormes críticas entre os católicos, como mostrarei aqui. Segundo me contaram, o Santuário

Sobre a relação de proximidade estabelecida, os processos de conversão e

pertencimento religioso, foram priorizadas as leituras do Gênero, família e pertencimento

religioso na redefinição de ethos masculinos e femininos (Márcia Couto). Outros autores

contemporâneos foram de utilidade e importância para a compreensão dos diversos

elementos das práticas religiosas, como as leituras de Flores Filho (2012), Lima (2013),

Maués (2013), Lévi-Strauss (2008), Sáez (2009) e entre outros.

A obra de Durkheim (2000) nos permite reflexões em torno do que o autor denomina

as religiões primitivas e, a partir disso, entender alguns aspectos do fenômeno religioso

existente no Santuário, na Comunidade e entre os frequentadores. Segundo Durkheim

(2000, p. 38), os ritos e símbolos religiosos são capazes de criar entre os indivíduos certa

afinidade sentimental e estão intrincados às classificações e às representações coletivas.

Sobre as relações de troca entre os moradores da Comunidade da Guia,

frequentadores do Santuário são elementos interessantes para serem observados e

empreendidos, tanto entre os evangélicos como os católicos. Conforme Mauss menciona:

“Se coisas são dadas e retribuídas, é porque se dão e se retribuem “respeitos” – podemos

dizer igualmente “cortesias”. Mas é também porque as pessoas se dão ao dar, e, se as

pessoas se dão, é porque se “devem” – elas e seus bens – aos outros.” (MAUSS, 2003, p.

263).

Desta forma, entendemos que o processo de transmissão/conversão é importante

para compreender como surgem as novas religiões, considerando que tal advento

representa a adesão de milhares de pessoas a outras práticas religiosas que aquelas que

herdaram de suas famílias, ocasionando transformações históricas e culturais do campo

religioso e na sociedade (COUTO, 2002).

Sobre o processo de uma possível tensão entre o grupo evangélico e os católicos,

podemos considerar a importância da leitura do Nobert Elias e John L. Scotson, que

possibilita reflexões sobre a dinâmica atual na Comunidade e no Santuário, onde em alguns

momentos as diferenças religiosas se sobressaem e um grupo acaba por estigmatizar o

outro. Pensando ainda na contribuição do Elias e Scotson (1994), pude perceber a relação

Page 11: Entre a cruz e a espada: Uma etnografia na Comunidade e no ... · de vida, o que ocasiona enormes críticas entre os católicos, como mostrarei aqui. Segundo me contaram, o Santuário

tensa entre os Estabelecidos (antigos moradores) e Outsiders (novos moradores), conforme

pesquisa em campo, um casal recém chegado para morar na comunidade, estavam sofrendo

algum tipo de exclusão ou indiferença por parte dos antigos moradores, eles achavam que a

comunidade era totalmente católica e estavam surpresos em ver que a maioria dos

moradores são evangélicos, moram a muito tempo no local e são muito unidos, o casal

estavam se sentindo excluídos da comunidade. Desta forma, podemos pensar sobre como a

religião funciona como um mecanismo de coesão e também exclusão.

Pensado sobre a ideia de tensão existente na comunidade, a leitura de Bourdieu

(1992), nos ajuda a pensar essas relações entre os católicos e os protestantes, e que estão

inseridos em algumas falas dos nativos da comunidade (católicos e evangélicos), mesmo que

de forma branda, assim como as frases observadas no campo: “vendem a imagem da santa e

depois falam mal dela”, “eles (evangélicos) acham que já estão salvos”.

Referências

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992. COUTO, Márcia Thereza. Gênero, família e pertencimento religioso na redefinição de ethos masculinos e femininos. ANTHROPOLÓGICAS, ano 6, vol. 13(1): 15-34 (2002). DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 166-250. ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

FLORES FILHO, José Honório. SANTUÁRIO DE FREI DAMIÃO: A fé na modernidade e tradições católicas no Brejo Paraibano – Valores espirituais versus valores materiais. Tese de Mestrado em Ciências da Religião. João Pessoa: UFPB, 2012. 194 p.

LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia Estrutural. São Paulo: Cosacnaify, 2008 [1958]. “A eficácia simbólica”, pp. 201-220. LIMA, Yleana. Culto, devoção e santidade: um estudo bibliográfico sobre o processo santoral na religiosidade cristã. Nova Ver. Amazônica, v. 1 n. 2, jul/dez, 2013, p. 131-154.

Page 12: Entre a cruz e a espada: Uma etnografia na Comunidade e no ... · de vida, o que ocasiona enormes críticas entre os católicos, como mostrarei aqui. Segundo me contaram, o Santuário

MACIEL, Ednalva. et al. Etnografia na Guia: estudo antropológico sobre a comunidade de Nossa Senhora da Guia no município de Lucena/PB. Disponível em: http://grupessc-ufpb.blogspot.com.br/2012/04/conheca-nossos-projetos-em-andamento.html>. Acessado em 26/06/2014. MAUÉS, R. Heraldo. (2013), A Mãe e Filho como Peregrinos: dois modelos de peregrinação católica no Brasil. Religião e Sociedade, vol. 33 nº 2, Rio de Janeiro. Jul/dez, 2013, p. 1/12. MAUSS, M. “Ensaio sobre a dádiva” IN MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. S. Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 185-314. MAUSS, M.; HUBERT, H. Sobre o sacrifício. São Paulo: Cosac Naify, 2005. 174 p. SAÉZ, Oscar Calavia. O que os Santos podem fazer pela Antropologia? Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 29(2): 198-219, 2009. WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Cia das Letras, 2004.