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CORREIA, Inês. Between Material conservation and identity preservation – the (sacred) life of medieval liturgical books. In: ICOM-CC TRIENNIAL MEETING, XVI th, 2011, Lisbon Preprints. Lisboa: Critério Produção Gráfica. p. 1-9. Tradução: Marina Furtado Revisão: Leandro Rezende Entre a conservação material e a preservação da identidade – a vida (sagrada) dos livros litúrgicos medievais. Resumo: Os manuscritos medievais podem ser descritos como fontes documentais que revelam a cultura religiosa do Ocidente. Desde os primeiros séculos do cristianismo, os Livros Sagrados foram utilizados progressivamente para reforçar as convicções religiosas e a autoridade religiosa, que, por sua vez tinha-se adaptado cada vez mais às exigências da sociedade. Tendo sobrevivido a várias mudanças intelectuais e até mesmo religiosas os livros litúrgicos medievais, presentes hoje em museus, bibliotecas e arquivos, revelam o resultado estratificado da percepção da audiência. Finalmente, os ambientes de conservação são explorados como focos de atenção, nos quais a evidência material pode ser avaliada mantendo traços de sua identidade e significados multidisciplinares, garantindo assim a sua continuidade através do tempo. Introdução A conservação de manuscritos litúrgicos medievais e sua exibição tradicional são um bom tema para a discussão da ética. Sociedades mudaram juntamente com suas manifestações culturais e as políticas culturais precisam se adaptar a essas novas demandas. O público está cada vez mais distante de seu patrimônio material. Com o aumento do uso de novas tecnologias e monitores virtuais em museus, o público está mais receptivo aos dados "não-visíveis" e aos significados mais

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Tradução de "Entre a conservação material e a preservação da identidade – a vida (sagrada) dos livros litúrgicos medievais" de Ines Correia

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Page 1: Entre a conservação material e a preservação da identidade – a vida (sagrada) dos livros litúrgicos medievais

CORREIA, Inês. Between Material conservation and identity preservation – the (sacred) life of medieval

liturgical books. In: ICOM-CC TRIENNIAL MEETING, XVIth, 2011, Lisbon Preprints. Lisboa: Critério Produção Gráfica. p. 1-9.

Tradução: Marina FurtadoRevisão: Leandro Rezende

Entre a conservação material e a preservação da identidade – a vida (sagrada) dos livros litúrgicos medievais.

Resumo: Os manuscritos medievais podem ser descritos como fontes documentais que revelam a cultura religiosa do Ocidente. Desde os primeiros séculos do cristianismo, os Livros Sagrados foram utilizados progressivamente para reforçar as convicções religiosas e a autoridade religiosa, que, por sua vez tinha-se adaptado cada vez mais às exigências da sociedade. Tendo sobrevivido a várias mudanças intelectuais e até mesmo religiosas os livros litúrgicos medievais, presentes hoje em museus, bibliotecas e arquivos, revelam o resultado estratificado da percepção da audiência. Finalmente, os ambientes de conservação são explorados como focos de atenção, nos quais a evidência material pode ser avaliada mantendo traços de sua identidade e significados multidisciplinares, garantindo assim a sua continuidade através do tempo.

Introdução

A conservação de manuscritos litúrgicos medievais e sua exibição tradicional são um bom tema para a discussão da ética. Sociedades mudaram juntamente com suas manifestações culturais e as políticas culturais precisam se adaptar a essas novas demandas. O público está cada vez mais distante de seu patrimônio material. Com o aumento do uso de novas tecnologias e monitores virtuais em museus, o público está mais receptivo aos dados "não-visíveis" e aos significados mais sofisticados. Vários meios podem ser utilizados para equacionar questões filosóficas sobre uma abordagem histórica, artística ou científica da materialidade; no entanto, compreender os traços da identidade escondida no objeto pode nos levar longe de sua função original. O principal dilema não é resolvido por qualquer debate teórico, porque ele está imbricado na prática da conservação - onde a conservação do material não pode significar a preservação de identidade. Na verdade, quando nos concentramos nos livros litúrgicos, a preservação da identidade deve lidar com os aspectos sagrados [religiosos] perdidos de sua derivação religiosa. Isto significa que manuscritos litúrgicos medievais talvez devessem também ser preservados como itens antropológicos - testemunho de práticas rituais e comportamentos da comunidade - e não apenas como patrimônio artístico ou documental.

Este artigo será construído a partir dessas considerações, reconhecendo a motivação contemporânea para preservar manuscritos litúrgicos medievais como patrimônio cultural e o papel dos museus, bibliotecas e até mesmo dos arquivos na conservação e exibição de sua identidade.

Antecedentes históricos

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Manuscritos litúrgicos medievais são geralmente relacionados com as práticas rituais Cristãs e contêm palavras e referências a gestos que expressam ações divinas. Contendo descrições de ritos litúrgicos, fórmulas de consagração e orações Eucarísticas, os manuscritos foram o resultado do pensamento de determinadas convivências e observâncias.

Começando com sua definição básica, o termo "liturgia" é uma noção bastante rica e completa; no entanto, não foi adotado no Ocidente até o final do século 18. Em grego, a palavra leitourgia é formada pelas palavras laos / leiton = povo e ergon (em Latim opus) = trabalho de servir. Neste diálogo comunicativo, a iniciativa sempre vem de Deus, que é a base de sua natureza sagrada (Altermatt 2001). A intervenção divina das palavras de Deus (leituras litúrgicas) desperta um eco no homem, que é tocado por esta experiência e associando-o aos seus irmãos (cantos litúrgicos), eles respondem através da adoração e da ação de graças (orações litúrgicas). Na verdade, todos os três eixos dinâmicos são expressões rituais, realizados por uma comunidade e influenciados pela identidade daquela comunidade - caráter, comportamentos e aspirações que mudam juntamente com transições na sociedade e na mentalidade.

Até o século 4, os cristãos usavam textos bíblicos para executar expressões rituais, criando pequenas comunidades que tendiam a ser influenciadas por um integrante com maior domínio. Algumas compilações canônicas a partir de documentos antigos (Egito e Síria) foram utilizados para estabelecer o início de uma Tradição Apostólica. No entanto, apenas a produção de novos textos euchological e versões latinas de manuscritos gregos do século 4, bem como a liturgia emergente em uso no maior centro de peregrinação de Jerusalém, marcou definitivamente as distintas liturgias adaptadas pelo Orient et Occident (1984 Martimort ). Os primeiros chamados puros livros litúrgicos foram produzidas depois do século 6, para cada ministério, estes foram os Sacramentários, com fórmulas para celebrar a Eucaristia e os Sacramentos; o Lecionário, com textos bíblicos selecionados, principalmente a partir dos Evangelhos, o Antifonário, com cânticos de missa para um cantor único ou coro, que não tinha notações musicais até o século 8 e, finalmente, as Ordens, uma lista de ofícios e festas da Igreja de Roma. Dada à diversidade de livros que vieram de diferentes observâncias monásticas em toda a Europa, diversos processos e Concílios tentaram unificar as práticas do clero regular e mesmo do secular, e a regulamentação dos livros litúrgicos foi decretada mais de uma vez.

A partir do século 10, livros diferentes foram combinados para formar novos, usando algum grau de ordem canônica. A partir deste período, encontramos também o Pontifical, dedicado às celebrações realizadas pelos bispos; o Missal, reunindo todos os elementos eucarísticos, incluindo o Sacramentário, o Lecionário e as Ordens; o Breviário composto por todos os livros que servem a Liturgia da Horas - Saltério, Homiliário, Responsórios, Antifonários e as Orações da Tarde. A lista parece não ter fim e a diversidade pode ser observada não apenas nos títulos, mas também no conteúdo, mesmo com os esforços da Igreja romana para unificar ofícios divinos e missas. É claro que essas pequenas variações de texto e formato são consequências diretas da produção manual de manuscritos, que foi usado até o advento da imprensa e sua globalização no século 15. Até então, as determinações dos Concílios, a circulação de textos e as peregrinações não foram suficientes para padronizar práticas ou regular a produção de livros litúrgicos. Embora isso contribuísse para o enriquecimento da antropologia religiosa, pode ter influenciado a negligência, a fragmentação e perda de identidade dos livros.

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Portanto, alguma atenção deve ser dada ao comportamento das comunidades, na medida em que Roma decretou a produção de livros mistos; livros usados foram desmantelados e combinados em novas encadernações, outros foram escondidos ou desmembrados e reutilizados como suportes de escrita, capas de pergaminho, ou folhas de guarda (Heinzer 2005). Por outro lado, a tendência de recuperação e reencadernação dos manuscritos, a partir do século 16, pode ser relacionada com os trabalhos do Concílio de Trento, onde uma atenção especial foi dada aos Sacramentos e à tradição Eucarística. Promover os primeiros escritos cristãos era uma maneira eficiente para confirmar a palavra de Deus e da autoridade da Igreja. Recuperar e reencadernar os manuscritos foram certamente uma das correspondentes respostas das comunidades religiosas.

Durante séculos, a expressão cristã tem sido baseada na manifestação da Palavra de Deus, que se fez carne em Cristo. A Palavra é comemorada como testemunho de um homem vivo, Jesus, revelando a dimensão antropológica do tempo e da razão. Como observado anteriormente, livros litúrgicos foram preservados, alterados ou negligenciados para refletir a natureza de uma dinâmica Igreja viva. (Sharpe, 2001).

Continuidade e ruptura do valor religioso

Após algumas considerações iniciais sobre a produção e utilização de textos litúrgicos, é apresentada uma visão geral do uso contínuo destes textos, inclusive em práticas seculares, e a ruptura de sua vida sagrada, como observado em monastérios após a extinção das ordens monásticas no século 19. Como sabemos, a extinção dessas Ordens tiveram diversas consequências para o patrimônio religioso e cultural, alguns dos quais não foram favoráveis. Da maioria dos mosteiros, todo o tipo de livros religiosos foram, na melhor das hipóteses, movidos para diferentes bibliotecas, arquivos e museus. Coleções de arquivos e manuscritos preciosos tinham desmoronado [desaparecido] durante esse período ou foram destruídos, vendidos ou reutilizados por pessoas para fins triviais. Apesar deste cenário desanimador, as novas instituições de guarda deram-lhes novas possibilidades como itens históricos e artísticos, integrando-os em suas coleções, descrevendo-os em inventários e exibindo-os através de exposições e catálogos. Três reflexões principais podem ser notadas em relação a seu novo status de objeto cultural:

• Livros litúrgicos foram abordados de forma diferente de acordo com as políticas culturais de bibliotecas, arquivos e museus, a partir do qual a sua preservação e disponibilidade depende até hoje.

• O valor artístico de edições raras ou de manuscritos de luxo iluminados estimulou o interesse em livros antigos e em seus locais originais.

• Estudos clássicos e disciplinas mais recentes, tais como paleografia, estudos de manuscritos ou codicologia promoveram uma apreciação científica do patrimônio documental e identificou-o como uma autoridade histórica, particularmente as fontes manuscritas.

A extinção das Ordens teve uma consequência permanente para os manuscritos litúrgicos medievais, a maioria dos quais anteriores ao século 15, elevando o seu significado sagrado ou devocional para outro estado. A herança religiosa saiu dos monastérios e entrou em museus, todavia, o valor bibliográfico do livro litúrgico deve ser considerado, na medida em que isso influência a sua colocação nessas coleções junto com os inventários. Por exemplo, arquivos lidam com bibliotecas monásticas como um todo, descrevendo os itens de acordo com as normas arquivísticas e práticas institucionais. Com mais ênfase no

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conteúdo intelectual do que o significado contextual, parte de sua identidade é imediatamente reduzida. Por outro lado, museus normalmente exibem um item se ele tem elementos artísticos óbvios ou uma conotação histórica perceptível. No entanto, esta mudança de status mantém o seu significado histórico. Historiadores e historiadores da arte têm contado com a acessibilidade dos livros litúrgicos para expandir o conhecimento e estabelecer a ligação entre períodos e lugares. Nossa reflexão centra-se no fato de que sua relação com os usuários, a prática ritual, e a evolução de significado foram raramente observadas; seu caráter antropológico não foi explorado.

A terceira consideração refere-se à singularidade dos manuscritos ou documentos raros - neste caso, os documentos litúrgicos. A interpretação sistemática dos textos sobre os materiais dá uma ideia do projeto de execução do manuscrito. Na verdade, a codicologia é útil na identificação de centros de produção e das vias de difusão por meio de técnicas de identificação de semelhanças e classificação de estilos.

A aplicação de arqueologia para o estudo dos livros fornece informações complementares, conforme revelado pela evidência de produção, a avaliação das marcas de utilização e de recepção dos manuscritos ao longo do tempo (Szirmai 2001). Manuscritos, e até mesmo impressos, podem nos dar informações distintas sobre o estado original e alterações posteriores. Essas marcas não são apenas uma questão de relatórios para conservação. Elas podem indicar:

• frequência da leitura como revela a intensidade das marcas de digitais

• interpretação do usuário, compartilhadas em notas marginais

• marcas sutis e guia no texto, tais como anotações relacionadas com rituais, e

• desaprovação de conceitos, como expresso pela mutilação de texto ou imagens.

Outros sinais macroscópicos que indicam claramente a individualidade de um item, tais como:

• textos truncados

• compilações de textos diversos, com possíveis discrepâncias no material

• restauração e

• evidências de reencadernação.

Para todas as indicações de mudança, podemos fazer perguntas, de como e quando, porque as respostas inevitavelmente fornecem vestígios de relação humana, o chamado caráter antropológico, como um passo primordial para alcançar a identidade ou significado sagrado.

Perspectivas atuais

Neste momento, pode-se perceber que os manuscritos litúrgicos medievais, ou mesmo versões tardiamente impressas foram apresentados apenas parcialmente, não porque não temos os meios para recuperar o seu significado, mas porque a interdisciplinaridade não tem sido praticada através de uma política cultural mais inclusiva. Isso não seria evidente se as sociedades tivessem parado de mudar. Pelo contrário, as crianças, estudantes, acadêmicos e o público em geral são mais estimulados por causa da eficiência da tecnologia moderna e de comunicações. Somando a materialidade histórica ou artística dos manuscritos, conceitos integrados e significados devem produzir conhecimento multidisciplinar. Substituir legendas que dão nome, material, data e procedência em exposições interativas ou

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reconstruções virtuais, já que a terceira geração de museus não são mais novidade. A informação deve ser aumentada e reembalada para justificar e manter novos monitores e a "pesquisa" de hoje é muitas vezes complementada por uma "pesquisa avançada".

Esta nova transição cultural é inevitavelmente acompanhada por uma transição no estado dos artefatos. Se pode inferir que a preservação e conservação são condicionadas e proporcionais à educação cultural das comunidades, esta questão torna-se substancial, não só com relação à manuscritos litúrgicos medievais, mas ao patrimônio da humanidade em geral para o qual temos uma responsabilidade imperativa de:

• garantir a política multidisciplinar, integrando tanto quanto possível o significado cultural de nossa herança

• promover redes versáteis e avaliação precisas da materialidade do manuscrito

• aprovar e apresentar bases de dados interdisciplinares em museus, bibliotecas e arquivos

• interagir na prática particular ou pública para melhorar o uso de diretrizes éticas.

Experiências boas e más revelaram a interdisciplinaridade como a forma mais sustentável de atingir esses objetivos.

Teoria de conservação - o que esperar?

Quando falamos sobre o compartilhamento e responsabilidades, nós falamos sobre a conexão de comportamentos em torno de alguns procedimentos de conservação apesar dos códigos de ética. Recursos culturais e ambientes culturais estão mudando definitivamente e se nos levantarmos sobre as considerações acima referidas, podemos aumentar a receptividade para com manuscritos de hoje, reconhecendo-os como algo digno de preservação.

Muitas outras abordagens relacionadas àquelas que são enumerados aqui foram realizadas neste campo nos últimos 20 anos (Batori 2003). No entanto, a maioria da literatura parece sublinhar a importância do significado religioso dos artefatos às comunidades por meio de conexões antropológicas (Kaminitz 1995). Nós também podemos reconhecer a importância do código de ética de conservação sugeridas pelos conservadores de arte contemporânea como uma consequência direta do seu diálogo com os artistas. A conservação é mais bem sucedida quando o valor cultural ou impacto é mantido.

Em cerimônias rituais ou no processo criativo, vemos a valorização de conceitos primários e significado em resposta, naturalmente seguindo as normas de conservação (Derlon 2008). Para responder a essas preocupações, enquanto esperamos para responder a sacralidade dos livros litúrgicos medievais, devemos avaliar nossos modelos de tomada de decisão - quando eles são usados. Várias interações propostas para caracterizar ou tratar este tipo de manuscrito são baseadas em procedimentos de conservação de documentos gráficos. Como demonstrado aqui, manuscritos litúrgicos estão longe de ser entendidos como um objeto de comunicação. Sua materialidade é frequentemente avaliada através de uma variedade de campos-chave, tais como:

• pergaminho, tintas ou pigmentos por análise espectral

• textos e as características codicológica por estudos humanísticos

• técnica de produção e as imagens pintadas por historiadores de arte

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• o histórico de guarda por arquivistas, bibliotecários ou curadores

• condição do material por papel e / ou conservadores de livros.

Com exceção de alguns projetos promissores apoiados por equipes multidisciplinares de investigadores, os manuscritos contam com métodos fragmentados para ser entendidos, conservados ou finalmente exibidos.

Em nosso tempo, a conservação é capaz de agir como um vínculo dinâmico dentro de redes interdisciplinares. A experiência prática foi obrigada a responder melhor à preservação do patrimônio e programas de treinamento tem mudado dramaticamente desde as últimas décadas do século 20, devido aos avanços tecnológicos e disciplinas complementares decorrentes da ciência da conservação (Brownrigg 1990). No entanto, se a conservação do manuscrito pode ser considerada suficientemente especializada para ser separada da conservação de documentos gráficos, como já é o caso com documentos fotográficos, um número de interesses focados pode ser pesquisado e uma grande lacuna em lidar com esses interesses precisa ser superada. Para manuscritos litúrgicos, o que esperar?

Prática de conservação: exemplos paradigmáticos

Para sistematizar procedimentos gerais é útil tomar os manuscritos litúrgicos medievais como exemplo, a fim de compreender o impacto que o valor artístico ou não-artístico tem na tomada de decisões. Além das razões conceituais que a Igreja possa ter quanto à possibilidade ou não de recuperar os manuscritos litúrgicos medievais, devemos focar em ambientes de prática de conservação, tais como museus, bibliotecas e arquivos. Se considerarmos a atitude política comum dessas instituições culturais, encontramos um impulso principal para promover a solicitação de tratamento de conservação: disponibilidade (Tabela 1). De acordo com seu caráter artístico ou relevante representatividade histórica, estes manuscritos litúrgicos têm o seu lugar nas vitrines de exposições temáticas de museus históricos, pois eles poderiam ser apresentado em exposições temporárias, se eles estão em condições relativamente boas ou se o impacto da apresentação justifica o orçamento correspondente para apoiar a sua conservação ou restauração. No entanto, apenas a gestão do controle e do acesso adotado por bibliotecas e arquivos pode contribuir para programas de conservação sustentáveis e contínuos. Entretanto, manuscritos litúrgicos não se encaixam bem dentro de um contexto de arquivo, de modo que somente os estudiosos, com um interesse particular em edições medievais ou religiosas tendem a solicitar o acesso direto. Neste ambiente, esses manuscritos não podem ser uma prioridade, mais uma vez levantamos a ligação entre a conservação material e relevância para o contexto cultural imediato. Um estímulo importante para o desenvolvimento de programas de conservação é frequentemente externo à materialidade do objeto, mas é correlacionada com seus significados internos. Seu contexto cultural pode apresentar um pedido para a conservação de um manuscrito litúrgico se o manuscrito responde eficazmente às demandas culturais. Em exposições tradicionais, onde os livros são apresentados em um formato aberto, a sua relevância documentária pode ser sugerida por uma única página de legenda e descrição do catálogo. Essa página tem certamente algum valor artístico, principalmente por causa da presença de miniaturas, letras elaboradas ou margens decoradas. No entanto, se alguma alusão ao comissário do manuscrito ou outra marca de propriedade é exibida, a receptividade ao manuscrito litúrgico pelo espectador será aumentada e podemos detectar traços de sua identidade. Nós percebemos que as marcas de uso que se referem a determinados lugares ou pessoas têm significado cultural que infere o valor devido a essas conexões. No

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entanto, as marcas de uso podem ser tão sutis quanto impressões digitais e notas marginais, ou podem ser controversa, como uma flor, fio de seda ou lente de vidro deixados entre as páginas. Em face de tais evidências valiosas, opções de conservação e de visualização devem seguir métodos precisos para garantir a sua manutenção e acesso.

Tabela1Museu Biblioteca Arquivo

Características de apresentação

- Exposições permanentes ou temporárias- Equipamentos digitais ou virtuais- Empréstimos nacionais ou internacionais

- Salas de leitura gerais- Salas de leitura especiais- Dispositivos digitais- (Temporárias) exposições

Razões principais para garantir um tratamento de conservação

- Recepção / demanda e acesso direto- Exposição de conservação exigente- Biodeterioração visível em local de armazenamento;- A investigação científica assumindo valorização adicional (publicações e outras manifestações públicas)- Requisitos de Conservação para realizar a captura digital

Não seria um problema se outros, além de conservadores, precisarem lidar com os pedidos de conservação ou responder as demandas externas se o processo contar com uma rede multidisciplinar estabelecida. Uma vez aprovados, procedimentos de conservação devem começar a partir de um modelo de tomada de decisão multidisciplinar, na qual a relevância de qualquer interação (a partir de análise científica para o tratamento) pode ser avaliada e seu impacto sobre a evidência significativa, cuidadosamente avaliada.

Por motivos políticos, esta abordagem dos manuscritos litúrgicos da Idade Média, que tendo oito séculos de uso teórico e mais de 100 anos de exibição, não pode ser finalizada, pois grande parte do trabalho ainda está para ser feito. No entanto, uma primeira avaliação de marcas de produção ou de recepção, como prova de identidade em manuscritos litúrgicos, tem sido sistematizada (Tabela 2) como um guia para novas práticas. O significado é mais do que um conceito intangível, que se reflete na prova material da criação e em alterações posteriores. Enquanto esta evidência foi previamente acessadas e apresentada corretamente, a conservação material é capaz de integrar a preservação de identidade.

Tabela 2

Livros litúrgicos medievaisEvidências materiais

identitáriasConservação Significados

disponíveisAvaliação PráticaTraços de produção - Recursos de bloco de

texto deixados em - Evitar tratamentos aquosos ou sob pressão

- Datação- Local de produção

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pergaminho e pinturas: incisões de ferramentas cegas, batidas, picadas e esboços

que podem produzir distorções evidentes ou perdas

- Circulação do manuscrito- Taxonomia artística- Arqueologia do livro

- Elementos de encadernação, originais ou subsequentes

- Avaliar o impacto estrutural em intervenções locais- Evitar a estabilidade restrita devido à abordagem da mínima intervenção

Marcas de dedos - Tipo, dimensão, localização- Incidência relativa sobre o bloco de texto

- Avaliar decadência do suporte e texto (se afetado)- Estabilizar em vez de remover- Evitar alteração de incidência relativa: marcas mais escuras de dedo devem manter grau comparativo de degradação

- Lugar de recepção ou uso- Contexto do uso- Propósitos regulares ou seculares- Informações sociológicas- Dados forenses

Depósitos de cera - Tipo e localização- Incidência relativa no bloco de texto

- Avaliar o impacto sobre o suporte ou texto- Manter ou remover parcialmente

- Prática de leitura- Ambiente de leitura

Comentários marginais

- Assunto, autor e data- Tintas e ferramentas de escrita- Funções litúrgicas- Censura

- Evitar qualquer tipo de limpeza que possa afetar a escritura ou notação

- Cronologia- Autoridade do usuário- Hábito de leitura- Dados subjetivos

Correções textuais pós produção

- Conteúdo e textos suprimidos- Repetições ao longo do texto

- Cronologia- Autoridade do usuário

Entrefolhamento aleatório de material

- Tipo e possível contexto- Interação física/química

- Avaliar compatibilidade- Medidas de conservação de necessário acondicionamento separado

- Contexto do uso- Caráter do usuário- Dados subjetivos

Descontinuidade de material ou de

- Relação com outras edições canônicas

- Discutir sobre possível reconstrução quando

- Cronologia- Filosofia do clero

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conteúdo - Sequencia do texto- Perturbação da estrutura ou reencadernação

desmontado- Evitar separar textos mistos a menos que necessário para a conservação

- Práticas litúrgicas- (Abordagem comparativa)

Reparos antigos (até o século 19)

- Tipo, função e data- Competência- Relação com possíveis causas

- Avaliar compatibilidade- Estabilizar e reusar ou substituir e acondicionar juntamente

- Cronologia- Contexto histórico

Conclusão

Livros litúrgicos medievais, vistos como material antropológico, representam claramente a expressão dinâmica da função sagrada dentro das comunidades religiosas. No entanto, uma vez que a função sagrada evoluiu em função cultural, as características artísticas e provas históricas deste material desempenha um papel dominante, determinante na conservação de sua identidade. Isso reflete um século de consciência patrimonial e de políticas culturais. A conservação fez uma longa viagem, apoiando os valores culturais que ainda estão mudando dentro de uma sociedade global em crescimento. Diretrizes culturais foram, são e serão o fio para a humanidade. O caráter sagrado está aliado ao significado de identidade e não será perdido enquanto a função cultural for preservada.