ensinar cegos a “ver”: a crise urbana do brasil · como algo à parte da grande arquitetura e...

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1 XVII Congresso Brasileiro de Arquitetos / IAB/RJ Sessão de Comunicação: Sessão 9 – Políticas Públicas de Habitação e Urbanismo (a) ........................................................................................................................... ENSINAR CEGOS A “VER”: A CRISE URBANA DO BRASIL SILVA, Jonathas Magalhães Pereira da (1) TÂNGARI, Vera Regina (2) (1) Arquiteto-urbanista, Prof. Assistente da Faculdade de Arquitetura Anhembi-Morumbi/SP, Doutorando e pesquisador da FAUUSP. End: Alameda Santos , 778 apt.71, 01418-100, São Paulo,SP. Tel/fax: (11) 38890909 –E-mail: [email protected] (2) Arquiteta-urbanista, Prof. Adjunta e pesquisadora da FAU/DPA/PROARQ-UFRJ, Doutora pela FAUUSP. End: R. Marquês de Pinedo 20/101, 22231-100, Rio de Janeiro/RJ. Tel/fax: (21)25538172 –Email: [email protected] Palavras-chave: Projeto urbano; habitação; paisagismo .............................................................................. Equipamento p/ apresentação: datashow

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Page 1: ENSINAR CEGOS A “VER”: A CRISE URBANA DO BRASIL · como algo à parte da grande arquitetura e do grande urbanismo.” MARICATO, p132, 2001 3 Carlos Nelson Ferreira dos Santos,

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XVII Congresso Brasileiro de Arquitetos / IAB/RJ

Sessão de Comunicação:

Sessão 9 – Políticas Públicas de Habitação e Urbanismo (a)

...........................................................................................................................

ENSINAR CEGOS A “VER”:

A CRISE URBANA DO BRASIL

SILVA, Jonathas Magalhães Pereira da (1)

TÂNGARI, Vera Regina (2)

(1) Arquiteto-urbanista, Prof. Assistente da Faculdade de Arquitetura Anhembi-Morumbi/SP,

Doutorando e pesquisador da FAUUSP. End: Alameda Santos , 778 apt.71, 01418-100, São

Paulo,SP. Tel/fax: (11) 38890909 –E-mail: [email protected]

(2) Arquiteta-urbanista, Prof. Adjunta e pesquisadora da FAU/DPA/PROARQ-UFRJ,

Doutora pela FAUUSP. End: R. Marquês de Pinedo 20/101, 22231-100, Rio de Janeiro/RJ.

Tel/fax: (21)25538172 –Email: [email protected]

Palavras-chave: Projeto urbano; habitação; paisagismo

..............................................................................

Equipamento p/ apresentação: datashow

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ENSINAR CEGOS A “VER”: A CRISE URBANA DO BRASIL

Sessão de Comunicação:

Sessão 9 – Políticas Públicas de Habitação e Urbanismo (a)

Resumo:

O presente trabalho vem discutir os processos de crescimento das cidades brasileiras nas duas

últimas décadas. Grande parte de nossa sociedade vive nessas cidades como cegos que não

querem enchergar. Essa cegueira é causada pela própria sociedade desigual em que vivemos e

pelo acelerado crescimento da população urbana. Com o crescimento de aproximadamente 7%

ao ano, sem uma política habitacional consistente, com a legislação urbana destinada ao

interesse de poucos, a cidade expandiu-se sem controle.

Estudar como nossa sociedade tem gerado os espaços é fundamental para entendê-la. Porem

não se entende a sociedade brasileira ao apenas tomar-se como referência os espaços

produzidos pela elite e para a elite. As dúvidas existentes quanto aos modelos de intervenções

vêm acompanhando as propostas de governo durante todo o século XX, porém sem muita

atenção por parte do próprio governo.

O crescimento de favelas, cortiços e loteamentos irregulares de caráter permanente é observado

em todas as grandes cidades brasileiras, portanto não é um fenômeno local, reforçando a tese de

que o ambiente construído é o reflexo das relações sociais nacionais. Sendo assim, fica claro que

a questão da moradia não é um problema local, mas sim da Nação. Uma das razões que vem

contribuindo para esse forte crescimento é a falta de uma política habitacional clara a começar

pela própria legislação urbana criada para servir ao setor imobiliário. A Legislação Urbana, como

a conhecemos, tornou se um instrumento destinado a poucos, vistos os dados apresentados no

início deste trabalho.

São de se estranhar, portanto, discursos que vêem na urbanização de favelas a solução do

problema, sem levar em consideração, sem questionar o perverso processo que gerou o

ambiente construído de nossas cidades. Favelas, cortiços, loteamentos irregulares não são

deformações estéticas, portanto não a solução não é “levar o belo à favela”. Pior ainda é tentar

usar os mesmos pressupostos estéticos importados, muitas vezes utilizados erroneamente na

malha urbana formal.

Não temos mais tempo, ver é preciso.

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ENSINAR CEGOS A “VER”: A CRISE URBANA DO BRASIL

“Diz-se a um cego, Estás livre, abre-se-lhe a porta que o separa do mundo, Vai, estás livre, tornamos a dizer-lhe, e ele não vai, ficou ali parado no meio da rua, ele e os outros, estão assustados, não sabem para onde ir, é que não há comparação entre viver num labirinto racional, como é, por definição, um manicômio, e aventurar-se, sem mão de guia nem trela de cão, no labirinto dementado da cidade, onde a memória para nada servirá, pois apenas será capaz de mostrar a imagem dos lugares e não os caminhos para lá chegarem...Do que estão os cegos da cidade a esperar, não se sabe, estariam à espera da cura se ainda acreditassem nela, mas essa esperança perderam-na quando se tornou público que a cegueira não tinha poupado ninguém...”

José Saramago, Ensaio sobre a cegueira

Estamos a viver nas cidades como cegos. Atordoados pelos efeitos do problema não enxergamos

sua causa. Não percebemos os processo de produção da paisagem: das suas tipologias de

edificação e da produção dos espaços livres públicos.

Uma coisa é certa, essa cegueira é causada pela própria sociedade desigual em que vivemos e

pelo acelerado crescimento da população urbana. Em 1940, o país tinha uma população urbana

de 26,3% do total, que equivalia a 18,8 milhões de pessoas. Em 2000 a população urbana já

estava em 81,2% do total equivalente a 138 milhões de pessoas. (MARICATO, 2001).

Com o crescimento de aproximadamente 7% ao ano, sem uma política habitacional consistente,

com a legislação urbana destinada ao interesse de poucos, a cidade expandiu-se sem controle. O

processo de urbanização se “apresenta como uma máquina de produzir favelas e agredir o meio

ambiente” (MARICATO, 2001). Tem-se uma idéia da situação nacional ao consultar os dados

reunidos pelo LABHAB/FAUUSP1 sobre as porcentagens de favelas em diferentes cidades: o Rio

de Janeiro, 20%; São Paulo, 22%; Belo Horizonte, 20%; Goiânia, 13,35%; Salvador 30%, Recife,

46%; Fortaleza, 31% (MARICATO, 2001).

Se tomarmos como exemplo as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro localizadas na região

mais “próspera” do país, observaremos que:

No caso de São Paulo observam-se bairros centrais com até 60% das habitações consideradas

subnormais2. (GROSTEIN e MEYER, 2002).

1 Laboratório da Habitação e Assentamentos Humanos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da

Universidade de São Paulo. Dados reunidos consultando diversas fontes.

2 Entende-se por habitação subnormal as favelas, os cortiços, os loteamentos irregulares e lotes invadidos.

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No Rio de Janeiro, assim como em outras cidades brasileiras, o crescimento das favelas e

cortiços em áreas centrais e a proliferação dos loteamentos populares e novas favelas na região

norte e oeste é uma realidade viva e em constante crescimento. Para ilustrar, podemos citar como

exemplo a Favela de Cantagalo localizada entre os bairros de Ipanema, Lagoa e Copacabana, os

assentamentos irregulares da Zona Oeste e o cortiço localizado à Rua Saint Roman em

Copacabana.

Figura 1-Favelas de Cantagalo e Pavão- Pavãozinho

Foto do autor

Figura 2 - Loteamentos irregulares na Zona oeste, Rio de Janeiro

Foto do autor

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Figuras 3 e 4 - Casario invadido, Copacabana, Rio de Janeiro

Foto do autor

Esse quadro se agravou durante a década de 80, com o declínio econômico, processo que

persistiu ainda na década de 90, com o impacto social do desemprego e do crescimento

econômico errático:

“As décadas perdidas não são as únicas a registrarem as origens do que podemos chamar de tragédia urbana brasileira – enchentes, desmoronamentos, poluição dos recursos hídricos, poluição do ar, impermeabilização da superfície do solo, desmatamento, congestionamento habitacional, reincidências de epidemias, violência etc. O crescimento urbano sempre se deu com exclusão social, desde a emergência do trabalhador livre na sociedade brasileira, que é quando a cidade tende a ganhar nova dimensão e tem início o problema da habitação. Quando o trabalho se torna mercadoria, a reprodução do trabalhador deveria, supostamente se dar pelo mercado. Mas isso não aconteceu no começo do século XX, como não acontece até o seu final... É impossível esperar que uma sociedade como a nossa, radicalmente desigual e autoritária, baseada em relações de privilégios e arbitrariedade, possa produzir cidades que não tenham essas características.”

MARICATO, p22, 2001

Para resolver qualquer problema, deve-se começar por encará-lo de frente, entender suas causas

e suas conseqüências, conhecer as supostas soluções localizadas já aplicadas e seus resultados

e, finalmente, ter uma opinião, mínima que seja, para poder enfrentar a situação criada.

Porém, nas faculdades de arquitetura e urbanismo, formam-se profissionais que raramente estão

preparados para essa realidade. É comum que os alunos nem tomem conhecimento do tema.

Isso acontece porque o conteúdo de muitas disciplinas não está em sintonia com as

necessidades de nossa sociedade.

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Estudar como nossa sociedade tem gerado os espaços é fundamental para entendê-la. Porém

não se entende a sociedade brasileira ao apenas tomar-se como referência os espaços

produzidos pela elite e para a elite.

Nesse sentido, se faz necessário introduzir a pesquisa e a experimentação, em nossos cursos,

dos espaços produzidos pela maioria da população pobre. Não se trata nem de formar

profissionais plenamente aptos apenas para essa tarefa, mas ao menos termos profissionais

cidadãos, com uma visão menos segmentada do mundo.

“A cada sociedade, a educação deve ser concebida para atender, ao mesmo tempo, ao interesse social e ao interesse dos indivíduos. É da combinação desses interesses que emergem os seus princípios fundamentais, e são estes que devem nortear a elaboração dos conteúdos do ensino, as práticas pedagógicas e a relação da escola com a comunidade e com o mundo”.

SANTOS, Milton no artigo “Deficientes cívicos” in O pais distorcido, p.149

O que fazer para sair da cegueira? Como ensinar cegos a enxergarem o pavoroso processo de

crescimento de nossas cidades?

Temos duas formas de atuação: 1) a direta, pela prática profissional propositiva, enfrentando as

contradições existentes e resistindo a favor dos usuários dos projetos, apesar das pressões

contrárias. Seguindo a lição de Carlos Nelson3, que “trabalhava com” e sempre se recusou a

“trabalhar para” uma determinada comunidade. Por essa via consegue-se pesquisar e rever

caminhos, produzir experimentação e repertório local, evitando-se as “idéias fora do lugar”. 2)

pelo caminho do ensino. Talvez a via mais lenta porém mais eficaz, na medida em que a

formação de cidadãos é a única certeza de termos no futuro uma sociedade mais justa.

“Nas escolas de arquitetura e urbanismo, estuda-se “arquitetura”, estuda-se “urbanismo” e “planejamento urbano” e, em apenas algumas lacunas ou disciplinas especiais, dependendo da sensibilidade e engajamento de um ou outro professor, estuda-se a “moradia social”. Ela é vista como algo à parte da grande arquitetura e do grande urbanismo.”

MARICATO, p132, 2001

3 Carlos Nelson Ferreira dos Santos, foi professor titular da scola de Arquitetura e Urbanismo da

Universidade Federal Fluminense. Autor do livro “A Cidade como um jogo de Cartas’ entre outros 5 livros e

30 artigos publicados.

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Essa visão segmentada no ensino, apontada por MARICATO4, leva a uma visão parcial do mundo

como se fosse possível o ensino de um urbanismo do rico e outro do pobre. Ao aceitar essa

situação estaremos apenas reforçando as distorções existentes em nossa sociedade. É por meio

do ensino que podemos formar cidadãos capazes de entender e enfrentar a realidade. O ensino

de arquitetura e urbanismo tem a responsabilidade de formar cidadãos mais preparados para

enfrentar as contradições existentes na produção do ambiente construído.

Para isso, os alunos têm de: 1) conhecer o problema desde cedo, vivenciar, refletir, analisar,

perder preconceitos e propor intervenções. 2) ter durante o curso oportunidade de acumular

experiência e repertório. 3) sair da universidade como um cidadão e não apenas como uma força

de trabalho preparada para o mercado. O corpo docente deve rever suas propostas para atender

de fato as necessidades da sociedade brasileira.

“É nesse campo de forças e a partir desse caldo de cultura que se originam as novas propostas para a educação, as quais poderíamos resumir dizendo que resultam da ruptura do equilíbrio, antes existente, entre uma formação para a vida plena, com busca do saber filosófico, e uma formação para o trabalho, com a busca para o saber prático.... Hoje sobre o pretexto de que é preciso formar os estudantes para obter um lugar no mercado de trabalho afunilado, o saber prático tende a ocupar todo o espaço da escola, enquanto o saber filosófico é considerado como residual ou mesmo desnecessários, uma prática que, a médio prazo, ameaça a democracia, a república, a cidadania e a individualidade”.

SANTOS, Milton no artigo “Deficientes cívicos” in O pais distorcido, p.149

Com o atual sucateamento do ensino e surgimento de um grande número de faculdades

particulares, a grande maioria dessas escolas tem clientes e não alunos e formam consumidores

e não cidadão. Portanto as novas propostas para o ensino deverão surgir principalmente das

universidades públicas, que têm um maior compromisso com a sociedade que as mantém.

“Corremos o risco de ver o ensino reduzido a um simples processo de treinamento, a uma instrumentalização das pessoas, a um aprendizado que se exaure precocemente ao sabor das mudanças rápidas e brutais das formas técnicas e organizacionais do trabalho exigido por uma implacável competitividade...A escola deixara de ser o lugar de formação de verdadeiros cidadãos e tornar-se-á um celeiro de deficientes cívicos... O debate deve ser retomado pela raiz, levando a educação a reassumir aqueles princípios fundamentais com que a civilização assegurou a sua evolução nos últimos séculos – os ideais de universalidade, igualdade e progresso –, de modo que ela possa contribuir para a construção de uma globalização mais humana, em vez de aceitarmos que a globalização perversa, tal como agora se verifica, comprometa o processo de formação das novas gerações”.

SANTOS, Milton no artigo “Deficientes cívicos” in O pais distorcido, p.149

4 Ermínia Maricato, professora titular da FAUUSP, coordenadora do curso de pós-graduação na FAUUSP,

coordenadora do Laboratório da Habitação e assentamentos Humanos da FAUUSP.

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É necessário reverter esse caminho, e isso se faz com propostas concretas.

A maioria dos procedimentos e métodos de ensino na área de arquitetura e urbanismo tem um

caráter pessoal e dependente das habilidades específicas de cada professor. Os procedimentos

adotados raramente são divulgados ao corpo docente, portanto além de ser necessário rever as

práticas acadêmicas que visam estar em sintonia com a realidade da sociedade, é essencial a

sua divulgação, publicação para que um maior número de professores tome conhecimento das

novas práticas.

Numa rápida pesquisa a ser aprofundada, feita para este trabalho já percebe-se diferentes

correntes: 1) A prática abstrata, isto é, propõe-se um trabalho com habitação social porém em

nenhum momento o curso promove uma visita ao lugar (favela, cortiço). Esta prática acaba por

acirrar o preconceito uma vez que não aproxima o aluno da realidade. Por essa via não se

formam cidadãos. 2) A prática analítica, isto é, o curso promove milhares de análises por meio de

leituras e visitas ao lugar, porém o resultado é um discurso vazio, sem comprometimento com

propostas concretas, perde-se portanto a possibilidade de acumular repertório, que gera uma

interrogação sem solução. Entende-se que os instrumentos de analise devam ser colocados em

prática para que se perceba a realidade que até o momento se desconhece, portanto a análise

aprofundada é essencial, porém não leva à prática propositiva. Aqui até se forma o cidadão, mas

não o cidadão arquiteto-urbanista. 3) A prática dirigida, isto é, fazem-se leituras, visita-se o local

de estudo para depois desenvolver as propostas embasadas pelo discurso. Por essa via, formam-

se arquitetos-urbanistas com uma visão da realidade.

É a partir da prática dirigida que proponho caminhar para uma prática holística, pela qual o aluno

aprende com seus erros e preconceitos por uma seqüência de propostas. Para que os

preconceitos – estéticos, culturais e sociais – venham à tona e sejam percebidos pelos alunos,

não podemos num primeiro momento dirigir o discurso. Nesse caso o curso é dividido em três

momentos: 1) Visita-se rapidamente o lugar de intervenção e, sem a interferência dos

professores, produz-se uma proposta de intervenção. 2) Promovem-se leituras, seminários em

sala de aula, visitas ao local e principalmente entrevista com moradores. 3) Desenvolvem-se

novos projetos.

Esta prática tende a criar uma tensão entre a primeira e última proposta e ensina o aluno a rever

constantemente suas idéias, entender seus próprios preconceitos e não achar que existe um

único caminho natural para uma determinada intervenção.

E na prática profissional? Como transformar o ambiente construído? Que caminhos são

apontados? Os conjuntos habitacionais são uma solução ou um problema? Será correto optar por

remoção de favelas desprezando todo o esforço, hierarquias de valores e cultura da população

local? A realidade pede para ser entendida e revista.

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Essas dúvidas quanto aos modelos de intervenções vêm acompanhando as propostas de

governo durante todo o século XX, porém sem muita atenção por parte do próprio governo.

Tomando como exemplo a cidade do Rio de Janeiro, perceberemos que uma análise mais

sistemática sobre o tema é feita somente na década de 60, pelo o sociólogo José Arthur Rios5, a

pedido do jornal O Estado de S. Paulo, para criticar os recursos gastos na construção de Brasília.

Em 1960, José Arthur Rios faz as primeiras pesquisas sobre favelas sob orientação do Padre

Lebret6 na cidade do Rio de Janeiro. O padre dominicano Joseph Lebret desenvolveu métodos de

pesquisas e fundou o Movimento Economia e Humanismo. José Arthur Rios coordenava o

escritório do Movimento no Rio de Janeiro. É convidado a assumir o Serviço Social do governo

Lacerda, onde atuou na urbanização de favelas por quase dois anos. Com sua saída, Sandra

Cavalcanti7 , que era partidária das remoções, assume o cargo de secretária de Serviços Sociais.

Em viagem ao Rio de Janeiro em 1968, John Turner8 visitou conjuntos habitacionais e favelas

cariocas, na ocasião, pronunciou uma frase que ficou famosa: “Mostraram-me soluções que são

problemas e problemas que são soluções”.

Uma geração de urbanistas foi influenciada pelos pensamentos de John Turner que divulgou a

perspectiva do urbanismo “de baixo para cima”, ou seja, a partir dos moradores.

Ainda no início dos anos da ditadura (período entre 1964-1984) surgem velhas “experiências

pioneiras” com urbanização de favelas como a do escritório Quadra9 em Brás de Pina na cidade

do Rio de Janeiro.

5 José Arthur Rios: formou-se na primeira turma do curso de Ciências Sociais da antiga Faculdade Nacional

de filosofia da Universidade do Brasil. Mestrado nos Estados Unidos. Atuou na coordenação de Serviços

Sociais do governo de Carlos Lacerda. Sua atuação na área de favelas o leva a ser considerado o primeiro

sociólogo/pesquisador desse campo.

6 Em 1956 Lebret montou escritório em São Paulo e realizou pesquisa sobre a cidade, encomendada pelo

prefeito Toledo Pisa, estudo considerado um marco no planejamento urbano da cidade e dos municípios da

área metropolitana. (LEME, 2000)

7 Sandra Cavalcanti: Educadora e política. Foi vereadora pelo Distrito Federal, deputada estadual pela

Guanabara e secretária de Serviços Sociais do governo de Carlos Lacerda.

8 John Turner: arquiteto e urbanista que desenvolveu durante anos um trabalho nas barriadas de Lima, no

Peru. “Habitação de baixa renda no Brasil: políticas atuais e oportunidades futuras”. Revista Arquitetura,

1968.

9 Quadra – Escritório de Carlos Nelson Ferreira dos Santos, Sylvia Wanderley, Rogério Aroeira Neves e

Sueli de Azevedo.

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A intervenção de 1968 em Brás de Pina foi um marco na história das políticas habitacionais no

Rio de Janeiro, sobretudo porque se contrapôs a uma tendência autoritária de erradicação das

favelas, prática incentivada por Sandra Calvalcanti, secretária do Serviço Social a partir de 1963,

na gestão de Carlos Lacerda10.

Carlos Nelson, na ocasião do trabalho de Brás de Pina, fez uma importante inversão no

tratamento vigente sobre o pobre e os favelados: “Primeiro, transformou-os de objeto em sujeitos

do trabalho de pesquisa. Segundo, passou a dar, aos investimentos feitos pelos moradores nas

favelas, importância do ponto de vista patrimonial e arquitetônico. Terceiro, reconheceu que os

favelados sabem o que querem, têm suas prioridades inclusive simbólicas; isso é fundamental no

seu pensamento”. (FREIRE, 2002).

Portanto a idéia da urbanização das favelas em contraposição a sua urbanização já é uma idéia

antiga. Porém é na década de 80 que se fortalece a tendência de urbanização. É durante essa

década, a partir da atuação de Brizola11, que as favelas do Rio de Janeiro passam a ter um

caráter de permanência com a maioria das edificações em alvenaria. Porém, a essa altura, as

favelas tinham praticamente dobrado em tamanho e número. A mudança da tipologia das

edificações possibilitou uma verticalização e consolidação de várias favelas cariocas.

Uma das razões desse forte crescimento é a falta de uma política habitacional clara a

começar pela própria legislação urbana criada para servir ao setor imobiliário. A

Legislação Urbana, como a conhecemos, tornou se um instrumento destinado a poucos,

vistos os dados apresentados no início deste trabalho.

“No Brasil, as críticas já desenvolvidas sobre a legislação de zoneamento e sua aplicação permite chegar a algumas conclusões: 1) ela está bastante descaracterizada com grande parte das edificações e seu uso, fora da lei; 2) dificulta a ampliação do mercado privado em direção às camadas de mais baixa renda; 3) desconsidera a questão ambiental; 4) é de difícil compreensão e aplicação; 5) ignora as potencialidades dadas aos arranjos locais e informais; e, finalmente, 6) contribui com a segregação e a ilegalidade”.

MARICATO, p 114

Uma Legislação Urbana inclusiva deveria permitir a adoção de diferentes padrões urbanos, nos

quais por exemplo, os recuos, afastamentos, uso dos solos, tipologias de áreas livres de

edificação poderiam considerar outras formas de malha urbana, optando-se inclusive pela

valorização dos espaços dos pedestres.

10 Governador do Estado da Guanabara entre 1960 e 1965.

11 Leonel de Moura Brizola, Governador do Rio de Janeiro em 1982-1986 e 1990-1994.

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Se formos analisar apenas pelos aspectos físicos e funcionais – que deveriam ser função de uma

legislação urbana – as tipologias dos espaços livres existentes nas favelas são encontradas em

nossas cidades coloniais, como é o caso de Marechal Deodoro, cidade colonial localizada em

Alagoas, e a favela de Cantagalo, no Rio de Janeiro.

Fig.5- Marechal Deodoro12, Alagoas. Fig. 6-Favela do Cantagalo13, Ipanema, Rio de Janeiro.

Fotos do autor

Quanto à tipologia da arquitetura, encontramos na favela muito da linguagem universal impressa

no padrão modernista.

Figuras 7 e 8 - Favela do Pavão-Pavãozinho, Copacabana, Rio de Janeiro.

Fotos do autor

12 Cidade de Marechal Deodoro em Alagoas, fundada no séc XVII.

13 Favela de Cantagalo, primeiras ocupações datadas do início do séc. XX.

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Entretanto, uma simples leitura espacial de uma área invadida não revela parâmetros suficientes

para uma ação propositiva. Os processos de ocupação, por exemplo, seguem uma lógica, física,

histórica e cultural. A leitura desses processos ajuda a perceber as hierarquias de valores, assim

como o nível técnico-construtivo de seus ocupantes. Uma intervenção numa área sem conhecer

os processos que lhes deram origem está fadada ao desastre ou abandono.

Pudemos analisar os diferentes processos de ocupação, ocorridos no Morro do Pavão em

Ipanema, por ocasião da elaboração da etapa de diagnóstico do programa municipal da cidade do

Rio de Janeiro – Programa Favela-Bairro14 – para a Favela de Cantagalo.

Figura 9 - O esquema acima foi traçado a partir das anotações do Consultor e Arquiteto Manoel Ribeiro para ilustrar o histórico de ocupação da área.

Para evidenciar as origens das tipologias construídas, desenvolvemos ainda os esquema

da ocupação por corte e aterro em contraponto às áreas rochosas em que a ocupação de deu

pela utilização do pilotti.

14 O Programa Favela-Bairro foi concebido pelo arquiteto Sergio Magalhães e posto em prática a partir de

1994, visando atender as favelas de médio porte que possuem de 500 a 2500 domicílios. Favelas desse

porte representam um terço das favelas cariocas ou 60% da população favelada do Rio de Janeiro.

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Figura 10 - Corte e aterro Figura 11- Ocupação em área rochosa

Esquemas das fases de ocupação por corte e aterro:

Figura 12 - 1a Fase da ocupação

Figura 13 - 2a Fase da ocupação

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Figura 14 - 3a Fase da ocupação

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Esquema das fases de ocupação em terreno rochoso:

Figura 15 - 1a Fase da ocupação

Figura 16 - 2a Fase da ocupação

Figura 17 - 3a Fase da ocupação

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O crescimento de favelas e ou loteamentos irregulares de caráter permanente é observado

em todas as grandes cidades brasileiras, portanto não é um fenômeno local, reforçando a tese de

que o ambiente construído é o reflexo das relações sociais nacionais. Sendo assim, fica claro que

a questão da moradia não é um problema local, mas sim da Nação.

“O problema se localiza nas cidades, mas é equívoco tratá-lo como questão urbana. Equívoco e enganoso. A questão é muito mais do que urbana: é urbana; é rural; é local, estadual e federal; é nacional e internacional. Podemos dizer que estruturalmente a crise é muito mais uma crise na cidade do que uma crise da cidade. Trata-la funcionalmente, com remédios simplesmente tópicos, pode fazer efeito no curtíssimo prazo, mas levará a uma crise maior”.

SANTOS, Milton no artigo “Quem tem medo da cidade” in O pais distorcido, p.125

São de se estranhar, portanto, discursos pós-modernos que vêem na urbanização a solução do

problema, sem levar em consideração, sem questionar o perverso processo que gerou o

ambiente construído de nossas cidades. Sergio Magalhães, o mentor do programa Favela-Bairro,

em entrevista concedida para a publicação do livro “Sobre a Cidade” dá mostra dessa crença e

desse descaso ao afirmar:

“É verdade que cresceu o número de habitantes em favela, mas, ao mesmo tempo, as favelas melhoraram”.... É a capacidade da sociedade carioca de empreender. O carioca é empreendedor. Ele é capaz de criar alternativas, mesmo com grandes dificuldades

MAGALHÃES, Sergio, p124 - p135, 2002-08-03

Essas afirmações levam a crer ser possível a resolução do problema a partir de um esforço local.

Novamente a cegueira impede de ver o real problema.

Favelas, cortiços, loteamentos irregulares não são deformações estéticas, portanto a solução não

é “levar o belo à favela”. Pior ainda é tentar usar os mesmos pressupostos estéticos importados,

muitas vezes utilizados erroneamente na malha urbana formal. Também não é possível

considerar uma intervenção ideal estando esta conivente com poderes paralelos.

Assim como afirma José Arthur Rios, estamos de acordo que qualquer intervenção, local ou mais

ampla, é válida no sentido de levar a infra-estrutura urbana para uma determinada área até o

então segregada da malha urbana, porém não temos o direito de acreditar que essa atuação

resolverá o problema urbano e ou social.

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Figura 18 – Favela Parque Royal em 1993 Figura 19 – Favela Parque Royal15 em 1997

Nesse sentido, a atuação da prefeitura do Rio de Janeiro, por falta de uma política habitacional

consistente, é oportuna na medida que vem desde 1994 fazendo melhoras pontuais ao mesmo

tempo em que vem formando uma nova geração de arquitetos-urbanistas para enfrentar o

problema, ou ao menos, suas causas.

Não podemos esquecer que a ação local é muito frágil: sem um mínimo planejamento as novas

áreas incluídas nos sistemas de água, esgoto, luz, telefonia, acabam por sobrecarregar os

sistemas já precários ou acabam sem solução por depender de intervenções fora da área

delimitada para se intervir.

Muitas vezes com um discurso correto, o despreparo em entender as questões mais amplas leva

a melhorar apenas a fachada, a divulgar receitas e continuar a transmitir a cegueira.

Não temos mais tempo, ver é preciso.

15 Fotos tiradas do livro, Cidade Inteira: A política habitacional da cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,

1999.

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GROSTEIN, Marta Dora e MEYER, Regina M. Prosperi. “Os planos diretores e a habitação social

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MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis, Vozes, 2001.

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do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.

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