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Ensaios Literários – Volume I

B. Alessa Rio de Janeiro/Rio de Janeiro: Edição Independente, 2011. 28 p. Rio de Janeiro 2011. Todos os direitos reservados Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons

Capa: Axills Revisão e Formatação: Alessandra Bertazzo Produção Editorial: Samuel Achilles 2011 Trovart Publications

Page 3: ENSAIOS LITERÁRIOS VOLUME I (Alessa B.) Trovart Publications

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Ensaios Literários – Volume I

APRESENTAÇÃO

A série Ensaios Literários tem como objetivo trazer ao público interessado em Literatura, estudos e debates teóricos e críticos em torno das mais variadas matizes que compõem uma obra literária.

Entende-se por matizes os temas, motivos, símbolos, arquétipos, elementos estruturais e todos os recursos que o poeta ou escritor busca tanto no plano particular como no plano geral de sua existência para construir seu universo ficcional.

Assim, a série compõe-se de ensaios que exploram não só o campo da prosa, como também o da poesia, procurando aprofundar a visão do leitor acerca de tudo o que envolve a concepção de um texto literário, bem como de suas diversas leituras.

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Ensaios Literários – Volume I

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.............................................................................................. 3

AMOR É FOGO QUE ARDE SEM SE VER ................................................ 5

SONETO DA FIDELIDADE ............................................................................ 6

PREFÁCIO .......................................................................................................... 7

CAMÕES & VINÍCIUS: DO SÉCULO XVI AO SÉCULO XX ................... 8

OS POEMAS - ESTUDO TEMÁTICO E ESTRUTURAL ........................... 14

A BUSCA DA INTERTEXTUALIDADE ....................................................... 23

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................ 28

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Ensaios Literários – Volume I

AMOR É FOGO QUE ARDE SEM SE VER Amor é fogo que arde sem se ver

É ferida que dói e não se sente

É um contentamento descontente

É dor que desatina sem doer É um não querer mais que bem querer

É solitário andar por entre a gente

É nunca contentar-se de contente

É cuidar que se ganha em se perder É querer estar preso por vontade

É servir a quem vence o vencedor

É ter com que nos mata lealdade Mas como causar pode seu favor

Nos corações humanos amizade

Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

(Luiz Vaz de Camões)

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Ensaios Literários – Volume I

SONETO DA FIDELIDADE De tudo, ao meu amor serei atento

Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto

Que mesmo em face do maior encanto

Dele se encante mais meu pensamento Quero vivê-lo em cada vão momento

E em seu louvor hei de espalhar meu canto

E rir meu riso e derramar meu pranto

Ao seu pesar ou seu contentamento E assim, quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure (Vinícius de Moraes)

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Ensaios Literários – Volume I

PREFÁCIO

O termo soneto vem do italiano sonetto, originário do provençal sonet,

de son, que significa melodia, canção, tendo como principal característica o

forte conteúdo amoroso-sentimental. Sua origem data do século XII e pode-

se defini-lo como uma composição poética, que reúne quatorze versos

dispostos em dois quartetos e dois tercetos, apresentando o seguinte

esquema de rimas: abba / abba / cde / cde, conhecido como petrarquiano,

largamente utilizado pelo poeta estilnovista italiano Francesco Petrarca. O

metro mais comumente utilizado é o decassílabo.

A partir dessa definição, pretende-se no presente trabalho desenvolver

uma análise literária, baseada na intertextualidade ou comparação entre

dois poemas a saber: Amor é fogo que arde sem se ver, de Luiz Vaz de

Camões, poeta classicista do século XVI e Soneto da Fidelidade, de Vinícius

de Moraes, poeta modernista do século XX, já que ambos também se

utilizaram largamente dessa forma de composição poética em suas obras.

Embora os poetas em questão tenham vivido em épocas que se separam

por pelo menos quatro séculos, há entre eles algo em comum, além do gosto

pelo cultivo do soneto: a temática dos mesmos, que como se sabe tem uma

origem sentimental. Assim, ambos cultivaram em suas obras, o lirismo

amoroso, ou seja, a temática do amor, que marca fortemente o conjunto

delas e as aproximam de tal maneira, que é como se dialogassem entre si.

Partindo dessa idéia, pretende-se expor e analisar aqui os pontos de

semelhança e de divergência entre os poemas citados anteriormente, a

fim de buscar e promover essa intertextualidade, uma vez que ambos têm

como tema o sentimento amoroso, embora enfocado de maneira diversa, isto

é, em Camões sob uma perspectiva mais abrangente e em Vinícius numa

esfera mais particularizada, mas mantendo a mesma linha de pensamento: a

reflexão filosófica.

Mas, antes disso, procurar-se-á traçar um perfil da obra de cada um dos

poetas aqui analisados, a fim de que se conheça as principais

características, influências e elementos que marcam suas respectivas

produções de gênero poético.

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Ensaios Literários – Volume I

CAMÕES & VINÍCIUS: DO SÉCULO XVI AO SÉCULO XX

Luiz Vaz de Camões foi um poeta de inspiração notavelmente

estilnovista e petrarquizante, ou seja, herdeiro direto e imitador, pode-se

dizer assim, da poesia lírica de Francesco Petrarca, a qual é fortemente

marcada pelo fundamento religioso e filosófico, no que se refere à idealização

do amor e da mulher amada.

O sentimento amoroso na lírica petrarquiana é visto como meio de

elevação espiritual e descrito como algo pontuado de contradições na

alma do ser enamorado, conforme ilustra o poema, Pace non trovo e non

ho da far guerra (Paz não encontro e não me quadra a guerra), no qual o

soneto camoniano, foi inspirado. A mulher amada ganha status de criatura

divina, celestial e por isso, inatingível ou em outras palavras, transforma-se

na mulher-anjo que inspira sentimentos de humildade.

Entretanto, ao contrário de Petrarca, que concebia a mulher amada

como um ser angelical e portanto distante de ser alcançado, mas apenas

admirado e venerado como um santo no altar, Camões já a considerava num

plano mais terreno e carnal, mais perto de ser alcançado, embora também

idolatrasse suas virtudes, e a considerasse também como um meio de atingir

a transcendência.

Verifica-se ainda na lírica camoniana influências de ordem filosófica, as

quais seriam baseadas nas leituras de Platão (Banquete), Marcílio Ficino

(De amore), Leão Hebreu (Dialoghi d’amore), entre outros, de onde o poeta

teria retirado suas concepções acerca do sentimento amoroso, tornando-

se a filosofia do amor platônico uma fonte inesgotável de inspiração para

discorrer, a partir de uma visão centrada mais no racional do que no

emocional, sobre os problemas da vida espiritual ou contemplativa,

servindo “de pretexto para o enunciado de alguns conceitos sobre a Beleza e

os próprios fins do Homem”. (CUNHA; PIVA. 1980, p. 7)

Transparece também na lírica de Camões um forte sentimento de

apego e amor à pátria, proveniente das viagens que empreendera para Ceuta

e pelo Oriente, a fim de servir ao exército e fugir da vida de miséria e boêmia

que levava em Portugal, regressando à terra natal depois de dezessete anos de

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Ensaios Literários – Volume I

“exílio”.

Desse modo, é possível dizer que a temática da lírica camoniana se

distribui com base em três motivos fundamentais: “o amor, o exílio e o

conflito entre a formação acadêmica e sua experiência individual”, os quais,

algumas vezes, se confundem entre si. (CUNHA; PIVA. 1980, p. 7)

Sua lírica, ou de maneira geral, toda sua poesia que fala do amor e seus atropelos, é o ponto culminante de uma tradição que surgira no final da Idade Média e que ele renovaria. Poeta genial, Camões influenciou direta ou indiretamente a poesia amorosa de língua portuguesa. Seu impacto ecoou no Barroco, no Arcadismo, no Romantismo e até no Modernismo. Os sonetos de Vinícius de Moraes, por exemplo, tanto quanto a ironia amorosa de Drummond de Andrade, manifestam a herança camoniana. (...) E tão profundamente Camões se embebeu de sua época que conseguiu não apenas exprimi-la, mas transcendê-la, tornando-se paradigma para as gerações e épocas posteriores. (RODRIGUES, 1998, p. 7-8)

Não se pode deixar de frisar, entretanto, que Camões além de um

grande poeta lírico foi também poeta épico, sendo considerada sua obra-

prima, a epopéia clássica, Os Lusíadas, que celebra a honra e a bravura dos

portugueses, quando da viagem de Vasco da Gama em busca de um caminho

para as Índias pelo Ocidente, ou seja, tem como pano de fundo a expansão

marítima de Portugal, entre os séculos XV e XVI, período em que vigorava nas

artes e na literatura, o Renascimento.

O Renascimento caracterizou-se pela eclosão de manifestações

artísticas, filosóficas e científicas do novo mundo urbano e burguês,

tendo como base subsídios buscados na cultura greco-romana e por isso,

pode ser entendido como o “primeiro grande movimento cultural burguês

dos tempos modernos”. (VICENTINO, 2002, p. 189)

O impulso cultural do Renascimento revigorou valores opostos aos dos homens medievais. Em todos os campos do saber emergiu uma vitalidade cultural que rompia com os tradicionais limites. Chega-se até a rever, com dificuldades imagináveis, a teologia. A filosofia passa a ser platônica e a idéia terrena faz nascer uma ciência fundamental: a política. BARDI (apud VICENTINO, 2002, p.190)

O pequeno panorama aqui apresentado do contexto histórico da época

em que viveu Camões e do lirismo presente em sua obra é importante na

medida em que a partir desses elementos será possível fazer uma

aproximação de seu estilo lírico com o de Vinícius de Moraes e a identificar

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Ensaios Literários – Volume I

características notavelmente camonianas em seu lirismo amoroso, mesmo

havendo um intervalo de quatro séculos entre eles.

Não se pode negar que muita coisa mudou durante todo esse

tempo, e portanto, vamos encontrar Vinícius de Moraes (o poetinha), apelido

carinhosamente dado pelos amigos e colegas de ofício já em pleno século XX

(época em que se deu um importante movimento de renovação artística e

literária no país, a Semana de Arte Moderna de 22), desenvolvendo suas

atividades não só literárias, mas também de compositor, já que foi também

autor de grandes canções que fizeram e fazem sucesso na música popular

brasileira.

No entanto, são nos sonetos que encontrar-se-á toda a intensidade de

seu lirismo amoroso e a retomada do estilo camoniano não só no que diz

respeito à construção do soneto, mas principalmente na temática, numa

época em que a Literatura Brasileira passava por grandes renovações e

poetas como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João

Cabral de Melo Neto defendiam uma poética avessa ao sentimentalismo e

centrada em elementos da realidade exterior, além do uso da forma livre, o

que não impediu que os dois primeiros cometessem os seus sonetos e que tal

composição poética surgisse revigorada.

Nesse sentido, pode-se dizer que Vinícius representou de certa maneira

uma oposição ao que estava em moda na época, uma vez que trazendo

elementos não só da época camoniana, mas também do Romantismo,

Simbolismo e Parnasianismo para a sua poesia, devidamente combinados

com “a liberdade, a licença e o esplêndido cinismo dos modernos”, tornou-se

“uma força criadora de natureza sem precedentes em nossa Literatura”,

conforme afirmou o próprio Manuel Bandeira. (in COUTINHO, 1987, p. 711)

Desse modo, é possível identificar na obra de Vinícius de Moraes duas

fases distintas, assim classificadas pelo próprio poeta: a fase do sublime e a

fase do cotidiano. Na primeira fase, mais voltada para a reflexão pessoal e ao

lirismo amoroso, o poeta demonstra uma preocupação de ordem religiosa

vinculada a uma consciência torturada pela precariedade da existência, o

que o leva a buscar a transcendência mística, inspirando-se na tradição

bíblica.

Mais tarde o poeta incorpora em sua poética um intenso sensualismo, o

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Ensaios Literários – Volume I

qual entrará em conflito com esse sentimento religioso tão fortemente

cultivado. Além disso, os versos ganham em liberdade expressiva e

extensão, simbolizando, pode- se dizer assim, o alargamento do próprio “eu”,

na expectativa de superar as contradições matéria/espírito e

humano/divino. Nessa altura, a figura feminina já começa a ganhar seu

espaço na poesia de Vinícius, passando a ocupar um lugar primordial.

Assim, inicialmente ela será envolta numa aura de misticismo,

“transformando- a num ser superior, de onde provém e para onde

convergem todas as formas elevadas de existência; com isso atribui ao amor

a condição de experiência-limite, capaz de resgatar o homem de sua

precariedade”. (MOISÉS, 1980, p. 93)

Tal concepção remete imediatamente ao platonismo amoroso presente

na poética de Camões, caracterizado por uma profunda idealização da

mulher, além do amor espiritual cultivado pelos românticos, combinados

com a presença do sensualismo e erotismo, mas não no sentido de perdição

da carne e sim como dimensão integrada aos apelos espirituais, em invejável

harmonia, o que lhe confere inegável autonomia e originalidade.

Segundo, Otto Lara Rezende, seus sonetos:

correm mundo e freqüentam obrigatoriamente as coletâneas do gênero e conquistaram com o favor do público o direito à permanência, como é o caso do Soneto da Fidelidade, que atravessa impávido em decassílabos espontâneos, ainda que de sabor clássico ou camoniano, o que dá na mesma, os escolhos de um tema eterno. (in COUTINHO, 1987, p. 722)

Percebe-se assim através dos elementos e tendências aqui

apresentadas, tais como: a idealização da figura feminina e a idéia de

religiosidade intimamente ligadas à reflexão filosófica em torno do

sentimento amoroso, a grande identificação que a poesia lírica de Vinícius de

Moraes tem com a de Camões, que por sua vez, bebeu na fonte petrarquiana.

E, segundo o próprio Vinícius de Moraes:

A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana. A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo, o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro. O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e de ferir-se, o ser

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casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes da emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre. (in COUTINHO, 1987, p. 719)

Quanto a segunda fase da obra do poeta, a qual ele classifica como

cotidiano, pode-se chamá-la como a faceta mais moderna de sua poesia, já

que se manifesta “a preferência pelo verso curto, incisivo, e o constante

recurso ao humor e à ironia” aliados ao “apelo ao cotidiano e a aparente

banalidade da existência diária”, expressos por uma “linguagem coloquial,

enxuta, mais simples e direta, em que a espontaneidade será um triunfo

imediato e não um árduo resultado obtido através do esforço retórico e

teatral”. (MOISÉS, 1980, p. 94)

Pode-se dizer que a partir daí se dá uma sutil metamorfose ou uma

fusão das duas fases em sua poética, caracterizando-se por apresentar

aspectos da realidade circundante, ou seja, “todo um universo real e palpável

ganha lugar nas atenções do poeta, dividindo o espaço da consciência com

as inquietações interiores”. (MOISÉS, 1980, p. 94)

Mais tarde, Vinícius de Moraes parte para a carreira de compositor ao

lado de grandes músicos do cenário musical brasileiro, formando parcerias

bem sucedidas e inesquecíveis, o que endossa ainda mais a sua genialidade

como poeta das coisas do amor, confundindo-se o poeta-compositor com o

compositor-poeta, além de promover um casamento dos mais produtivos

entre a literatura e a música.

Assim sendo, através do breve panorama da obra lírica desses dois

grandes poetas e gênios da Literatura, aqui apresentados, em suas

respectivas épocas e das respectivas afinidades entre elas, buscar-se-á

traçar uma análise intertextual em nível de estruturação e conteúdo entre

dois dos seus mais célebres sonetos, já mencionados anteriormente.

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OS POEMAS - ESTUDO TEMÁTICO E ESTRUTURAL

Primeiramente, o que se percebe no soneto de Camões, “Amor é fogo que

arde sem se ver”, é uma tentativa um tanto incansável e metaforizada de

buscar uma definição para o sentimento amoroso, já que a repetição ou

anáfora (recurso poético, que se caracteriza pela sucessão de um mesmo

vocábulo no início de versos) do verbo “ser”, empregado na terceira pessoa

do presente do indicativo (é), torna-se uma constante ao longo dos onze

versos iniciais do poema: Amor é fogo que arde sem se ver

É ferida que dói e não se sente

É um contentamento descontente

É dor que desatina sem doer

É um não querer mais que bem querer

É solitário andar por entre a gente

É um não contentar-se de contente

É cuidar que se ganha em se perder

É querer estar preso por vontade

É servir a quem vence o vencedor

É ter com quem nos mata lealdade

Diante disso, pode-se inferir que a ênfase dada ao verbo em torno do

substantivo “amor”, serve para reforçar a idéia que está sendo desenvolvida,

ou seja, a reflexão filosófica em torno de um sentimento inerente a toda

espécie humana e a complexidade que o envolve. Essa complexidade é

exposta através de definições que expressam um sentido de oposição, mas

que ao mesmo tempo mantêm uma relação próxima entre si, caracterizando

um paradoxo, conforme se observa nos quatro primeiros versos do poema

(em itálico).

Nota-se ainda, em termos de estrutura a presença de rimas

interpoladas e emparelhadas nos quartetos, já que segue o esquema ABBA e

alternadas nos tercetos, seguindo a ordem CDC/DCD, sendo, portanto, uma

variação da origem clássica “abba/abba/cde/cde”. Além disso, é possível

observar uma variação de rimas pobres (vocábulos que pertencem à

mesma classe gramatical, como os verbos “ver” – “doer”, nos versos 1 e 4)

e ricas (vocábulos que pertencem à classes gramaticais diferentes, como o

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Ensaios Literários – Volume I

verbo “sente” e o adjetivo “descontente”, nos versos 2 e 3) ao longo do soneto.

A fim de conferir musicalidade ao soneto, observa-se ainda a coincidência ou

semelhança de letras no final dos vocábulos que rimam entre si, sendo,

portanto, classificadas como rimas consoantes (sublinhado) e a assonância

da vogal “e” ao longo do poema (em negrito sublinhado).

A combinação desses elementos imprime o tom melodioso, sonoro,

harmônico e a musicalidade que marcam os versos, além de ressaltar o

conteúdo fortemente sentimental do poema, o que nos faz voltar ao conceito

de soneto, que se define por ser uma composição poética de ordem

sentimental e muito próxima da música, já que o termo também significa

canção.

Conforme já se falou anteriormente o poema constitui-se numa série de

tentativas de definição para o amor, começando pelo primeiro verso, que o

define como um “fogo que arde sem se ver”, isto é, uma agitação interior, um

entusiasmo, um ardor que envolve a alma do ser envolto nas contradições do

sentimento. Nesse sentido o vocábulo “fogo” pode ser entendido como uma

energia, uma luz que adentra o espírito humano e vai se fixar no coração,

que é segundo os apaixonados e poetas o local onde habita o “amor”. É,

portanto, do coração, o órgão responsável pelas emoções humanas, que esse

“fogo” irradiará e queimará metaforicamente a alma envolta em suas

“chamas”, mas que não se pode ver, por não ser algo que acontece em nosso

mundo concreto.

Assim, ao longo da primeira estrofe o poeta vai se ocupando em definir

o sentimento amoroso, baseando-se em suas reflexões e talvez, em

experiências vividas, o que o leva a também defini-lo e compará-lo a uma

“ferida que dói e não se sente”, no segundo verso, denotando mais uma

contradição, uma vez que se trata de uma ferida da alma e não física, e por

isso, dói também, mas não se sente no sentido real, físico que envolve uma

ferida da carne.

Continuando a seqüência, o amor é também definido como um

“contentamento descontente”, exprimindo mais uma de suas contradições,

visto que ao mesmo tempo em que tal sentimento traz a expectativa de

um estado de felicidade, traz igualmente dor e sofrimento quando não

correspondido da maneira que se espera. E, por isso, é também definido

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Ensaios Literários – Volume I

como uma “dor que desatina sem doer”, pois essa mistura de sensações tão

contraditórias dentro da alma humana gera inquietações e uma espécie de

dor emocional num sentido metafórico, já que não dói realmente como

uma dor física. Essa idéia de desatino encerra todo o desequilíbrio

emocional experimentado pela alma humana ao tomar contato com o amor.

Na segunda estrofe do soneto, o poeta continua a tecer suas definições

sobre toda a complexidade que envolve o sentimento amoroso, sem

chegar ainda a alguma conclusão satisfatória. E, assim somado às outras

definições, ele se torna também “um não querer mais que bem querer”, ou

seja, o querer e o não querer se confundem, expressando a idéia de que ao

mesmo tempo em que o ser humano procura ainda negar o sentimento

amoroso, ele sabe e tem consciência de que o amor existe, que está ali

dentro de sua alma.

E então devido a tantas contradições que o amor encerra, é para

o ser humano, “solitário andar por entre a gente”, porque embora ele esteja

cercado de muitas pessoas ou por multidões, o sentimento traz uma

sensação de solidão, que só se desfaz em companhia do ser que ele elegeu

como o objeto de seus afetos ou merecedor de seu sentimento. Junte-se a

isso, “um não contentar-se de contente”, pois se há uma correspondência do

sentimento amoroso, a alma humana experimenta tanto enlevo e

contentamento, que quase não cabe em si de tanto êxtase, e portanto, quase

não se contenta diante de tanto contentamento, denotando mais uma entre

tantas emoções contraditórias.

Com isso, o cultivo do sentimento amoroso em relação a outro ser

humano implica num “cuidar que se ganha em se perder”, pois há sempre o

medo da perda do objeto de afeição, o que gera na alma humana a

inquietação perante essa possibilidade. Mas se for um sentimento

verdadeiro, ou seja, um amor de almas gêmeas, de acordo com a teoria de

Platão, a perda se reverte em ganho, uma vez que um amor dessa natureza

resiste à separação e ao tempo, pois carrega em si um significado de

sublimação e transcendência espiritual. É, pois, mais uma das inúmeras

contradições que o sentimento abrange.

A partir da terceira estrofe, o soneto já vai se encaminhando para o

desfecho, não sem antes apresentar as últimas três tentativas de definição

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Ensaios Literários – Volume I

para o amor. Desse modo, de acordo com o poeta, amar “é querer estar preso

por vontade”, verso que expressa a idéia de que quem ama, renuncia de certa

maneira à própria liberdade e que o ser humano tem plena consciência de

toda a complexidade que envolve o sentimento amoroso, embora não a

compreenda. E, portanto, aquele que ama não se entrega ao sentimento

movido apenas pela emoção, mas também pela razão.

A definição “servir a quem vence o vencedor”, imediatamente a esta,

expressa a idéia de que o vencedor seria o objeto de afeição do vencido, o qual

não corresponde o sentimento amoroso deste, que no entanto, continua fiel e

devoto ao seu amor. Assim, mesmo não recebendo uma correspondência em

seus afetos, o vencido mantém em relação àquele o sentimento de fidelidade

e devoção. E, por isso, nesse contexto, vem a definição final, aquela que de

certa maneira, engloba todas as outras, ou seja, “é ter com quem nos mata

lealdade”, pois apesar de tudo que o amor traz de bom e de ruim ao ser

humano, ele permanece fiel ao sentimento e ao objeto que o inspirou, mesmo

sob uma tempestade de emoções contraditórias que o amor traz consigo.

Pode-se dizer que mantém uma fidelidade e uma devoção imerecidas em

relação ao outro, em nome de algo muito maior: o amor.

O décimo segundo verso do soneto, que inicia o último terceto, vem

introduzido pela conjunção adversativa “mas”, a qual exprime contraste,

oposição e até uma posição de inconformidade e dúvida em relação a todas

as idéias desenvolvidas anteriormente, conforme se observa abaixo: Mas como causar pode seu favor

Nos corações humanos amizade

Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Desse modo, ao final das onze tentativas de definição do sentimento

amoroso fundamentadas em idéias opostas e contraditórias, vem o

questionamento do poeta, que se mostra um tanto perplexo diante da

constatação de que parece não ter avançado em suas reflexões, já que volta

ao ponto de partida, ou seja, encerra o soneto com o mesmo vocábulo com o

qual começara, o substantivo “amor”. Isso demonstra o caráter circular e

filosófico do poema, visto que o poeta não conseguiu chegar a uma conclusão,

e por isso, lança a pergunta, que traduz a dúvida não só dele, mas de todo ser

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Ensaios Literários – Volume I

humano que se dispõe a refletir sobre o amor.

Pode-se caracterizá-lo como um poema reflexivo, já que o poeta

apresenta uma visão racional do sentimento amoroso, apoiada nas tentativas

de definição e na teoria de Platão, segundo a qual o amor eleva o ser humano

de alguma forma a um plano superior, ou seja, concebido como uma

experiência metafísica de caráter espiritual, provando a universalidade e a

eterna complexidade do sentimento.

O que se percebe, no Soneto da Fidelidade, de Vinícius de Moraes, além

do fato de também ser escrito em versos decassílabos, como o poema de

Camões, é que também versa sobre o amor. E desse modo, já nos primeiros

versos, o eu-poético através da expressão “de tudo”, indica o grau de

importância do sentimento em sua existência, subentendendo-se que todas

as outras coisas passarão para segundo plano, conforme demonstram os

versos da primeira estrofe: De tudo, ao meu amor serei atento

Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto

Que mesmo em face do maior encanto

Dele se encante mais meu pensamento

Percebe-se aí o uso da licença poética pelo eu-poético, já que por

questões de métrica, o advérbio de tempo “antes” foi deslocado para o

segundo verso, pois a ordem correta seria, “Antes de tudo, ao meu amor

serei atento”. Além disso, o uso do advérbio de tempo “sempre”, e dos

advérbios de intensidade, “tanto” e “mais”, por si só reafirmam e endossam a

importância dada ao sentimento amoroso e o desejo de cuidá-lo e protegê-lo,

expressado pelo verbo “ser”, conjugado na primeira pessoa do futuro do

presente (serei) e pelo adjetivo “atento” e ainda pela expressão “tal zelo”

(que indica cuidado e atenção especial dedicados a alguém ou alguma coisa).

Além disso, o uso repetitivo da conjunção coordenativa “e”, que caracteriza

um polissíndeto, no segundo verso, reforça o sentido de insistência na idéia

desenvolvida.

É possível entender a partir disso, que a escolha de tais palavras

denotam o desejo do eu-poético de vivenciar uma experiência amorosa

intensa e duradoura. Tanto isso pode ser deduzido, que ele mesmo

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Ensaios Literários – Volume I

acrescenta: “que mesmo em face do maior encanto / dele se encante mais

meu pensamento”. Pode-se inferir nesses versos, que mesmo que o eu-poético

já esteja completamente envolvido pelo sentimento (pelo encanto da alma e

dos sentidos que ele proporciona), que ele (o amor) continue a encantá-lo

cada vez mais, ou seja, que não perca nunca o encanto, o êxtase que

provoca na alma humana.

Assim, o eu-poético continua a expressar o seu desejo, na segunda estrofe: Quero vivê-lo em cada vão momento

E em seu louvor hei de espalhar meu canto

E rir meu riso e derramar meu pranto

Ao seu pesar ou seu contentamento

Mantendo o mesmo raciocínio, o eu-poético a fim de enfatizar o desejo de

vivenciar e aproveitar intensamente essa experiência, tanto em momentos

importantes como em momentos nem tão significativos assim (pode-se

considerar aqui, os acontecimentos do cotidiano, rotineiros, que com o passar

do tempo perdem a importância que ostentam no começo de uma experiência

amorosa), presta uma espécie de homenagem ao sentimento amoroso, quando

afirma que “em seu louvor” há “de espalhar” seu “canto”.

O “canto” aqui pode ser entendido como as emoções contraditórias que o

amor desperta na alma humana e assim, o eu-poético, utilizando-se mais

uma vez do polissíndeto e de um pleonasmo no sétimo verso, ri o seu “riso”

ou derrama o seu “pranto”, de acordo com as circunstâncias que a

experiência o levará, se de “pesar” ou de “contentamento” (antítese), o que

nos remete às contradições expressas no soneto de Camões. Isso prova, de

certo modo, a fidelidade com que o eu-poético pretende vivenciar a

complexidade do sentimento e suas conseqüências, o que nos leva ao título

do soneto, que pode ser lido como uma promessa que ele faz a si mesmo

de viver o amor em toda sua plenitude, ou seja, preparado para tempestades e

bonanças, de acordo com os versos da terceira estrofe:

E assim, quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama

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Aqui, já depois de passada a experiência, num futuro distante, “quando

mais tarde”, o procurem “a morte, angústia de quem vive”, expressando

antítese ou “a solidão, fim de quem ama”, as conseqüências mais trágicas da

existência humana, o eu-poético, mais sereno e conformado com os

desígnios do sentimento amoroso, possa de certa maneira, consolar a si

mesmo, conforme expressam os últimos versos do soneto: Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure

O uso do pronome pessoal “eu” no décimo segundo verso, do pronome

possessivo “meu” nos versos 1, 4, 6 e 7 e do pronome oblíquo átono “me”

nos versos 9 e 12, explicitam a subjetividade com que é tratado o amor no

poema, já subentendida desde os versos iniciais, ou seja, evidencia a esfera

particularizada do desejo de experimentar a experiência amorosa.

Do mesmo modo que nos versos iniciais de Camões, o último terceto do

soneto apresenta duas idéias que se opõem, mas que mantêm uma relação

próxima entre si, formando um paradoxo, pois mais tarde o eu-poético

pretende dizer a si mesmo, que o amor que teve “não seja imortal, posto que é

chama”, ou seja, define-o tal qual Camões, como um fogo, uma chama, algo

que se extingue com o passar do tempo e por isso, não dura para sempre, “mas

que seja infinito enquanto dure”. E, além disso, uma vez que fatalmente terá

um fim, que pelo menos enquanto durar a experiência, ele (o eu-poético) e o

ser humano em geral tire o máximo proveito dela e a vivencie da forma mais

intensa possível, transformando-a mesmo que por algum tempo em algo

infinito.

Pode-se comprovar a partir desses versos, o mesmo caráter filosófico

encontrado no soneto camoniano, já que o eu-poético faz uma reflexão acerca

do sentimento amoroso, expressando os seus desejos e expectativas em

relação a ele e as contradições que o caracterizam, chegando a uma conclusão

paradoxal.

Em termos estruturais, nota-se no soneto a presença de rimas

interpoladas e emparelhadas nos quartetos, seguindo o esquema ABBA. No

último terceto percebe-se uma variação da origem clássica

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Ensaios Literários – Volume I

“abba/abba/cde/cde”, sendo este estruturado da seguinte maneira:

“abba/abba/cde/dec”. É possível ainda observar uma variação de rimas

pobres (momento – contentamento, ambas as palavras, substantivos, nos

versos 5 e 8) e rimas ricas (ama – chama, verbo e substantivo,

respectivamente, nos versos 11 e 13), tal como ocorre no soneto de Camões.

A fim de conferir musicalidade e sonoridade aos versos do soneto,

percebe-se na construção deste a semelhança de letras nos vocábulos que

rimam entre si, classificadas como rimas consoantes (atento,

pensamento, momento; tanto, encanto, canto) e a assonância da vogal “e”

(em negrito, ao longo do poema) tal como ocorre no soneto de Camões.

Os tipos de rimas utilizadas na construção do soneto, servem não só

para conferir musicalidade, mas também ritmo e expressividade à mensagem

que o poeta quer comunicar, isto é, a exaltação do sentimento amoroso a

partir de seu raciocínio ou o projeto do amor e suas conseqüências, as quais,

segundo Camões, apesar de tudo, causam “nos corações humanos amizade”,

mesmo sendo “tão contrário a si o mesmo Amor”.

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A BUSCA DA INTERTEXTUALIDADE

Conforme já se evidenciou nas respectivas análises, há diversos

pontos em que os dois sonetos se assemelham e se complementam, não

só em termos de estrutura, mas principalmente em termos de conteúdo, que

é onde se pode buscar e identificar a dialogação que há entre eles.

Partindo dessa idéia, ambos os sonetos podem ser divididos em dois

planos. Enquanto o primeiro plano do soneto de Camões, descreve os efeitos

paradoxais do amor no ser humano (nas três primeiras estrofes), o de

Vinícius descreve um projeto ou um desejo de amor a ser realizado (nos dois

quartetos). Já o segundo plano do poema camoniano (no último terceto)

evidencia a perplexidade do poeta diante de algo tão complexo e uma

tentativa de conclusão a partir de um questionamento, ao passo que nos

tercetos vinicianos evidenciam-se as conseqüências de uma realização,

sendo o raciocínio concluído também com idéias que exprimem um paradoxo

entre si.

Baseando-se na questão paradoxal e das tentativas de definição do

amor no soneto camoniano, é possível afirmar que o primeiro verso

deste, desemboca diretamente nos últimos versos de Vinícius, podendo-se

fazer uma junção de ambos, que ficaria mais ou menos assim: “Amor é fogo

que arde sem se ver / entretanto que não seja imortal / posto que é chama

/ mas que seja infinito enquanto dure”. Há, portanto, uma relação entre

eles na medida em que ambos os poetas definem o amor, a partir de uma

mesma idéia, ou seja, a comparação implícita com o “fogo” e a “chama”, que

simbolizam em termos imagísticos a finitude do sentimento, visto que tal

como o fogo, o amor também entra em combustão e restam só as “cinzas”

(as conseqüências da experiência).

No âmbito filosófico dos sonetos, percebe-se que Camões ao

enumerar diversos conceitos e definições para o amor, fundamentadas em

idéias que se contradizem o tempo todo, procura a partir da aproximação

entre elas, chegar a uma conclusão sobre a conformidade que o sentimento

causa na alma humana, mesmo sendo algo deveras complexo e mutante

para se compreender. E daí, vem o questionamento: “mas como?”...

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lançado no século XVI e que, no entanto, permanece mais atual do

que nunca, já que o sentimento amoroso está acima da capacidade de

compreensão do ser humano, residindo justamente aí o seu fascínio e o seu

mistério.

E segundo o próprio poeta, recorrendo a todo o lirismo que impregna

sua obra, em um de seus muitos poemas: Não é Amor amor, se não vier

com doudices, desonras,

dissensões, pazes, guerras, prazer

e desprazer, perigos, línguas más,

murmurações, ciúmes, arruídos,

competências, temores, mortes,

nojos, perdições. Estas são

verdadeiras experiências

de quem põe o desejo onde não

deve, de quem engana alheias

inocências. Mas isto tem Amor, que

não se escreve senão onde é ilícito e

custoso;

E onde é mor o perigo mais se atreve. (in SILVA, 1994, p. 172)

A exemplo de Camões, o soneto viniciano assume igualmente um

sentido filosófico, visto que o poeta também tem conhecimento das faces

contraditórias do amor, quando expressa seu desejo no segundo quarteto:

“quero vivê-lo em cada vão momento / e em seu louvor hei de espalhar meu

canto / e rir meu riso e derramar meu pranto / ao seu pesar ou seu

contentamento”. Exprime, portanto, uma visão racional sobre o sentimento

amoroso.

Pode-se ainda relacionar essa visão filosófica presente em Vinícius ao

tema clássico “carpe diem”, recorrente dos gregos aos árcades, que retoma de

certo modo um clichê, baseado na “intuição renovável de um momento de

felicidade amorosa ensombrado pela certeza da finitude e da morte que

espreita toda carne”, conforme denotam os versos transcritos acima.

BACHELARD (apud BOSI, 2003, p. 45)

Então cada imagem – a chama que diz o ardor de Eros, o arroio que lembra o tempo em fuga, ou a terra fria sob a qual jazerão os

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amantes – nos revelará um sentimento delicioso e pungente, o sentimento que chamou o poeta e os seus leitores para um presente denso, único, irrepetível, embora a sua aparência possa coincidir com as mil e uma versões que do mesmo tema deram poetas de outros tempos e lugares. BACHELARD (apud BOSI, 2003, p.45).

Torna-se então explícita a relação entre o sentido filosófico encontrado

no soneto de Vinícius e o pensamento de Bachelard, conforme se observa

nos versos transcritos abaixo: E assim, quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama.

Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure.

Essa relação se torna possível na medida em que o eu-poético de

Vinícius ao expressar o desejo de que o amor “não seja imortal, posto que é

chama / mas que seja infinito enquanto dure”, está de certa maneira se

reportando ao ideal clássico do carpe diem, já que justamente por saber que

nada é eterno (inclusive, o amor) e por conseguinte tem um fim, ele deseja

que pelo menos os momentos de felicidade e por que não dizer também de

tristeza, ocasionados pela experiência amorosa sejam vividos de uma forma

plena, intensa e infinita mesmo que por pouco tempo.

Além disso, as imagens evocadas no pensamento de Bachelard, “a

chama que diz o ardor de Eros, o arroio que lembra o tempo em fuga, ou a

terra fria sob a qual jazerão os amantes”, explicitam bem o sentido filosófico

dos sonetos, uma vez que todas elas carregam em si um significado de fim:

a chama por se apagar, o tempo por não voltar atrás e a terra por evocar a

idéia da morte (que é também um fim). Fim este que pode se reverter em

recomeço num plano superior.

E, de acordo com o próprio Vinícius, “o amor que constrói para a

eternidade é o amor paixão, o mais precário, o mais perigoso, certamente o

mais doloroso. Esse amor é o único que tem a dimensão do infinito. A

própria felicidade é dolorosa”. Não há como negar que tais palavras nos

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remetem imediatamente à Camões e suas concepções de amor.

Desse modo, percebe-se a estreita ligação que há entre os dois sonetos,

pois Camões ao tentar definir o amor dá a Vinícius a oportunidade de

desenvolver um raciocínio, no qual concebe um projeto de realização da

experiência amorosa e as conseqüências de tal experiência, as quais

abrangem o questionamento de Camões acerca da conformidade em relação

ao caráter contraditório do sentimento “nos corações humanos”.

Muitas leituras mais ainda poderiam ser feitas a partir das definições de

Camões, uma vez que até hoje ainda não se descobriu realmente o que é o

amor, nem mesmo depois de passados quatro séculos, o que o torna sempre

uma fonte inesgotável e contínua de especulações científicas e filosóficas. E

embora, tantos poetas já tenham se “atrevido” a entendê-lo, ainda hoje

nenhum soube explicá-lo, nem mesmo Vinícius.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOSI, A. Leitura de poesia. 1 ed. São Paulo: Ática, 2003. CIDADE, H. Luiz Vaz de Camões: o lírico. 3 ed. Lisboa: Bertrand, 1967. COUTINHO, A. Vinícius de Moraes: obra completa. 2 ed. São Paulo: Nova Aguilar, 1976. CUNHA, da R. H. M; PIVA, L. Lirismo e epopéia em Luiz Vaz de Camões. 1 ed. São Paulo: Cultrix, 1980. GOLDSTEIN, N. Versos, sons, ritmos. 13 ed. São Paulo: Ática, 2003. MARTINS, C. Camões: temas e motivos da obra lírica. 1 ed. São Paulo: Itatiaia, 1981. MOISÉS, F. C. Literatura comentada: Vinícius de Moraes – seleção de textos, notas, estudo biográfico, histórico e crítico. 1 ed. São Paulo: Abril Educação, 1980. MOISÉS, M. Camões: lírica. 1 ed. São Paulo: Cultrix, 1943. MOISÉS, M. Dicionário de termos literários. 11 ed. São Paulo: Cultrix, 2002. MOMIGLIANO, A. História da literatura italiana: das origens até nossos dias. 1ed. São Paulo: IPE, 1948. RODRIGUES, M. A. Roteiro de leitura: sonetos de Luiz Vaz de Camões. 1 ed. São Paulo: Ática, 1998. SILVA e A de M. V. Camões: labirintos e fascínios. 1 ed. Lisboa: Cotovia, 1994. VICENTINO, C. História geral. 9 ed. São Paulo: Scipione, 2002.

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Nesta obra discute-se a intertextualidade

entre os sonetos Amor é fogo que arde sem se ver,

de Luiz Vaz de Camões, poeta classicista do século

XVI e Soneto da Fidelidade, de Vinícius de Moraes,

poeta modernista do século XX, uma vez que

ambos se utilizaram largamente dessa forma de

composição poética em suas obras.

Embora os poetas em questão tenham vivido

em épocas que se separam por pelo menos quatro

séculos, há entre eles algo em comum, além do

gosto pelo cultivo do soneto: a temática dos

mesmos, que como se sabe tem uma origem

sentimental.