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1 ENSAIO SOBRE A INSERÇÃO DA INDÚSTRIA NO CAMPO SERGIPANO: DESCONCENTRAÇÃO/INTERIORIZAÇÃO INDUSTRIAL E SUBORDINAÇÃO DO CAMPESINATO Carlos Marcelo Maciel Gomes 1 Universidade Federal de Sergipe (UFS) [email protected] Márcio dos Reis Santos 2 Universidade Federal de Sergipe (UFS) [email protected] GT7: TRABALHO, FLEXIBILIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO RESUMO O Estado, por intermédio das políticas de desenvolvimento industrial, oferece sistematicamente vantagens para que diversos tipos de indústrias se estabeleçam do território sergipano a partir da desconcentração/interiorização. No contexto da crise estrutural, o capital monitora, mapeia e ocupa espaços onde seja possível a extração máxima do mais-valor, provocando uma intensa mobilidade do trabalho e do capital no campo sergipano. Tal política industrial também vem incorporando a produção camponesa, observado no caso do APL do Leite, em busca do barateamento da produção, contribuindo para a diminuição do capital variável frente ao capital constante e na queda tendencial da taxa média de lucro. Por fim, tal processo provoca a perda da terra dos camponeses, transformando-os em sujeitos supérfluos na extração de mais-valor, ao mesmo tempo em que busca subordinar a terra e a produção da unidade de produção camponesa daqueles que persistem no campo. PALAVRAS-CHAVE: Indústria; Capital; Acumulação Flexível; Camponês. 1 Integra o Grupo de Pesquisa Estado, Capital, Trabalho e as Políticas de Reordenamento Territorial (GPECT). Mestre pelo Programa de Pós Graduação em Geografia (PPGEO) da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Professor do Instituto Federal de Alagoas (IFAL) e do Grupo de Estudo de Humanas do Brasil Contemporâneo (GEHB). 2 Integra o Grupo de Pesquisa Estado, Capital, Trabalho e as Políticas de Reordenamento Territorial (GPECT). Mestre pelo Programa de Pós Graduação em Geografia (PPGEO) da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Professor da Rede Estadual em Sergipe.

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ENSAIO SOBRE A INSERÇÃO DA INDÚSTRIA NO CAMPO SERGIPANO:

DESCONCENTRAÇÃO/INTERIORIZAÇÃO INDUSTRIAL E SUBORDINAÇÃO DO

CAMPESINATO

Carlos Marcelo Maciel Gomes1

Universidade Federal de Sergipe (UFS)

[email protected]

Márcio dos Reis Santos2

Universidade Federal de Sergipe (UFS)

[email protected]

GT7: TRABALHO, FLEXIBILIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO

RESUMO

O Estado, por intermédio das políticas de desenvolvimento industrial, oferece

sistematicamente vantagens para que diversos tipos de indústrias se estabeleçam do território

sergipano a partir da desconcentração/interiorização. No contexto da crise estrutural, o capital

monitora, mapeia e ocupa espaços onde seja possível a extração máxima do mais-valor,

provocando uma intensa mobilidade do trabalho e do capital no campo sergipano. Tal política

industrial também vem incorporando a produção camponesa, observado no caso do APL do

Leite, em busca do barateamento da produção, contribuindo para a diminuição do capital

variável frente ao capital constante e na queda tendencial da taxa média de lucro. Por fim, tal

processo provoca a perda da terra dos camponeses, transformando-os em sujeitos supérfluos

na extração de mais-valor, ao mesmo tempo em que busca subordinar a terra e a produção da

unidade de produção camponesa daqueles que persistem no campo.

PALAVRAS-CHAVE: Indústria; Capital; Acumulação Flexível; Camponês.

1 Integra o Grupo de Pesquisa Estado, Capital, Trabalho e as Políticas de Reordenamento Territorial (GPECT).

Mestre pelo Programa de Pós Graduação em Geografia (PPGEO) da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Professor do Instituto Federal de Alagoas (IFAL) e do Grupo de Estudo de Humanas do Brasil Contemporâneo

(GEHB). 2 Integra o Grupo de Pesquisa Estado, Capital, Trabalho e as Políticas de Reordenamento Territorial (GPECT).

Mestre pelo Programa de Pós Graduação em Geografia (PPGEO) da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Professor da Rede Estadual em Sergipe.

2

1 - INTRODUÇÃO

O processo de desenvolvimento capitalista carrega em si o desejo incessante pela

obtenção do lucro mediante subordinação do trabalho. Uma das expressões mais

características desse processo está refletida na produção industrial. A indústria tem sido

historicamente uma das mais claras e intensas formas com as quais o capital exerce sua força

destrutiva sobre os trabalhadores, subjugando-os e expondo-os a condições máximas de

trabalho exaustivo e degradante.

O capital se expande, tendo como expressão a indústria, buscando ocupar e se

apropriar de espaços onde possa extrair maiores lucros e, assim, consiga se reproduzir e

continuar seu processo de dominação da classe trabalhadora.

O processo de ampliação do capital ganhou tanta voracidade que extrapola os limites

do espaço urbano e invade o campo com, por exemplo, a criação de complexos industriais.

Este processo segue conectado ao projeto global de expansão capitalista, representado em

uma nova lógica de acumulação do modelo flexível de produção. A inserção da indústria no

campo acarreta mudanças nas relações de trabalho, ampliando o trabalho assalariado e

contribuindo para a drástica redução da pequena produção de base familiar, característica do

campesinato.

A reestruturação produtiva calcada no modelo flexível fez com que surgissem novas

formas de relações sociais e de produção, principalmente ligadas às relações de trabalho.

Buscando novas formas de se reproduzir, o capital cria, tanto para o campo como para a

cidade, novos mecanismos com o objetivo de intensificar a acumulação, sobretudo da

diversificação de formas de precarização produtiva e das relações de trabalho.

2 - A REPRODUÇÃO DO CAPITAL E A INSERÇÃO DA INDÚSTRIA NO TEMPO E

ESPAÇO DA ACUMULAÇÃO

A acumulação flexível alterou as formas de exploração do trabalho pelo capital, o

que efetivamente culminou em novas formas de apropriação do espaço pelo capital. O

processo da acumulação flexível introduzido na produção industrial repercutiu no modo de

produção da sociedade. Durante muito tempo, convencionou-se afirmar que a atividade

industrial carregava em seu cerne a característica de ser uma atividade própria dos grandes

centros urbanizados, concentrada em determinados pontos do espaço. Porém, as

3

concentrações industriais, mesmo nessa perspectiva de análise, já eram compreendidas como

possuidoras de capacidade para articular e integrar diferentes parcelas do espaço em todo o

mundo, por intermédio do mercado e da divisão espacial e internacional do trabalho. Para

Carlos (1988), as teorias que se propunham abordar a localização industrial delegavam a

aptidão da articulação espacial da indústria, contudo, a autora salienta que as mudanças

ocorridas no desenvolvimento das forças produtivas puseram em xeque determinadas

afirmativas sobre a localização das indústrias, como a mencionada anteriormente - “atividades

industriais são próprias dos grandes centros urbanizados”.

As mudanças das forças produtivas a partir da acumulação flexível tenderam a torná-

la cada vez mais difundida no espaço, espalhada, capaz de estar em toda a parte, de modo

geral, universal. Portanto,

A localização industrial entendida como o lugar ocupado pela indústria no espaço

significa um entendimento mais amplo do que a simples pontuação ou endereço das

indústrias no mapa. A localização da indústria insere-se no processo da

industrialização que determina, historicamente, o lugar a ser ocupado por cada

indústria, esse lugar resulta da divisão espacial e internacional do trabalho num dado

momento histórico (CARLOS, 1988, p. 20).

Neste sentido, o contexto histórico atual nos mostra que não importa ao capital qual é

o “tipo” de espaço, mas quanto é possível extrair lucro ao utilizá-lo. O caso do estado de

Sergipe é um exemplo desta premissa do capital. Dados do Ministério do Trabalho Emprego

apontam um significativo aumento do número de indústrias e de trabalhadores no setor

industrial da economia no estado de Sergipe. Na última década, o número de estabelecimentos

industriais passou de 2.144, em 2000, para 3.208, em 2010, chegando, em 2015, a 3.896

(Gráfico I). Um acréscimo de 1.752 novas indústrias num período de quinze anos.

GRÁFICO I - NÚMERO DE INDÚSTRIAS, SERGIPE – 1985/2015

691 989

2.144

3.208

3.896

0

500

1.000

1.500

2.000

2.500

3.000

3.500

4.000

4.500

1985 1990 2000 2010 2015

4

Fonte: MTE/RAIS – 1985 a 2015.

Org.: SANTOS, Márcio dos Reis. 2017.

Historicamente, a capital Aracaju exerce uma concentração populacional, de produção

e de serviços em relação ao conjunto dos demais municípios de Sergipe. A partir dos dados

obtidos durante a pesquisa (2017), foi estabelecida uma relação entre o número de indústrias,

seus trabalhadores, em Aracaju e nos municípios do interior. Como resultado, pode-se afirmar

que, de um modo geral, manteve-se o crescimento do número de estabelecimentos industriais,

tanto em Aracaju como nos demais municípios do estado, durante as últimas décadas. Porém,

constata-se que ao final da última década houve uma considerável mudança na estrutura da

distribuição espacial das indústrias em Sergipe, com um elevado número de estabelecimentos

industriais nos municípios do interior, cuja soma ultrapassou o número de indústrias na capital

durante o mesmo período, conforme representado no gráfico II.

GRÁFICO II - NÚMERO DE INDÚSTRIAS: RELAÇÃO ARACAJU – INTERIOR –

1985/2015

Fonte: MTE/RAIS – 1985 a 2015.

Org.: SANTOS, Márcio dos Reis. 2017.

A relação Aracaju–Interior apontou que na década passada - 2000 a 2010 - a capital

obteve um aumento de aproximadamente 24% no número de empregos, enquanto que, no

restante do estado, este percentual chegou a quase 85%. Em cinco anos da década atual os

números continuam crescendo no interior do estado. A partir destes dados percebem-se os

primeiros indícios de uma mudança na distribuição espacial das indústrias, além da

intensificação do processo de industrialização, tanto na capital quanto no interior do estado.

Como reflexo da expansão das indústrias no estado de Sergipe, nas últimas décadas,

o número de trabalhadores do setor industrial teve considerável elevação, especialmente nos

municípios do interior, visto que, enquanto o número de trabalhadores da indústria em

406

622

1.236

1.534 1.724

285 367

908

1.674

2.172

0

500

1.000

1.500

2.000

2.500

1985 1990 2000 2010 2015

Aracaju Interior

5

Aracaju cresceu 85%, nos demais municípios juntos, este crescimento foi de quase 150% em

10 anos (2000 – 2010), conforme apresenta o gráfico III.

GRÁFICO III - NÚMERO DE EMPREGOS NA INDÚSTRIA EM SERGIPE:

RELAÇÃO ARACAJU-INTERIOR - 1985/2013

Fonte: MTE/RAIS – 1985 a 2015.

Org.: SANTOS, Márcio dos Reis. 2017.

Ao observar os dados que representam uma expansão industrial, é importante

mencionar que no ano de 2012 havia 32 aglomerados industriais espalhados em 31

municípios do estado (Figura I), sendo que, desse total, 29 estavam localizados fora da capital

Aracaju.

FIGURA I – DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL DOS AGLOMERADOS INDUSTRIAIS EM

SERGIPE – 2012.

Fonte: CODISE, 2012.

24.268 26.246

20.114

37.201 33.423

12.077 15.855 17.551

43.684

49.825

0

10.000

20.000

30.000

40.000

50.000

60.000

1985 1990 2000 2010 2015

Aracaju Interior

6

Elaboração: SANTOS, Márcio dos Reis. 2015.

Com essa distribuição espacial dos aglomerados industriais, nota-se também que 27

destes estavam localizados em municípios que não pertencem à Região Metropolitana de

Aracaju, tradicionalmente concentradora no que tange à indústria e serviços.

3 - AS AGROINDÚSTRIAS E A INCORPORAÇÃO DA PRODUÇÃO NO ALTO

SERTÃO SERGIPANO: O CASO DO APL DO LEITE

O Arranjo Produtivo do leite sob o desenvolvimento local permitiu a gestação de

formas mais eficazes para o ordenamento, através de instrumentos de controle e de

gerenciamento da produção local via associações e cooperativas. O ordenamento da produção

vem assumindo o enfoque territorial em detrimento ao enfoque setorial, em tempos de

exigências maiores sobre a velocidade de fluxos, flexibilidade, maleabilidade e

competitividade. Em Sergipe, por exemplo, o apoio aos Arranjos Produtivos Locais (APLs) se

enquadra bem à abordagem territorial. A política dos Territórios se baseia na proposta de

desenvolvimento endógeno, de vocação produtiva, em articulação com a Política Estadual.

O Território do Alto Sertão Sergipano (TASS) se destaca por sua produção de leite e

pecuária bovina em Sergipe. Segundo o Plano de Desenvolvimento do Arranjo Produtivo de

Pecuária de Leite e Derivados do Alto Sertão Sergipano (SERGIPE, 2008), busca-se aumentar

a produtividade do leite nas comunidades assistidas e incrementar a recepção de leite resfriado

nas fábricas.

As indústrias de maior influência no TASS, inseridas no chamado Arranjo produtivo

Local do Leite, são a Natville e Betânia, com sede em Nossa Senhora da Glória, e SABE, com

sede em Muribeca. Muitas utilizam tanques de resfriamento (Figura II) espalhados nos

municípios como pontos de colhimento. Um pagamento é feito ao proprietário do terreno que

será instalado o tanque e, assim, garante-se a captação de leite para a indústria.

7

FIGURA II – TANQUES DE RESFRIAMENTO DE LEITE EM PORTO DA FOLHA E

GARARU

Fonte: Pesquisa de Campo, 2014.

Durante pesquisa de campo (2012-2014), observou-se uma divisão territorial no

colhimento do leite entre as empresas nos municípios de Gararu e Porto da Folha, em Sergipe.

De leste até o povoado São Mateus, em Gararu, a SABE compra o leite dos produtores. De

São Mateus à oeste, a NATVILLE é a responsável pela compra3. As empresas fazem

acompanhamento técnico e enviam caminhões para coletar o leite, inclusive nas áreas de

assentamento.

FIGURA III – CAMINHÃO DA EMPRESA NATVILLE NO ASSENTAMENTO PAULO

FREIRE EM PORTO DA FOLHA

Fonte: Pesquisa de Campo, 2014.

Além da compra por meio dos tanques de resfriamento, a Natville tem fechado

acordos com laticínios de médio e pequeno porte, como foi constatado na Fazenda “Nova

Esperança” (entidade filantrópica mantida com recursos da Igreja) em Gararu. A parte não

3 Em 2014, o litro do leite variava entre R$ 0,60 e R$ 1,10, a depender da qualidade, sendo o dinheiro transferido

via conta bancária semanalmente.

8

destinada ao consumo direto ou indireto da Fazenda, seja leite, manteiga ou queijo, é vendida

para a Natville (PESQUISA DE CAMPO, 2014).

Durante a aplicação do questionário, um produtor revelou que “vende particular

recebendo menos, porque recebe semanalmente”, já que vendendo seu leite para o Governo

através do Programa de Aquisição de Alimentos, na modalidade “Incentivo à Produção e ao

Consumo de Leite” (PAA Leite), o pagamento geralmente atrasa e o preço permanece estável

- para participar o produtor deve ter uma “declaração de aptidão” ao PRONAF. O Banco do

Nordeste tem apoiado a adequação da “cadeia produtiva do leite” às exigências da Instrução

Normativa número 51 do MAPA4 e pretende firmar acordos de cooperação envolvendo as

agroindústrias e os produtores de leite. O que demonstra o total apoio do Estado e das

instituições de apoio aos grandes laticínios na região e poderão surgir novas investidas na

fiscalização e controle dos processos produtivos de beneficiamento do leite no TASS.

O próprio conceito de arranjo exige um lastro territorial para ser coeso e funcional,

além de poder gerar assim formas adaptáveis de controlar o ordenamento territorial,

reforçando estudos sobre aglomerações produtivas e o novo mundo rural como substrato

ideológico. Em consonância ao exposto, identificamos durante as entrevistas que o segmento

industrial recebe algum tipo de apoio do Estado, tornando-se centros dinamizadores da

atividade formal e envolvendo um número significativo de trabalhadores direta ou

indiretamente (Figura IV).

FIGURA IV – ORGANIZAÇÃO DO APL DO LEITE

Fonte: Pesquisa de campo 2012-2014.

Org.: GOMES, C. M. M.

4 Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Disponível em

<http://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=78904>. Acesso em 10 de jun. de 2014.

9

A demanda desta produção possibilitou o desenvolvimento de outras atividades

relacionadas direta ou indiretamente ao Arranjo Produtivo Local (APL) do Leite,

principalmente o beneficiamento do produto e o cultivo do milho para ração. A variação da

ocupação da produção agrícola tem sido o termômetro das novas configurações políticas e

econômicas no TASS. O desinteresse pelos cultivos do feijão e da mandioca demonstra a

influência do mercado e das políticas agrícolas, na metamorfose produtiva, expressada no

aumento e diminuição da área destinada à lavoura e no fechamento das casas de farinha.

Como sabemos, o feijão e a mandioca são produzidos principalmente para o consumo

humano, porém o cultivo do milho predomina em quase todas as plantações visitadas,

destinado em sua grande maioria para a ração animal para a produção de leite e derivados.

Entre as principais diretrizes de atuação definida pelo Termo de Referência Nacional

aos APLs (BRASIL, 2004, pág. 10), destacam-se a promoção de um ambiente de “inclusão”

através do “acesso das unidades produtivas ao mercado", as ações orientadas para o mercado

e a capacidade do arranjo se manter ao longo do tempo e adquirir autonomia5. O mercado

torna-se a finalidade. Não somente o mercado local, mas o que for possível alcançar no apetite

do Desenvolvimento, da “valorização do Território”. Como todo processo de valorização

implica a exploração do trabalho, o aumento da produtividade e da lucratividade na busca pela

expansão de mercado incorpora um quantum de trabalho (MARX, 1986) no sistema produtivo

das agroindústrias. Assim, cabe-nos entender a inserção das unidades de produção familiar na

lógica dos APLs, considerando o trabalho familiar o que se predomina nas relações produtivas

então pesquisadas.

Eis o conteúdo do chamado Pacto Territorial entre o governo e a sociedade, exigido

pelo Plano de Desenvolvimento, que responsabiliza os trabalhadores pelo desenvolvimento

no/do Território a partir de seu nível de produtividade, de competitividade e de alcance nas

exportações. Tal Pacto garante o nexo entre as atividades produtivas e os territórios gestados

pelo Estado6 e expressado pelo ajustamento sócio produtivo.

A partir do pensamento de Marx, Antunes (2009) afirma que a divisão social do

trabalho representa uma subordinação estrutural do trabalho ao capital, “estrutura totalizante

5 Este conceito é referente ao que chama de sustentabilidade, termo que se tem incorporado ao discurso do

desenvolvimento local nos últimos anos.

6 Os “compromissos do Governo” e os “compromissos da sociedade” tratados no capítulo 1 estão fundamentados

na divisão entre a sociedade política e sociedade civil. Esse discurso tem substituído de forma ideológica a

análise sobre a luta de classes a fim garantir estruturas explicativas sobre a sociedade a partir da divisão entre o

político e o social.

10

de organização e controle do metabolismo societal, à qual todos, inclusive os seres humanos,

devem se adaptar” (pág. 23), levados pela necessidade da produção de mercadorias e pela

valorização do capital, em detrimento da superexploração da natureza e da força de trabalho

(pág. 34). A emergência de funções sob o domínio totalizante do capital que comprometem

profundamente a funcionalidade das mediações de primeira ordem constitui o que Mészáros

chama de sistema de mediações de segunda ordem, ao qual busca subordinar as necessidades

humanas à reprodução do valor de troca. O sistema do capital tem como núcleo constitutivo

desta mediação o tripé indivisível capital, trabalho e Estado.

As alterações no campo brasileiro a partir do processo de industrialização

desencadearam diferentes formas de entendimento sobre a expansão do capitalismo no espaço

agrário. Alguns autores justificavam a criação de novas teorias a fim de contemplar uma

presumível realidade, apresentando um “novo” paradigma em detrimento ao “velho”. A

produção científica, enquanto um discurso racional e legitimador, respaldou o Estado na

adoção de um “novo” paradigma como explicativa da realidade de modo a apresentar suas

políticas enquanto neutras e estritamente técnicas, aparentemente desconsiderando suas

implicações econômicas e políticas nas decisões e outras abordagens e métodos de análise.

Dadas às condições para a expansão capitalista no campo, inserindo sua produção na

lógica fetichista de mercado, a tripartide relação Estado-capital-mercado encontra um

referencial teórico para a chamada “modernização da agricultura”: o “novo mundo rural”.

Müller (apud SILVA, 1997, pág. 25), esboça seu projeto na afirmação de que a integração da

produção agrária deve ocorrer entre as relações do complexo agroindustrial e as relações

comunitárias locais-regionais, requerendo incentivos econômicos de políticas inovadoras sob

novas formas de gestão política e pública.

O termo “agricultor familiar” busca substituir o “camponês”, fruto do embate entre o

paradigma do capitalismo agrário e o da questão agrária. Neste sentido, toda representação

vinculada à unidade do trabalhador com a terra e a família pelo conceito de campesinato é

extirpada. O uso do conceito “agricultor familiar” tem como objetivo permitir uma

generalização dos que trabalham no campo de forma a enquadrá-los ao novo paradigma,

estimulando a busca por “recursos internos das propriedades, visando adequar-se ou atender

as exigências para a sua inserção socioeconômica como produtores de matéria-prima

destinadas às agroindústrias” (MIOR, 2005, pág. 201). Desta maneira, nega-se a necessidade

da reforma agrária como processo de avanço em função da produtividade como critério de

eficiência.

11

A economia familiar – considerada informal - é considerada mais competente que a

economia de mercado ou estatal, conforme analisa Shanin (2008) ao considerar a existência

do campesinato no capitalismo, por isso a preocupação dada ao capital social em torno da

cooperação e governança local nos APLs. Com isso, a absorção desta dinâmica ao mercado

implica uma reorganização territorial do trabalho que, por sua vez, provoca um vínculo entre

o trabalho dos sujeitos locais e as normatizações impostas pelo mercado, muitas vezes

estimuladas por políticas públicas. Portanto, a recriação do campesinato não significa

necessariamente uma resistência aberta contra o capital, tão pouco significa sua completa

capitulação, pois não possuem interesses em comuns, mas conflitantes.

A dinâmica econômica necessita da subsunção do trabalho como atividade geradora

de valor, produtiva, ou que o auxilie, atrelando mesmo atividades não capitalistas ao sistema

do capital. Com efeito, a reprodução ampliada do capital pressupõe a criação capitalista de

relações não capitalistas, uma vez que se permite criar condições para a reprodução da

produção familiar camponesa no capitalismo, subordinando a terra e a força de trabalho aos

interesses do capital (OLIVEIRA, 1990, pág. 26 e 27). A propriedade do trabalho familiar

camponês só é possível a partir da terra, pois existe uma relação indissociável entre terra e

trabalho em sua condição social, mas a expansão da lógica do capital carrega consigo a

intensificação da exploração, deslocando o sentido de realização social do trabalho para o

devir ascendente-infinito da acumulação que foge de qualquer esforço individual. Sem

autonomia, o ser fenece ao controle sociometabólico do trabalho, da produção, da terra.

O sistema produtivo agroindustrial ao incorporar a produção de leite das unidades de

produção familiar em seu ciclo produtivo, incorpora também todo o conjunto de técnicas e

conhecimentos tácitos acumulados ao longo do tempo por inúmeros camponeses, pois, a

própria força de trabalho social é considerada como a força do capital (SMITH, 1988). Cabe

lembrar que uma enorme gama da produção do milho é consumida na produção de leite, que

por sua vez é consumida na produção de seus derivados materializados na mercadoria,

considerando a relação dialética na produção, distribuição, troca e consumo segundo Marx

(2011).

Neste sentido, o excedente produzido pelos camponeses nos municípios de Porto da

Folha e de Gararu, sobremodo por meio do APL do leite, é apropriado por pequenos grupos

empresariais que controlam a produção. Além disso, a indústria de insumos e de sementes

garante a venda de seus produtos aos trabalhadores como condição para a produtividade.

12

Desta maneira, a subsunção do trabalho vem permitindo a reprodução das unidades de

produção familiar camponesa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As transformações ocorridas nas relações da sociedade têm seus rebatimentos

espaciais, e são reflexos desta mesma sociedade. As diferentes formas de organização

convergem para a manutenção dos processos nos quais esta sociedade é submetida, e o

desenvolvimento desse processo necessita obrigatoriamente da interação com o espaço.

Entendemos que o espaço geográfico é, portanto, um produto histórico e social

resultante das relações estabelecidas entre a sociedade e a natureza. Essas relações sociais são

relações de trabalho estabelecidas no conjunto do processo produtivo geral da sociedade. O

modo de produção capitalista é desigual, e o capital se reproduz na sociedade, produzindo

espaços desiguais.

Constatamos que o Estado, por intermédio das políticas de desenvolvimento

industrial, oferece sistematicamente vantagens para que diversos tipos de indústrias se

estabeleçam do território sergipano. No contexto da crise estrutural, o capital monitora,

mapeia e ocupa espaços onde seja possível a extração máxima do mais-valor.

O atual agravamento da crise estrutural do capital se deu, entre outras coisas, devido

à redução das taxas de lucro por conta do aumento do preço da força de trabalho; ao

esgotamento do padrão de acumulação taylorista/fordista de produção, dado pela redução do

consumo ocasionado pelo início do desemprego estrutural; à crise do “Estado de bem estar

social”, acompanhado da crise fiscal do Estado capitalista; e às privatizações,

desregulamentações generalizadas e flexibilização do processo produtivo.

O agravamento da crise cíclica do capital é responsável pelo acirramento da tensão

contraditória que existente intrinsecamente à relação Capital-Trabalho.

A crise é, não somente, o produto de uma contradição inerente entre a necessidade

de desenvolver as forças produtivas e as condições sob as quais esta deve ocorrer;

em seu desenvolvimento concreto, assim como em sua gênese, a crise econômica é

essencialmente contraditória (SMITH, 1984, p. 185).

A indústria, sustentada no discurso da garantia de melhoria de vida através do

assalariamento, provoca uma intensa mobilidade do trabalho e do capital, em que os

trabalhadores são transformados em sujeitos supérfluos para o sistema do capital, ao tempo

13

que provoca a perda da terra dos camponeses, quando não captura o campesinato à sua

dinâmica produtiva, subordinando-o. O capital se expande espacialmente e em pleno

desemprego estrutural faz ascender, tanto no campo quanto na cidade, novas formas de

acumulação baseadas no aumento acentuado e precarizado das relações de trabalho,

principalmente em decorrência de processos cada vez mais avançados de potencialização da

extração do mais-valor.

A inserção da indústria no campo permite a diminuição do capital variável. A

redução dos preços surge a partir da necessidade criada pela concorrência na expansão de

mercado ou na entrada de produtos concorrentes no “Território”. Em relação à incorporação

da produção camponesa ao APL do Leite em função das agroindústrias, constatamos que a

busca pelo barateamento da produção - inclusive subordinando o trabalho camponês sem o

assalariar - influi na diminuição do capital variável frente ao capital constante e,

consequentemente, na queda tendencial da taxa média de lucro. Ao assumir o APL como

forma de reduzir custos, as empresas fortalecem a tendência para maior produtividade gerada

pela alteração da taxa de lucro, alimentando as condições favoráveis para a crise de

superprodução e sua consequente precarização do trabalho. Deste modo, a acumulação

tende a concentrar e centralizar o capital mediante a desapropriação de pequenos capitalistas e

de trabalhadores em tempos de crise, exigindo maiores reduções nos custos e formas

desmedidas de manutenção da lucratividade.

REFERÊNCIAS

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trabalho. 2º ed. São Paulo, Boitempo, 2009.

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Apoio ao Desenvolvimento de Arranjos Produtivos Locais, 2004.

CARLOS, Ana Fani Alessandri. Espaço e Indústria. São Paulo: Contexto, 1988.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. 2º edição. Volume IV, Livro

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MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1958: esboços da crítica da

economia política. São Paulo. Boitempo; Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 2011.

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Tradução: Eduardo de Almeida Navarro. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1988.