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7 CADERNOS TEMÁTICOS DE QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 6 – JULHO 2005 Suplementação de elementos-traços Introdução N os seres vivos predominam o carbono, o hidrogênio, o ni- trogênio e o oxigênio. Como esses são os elementos fundamen- tais da Química Orgânica, acreditou- se durante muito tempo que somente os compostos orgânicos e as reações que os envolviam eram indispensá- veis para a Vida, e que os elementos e compostos comumente chamados “inorgânicos” tinham escasso ou ne- nhum significado para os sistemas vi- vos. Havia, no entanto, algumas exceções bem conhecidas e estabe- lecidas, tais como o reconhecimento da presença de ferro no sangue, ou de cálcio nos ossos e dentes, e a par- ticipação do fósforo em numerosos processos metabólicos. Só recentemente tomou-se cons- ciência clara de que muitos outros elementos inorgânicos, sobretudo metais de transição, presentes geral- mente em baixas concentrações (traços), são essenciais para todos os seres vivos. Hoje sabemos que certas alterações no metabolismo desses elementos-traços são causa de várias doenças e desordens fisiológicas. Em razão das concentrações muito baixas desses elementos, a impor- tância biológica de muitos deles só foi determinada há pouco tempo, pois foi necessário dispor, primeiramente, de métodos analíticos muito sensíveis e específicos para detectá-los e, de- pois, de ferramentas bioquímicas capazes de confirmar seu ca- ráter essencial. Diz-se que um elemento é essencial para um determinado organismo quando a deficiência de sua in- gestão produz desor- dens em certas fun- ções, e quando sua recuperação aos níveis fisiológicos é capaz de reverter essas desordens. Sem sua participação, o organismo não pode desenvolver-se normalmen- te e nem completar seu ciclo vital, pois sua função não pode ser reali- zada de forma completa por outro sistema ou elemento. Atualmente, cerca de trinta elemen- tos são reconhecidos como essenciais para os seres vivos. A Tabela 1 apresenta a composição elementar média de um ser humano adulto nor- mal (Baran, 1995). De acordo com a sua abundância relativa no organismo, esses elementos se classificam como majoritários, traços e ultramicro-traços. Hidrogênio, carbono, nitrogênio e oxigênio, componentes básicos da matéria orgânica, são constituintes majoritários, assim como o enxofre, o fósforo, o cloro e os quatro metais re- presentativos biolo- gicamente relevantes - sódio, potássio, magnésio e cálcio. Ferro, zinco e cobre correspondem ao grupo de elementos- traços, e são também os três metais de transição mais abundantes em todos os seres vivos. Os metais restantes e alguns outros elementos não metálicos (por exemplo, selênio e iodo) encontram-se em con- centrações extremamente baixas, mas possuem uma extraordinária impor- tância para a vida. O estudo dos modos de ação e do comportamento dos elementos- traços e ultramicro-traços nos siste- mas biológicos constitui o campo de trabalho de uma nova área interdisci- plinar da Química, comumente cha- Enrique J. Baran Neste artigo são apresentados alguns aspectos gerais relacionados às funções e ao caráter essencial de sistemas inorgânicos fundamentais para o desenvolvimento correto e balanceado dos processos fisiológicos e metabólicos nos seres vivos. Sabe-se que deficiências de elementos-traços essenciais dão origem a várias desordens fisiológicas e doenças. Assim, a suplementação desses elementos transformou-se em um tema de crescente importância na Farmacologia moderna, e a Química Inorgânica Medicinal propõe diferentes metodologias e vias para que os processos de suplementação sejam cada vez mais efetivos e potentes. Essas metodologias são ilustradas com exemplos que envolvem a suplementação de ferro, zinco, cobre, cromo, magnésio, selênio e alguns outros elementos minoritários. elementos-traços, suplementação, Farmacologia Só recentemente tomou-se consciência clara de que muitos elementos inorgânicos, sobretudo metais de transição, presentes geralmente em baixas concentrações (traços) nos organismos, são essenciais para todos os seres vivos

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CADERNOS TEMÁTICOS DE QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 6 – JULHO 2005Suplementação de elementos-traços

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Introdução

Nos seres vivos predominam ocarbono, o hidrogênio, o ni-trogênio e o oxigênio. Como

esses são os elementos fundamen-tais da Química Orgânica, acreditou-se durante muito tempo que somenteos compostos orgânicos e as reaçõesque os envolviam eram indispensá-veis para a Vida, e que os elementose compostos comumente chamados“inorgânicos” tinham escasso ou ne-nhum significado para os sistemas vi-vos. Havia, no entanto, algumasexceções bem conhecidas e estabe-lecidas, tais como o reconhecimentoda presença de ferro no sangue, oude cálcio nos ossos e dentes, e a par-ticipação do fósforo em numerososprocessos metabólicos.

Só recentemente tomou-se cons-ciência clara de que muitos outroselementos inorgânicos, sobretudometais de transição, presentes geral-mente em baixas concentrações(traços), são essenciais para todos osseres vivos. Hoje sabemos que certasalterações no metabolismo desseselementos-traços são causa de váriasdoenças e desordens fisiológicas. Emrazão das concentrações muito

baixas desses elementos, a impor-tância biológica de muitos deles sófoi determinada há pouco tempo, poisfoi necessário dispor, primeiramente,de métodos analíticos muito sensíveise específicos para detectá-los e, de-pois, de ferramentasbioquímicas capazesde confirmar seu ca-ráter essencial.

Diz-se que umelemento é essencialpara um determinadoorganismo quando adeficiência de sua in-gestão produz desor-dens em certas fun-ções, e quando suarecuperação aos níveis fisiológicos écapaz de reverter essas desordens.Sem sua participação, o organismonão pode desenvolver-se normalmen-te e nem completar seu ciclo vital,pois sua função não pode ser reali-zada de forma completa por outrosistema ou elemento.

Atualmente, cerca de trinta elemen-tos são reconhecidos como essenciaispara os seres vivos. A Tabela 1apresenta a composição elementarmédia de um ser humano adulto nor-mal (Baran, 1995). De acordo com a

sua abundância relativa no organismo,esses elementos se classificam comomajoritários, traços e ultramicro-traços.Hidrogênio, carbono, nitrogênio eoxigênio, componentes básicos damatéria orgânica, são constituintes

majoritários, assimcomo o enxofre, ofósforo, o cloro e osquatro metais re-presentativos biolo-gicamente relevantes- sódio, potássio,magnésio e cálcio.Ferro, zinco e cobrecorrespondem aogrupo de elementos-traços, e são também

os três metais de transição maisabundantes em todos os seres vivos.Os metais restantes e alguns outroselementos não metálicos (por exemplo,selênio e iodo) encontram-se em con-centrações extremamente baixas, maspossuem uma extraordinária impor-tância para a vida.

O estudo dos modos de ação edo comportamento dos elementos-traços e ultramicro-traços nos siste-mas biológicos constitui o campo detrabalho de uma nova área interdisci-plinar da Química, comumente cha-

Enrique J. Baran

Neste artigo são apresentados alguns aspectos gerais relacionados às funções e ao caráter essencial de sistemasinorgânicos fundamentais para o desenvolvimento correto e balanceado dos processos fisiológicos e metabólicos nos seresvivos. Sabe-se que deficiências de elementos-traços essenciais dão origem a várias desordens fisiológicas e doenças.Assim, a suplementação desses elementos transformou-se em um tema de crescente importância na Farmacologia moderna,e a Química Inorgânica Medicinal propõe diferentes metodologias e vias para que os processos de suplementação sejamcada vez mais efetivos e potentes. Essas metodologias são ilustradas com exemplos que envolvem a suplementação deferro, zinco, cobre, cromo, magnésio, selênio e alguns outros elementos minoritários.

elementos-traços, suplementação, Farmacologia

Só recentemente tomou-seconsciência clara de que

muitos elementosinorgânicos, sobretudo

metais de transição,presentes geralmente em

baixas concentrações(traços) nos organismos,são essenciais para todos

os seres vivos

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CADERNOS TEMÁTICOS DE QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 6 – JULHO 2005Suplementação de elementos-traços

mada Química Bioinorgânica, a qualtem conseguido um rápido e explosi-vo desenvolvimento durante as últi-mas três décadas. A partir dessesestudos chegamos a entender combastante clareza o papel que esseselementos minoritários têm nos seresvivos, e basicamente podemos iden-tificar cinco funções que requeremsua participação (Baran, 1990, 1995):

1. Transporte e ativação do oxigênioEssa é uma das funções mais im-

portantes para todos os organismossuperiores. O transporte do oxigêniose realiza normalmente utilizando pro-teínas que contêm ferro (por exemplo,hemoglobina) ou, eventualmente,cobre (hemocianina). Nesses casos,forma-se uma ligação entre o centrometálico e a molécula de oxigênio e,em conseqüência, a molécula de O2sofre um processo, chamado deativação, que a torna extremamentereativa.

2. Transporte de elétronsCertos metais, que podem apre-

sentar-se em dois ou mais estados deoxidação (manganês, ferro, cobre e

molibdênio), são utilizados para otransporte de elétrons. Isto é, os sis-temas que os contêm podem receberelétrons de um agente redutor (capazde doar elétrons) e transferi-los de-pois a outro oxidante (capaz de rece-ber elétrons).

3. Centro catalítico em processos deóxi-redução

Nesses sistemas, o metal constituio sítio ativo onde ocorre uma reaçãode óxi-redução (por exemplo, adecomposição de H2O2 em H2O e O2,catalisada pela catalase, uma enzimaque contém ferro, ou a oxidação desulfito a sulfato, catalisada pela sul-fito-oxidase, uma enzima que contémmolibdênio).

4. Centro catalítico em processosácido-base

Nesses casos, um metal é o sítioativo onde ocorre uma reação de tipoácido-base (por exemplo, a conver-são de CO2 em HCO3

– ou a hidrólisede um éster fosfórico, catalisadaspelas enzimas anidrase carbônica efosfatase, respectivamente, ambascontendo zinco).

5. Função estruturalUma função óbvia desse tipo é,

por exemplo, a participação de fos-fatos de cálcio na formação das estru-turas ósseas de todos os organismossuperiores. Desse modo, muitas ve-zes a união de um cátion metálico aum determinado sítio de uma biomo-lécula (por exemplo, uma proteína) éessencial para obter-se uma estrutura es-pacial adequada quelhe permita realizaralguma função pre-determinada.

Juntamente como melhor conheci-mento dos mecanismos de atividadee da função dos metais em sistemasbiológicos, tem-se tornado evidenteque a concentração de qualquer me-tal presente em um organismo vivodeve estar sujeita a um continuado eestrito controle. Isto permite um fun-cionamento adequado dos proces-sos metabólicos e fisiológicos e umainter-relação equilibrada entre todos

os sistemas e espécies inorgânicaspresentes nesse organismo. Concre-tamente, no caso dos seres huma-nos, um amplo número de desordense doenças é atualmente associávelaos excessos ou deficiências de cer-tos elementos metálicos.

Para o caso de uma sobrecargade algum metal essencial gerada pordesordens fisiológicas, ou em casosde envenenamento por excesso deum elemento tóxico, tem-se desenvol-vido diferentes agentes quelantes oudrogas que são capazes de eliminaresses excessos e permitem restabe-lecer os equilíbrios biológicos e bio-químicos normais. Esses sistemasconstituem a base do que, na Quí-mica Inorgânica Medicinal, se deno-mina quelatoterapia (Baran, 1995; Tay-lor & Williams,1995). São tambémconhecidas doenças e desordensgeradas por deficiência de um ele-mento essencial e, nesse caso, a Quí-mica Inorgânica Medicinal propõediferentes caminhos e metodologiaspara sua suplementação em formaadequada e eficiente. A discussão dasuplementação, relacionada a umgrupo selecionado de elementos-tra-ços e ultramicro-traços, constitui o as-pecto central deste artigo.

Suplementação de elementosessenciais: contribuições da QuímicaInorgânica Medicinal

A Química Bioinorgânica tem con-tribuído para o conhecimento deta-lhado do metabolismo dos diferentes

elementos presentesnos seres vivos. As-sim, tem-se conse-guido reunir informa-ção sobre captação,transporte, utilizaçãoe armazenamentoda maioria dos ele-

mentos mencionados na Tabela 1.Fazendo uso desses conhecimentos,a Química Inorgânica Medicinal podeajudar no desenho racional de novossistemas de suplementação. Em par-ticular, os complexos envolvidos notransporte de cátions metálicos, quehabitualmente apresentam interaçõesmetal-ligante altamente específicas ede alta estabilidade, oferecem uma

Tabela 1: Composição elementar médiade um humano adulto normal de 70 kgde peso.

Elemento g/70 kg.peso

O 43.500

C 12.600

H 7.000

N 2.100

Ca 1.050

P 700

S 175

K 140

Na 105

Cl 105

Mg 35

Fe 4,2

Zn 2,3

Cu 0,1

F,Si,B,Br < 0,5

V, Mn, Ni ?

Cr, Co, Mo ?

Se, As, I ?

Elementosmajoritários

Elementos-traços

Elementosultramicro-traços

No caso dos sereshumanos, um amplo

número de desordens edoenças são associáveis a

excessos ou deficiências decertos elementos metálicos

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excelente via para a exploração denovas e mais eficientes formas desuplementação.

Há algumas outras idéias que apa-recem como centrais para o desen-volvimento desse campo, entre asquais a de gerar sistemas que pre-ferencialmente per-mitam a suplemen-tação por via oral eque favoreçam umarápida mobilizaçãodos complexos me-tálicos envolvidosdesde o intestino atéo sangue. Em todosos casos os siste-mas de ligantes es-colhidos devem sermuito semelhantesaos sistemas natu-rais, uma maneira de evitar ou mini-mizar efeitos colaterais.

Outro aspecto importante queestá sob contínua investigação é o de-senvolvimento de novas formas far-macológicas, nas quais a liberaçãodo elemento a suplementar possa sercontrolada da maneira mais eficientepossível. Isso ajuda a manter níveisótimos do elemento, aumenta suaatividade terapêutica e usualmente re-duz o número de administrações re-queridas durante o tratamento.

Suplementação de elementos-traçose ultramicro-traços

FerroComo mostrado na Tabela 1, o fer-

ro é o metal de transição mais abun-dante no organismo humano e parti-cipa de uma importante e variadasérie de processos e funções, entreas quais o metabolismo do oxigênio(hemoglobina, mioglobina, oxigena-ses), o transporte de elétrons (cito-cromos, ferredoxinas), e em centroscatalíticos de enzimas de diversos ti-pos (peroxidases, catalases, fosfata-ses ácidas púrpuras). Isso o torna umdaqueles elementos cuja deficiênciagera maiores desordens e disfun-ções. As desordens associadas aometabolismo do ferro são basicamen-te de dois tipos: por um lado anemiase processos similares associados adeficiências do metal e, por outro,

problemas de toxidez relacionados àpresença de ferro em excesso nostecidos e fluidos biológicos.

A deficiência de ferro aparececomo o problema nutricional mais fre-qüente no mundo, afetando em tornode 24% da população. Sua incidência

nos paises desenvol-vidos oscila entre 4 e10%, enquanto nospaíses em desenvolvi-mento esses númeroscrescem dramatica-mente até cerca de40%. Estudos recen-tes da OrganizaçãoMundial da Saúde(World Health Organi-zation, WHO) mos-tram que, em paísesem desenvolvimento,

47% das mulheres em idade repro-dutiva são pelo menos ligeiramenteanêmicas. Em muitos países de nos-sa região tenta-se reduzir o impactodesse problema suplementando,com ferro, o leite que se administraaos recém-nascidos e às crianças pe-quenas.

Os compostos clássicos utilizadosna suplementação de ferro por via oralincluem diversos sais simples deFe(II) e Fe(III), de ácidos orgânicos ouinorgânicos tais como o sulfatoferroso ou férrico, o citrato férricoamoniacal, o fumarato ferroso e o glu-conato ferroso, entre outros. Os saisferrosos são absorvidos mais rapida-mente que os férricos. A administra-ção simultânea deácido ascórbico (vi-tamina C) tambémparece favorecer amelhor absorção doferro.

Por outro lado, ouso de ferro elemen-tar tem voltado adespertar interessenos últimos anos.Pode-se obter umpó de ferro muito finamente divididopor decomposição térmica do pen-tacarbonil ferro ([Fe(CO)5] → Fe +5CO) e esse pó parece ser a formaideal para enriquecer diversoscereais, assim como a farinha (esubseqüentemente o pão amassado

com ela). Dessa forma, o ferro éfacilmente absorvido e não geraefeitos colaterais indesejáveis.Experiências recentes têm demons-trado que muitos desses efeitos cola-terais também podem ser minimiza-dos, se forem utilizados complexosde ferro que liberam muito lentamenteo elemento.

A suplementação parenteral éraramente utilizada porque a maioriados pacientes responde bem à suple-mentação oral. O sistema mais am-plamente utilizado para ser aplicadoem forma intramuscular ou intrave-nosa é um complexo de hidróxidoférrico com dextrano. Outros sistemassimilares são constituídos porFe(OH)3 coloidal associado a dextrinaparcialmente hidrolisada, ou a mistu-ras de ácido cítrico/sorbitol.

ZincoEntre os elementos-traços o zinco

é, depois do ferro, o metal mais abun-dante em sistemas biológicos. Até omomento foram identificadas mais de200 metaloenzimas contendo esseelemento. Por suas característicasquímicas, eletrônicas e estruturais, ozinco é o exemplo típico de metalassociado a processos catalíticos detipo ácido-base. No entanto, participaigualmente de sistemas reguladorese estruturais.

As deficiências de zinco são bas-tante comuns, porém difíceis de reco-nhecer. Essas deficiências têm um forteimpacto no crescimento, na cicatri-

zação de feridas, naresposta imunológicae na reprodução, eafetam os órgãos gus-tativos, a visão e o ta-to. Recentemente, têmsido associadas tam-bém aos quadros deanorexia nervosa. Napresença de baixos ní-veis de zinco no orga-nismo e em deficiên-

cias severas, tem-se detectado tam-bém desordens emocionais, irritabi-lidade mental e diarréias crônicas.

Os compostos habitualmente em-pregados para suplementar zinco sãosais inorgânicos de sulfato ou cloreto,ou orgânicos, de acetato, gluconato

Entre os elementos-traços, ozinco é o segundo metal mais

abundante em sistemasbiológicos. Sua deficiência é

bastante comum, mas dedifícil reconhecimento, tendo

forte impacto nocrescimento, na cicatrização

de feridas, na respostaimunológica e na reprodução,

afetando os órgãosgustativos, a visão e o tato

O ferro é o metal detransição mais abundante no

organismo humano eparticipa de uma importantee variada serie de processose funções. Sua deficiênciaaparece como o problema

nutricional mais freqüente nomundo, afetando em torno

de 24% da população

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ou estearato. Algumas vezes utiliza-setambém o óxido de zinco para a forti-ficação de alimentos. De qualquermodo, o composto mais amplamenteutilizado continua sendo o sulfato dezinco. A principal desvantagem dessecomposto, sobretudo no caso de tra-tamentos prolongados, é o efeito desua acidez, que freqüentemente cau-sa desordens gastrointestinais, náuseaou vômitos. Com o objetivo de reduziresses efeitos colaterais, recentementefoi sugerido o uso de sais básicos dezinco, tais como Zn5(OH)8Cl2.H2O ouNa2Zn3(CO3)4.3H2O.

Finalmente, é importante ter emmente que em tratamentos prolon-gados de suplementação, ou quandosão usadas doses altas de Zn(II),observam-se deficiências de cobre,geradas provavelmente por mecanis-mos competitivos de absorção deambos os cátions no trato gastroin-testinal. Por essa razão, durante trata-mentos prolongados de suplemen-tação de zinco, é importante agregaràs dietas pequenas doses de algumsal de cobre para compensar a defi-ciência.

CobreTal como o ferro, o cobre participa

de uma ampla gama de funções e sis-temas biológicos, estando envolvidoem uma grande variedade de proces-sos enzimáticos (por exemplo, nosassociados a citocromo oxidases,tirosinases, ceruloplasmina, lisina oxi-dase, ascorbato oxidase, superóxidodismutase, amino oxidase e muitosoutros). Sendo assim, sua deficiênciatambém gera um sem número de pro-blemas e desordens, e uma varie-dade de enfermidades que podemestar correlacionadas claramente àsdeficiências desse elemento são co-nhecidas. Por exemplo, pacientes quepadecem de artrite reumatóide, úlce-ras gástricas, tumores cancerígenosou episódios epilépticos, usualmenteapresentam concentrações elevadasde cobre no soro ou plasma. Outroproblema bem conhecido, desta vezrelacionado à deficiência de cobre, éa doença de Menkes, uma desordemde origem genética que conduz auma rápida degeneração cerebral,usualmente acompanhada por con-

vulsões, hipotermia e retardos docrescimento.

Os complexos que o cobre formacom uma grande variedade de ami-noácidos, peptídeos de baixo pesomolecular e ligantes similares, têm de-monstrado uma importante atividadeantiinflamatória, antiulcerosa, anticon-vulsivante e até anticarcinogênica.Evidentemente, esses compostosservem como forma de transporte decobre e permitem a ativação oureativação de enzi-mas dependentesdesse metal, razãopela qual são ade-quados como via desuplementação.

Apesar de se sa-ber que a doença deMenkes não pode sertratada mediante su-plementação comcobre, o tratamentode pacientes afeta-dos por este mal com o complexo queo Cu(II) forma com L-histidina, defórmula [Cu(L-histidinato)2], aparececomo a terapia mais eficiente seaplicada no estágio inicial da doença,pois a eficácia do tratamento parecedepender de uma boa disponibilidadede cobre em um período crítico de for-mação e desenvolvimento do sistemanervoso.

MagnésioOs metais alcalinos sódio e potás-

sio e os alcalino-terrosos magnésio ecálcio são os quatro metais maisabundantes nos sistemas biológicos.Conseqüentemente, síndromes dedeficiência associadas a esses ele-mentos são relativamente raras, poisvirtualmente qualquer dieta padrãogarante uma ingestão normal de to-dos eles. Não obstante, essa situaçãotem começado a mudar drasticamen-te nas sociedades modernas onde,por exemplo, muitos animais são cria-dos em ambientes controlados comdietas de crescimento estritamentereguladas, e os seres humanos estãonotavelmente sujeitos a perdas conti-nuadas de eletrólitos, devido a situa-ções de estresse, excesso de ativida-des esportivas, ou importantes mu-danças nos hábitos alimentares.

Essas situações afetam particular-mente os níveis de magnésio, que éo menos abundante dos quatro ele-mentos acima citados (ver Tabela 1).Por essa razão, a suplementação demagnésio tem-se transformado emum aspecto relevante na Medicina ena Farmacologia contemporâneas.

Para essa finalidade, devem-seselecionar compostos que permitamuma absorção rápida e eficiente deMg(II), sem alterar de maneira impor-

tante o pH e os equi-líbrios iônicos exis-tentes nos fluidosbiológicos. Devem-se também encon-trar ligantes que nãogerem efeitos cola-terais indesejáveis. Autilização de águasminerais ricas emMg(II) é uma daspossibilidades maissimples e habitual-

mente empregadas.Outros sistemas muito adequa-

dos, e que têm sido exploradosrecentemente, são os complexos deMg(II) de diversos aminoácidos ealguns de seus derivados. Um delesé derivado do L-ácido aspártico e temcomposição Mg(L-HAsp)Cl.3H2O (verestrutura esquematizada na Figura 1).Esse composto tem despertadogrande interesse por apresentar umamplo espectro de atividades tera-pêuticas. Outros compostos similarese potencialmente adequados para asuplementação do elemento são osdiferentes complexos que o Mg(II) for-ma com o ácido cítrico, com o ácidoglutâmico ou com o piroglutâmico,

Os metais alcalinos Na e Ke os alcalino-terrosos Mg e

Ca são os quatro metaismais abundantes nossistemas biológicos.

Síndromes de deficiênciaassociadas a eles eramrelativamente raras, mas

essa situação mudoudrasticamente nas

sociedades modernas

Figura 1: Esfera de coordenação do cá-tion Mg(II) no complexo Mg(L-Asp)Cl.3H2O (Os dois átomos O’, coordena-dos ao cátion, provêm de grupos carbo-nila de complexos vizinhos).

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assim como com alguns outros ligan-tes simples, tais como os ácidos oró-tico e isoorótico.

CromoDurante os últimos 15 anos, uma

variedade de estudos nutricionais temsugerido que o Cr(III) poderia desem-penhar um papel essencial nos mamí-feros, sendo requerido para o corretofuncionamento das rotas metabólicasassociadas a carboidratos e lipídeos.O sistema bioinorgânico contendoesse cátion tem sido habitualmentedenominado como fator de tolerânciaà glicose (FTG).

Nos estudos clínicos de suple-mentação de cromo, inicialmente foiutilizado o cloreto de cromo, o qualfoi depois substituído por uma varie-dade de complexos de Cr(III) comácido nicotínico e alguns aminoá-cidos simples. Atualmente, uma gran-de parte dos estudos de suplemen-tação são realizados utilizando-sefermento de cerveja, que é um pro-duto muito rico em cromo biologi-camente ativo.

O complexo tris-picolinatocro-mo(III), cuja estrutura é mostrada naFigura 2, aparece atualmente comoum dos mais impor-tantes e mais popu-lares suplementosnutricionais, cuja co-mercialização mun-dial gera anualmentemais de 100 milhõesde dólares. Essecomposto está sen-do utilizado nos trata-mentos de obesida-de e para o fortaleci-mento muscular e foi tambémrecomendado nas terapias de diabe-tes de tipo II.

VanádioAinda que a questão de o vanádio

ser essencial para o Homem continuemotivo de controvérsias, nos últimosanos houve grande interesse emtorno da atividade farmacológica decertos compostos desse elemento,devido à sua forte atividade insulino-mimética e à busca de novas formasterapêuticas para melhorar o controledos quadros diabéticos. Vários saise compostos simples de vanádio(IV)e de vanádio(V) mostram esse tipo deatividade e recentemente foi testadauma infinidade de quelatos deoxovanádio(IV), oxovanádio(V) eperoxovanadatos, além de outroscomplexos similares. Um exemplomuito interessante desse tipo de dro-gas, que já está em etapa de experi-mentação clínica, é o bis(maltolato)oxovanadio(IV) (Figura 3), que tem semostrado como um sistema com ex-celentes perspectivas farmaco-lógicas.

SelênioA maioria das desordens origina-

das de deficiências de selênio estárelacionada com os mecanismos dedefesa celular frente ao ataque por

radicais livres (Ba-ran, 1995, 1997). As-sim, o selênio pareceter alguma relaçãocom os sistemasimunológicos. Nosseres humanos, adeficiência tem-seassociado freqüen-temente a doençascardíacas e a proble-mas nas articula-

ções e na estrutura óssea. Nesse con-texto, deve-se mencionar a existênciade duas enfermidades endêmicas queforam descritas em diferentes regiõesda China, e que são claramente asso-ciáveis a deficiências desse elemento:

a doença de Keshan, que afeta funda-mentalmente crianças e produz impor-tantes transtornos no ritmo cardíaco,levando freqüentemente à morte, e omal de Kashin e Beck, que ocasionadesordens graves no desenvolvimentoósseo, produz deformações nasarticulações e gera fraqueza muscular.Recentemente, foram sugeridastambém relações entre os níveis deselênio e a AIDS.

Por essas razões, a suplemen-tação de selênio tem despertadogrande interesse e, em muitos países,já são incorporados diferentes com-postos de selênio aos alimentos parasua fortificação. Vários compostossimples, tais como SeO2, Na2SeO3 ouNa2SeO4, se mostraram fisiologica-mente ativos. Recentemente foi ava-liada uma grande variedade de com-postos orgânicos do elemento, edemonstrou-se que o L-selenometio-nina (Figura 4) é particularmente útil.Desse modo, alguns fermentos, cres-cidos em meios ricos em selênio,mostraram também excelentes efei-tos. Do ponto de vista farmacológico,os compostos orgânicos de selênioaparecem como mais apropriados doque os inorgânicos, já que os seleni-tos e oxiânions relacionados são maistóxicos do que os compostos orgâni-cos e, por outro lado, os compostosinorgânicos tendem a reduzir-se,inativando-se com certa facilidade.

CobaltoA chamada anemia perniciosa é

uma desordem que se apresentageralmente em adultos que carecemde vitamina B12. Inicialmente essadoença se manifesta com quadros defadiga e debilidade extrema, dores delíngua e dificuldades motrizes. Simul-taneamente, aparecem diversasdesordens hematológicas, entre asquais uma importante diminuição nonúmero de eritrócitos (células verme-lhas do sangue). A vitamina B12 éuma das biomoléculas mais comple-xas que se conhece (Figura 5), sendo

Figura 2: Estrutura esquemática do com-plexo tris(picolinato)cromo(III).

Figura 3: Estrutura esquemática do com-plexo bis(maltolato)oxovanadio(IV).

Figura 4: Estrutura esquemática da sele-nometionina.

Nos últimos anos houvegrande interesse em tornoda atividade farmacológicade certos compostos de

vanádio, devido à sua forteatividade insulino-miméticae à busca de novas formasterapêuticas para melhorar

o controle dos quadrosdiabéticos

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o único sistema bioinorgânico presen-te no organismo humano que contémcobalto, o qual participa comocoenzima em uma importante sériede reações e transformações bioló-gicas. As deficiências de vitamina B12usualmente podem ser controladaspor injeções intramusculares de cia-nocobalamina (a cianocobalamina éum complexo no qual o resíduo 5’-

Abstract: Some general aspects related to the function and essential character of inorganic systems which are fundamental to the correct and balanced development of physiological andmetabolic processes in living organisms are discussed. It is well known that deficiencies of essential trace elements cause many physiological disorders and diseases. Hence supplementation ofthese elements has become a subject of increasing importance in modern Pharmacology. Inorganic Medicinal Chemistry proposes a variety of methods and ways to make supplementation moreeffective and potent. These methods are illustrated with examples involving supplementation of iron, zinc, copper, chromium, magnesium, selenium, and some ultra micro trace elements.Keywords: trace-elements, supplementation, Pharmacology

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desoxiadenosil unido aoCo(III) é substituído porum ânion cianeto).

Considerações finaisFinalmente, seria

muito interessante co-mentar que os proble-mas associados a defici-ências de elementosessenciais ocorrem tam-bém, e bastante freqüen-temente, em animais, eestão estreitamente rela-cionados com as carac-terísticas do ambientegeográfico no qual elesse desenvolvem, bemcomo com peculiari-dades de suas dietas.De fato, muitos dos sis-temas de suplemen-tação que comentamosnos parágrafos anterio-res podem ser aplicadosdiretamente, ou com li-geiras modificações,também na MedicinaVeterinária.

Como conclusão,podemos dizer que aQuímica Inorgânica Me-dicinal, baseando-se

nos conhecimentos e informaçõesfornecidos pela Química Bioinorgâ-nica durante as últimas décadas, temconseguido interessantes e valiososavanços no campo da suplemen-tação de elementos-traços essen-ciais, bem como novos critérios eidéias para um desenvolvimento ra-cional, baseado em conceitos cien-tíficos sólidos, desse importante ramo

da Farmacologia moderna.

Enrique J. Baran ([email protected]),doutor em Química, investigador superior doCONICET, acadêmico titular da Academia Nacionalde Ciências Exatas Físicas e Naturais (Argentina) eda Academia de Ciências do Terceiro Mundo(TWAS), é professor titular de Química Inorgânicana Universidad Nacional de La Plata (La Plata, Ar-gentina). Tradução feita pela Dra. Anayive PerezRebolledo, atualmente realizando estágio de pós-doutorado no Centro de Desenvolvimento da Tec-nologia Nuclear (CDTN-MG).

Figura 5: Estrutura esquemática da vitamina B12. O Co(III)está unido equatorialmente a um anel macrocíclicochamado corrina, uma das posições axiais está ocupadapelo grupo 5’-desoxiadenosil, que gera uma união Co-C,e a outra posição axial envolve uma base orgânica(ligação Co-N).