engenho de dentro do lado de fora: o território como um ... da...

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Proposições de estratégias para a desinstitucionalização de uma instituição psiquiátrica decorrente de transformações operadas pela Reforma Psiquiátrica na cidade do Rio de Janeiro " Engenho de Dentro do lado de fora: o Território Como um Engenho Novo" (Constituição histórica e propostas de transformação assistencial no Instituto Municipal Nise da Silveira, conhecido como Hospital de Engenho de Dentro, ex-Centro Psiquiátrico Pedro II, ex-Centro Psiquiátrico Nacional, ex- Hospício Nacional, ex-Hospício de Pedro II) Curso MBA Gestão em Saúde Edmar Oliveira

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Proposições de estratégias para a desinstitucionalização de umainstituição psiquiátrica decorrente de transformações operadaspela Reforma Psiquiátrica na cidade do Rio de Janeiro

" Engenho de Dentro do lado de fora:

o Território Como um Engenho Novo"

(Constituição histórica e propostas de transformação assistencial noInstituto Municipal Nise da Silveira, conhecido como Hospital de Engenho deDentro, ex-Centro Psiquiátrico Pedro II, ex-Centro Psiquiátrico Nacional, ex-

Hospício Nacional, ex-Hospício de Pedro II)

Curso MBA Gestão em Saúde

Edmar Oliveira

Monografia apresentada como requisito de título para o Curso deEspecialização de Gestão em Saúde - Fundação João Goulart

Edmar de Sousa Oliveira

Orientador: Prof. Benilton Bezerra Jr.

Fundação João Gulart, 2004

2

"Pegar no espaço contigüidades verbais é o mesmoque pegar mosca no hospício para dar banho nelas.

Essa é uma prática sem dor.É como estar amanhecido a pássaros.

Qualquer defeito vegetal de um pássaro podemodificar os seus gorjeios".

(MANOEL DE BARROS)

3

Agradecimentos:

À minha companheira e filhos, Marcelina, Januária, Juliano e Janaína, por

compreenderem que depois de velho continuamos obrigados a estudar da mesma

forma de quando éramos jovens.

À Ariadne, amiga que ajudou a decifrar o dialeto nordestino na artimanhas

da língua portuguesa.

Aos diretores e gerentes do Instituto Municipal Nise da Silveira, por

sonharem juntos comigo uma projeção de realidade.

Aos companheiros do passado do antigo Centro Psiquiátrico Pedro II que

são personagens da história recente do CPPII.

A cada um dos usuários do Engenho de Dentro que, na sua idiossincrasia,

construíram comigo, por longos anos, o pano de fundo da história que aqui é

abordada. Só entendendo que esta história se passa na vida de cada um deles,

podemos tentar compreende-la melhor. E que os ensinamentos destas histórias

de vida nos apontem os melhores caminhos...

4

Índice

AGRADECIMENTOS: ..................................................................................... 4

RESUMO .................................................................................................. 8

DA METODOLOGIA ....................................................................................... 9

INTRODUÇÃO: INÍCIO DATADO, O FIM POSSÍVEL ........................ 12

CAPÍTULO 1: PARA IMAGINAR ONDE CHEGAR É PRECISO UM PONTO DE PARTIDA. ....... 13

PRIMEIRA PARTE: CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA ............................ 24

CAPÍTULO 2: A MESMA CENA SE REPETE QUASE UM SÉCULO DEPOIS: O NASCIMENTO DO HOSPÍCIO NO BRASIL. .............................................................................. 25

CAPÍTULO 3: HIGIENE MENTAL: UM ENGENHO DE DENTRO QUE SUBSTITUI A PRAIA DA SAUDADE... ............................................................................................. 42

CAPÍTULO 4: PERDE-SE O PASSADO, FICA-SE SEM O FUTURO: A PSIQUIATRIA, ENVERGONHADA, FOI PRIVATIZADA PELOS MERCADORES DE INFORTÚNIOS... .............. 62

......................................................................................................... 62

SEGUNDA PARTE: ECOS DA REFORMA NO ENGENHO DE DENTRO ............................................................................................ 72

CAPÍTULO 5: A RECONSTRUÇÃO DA FORMA: A REFORMA PSIQUIÁTRICA NÃO MODIFICA O CONTEÚDO MANICOMIAL. ............................................................................ 73

TERCEIRA PARTE: PROPOSIÇÕES ESTRATÉGICAS ................... 95

CAPÍTULO 6: A INTENÇÃO DE CHEGAR AO TERRITÓRIO: DE UM ENGENHO DE DENTRO PARA UM ENGENHO DO FORA ........................................................................ 96

5

.......................................................................................................... 99

ENGENHO DE DENTRO............................................................................................................. 101PROPOSIÇÕES ESTRATÉGICAS AINDA NO LADO DE DENTRO, MAS QUE POSSIBILITEM AÇÕES DO LADO DE FORA..102UM ENGENHO DO FORA........................................................................................................... 109

O PROVISÓRIO DA CONCLUSÃO... ................................................................ 119

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................ 121

FONTES PRIMÁRIAS ................................................................................. 125

ANEXO: DOCUMENTAÇÃO FOTOGRÁFICA ....................................................... 126

6

Resumo

Este trabalho pretende, em um primeiro momento, ser uma revisão do

processo histórico da constituição do Hospício do Engenho de Dentro. Esta

revisão tem por objetivo situar o lugar desta Instituição na história da psiquiatria

brasileira e realçar as marcas desta história no conjunto das práticas, rupturas e

tentativas de rupturas, com o intuito de deixar aparente as possibilidades de um

aprofundamento no assunto. Pois é necessário afirmar a superficialidade deste

trabalho neste aspecto, que não se pretende abrangente e muito menos capaz de

examinar todos os movimentos enunciados.

Num segundo momento, na história contemporânea do Centro Psiquiátrico

Pedro II, são examinadas as marcas produzidas na instituição pelo movimento da

Reforma Psiquiátrica brasileira, com destaque para o produto do embate entre as

novas práticas desta reforma e as antigas práticas manicomiais que são realçadas

pelo contexto histórico anterior. Também aqui são apontados alguns movimentos

que carecem de um exame mais aprofundado, mas que nos soa como necessário

para o iniciar de uma discussão que não está neste trabalho.

Por fim, são apresentadas proposições estratégicas para a superação da

prática manicomial que está presa na própria história da Instituição. Proposições

estratégicas que aparecem como se vislumbrar no horizonte a superação do

manicômio, que já é aceita pelo conhecimento acumulado, fosse possível. Por isto

é que no início nos reportamos a Foucault, que na sua “História da Loucura”

desnuda o saber psiquiátrico como um fato datado de um contexto da história e

não da ciência. E em Basaglia e na Reforma Italiana, que materializam a saída

para o fim do manicômio.

E o autor, por ser ator de um momento da história narrada e diretor de uma

equipe que elabora o roteiro das proposições estratégicas, pede desculpas pela

deformação que o afeto produz. Mas sem o afeto não me atreveria nesta

jornada...

7

Da metodologia

"A interrogação enorme em torno da cientificidade das ciências sociaisse desdobra em várias questões. A primeira diz respeito à possibilidadeconcreta de tratarmos de uma realidade da qual nós próprios, enquantoseres humanos, somos agentes. Esta ordem de conhecimento nãoescaparia radicalmente a toda possibilidade de objetivação?"Em segundo lugar, será que, buscando a objetivação própria dasciências naturais, não estaríamos descaracterizando o que há de maisessencial nos fenômenos e processos sociais, ou seja, o profundosentido dado pela subjetividade?Por fim e em terceiro lugar, que método geral poderíamos propor paraexplorar uma realidade tão marcada pela especificidade e peladiferenciação? Como garantir a possibilidade de um acordo fundadonuma partilha de princípios e não de procedimentos?" (MINAYO, 2002;11/2)

Estas interrogações colocadas por Minayo a respeito da pesquisa social,

notadamente da pesquisa qualitativa, dão a idéia de quão difícil está colocada a

questão do método neste campo. No caso deste trabalho não temos a pretensão

de fazer uma pesquisa desta ordem. O que não nos deixa menos enredado e,

pior, sem a ajuda das propostas metodológicas que tentam contornar estas

interrogações.

Na primeira parte deste trabalho tentamos fazer uma revisão bibliográfica

sobre a constituição do saber psiquiátrico no Brasil e suas implicações na

formação histórica de uma Instituição que fabrica as práticas deste saber. E numa

revisão bibliográfica, outras interrogações são colocadas para dificultar a validade

do trabalho. Quais fontes são consultadas? Quais privilégios são dados a

determinadas fontes? Que ordem de importância? Quais fontes foram excluídas

propositadamente ou ignoradas? Como a posição política do investigador interfere

na importância dada às fontes? Como o julgamento do que hoje é

consensualmente aceitável é criticado com preconceitos ao que na época

histórica era "verdadeiro"?

8

Não temos a pretensão de responder a estas questões. Dentro do possível,

sabendo da dificuldade do cumprimento da tarefa, tentamos seguir as

recomendações de Minayo (2002; 12/3):

"A cientificidade (...) tem que ser pensada como uma idéia reguladorade alta abstração e não como sinônimo de modelos e normas a seremseguidos. A história da ciência revela não um 'a priori', mas o que foiproduzido em determinado momento histórico com toda a relatividadedo processo de conhecimento (...)"O objeto das ciências sociais é histórico. Isto significa que associedades humanas existem num determinado espaço cuja formaçãosocial e configuração são específicas. Vivem o presente marcado pelopassado e projetado para o futuro, num embate constante entre o queestá dado e o que está sendo construído. Portanto, a provisoriedade, odinamismo e a especificidade são características fundamentais dequalquer questão social".

Na segunda parte deste trabalho os problemas metodológicos são

bastantes mais complicados. Nesta talvez tenha sido cometido um "crime de

método". O autor foi ator participante, de um lado, de embates pesquisados em

documentos da época. A narrativa, apesar de todos os cuidados tidos e havidos,

só pode ser tomada como "versão" do acontecimento. Não se resolvem estes

problemas com os atenuantes da chamada observação participante. Encarar a

narrativa como uma "versão" e deixar a possibilidade da existência de outras

versões, talvez seja a melhor solução ao problema.

Na terceira parte, quando falamos de proposições estratégicas, tomamos

como referência SERRA, TORRES & TORRES (2003) e CHIAVENATO (1999) para separar o

campo da Estratégia e o do Planejamento. Na estratégia são priorizados objetivos

para a definição de uma missão institucional. O planejamento permite alcançar

estes objetivos. O Planejamento Estratégico é a elaboração de um plano para

uma missão.

Como aqui só vamos falar de estratégia, faz sentido diferenciá-la do

planejamento e separar os dois termos da trajetória administrativa. Segundo os

autores citados, enquanto a essência da estratégia é a síntese, no planejamento é

a análise; o tempo da primeira não é determinado, enquanto no planejamento ele

9

é definido; na estratégia a fonte é a criatividade e o resultado uma visão,

enquanto no planejamento o método é a fonte e o plano é o resultado.

Portanto, como estamos falando apenas de estratégia, nossa missão

metodológica fica facilitada. Não nos propomos em amarrar o guizo no gato...

Melhor seria definir este trabalho na categoria de um ensaio. Se usado

verbo no lugar de substantivo, esperamos que depois de muito ensaiar a

apresentação seja possível.

10

INTRODUÇÃO: INÍCIO DATADO, O FIM POSSÍVEL

11

Capítulo 1: Para imaginar onde chegar é preciso um ponto departida.1

A publicação em 1961 da “História da Loucura” de Michel Foucault (1993)

abalou os alicerces da Psiquiatria na sua constituição enquanto ciência que

nascera como a primeira especialidade médica. Aplicando um método de

pesquisa histórica (FOUCAULT, 1972; ROUDINESCO, 1994; MACHADO, 1982;

PORTOCARRERO, 1988) Foucault disseca as camadas arqueológicas da constituição

do saber sobre a loucura, refazendo o percurso das relações sociais e o contexto

da loucura nestas relações, desde a Idade Média, detendo-se com mais rigor na

era clássica (séculos XVII e XVIII), que antecede ao nascimento da ciência

psiquiátrica, que a medicina faz brotar no final do século XVIII e em fecundo

prosseguimento no século XIX.

Sobre o método desenvolvido por FOUCAULT, PORTOCARRERO (1988) vai

analisar o que chama de dispersividade discursiva, na qual recebem a atenção do

historiador mesmo as mesquinharias, que geralmente são desconsideradas, mas

que aparecem nos processos judiciais, laudos, relatórios, etc., minúcias do

cotidiano social que Foucault trata como manifestações do saber e poder de uma

determinada época. Outra característica evidenciada é que Foucault não parte do

saber principal a que pertence o objeto de estudo, mas do emaranhado de

saberes que o estão sustentando, em um determinado momento histórico. Assim,

para elucidar o aparecimento da "doença mental", reúne os discursos que

sustentam os saberes da medicina, da psiquiatria, da biologia, da política, da

filosofia, como também são considerados no mesmo nível os discursos de textos

religiosos, da literatura e das artes em geral, além dos discursos internos de uma

instituição, seus regulamentos, normas, notas e, inclusive, o saber presente na

1 Este capítulo serve de introdução ao trabalho, com uma revisão bibliográfica de dois autores e os marcosconceituais estabelecidos: FOUCAULT e BASAGLIA.

12

arquitetura e objetos pertencentes e constituintes da época estudada. Seguindo

PORTOCARRERO, FOUCAULT pretende desvelar a história da verdade constituída. E aqui

ele divide a história em suas vertentes arqueológica e genealógica. Na primeira,

desloca a questão da ciência para o saber constituído e disseca o como este

saber emerge e se transforma; na segunda, trata da questão da forma como o

poder gera o saber e, no mesmo momento, o saber gera o poder.

"Aliás, Foucault não acredita na verdade. Para ele, a idéia de umaverdade eterna, universal, que está em toda parte e sempre, e quequalquer pessoa pode descobrir, pois está bem próxima à nossaespera, esta idéia é dominante num sistema de cultura como o nosso.É veiculada pela ciência e pela filosofia. (...)"Tal idéia deixa de lado uma série de práticas sociais que foramhistoricamente muito importantes em nossa cultura e que talvez ainda osejam. Sempre houve, em nossa civilização, instituições, técnicas erituais que reservaram momentos e lugares específicos para aprodução de verdade, não como uma possibilidade, mas como umdever. Ou seja, em uma sociedade como a nossa, há um certo númerode práticas pelas quais se tenta não descobrir, constatar ouestabelecer uma verdade que estaria à espera para ser desvendada,mas produzir uma verdade que não existia antes.A reconstituição (de processos geradores de uma verdade) se opõe àhistória dos comportamentos ou das representações, mesmo quandoanalisa condutas e idéias, abandonando, por meio da arqueologia, ahistória das idéias" (PORTOCARRERO, 1988).

Esta pequena incursão na história arqueológica de FOUCAULT era necessária

para voltarmos à História da Loucura.

A loucura que, com outras formas de comportamento anti-sociais, FOUCAULT

vai chamar de desatino, estava prisioneira do grande internamento produzido

socialmente na Idade Clássica. Aparece no nascimento da Psiquiatria apropriada

pelo saber médico como que libertada por Pinel, na França, e Tuke na Inglaterra,

no grande mito da inauguração da ciência psiquiátrica moderna, primeira

especialidade médica surgida. Primeira especialidade pelo afastamento que a

loucura, enquanto doença da alma, tinha da medicina, já que tanto os seus

métodos de diagnóstico quanto os de cura eram de outra natureza em relação `a

medicina do corpo. De qualquer forma, a loucura não havia sido conhecida no seu

passado, pois só a medicina podia revelar a sua verdade. E esta verdade carecia

13

de seu estatuto enquanto doença, objeto da medicina, para se revelar verdadeira.

Todo o arcabouço da Psiquiatria se sustenta após este paradigma da

transformação da loucura em doença mental. Como que numa revelação da

verdade, a doença mental aparece no nascimento da Psiquiatria enquanto

entidade pertencente ao campo do saber médico, estado ignorado anteriormente,

e, só a partir deste momento, entendida na sua essência.

Ora, o que FOUCAULT vai atacar é esta idéia de essência revelada pela

medicina. Em seu minucioso método da arqueologia do saber, camadas da

história são revolvidas para, juntando peças de descobertas históricas, localizar a

loucura enquanto historicamente produzida, estando a própria verdade da

descoberta médica produzida pelas relações sociais mantidas pela sociedade e

seus valores. E, nesta forma de leitura, o alicerce da Psiquiatria, enquanto ciência,

está abalado. Lá mais embaixo, na arqueologia do conhecimento2, camadas da

história são colocadas em discussão para que a constituição da loucura seja

buscada nas relações sociais estabelecidas com ela, das quais o saber médico é

apenas uma - datada e determinada. E isto muda a relação social para com o

saber médico - a Psiquiatria. Este golpe atinge a "verdade" do saber psiquiátrico.

Há muito mais que a redução à doença na loucura.

No capítulo dedicado ao nascimento do asilo, na “História da Loucura”,

FOUCAULT (1993; 459 e segs.) faz um exaustivo paralelo entre a constituição do

Retiro3 de Tuke, na Inglaterra, e a constituição de Bicêtre, organizado por Pinel

como o primeiro asilo médico destinado à loucura, em Paris. Interessante

perceber que, embora com trajetórias distintas, convergem ao mesmo ponto de

chegada para o nascimento do asilo na época moderna. No entanto, Pinel era um

médico conceituado na França e Tuke, um Quaker na Inglaterra, líder de uma

comunidade religiosa fechada. Pontos de partidas distintos? É aí que FOUCAULT

demonstra que o ponto de partida é igual: a base é de um tratamento moral. "O

asilo atribui-se por objetivo o reino homogêneo da moral, sua extensão rigorosa a

todos aqueles que tendem a escapar a ela"(FOUCAULT, 1993, 488). É este ponto de

partida comum que faz com que a medicina, ao incorporar a psiquiatria como2 Melhor seria concordar com PELBART (1989; 64): "...se trata de uma arqueologia da percepção - e não ahistória de uma experiência vivida.(...), arqueologia da percepção sobre a loucura e, nos seus interstícios,lêem-se os recuos, silêncios, contorções e fulgurações da desrazão." 3 Asilo religioso inglês para o “tratamento” da loucura.

14

primeira especialidade, produzindo uma medicina da alma, tenha na base da

moral, tanto a sua criação, o seu início, quanto a própria constituição do espaço

asilar como um lugar de segregação da loucura que não pode ter lugar na

sociedade. Assim também estava traçada a sua lógica: o método de cura moral.

O asilo, colocado neste lugar, vai perpassar dois séculos para chegar no mundo

contemporâneo carregando sua mesma marca inicial.

Claro que a constituição da Psicanálise, iniciada no final do século XIX por

Freud, e proficuamente fecunda no século XX, manteve um duelo com o saber

psiquiátrico de forma arrivista e provocando mudanças na história da psiquiatria.

É justo dizer que existe uma psiquiatria antes e outra depois de Freud, apesar da

psicanálise se considerar um saber afastado da psiquiatria, nunca querendo com

ela um vínculo histórico. Apressadamente podemos dizer que o modelo freudiano

e, posteriormente, a fórmula estrutural lacaniana4, estão colocados em um campo

de saber que questiona de outra forma, com outro modelo explicativo, o

entendimento da loucura, contrapondo e pretendendo superar o modelo clínico da

psiquiatria. No entanto, se dizem que o saber psiquiátrico está equivocado no

entendimento da loucura, não disparam, como faz FOUCAULT, um desmoronamento

da constituição do saber da psiquiatria5. E nem é esta a pretensão da psicanálise.

Com isto queremos justificar a escolha de FOUCAULT como ponto de partida.

Roberto Machado, em “Ciência e Saber - A Trajetória da Arqueologia de

Foucault”, destaca a extraordinária importância que a “História da Loucura” tem:

"Demostra, por um lado, que a psiquiatria é uma 'ciência' recente: quea doença mental não tem nem mesmo duzentos anos, como tambémque a intervenção da medicina com relação ao louco, em vez de seratemporal, é historicamente datada. Histoire de la folie analisa ascaracterísticas, as verdadeiras dimensões e a importância destaruptura de tal modo que, depois dela, não é mais possível falarrigorosamente de doença mental antes do final do século XVIII,

4 Conferir CHECCINATO, 1988, que interpreta o modelo estrutural de J. Lacan.5 Deixemos FOUCAULT falar de FREUD: "Freud desmistificou todas as outras estruturas do asilo: aboliu o silêncioe o olhar, apagou o reconhecimento da loucura por ela mesma no espelho de seu próprio espetáculo, fez comque se calassem as instâncias da condenação. Mas em compensação explorou a estrutura que envolve apersonagem do médico; ampliou suas virtudes de taumaturgo, preparando para sua onipotência um estatutoquase divino. Trouxe para ele , sobre essa presença única, oculta atrás do doente e acima dele, numa ausênciaque também é uma presença total, todos os poderes que estavam divididos na existência coletiva do asilo. Fezdele o Olhar absoluto, o Silêncio puro e sempre contido, o Juiz que pune e recompensa no juízo que nãocondescende nem mesmo com a linguagem; fez dele o espelho no qual a loucura, num movimento quaseimóvel, se enamora e afasta de si mesma." ( FOUCAULT, 1993; 502).

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momento que se inicia o processo de patologização do louco. A partirde então a história da loucura deixava de ser a história da psiquiatria.Por outro lado, a psiquiatria é o resultado de um processo históricomais amplo, que pode ser balizado em períodos ou épocas, que demodo algum diz respeito à descoberta de uma natureza específica, deuma essência da loucura, mas à sua progressiva dominação eintegração à ordem da razão. Livro que, sem dúvida, revolucionou amaneira de pensar a psiquiatria, dando as reais dimensões dopropalado gesto libertador de Pinel e do humanismo terapêutico que ocaracteriza; desmascara as imagens que dão à psiquiatria o mérito deter possibilitado à loucura ser finalmente reconhecida e tratadasegundo sua verdade, mostrando o caminho que foi preciso a históriaseguir para que a psiquiatria tornasse o louco doente mental"(MACHADO,1982).

Ressaltamos este momento inaugural como necessário ao trabalho que

aqui se pretende desenvolver.

É também no ano 1961 que Franco Basaglia assume a direção do Hospital

Psiquiátrico de Gorizia, norte da Itália. Tendo uma trajetória acadêmica anterior,

com os conhecimentos da fenomenologia existencial, BASAGLIA percebeu, diante do

choque da realidade do manicômio, que a academia e os cursos de psiquiatria

não se deixavam penetrar por aquela realidade6. É na própria experiência do

manicômio que ele vai buscar alternativas para lidar com a realidade encontrada.

Ensaia modelos de reformas manicomiais como a comunidade terapêutica e a

psicoterapia institucional7. Mesmo percebendo que "a fenomenologia existencial

poderia ser, enfim, um primeiro instrumento de desmascaramento do terreno

ideológico sobre o qual a ciência se funda” (BASAGLIA APUD AMARANTE, 1996), BASAGLIA

sente a superficialidade que estas reformas têm quando atingem apenas o interior

do manicômio.

Segundo vários autores8 foi decisiva a influência exercida pela “História da

Loucura” e de GOFFMAN (1974) no pensamento de BASAGLIA. A primeira experiência

em Gorizia durante os anos 60 mostra que as reformas no interior do manicômio -

6 Muito parecida com nossa situação atual, com o agravante de que, no Brasil, nem as experiências de modelossubstitutivos (de que falaremos adiante) são percebidos pelo saber acadêmico. 7 Maxwel JONES (comunidade terapêutica) na Inglaterra e TOSQUELLES (psicoterapia institucional) na Françativeram interferências em propostas de reformas psiquiátricas também entre nós. 8 Conferir AMARANTE (1994, 1996, 2000) BASAGLIA (1985), BASAGLIA & GALLIO (1991), DELGADO (1991) NICÁCIO

(1989, 1994), ROTELLI (1987, 1994) e TYKANORY (1986, 1996), em obras citadas ao longo do texto sobre aReforma Italiana.

16

como se nele fosse encontrada a deformação, não colocava o problema no seu

lugar, deixando intacto o saber psiquiátrico. Todas as reformas anteriores a

Basaglia tinham esta característica: a ciência psiquiátrica não era questionada, o

manicômio era o lugar do exercício de deformação desta ciência. O objetivo

destas reformas era modificar o manicômio que, com suas práticas autônomas,

engendravam uma interpretação equivocada do que a ciência, fora dele,

formulava para a cura da doença mental. Como se o manicômio, historicamente,

tivesse ganho uma função que, por forças internas, impedia o desenvolvimento

verdadeiro da ciência psiquiátrica. Dito de outro modo, estas reformas objetivavam

transformar o manicômio no seu figurino original, onde a roupagem da cura,

oferecida pela psiquiatria, pudesse exercer a sua verdade.

Ora, o que FOUCAULT havia desvelado era que o manicômio, em qualquer

fase em que estivesse , era o mesmo do seu início histórico e datado. A partir daí,

"encerrado nesses valores fictícios, o asilo será protegido da história e da

evolução social" (FOUCAULT, 1993; 485). E na descrição do seu estado original, o

autor desnuda o encantamento que uma "ciência" psiquiátrica ajudara a

esconder:

"O louco 'libertado' por Pinel, depois dele, o louco do internamentomoderno, são personagens sob processo. Se têm o privilégio de nãomais serem misturados ou assimilados a condenados, são condenadosa estar, a todo momento, sujeitos a um ato de acusação cujo textonunca é revelado, pois é toda a vida no asilo que o formula. O asilo daera positivista, por cuja fundação se glorifica a Pinel, não é um livredomínio de observação, de diagnóstico e de terapêutica; é um espaçojudiciário onde se é acusado, julgado e condenado e do qual só seconsegue a libertação pela versão desse processo nas profundezaspsicológicas, isto é, pelo arrependimento. A loucura será punida noasilo, mesmo que seja inocentada fora dele. Por muito tempo, e pelomenos até nossos dias , permanecerá aprisionada num mundo moral"(FOUCAULT, 1993; 496).

É nesse manicômio desvelado com toda crueza na obra de FOUCAULT que

BASAGLIA vai formular seu pensamento e com ele fazer a prática9. A operação

efetuada por BASAGLIA e seus colaboradores consiste em inverter o lógica das

9 A coletânea publicada por BASAGLIA, originalmente em 1968, "A Instituição Negada - Relato de um HospitalPsiquiátrico", (aqui citada, publicada pela Graal, RJ, 1985) relatando esta experiência, vai influenciar aReforma Psiquiátrica brasileira de maneira marcante.

17

reformas anteriores. Não é no interior do manicômio que ela deve acontecer para

produzir o efeito desejado. Mas na estrutura do saber psiquiátrico, posto que ele é

quem produz o manicômio. A ponte colocada por BASAGLIA, que liga o manicômio

ao saber psiquiátrico, permite que circule um conjunto de problemas que não

estavam postos na mesa das reformas anteriores: a que classe social pertencem

a maioria dos internos no manicômio? Que ciência é esta que pretende ser neutra

e produzir verdades? De que forma o manicômio e o representante do saber aí

colocado são agentes do controle social exercido pela psiquiatria? "Para Basaglia,

mudar a psiquiatria é mudar a instituição e suas práticas; mudar a instituição e

suas práticas é mudar o saber psiquiátrico" (AMARANTE, 1996).

Dos muitos conceitos trabalhados por BASAGLIA, para efeito da intenção aqui

colocada, o de "desinstitucionalização", um neologismo em uso corrente na

Reforma Psiquiátrica brasileira, traduz de maneira simplificada, mas marcante, a

reforma inaugurada pelo psiquiatra italiano:

"A desinstitucionalização não poderia ser definida positivamente, seriauma incongruência lógica; podemos tentar delimitá-la negativamente,isto é, não é uma técnica, não é uma fórmula, não é um conjunto denormas, não se identifica com a análise institucional de Lourau eLapassade,10 não é uma fórmula administrativa. Tentando umaaproximação, diria que é a desmontagem de aparatos externos einternalizados, é 'desconstrução' de modelos e valores racionalístico-cartesianos; é transformação das relações de poderes codificados ecristalizados. É fundamentalmente um trabalho prático que, a começarpelo manicômio, desmonta a solução institucional existente paradesmontar o problema! Transformam-se os modos pelos quais sãotratadas as pessoas para transformar o seu sofrimento; a terapia não éa perseguição eterna atrás de uma solução-cura, mas um conjuntocomplexo, também cotidiano e elementar, de estratégias indiretas emediatizadas, que dizem respeito ao problema em questão, através deum processo crítico sobre os modos de ser da própria açãoterapêutica" (TYCANORI, 1986).

"A Instituição Negada", marco das idéias basaglianas publicado em 1968,

discute a primeira experiência de BASAGLIA em Gorizia. Em 1971 ele assume a

direção do "Ospedalle Psichiatrico Provinciale de Trieste" (OPP) onde opera uma

desconstrução radical a partir de dentro do manicômio e, em 1980, o hospital é

10 Autores "em moda" na década de 70 na psiquiatria brasileira (nota do autor).

18

oficialmente abolido. Trieste é a primeira cidade do mundo onde foi encontrada a

ausência do manicômio a partir de um trabalho de desconstrução11. Não é objeto

deste trabalho investigar esta obra monumental da história contemporânea da

psiquiatria, mas situar esta realidade como nosso segundo ponto de partida.

Nestes nove anos de desconstrução, o trabalho, a partir de dentro do

manicômio, contamina a sociedade gerando a lei 180 do parlamento italiano, em

maio de 1978, que vai oficializar a abolição do asilo:

"A lei proíbe a construção de novos hospitais psiquiátricos; os serviçosde saúde mental passam a ser os serviços de território, podendo existirenfermarias psiquiátricas em hospitais gerais com no máximo quinzeleitos; o estatuto jurídico em relação ao doente mental que durante oprocesso passou de internado coagido a voluntário, depois hóspede,garante-lhe agora todos os direitos civis e sociais incluindo o direito aotratamento; fica abolido o estatuto de periculosidade social do doentemental, base de todas as legislações anteriores. A lei estabelece aindao Tratamento Sanitário Obrigatório no qual o usuário mantém todos osseus direitos sendo o juiz o responsável por estes direitos. E otratamento, de responsabilidade do Serviço Sanitário competente(...)A Lei 180 mantém todas as características da desinstitucionalização -abre as contradições e propõe a produção, a experimentação, anecessidade de enfrentar novas respostas e possibilidades; nãorepresenta o início deste processo, nem o seu final; é um marcofundamental produzido pela desinstitucionalização e que a colocaadiante"( NICÁCIO, 1989).

É interessante notar que a Lei 180 coloca para o aparelho de Estado e

para a sociedade os princípios da desconstrução que estava sendo operada no

interior do aparato manicomial, construindo de direito a ponte que BASAGLIA tinha

proposto na sua práxis de reforma psiquiátrica. Para que aconteça uma

transformação no interior do manicômio é preciso sair do terreno pantanoso do

saber psiquiátrico e construir na sociedade e através dela, espaço onde ocorram

trocas e afetos de vidas, propostas para a solução de um problema que parecia

singular e apartado da realidade "lá fora".

11 Não se pode comparar este trabalho à desospitalização americana, no governo Kennedy, onde os doentesabandonados transformaram-se em "homeless". Em Trieste foi construída toda uma rede de serviços"substitutivos" que reorganizou a assistência psiquiátrica.

19

E claro que é problemático para uma cidade perder o seu manicômio. Em

duzentos anos de história da psiquiatria é a primeira vez que isto acontece12 e não

é fácil lidar com esta nova realidade. Sem ter o tapete do asilo para jogar debaixo

seus loucos, Trieste deve conseguir conviver com a loucura na via pública.

Mesmo tendo sido montada toda uma rede de cuidados, o contato destes novos

membros da comunidade saídos do hospício não se faz sem traumas na

sociedade e é agravado pelos problemas de uma clientela existente em potencial

na comunidade:

"A parábola do doente do hospital psiquiátrico, onde permaneceu semidentidade e sem história, por anos, para o social, que exige umaidentidade fora da tutela médica, libera novas contradições, uma vezque se unifica aqui com a condição de todos aqueles que são, pordefinição, o reservatório da tradicional clientela psiquiátrica" (BASAGLIA &GALLIO, 1991).

Para dispensar o manicômio foi proposto um trabalho muito maior: além de

dar conta dos problemas do antigo regime foi necessária a montagem de uma

estrutura visando os quadros insurgentes que naturalmente requisitavam o

manicômio na sua resolução. Como se não bastassem os problemas inerentes a

esta engrenagem, o "saber" que havia sido atingido gravemente pela Psiquiatria

Democrática Italiana passou a divulgar algumas dificuldades como fracasso do

modelo. Franco Rotelli, Coordenador dos Serviços de Saúde Mental de Trieste,

em 1991, numa entrevista concedida a DELGADO(1991; 81 e segs.) reclama que

nenhuma universidade italiana tinha tomado os princípios da reforma ou mesmo

as diretrizes geradas pela lei 180 (em vigor) em seus currículos. Esta negação

silenciosa era reforçada por um ataque explícito nas páginas de revistas

científicas de conceito internacional: ROTELLI, na mesma entrevista, acusa o "The

British Journal of Psichiatry" e o "The American Journal of Psichiatry" como

propagadores de "mentiras absolutas" sobre a Reforma Italiana (DELGADO, 1991;

88).

No entanto, apesar das dificuldades encontradas, colocadas em todo o

mundo como fracassos pelos centros do saber, Trieste atraía voluntários de vários

países que fizeram toda uma desconstrução da estrutura do saber acadêmico,12 Uma cidade sem manicômio não é a mesma coisa que uma cidade que perdeu seu manicômio. Emboratenhamos vários exemplos, aqui no Brasil, como é mais fácil se construir uma rede alternativa onde não existeainda a presença do manicômio, há reivindicações políticas do sua necessidade em nome do progresso.

20

mostrando nos seus países a verdade do que vinha ocorrendo.13 ROTELLI faz um

balanço da Reforma Italiana:

"Existem algumas cidades na Itália em que não apenas foramrealmente fechados os hospitais psiquiátricos, como também seconstituiu uma rede orgânica suficiente e significativa de serviçosalternativos. Trieste, Arezzo, Perugia, Parma, Pordenove, Livorno ealgumas outras cidades são exemplo disso. Existem outras cidades nasquais os hospitais psiquiátricos foram fortemente redimensionadosdepois da lei, mas até hoje existem, com um grande peso e com umasituação bastante dramática das pessoas que ainda estão internadas.Existem cidades nas quais os hospitais psiquiátricos foramefetivamente reduzidos a pouca coisa, mas nas quais não feito nenhumserviço alternativo, o que criou, portanto, uma situação de crise muitograve, por falta de assistência psiquiátrica. Todavia, se existe um dadogeneralizado, é certamente que o antigo papel do hospital psiquiátricocomo lugar de tratamento, ou para o qual os pacientes são enviados,desapareceu. Passou-se de mais de 100 mil pessoas internadas nofinal dos anos 60, aos atuais 25 mil internados nos hospitaispsiquiátricos. É importante enfatizar que estas 25 mil pessoas jápertenciam ao grupo das 100 mil. Em outras palavras, nos últimos dezanos, salvo pouquíssimas exceções, novas pessoas não foramefetivamente internadas no manicômio" (ROTELLI IN DELGADO, 1991; 82).

Embora a Reforma Italiana, como situa bem este balanço feito por Franco

Rotelli, tenha mudado a Saúde Mental na Itália, é no exemplo de Trieste que

vamos eleger o nosso segundo ponto de partida. Nesta cidade que foi despida do

seu manicômio, que construiu uma rede de serviços alternativos no território, que

promoveu a participação da comunidade num problema que não aparecia como

seu historicamente, acontece uma possibilidade real da legitimidade do que diz

FOUCAULT. A praxis basagliana só foi possível porque radicalizou a desmontagem

de formulações tidas como verdades na nossa sociedade moderna: "o mito da

periculosidade do louco, o conto de fadas de que o manicômio trata e a ideologia

da neutralidade da ciência psiquiátrica" (NICÁCIO, 1989; 93). A valorização desta

experiência está em que não se pode anular, como pretendem seus opositores,

sequer minimizar, um movimento que foi o único, em nível internacional, que de

fato aboliu o manicômio, rompendo de modo radical com a constituição do saber

13 No Brasil, Amarante, Nicácio, Kinoshita e Delgado, aqui citados, entre outros autores, produziram umavasta bibliografia sobre a situação italiana.

21

psiquiátrico, diferente, portanto, das reformas que se deram na Europa e nos EUA

a partir da década de 60.14

É a partir destes dois momentos que pretendemos desenvolver este

trabalho. O primeiro, no qual FOUCAULT desvela a transmutação da loucura em

doença mental: diferente da maioria das doenças clínicas, onde a descoberta

pela ciência mostra um conceito de delineação perceptível, que diminui o nível de

saúde do indivíduo ou de toda uma coletividade e que, pela ciência, na sua

interferência, é passível de modificação ou, em sua plenitude, de métodos de cura

no plano corpóreo do físico, a loucura, conceito existente que vem de muito antes

na história da humanidade, é, no final do século XVIII, transformada em doença

mental que, a partir deste nascimento mutante, passa a diminuir o nível de saúde

de um indivíduo ou da coletividade - no plano moral e não físico e, neste mesmo

plano, é proposta a cura que, a princípio pode ser feita pelo próprio asilo, já que

ele é organizado para o tratamento moral. É a partir deste momento que vamos

acompanhar o nascimento do Hospício de Pedro II - que está na origem da

instituição, objeto deste trabalho, a constituição do saber e das práticas que ali

foram plantadas e justificar suas ramificações na instituição hoje.

No segundo momento, passaremos a investigar algumas propostas de

reformas, comparadas à Reforma Italiana, para tentar entender o reforço que a

estrutura manicomial adquire, apesar de todas as reformas serem

declaradamente antimanicomiais. Por fim, tentaremos justificar as propostas

atuais que acontecem na instituição dentro destes momentos, tentando examinar

o entorno conjuntural como estrutura limitante de suas efetivações.

14 Estas experiências tinham como objetivo renovar os conhecimentos da psiquiatria e humanizar as relaçõesnas instituições, como já foi dito anteriormente.

22

PRIMEIRA PARTE: CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA

23

Capítulo 2: A mesma cena se repete quase um século depois: onascimento do Hospício no Brasil.15

Decreto nº 82 de 18 de julho de 1841Fundando hum Hospital destinado privativamente para

tratamento de Alienados, com a denominação de Hospicio dePedro Segundo.

Desejando assignalar o fausto dia da Minha Sagração com acreação de hum estabelecimento de publica beneficencia, Hei porbem fundar hum Hospital destinado privativamente paratratamento de Alienados, com a denominação de Hospicio dePedro Segundo = o qual ficará annexo ao Hospital da Santa Casada Misericordia desta Corte, debaixo da Minha Imperial Procteção,Applicando desde já para principio de sua fundação o productodas subscrições promovidas por huma Commissão da Praça doCommercio, e pelo provedor da sobredita Santa Casa, alem dasquantias com que Eu Houver por bem contribuir. Candido José deAraujo Vianna, do Meu Conselho, Ministro e Secretario de Estadodos Negocios do Imperio, o tenha assim entendido e faça executarcom os Despachos necessários.Palacio do Rio de Janeiro em desoito de julho de mil oito centos equarenta e hum, Vigesimo da Independencia e do Imperio. 16

No Brasil, desde 1830, quando aparecem os primeiros protestos da classe

médica relativos à situação do louco na Santa Casa de Misericórdia, eles são

assimilados ao projeto de José Clemente Pereira, provedor da Santa Casa (entre

15 Neste capítulo, através de uma revisão bibliográfica, procura-se narrar alguns fatos da conjuntura donascimento do Hospício de Pedro II, a formação do arcabouço dos saberes que se constituíram na PraiaVermelha, em Botafogo e que, no atravessar do tempo e da geografia, chegaram ao Engenho de Dentro, bairrodo outro lado da cidade do Rio de Janeiro. Serão revistos, entre outros, os seguintes autores: RobertoMACHADO, Vera PORTOCARRERO, Paulo AMARANTE, Jurandir Freire COSTA, Magalí ENGEL e Tácito MEDEIROS emobras que serão citadas ao longo do texto. 16 Este decreto é assinado com o selo Imperial do Imperador D. Pedro Segundo e encontra-se no ArquivoPúblico Nacional.

24

1838-1854), que pretendia fazer da Santa Casa um verdadeiro hospital17. Em

1839, num relatório sobre a situação encontrada, Pereira diz textualmente que

"não temos hospital que mereça este nome" (MACHADO, 1978; 426). Eram assunto

da Santa Casa os mortos, doentes contagiosos e os loucos, impedindo que sua

vocação de hospital fosse exercida como mandava os ditames da higiene e da

função terapêutica moderna.

O projeto do nascimento do asilo no Brasil aparece como um projeto de

medicina social.18 Para que a Santa Casa tivesse um projeto de hospital era

necessário o surgimento de espaços específicos para o cemitério, para os

bexiguentos e tuberculosos, para os loucos. Só é possível compreender o

nascimento da psiquiatria brasileira como um projeto da explicitação política da

medicina social como forma de controle do comportamento dos indivíduos e da

sociedade.

No relatório da Comissão de Salubridade de 1830, da recém criada

Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, aparece, pela primeira vez, a

reivindicação de um estabelecimento para a cura dos loucos (MACHADO, 1978). Por

esta época o hospício é colocado como uma necessidade para a higiene e

disciplina de uma sociedade que já sentia parte de sua população como

desviante. Urgia que a medicina social, como braço político do poder de Estado,

instituísse regras para a constituição de uma sociedade civilizada e moderna. E

nesta sociedade, principalmente o louco pobre, que perambula pela via pública,

pode tornar-se perigoso. A noção de periculosidade, como atentado à moral

pública e à segurança, aparece como um imperativo da necessidade do hospício.

O Hospital da Misericórdia, para onde iam alguns loucos, além de não comportar

todos os desviantes, que neste momento não podem mais serem tolerados na

paisagem urbana, não é um lugar adequado para uma ação medicalizante e de

recuperação do louco. Mas o discurso médico, que coloca este assunto na ordem

do dia, deve ser embalado de maneira vendável para que a sociedade compre

essa idéia: a situação dos loucos é criticada tanto na rua como na Santa Casa.

Nos dois lugares ele é perigoso e injustiçado; é, ao mesmo tempo, criminoso em17 Aqui seguimos o levantamento de MACHADO, 1978.18 Os principais representantes no campo da psiquiatria neste projeto são: José Martins da Cruz Jobim,Joaquim Cândido Soares de Meirelles, Luiz Vicente de Simoni, Jean-Maurice Faivre e Francisco XavierSigaud, citados por COSTA, 1981.

25

potencial e vítima indefesa. O seu lugar não pode ser na rua nem na prisão. Ele

não pode ter liberdade nem ser reprimido, mas sim disciplinado. É o asilo o lugar

da disciplina, enquanto o alienista representa a medicina social, poder político

instituído pelo saber médico, única autoridade capaz de instituir a norma social.19

"A partir de então, a loucura e a prevenção estarão para sempreligadas. Ainda não no sentido de uma intervenção sobre a loucuraantes mesmo que ela ecloda, que é a grande pretensão da atualidade.Mas enquanto a loucura é um comportamento caracterizadomedicamente no momento em que, formulando uma etiologia social dadoença, a medicina urbana detecta os diversos perigos que podemameaçar a existência de uma sociedade em vias de normalização.Coube à medicina social a tarefa de isolar preventivamente o loucocom o objetivo de reduzir o perigo e impossibilitar o efeito destrutivoque ela viu caracterizada em sua doença. Nasce assim, no Brasil dosmeados do século XIX, não uma 'psiquiatria preventiva', mas apsiquiatria como instrumento da prevenção" (MACHADO, 1978; 380).

Quase vinte anos antes do nascimento do hospício no Brasil, o saber que

deu nascimento à doença mental no continente europeu, no final do século

anterior, estava entre nós já circulando como um discurso da medicina social: os

guardiães da norma colocam todos os indivíduos da sociedade e seus atos, em

princípio, sob a suspeita da anormalidade; como conseqüência, a proposta da

medicalização, não dos atos, mas da totalidade da vida do indivíduo já estava

colocada. Faltava apenas que o hospício ocupasse o lugar que o discurso médico

já havia preparado para o seu nascimento.

É o decreto imperial de 18 de julho de 1841, data da sagração do

Imperador Pedro II, que dá início à concretização do projeto arquitetônico do

nascimento do Hospício de Pedro II, que ocorreria onze anos depois, como

símbolo imponente20 do projeto de medicina social para o controle solicitado no

discurso médico.

O que estamos assistindo neste momento, no nascimento do hospício no

Brasil, é um monumento ao poder disciplinar, grande realização da psiquiatria:

19 É interessante constatar que a maior parte do poder médico contemporâneo, como de autoridades sanitáriase de poder político do Estado, ainda hoje operam com a mesma lógica deste pensamento inicial da psiquiatriabrasileira.20 “O mais belo edifício da América do Sul, em sua época”(MEDEIROS, 1977).

26

"A psiquiatria, portanto, não se constitui no Brasil como uma idéia, umaidealidade discursiva, um simples efeito ideológico: uma justificação oulegitimação que tem como objetivo ofuscar, mistificar, obscurecer osmecanismos de dominação de uma classe sobre outra. Sua ação émuito mais penetrante, eficaz e positiva. Ela atinge diretamente o corpodas pessoas; é uma realidade que desempenha um papel detransformação dos indivíduos, assumindo o encargo de sua vida,gerindo sua existência, impondo uma norma de conduta a umcomportamento desregrado. Denota, assim, a presença da medicinaem um aspecto da realidade que até então lhe era estranho,desconhecido, exterior. Através da psiquiatria o médico penetra aindamais profundamente na vida social, dá as cartas em um jogo que passaa existir segundo regras por ele mesmo criadas" (MACHADO, 1978; 447).

No entanto, é preciso que nos detenhamos nas contradições, nas

inadequações que surgem na concretização do próprio monumento: o Hospício.

Se, por um lado, o decreto que acontece no dia da sagração do Imperador

parece mostrar a importância do pensamento psiquiátrico na época, por outro , o

papel do provedor da Santa Casa, José Clemente Pereira, ministro e conselheiro

do pequeno imperador, uma liderança do movimento da Maioridade, aparece

como um decisivo empreendedor da idéia, coletando recursos beneficentes,

cuidando da construção até sua inauguração em 05 de dezembro de 1852.

MEDEIROS (1977) assinala que não encontra fatos "que revelem ter sido o problema

do doente mental uma questão que pessoalmente preocupasse de modo

prioritário (o Imperador)”. E é sabido que os gostos intelectuais de Pedro II

passavam pela educação, invenções, fotografia, arquitetura, etc. No entanto, o

hospício enquanto um monumento representante de uma corrente de pensamento

social, não parece ter tocado o Imperador. A aliança deste pensamento aos

interesses pessoais de Pereira, e a interferência deste junto ao Imperador parece

ter sido decisiva para o nascimento do Hospício. Com uma careira política de

destaque no Império, foi um dos responsáveis pela independência, no famoso

gesto do "Fico", ocupando gabinetes importantes. Em 1841 era Ministro da

Guerra. MACHADO diz que os biógrafos-admiradores assim situavam José

Clemente: "Chamado de herói da Santa Casa, procurador dos pobres, homem da

caridade, protetor dos órfãos, doentes, loucos, expostos, pai de todos os

desvalidos da sociedade, José Clemente é, ao mesmo tempo, grande político e

27

filantropo. Personagem em torno do qual se criou o mito do libertador da pátria e

da humanidade sofredora" (MACHADO, 1978; 425).

Um cronista da época assim descreve a imponência da obra de José

Clemente:

"Na Praia Vermelha, denominada outrora de Santa Cecília, vê-se umedifício de arquitetura severa, um palácio construído em dez anos,levantado pela caridade pública; é o primeiro monumento da cidade, éo Hospício de D. Pedro II."Vendo os alienados encerrados em um corredor térreo do VelhoHospital da Misericórdia, recolhidos em enxovais e tratados não comoenfermos, porém como animais ferozes, tendo o chão frio por leito, opão duro por alimento e o azorrague como remédio, o provedor JoséClemente Pereira, inspirado pela luz da caridade, resolveu levantar umhospital, aonde os doidos tivessem asilo decente e pudessem acharlenitivo a seus males. Vimos os esforços que fez para erguer oHospício de D. Pedro II. Deus favoreceu a obra do homem caridoso." No curto espaço de dez anos, José Clemente concluía a sua missão;ergueu no Rio de Janeiro o primeiro hospital de alienados. O Hospíciode D. Pedro II acha-se construído em uma superfície de 1562 braçasquadradas. É majestoso o frontispício deste monumento. O pórticorevestido de cantaria apresenta uma escadaria de dez degraus. Quatrocolunas de granito com capitéis dóricos sustentam uma balaustrada demármore. Há três portas entre as colunas. No segundo pavimentoerguem-se outras quatros colunas de ordem jônica, coroando o corpoum frontão reto e havendo no tímpano as armas imperiais trabalhadasem mármore. Há entre as colunas três janelas."Os corpos laterais constam de vinte janelas de peitoril no primeiropavimento, cuja arquitetura é da ordem dórica do teatro de Marcelo, emRoma. O segundo pavimento é da ordem jônica, sob o sistema dotemplo de Minerva Poliada da Grécia. Tem vinte janelas, das quaistreze têm sacadas de grades de ferro e sete são arqueadas e têmtodas varões de ferro. Um ático ornado de estátuas e de vasos demármore oculta o telhado do edifício, dando mais beleza ao prospectodo monumento. Há, nas faces laterais, treze janelas em cadapavimento. As sete janelas do segundo pavimento têm sacadas degrades de ferro. Vêm-se, no fundo, quatro torreões com três janelas emcada pavimento; no centro a rotunda da capela e, ligando os torreões,corpos de um só pavimento com seis janelas cada uma. O desenhodeste palácio foi dado pelo engenheiro arquiteto Domingos Monteiro,exceto o pórtico, que é do engenheiro Guilhobel. O engenheiro Sr.Major José Maria Jacinto Rebelo fez algumas modificações no planoprimitivo do monumento."No vestíbulo, cujo pavimento é ladrilhado de mármore, se erguemsobre pedestais as estátuas em gesso dos sábios Esquirol e Pinel.

28

Foram trabalhados pelo escultor Pethrich, que é o autor de todas asestátuas que ornam o palácio."A escadaria é iluminada por uma cúpula primorosamente construídasob a direção do arquiteto Rebelo. A capela é de um gosto simples egrave; não tem ornatos de luxo. A construção severa desse recintoimpressiona o cristão que, penetrando ali, só pensa na majestade deDeus e vai orar. Tem quatro tribunas de cada lado, de onde vêm ouvirmissa os doidos que podem assistir a este ato. O altar está encerradoem uma rotunda e sobre ele se venera a imagem de S. Pedro deAlcântara. Esta imagem de mármore custou cinco contos de réis. É doescultor Pethrich” (MOREIRA DE AZEVEDO APUD PACHECO E SILVA, 1967;155/6). 21

Esta crônica, verdadeira ode ao monumento, é de um detalhamento

necessário à compreensão da importância da ação de José Clemente. Entretanto

outra é a história dos bastidores...

Deve ser levada em consideração alguns fatos implicados no nascimento

do Hospício. Teixeira Brandão22 , em suas ácidas críticas dirigidas aos desvios no

hospício, vai identificar, já no seu nascedouro, que a Santa Casa se apropriara de

algo que não lhe pertencia. A Santa Casa, não podendo sustentar os loucos ali

existentes, assoberbada por dificuldades financeiras, tinha na proposta do

Hospício um alívio para sua situação financeira. O que vai falar a favor do ideal de

José Clemente em transformar a Santa Casa em um hospital realmente. Teixeira

Brandão se refere à Santa Casa de Misericórdia, serviço filantrópico, como

"aquela confraria" no sentido pejorativo do termo Para ele, José Clemente se

apropriara de um bem público. O edifício fora levantado em um terreno público,

com subscrições públicas ou doados pela "munificência imperial". E mais grave:

"os encargos da construção salvou a Santa Casa de embaraços financeiros pela

facilidade com que dispunha dos cofres do Hospício" (MACHADO, 1978; 486). O

artigo escrito por Teixeira Brandão, citado acima, explicita que com a fundação do

Hospício "as subscrições e donativos avultaram. Os cofres do Hospício

regurgitavam, enquanto os da Santa Casa permaneciam em anemia profunda".Neste episódio, o que Teixeira Brandão queria era o direito do saber psiquiátrico

ocupar o seu devido lugar no Hospício, mas os ataques a detalhes da

21 Depois da morte de José Clemente Pereira, em março de 1854, um decreto de Pedro II manda fazer umaestátua em sua homenagem para "ornar o palácio" (PACHECO E SILVA, 1964; 157). 22 "Questões relativas à assistência médico-legal a alienados e aos alienados", 1897. Apud MACHADO, 1978.

29

administração mostra algumas contradições e que a viabilidade do Hospício

dependeu das artimanhas de José Clemente, num caso de privatização da coisa

pública. Teixeira Brandão vai dizer que não se pode confiar a uma "confraria"

deveres de Estado: " cabe à segurança pública, determinar os casos em que a

defesa social exige o sacrifício da liberdade individual, regular a sucessão pela

gestão de bens dos alienados" (MACHADO, 1978; 487). Por fim Teixeira Brandão

decreta a Santa Casa "um verdadeiro Estado dentro de um Estado" e, que pela

enorme influência política de seus provedores, o Hospício foi arrancado do Estado

e entregue àquela confraria privada.

Até agora nos detivemos nesta questão apenas para, nos interstícios dos

discursos, percebermos que a criação do Hospício teve algo de uma privatização

do Estado e interferências e favorecimentos políticos, muito comuns desde o

início, quase uma característica do Estado brasileiro. Mesmo neste projeto, que

contava com um movimento social que parecia determinar o nascimento do

Hospício enquanto monumento desta posição política, vemos, numa melhor

aproximação, os jogos de influência, a apropriação de parte do Estado pelos

interesses privados presentes na cena política da Corte.

Mas isto era o que, poderíamos dizer, estava por trás da verdadeira guerra

enunciada por Teixeira Brandão. Sua crítica ao Hospício estava na falta do

controle do objeto da ação pelo saber oficial. Afinal, os leigos detinham o poder de

executar as tarefas que a medicina social tinha, de forma clara, como missão.

Os loucos estavam nos presídios, em casas de correção ou em exibição

nas ruas dos centros urbanos. Só uma pequena parcela estava nos porões das

Santas Casas . "O mais antigo registro conhecido de internação psiquiátrica data

de 1817, na Santa Casa de São João del Rei" (MEDEIROS, 1977). Em Pernambuco,

Bahia e algumas outras províncias a situação era parecida com a do Rio de

Janeiro. Três razões fazem com que nos detenhamos nesta cidade: o acesso

mais fácil para uma revisão bibliográfica; o centro político e administrativo que o

Rio representava, irradiando para o país procedimentos similares e, mais

importante do ponto de vista do objetivo deste trabalho, o exame do Hospício do

30

Engenho de Dentro como a continuidade ou não do Hospício de Pedro II. A

realidade dentro de um engenho que substitui a praia da Saudade.

O processo de medicalização da loucura, nos meados do século XIX, se

fundamenta em dois marcos: a própria fundação do Hospício de Pedro II, marco

concreto e, suporte necessário, a criação da cadeira de clínica psiquiátrica na

Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que converte o país, na passagem do

Império para a República, num núcleo de produção e divulgação do saber

alienista.

A situação dos loucos na cidade do Rio de Janeiro não corrobora para as

razões do saber que inaugura o Hospício. Nem todos os loucos estavam nos

porões da Santa Casa. Como já foi citado, casas de correção, prisão, "gaiolas

humanas perto de cemitérios" (MEDEIROS, 1977) e, principalmente, a via pública

eram locais freqüentados pela loucura e o mesmo indivíduo circula entre estes

dispositivos. A presença dos loucos na urbe, apesar do seu exotismo e a

decantada periculosidade, "não impediu que de alguma forma tenham sido

incorporados ao dia-a-dia da cidade(..)":

"a presença da loucura nas ruas da cidade despertava o riso, acompaixão, as injúrias grosseiras e a troça, às vezes, cruel.Sentimentos mistos e contraditórios que, oscilando entre a aceitação ea rejeição, demonstram de qualquer forma a existência de um espaçode convívio entre o louco e o não louco, no qual ambos sabiamperfeitamente como se defender um do outro" (ENGEL, 2001; 24).

Magali ENGEL, no primeiro capítulo da obra citada, faz um interessante

apanhado nos documentos e periódicos da época, sobre as "vivências e

convivências" dos loucos de rua deste período, no Rio de Janeiro, mostrando,

num levantamento minucioso da história de cada personagem23, que a sociedade

e os loucos tinham uma forma de convívio muito diferente das razões defendidas

pelos enunciadores do alienismo. No misto de "rejeição e aceitação" podemos

acompanhar, por um lado, as troças, o "jogar pedras e correr atrás" sem

conseqüências sérias das crianças e dos caixeiros, mais parecendo um jogo23 Barbara Onça, Castro Urso, Picapau, Capitão Nabuco, Padre Quelé, Bolenga, Maria Doida, entre tantosoutros personagens, que nos relatos de ENGEL saltam das ruas da história para contarem, eles mesmos, arelação da loucura com a sociedade, de forma viva e emocionante.

31

lúdico, no qual o louco desempenha o papel principal.24 Por outro lado, muitos

tinham o seu papel social muito bem desempenhado, morando em locais

conquistados junto à comunidade, exercendo atividades para o seu sustento,25

divertindo os transeuntes, exibindo talentos e papéis sonhados e exigidos pela

comunidade. Quando, de vez em quando, fosse esse equilíbrio quebrado, a

internação ou a prisão ou qualquer outro recolhimento, quase nunca de forma

definitiva,26 interrompia esta convivência, geralmente pacífica.

"Trata-se apenas de sublinhar a existência histórica de diversaspossibilidades de se conceber a loucura e de se lidar com ela, distintasdaquelas que caracterizariam sua transformação em doença mental,submetida ao controle do alienista. Possibilidades que, aliás, nãoseriam varridas completamente do cenário da cidade, apesar dasvitórias profundamente significativas que (...) seriam conquistadaspelos psiquiatras a partir do último quartel do século XIX, com o fim daescravidão e com o advento do regime republicano" ( ENGEL, 2001; 49).

A defasagem histórica de quase cem anos entre o nascimento do Hospício

na Europa para sua imagem e (des)semelhança no Brasil, permite um acúmulo

de conhecimento no saber psiquiátrico, que atravessa o Atlântico de modo

descontínuo e desigual, com implicações idiossincráticas para a nossa história. Da

fundação do Hospício em 1841 para sua inauguração em 1852 são onze anos de

união em torno de um discurso que possibilitasse o feito. Da inauguração até a

virada do século, são cinqüenta anos de polêmicas e desacertos27 em torno da

sua posse pelo saber, para que as teorias da psiquiatria fossem aplicadas.

Acirrando os debates do período estavam em cena importantes fatos históricos: a

lei Áurea, que mais liberta os senhores de escravos do fardo improdutivo para um

desenvolvimento industrial; o ocaso do Império, que não mãos de Pedro II durou

quarenta e nove anos; a proclamação de uma República, mais conservadora que

liberal; o alvorecer do século XX, onde a temporalidade, modificada pelo

24 Há os que aceitam a provocação e correm atrás dos provocadores. No entanto, outros invertem as regras dojogo e reconhecem nas vaias aplausos, nos apupos reverências...25 A venda de bilhetes de loteria, onde a loucura faz parte do convencimento, era uma destas atividades.26 Internamento definitivo que vai aumentando a partir do nascimento do Hospício.27 Que se tornam um movimento a partir da década de 70 do século XIX, sendo vitorioso na República.

32

progresso, se faz de modo muito mais rápido e a ciência que avança de forma

nunca dantes imaginada.

É neste redemoinho que nos deteremos rapidamente para os fatos a

seguir. Ora, em 1857, com a publicação do Traité des Dégénérescences, de

Morel, a Europa estava entrando no que Robert CASTEL (1991) chama de Segunda

Psiquiatria, que tinha na teoria da degenerescência - união da hereditariedade,

ambiente e declínio racial, a tão sonhada aproximação da psiquiatria à medicina

do corpo. Na verdade essa Segunda Psiquiatria corresponde a um terceiro

movimento do saber psiquiátrico. Na Primeira Psiquiatria dois movimentos já

tinham acontecido anteriormente: a doença mental como oposição à razão no seu

nascimento e, na seqüência, a cura ligada a um ajustamento social;

fundamentando estes dois movimentos, a psiquiatria moral.

"a teoria de Morel ampliaria e consolidaria a influência do organicismo,resultando, por um lado, em uma mudança do enfoque da loucura (...)no questionamento da prática asilar; por outro, no restabelecimento dacredibilidade da medicina mental, que definindo a doença mental combase na ênfase de uma racionalidade anatomoclínica, reconciliava-sedefinitivamente com a medicina geral" (ENGEL, 2001; 132).

É ao sabor destas duas psiquiatrias, representadas pelos acadêmicos da

Academia Imperial de Medicina28 e da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro29

que acontecem os debates para a tomada pelo saber do Hospício de Pedro II.

Entretanto, o Hospício fora criado e existia, no Império, sob uma direção

leiga, quase que completamente divorciado da produção teórica da academia. A

crítica que se faz, neste período, é a de que o Hospício não estava submetido aos

ditames da Primeira Psiquiatria. "Até a República, segundo Teixeira Brandão, que

não teme se considerar o Pinel brasileiro, não há medicalização do hospício nem

do louco" (MACHADO, 1978; 490). Interessante notar que Teixeira Brandão, mesmo

sendo nomeado diretor sanitário do Hospício de Pedro II, ainda sob gestão leiga,

em 1886, continuaria sendo o representante do grupo do saber dominante, e vai

ser a figura de destaque nos dois movimentos importantes para a medicalização

da instituição: a estatização do Hospício na República, com o conseqüente

28 Que cria um campo especializado no estudo da alienação mental em 1878.29 Que cria o Curso de Psiquiatria em Medicina em 1879.

33

rompimento com a Santa Casa, e a lei dos alienados, de 1903, quando Teixeira

Brandão é eleito deputado da República.

A psiquiatria é fundada concebendo o hospício como um lugar de

destruição da loucura, cuja ação terapêutica Roberto MACHADO intitula como

"pedagogia da ordem". Esta pedagogia seria composta pelo isolamento, pela

organização do espaço terapêutico, pela vigilância, pela distribuição do tempo e

pela repressão e controle. "O isolamento do louco no hospício justifica-se ao nível

das causas da doença e ao nível do tratamento" (MACHADO, 1978; 430). Tirar o

louco do ambiente onde ele adoeceu possibilitaria convencê-lo do erro de seu

delírio, ao mesmo tempo em que o alienista protege e defende a família e a

sociedade. Portanto, só o isolamento produziria uma ação terapêutica ampla. A

organização do espaço terapêutico permite, no Hospício de Pedro II, a divisão dos

pacientes por sexo, por classes sociais e, dentro dessas divisões, em tranqüilos e

agitados. Os indigentes ainda se subdividem em "tranqüilos limpos, agitados,

imundos e afetados de moléstias contagiosas"30. A vigilância era exercida pelo

Panopticon de Bentham31. Se o "tratamento é mais uma educação que uma

medicação", a distribuição do tempo regula horas de alimentação, de passeios, de

recreio, de trabalhos dos alienados, que eram prescritos como ação terapêutica32.

O controle e a repressão permitiam a camisa de força e outros meios que o artigo

32 do Regulamento do Hospício de Pedro II, citado por Roberto MACHADO (1978;

446), enuncia de forma clara:

"Artigo 32: os únicos meios de repressão permitidos para obrigar osalienados à obediência são:1. A privação de visitas, passeios e quaisquer outros recreios.2. A diminuição de alimentos, dentro dos limites prescritos pelo

facultativo.3. A reclusão solitária, com a cama e os alimentos que o clínico

prescrever, não excedendo a dois dias.4. O colete de força, com ou sem reclusão.

30 Estatutos do Hospícios de Pedro II in MACHADO, 1978; 433.31 Onde a presença total e constante do alienista ou seu representante induz um estado de visibilidadepermanente que assegura o funcionamento da disciplina e do poder. Este instrumento faz parte das instituiçõestotais estudadas por GOFFMAN, (1974). 32 Mesmo não sendo uma prescrição terapêutica, nos dias de hoje as enfermarias de qualquer hospitalpsiquiátrico mostram estas marcas de sua origem.

34

5. Banhos de emborcação, que pela primeira vez só poderão serempregados na presença do clínico e nas vezes seguintes napresença da pessoa e pelo tempo que ele designar".

Teixeira Brandão não está questionando estas normas de funcionamento

do hospício. "O que é denunciado pelos médicos é justamente o que escapa de

seu controle" (MACHADO, 1978; 449). As críticas são dirigidas aos leigos: os

diretores e as irmãs de caridade da Santa Casa33. Os argumentos de Teixeira: o

Hospício não está a serviço da ciência; o médico tem quase nenhum papel na

internação; é o juiz, o chefe de polícia, são os administradores da Santa Casa que

autorizam a internação, assim como a alta, podendo ser usados favores políticos

ou de apadrinhamento, relegando a ciência a um papel subalterno. A mistura de

doentes curáveis com incuráveis dificultava o exercício terapêutico. A existência

de uma população louca nas ruas atesta a ineficiência do Hospício. O Hospício

não cura e não produz conhecimento enquanto o médico não exercer o poder

total e completo sobre os internos e sobre todo o pessoal administrativo. A má

gestão do poder leigo desvirtua o papel que o Hospício deveria ocupar.

As críticas não só nos fóruns acadêmicos, mas também abertamente na

imprensa, misturam aspectos que seriam preservados depois da tomada do poder

com aspectos condenáveis na visão médica, para tentar ocultar o caráter político

da discussão.

"a organização arquitetônica não é tão perfeita quanto se supunha, aosolhos de novas concepções de loucura, do mal aproveitamento doespaço, de construções desordenadas no interior do hospício ou emsua circunvizinhança; o exame do pessoal clínico e administrativoevidencia claramente que o médico não tem todo o poder sobre aloucura, mas está subordinado ao pessoal religioso ou é tolhido pelaincompetência, ignorância ou maldade dos enfermeiros; o processo deinternação independe de sua vontade ou competência, o que aindapermite a presença de não-loucos no hospício e de loucos excluídosem prisões ou outros lugares não especificamente criados para eles;não há, finalmente, uma lei nacional de alienados e um serviço deassistência organizado pelo Estado que faça com que o Hospício dePedro II deixe de ser uma exceção" (MACHADO, 1978; 449).

33 O poder religioso tem a “ativa participação da Irmandade de São Vicente, pertencente aos setores maisconservadores do clero” (AMARANTE, 1994; 75).

35

O que estava sendo denunciado no discurso do saber psiquiátrico era que

nos estertores do Império estava sendo criado um paradoxo: o Hospício,

defendido ardorosamente pelos alienistas fora posto em situação desviante: ele,

que por si só era terapêutico, tornou-se uma aberração, tinha os vícios das casas

de detenção de antes da Revolução Francesa, que não deram conta de operar

sua constituição enquanto asilo depois da queda de Bastilha. O que se desejava

aqui era um retorno no tempo, quase um século antes, para o seu nascimento

acontecer. E o século precisou ser concluído para que, no Brasil, o Hospício

fosse desempenhar seu papel.

Em 1789, a Revolução Francesa. Em 1889, seu simulacro na Proclamação

da República. Em 1890, o Hospício de Pedro II passa a chamar-se Hospício

Nacional de Alienados, é separado da Santa Casa e organiza-se a Assistência

Médico-Legal dos Alienados. Teixeira Brandão é seu primeiro diretor. Nesta

época, por cerceamento das atividades das religiosas, as irmãs de caridade se

retiram do Hospício, sendo substituídas por enfermeiras leigas, contratadas na

Europa, "com grande proveito, no dizer do médico" que "tem o dever humanitário

e o dever cívico de chamar atenção do governo para os perigos que podem advir

do poderio do reacionarismo ultramontano, do qual elas são meros instrumentos

passivos" (TEIXEIRA BRANDÃO APUD MACHADO, 1978, 446/7)

No entanto, a tarefa não estava concluída. Faltava a lei. Faltava medicalizar

a legislação. Como deputado federal, em 1903, no mesmo ano de sua eleição,

Teixeira Brandão consegue a aprovação da lei dos alienados:

"Esta lei faz do hospício o único lugar apto a receber loucos, subordinasua internação ao parecer médico, estabelece a guarda provisória dosbens do alienado, determina a declaração dos loucos que estão sendotratados em domicílio, regulamenta a posição central da psiquiatria nointerior do hospício, subordina a fundação de estabelecimentos paraalienados à autorização do Ministério do Interior ou dos presidentes ougovernadores dos estados, cria uma comissão inspetora de todos osestabelecimentos de alienados. Esta lei faz do psiquiatra a maiorautoridade sobre a loucura, nacional e publicamente conhecido"(MACHADO, 1978; 484)34

34 Apesar do uso de outras fontes, "Danação da Norma" foi a principal fonte utilizada com relação ao períodoanterior à proclamação da República, pela sua importância histórica para a história da psiquiatria no Brasil.Publicada em 1978, sob a influência da "História da Loucura" de FOUCAULT (MACHADO é considerado o maisimportante "foucaultiano" brasileiro), é obra chave para o entendimento no nascimento do Hospício noBrasil. Quinze anos após a publicação, o próprio Machado situa que:

36

O período conturbado que estamos tentando recortar até aqui, vai do

nascimento do Hospício na Praia Vermelha, da década de 30 aos anos 70 do

século XIX; passa pelo seu funcionamento no Império que, pelo caráter leigo, no

dizer de Teixeira Brandão, desviava do curso, mesmo da Primeira Psiquiatria, até

a Proclamação da República; e aborda sua consolidação enquanto instrumento

dos alienistas, que vai da República até a Lei dos Alienados. A narrativa sobre a

Segunda Psiquiatria que começa, no Brasil, com Juliano Moreira, será objeto do

próximo capítulo.

A não separação clara dos momentos deste período fica na dependência

de poder olhar a história com auxílio da genealogia de FOUCAULT, onde se busca o

começo e não a origem. “Origem implica em causas, enquanto os começos

implicam em diferenças” (ENGEL, 2001; 118).

No primeiro momento, o Código Criminal de 1830 que tratava dos crimes

relativos às ofensas morais e aos bons costumes, misturados à vadiagem e

mendicância, tentando regular o espaço urbanos sobre os desviantes, foi

reformulado cientificamente pela Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, pelo

Código de Posturas, promulgado pela Câmara Municipal em 1832. O recolhimento

policial da ordem pública é substituído pela “limpeza e desempechamento das

ruas e praças e providências contra a divagação de loucos e embriagados, de

animais ferozes que podem incomodar o público”.35 Vê-se, neste momento, a

preocupação da medicina social, através da psiquiatria, de normatizar a

sociedade. A reivindicação do hospício mostra que ele seria a forma de tratar das

questões da ordem urbana e não a prisão, esta apenas da esfera do jurídico

criminal. A loucura teria que ser transformada em doença mental para que os"Danação da Norma, querendo entender o que aconteceu historicamente no campo da saúde mental, no Brasil,relaciona a psiquiatria com a medicina social, partindo da idéia de que é no seio da medicina social que seconstitui a psiquiatria brasileira; que é do processo de medicalização da sociedade que surge o projeto depatologizar o comportamento do louco, só a partir de então considerado efetivamente curável.”"Ao escrever este livro, observamos, a esse respeito, duas coisas. A primeira é que, no momento em que amedicina se dá como um de seus objetivos combater a desordem social decorrente da não-planificação dacidade, na primeira parte do século XIX, o hospital é percebido como causa de doença e até mesmo de morte,sendo para isso necessário transformar o seu espaço e funcionamento, para capacitá-lo a realizar a cura. Asegunda é que, no momento em que o hospital se torna uma peça-chave da medicina, nasce, em 1852, oprimeiro hospital psiquiátrico brasileiro, com o objetivo de inserir, como doente mental, uma população quecomeça a aparecer como desviante aos olhos da medicina social nascente". (Prefácio de Roberto MACHADO inPORTOCARRERO, 2002) 35 Código de Posturas de 1932, citado por ENGEL, 2001, 186.

37

alienistas tivessem o poder sobre a ordem pública. Neste primeiro momento os

alienistas brasileiros estão em sintonia com ensinamentos de Pinel, no século

anterior, que inaugura a Primeira Psiquiatria: a doença mental opõe-se à razão e é

responsável pelos comportamentos de desajustamentos sociais.

Mais ainda. Neste momento, os contatos com os escritos de Esquirol (De la

Folie, de 1816 e Sur l’Isolement des Aliénés, de 1832) pregavam proteger o louco

contra os males de conviver com pessoas normais e proteger a sociedade contra

os perigos da loucura. O hospício, antes de sua construção, está sendo reservado

como um local de cura, mas também como destino dos incuráveis e sempre

aberto ao retorno dos reincidentes. Portanto, aqueles personagens36 que

aparentemente estavam integrados ao espaço urbano, deveriam ser recolhidos a

um hospício, segundo pregava a teoria chegada do outro lado do Atlântico.

E assim, quando o Hospício é inaugurado, a simbologia do monumento

pode ser sentida na descrição de Engel (2001; 209):

“a ornamentação do edifício do Hospício de Pedro II contava com apresença de sete estátuas de mármore de Carrara, encomendadas aoalemão Pettrich: a da Ciência, a da Caridade, a do Imperador, a deJosé Clemente Pereira, a de São Pedro de Alcântara e as de Pinel eEsquirol. Desse modo, o hospício sintetizaria, na linguagem expressaem sua arquitetura, uma rede de relações entre saberes e poderespertencentes a diferentes instâncias dominantes – composta pormédicos, religiosos, filantropos e pelo próprio governo monárquico”.

Num segundo momento deste período, temos a realidade do Hospício

contra sua imagem sonhada. Logo não há vagas para tanto desatino. Antes de

completar um mês de vida já conta com 144 internos. Em 1868 tem 339 almas.37

O problema da superlotação é o centro das críticas de Teixeira Brandão.

A composição de sua clientela entrava em deterioração. Segundo os

prontuários constantes do Arquivo Morto do Instituto Municipal Nise da Silveira,38

as fichas de observação do Hospício de Pedro II traziam como principal registro

36 Os loucos de rua relatados anteriormente também no trabalho de ENGEL.37 Relatório do Ministério do Império, citado por ENGEL.38 Todo o arquivo original encontra-se no arquivo morto do Instituto Municipal Nise da Silveira.

38

não o nome ou diagnóstico do paciente, mas a sua classe social.39 No entanto,

em 1870, mais de 70% dos internos eram indigentes. O que não poderia deixar de

acontecer se a população alvo do hospício além de louca era também de

miseráveis, vagabundos, embriagados, desviantes de todo o gênero. Esta

situação de superlotação pode ser acompanhada na pesquisa de ENGEL (2001;

243):

“A preocupação com a periculosidade representada, segundo o parecerdas autoridades públicas, pelo número crescente de mendigos nasruas do Rio de Janeiro, ensejaria a criação, em 1854, do Albergue deMendigos, o qual, subordinado ao chefe de Polícia, deveria recolhertodos os mendigos encontrados durante a noite nas ruas, nas praçaspúblicas e nos adros das igrejas. Desde pelo menos o início da décadade 60 do século XIX, os ‘alienados mansos’ ou ‘menos furiosos’encontrados pela polícia vagando nas ruas da cidade, cuja admissãono Hospício de Pedro II fosse recusada por problemas de superlotação,eram encaminhados para a Albergaria, enquanto os ‘mais furiosos’eram enviados à Casa de Detenção”.

Ora, o que já assistimos nas críticas de Teixeira Brandão foi proporcionado

mais pelo saber médico que criou o hospício e muito menos pelas razões que ele

apresentava. Mas isto é uma característica dos movimentos psiquiátricos, e será

visto neste trabalho para o caso examinado.

O terceiro movimento do período que examinamos neste capítulo, fala

sobre a tomada do hospício pelo saber que o reivindicara. Os primeiros governos

republicanos reconheceram nos alienistas e na ciências a transformação da

loucura em doença mental e providenciaram um arcabouço de leis para instituir o

poder usurpado: a criação da Assistência Médica e Legal de Alienados (decreto

206A, de 15/02/1890)40, que subordina o Hospício - que já se chama dos

Alienados, deixando o Pedro II para trás, e que tem como diretor Teixeira

Brandão, premiado com sua luta em nome do saber;41 a anterior separação da

administração do Hospício da Santa Casa de Misericórdia (decreto 142A de

11/01/1890), que tira o poder do leigo e entrega ao alienista a sorte dos alienados

39 Observação nossa. As classe eram: Primeira, Segunda, Terceira (livre), Terceira (escravo) e Indigentes(escravos, livres e libertos). 40 Datas e decretos citados da pesquisa de Engel.41 Note-se que ele tinha um cargo técnico no antigo Hospício.

39

e, mais importante, com o decreto 1.132, de 22/12/1903, que cria a Lei de

Assistência Médico Legal aos Alienados, institui-se definitivamente a

medicalização da lei, maior reivindicação dos alienistas neste período.

Claro que os decretos, como sempre sói acontecer, não mudam a

realidade. O final do período, apesar das muitas vitórias do saber instituído,

encontra o velho Hospício, mesmo fingindo ser novo, com todos os problemas

antigos.

Mas quando o saber já está esgotado, necessita-se de um novo.

“No século XX, a prática psiquiátrica incidirá sobre aqueles queapresentam desvios mentais, atuais ou potenciais, loucos ouvirtualmente loucos, e penetrará em instituições, como a família, aescola, as Forças Armadas, com o objetivo terapêutico e preventivo delutar contra a criminalidade e a baixa produtividade, combatendo adoença mental propriamente dita e a anormalidade” (PORTOCARRERO,2002).

Dentro desta perspectiva, e diferente do que aconteceu até o final do

século XIX, os alienistas brasileiros não fizeram apenas uma transposição do

saber europeu. Na passagem de uma psiquiatria eminentemente moral para

fundamentar cientificamente a prática psiquiátrica, a participação de nossos

médicos higienistas foi de fundamental importância na constituição de nossa

história psiquiátrica. Mas o começo e não a origem desta história estava já

acontecendo neste período. Juliano Moreira, o principal nome do

desenvolvimento científico no período seguinte, já vinha trabalhando neste

período que estamos encerrando. Enquanto Teixeira Brandão encerrava este

ciclo, Juliano Moreira começava o novo. Há muito vinha sendo o representante da

Segunda Psiquiatria. Mas este é um novo capítulo...

40

Capítulo 3: Higiene Mental: um engenho de dentro que substitui apraia da saudade...42

“Tirar a medicina mental da esfera demasiado estreita dos asilos dealienados, na qual a tendência de então era confiná-la; dar a estaciência especial uma base mais larga e extensa; voltar, no passado,até às origens mais distantes das doenças mentais e prosseguir, nofuturo, até às últimas conseqüências; procurar, no estudo da etiologia,os meios de preservação mais eficazes, e, na higiene geral e social, osmeios da cura verdadeira; abandonar o exame exclusivo dos casoscrônicos, o mais freqüentemente irremediáveis, para dedicar-sesobretudo à observação dos casos recentes constatados na sociedade,ao estudo das neuroses e dos estados mórbidos gerais do sistemanervoso, são o verdadeiro ponto de partida da evolução das doençasmentais; procurar, em uma palavra prevenir a produção destasdoenças, em vez de combater em vão seus períodos terminais, tal foi avia particular na qual se engajou, desde o início de seus estudosespeciais, o doutor Morel; tal foi a idéia-mãe que se destacou pouco apouco de todos os seus trabalhos para culminar, em definitivo, nateoria geral das degenerescências da espécie humana e dos meios deregeneração tomados da higiene geral e social”.43

O que de mais importante a Teoria das Degenerescências traz no

fundamento da Segunda Psiquiatria é a reconciliação definitiva da medicina

mental com a medicina geral. No Brasil, mesmo ainda durante o Império, na

década de 70 do século XIX, com a criação da especialidade de psiquiatria nas

faculdades de medicina, esta teoria já tinha adeptos, mas lembramos que o

Hospício de Pedro II estava completamente dissociado das reflexões teóricas do

seu tempo. Teixeira Brandão, nomeado “facultativo clínico” do Hospício, em

42 Neste capítulo serão abordados aspectos da Segunda Psiquiatria, Juliano Moreira - prático e teórico daescola alemã, A Liga Brasileira de Higiene Mental e a substituição do Hospício Nacional de Alienados, naantiga praia da Saudade, hoje Vermelha, pelo Centro Psiquiátrico Nacional, no bairro do Engenho de Dentro,no Rio de Janeiro. 43 Jules Falret, alienista francês da Société Médico-Psychologique, em 1873, discursando na cerimôniareligiosa do velório de Bénédict-Augustin Morel, destacando a importância que o autor da Teoria dasDegenerescências tinha para o saber psiquiátrico da época, segundo SERPA JR., (1998; 38). Com a publicaçãode “Traité des Dégénerescences” (1857) e de “Traité des Maladies Mentales” (1860), Morel coloca as basespara o que CASTEL chama de Segunda Psiquiatria.

41

1886, sendo representante da academia, seria a ponte entre a prática e a teoria.

Porém o momento, como foi visto, era de debates políticos conseqüentes ao

ocaso da monarquia vigente. Foi na esfera política que aconteceu a sua

participação. Como deputado do regime nascente é que consegue a aprovação

da lei dos alienados que foi abordada no capítulo anterior. Mesmo assim, Teixeira

Brandão, embora não reclamando de ser considerado o Pinel brasileiro,44 foi autor

de uma classificação própria das doenças mentais já com influência da Teoria das

Degenerescências45.

No entanto, é Juliano Moreira, recém chegado de uma viagem científica à

Europa, que assume, em 1903, a Assistência Médico-Legal dos Alienados e nela

permanece até a Revolução de 1930, quem vai consolidar a moderna psiquiatria

brasileira, no período que faz a passagem da Segunda Psiquiatria Francesa para

o modelo alemão, de importante significado nos aspectos étnicos, éticos, políticos

e ideológicos na vida social nacional.

Morel, embora de origem francesa,46 possibilita a entrada do saber

psiquiátrico na escola alemã, no que mais tarde, na sua vertente social e política,

seria desenvolvido com a eugenia:

“Para mim é impossível, daqui para frente, separar o estudo dapatogenia das doenças mentais daquele das causas que produzem asdegenerescências fixas e permanentes, cuja presença no meio daparte sã da população é um caso de perigo incessante.“Se é assim, o tratamento da alienação mental não deve mais serconsiderado como independente de tudo que é indispensável tentarpara melhorar a espécie humana. A conseqüência é rigorosa e é nosentido deste tratamento, compreendido sob um ponto de vista médicomais amplo, mais filosófico e mais social, que se dirigirá, daqui pordiante, toda atividade das minhas investigações terapêuticas” (MOREL

APUD SERPA JR, 1998; 50).

44 Como também foi citado anteriormente, para reforçar sua luta na crítica ao desvio do Hospício de Pedro II.45 “De acordo com este psiquiatra, as perturbações mentais seriam divididas em duas categorias: as que semanifestavam nos cérebros de evolução normal, compreendendo três classes (as psicoses, as cerebropsicoses eas cerebropatias) e as que se manifestam em cérebros de evolução anormal, ou seja, as degenerações”. ParaHenrique Roxo “esta classificação era mais perfeita que a de Kraepelin porque, enquanto o primeiro baseia-senos dados evolucionistas, patogênicos, anatopatológicos e sintomáticos, o segundo leva em conta apenas ocaráter sintomático” (ENGEL, 2001; 138).46 Segundo SERPA JR, op. cit., nascido num acampamento do exército napoleônico na Alemanha, Morel viveusua infância e juventude naquele país, tinha amplo conhecimento da língua e costumes alemães e vai fazer aponte, no seu retorno à França, onde escreve suas principais obras, entre a psiquiatria francesa e alemã.

42

Diferente da doença mental como oposta à razão e como um ajustamento

de cunho moral, como tentou operar a Primeira Psiquiatria, com a Teoria das

Degenerescências vai-se examinar os desviantes do tipo normal da humanidade e

apontar causalidades orgânicas na hereditariedade, originadas por intoxicações

diversas, moléstias adquiridas ou congênitas ou, mesmo por influência do meio

social, comportamentos anormais que vão marcar na herança a doença. O

enfoque, neste período, passa a ter como problema central a geração de

indivíduos degenerados. Na nossa sociedade, no início do século XX, a alta taxa

de criminalidade e baixa produtividade em relação aos países desenvolvidos da

Europa, faz Juliano Moreira apontar como causa a degenerescência de nossa

formação. A teoria psiquiátrica é alargada em suas tendências organicistas, mas

também sociogenéticas, deixando o conceito estreito da doença mental para

voltar sua atenção para a anormalidade e ter na causa desta anormalidade a sua

ação. A saúde mental, e não a doença, segundo Juliano Moreira (APUD

PORTOCARRERO 2002; 52), é “um problema que concerne ao estudo dos fatores de

desenvolvimento físico e intelectual das raças”.

Esta anormalidade que aparecia no corpo social tem como causa a

organicidade marcada na herança genética. Mas Kraepelin,47 no seu Tratado de

Psiquiatria, inclui na sua classificação, como estados mórbidos, os “irritáveis,

instintivos, disputadores, mentirosos, fraudadores, anti-sociais, exaltados,

fanáticos, etc”, categorias muito próximas do que um julgamento moral da

psiquiatria anterior seria capaz de fazer... Na verdade do que se está apropriando

é de um comportamento desviante, explicado de forma “científica”, novamente

utilizando-se da psiquiatria como medicina social, auxiliar do Estado, para

implantar a ordem urbana:

47 Representante da escola alemã com enorme influência sobre Juliano Moreira.

43

“O ‘Tratado’ de Morel se constitui, portanto, num legítimo representantede uma época que procurava neutralizar conflitos sociais, por um lado,e pretendia atribuir ao resultado de uma ‘escolha moral indevida’ oassombroso rosto que a parcela abastada da população enxergava nosmiseráveis que se comprimiam na periferia das cidades, nas prisões enos asilos, por outro. Indo ao encontro de alguns dos mais importantesmedos coletivos da época, não é de se estranhar que a teoria dadegenerescência tenha conhecido a difusão que teve e tenha servidocomo caução para uma legitimidade social que a corporaçãopsiquiátrica tanto buscava” (SERPA JR., 1998; 99).

Enquanto se aproxima da medicina geral pela causalidade orgânica e

genética, o discurso psiquiátrico, enquanto ação, volta-se para a anormalidade

social e aumenta seu envolvimento com a origem moral, tendo, na educação, na

higiene física e mental, no aprimoramento da raça, na eugenia, uma marca no

saber psiquiátrico daquele momento, que vai ecoar por muito tempo, até mesmo

na moderna psiquiatria biológica, neste início de século XXI.48

Numa nova concepção de doença mental, de acordo com Morel e

Kraepelin, Juliano Moreira (APUD PORTOCARRERO, 2002; 59) vai defini-la como “um

desvio da normalidade que é uma exceção biológica”. Sob esta ótica toda a

população pode estar potencialmente doente, se não estiver preparada para

enfrentar seu meio social. Sendo assim, a psiquiatria deve escapar dos muros do

hospício para uma ação de prevenção e higiene mental na sociedade. Até a

delinqüência e a criminalidade fazem parte deste comportamento anormal.

“Com Juliano Moreira, inaugura-se no Brasil um novo momento dosaber psiquiátrico. Ao se introduzir um modelo teórico que tenta atribuirlesões específicas aos diversos tipos de doença mental e refere-se nãosó ao louco mas a outros tipos de desviantes, os anormais, estabelece-se uma descontinuidade em relação a generalidade causal das teoriasmorais do século XIX e em relação ao seu objeto. A psiquiatria não émais o discurso científico sobre a loucura e suas causas somente: ela éo saber médico sobre todo desvio da normalidade – criminalidade,degeneração, doença mental” (PORTOCARRERO, 2002; 91).

Vera Portocarrero, na obra citada que tem como subtítulo “Juliano Moreira

e a descontinuidade histórica da psiquiatria”, justifica esta ruptura por ações que

não estão mais na esfera do velho hospício, mas num conjunto de propostas de

intervenção na sociedade. As colônias agrícolas, o manicômio judiciário, a48 As doenças no DSM último saem da classificação sindrômica para uma classificação sintomática,comportamental, em plena sintonia com o desenvolvimento da indústria farmacêutica, que cria drogasseletivas para o comportamento que se quer mudar.

44

assistência heterofamiliar, o ambulatório, a assistência aos epilépticos, os

reformatórios para alcoólatras, a reformulação do hospício e a implantação do

regime de open-door49, seriam novos dispositivos responsáveis pela

descontinuidade anunciada. À desorganização do velho Hospício e sua

inadequação se opõem uma nova concepção de doença mental, métodos

terapêuticos e categorias nosográficas modernos, introduzidos por Juliano

Moreira. Mas se afirma que, em 1910, Juliano Moreira explicitava sua proposta de

“retirar das instituições de assistência tudo aquilo que lembre caserna ou prisão,

pois estas irritam o doente, atrapalhando o tratamento”. PORTOCARRERO critica a

produção da “ilusão de liberdade” obtida com o sistema de open-door, que só

demonstrava “o caráter sutil do exercício do poder na instituição psiquiátrica”.

Mesmo a eliminação da camisa de força, das grades e a liberdade de circulação

do alienado não significavam, contudo, “uma diminuição da repressão” no

Hospício. No entanto, afirma que a diferença entre os métodos coercitivos do

hospício do século XIX para o do século XX “consiste no fato de que os primeiros

se caracterizavam pela punição e de não terem em si fins terapêuticos, enquanto

que o pouso no leito e os banhos, substituindo a violência pelo ‘deleite’, propõe-se

como meio curativo e eficaz”. Sendo esta eficácia “medida pelo nível de sujeição à

força da disciplina que a terapia psiquiátrica impõe” (PORTOCARRERO, 2002; 126).50

Em suma, nos Arquivos da Loucura, Juliano Moreira teria passado do “princípio do

isolamento” de Esquirol, onde a assistência psiquiátrica se restringe ao espaço de

exclusão do hospício, para uma ampliação de ações terapêuticas que são

dirigidas tanto para os loucos quanto para os anormais da sociedade, através de

medidas “preventivas que pretendem garantir a segurança da sociedade, do

anormal e do poder do psiquiatra” (PORTOCARRERO, 2002; 131).

Entretanto, esta ruptura é vista por outro autor (ENGEL, 2001) como fruto de

uma multiciplidade de tendências que afetou a produção dos psiquiatras

brasileiros e que, mesmo sendo tendências de linhas diversas e conflitantes,

49 Alguns destes dispositivos serão abordados mais adiante, neste trabalho. O open-door era um sistema decirculação no Hospício e nas Colônias agrícolas que, nas palavras de Juliano Moreira, traria um sentimento de“ilusão de liberdade” propício `a aplicação dos “modernos” tratamentos.50 Interessante que no intróito do terceiro capítulo dos Arquivos da Loucura, um texto de Rotelli, tirado deDesinstitucionalização, propõe ilustrar as transformações da ruptura de Juliano Moreira (pg. 107)... Rever otrecho da entrevista com Rotelli no primeiro capítulo.

45

tinham pontos em comum porque foram elaboradas e difundidas num mesmo

contexto e influenciaram nossos psiquiatras pelas características de seus

aspectos-chave em dois fatores: a necessidade de que os estigmas físicos e

psíquicos se traduzissem em degeneração e, por conseguinte, em doença mental;

e a intenção de colocar a hereditariedade como primeiro e mais importante fator

da alienação mental. Esta teoria de perspectivas organicistas

“...tenderia a predominar no âmago da psiquiatria brasileira,assumindo, no entanto, várias matizes, cujos tons eram dados pelasdiferentes fontes nas quais de inspiravam seus edificadores, entre osquais figuravam, por exemplo, a degenerescência de Morel –reformulada e ampliada por Valentin Magnan -, a eugenia de FrancisGalton, o darwinismo, o neolamarckismo, a antropologia criminal daescola positivista de Cesare Lombroso e da escola sociológica deAlexandre Lacassagne, e o organicismo de Kraepelin” (ENGEL, 2001;161).51

O uso destas tendências, com o direcionamento claro de um projeto de

medicina social de controle, teve conseqüências profundas no estado brasileiro.

Magali ENGEL, na obra citada, examina, no capítulo 2, os “Personagens

Aprisionados”, através de um minucioso levantamento de casos jurídicos, no

começo do século XX, colocando nos laudos psiquiátricos o poder de interferir na

vida dos cidadãos da República. Apenas vamos citar dois casos, de forma muito

resumida, dos muitos ali registrados, por serem opostos e que ilustram este

poder.

Bárbara de Jesus, viúva de 67 anos, escandaliza a sociedade do Distrito

Federal, com amplo destaque na imprensa, por querer casar com um tal de Ayres

Pereira de Mello, português, também viúvo, de 52 anos. A mídia da época,

contrária ao casamento, já noticiava Bárbara como octogenária e Ayres como um

moço de trinta e poucos anos, aumentando o escândalo. A família de Bárbara se

opõe ao casamento, por ser Ayres desempregado e temendo pelos bens de

51 Vale notar aqui que, apesar das críticas de FOUCAULT a FREUD, abordadas na nota 5, “desde os anos 1860,Freud já tomava distância da degenerescência e da enorme importância que era atribuída à etiologiahereditária, como é possível acompanhar na sua correspondência com Flies, assim como nos ‘Estudos sobre ahisteria’ e em textos como ‘As neuropsicoses de defesa’, ‘Obsessões e fobias: seu mecanismo psíquico e suaetiologia’, ‘A etiologia da histeria’ ou a ‘A hereditarieade e a etiologia das neuroses’. Freud começa assim aafrouxar as amarras que atrelam os destinos humanos a uma única determinação biológica para entregá-los àsua dimensão de linguagem e de cultura possibilitando a construção, em todas as suas dimensões, de umaoutra clínica da loucura” (SERPA JR., 1998; 150). E esta vertente freudiana não estava contaminando, de formadecisiva, os alienistas brasileiros do início do século XX.

46

Bárbara. Contrata Juliano Moreira e o Dr. Rego Barros para um parecer

psiquiátrico, usado juridicamente, atestando que a septuagenária, apesar “de não

sofrer nenhuma psicose definida, tem, por sua extrema ignorância”, uma evidente

“insuficiência mental”. Apesar de longa briga judicial, com ganhos de Bárbara em

dois julgamentos, ela termina por ser interditada, de acordo com o diagnóstico

pericial dos doutores psiquiátricos. O outro caso é o de João Barreto, um poeta,

alto funcionário público, cunhado de Sílvio Romero- intelectual proeminente da

elite local e que defende o parente com advogados. João Barreto, após

embriaguez, assassina a esposa, por quem nutria ciúmes doentios. Desta vez é

um laudo pericial do alienista Ernani Lopes que salva João da prisão, por ser um

degenerado e irresponsável por seu atos. Nestes dois exemplos temos a

psiquiatria exercendo funções ideológicas, interferindo na vida social.

Pelas ações de intervenção na ordem social, Juliano Moreira é comparado

a Oswaldo Cruz.52 O sanitarista medicaliza o espaço urbano e em nome de

sanear as epidemias ajuda o Estado na organização do espaço da urbe. A

retirada de cortiços, no Rio de Janeiro, possibilita a ordenação do espaço da

cidade, com abertura de novas avenidas, praças, novos prédios públicos da

ordem e da cultura no centro da cidade, com a organização de bairros para os

mais pobres, que são retirados de onde a cidade precisava se estender de forma

higiênica. Juliano Moreira faz o mesmo com a vertente comportamental de seus

moradores. Os alienistas reivindicam o direito de aconselhar casamentos ou o

divórcio: “A esterilidade, a alienação mental, a sífilis e o alcoolismo justificam o

divórcio e em que condições?” – perguntava um documento da época. O Dr.

Henrique Roxo defendia “não apenas a proibição de casamentos consangüíneos,

mas também o impedimento da procriação dos degenerados” (ENGEL, 2001;

167/8).

Ainda estamos nos anos 10 do século XX. A partir de 1923, com a criação

da Liga Brasileira de Higiene Mental, este projeto seria levado ao ápice.

Entretanto, antes de abordamos a Liga, é necessário que voltemos ao Hospício

da Praia da Saudade e ao nascimento da Colônia de Alienados do Engenho de

Dentro. 52 Tanto PORTOCARRERO quanto ENGEL encontram, nas suas respectivas pesquisas, esta comparação nosescritores da época. Sobre Oswaldo Cruz ver LUZ (1981).

47

No capítulo anterior, vimos que dois males impossibilitavam o

desenvolvimento do Hospício Nacional de Alienados: a superlotação, que

misturava curáveis e incuráveis, e a formação dos seus quadros profissionais. A

nomeação de Juliano Moreira para dirigir a Assistência Médico-Legal dos

Alienados, antes ocupada por Teixeira Brandão em 1903, por um longo período

de vinte e sete anos, enfrenta esta questão nos seus dois aspectos: no caso da

formação, aproxima a academia ao Hospício. São as teorias modernas da

Segunda Psiquiatria francesa e, principalmente, a filiação de Juliano à escola

alemã, as molas mestras para o enfrentamento do segundo problema: a

superlotação.

As Colônias da Ilha do Governador e São Bento, em um terreno

pertencente à ordem religiosa, e Barão de Mesquita, pertencente à Marinha, já

existiam desde 1887 como anexos da Praia Vermelha, para conter a superlotação

do Hospício de Pedro II. De forma indiscriminada, recebiam os incuráveis,

principalmente os pobres miseráveis.

O que Juliano Moreira vai imprimir é uma organização “científica” a estes

espaços. Esta organização “científica” era sobremaneira ampliada nos seus

aspectos sociais, de organização da norma, como já foi visto. A moral da época -

pós-abolicionista, via no trabalho livre a instância máxima de adaptação social.

Juliano vai direcionar às Colônias Agrícolas os incuráveis “mansos”, os

epilépticos, anormais de todos os matizes que abarrotavam o espaço do Hospício

Nacional.

Se, para este contigente de incuráveis, as Colônias propunham na

constituição de seu espaço a tão propagada “ilusão de liberdade”- a reeducação

pelo trabalho, para que seres inúteis pudessem ser úteis à sociedade, o espaço

do Hospício fora remodelado para pavilhões de agudos, de crianças, de perigosos

48

e criminosos,53 no seu esforço de cura. A reordenação possibilitada pelas

Colônias faria o Hospício ter a sua função de verdadeiro Hospital.54 Juliano

propõe para o Hospital, como função vocacional, o “tratamento não só de casos

agudos ou de fases de reativação de casos crônicos, mas ainda de velhos

doentes inadaptáveis ao regime de trabalho que nas colônias deve ter o seu

devido desenvolvimento”.55 Desta forma, centra no Hospital o papel da cura ou

remissão de sintomas agudos em pacientes crônicos, que deveriam, após a alta,

retornar às Colônias por dois motivos: livres da reagudização, os crônicos não

poderiam permanecer por trazer vícios ao asilo tradicional; por sua vez, o asilo

deveria viabilizar sua vocação de cura e, assim, manter-se aberto à demanda que

o alienista vislumbrava na sociedade.

Mesmo toda esta reordenação assistencial tinha limites espaciais. Ainda

mais com a expansão populacional do Rio de Janeiro no início do século XX, com

o agravante de que Juliano tinha “uma crença inabalável de que o crescimento da

população urbana corresponderia necessariamente e na mesma proporção – ou

até em proporções superiores – ao aumento do número de doentes mentais”.

Assim, “os psiquiatras sustentavam, por exemplo, que as grandes cidades teriam

tanto maior necessidade de uma hospitalização imediata de alienados quanto

maior ou mais densa tornava sua população” (ENGEL, 2001; 308/9).56

Juliano Moreira escreveu vários textos propondo um espaço de tratamento

para epilépticos, colônias para eles, e de reformatórios para alcoólatras, conforme

a pesquisa de PORTOCARRERO. Se estes espaços nunca foram concretizados,

servem para demostrar a extensa intenção de reordenação da assistência a

alienados proposta por Juliano.57

Entretanto, o que aconteceu na realidade- o possível na reordenação

proposta por Juliano Moreira, foi a inauguração da Colônia de Alienadas do53 A seção Lombroso abrigava os criminosos no Hospício Nacional. Uma revolta de internos deste pavilhão,de grande repercussão na imprensa da época, vai forçar a inauguração do Manicômio Judiciário, em 1921, umdos dispositivos da moderna psiquiatria propagada por Juliano Moreira.54 A partir de 1911 o Hospício passa a chamar-se Hospital Nacional de Alienados, nome que não “pegou”. Adata é coincidente com a inauguração da Colônia de Alienadas do Engenho de Dentro, para onde foi levado oexcesso das mulheres incuráveis, abrindo no Hospital o espaço da cura. 55 Juliano Moreira, Relatório de 1925 citado por ENGEL, 2001; 288. 56 Em referência a um texto de 1909 de Juliano Moreira.57 Se o advento de drogas anticonvulsivantes cessou, nos dias de hoje, a solicitação deste espaço, o mesmo nãoocorreu com o alcoolismo. Os centros de cura religiosos, hoje existentes, têm algumas características dosreformatórios propostos por Juliano Moreira.

49

Engenho de Dentro, em 1911, num terreno cedido pela Marinha, onde funcionava

o antigo pavilhão dos beribéricos, no bairro do Engenho de Dentro, para abrigar

as indigentes que superlotavam o Hospital Nacional de Alienados.58 As duas

Colônias da Ilha do Governador seriam desativadas a partir de 1921 e, em 1923,

era inaugurada, em substituição à de Barão de Mesquita e de São Bento, a

Colônia Agrícola da Jacarepaguá, hoje Instituto Municipal de Assistência à Saúde

Juliano Moreira, antiga Colônia Juliano Moreira. Em 1921 é inaugurado o

Manicômio Judiciário, no terreno da Casa de Correção do Rio de Janeiro, e Heitor

Carrilho é seu primeiro diretor.

A Colônia de Alienados (inicialmente, alienadas) do Engenho de Dentro, na

gestão de seu primeiro diretor, Braule Pinto, tem apenas um papel complementar

na reordenação da assistência, proposta por Juliano Moreira, de sua inauguração

até 1918. O período de Gustavo Riedel (de 1918 a 1932) é marcado por fatos que

vão reformular o papel da Colônia, dando a ela destaque na assistência

psiquiátrica do período.

Como uma listagem deste fatos para demonstrar a importância assumida

pela Colônia em relação ao Hospício Nacional, temos:

1. Inauguração do Ambulatório Rivadávia Correa, primeiro ambulatório

psiquiátrico da América Latina,59 com um papel importante na profilaxia de

doenças mentais, adotado pela Liga Brasileira de Higiene Mental a partir de

l923.

2. A Escola de Enfermeiros Alfredo Pinto, que seria um marco na formação

profissional e especialização em psiquiatria, primeira preocupação de Juliano

Moreira quando assumiu o velho Hospício. Se ele tinha formado uma geração

de alienistas, seus auxiliares continuavam sendo profissionais sem a formação

necessária, que esta escola veio proporcionar.58 SAMPAIO (1988) afirma que o pavilhão de beribéricos no Engenho de Dentro foi destinado “a abrigar asmulheres que sairiam da Colônia Conde de Mesquita, criada na Ilha do Governador, por Teixeira Brandão, eque se encontrava em desativação”(Pg. 297). Não encontramos em outros textos publicados este registro. Noentanto, há referências de que o terreno do Engenho de Dentro, que era da Marinha, foi trocado pela Uniãocom um terreno no Andaraí, onde hoje funciona o Hospital do Andaraí. A Colônia de Barão de Mesquita erada Marinha. 59 É verdade que já existia um serviço de atendimento externo no Hospício Nacional, desde Teixeira Brandão,e que Juliano Moreira ampliaria este serviço na sua gestão. Mas a dimensão e papel do Ambulatório (aprimeira utilização do nome) Rivadávia Correa faz Juliano Moreira sugerir que se criem serviços semelhantes,não só em Jacarepaguuá, mas nas policlínicas da cidade, nos dispensários, escolas, numa espécie de “liga deprofilaxia e higiene mental".

50

3. Serviço Heterofamiliar, um dos dispositivos sonhados por Juliano Moreira.

Composto de 15 casas construídas no entorno da Colônia, eram habitadas

por funcionários que cuidariam de doentes postos sob sua guarda domiciliar.60

4. Instituto de Profilaxia Mental, primeiro órgão responsável pela divulgação da

higiene mental, originará, em 1923, a Liga Brasileira de Higiene Mental que vai

marcar na psiquiatria seu projeto de sair do espaço asilar para a

psiquiatrização do espaço social.

5. A criação, em 1923, do Laboratório de Psicologia Experimental da Colônia de

Psicopatas do Engenho de Dentro que, em 1932, se transforma no Instituto de

Psicologia, uma extensão do curso de Psicologia e Psiquiatria da Universidade

dentro de um dispositivo assistencial, trazendo o saber para junto da prática.61

Toda esta reordenação assistencial, acontecida na Colônia de Alienados do

Engenho de Dentro, vai fazer este lugar ocupar um destaque especial na

assistência psiquiátrica do Rio de Janeiro durante a gestão de Gustavo Riedel.

Por um lado, dentro da própria organização assistencial, dois novos dispositivos

alteram o quadro existente no velho Hospício: o Serviço Heterofamiliar e o

Ambulatório Rivadávia Correa; por outro, a Escola de Enfermagem e os Institutos

de Profilaxia e de Psicologia trazem a formação necessária ao saber que vai ter

um papel importante na sociedade através da Liga Brasileira de Higiene Mental.

E, se observamos com cuidado, estes dois propósitos eram a preocupação de

Juliano Moreira para a reordenação da psiquiatria: a superlotação e a formação

de pessoal, já citados anteriormente.

60 Este modelo inspira-se em experiências européias, que por sua vez são baseadas numa prática natural deuma aldeia belga, segundo AMARANTE (1982): “Desde o século VII, os loucos eram levados para Gheel, naBélgica, em peregrinação até a Igreja de Santa Dimphne, na esperança de uma cura milagrosa. Os doentes quenão ficavam bons até o final da novena eram, muitas vezes, deixados na casa de algum habitante do lugarejoaté a próxima festa da padroeira. Assim a população foi criando o hábito de acolher alienados e até tratá-loscomo doentes” 61 Para o Laboratório de Psicologia, Riedel nomeia Waclaw Radecki, médico polonês radicado no Brasil, quese dedica ao estudo da Psicologia. O Instituto também é uma obsessão de Radecki. Porém, após sete meses deexistência, é fechado pela ditadura Vargas e Radecki emigra para o Uruguai. A profissão de psicólogo só vaiser regulamentada em 1962. Conf. CASTRO, V. S. O. & JACÓ-VILELE, A. M., A Psicologia no Brasil: WaclawRadecki in AMARANTE (2000).

51

O Serviço Heterofamiliar, composto de 15 casas no entorno da Colônia,62

foi um projeto de duração efêmera para a história,63 mas chegou a abrigar 10

doentes em assistência familiar e 8 em domicílio afiançado,64 e seguia as

determinações de Juliano Moreira:

“Anexo ao hospital-colônia, em seus limites, deve o Governo construircasinhas para alugar às famílias de bons enfermeiros, que poderãoreceber pacientes suscetíveis de serem tratados em domicílio: far-se-áassim assistência familiar. Se nas redondezas houver gente idônea aquem se possa confiar alguns doentes, poder-se-á ir estendendo essaassistência heterofamiliar e até se tentar a homofamiliar”.65

Não encontramos registro do término desta experiência. Entretanto, as

fotos dos bangalôs- construções de esmero arquitetônico, que através dos tempos

aparecem ainda como aspectos da memória desta época, apesar das reformas

sofridas de forma desordenada, atestam que, pelo menos na intenção, o Serviço

Heterofamiliar fez parte do projeto de Gustavo Riedel para remodelar a antiga

Colônia de excedentes da Praia Vermelha ou da Ilha do Governador. Na prática,

tanto este projeto, quanto todo o complexo do open-door, com a “ilusão da

liberdade”, criou condições de trabalho para os internos e “parece ter funcionado

efetiva e prioritariamente como um meio de submeter e controlar o contigente de

internados provenientes, sobretudo, dos setores mais pobres da sociedade, ao

mesmo tempo em que estes eram utilizados como mão de obra gratuita,

contribuindo para a própria manutenção da instituição asilar” (ENGEL, 2001; 316).

Seja como for, no momento em que o trabalho garantia, em si mesmo, uma

aproximação da cura, a organização efetuada por Gustavo Riedel no Engenho de

Dentro caminhava para o estabelecimento de uma “vida em comunidade”,66

mesmo que da comunidade dos excluídos. Vale notar que no sistema de open-62 É importante notar que algumas das 15 casas deste Serviço ainda existem hoje, ocupadas por ex-servidorese seus descendentes. São oito casas na rua Bernardo, espaço externo do Instituto, em processo judicial pararetomada pelo poder público e quatro construções internas, que estão sendo recuperadas, para o Programa deMoradias, assunto que será tratado mais adiante.63 Não conhecemos documentos de sua desativação; parece um projeto que fracassou.64 ENGEL (2001; 319) em nota de rodapé, sem especificar estas diferenças.65 Juliano Moreira, Quais os melhores meios de assistência aos alienados, documento de 1910, citado porPORTOCARRERO (2002; 138), sugerindo que afiançado, diferente da hetero e homofamiliar, seria com pessoasidôneas, não servidores e não parentes. Não encontramos, no tempo que nos foi possível pesquisar, referênciasde quando acabou o programa e porque. Gostaríamos de registrar, para uma pesquisa posterior, que quandochegamos, em 1981, para trabalhar na Saúde Mental, o Centro Psiquiátrico Pedro II possuía uma categoria dehabitantes diferente dos internos, tidos como pacientes: eram os Agregados. Estavam agregados ao Asilo, comestatuto de moradores, exercendo algumas atividades de servidores, sem remuneração. Seriam originários daassistência heterofamiliar que fracassou?

52

door preconizado por Juliano Moreira, os médicos residentes do hospital deviam

contar com os serviços particulares de alguns internos, pois isto ajudava no

estudo do casos que estavam sendo tratados.67

O outro dispositivo que mudou a assistência psiquiátrica, sob a

responsabilidade de Gustavo Riedel, foi o Ambulatório Rivadávia Correa. Primeiro

dispositivo que adotou uma terminologia ambulatorial, tinha na profilaxia o seu

papel preponderante. Este dispositivo foi, de fato, o que possibilitou um controle

ordenado da vida social.

“As estratégias profiláticas de controle da doença mental difundidas,sobretudo, a partir dos anos 20 do século XX, sob a égide dosprincípios eugênicos propalados pelos defensores de uma politica dehigiene mental, serviriam para, de um lado, ampliar os mecanismos deidentificação dos que deveriam ser imediatamente internados e deoutro, estender os tentáculos do poder do psiquiatra para muito alémdos limites do mundo asilar, tal como sonhavam os alienistas do séculoXIX” (ENGEL, 2001; 309).

O ambulatório vai funcionar dentro dos preceitos da higiene mental e

permite demarcar na comunidade os problemas a serem enfrentados. Gustavo

Riedel, em um relatório apresentado a Juliano Moreira, em 1924, exaltava o

potencial do dispositivo: “A observação do doente no próprio lar tem a vantagem

de surpreendê-lo no meio familiar onde a anamnese pode ser mais completa e

onde os conselhos distribuídos aos parentes calam mais profundamente e

produzem melhores resultados” (MOREIRA APUD ENGEL, 2001; 306).

O Ambulatório integrado à Colônia de Alienados do Engenho de Dentro

permitia conciliar as estratégias de reclusão e prevenção, ambição antiga dos

alienistas. Na Colônia o espaço fora “humanizado” pelos artifícios do open-door.

Mas continuava um espaço recluso. O Ambulatório delimitava este espaço,

captava os anormais e doentes necessários à reclusão, funcionando como uma

66 Além das fotos das residências heterofamiliares, no arquivo do Instituição podemos observar fotos do lago,dos corredores bem cuidados, dos espaços das alamedas, do refeitório, do prédio destinado a teatro e cinema(ver fotografias no anexo).67 Aqui vale reproduzir uma história bastante interessante que nos foi contada por Lula Mello, hoje diretor doMuseu de Imagens do Inconsciente e que foi, durante boa parte de sua vida, escudeiro de Nise da Silveira:quando a jovem doutora Nise fazia residência no Hospital Nacional, era sempre acompanhada por uma destasinternas serviçais. Muito tímida e dócil, a paciente serviu a Nise durante todo o período de sua formação noHospital Nacional. Na perseguição política, que ocorreu aos comunistas no Estado Novo, Nise foi presa,dentro do Hospital Nacional, por uma enfermeira ter denunciado que ela tinha livros “comunistas”. Após aprisão de Nise, a paciente entrou em estado de agitação psicomotora dirigida à enfermeira “dedo-duro”, quelevou uma surra. Lula diz que ouviu a história da própria Nise.

53

porta de entrada de captação ativa, ao mesmo tempo em que possibilitava ao

alienista sair detrás dos muros para um controle da doença e da anormalidade, lá

onde ela nem mesmo se manifestara ainda. Estando já pronto o dispositivo, a

teoria de convencimento da comunidade, ainda que apenas de sua elite

formadora de opinião, foi anunciada e propagada pela Liga Brasileira de Higiene

Mental.

Fundada por Gustavo Riedel, em 1923, a Liga Brasileira de Higiene Mental

(LBHM) “era uma entidade civil, reconhecida de utilidade pública, que funcionava

como uma subvenção federal, com a ajuda benévola de filantropos e,

posteriormente, em 1925, com a renda dos anúncios publicados na sua revista,

Archivos Brasileiros de Hygiene Mental, surgida neste mesmo ano” (COSTA, 1981;

27/8). Se no início propagava o poder do dispositivo assistencial, a partir de 1926

passa a dedicar-se à educação, à eugenia, ao controle da qualidade e

aprimoramento da raça, para evitar ao degenerado e anormal o direito de nascer.

O objetivo dos cuidados dos psiquiatras passou a ser os cidadãos normais e não

os doentes (COSTA, 1981; 28).

Mas antes é necessário buscar no seu começo, na Teoria das

Degenerescências, passos que possibilitaram a passagem da higiene a uma

concepção eugênica. Curiosamente, se essa Teoria aproximou a medicina

mental da clínica médica através de um substrato anátomo-patológico, bem a

gosto dos alienistas em paz com a ciência física, as suas ações na ordem da cura

estabeleciam íntimas relações com procedimentos morais, tendo na educação o

método privilegiado. Havia, de fato, uma preocupação que, através da educação,

a criança fosse protegida contra a patologia que o meio social pudesse exercer

em sua saúde mental, assim como ao degenerado tentava-se reeducar pela

terapia moral. Juliano Moreira responsabilizava a má educação em uma

sociedade civilizada, tanto por distúrbios psíquicos, como por formação de uma

“raça de degenerados”. Preocupavam-lhe, sobremaneira, os imigrantes europeus

que “infestavam” o país: “O Brasil está destinado, como país de imigração a ser o

rebotalho movediço (...) seremos o refúgio dos piores imigrantes”.68 Henrique

68 Juliano Moreira apud PORTOCARRERO (2002; 75).

54

Roxo, também alienista famoso, em um artigo de 190469 explicita estas idéias

racistas e enfatiza a poderosa ação do meio no aprimoramento racial:

“Não é a constituição física do preto, a sua cor escura que lhe marcamo ferrete da inferioridade. É a evolução que não se deu. Ficaramretardatários. Ao passo que os brancos iam transmitindo um cérebroem que as dobras de passagem mais se aprimoravam, em que osneurônios tinham uma atividade mais apurada, os negros queindolentemente se furtaram à emigração, em que a concorrênciapsíquica era nula, levam a seus dependentes um cérebro pouco afeitoao trabalho, um órgão que de grandes esforços não era capaz.“Suponhamos... que um negro com esta má tara hereditária setransportasse para um centro adiantado e que com sua congênereviesse a ter descendência. Imaginemos... que esta fosse pouco apouco progredindo e que de pai a filho se fosse legando cada vez maisum cérebro exercitado, ativo. Dentro de um certo número dedescendentes chegaria, finalmente, um cérebro tão evoluído quanto deum branco. Seria tão inteligente quanto este”. (grifos nossos)

Sílvio Romero, o mesmo que “degenerou” seu cunhado para que ele

escapasse da prisão, na sua História da Literatura Brasileira (ROMERO APUD ENGEL,

2001; 173), publicada em 1888, discursando sobre as diferenças étnicas e a lei do

predomínio do mais apto, acreditava que o elemento branco era superior, e previa

um “embranquecimento” da população brasileira em “três ou quatro séculos”.

Embora este racismo dos alienistas possa ser atenuado pela cura nas

ações do meio, traz aqui embutida uma idéia de superioridade cultural, que não

passa de um preconceito racista para com as culturas dominadas.

Estes são fatos do início do século XX, muito antes da constituição da

LBHM. Ainda em São Paulo, em 1917, Renato Kehl funda a Sociedade Eugênica

de São Paulo (ENGEL, 2001 E PORTOCARRERO, 2002) que, embora de existência

efêmera, prega a doutrina de Sir Francis Galton de forma aberta: a eugenia como

produto da ciência no aprimoramento racial. A LBHM vai ser a voz oficial e

científica deste caldo de cultura onde proliferava a pura eugenia, ainda disfarçada

de Higiene Mental.

Costa, em seu estudo sobre a LBHM, buscando o momento do

aparecimento da eugenia no Brasil, infere que

“A intelectualidade brasileira enfrentava, na época, graves problemasideológicos que a eugenia ajudou a solucionar. O regime republicano

69 Henrique Roxo, Perturbações mentais nos negros do Brasil, apud ENGEL (2001; 174).

55

atravessava, nas duas primeiras décadas do século XX, um período deconvulsões. A abolição da escravatura; a imigração européia; amigração de camponeses e antigos escravos para as cidades; enfim,os efeitos econômicos da industrialização nascente agravaram astensões sociais e colocavam em questão o próprio regime, cujalegitimidade a elite dirigente procurava justificar por todos os meios”(COSTA, 1981; 31).

Numa primeira etapa a LBHM dedicou-se, com Gustavo Riedel, à higiene

psíquica individual. Dentro do modelo alemão de Kraepelin, a higiene individual

fazia parte do contexto da psiquiatria da época. O organicismo estava implantado

na psiquiatria de então e, neste princípio, o “aconselhamento genético”, a

profilaxia de “taras” e a “degenerescência” estavam no campo da higiene mental,

no que o Ambulatório Rivadávia Correa agia com distinção, já nos bairros vizinhos

do Engenho de Dentro. A hereditariedade era a causa, para a psiquiatria da

época, da epilepsia, da esquizofrenia, da imbecilidade e da paralisia geral

progressiva. O que caracterizava este primeiro momento da Liga era uma

terapêutica empregada na prevenção da doença mental.

Mas, aos poucos, ela se afasta deste campo restrito da função psiquiátrica

para propagar sobre o coletivo social as suas idéias e procedimentos ideológicos.

Vejamos em dois textos da época, citados por Costa, como as ações médicas

saem do indivíduo para o coletivo, do singular ao plural:

“...os espartanos, como geralmente é sabido, chegaram ao extremo dearremessar ao Eurotas os meninos nascidos defeituosos. D’estamesma idéa simplista de preservar a raça, afastando os anormaes dapossibilidade de reproducção, proveio por certo uma forma modernaque prescreve esterilizar alienados delinquentes, degeneradosalcoolicos inveterados, quer como penalidade, quer comoprophylactico. Para obter a esterilização basta no homem ressecar umcentímetro do cordão espermático, de cada lado. (...) O alvitre,exellente ‘a priori’, tem o inconveniente de attingir apenas os casosmais graves”. (Juliano Moreira)Ernani Lopes, que vai substituir Gustavo Riedel na direção da Colôniados Alienados do Engenho de Dentro, no artigo “Menores Incorrigíveis”,propondo medidas profiláticas nestes casos: “a) combate ao alcoolismoe a syphilis dos procreadores; b) evitação das uniões de indivíduostarados; c) segregação e esterilização dos degenerados, de accordocom o parecer de comissões technicas”.

Embora ainda no campo médico, as ações não são propostas no caso

em estudo, mas no atacado. No coletivo. Logo estas ações saem do campo

56

médico para assumir seu viés ideológico. O mesmo Ernani Lopes, em 1933, em

outro artigo, “pede então que sejam criados no Brasil tribunais de eugenia, a

reforma eugênica dos salários e o seguro de paternidade eugênica, três

instrumentos jurídicos-institucionais criados por Hitler, a fim de aperfeiçoar a ‘raça’

alemã” (COSTA, 1981; 48). Em 1934, a LBHM publica nos seus Archivos uma

solicitação ao Chefe de Polícia do Distrito Federal, Sr. Major Filinto Müller, para

que seja intensificada a fiscalização nos botequins, propondo horário de

funcionamento e solicitando uma listagem, “tão pormenorizada quanto possível,

de todos os ébrios contumazes de que tenham conhecimento, fornecendo-a, em

caráter confidencial, a esta Instituição, que se propõe a dar os passos necessários

para submeter o paciente ao cuidado de nossos serviços...” (ARCHIRVOS APUD COSTA,

1981; 66). Costa identifica na LBHM as seguintes características: antiliberalismo,

moralismo, racismo e xenofobia. Cita ainda, como figuras expressivas da

psiquiatria da época que não participaram deste pensamento: Odilon Galotti, no

Rio, James Ferraz Alvim, em São Paulo e Ulisses Pernambucano, em Recife.

Curiosamente, as idéias eugenistas de aprimoramento da raça, que

pregavam, no início, a miscigenação para uma evolução dos brasileiros, após a

Revolução de 30 desaparecem com a ideologia nazista que contamina o

aparelho de Estado. No 3º Congresso Brasileiro de Neurologia, Psiquiatria e

Medicina-Legal, o psiquiatra Xavier Oliveira propunha artigos a serem implantados

na legislação brasileira como “votos de profilaxia defensiva”: “que só seja

permitida a entrada no país de imigrantes da raça branca”; e “que seja

expressamente proibida para efeito de residência além de seis meses, a entrada

no país de quaisquer elementos das raças negras e amarelas” (COSTA, 1981; 86).

Juliano Moreira, um mulato baiano, não está mais à frente da política das doenças

mentais. Continua na academia como um eminente professor, respeitado por

todos... Morre aos 60 anos, em 1933.

A Colônia de Alienados do Engenho de Dentro, aberta em 1911 com a

transferência de mulheres para o antigo pavilhão de beribéricos da Marinha, como

57

já foi referido, é ampliada com a construção de um pavilhão para 200 internas em

1912. Em 1918, na gestão Gustavo Riedel é inaugurado o Ambulatório Rivadávia

Correa. A Assistência Heterofamiliar é implantada em 1921, ano em que também

é inaugurada a Escola Profissional de Enfermeiras Alfredo Pinto. Em 1932 Ernani

Lopes substitui Gustavo Riedel na direção da Colônia. Em 1937, com a morte de

Riedel, a Colônia ganha o seu nome, por pouco tempo. Em 1938, quando Adauto

Botelho assume a direção da Assistência aos Alienados, propõe a criação do

Serviço Nacional de Doenças Mentais (SNDM) e a transformação da Colônia

Gustavo Riedel em Centro Psiquiátrico Nacional.

Desde 1938 era idéia de Adauto Botelho transferir o Hospício Nacional de

Alienados para o Engenho de Dentro. No período da Higiene Mental, o complexo

de serviços da Colônia estava em franca ascensão, como foi referido acima. Além

do Hospício Nacional já não ser tão importante, a Urca, já um bairro residencial

ocupado pela classe média, reclamava da vizinhança da loucura. Em 1943 esta

passagem é definitiva. O Centro Psiquiátrico Nacional é formalizado como

substituto do Hospício Nacional de Alienados. Fica, na praia Vermelha, antiga

praia da Saudade, O Pavilhão de Observação e Diagnóstico, que passou a se

chamar Instituto de Psicopatologia, onde é hoje o Instituto de Psiquiatria da

Universidade Federal do Rio de Janeiro e o Instituto de Neuro-Sífilis, hoje o

Instituto Municipal Philippe Pinel.

O Centro Psiquiátrico Nacional foi constituído, principalmente na década de

40, por um complexo hospitalar: o Hospital Gustavo Riedel, primeira ampliação

em homenagem ao grande empreendedor que, por breve tempo, foi nome da

antiga Colônia; o Hospital de Neuro-Psiquiatria Infantil, inaugurado em 10 de

outubro de 1942, absorvendo os menores que estavam internados no Hospício

Nacional e em Jacarepaguá;70 o Hospital Pedro II, inaugurado em 1943, para

receber todo o Hospício Nacional de Alienados, definitivamente fazendo com que

o complexo do Engenho de Dentro substituísse de fato o antigo Hospício da Praia

da Saudade, hoje Centro Comunitário que substituiu a denominação de Odilon

Galotti; o Instituto de Psiquiatria, construído para receber pacientes

70 Só em 1974, com o fechamento do pavilhão de adolescentes de Jacarepaguá, passa a ser chamado Hospitalde Neuro-Psiquiatria Infanto-Juvenil (SAMPAIO, 1982). Na década de quarenta sua clientela era, basicamente,de crianças oligofrênicas.

58

previdenciários, passou a se chamar Adauto Botelho, hoje Casa do Sol. O antigo

prédio da Praia Vermelha foi entregue à Universidade do Brasil, juntamente com o

Instituto de Psicopatologia. O Instituto de Neuro-Sífilis, embora tendo continuado

na Praia Vermelha, era subordinado ao Centro Psiquiátrico Nacional.

Dois outros acontecimentos neste fim de período são necessários destacar.

O antigo pavilhão Braule Pinto, onde eram internadas as intercorrências clínicas

da Colônia, principalmente os doentes infecto-contagiosos, é substituído, em

1948, pelo Bloco Médico Cirúrgico, monumental hospital de oito pavimentos, onde

também passou a funcionar a administração do Centro Psiquiátrico. Destinava-se

à internação clínica, cirúrgica e obstétrica dos pacientes psiquiátricos de todos os

estabelecimentos do Estado do Rio de Janeiro. Havia uma recomendação técnica

para que os doentes mentais não fossem aceitos nos hospitais gerais que não

tivessem locais preparados para eles (MEDEIROS, 1977).71 O segundo fato é que

em 1944, começa a funcionar o Setor de Terapia Ocupacional e Reabilitação

(STOR), comandado por Nise da Silveira, que vai inaugurar em 1952 o Museu de

Imagens do Inconsciente (MII) e se tornar, posteriormente, uma unidade

independente do Centro Psiquiátrico.

Até a Revolução de 30, Juliano Moreira, como diretor da Assistência aos

Psicopatas, mesmo de atuação local no Rio de Janeiro, inspirou a criação de

grandes manicômios no Brasil. “A ele muito devemos do que existe científica e

praticamente realizado na assistência aos psicopatas da Capital e de toda a

República” (CUNHA LOPES APUD MEDEIROS, 1977). Após a Revolução de 30, o

Governo Provisório tira a Assistência aos Psicopatas do Ministério da Justiça e a

agrega ao recém criado Ministério da Educação e Saúde Pública, mesmo período

em que Juliano Moreira deixa o cargo público. Mas sua influência se faria sentir

em 1938, quando seu discípulo, Adauto Botelho, assume o novo Serviço Nacional

de Doentes Mentais, em substituição à antiga Assistência aos Alienados. É deste

momento em diante que o Centro Psiquiátrico Nacional passa a assumir o lugar

de destaque em substituição ao antigo Hospício Nacional de Alienados, por sua

vez sucessor do Hospício de Pedro II.

71 Como veremos adiante, hoje a proposta é radicalmente contrária.

59

Esta metamorfose, que traz toda a história da psiquiatria no Brasil para

dentro dos altos muros da Colônia de Engenho de Dentro, um longínquo bairro do

subúrbio do Rio de Janeiro, tem conseqüências no simbólico e no destino desta

Instituição. O pavilhão das crianças, hoje desativado, com corredores labirínticos e

infindáveis, janelas e passagens de ar tão altas, inacessíveis a seu habitantes,

grita alto para os que não forem surdos refletirem na experiência do passado para

um destino melhor. Da arquitetura de suas construções é possível ouvir Teixeira

Brandão reclamando um mandato científico para o Hospício de Pedro II; Juliano

Moreira construindo a moderna psiquiatria no Brasil; Gustavo Riedel expandindo a

psiquiatria do Engenho de Dentro para a comunidade; os higienistas da Liga

Brasileira de Higiene Mental propondo a esterilização daquela gente que lá dentro

anda como que, buscando escutar o passado, fosse possível entender o seu

presente...

60

Capítulo 4: Perde-se o passado, fica-se sem o futuro: apsiquiatria, envergonhada, foi privatizada pelos mercadores deinfortúnios...

Depois da Segunda Guerra, a vitória das forças aliadas diminuiu o

ímpeto da ciência organicista na psiquiatria, em todo o mundo. A migração de

pensadores dos países europeus, que saíram do nazismo derrotado, ligados a

correntes psicológicas, entre elas a psicanálise,72 para os países da América do

Sul, trouxe para o Brasil ares novos no campo da psiquiatria, anteriormente

dominada pelo organcismo alemão.

Entanto, no período da guerra fria, que se estende pós Segunda

Guerra até a queda do muro de Berlim, o mundo vai estar dividido entre as

ideologias de esquerda e direita que marcaram esta época. Se os saberes

psicológicos ficaram restritos à academia ou sociedades acadêmicas, os

hospícios ficaram dormindo nos braços do saber organicista anterior, também ele

desacordado.

72 “No Rio de Janeiro, a instalação do movimento foi gravemente perturbada pelo conflito entre Mark Burke[judeu polonês, radicado na Inglaterra, mandado por Ernest Jones para o desenvolvimento da psicanálise noBrasil] e Werner Kemper [ psicanalista alemão, defensor de teses eugênicas, reabilitado por Erneste Jones etambém mandado ao Brasil], ex-colaborador de Matthias Heinrich Göring e mandatário de Ernest Jones paradesenvolver a psicanálise no Brasil. Em 1953, Kemper fundou a Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro(SPRJ), reconhecida pela IPA em 1955. Quanto aos partidários de Burke, depois de violentos confrontos,associaram-se aos seus colegas formados na Argentina para criar um outro grupo em 1959: a SociedadeBrasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ). (...) A partir de 1973, o caso Kemper perturbou de novoas duas sociedades psicanalistas do Rio de Janeiro. Antes de sua partida para a Alemanha em 1967, o ex-colaborador de Göring analisara um dos didatas mais ativos da SPRJ, Leão Cabernite. Tornando-se presidentede sua sociedade e ligado de perto ao poder militar, este teve depois, como aluno em formação, de 1971 a1974, um médico-tenente da polícia militar, Amílcar Lobo Moreira da Silva (1939-1997), torturador a serviçoda ditadura” (ROUDINESCO & PLON, 1998; 88-90). Segundo os mesmos autores, Juliano Moreira teve contatocom a psicanálise: “Foi o primeiro, no seu país, a dar às idéias freudianas um lugar importante, primeiro naBahia e depois no Rio de Janeiro, onde dirigiu o hospital nacional de alienados. Foi também um reformadordos asilos. Humanizou os métodos de tratamento dos doentes mentais, principalmente suprimindo osinstrumentos clássicos de confinamento. Não praticou pessoalmente a psicanálise, mas criou, em 1928, no Riode Janeiro, a primeira filial da Sociedade Brasileira de Psicanálise, fundada no ano anterior por DurvalMarcondes, em São Paulo” (Pg. 523).

61

É um período de profunda separação entre a academia, as

sociedades acadêmicas e os serviços de psiquiatria. Se na primeira há uma

batalha entre as teorias psicológicas que chegavam e o velho organicismo,

remoçado pela descoberta dos neurolépticos na década de 50, nos hospitais nada

se ouvia, a não ser ecos dos áureos anos do alienismo do passado. A camisa de

força, o quarto forte, que tinham diminuído na reforma de Juliano Moreira,

voltaram de forma mais intensa. O eletrochoque era a terapia de eleição.

"No Brasil, tanto o instrumento psicoterapia como a atitudepscoterápica se revelam como possibilidade permanentementeabortadas, nas tentativas de adquirir cidadania dentro do hospitalpsiquiátrico. Designa-se o instrumento como mais adequado à práticaambulatorial, entanto no hospital as experiências correrão por conta devoluntarismos, voltados para grupos. A categoria médica, de maiorestatuto social continua ligada exclusivamente ao modelo biológico. Ospsicólogos, que buscam se assenhorar do instrumento, nãoconseguem impô-lo pois sequer conseguem se impor aos médicos. Osmédicos que se apropriam da psicanálise, através do recurso dareserva de mercado, preferem usar o instrumento de tão alto custoformacional onde ele mais renda, isto é, junto à clientela privada deconsultório. As experiências com grupos, de maior sucesso terapêutico,serão relatadas por psicodramicistas, mas como circunscritosvoluntarismos" (SAMPAIO, 1982; 41).

Como foi dito por PORTOCARRERO anteriormente, comentando a arqueologia

de FOUCAULT, optamos por não dividir este ou qualquer outro momento deste

trabalho em períodos definidos por origens bem demarcadas. Falamos de

começos, no plural, para nos colocarmos dentro de um período, e de outros

começos, para sairmos do período em estudo.

Os começos deste período têm causas em diferentes fatos históricos: o

papel importante desempenhado pela Colônia de Alienados do Engenho de

Dentro na fase áurea da higiene mental; o declínio da importância do Hospital

Nacional de Alienados e sua absorção pela Colônia; a separação entre o saber e

prática, com o retorno das atividades de ensino da Colônia para o lugar do antigo

Hospital Nacional; a vitória dos aliados na Segunda Grande Guerra e o declínio

do fascismo e, como conseqüência, a diminuição do ímpeto organicista das

teorias psiquiátricas dominantes; o desenvolvimento, no Brasil, das teorias

psicológicas, entre elas, a psicanálise; o fosso que aconteceu entre a academia e

62

o Centro Psiquiátrico Nacional; os movimentos de reforma acontecidos nos

Estados Unidos e na Europa (Inglaterra, França e Itália).

Para o esmaecimento deste período teremos a crise do modelo privado da

assistência; a reformulação da assistência, decorrência inevitável da crise do

modelo; a redemocratização do país na década de 1980; o retorno da academia

para interferir no modelo assistencial. Em resumo, os começos do próximo

período.

Um fato intrigante marca o nascimento do Centro Psiquiátrico Nacional

como substituto do modelo do Hospício Nacional de Alienados73 na década de

1940. A sua independência e organização como o centro da psiquiatria brasileira

coincide com o declínio das teorias assistenciais, baseadas nos modelos

relatados no capítulo anterior. É como se a prática de uma “psiquiatria

envergonhada”, tendo perdido seu passado, não soubesse construir um futuro.

“A partir dos anos 50, algo acontece de novo na assistência psiquiátricabrasileira. O hospital como lugar assistencial privilegiado se reforçamas o predomínio do setor público desaparece, a psicofarmacologia éincorporada e alguns discursos psicoterápicos tentam penetrar nainstituição. A queda da hegemonia do setor público se fará sentir nonúmero de estabelecimentos, no número global de leitos, napossibilidade de conferir prestígio, no ritmo de incorporações dosprocedimentos terapêuticos mais avançados de cada época, nacompetência normalizadora e fiscalizadora. A discriminação classistade serviços dentro de uma mesma unidade cede lugar à discriminaçãoclassista das unidades: privada liberal para as classes altas; privadaconcessionária do setor público para as classes médias e ostrabalhadores urbanos, pública para os trabalhadores rurais esobrantes de todo o gênero” (SAMPAIO, 1982; 85).

A privatização do sistema psiquiátrico foi uma característica do período. Se

tomarmos, como um simples exemplo, a Casa de Saúde Dr. Eiras, temos que da

sua inauguração no Império, em 1860, seus 40 leitos cresceram para 143 em

1943, ano da transferência do Hospício Nacional para o Centro Psiquiátrico

Nacional; em 1976 possuía 1300 leitos, além dos 3000 leitos de sua filial, no

município de Paracambi, inaugurada em 1964 (SAMPAIO, 1982; 86). E esta

ampliação é feita com dinheiro público ou de fundos previdenciários.

73 Apesar de ser renomeado como Hospital Nacional, ficou conhecido como Hospício até sua extinção. Conf.PORTOCARRERO (2002) E ENGEL(2001).

63

O modelo psiquiátrico de assistência privada existia desde o Império.

Porém, o papel desempenhado pelo setor público, como centro do saber, de

controle e fiscalização, sempre foi dominante.74 O que vai caracterizar a

privatização deste período é a inversão do modelo, como aponta Sampaio na

citação anterior. E é o Estado que vai desencadear este processo. Em 1964, após

um golpe militar, o Brasil entra nos chamados “anos de chumbo” da ditadura, que

dura mais de vinte anos. Em l968 o Ministério da Saúde propõe um Plano

Nacional de Saúde, de nítido caráter privativista. Era Ministro da Saúde Leonel

Miranda, curiosamente um dos proprietários da Casa de Saúde Dr. Eiras. Este

Plano Nacional possibilita a privatização de todo setor saúde a partir da década

de 1960, após o golpe:

“A ‘privatização da Medicina”, processo que se acelera a partir de 1967,encontra suas bases materiais no setor privado hospitalar, ‘lucrativo’ e‘não-lucrativo’ cujo número de estabelecimentos superava o setoroficial em 1956, sendo de 82,2% e 17,8% respectivamente. Acapacidade instalada aumenta, principalmente, às custas do setorprivado lucrativo, que em 1960 participava com 14,4% do total de leitose em 1971 já era de 44,0%. A opção política encontrou comojustificativa ‘racional’, a existência de um setor médico-hospitalarprivado que em 1967 detinha 2.766 estabelecimentos hospitalares,aliada a expansão da demanda gerada pela incorporação de grandescontigentes de assalariados urbanos ao sistema previdenciário”(CORDEIRO, 1980; 162).

O que se assiste neste período é a privatização do setor saúde levando no

bojo a assistência psiquiátrica. Em 1967 há a unificação dos vários Institutos de

Aposentadorias e Pensões no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS).

Dez anos depois, 90% dos recursos previdenciários destinados à assistência

médica eram aplicados na compra de serviços, denunciando a hipertrofia da

privatização da saúde no Brasil.

Neste modelo, a participação da psiquiatria é decisiva para primeiro,

impulsionar, de forma rápida, dada a ausência de equipamento tecnológico, a

privatização do sistema e, num segundo momento, interferir, de forma drástica, no

esgotamento do modelo. Vários estudos75 demonstram que a privatização da

assistência psiquiátrica se deu de forma impetuosa neste período, dentro do74 Teixeira Brandão e outros alienistas do Império e da Primeira República eram sócios de Casas de Saúde(conf. ENGEL,2001), mas o seu papel público era de importância principal. 75 SAMPAIO (1982), DELGADO (1983), CERQUEIRA (1984), MACEDO (1982), entre outros.

64

quadro de desemprego e da política pública de benefícios. Parcela da crise social

foi contornada pela ditadura com o internamento psiquiátrico. Nesta época, a

internação psiquiátrica assume a segunda causa diagnóstica de internação no

Brasil, contribuindo de forma decisiva na crise do modelo, no início da década de

1980.

Outra característica do período é o atendimento ambulatorial. Dado o

grande crescimento populacional e a grave crise social e política que se

atravessava, não é possível o internamento solucionar a questão. No plano

ideológico, o crescimento ambulatorial aparece como um cruzamento da

Psiquiatria Comunitária Americana - que promoveu uma grande desospitalização

de graves conseqüências naquele país, com os antigos preceitos da Liga

Brasileira de Higiene Mental. Mas, se no plano ideológico, a ambulatorialização

estava justificada para diminuir a internação que corroía o recurso público da

saúde, na prática só conseguiu ativar mais ainda aquele dispositivo. Sampaio

apresenta um gráfico na sua pesquisa, mostrando que de 1951 a 1981 as

consultas ambulatoriais em psiquiatria foram aumentadas em 80% no Brasil.

Como então os recursos em internamento eram aumentados no mesmo momento

em que o ambulatório também crescia? O atendimento ambulatorial inadequado e

apressado, mantendo uma longa fila de espera e com uma quantidade de oferta

sempre inferior à procura alimentava o dispositivo do internamento.76

E enquanto o modelo privativista estava em desenvolvimento, o serviço

público era sucateado e desativado. No nascimento da filial da Casa de Saúde

Dr. Eiras, em Paracambi, os recursos para sua construção foram públicos e seus

primeiros pacientes transferidos da Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá,

para aquele município.77 Estava descoberta a galinha dos ovos de ouro. Recursos

e pacientes públicos transferidos ao setor privado. A indústria da loucura

alimentava seu moinho com as camadas excluídas pelo modelo econômico. E

quanto menor a participação pública, maior o crescimento do setor privado. Além

76 Ainda hoje a situação é muito parecida, apesar de inúmeros planos de reorientação da assistênciaambulatorial, com será visto adiante.77 Depoimento de Paulo Mariz, na época diretor da Divisão Nacional de Saúde Mental, ao autor, na década de1980. A forma de manutenção do empreendimento foi estudada por DELGADO (1983): a desativação de umaindústria na região produziu o contigente de pacientes internados em Paracambí.

65

da psiquiatria estar envergonhada, estava sendo vendida aos mercadores de

infortúnio.

E no Engenho de Dentro, como vivia a parcela mais desvalida dos

excluídos amordaçados pela prática de uma psiquiatria envergonhada da sua

teoria? Pior sem ela. O sucateamento do setor público, a diminuição dos insumos

e de pessoal qualificado e a deteorização das suas imponentes edificações

trouxeram de volta o isolamento, o castigo, métodos coercitivos, sem sequer o

objetivo do tratamento moral anterior. Enfermarias apinhadas de mortos-vivos,

com espaço mínimo de circulação, denunciando verdadeiros quartos-fortes

coletivos; pátios e alamedas vazios, tendo sido abolida, inclusive, a “ilusão de

liberdade”; a quantidade de portas que se fechavam umas sobre outras, só

possibilitando a circulação dos carcereiros que possuíam as chaves; a terapêutica

reduzida aos choques elétricos e ao uso de dispositivos coercitivos e

repressivos.78

O desenvolvimento dos neurolépticos, na década de 50, e dos

ansiolíticos e antidepressivos a partir dos anos 60, vai possibilitar, no início da

década de 70,a substituição do arsenal biológico anterior (os antigos choques por

cardiazol, insulina e eletricidade, as cirurgias de lobotomias). Mas, para os

hospícios no Brasil, esta nova tecnologia trouxe dois agravantes. O uso deliberado

dos efeitos colaterais como castigo, no uso de uma verdadeira camisa de força

química que, ao invés de produzir a reintegração, cronificava o doente no

hospício, agora "doente do remédio". Por outro lado, a medicação disponível é

aquela que o poder público compra na imposição feita pela indústria

farmacêutica.79

Enquanto a psiquiatria era privatizada, o Centro Psiquiátrico Nacional,

através de um decreto do Marechal Humberto Castelo Branco, em 1965, muda de

nome. Passa a chamar-se Centro Psiquiátrico Pedro II (CPPII), como se a78 Na década de sessenta assiste-se a um caso de extração de todos os dentes de um paciente masculino,descendente indígena, com dentes perfeitos, por ele ter a “mania” de morder outros pacientes e osenfermeiros. A “prescrição” foi feita por seu médico assistente (relato de antigo funcionário ao autor).79 Para os hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro (Centro Psiquiátrico Pedro II, Hospital Pinel e ColôniaJuliano Moreira), no início da década de 70, através de uma licitação centralizada em Brasília, o Ministério daSaúde adquiriu uma quantidade infindável de Clorpromazina em gotas, medicamento de uso infantil, que tevede ser usada nos adultos para que o estoque acabasse antes de vencer o prazo de validade. Nos ambulatórios,por exemplo, um paciente levava mais de trinta frascos, pois teria que tomar um por dia. Depoimento dePaulo Mariz, diretor da Divisão de Saúde Mental do Ministério da Saúde, na época, feito ao autor.

66

intenção fosse voltar toda a sua história a um século antes, de onde nunca

deveria ter saído: o Hospício de Pedro II, agora sem sua estratificação original. Os

doentes de primeira classe estavam nos consultórios e clínicas privadas. Os de

classe média e as classes trabalhadoras nos hospitais conveniados pelos

Ministérios da Saúde e da Previdência. Ao Hospício, ou Centro Psiquiátrico de

Pedro II, eram destinados os indigentes (os excluídos dos excluídos). Parecia que

os mesmos desatinados que habitavam as ruas do Rio de Janeiro no Império

foram recolhidos pela ditadura militar para o Pedro II, como o hospício agora era

novamente chamado...

Mas, neste período de sombras, duas experiências marginais ousaram tirar

a mordaça de dentro dos muros do hospício. E os nomes de seus representantes,

amaldiçoados e perseguidos naqueles tempos, saltam para a história, como tende

a acontecer com quem escreve linhas que mudam o destino: Nise da Silveira e

Oswaldo Santos. Aqui só iremos tocar em detalhes mínimos dos trabalhos dos

dois, para efeito do nosso objetivo. Cada experiência merece uma pesquisa

detalhada.80

Nise da Silveira, médica alagoana, fez sua formação psiquiátrica no

Hospício Nacional, onde foi presa, pela ditadura Vargas, dividindo uma cela com

Olga Benário Prestes. Reintegrada ao serviço público na década de 40 do século

XX, vai trabalhar no Centro Psiquiátrico Nacional. Recusando os métodos

coercitivos da época, funda, em 1944, o Setor de Terapêutica Ocupacional e, em

1952, o Museu de Imagens do Inconsciente, acervo de imagens de trabalhos

plásticos de esquizofrênicos, reconhecidos mundialmente a partir de seu encontro

com Carl Jung. Monta um grupo de estudos, que funciona às terças-feira, durante

décadas, formando gerações de adeptos das teorias junguianas. O trabalho

marginal é reconhecido numa primeira fase, em 1961, quando, por interferência

da Presidente Jânio Quadros, o Setor de Terapia Ocupacional e Reabilitação

(STOR) é regulamentado como uma unidade independente do Centro Psiquiátrico

Nacional. Antes desta data e após o golpe militar de 64 o trabalho de Nise

acontecia sem o reconhecimento da psiquiatria oficial. Após a redemocratização

80 Sobre Nise ela mesma fala até agora na sua obra. Sobre Oswaldo Santos conf. TEIXEIRA (1993).

67

do país, no final dos anos 80, Nise, apesar de aposentada compulsoriamente,81 no

período dos anos de chumbo, retoma o seu trabalho e colhe os louros do seu

reconhecimento internacional.

A experiência de Nise sobrepõe-se à história do próprio Centro Psiquiátrico

Pedro II. A quantidade de exposições que o Museu de Imagens do Inconsciente

(MII) fez no Brasil e no exterior basta para elevar o nome de Nise na psiquiatria

brasileira.82 A mostra permanente, o estoque de 350 mil obras, os audiovisuais e

filmes, culminando com a trilogia de Leon Hischman, cineasta consagrado, sobre

três pacientes do MII, estão à disposição, mostrando permanentemente o

trabalho desta guerreira, ou psiquiatra rebelde, como se nomeava. Nise recheou a

história da psiquiatria com obras de arte, que falam de um modo todo especial do

seu trabalho que, de resistência, se apresenta como uma nova possibilidade da

psiquiatria se relacionar com a loucura, quando tudo estava escuro.83

Oswaldo Santos não teve a mesma sorte. Seu trabalho foi efêmero, mas

não menos importante. Os pacientes que por lá passaram trazem marcada na

pele a experiência de liberdade ali vivida. Seu trabalho dura de 1968 a 1975. O

esboço deste trabalho começa antes, em 1962, quando os psiquiatras Oswaldo

Santos e Wilson Simplício assumem a supervisão e direção de uma enfermaria

masculina na seção Olavo Rocha do Hospital Odilon Galloti, no Centro

Psiquiátrico Nacional.84 Influenciados por uma formação psicanalista e marxista,

começam por tentar escutar um grupo de alcoólatras, indigentes internados no

hospital público. Logo os esquizofrênicos solicitam estas “conversas”. Começam

com grupos operativos. Em 1967, o trabalho é apresentado em Porto Alegre, no

VII Congresso Brasileiro de Neurologia Psiquiatria e Higiene Mental e Marcelo

Blaya, importante psicanalista gaúcho, nomeia a experiência como sendo uma

81 Luis Carlos Mello, colaborador de Nise, conta que no dia seguinte a sua aposentadoria compulsória, poridade, Nise retorna , munida de lápis e caderno, dizendo ser estagiária voluntária do Museu. E continuouassim sua resistência.82 O módulo "Loucura" da Mostra Brasil 500 anos é composta, na sua maior parte, dos trabalhos de Nise comseus pacientes.83 Em conversa com Nise, nomeamos seu trabalho como “alternativo”. Nise, na veemência que lhe eracaracterística disse que não fez nada “alternativo”, mas “outra coisa”. Foi quando percebemos que“alternativo” permite a presença da psiquiatria tradicional, que Nise abominava. 84 As informações seguintes são tiradas de TEIXEIRA (1993), DUARTE, & FERNANDES, & RODRIGUES (2000). Nesteúltimo trabalho, as autoras tentam diferenciar a experiência de Oswaldo Santos da comunidade terapêuticaclássica inspirada em Maxell-Jones. Na experiência clássica seria uma “humanização disciplinadora”, críticaque Basaglia fez (ver capítulo I deste trabalho), enquanto a experiência de Santos seria uma resistência sitiada.

68

comunidade terapêutica. É com este nome que ela passa a ser conhecida a partir

de 1968. Nos parece que é muito mais que isto. Mais se pareceria com a

Psiquiatria Institucional85 de Tosquelles. Vejamos como o próprio Oswaldo definia

a sua Comunidade Terapêutica:

“O conceito de comunidade terapêutica é liberdade e igualdade entreequipe e paciente, então não há mais essa relação médico-paciente.Há uma relação em que o ato terapêutico se dá. E isso é uma afrontaao regime totalitário, aonde o poder é centrado na mão do militar ou, nocaso da Medicina, no médico, era uma revolução dentro de um país emditadura(...)”(apud DUARTE & FERNANDES & RODRIGUES, 2000).

Ora, antes da nomeação, desde o golpe de 64, o trabalho é visitado por

estudantes, intelectuais, para saber o ali estava ocorrendo. O que se vivia era

uma experiência democrática com loucos e excluídos, enquanto os sãos e

inclusos na sociedade viviam uma ditadura. Por bater de frente com o regime

autoritário, o trabalho seria abortado prematuramente. Mas, antes, vejamos o que

diz um intelectual internado na comunidade terapêutica:

“hoje, agora estou fazendo tempo enquanto os remédios que tomeifazem efeito e vou dormir. Este sanatório é diferente dos outros poronde andei – talvez seja o melhor de todos, o único que talvez possame dar condições de não procurar mais o fim de minha vida. Soubehoje que o Rogégio esteve aqui, antes preciso muito explicar aomédico tudo o que é necessário(...) o dr. Oswaldo não pode fugir, nemfingir: mas isso eu começarei a ver, de fato, logo mais quando teremosa nossa primeira entrevista” (TORQUATO NETO, 1973) 86

Como continuidade desta experiência, a comunidade terapêutica de

Oswaldo Santos inaugura o primeiro Hospital-Dia no Brasil para o

acompanhamento de psicóticos. Esta modalidade, que vai ser um marco na

reforma psiquiátrica da década de l980, já acontecia ali. Apesar da importância do

trabalho de Oswaldo Santos, a experiência é curta. Em 1973 ele é transferido

para outra unidade, num intuito da psiquiatria tradicional esvaziar sua ação, que

ainda perdura até 1975, quando é extinta.

85 Movimento francês, surgido na França ocupada, caracterizado por uma resistência política e em consideraras instituições e seus membros como possuidores de partes doentias, que permite um questionamentopermanente das instituições e dos papéis ali exercidos. Basaglia também critica esta corrente por nãoquestionar o saber psiquiátrico supra-estrutural, que de fato é o responsáveis pela estrutura (ver capítulo I).86 Em conversa com o autor, Torquato falou que estava internado antes, na psiquiatria tradicional, mas fugiudo hospício, só aceitando voltar para se tratar com Oswaldo Santos.

69

Mas estas duas experiências são exceções no ambiente cinza do hospício,

caracterizado neste período. Ainda nos Diários de Engenho de Dentro, Torquato

Neto faz poesia com a tristeza monumental da internação. Não importa se estava

na comunidade terapêutica, nos ateliês de Nise ou na psiquiatria tradicional. À

noite todas as enfermarias são pardas:87

“pela primeira vez estou sentindo de fato o que pode ser uma prisão.Aqui, as portas que dão para as duas únicas saídas existentes, estãopermanentemente trancadas – e há uma pequena grade em cada umadelas, de onde se pode ver os corredores, que dão para as outrasgalerias. Depois delas, uma espécie de liberdade. Não se fica trancadoem celas aqui dentro: é permitido passear até rachar por um corredorde 100 metros por 2,5 de largura. Somos 36 homens aqui dentro, 36malucos, 36 marginais – de qualquer maneira esperamos a “cura” nosanatório como a sociedade espera que os bandidões das cadeias se“regenerem”, etc, etc. Aqui, o carcereiro é chamado de plantonista – esão aqueles homens de branco sobre os quais Rogério se referiu umdia, há pouco tempo. Aqui, nesta vida comunitária, a barra é pesada,como eu gosto. Minha enfermaria tem 12 camas ocupadas por doentesmentais de nível que poderia muito bem ser classificado pelo IBOPEcomo pertencentes às classes C, D, Z. Estamos aí! Em cana. O chato éa comida, que é péssima (...) Eles não deixam ninguém ficar em pazaqui dentro. São bestas. Não deixam a gente cortar a carne com facamas dão gilete pra se fazer a barba. Pode me dar um cigarro? Eu sótenho um maço, eu tenho que pedir porque senão acaba. Pode me daras vinte?” (TORQUATO NETO, 1973).

87 Uma das críticas que Oswaldo faz ao trabalho é a qualidade do pessoal de enfermagem e a situação dehotelaria.

70

SEGUNDA PARTE: ECOS DA REFORMA NO ENGENHO DEDENTRO

71

Capítulo 5: A reconstrução da forma: a reforma psiquiátrica nãomodifica o conteúdo manicomial.

No final da década de 1970, o modelo de privatização da saúde emitia

sinais de esgotamento no bojo da crise de todo o modelo do "milagre econômico"

da ditadura. No plano político, tem início o processo de abertura do regime

autoritário. No contexto das lutas setoriais contra o regime (associações de

bairros, sindicatos, igreja, movimento negro, partidos políticos saindo da

clandestinidade imposta, setores profissionais, entre outros), a área da saúde, no

movimento conhecido como reforma sanitária, articula as denúncias sobre o falido

modelo de saúde pública do país, mobilizando a mídia e sensibilizando a opinião

pública.

Antes de examinar a situação específica da saúde mental nos anos 80, é

necessário olhar no contexto, nesta época, dois marcos que expressaram a vitória

dos ideários do movimento da reforma sanitária. A VIII Conferência Nacional de

Saúde, em 1986, e a instalação, um ano após, da Assembléia Nacional

Constituinte, que incluiria na nova Constituição Brasileira, de 1988, os princípios

fundamentais da reforma sanitária proposta pela conferência. A VIII Conferência

reuniu, em Brasília, quatro mil pessoas, dentre elas, pela primeira vez,

representantes da comunidade organizada. Propunha os princípios que, no ano

seguinte, geraram a implantação do Sistema Unificado e Descentralizado de

Saúde (SUDS). Como primeiro princípio, a “unificação dos serviços de saúde”:

instituições de diversas naturezas, municipais, estaduais, federais, deveriam ser

unificadas institucionalmente, para que o Ministério da Saúde fosse o gestor da

reforma sanitária; em segundo lugar, “a descentralização dos serviços de saúde”:

previa a transparência e a criação de conselhos de saúde para a execução local;

em terceiro, “a hierarquização de serviços e cuidados de saúde”: este princípio se

opõe à tendência dominante, até então, da valorização dos atos tecnológicos em

detrimento dos programas dirigidos às enfermidades “banais” da população; por

72

último, “a participação popular nos serviços de saúde”: propondo a participação da

comunidade nos programas de saúde a ela dirigidos.

Estes quatro princípios vão ser materializados, após intensa discussão na

Assembléia Nacional Constituinte, na Constituição Brasileira de 1988, que

implanta o Sistema Único de Saúde (SUS) e define Saúde como direito de

cidadania e dever do Estado.

“No contexto desta nova definição, a noção de saúde tende a sersocialmente percebida como efeito real de um conjunto de condiçõescoletivas de existência, como expressão ativa – e participativa – doexercício de direitos de cidadania, entre os quais o direito ao trabalho,ao salário justo, à participação nas decisões e gestão de políticasinstitucionais, etc. Assim a sociedade teve a possibilidade de superarpoliticamente a compreensão, até então vigente ou socialmentedominante, de saúde como um estado biológico abstrato denormalidade (ou ausência de patologias)” (LUZ, 1994-A; 136/7).

É no calor deste debate nacional, com transformações muito rápidas para

situações há muito cronificadas, típicas de um período de mudança de um regime

autoritário para uma democracia, que o hospício é acordado.

Na saúde mental, é de dentro do adormecido manicômio do Engenho de

Dentro que a crise irrompe. Uma significativa quantidade de jovens psiquiatras,

ligados ao movimento da reforma sanitária, que atuam como bolsistas nos

hospitais psiquiátricos da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAN)88, no Rio

de Janeiro, são demitidos, em 1978, pelas denúncias que faziam sobre o

abandono e a situação de violência vividos pelos pacientes psiquiátricos. Esta

crise tem intensa repercussão na mídia e é hoje considerada, por vários autores,

como um marco responsável pelas mudanças dela decorrente.89 Como resultado

deste evento é organizado o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental

(MTSM), com participação decisiva na Reforma Psiquiátrica brasileira (RPb).

No mesmo ano acontecem dois Congressos na área psi de enorme

importância para o movimento deflagrado. Em Camboriú, Santa Catarina, o V

Congresso Brasileiro de Psiquiatria é marcado por posições políticas avançadas,

que contrastam com o conservadorismo da Associação Brasileira de Psiquiatria.

88 Órgão do Ministério da Saúde que substituíra o antigo Serviço Nacional de Doenças Mentais (SNDM) pelodecreto 66.623 de 1970.89 Paulo AMARANTE, Benilton BEZERRA JR., Jurandir Freire COSTA, Joel BIRMAN, Pedro Gabriel DELGADO, entreoutros, em obras citadas ao longo do texto.

73

Neste congresso, as recomendações para a assistência psiquiátrica estão

intimamente ligadas às reivindicações de maiores liberdades sociais e políticas no

Estado brasileiro, transferindo o eixo de ação da doença para a saúde mental.

No Congresso de Psicanálise, ainda em 1978, no Rio de Janeiro, a

presença de Franco Basaglia, Félix Guattari, Robert Castel e Goffman,90

conhecidos pelas obras que influenciaram a nova geração de psiquiatras e

psicólogos, agora denominados trabalhadores em saúde mental, foi fundamental

no direcionamento do MTSM à Reforma Psiquiátrica brasileira.

A situação da saúde mental no Brasil, deteriorada pela política pública

examinada no capítulo anterior, que aqui é denunciada pelo movimento

insurgente, pode ser assim resumida:

“...o quadro de assistência no país era lamentável. Resumia-se aosambulatórios da Previdência, aos macro-hospitais do Ministério daSaúde, no Rio, aos asilos das Secretarias de Saúde e às inúmerasclínicas privadas conveniadas, de modo geral superlotadas e com altograu de mortalidade. A internação indiscriminada seguida desucessivas reinternações era a regra. A cronicidade dos pacientes eratomada como evolução natural do quadro patológico. Praticamenteinexistiam dispositivos assistenciais intermediários. Nos ambulatórios,repetiam-se, em tom diferente, os mesmos processos de cronificação euso excessivo de medicamentos. Embora houvesse, desde os anos 60,uma política oficial de saúde mental, inspirada no preventivismo econsubstanciada em diversos documentos que determinavam umarede assistencial ampla, integrada e com recursos múltiplos, não haviaefetiva preocupação com o setor” (BEZERRA JR., 1994; 174/5).

A política oficial de saúde mental referida na citação acima foi proposta na

VI Conferência Nacional de Saúde, em 1977, com a criação do Plano Integrado

de Saúde Mental (PISAN), “baseado na matriz teórica da Psiquiatria Comunitária

norte-americana, parcialmente financiado com recursos de Fundações

internacionais, que defende extensa ambulatorização do sistema" (...) Este plano

propunha também a "descentralização e interiorização dos cuidados psiquiátricos

através do treinamento de médicos generalistas, assistentes sociais e

enfermeiros; identificação precoce das populações de risco para intervenção

preventiva; e a criação dos Centros Comunitários de Atenção” (SAMPAIO, 1982;

90 Conf. BEZERRA JR. (1994). O autor chama à atenção para a presença anterior, no Rio de Janeiro, de Foucaulte do retorno de alguns destes pensadores ao país, numa marcante contribuição para a Reforma Psiquiatriabrasileira.

74

109). O autor chama à atenção que o PISAM aconteceu de melhor forma no

nordeste do país. Nos grandes centros urbanos, apenas ampliou a atenção

ambulatorial, com os vícios e distorções já referidos. Em 1979, uma portaria

ministerial vincula a contratação de novos leitos psiquiátricos à oferta de maior

assistência na rede de ambulatórios.

Esta política amplia a crise da Previdência Social. Nos anos da crise do

modelo econômico, as doenças psiquiátricas ocupam três lugares, entre os cinco

primeiros, nos diagnósticos responsáveis por auxilio-doença.91

No início dos anos 1980, o mecanismo conhecido por Co-gestão transfere

recursos da Previdência ao Ministério da Saúde para um reforço das Ações

Integradas de Saúde. No Rio de Janeiro, os Hospitais da DINSAM recebem estes

recursos para enfrentar a crise interna e a externa, que ameaçava de falência o

sistema. A Co-gestão dos hospitais tinha por objetivo a redução de custos, em

primeira instância, e, para isto, a modernização gerencial.

Para SAMPAIO (1982) “o Ministério da Previdência, em crise, coopta planos

dos sanitaristas e dos planejadores lotados no Ministério da Saúde, articula com

seus próprios quadros progressistas, e passa a viabilizar, financeira e

politicamente, as Ações Integradas de Saúde e certo renascimento do sistema

público de cuidados". Estes sanistaristas e planejadores do Ministério nos

hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro, segundo BEZZERRA JR., foram originados

pela situação conjuntural da crise denunciada pelo MTSM: “pressionado pelas

péssimas condições de funcionamento dos hospitais, o Ministério da Saúde

contrata, a título precário, através da Campanha Nacional de Saúde Mental,

técnicos para suas unidades. Pela primeira vez desde a década de 50, entra nos

hospitais uma grande quantidade de profissionais cuja formação estava marcada

pela resistência política ao autoritarismo e pela crítica teórica ao modelo asilar”

(BEZERRA JR., 1994; 175).

No início da década de 1980 inicia-se o movimento de Reestruturação da

Assistência Psiquiátrica nos Hospitais do Ministério da Saúde, no Rio de Janeiro.92

91 Dados do primeiro semestre de 1975: 1º lugar: Neuroses; 2º lugar: Osteoartrites; 3º lugar: Hipertensão; 4º

lugar: Epilepsias e 5º lugar: Esquizofrenias (SAMPAIO, 1982). 92 A partir deste momento começa a minha participação pessoal no movimento da Reforma Psiquiátrica. Deagora em diante são consultados os documentos da época, como fonte primária, e a memória, com as

75

Um documento da época fala do contexto em que esta estruturação estava

acontecendo:

“Em fins de 1980, data da assinatura da portaria interministerial queestabeleceu o regime administrativo de co-gestão entre o Ministério daPrevidência e Assistência Social (MPAS) e o Ministério da Saúde (MS),a administração de algumas unidades hospitalares, até então sob aresponsabilidade do MS, passou a ser feita também pelo MPAS. Talportaria foi assinada com finalidades muito especiais e objetivas.Procurava-se, desta forma, abrir as perspectivas formais necessárias, afim de alocar os recursos financeiros que viabilizassem a recuperaçãoassistencial das unidades públicas, então já em estado de avançadadecomposição, graças ao completo abandono que sofreram emdecorrência das políticas anteriores de saúde.”“Essa medida administrativa, mesmo que beneficiasse diretamente aclientela usuária do serviço público, não se fez com resultado de umasúbita ‘conscientização’ por parte dos órgãos governamentais. Seassim fosse, respeitando as inúmeras convocações de protesto, osmesmos órgãos do governo não teriam deixado a assistência públicasubmergir no abandono e descaso como ocorreu. Não teriam deixadoas enfermarias públicas permanecerem no horror a que chegaram porsua miséria material e humana, como também não teriam deixadoasilos funcionando em condições desumanas como masmorras semcondições mínimas de cuidado, exceto na função de zelar pelasegregação e pelo afastamento daqueles que sempre foramindesejáveis pela sociedade. Triste forma de gerir os gastos da União ede dirigir a política de saúde mental!”“Acreditar que tal mudança se deu ao acaso e desfazer a importânciaque o jogo de interesses tem como força motriz de mudanças sociais.Em nosso entender, a mudança ocorrida na política de saúde mental apartir do acordo de co-gestão se deveu ao pesado ônus que aPrevidência Social vinha cada vez mais trazendo ao bolso da União.”“A assinatura pelo Instituto Nacional de Assistência Médica ePrevidência Social (INAMPS), em novembro de 1980, de acordos deco-gestão com os hospitais psiquiátricos do MS, iniciou um plano deintegração interinstitucional para serem executadas as transformaçõesnecessárias desses grandes hospitais-asilos, no sentido de

armadilhas traiçoeiras da sua inevitável deformação afetiva, passa a interferir nos fatos narrados. Fuicontratado pela Campanha Nacional de Saúde Mental em dezembro de 1981, na Colônia Juliano Moreira.Naquela unidade, participei do seu primeiro Núcleo de Planejamento, na honrosa companhia de Pedro GabrielDelgado, César Vitor Duarte e Walnei Ferreira de Moura. Dirigi o Centro de Reabilitação Psicossocial até1984, quando fui transferido para o Centro Psiquiátrico Pedro II. Nesta Unidade, na qual permaneço até hoje,ocupei vários cargos gerenciais e integrei uma equipe, da qual fizeram parte: Paulo Amarante, BeniltonBezzerra Jr., Jurandir Freire Costa, José Jackson Coelho Sampaio, Carlos Augusto de Araújo Jorge, LuisCarlos Wanderlei, Sheila Lemos Lima, Ariadne de Moura Mendes, Esther de Rezende Bussman, CândidoEspinheira, Sônia França, Sérgio Munk, João Paulo Hidelbrandt, Annibal Amorim, Luis Carlos Rangel, entretantos outros que contribuíram para a Reorientação da Assistência Psiquiátrica daquela Unidade.

76

simplesmente poderem atender aos interesses da Previdência Social,então preocupada em se desvencilhar da crise em que mergulhou.Procurava-se através disso, priorizar a rede assistencial pública comutilização máxima de sua capacidade de trabalho, a fim de aliviar asdistorções que o modelo assistencial centrado na contratação deserviços particulares, vinha trazendo ao INAMPS. Partia-se do princípioque a rede pública, ao contrário da rede privada, não incorreria nasmesmas distorções, já que não se comprometeria com fins lucrativos.Nessa política de contenção de despesas e remanejamento dosrecursos próprios a fim de minimizar o rombo da Previdência, o serviçopúblico pode finalmente vislumbrar novos horizontes, há muitoreivindicados tanto pelos servidores como pelos usuários. Os primeirospor terem sido anos a fio impedidos de executar políticas assistenciaismais amplas e renovadoras, já que estas não se encaminhavam pelarede pública. Os segundos, porque com a reestruturação daassistência, passaram a ter pelo menos a promessa de novas formasassistenciais” (OLIVEIRA & REIS & GOLDENSTEIN, 1985).93

Em 1983 é publicado o primeiro Plano Diretor do Centro Psiquiátrico Pedro

II (CPPII) com o nome de Plano Diretor para Reorientação da Assistência

Psiquiátrica do CPPII. O Plano previa um eficiente sistema de atenção extra-

hospitalar como parte de “soluções poupadoras de recursos capazes de enfrentar

a angustiante questão dos crescentes gastos com o setor de saúde”.94 Tinha

como objetivos: executar toda e qualquer atividade terapêutica por intermédio de

equipes multidisciplinares; diversificar o arsenal terapêutico, ampliando o leque de

ofertas; priorizar e enfatizar recursos e técnicas extra-hospitalares, aumentando

sua capacidade resolutiva; redimensionar os serviços de internação, utilizando-os

como último recurso, diminuir o tempo de internamento (taxa de permanência),

para devolver o paciente ao seu meio social; criar meios para promover

criticamente a reintegração de sua clientela com a família, trabalho e comunidade;

integrar, racionalizar e otimizar procedimentos, métodos e técnicas

administrativas; implantar amplo e inovador programa de desenvolvimento de

recursos humanos; desenvolver estudos e pesquisas em Saúde Mental para

qualificar a prática assistencial e fazer evoluir o conhecimento sistematizado

existente; desenvolver programa de treinamento em serviço, conveniado com

Universidades; contribuir para um programa de Saúde Mental, integrado,

93 Note-se a postura política que todo o grupo de novos profissionais, sem vínculos estáveis, assumia emrelação ao nível central do MS. Esta postura não deixa de provocar níveis de tensão.94 Plano Diretor do CPPII, 1983.

77

regionalizado e extensivo para toda sua população de referência (na época, 2

milhões e 500 mil habitantes); iniciar trabalho permanente de integração com a

comunidade (incluindo associações de moradores, de profissionais, grupos de

ajuda mútua, religiosos, etc.), respeitando as práticas informais ditadas pela

cultura popular.

Estes onze objetivos se desdobram em vinte e duas metas com um

calendário de curto, médio e longo prazo. O Plano Diretor preocupa-se, também,

para alcançar seus objetivos na reordenação administrativa, com a implantação

de um organograma que divide suas atividades em cinco áreas: a) atividades de

direção e assessoramento; b) atividades de ensino e pesquisa; c) atividades de

documentação e auditoria médica; d) atividades administrativas, propriamente

ditas; e) atividades assistenciais.

O fluxograma das atividades assistenciais propunha um sistema de “vasos

comunicantes”, sendo a porta de entrada o Ambulatório e o Pronto Socorro

Psiquiátrico. O sistema previa ainda uma internação breve em contraposição às

internações prolongadas.

O Plano marca, de forma enfática, a transformação assistencial, centrada

na equipe multidiscilinar e a busca de um novo modelo técnico, assim como a

necessária reforma administrativa para viabilizar o projeto:

" É importante observar que o trabalho em equipe implica numacompreensão de que as reações psicopatológicas requerem avaliação,diagnóstico e tratamento adequados à multifatoriedade que asdeterminam. A equipe é mais que um espírito de trabalho, é uma formade saber e de prática deste saber. O paciente é visto de maneiradinâmica dentro do seu contexto familiar e sócio-cultural, sujeito ainfluências diversas em seus contatos interpessoais e ambientais.Conclui-se, portanto, que o trabalho em equipe multidisciplinar traduz-se por uma mudança de postura frente à doença e o paciente, onde o'episódio' psicopatológico surgido em seu processo de vida necessitade uma compreensão e de um apoio estruturado para auxiliá-lo nodesenvolvimento de potencialidades de saúde". (pg. 15)"O setor público da nossa psiquiatria brasileira tem diante de si umdesafio: o de elaborar e tornar viável um novo modelo de assistênciaque consiga se contrapor à prática lucrativa das empresas privadas ese apresentar como alternativa ao modelo liberal. Em outras palavrasnão se trata apenas de agilizar as instituições prestadoras de serviçonesta área para que possam produzir mais atendimentos, mas

78

efetivamente construir uma forma diferente de tratar o fato psiquiátricotomado em sua dimensão coletiva". (pg. 60)"(...) é oportuno considerar a questão do Regimento Interno do CPPII,que está em vigor desde o ano de 1944. Este Regimento, de algumtempo para cá, vem influenciando de forma retrógrada todas as açõesadministrativas no âmbito do Complexo Hospitalar, o que, direta ouindiretamente, se faz sentir a nível das atividades assistenciais. Otempo e as próprias práticas encarregaram-se de torná-lo obsoleto earcaico". (pg. 69) PLANO DIRETOR DO CPPII (1983).

No decorrer da década de 1980 até o processo da democratização

definitiva do país - na eleição direta para presidente, são vários os documentos e

outros Planos95 propostos ao Centro Psiquiátrico Pedro II. As mudanças, tanto em

referência aos objetivos, quanto à estrutura administrativa são mínimas e

relativas ao contexto imediato. As observações feitas ao Plano Diretor de 1983

tentam dar conta dos movimentos da instituição no período examinado.

O que chama à atenção nas aspirações dos planejadores da época é a

amplitude do leque de objetivos, como se fosse possível realizar todas as

urgências, de imediato, que se acumularam num longo período de esquecimento

a que o infortúnio da loucura ficara trancado nos corredores e guardado por

chaves e muros da exclusão. No entanto, parecia ser a intenção distribuir todas as

cartas do baralho para que o jogo começasse o mais depressa possível.

Claro que objetivos imperativos tipo “criar meios de promover criticamente a

reintegração da clientela com famílias, trabalho e comunidade “, tão comuns em

documentos oficiais da época, são inócuos. Primeiro, porque a meta apontada

não possui o caminho a ser percorrido para o objetivo. Falta o guizo no gato.

Depois, porque o objetivo é muito ambicioso, contendo quase que todos os

desafios impostos mais tarde à Reforma Psiquiátrica para os novos dispositivos, e

que estavam sendo oferecidos a uma população de crônicos, sem contato com o

mundo externo, há dezenas de anos perdidos. Poderíamos fazer a crítica, neste

momento, aos vários objetivos traçados naquele momento. Mas nos parece mais

vantajoso examinar entre os dois momentos, entendendo os objetivos propostos

no campo das utopias, quais as transformações ocorridas, no possível contextual:

os recuos na continuidade da proposta, por crises provocadas pelas tensões entre95 Listados na fontes documentais.

79

grupos internos e com a hierarquia ministerial; as propostas que se mostraram

inadequadas quando submetidas ao “teste de realidade”.

Poderíamos colocar no saldo positivo do período a organização do

atendimento extra-hospitalar. Em 1981, o atendimento ambulatorial, irregular,

insuficiente, espalhado nas várias unidades do complexo do CPPII é centralizado.

Em 1985 ele é estruturado dentro do modelo de hierarquização, regionalização e

apresenta uma proposta clínica ousada. Pela primeira vez é organizado um

atendimento público, de massa, com referencial psicanalítico. Sob a supervisão

de Jurandir Freire Costa e Benilton Bezerra Jr., iniciou-se um atendimento grupal

para as chamadas “queixas difusas” de uma população de baixa renda, o que

resultou numa reflexão teórica, através de uma pesquisa com resultados

significativos para os desafios da época. Desmedicalizou-se um dispositivo

complicado do aparelho psiquiátrico. A abertura de vários e diferentes

atendimentos em grupo, a atenção ao paciente por uma equipe multidisciplinar, o

atendimento domiciliar e comunitário, a supervisão e discussão de casos em

equipe incrustaram na proposta técnica o diferencial característico que marcou o

dispositivo em transformação.

Após a “crise de 1988”, que será abordada posteriormente, o Ambulatório

Central sofre um retrocesso gradativo e constante, onde a proposta anterior não

pode mais ser reconhecida. Entretanto, após 1988, dois novos dispositivos vão

aumentar o saldo positivo das experiências daqueles tempos: a “Casa d’Engenho”

e a “Enfermaria de Portas Abertas”96 vão inaugurar a experiência do Hospital-Dia

como um dispositivo extra-hospitalar de atenção em saúde mental, anterior à

proposta dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) ser implantada na cidade

do Rio de Janeiro.

No coração do manicômio uma enfermaria chegou a desenvolver uma

experiência clínica, também sob a supervisão de COSTA e BEZERRA JR., a enfermaria

masculina 2 do Hospital Gustavo Riedel, com formas de tratamento radicalmente

96 Esta, depois chamada “Espaço Aberto ao Tempo”, vai aproximar as linguagens das artes plásticas àterapêutica com psicóticos, diferente da proposta de Nise da Silveira, com uma experiência única e profícuaem Saúde Mental, sob a coordenação do médico e artista plástico Lula Wanderley. Os fundamentos destainusitada experiência clínica está documentada em WANDERLEY (2001). A Experiência da Casa d'Engenho estárelatada em JORGE (1997).

80

diferente da experiência asilar do modelo anterior, mas que não contaminou a

maioria das enfermarias tradicionais do CPPII, mesmo nesta época de mudanças,

e foi extinta com a chamada “crise de 1988”.

Talvez o projeto mais bem sucedido desta época tenha sido o lugar onde

as transformações na clínica estavam sendo lapidadas: o Centro de Estudos,

definido no Plano Diretor de 1983 como núcleo responsável pelo ensino e

pesquisa.

“Os serviços onde estas experiências tinham lugar passaram a atrairprogressivamente estudantes, novos profissionais e professores douniverso psi interessados em encontrar fora do estagnado mundo daacademia o movimento, a inquietação, a inovação. Foram sendocriados cursos de extensão e especialização para profissionais dediversas áreas, voltados para formação de recursos humanos aptos aenfrentar os desafios que a realidade asilar impõe e que as salas deaula não conseguem reproduzir. Este é um ponto seguramente dosmais importantes na trajetória da reforma psiquiátrica no país nestadécada. Deve-se à consolidação dos serviços públicos como local deensino e formação o fato de que foi possível avançar na reprodução dequadros capazes de atuação crítica, apesar das enormes oscilaçõespolíticas no período e do conservadorismo, quando não do francoreacionarismo psiquiátrico da maioria dos espaços acadêmicos”(BEZERRA JR., 1994; 178).

Não foi diferente no CPPII. Apesar do treinamento em serviço, diversas

vezes oferecido, só atingir uma pequena parte dos servidores, com maior

aceitação entre os novos contratados, o Centro de Estudos transformou-se em um

lugar de formação de quadros em saúde mental. O Curso de Especialização em

Saúde Mental, por exemplo, oferecido aos trabalhadores em saúde mental de

nível superior, equivalente a um curso de Residência, vem formando novos

quadros a cada ano e são estes a maioria dos contratados por concurso público

que hoje reforçam a instituição.

Ainda contam, no lado positivo, a modernização administrativa e as

“atividades de documentação e auditoria médica” propostas no Plano Diretor. O

sistema de custos e de informação, montados nesta época, impulsionaram as

reformas propostas de forma a garantir sua credibilidade junto aos órgãos de

controle e avaliação do Ministério da Saúde. A modernização administrativa pode

também ser observada como um componente impulsionador da proposta técnica

no trabalho executado por José Jackson Coelho SAMPAIO, na direção de uma

81

unidade do CPPII - a Unidade Hospitalar Professor Adauto Botelho, e está

minuciosamente descrita em sua dissertação de mestrado ( SAMPAIO, 1982).

Por outro lado, os objetivos do Plano Diretor estavam condicionados pelas

tensões, inerentes aos embates políticos característicos desta época. Estas

tensões estão situadas em dois campos: entre os planejadores, quadros

dirigentes da nova geração, na sua maioria recrutada no interior do movimento

dos trabalhadores em saúde mental (MTSM) e “ocupando espaço” no aparelho de

Estado, e a hierarquia dominante deste aparelho pressionada pelo poder dos

“donos de hospitais privados”, representados na Federação Brasileira de Hospitais

(FBH). No outro campo, as querelas e divergências no próprio interior do

movimento de renovação, divididos, numa formulação grosseira, entre “políticos” e

“técnicos”, ou seja, os “engajados” e os “assistencialistas”.

Os embates, no primeiro campo, traziam à baila toda a contradição do

sistema. O modelo que se estava a combater, na reformulação da assistência

psiquiátrica, era o modelo da privatização da saúde, exacerbado durante o

“milagre econômico” da ditadura e que se havia exaurido. Os interesses do setor

privado haviam sido atingidos no alvo: o lucro. Basta o exemplo da

regulamentação das internações psiquiátricas na cidade do Rio de Janeiro: antes

da regulamentação, que estabeleceu pólos de internações nos hospitais públicos,

como reguladores do sistema, a internação psiquiátrica era feita numa ampla

porta de entrada: consultórios ambulatoriais do INAMPS, onde, quase sempre, o

médico que emitia a guia de internação era funcionário ou sócio da clínica

conveniada direcionada. Com a regulamentação das internações pelos hospitais

públicos, houve uma redução imediata de 30% das internações em clínicas

privadas. A reação se fez pública e atingindo politicamente os “comunistas”

infiltrados no aparelho de Estado. No Congresso de Psiquiatria de Belo Horizonte,

a Federação Brasileira dos Hospitais (FBH) se apresenta como uma entidade que

está

“...lutando por seus interesses legítimos, que em nada se afastam dosinteresses do país. A referência é necessária e mesmo indispensável,porque, como todos sabem, os interesses de grupos mais ou menosencapuçados, tem se servido de todos os meios de divulgar para tentar

82

persuadir a opinião pública e as autoridades de que é preciso destruir oque chamam pejorativamente de ‘empresas de saúde’. Tais grupossão, uns motivados por tendências estatizantes que redundariam, noque concerne à psiquiatria, na volta aos superados macro-hospitaispúblicos, outros, motivados pelo insopitável anseio, ainda que justo ecompreensível, de conseguir emprego ou campo de ação profissional,através de instituições que já são conhecidas no jargão psiquiátricopelo apelido de mini-clínicas e que redundariam na volta à medicina deconsultório, com toda sua inadequação ao atendimento de massas; e,finalmente, os grupos interessados nos indizíveis propósitos da ‘contra-cultura’ anarquizante. Além destes, restam os grupos que propõem avia socialista, ao menos nos matizes da social-democracia, a qualpressupõe entretanto a socialização conjunta do ensino, dos meios dedivulgação, dos serviços sociais em suma, e não só da medicina”.97

O texto, hoje ridículo, manifesta a virulência do setor privado contra a

reforma que estava acontecendo. Em alguns momentos ele pode ser lido como

dirigido diretamente contra o Plano Diretor e os resultado das reformas no CPPII.

A FBH se notabiliza, neste período, por centrar seus ataques à reforma na

psiquiatria. Nos anos 70, as internações psiquiátricas só perdiam, nas internações

privadas, para parto. E o setor privado tinha amplo poder de pressão junto ao

Congresso Nacional e ao Ministério da Saúde. É neste jogo de forças que as

tensões acontecem. Das inúmeras crises vividas neste período, vamos destacar

duas, dado que suas causas envolviam interesses da Presidência da República

que ainda estão muito presentes na memória nacional, e tendo em vista o corte

político de sua representação no projeto assistencial da instituição.

A primeira remonta à negociação política empreendida por José Sarney

para conseguir mais um ano na presidência do Brasil, embora viesse de uma

eleição indireta e vivêssemos o clamor pela primeira eleição direta depois dos

anos de chumbo da ditadura. Neste contexto, as alianças buscadas por Sarney

foram com os setores mais atrasados do quadro político nacional. O Ministério da

Saúde coube a um obscuro ministro sensível às pressões da FBH. Estamos no

que se convencionou chamar “crise de 1988”. A direção do CPPII é entregue a um

insignificante professor do departamento de psiquiatria da Universidade Federal

Fluminense. A sua intervenção é avassaladora. Menos porque estivesse ligado

aos interesses privados, mas, muito mais, pelas concepções no campo da

97 “Assistência Psiquiátrica Brasileira: realidade e perspectivas”, documento da Federação Brasileira deHospitais apresentado ao Congresso de Psiquiatria de Belo Horizonte.

83

psiquiatria. O parecer da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da

Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, reunida em 14 de junho de

1988 destaca que esta intervenção no Centro Psiquiátrico Pedro II

“teria acarretado o retorno a práticas retrógradas e ultrapassadas taiscomo confinamento de pacientes, medicalização excessiva e usoindiscriminado de eletrochoques, assim como a desativação daenfermaria de crise e de oficinas terapêuticas.“[o interventor] passou a imprimir uma orientação oposta à que vinhasendo seguida. A filosofia assistencial foi totalmente alterada e sob opretexto de que a loucura é uma questão meramente médica passou-se a utilizar como práticas terapêuticas o uso excessivo demedicamentos e a eletroconvulsoterapia. O confinamento de pacientesfoi outra prática inaugurada na instituição, com a justificativa docontrole da sexualidade. Como corolário da nova política e atestando oclima de terror instalado, três supervisores foram demitidos e quinzetécnicos (quase todos não-médicos) foram colocados numa lista de“prescindíveis” para serem demitidos, o que só não aconteceu porque aColônia Juliano Moreira resolveu solicitar para lá a transferência dosmesmos. Por outro lado, através de ameaças de demissão, umambiente de perseguição foi instaurado, com o objetivo de evitarqualquer discussão técnica ou política, ao mesmo tempo que oGabinete de Planejamento, instância estratégica na execução dapolítica do CPPII, foi desativado e os programas de capacitação derecursos humanos foram deixados de lado. As relações com as clínicasprivadas conveniadas com o INAMPS foram invertidas. Numa atitudede clara mercantilização da doença passou-se a privilegiar a internaçãonessas clínicas, mesmo com vagas no CPPII. Para tal, o ProntoSocorro Psiquiátrico que vinha funcionando como barreira àsinternações desnecessárias, tanto no CPPII como nas casas de saúdeconveniadas, foi desestruturado voltando a funcionar nos moldesantigos (contenção ou medicalização generalizadas)”.98

O que mais chama à atenção nesta intervenção foi seu curto período - não

chega a um ano - contraposto ao seu efeito devastador. Garantido o ano extra de

98 “Comissão de Defesa dos Direitos Humanos – Crise no Centro Psiquiátrico Pedro II – Parecer daComissão”. Deputada Lúcia Arruda – relatora, Deputados: Alberto Brizola, Alice Tamborindeguy, HeloneidaStuart, e Rubens Bomtempo – membros. 14 de junho de 1988. Neste mesmo relatório, o depoimento de JoãoPaulo Hidelbrandt esclarece que o interventor, antigo dirigente do CPPII, no início dos anos 80, teria [naquelaépoca] “encaminhado para o Serviço Nacional de Informações uma lista de nomes, de profissionais dohospital, que seriam esquerdistas, que teriam invadido o hospital e que a direção da época estaria de acordocom estes comunistas, estes esquerdistas...”. Como componente da mesma crise, a intervenção na ColôniaJuliano Moreira foi feita com intervenção do exército para a posse do interventor e evitar as manifestações dostrabalhadores em saúde mental. Ainda sobre esta crise, coberta com destaque na imprensa, o “Jornal daResistência” número único, elaborado pelo movimento de resistência traz uma charge de Ricardo Cruz comuma caricatura de Hitler, travestido de interventor do CPPII, com a legenda: “Eugenia, aqui me tens deregresso...”. E transcreve o artigo de Jurandir Freire Costa, publicado no Jornal do Brasil, “Faca no Coração”,sobre um paciente que impedido de ver seus terapeutas comete o suicídio.

84

mandato na presidência, Sarney recompõe as alianças. O ministério da Saúde

volta ao projeto interrompido. A maioria dos técnicos afastados no CPPII volta

para a direção da instituição, na intenção de retomar o projeto anterior. Mas o

hospício tinha renascido de forma assustadora. Este curto período de intervenção

conseguiu devastar anos de vagarosa transformação. Era preciso começar de

novo...

A segunda grande crise política com reflexos na instituição é bem mais

recente. Na pressa de modificar a constituição, para conseguir o segundo

mandato presidencial, Fernando Henrique Cardoso opera de modo similar a

Sarney. Reflexo na instituição: substituição de uma direção eleita, no meio de um

mandato, para colocar no cargo um diretor que usou a instituição para uso

inescrupuloso da política partidária. Nesta crise vamos chegar mais tarde, pois a

direção eleita já era fruto de outras tensões no campo das querelas e divergências

entre os combatentes do campo da reforma psiquiátrica.

Em 1987 acontece a I Conferência Nacional de Saúde Mental e o II

Encontro dos Trabalhadores de Saúde Mental. Segundo BEZERRA JR. no artigo

citado, a Conferência discutiu as dificuldades da reforma dentro do aparelho

estatal; o Encontro marca uma nova etapa do movimento com o lema “Por uma

sociedade sem manicômios”, pregando ações de forma ampla no interior da

própria cultura. Para o autor, a primeira posição estava se esgotando, porquanto

“a desospitalização, em si mesma , em nada abalou os alicerces da cultura

manicomial”, enquanto “uma sociedade sem manicômios” deslocava o conceito de

“desinstitucionalização” do manicômio para desinstitucionalizar a doença mental

na sociedade. Neste ponto há uma inflexão no discurso do movimento: “vai se

passando de uma fase em que a direção do discurso reformista é predominante

contra o manicômio para outra em que a psiquiatria é inserida no campo social

como aparelho regular de relações subjetivas, que devem ser, elas mesmas,

analisadas em suas determinações” (BEZERRA JR., 1994; 181).

É neste contexto que acontece a “crise de 1988” no Centro Psiquiátrico

Pedro II. De certa forma, a repercussão que ela teve na mídia, nas organizações

sociais e políticas, deveu-se ao deslocamento que estava em operação no interior

85

do movimento. No entanto, este deslocamento ainda era insipiente. Entretanto, a

sociedade mostrou-se solidária neste momento de crise. Era preciso uma

construção bem mais alicerçada, na qual novos dispositivos pudessem ser

concebidos na comunidade, dependendo dela, na sua concepção ideológica, para

criar no campo social o fluir das relações que a loucura pudesse estabelecer com

a sociedade sem a mediata intervenção do manicômio.

Em 1989, em Santos, SP, numa intervenção da Prefeitura no manicômio

local - a Casa de Saúde Anchieta, hospital particular - pode ser construída uma

rede de serviços de Atenção Diária, na comunidade, provocando um modelo novo

de atenção em Saúde Mental no território de uma cidade.99 Nesta ação, pode-se

observar dois aspectos relevantes. Primeiro, o poder público executa uma ação de

conseqüências ímpares até então no Brasil: a intervenção numa casa de saúde

particular para executar a reforma psiquiátrica no manicômio, e a construção de

uma rede de serviços alternativos, criando novos dispositivos em Saúde Mental.

Segundo, a construção destes dispositivos na comunidade com a participação

popular (nas associações, rádio comunitária, centros culturais, etc.), mudando o

cenário do acontecimento do adoecer e do tratamento da doença mental.

Estes fatos, entre tantos outros acontecimentos do período, são

necessários para emoldurar o quadro institucional que se desenrolava no CPPII.

Após a intervenção que gerou a “crise de 1988”, a instituição é retomada

por parte da equipe anterior. Um número significativo de quadros do movimento,

responsáveis pela proposta que vinha sendo executada, não retorna ao CPPII, até

coerente com os novos rumos tomados pelo MTSM. Na sua maioria são

absorvidos pelas instituições acadêmicas, onde até hoje desenvolvem atividades

relacionadas à reforma psiquiátrica.

No movimento “pré-crise”, o coração do manicômio não foi atingido pela

reforma acontecida na instituição. O Pronto Socorro Psiquiátrico e as enfermarias

tradicionais seguiam inatingíveis pelo grande esforço que vinha acontecendo no

atendimento extra-hospitalar e no desenvolvimento do ensino e pesquisa. O velho

hospício estava dividido em dois: a face moderna e progressista da reforma99 Sobre esta experiência ver NICÁCIO (1994).

86

convivia com a face cinzenta da psiquiatria. Esta parecia ter vida própria e seguia

preceitos que não estavam sendo prescritos, mas se repetiam como gestos

automáticos codificados na história do passado da praia Vermelha e da velha

Colônia de Alienados do Engenho de Dentro.

O movimento pós-crise começa com o sentimento de começar de novo.

Mesmo o que tinha avançado, com a crise, recuou. Arregaçar mangas, refazer

canteiros, semear o trigo, separar o joio, são movimentos necessários para quem

tem pressa do pão.

Considerando o contexto da reforma acontecendo lá fora, dois movimentos

são impulsionados neste retorno. Criar novos dispositivos que deslocasse a

atenção em saúde mental das enfermarias do manicômio: acontecem os

Hospitais-Dia,100 já referidos, com a pretensão que, no futuro, eles fossem para a

comunidade e criassem uma rede social no território a ser conquistado. Institui-se

um “Conselho Diretor Tripartite”, repetindo a representação dos seguimentos

exigidos nos Conselhos Municipais de Saúde, para a gerência do CPPII.

Retomam-se a modernização administrativa e as informações gerenciais.

Característica deste momento é a reforma da área física de alamedas,

parques e a substituição dos altos muros por grades, semelhantes à cerca de

jardins, juntamente com a aproximação dos programas desenvolvidos com a

comunidade do Engenho de Dentro. Há uma circulação da vizinhança no espaço

do CPPII, incentivando-se a participação comunitária nos programas

desenvolvidos na Instituição. Não há espaços proibidos ao olhar de todos. O

horário de visitas é permanente e o familiar pode acompanhar a internação do seu

paciente. A porta de entrada é estruturada para um atendimento personalizado da

demanda. Para uma internação não era necessária a passagem na emergência.

Vários serviços começaram a experimentar uma proximidade maior com seus

clientes. Um fórum semanal discutia as mudanças da instituição, com a

100 Um dos Hospitais-Dia funcionava diretamente vinculado à Emergência Psiquiátrica, numa tentativa deincluí-la na reforma. A este respeito, ver JORGE (1997). O Espaço Aberto ao Tempo é contemporâneo doCentro de Atenção Psicossocial Luis Cerqueira, inaugurado em 1887 em São Paulo, reconhecido serviço deatenção diária em saúde mental, que emprestou a sigla CAPS para outros serviços, em todo o país (verGOLDBERG 1994). O Espaço Aberto ao Tempo fez vários encontros com o CAPS Luís Cerqueira, discutindonovos dispositivos em saúde mental.

87

participação de familiares e pacientes. Apesar da simplicidade destas ações,

permear o espaço, antes proibido, possibilitou uma mudança das relações

existentes. Em pouco tempo o colorido venceu o cinza.

A aparente ingenuidade das ações exigia uma vigilância redobrada de seus

atores. A maquiagem não apaga o fogo do dragão. Era preciso atravessar tempos

difíceis, esperar a redemocratização definitiva do país. Municipalizar o Centro

Psiquiátrico era um desejo levado a todas as Conferências Municipais de Saúde

pela equipe dirigente. Desenvolver ações de saúde mental na rede pública de

saúde do município era uma aspiração para a progressiva desativação do

manicômio.

Neste compasso de espera, apesar das tensões com a hierarquia

ministerial serem absorvidas, mesmo no atribulado governo Collor até o seu

impedimento,101 as tensões internas tomaram um rumo inesperado. O “Conselho

Diretor Tripartite”, sonho democrático e tentativa de envolver servidores e

comunidade no projeto, com o tempo passou de palco de pacto para arena de

disputas políticas. Se os interesses da comunidade e da direção em muitas vezes

pudessem ser próximos, os interesses dos servidores estavam distantes dos

outros dois seguimentos. O fórum semanal de discussões passou a ser o espaço

de reivindicações políticas explícitas.

Dentro do campo de tensões das querelas e discórdias, dentro do próprio

movimentos dos reformistas, o CPPII desenvolve uma via particular. Aqui os

"assistencialistas", que priorizavam a execução de projetos técnicos, estavam

ocupando os cargos administrativos, enquanto os "políticos" se organizaram em

um Núcleo Sindical, filiado a um sindicato de servidores públicos. O Núcleo

Sindical participava do "Conselho Diretor Tripartite" e seu campo de luta

prioritário estava na defesa dos direitos dos servidores, naquele momento de

101 Fatos dignos de nota no período: no início do governo Collor foi desencadeada uma "reformaadministrativa" com a demissão em massa de todos os diretores de órgãos públicos, por decreto. No CPPIIaconteceu algo inusitado. A destituição do diretor fez assumir o cargo o vice-diretor, que esperou umanomeação do Ministério. Passado um ano, como a mudança não ocorreu, o diretor em exercício solicita suademissão. O Ministério não quer aceitar e pede que o diretor no cargo indique alguém para assumirdefinitivamente o cargo vago. O vice diretor indica o diretor demitido pela "reforma administrativa", e ele érenomeado pelo mesmo governo que o demitiu. Também neste período, ocorre, dentro da "reformaadministrativa" as temíveis listas de disponibilidades de servidores públicos. Os hospitais psiquiátricos do Riode Janeiro, agindo politicamente em conjunto, foram os únicos hospitais da cidade onde não houve servidorescolocados em disponibilidade.

88

efervescência política, pós-impedimento de um presidente da república. Os

Congressos Internos do CPPII, num movimento que capturava os fóruns

semanais, mesmo dividindo os aspectos "assistenciais" e "políticos" das

discussões, dirigiu sua meta para uma disputa de poder na instituição.

No II Congresso Interno do CPPII, em 1992, a tese de "eleição direta" para

a direção da instituição é vencedora em oposição à velha tese do "conselho

diretor". Dois meses após o Congresso a eleição é realizada. Uma chapa única é

inscrita, representando o Núcleo Sindical. A direção do momento pede demissão

e encaminha ao Ministério da Saúde o nome eleito, como se fosse uma indicação

da instituição para a continuidade do processo. O novo diretor é nomeado, sem o

Ministério da Saúde perceber que havia acontecido um "processo eleitoral".

Em continuidade, o Núcleo Sindical entra em processo de dissolução,

sendo seus membros nomeados para cargos de direção na nova administração.

Após quatro anos, duração do mandato, nova eleição é realizada com

apresentação de chapa única, que foi reeleita. Novamente não há percepção pela

hierarquia ministerial. Após dois anos, no segundo mandato, a instituição é

sacudida pela segunda grande crise, já referida. Numa negociação política para a

reeleição de Fernando Henrique Cardoso, na presidência do Brasil, cargos são

loteados e o CPPII cai nas mãos de um diretor que vai usar o cargo em benefício

do processo eleitoral da época. Esta crise, diferente da de 1988, não provoca

reação interna ou externa. Na própria "direção sindical" existente, cargos da

direção exonerada vão servir ao interventor nomeado. Esta direção interventora

só fica um ano no cargo, quando uma nova direção, fora dos quadros da

instituição, cumpre a última gestão ministerial, por um ano e meio, até o início de

2000, momento da municipalização do Centro Psiquiátrico.

Com o retraimento da corrente "assistencialista" o CPPII ficou, num período

de seis anos, governado pela corrente "política".102 Cabe ressaltar que os102 Neste período cabe destacar, como ponte entre as duas correntes, a inauguração do Centro Comunitário."Mais do que uma idéia, nascia um compromisso ético que, propondo o redesenho da forma e o conteúdo dasrelações entre comunidade interna e externa, colocava-se como interface, entre o hospital e a comunidade.Esta inserção ganhava os contornos de um centro de convivência, um espaço de encontros, onde seriaestimulada e garantida a participação da clientela em atividades diversificadas propostas pelos parceiroscomunitários do CPPII. Construía-se no plano da relação política dos vários seguimentos participantes doscongressos internos um espaço permanente de inter-trocas da comunidade com nossos usuários, queacreditássemos fosse capaz de redimensionar o universo simbólico da instituição pela construção social de umtrabalho em rede, até então inédito na área de saúde mental" (AMORIM, 2000; 289 E SEGS.).

89

Congressos Internos do período, na esfera assistencial, defendeu as teses mais

avançadas da reforma que vinha acontecendo. E a direção eleita, em nenhum

momento, se opôs ao projeto assistencial. Não houve, de forma explícita, uma

imposição da psiquiatria tradicional ao projeto da reforma. O mesmo aconteceu,

em relação ao projeto, com a postura das duas direções posteriores à crise que

interrompe o mandato "sindical".103

O que ocorre, então, para ter acontecido uma recuperação do manicômio e

para que os projetos reformistas tivessem sido incrustado em guetos?

A resposta a esta pergunta requer uma tarefa que não está ao alcance

deste trabalho. Primeiro, pela exigência de uma pesquisa neste campo para

elucidar as principais questões que se apresentam. Segundo, como informado no

início deste capítulo, a nossa participação nos acontecimentos, assumindo uma

posição política definida, nos tira a isenção necessária que o rigor da

interpretação histórica exige. Entretanto, na tentativa de colaborar para uma

pesquisa futura, os comentários aqui expostos, se colocados na categoria de

depoimento, poderão vir a ter alguma utilidade.

O II Congresso Interno do CPPII, ocorrido em junho de 1992, muda o

modelo de gestão da instituição. Dois grandes temas perpassam o congresso: o

Projeto Assistencial e o Modelo de Gerenciamento. O artigo 2º do regimento

daquele congresso destaca:

"Art. 2º - são participantes do II Congresso:1. Delegados: a) - funcionários eleitos nas reuniões das Unidades; b) -

comunidade em número paritário aos delegados dos funcionários2. Delegados natos: participantes do Conselho Diretor Tripartite"104

103 A primeira só se preocupou com o uso político da instituição. Desde que as práticas da reforma nãointerferissem diretamente neste objetivo, e nem havia como, não houve proibições técnicas. Houve, no usopolítico, um esvaziamento de quadros da instituição. Todos os pedidos eram atendidos, sem a preocupação dereposição de pessoal, o que ajudou a esvaziar o já tão carente quadro de servidores. A última contrataçãoacontecera no início da década de 1980. A segunda direção tinha pretensões assistenciais. Chegou a elaborarum novo organograma para a instituição, no qual se destaca um departamento de pacientes de "longapermanência" (DELONG, no organograma) e a reativação de uma antiga unidade, onde funciona o CentroComunitário, para a recuperação do papel assistencial de um macro-asilo. O projeto não vai em frente peloprocesso da municipalização da unidade que estava em curso. 104 Relatório do II Congresso Interno do CPPII, arquivo do Centro de Estudos do Instituto Nise da Silveira.

90

Na abertura do Congresso um fato marca, de antemão, a mudança do

modelo gerencial: a comunidade não aceita participar com seus delegados.105

Estava quebrada a paridade e determinada a mudança na forma de gestão do

CPPII.106

Quanto às teses sobre a Proposta Assistencial, nota-se que só a Direção

Executiva, afastada durante o Congresso, apresentou uma proposta global para a

assistência em saúde mental da instituição, aprovada com adendos das teses

particulares que foram também aprovadas.107

O que acontece neste momento é uma disputa entre os "reformistas

assistencialistas" e os "políticos" na corrente dos trabalhadores em saúde mental

que estavam preocupados com a Reforma Psiquiátrica na instituição.

Entretanto, a vitória da corrente "política" vai descaracterizar este papel na

instituição. Para ocupar os cargos de direção há, necessariamente, a desativação

do Núcleo Sindical. Sua tarefa agora era dirigir o CPPII. A corrente

"assistencialista" não ocupa este lugar político. Muito dos seus membros saem da

instituição e os que ficam se afastam da arena política para exercerem atividades

assistenciais.

É a partir deste momento, durante um longo período de nove anos, que as

propostas reformistas na instituição entram num período de inércia e há mesmo

uma involução, com um retorno às velhas práticas tradicionais da psiquiatria.

105 "Após a leitura do Regimento foram feitos os seguintes destaques:a) Rogério (membro do Núcleo Sindical do CPPII) e Cosme (membro do Conselho Diretor Tripartite,

seguimento comunidade) destacaram o Art. 2º nº 1, letra B. Rogério pediu esclarecimentos sobre aescolha dos delegados da comunidade. Cosme esclareceu que por deliberação da Zonal Suburbana daFAMERJ (Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro) os representantes daZonal participariam do Congresso como observadores, pedindo que ficasse registrado em ATA. Informouainda que os delegados natos, representantes da FAMERJ no Conselho Diretor, também abririam mãodesta condição e participariam como observadores. Rogério propõe que o item B do Regimento fosseretirado, o que não foi aprovado" ( Ibidem, pg. 3)

106 São 45 votos para a eleição direta; 28 para a manutenção do Conselho Diretor Tripartite; 4 votos para"eleição direta" do Diretor Geral e manutenção do Conselho Diretor; e 2 abstenções. (Ibidem, pg. 9).107 Teses livres: 1- Projeto Saindo para o Trabalho (tratava de uma feira livre na comunidade); 2 -Desconstruindo: para mudar de vida ( sobre atendimento ambulatorial de pacientes internados em umaUnidade de Pacientes Agudos); 3 - Atendimento Ambulatorial e Práticas Alternativas (sobre o atendimentoclínico com uma proposta preventivista); 4 - Enfermaria de Crise (modelo de atenção multidisciplinar nainternação); 5 - Hospital Vicente Rezende (sobre a atenção à criança e adolescência, que reivindicava areativação do antigo Hospital de Neuropsiquiatria Infanto-Juvenil); Enfermaria de Alcoolismo (tese defendidapelos Alcóolicos Anônimos). Vale notar que a tese sobre a Casa d'Engenho, projeto que vai acontecer nainstituição posteriormente, não foi aceita por não cumprir "preceitos regimentais" do congresso. (Ibidem)

91

Como explicar que, sem uma participação ativa das direções do período sobre o

projeto assistencial, diferente da intervenção direta que ocorreu na efêmera

intervenção de 1988, a maioria das práticas retornem ao leito do velho asilo

adormecido?

Mesmo que a maioria dos reformistas tivessem já aprendido com BASAGLIA

que era na psiquiatria, enquanto saber, que a reforma teria que atacar o modelo

manicomial, a lição parecia não ser seguida. A execução do projeto dentro da

estrutura asilar estava condenada ao fracasso. O que acontece neste período só

vai negar a reforma que parecia acontecer no período anterior. Se os documentos

e vídeos da época atestam a efervescência de uma mudança nas práticas, elas

só aconteceram enquanto eterna vigilância ativa de um poder instituído. E este

poder nunca parece ser suficiente para que as mudanças nas bases do processo

aconteçam de forma autônoma. Não porque não tenha criado focos de resistência

e porque não existiram experiências fecundas no seu desenvolvimento.108 Elas

estão ainda hoje como testemunhas do movimento. Mas o manicômio é mais forte

e a sua regeneração é inexorável se não se mata o dragão.109

Esta época tão próxima, ainda tem a nos colocar, pelo menos, duas lições.

A primeira, característica da cidade do Rio de Janeiro: sendo os hospitais

psiquiátricos federais, eles não estavam, mesmo depois do Sistema Único de

Saúde, na rede municipal de saúde. A loucura era federal. Em nenhum momento

deste período há propostas concretas de inter-relações com outros serviços da

rede de saúde. As propostas não saem do espaço asilar. A comunidade é que é

chamada para entrar no espaço da loucura. A loucura não tem como se aventurar

na rede de atenção à saúde. O sistema de trocas é tentado no espaço manicomial

e não na comunidade. Este problema só vai ser enfrentado quando acontece o

processo de municipalização que será tratado a seguir.

A segunda lição diz respeito ao modo de reprodução da cultura do

manicômio. Aqui, a história não é ensinada para a modificação do presente. O

presente está aprisionado na história do manicômio que, pela normatização108 Como, por exemplo, o Espaço Aberto ao Tempo, a Casa d’Engenho, o Centro Comunitário.109 No vídeo “Transformações Assistenciais no CPPII”, de 1989, o texto prevê que o manicômio “é como rabode lagartixa, cresce outra vez, se cortado. Era preciso matar a lagartixa”. (Arquivo do Centro de Estudos doInstituto Municipal Nise da Silveira).

92

intrínseca exercida sobre os corpos dos loucos, sempre retorna como uma

“experiência de governo (...) paternal e autoritário que tem por objetivo

medicalizar, mesmo se é incapaz de medicar” (MACHADO, 1978; 491). Sobre esta

lição nos ensina Rotelli:

“A deslegitimação dos hospitais psiquiátricos é um processo queenvolve, de alguma forma, todo o mundo. Não se deve ter ilusão,contudo, de que esta leve à superação dos mesmos. Na França, maisou menos há 20 anos, dizia-se que os hospitais psiquiátricos eram umarealidade sociologicamente condenada, resíduos arcaicos dentro dasociedade moderna, que seriam eliminados naturalmente, através dahistória. Ao contrário, sabemos que os hospitais psiquiátricos deverãoser afrontados radicalmente, ou jamais desaparecerão de fato. (...) Odesaparecimento dos hospitais psiquiátricos não tem nenhuma relaçãocom a modernização ou com a modernidade, muito pelo contrário, asua existência acompanha a modernidade. (...) Na verdade, interessa-nos que eles desapareçam, pois um papel menor dos hospitaispsiquiátricos freqüentemente vem acompanhado de um reforçoqualitativo destes, o que não é o objetivo de nossa luta” (ROTELLI, 1991;88/9).

93

TERCEIRA PARTE: PROPOSIÇÕES ESTRATÉGICAS

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Capítulo 6: A intenção de chegar ao território: de um engenho dedentro para um engenho do fora

"Um modelo é, sem dúvida, uma representação da realidade, cujaaplicação, ou uso, só se justifica para chegar a conhecê-la, isto é,como hipótese de trabalho sujeita a verificação. Da mesma maneiraque dos fatos empiricamente apreendidos se chega à teoria porintermédio de conceitos e de categorias historicizadas, volta-se dateoria a coisa empírica através dos modelos. Desta forma, e com ousem intuito de reformulá-la, submete-se a teoria a um teste, pois arealidade não é imutável. Assim, o modelo se encontra no mesmo níveldo conceito neste caminho incessante do vai-e-vem, do fato cru àteoria e desta, de novo, ao empírico."Este movimento permite que os fatos sejam melhor conhecidos (pelautilização da teoria) e que a teoria seja melhorada (pela prova dosfatos)."Assim, os dois - conceito e modelo - devem permanentemente serrevistos e refeitos; e isto só pode ser obtido levando em conta quetanto a teoria como a realidade se encontram em processo depermanente evolução."A partir do momento em que se esquece tudo isto e se aplica ummodelo congelado para explicar uma realidade em movimento, trata-sede uma violência metodológica pura e simples, cuja aplicação não podeconduzir à realidade científica e sim ao erro" (SANTOS, 2002; 89).

Este cuidado sobre o método, contextualizado na preocupação dialética

de Milton Santos, deve servir de balizamento para as propostas e intenções do

direcionamento apresentados a seguir. O próprio termo "modelo", na linguagem

cotidiana, ainda segundo SANTOS (2002; 85), tem usos diferentes: como

substantivo significa uma representação; como adjetivo implica numa idealização

e enquanto verbo, modelar significa demonstrar algo. Na prática, o uso corrente

do termo contém partes destes três significados. De antemão, pedindo desculpa

pelo conteúdo afetivo na proposição conceitual que, inevitavelmente, carrega

tintas na idealização da "idéia", queremos trabalhar com a representação

substantiva e os tempos verbais da demonstração no conceito dialético de

permanentemente rever e refazer o modelo frente à realidade mutante. Como

adjetivo nunca: no campo psi não existe um modelo ideal. E como estamos

95

trabalhando com categorias historicizadas, os capítulos anteriores nos parecem

absolutamente necessários para colocar a instituição, marcada na sua

constituição com a herança da história da psiquiatria no Brasil, numa situação

ímpar diante da Reforma Psiquiátrica brasileira.

Todas as propostas de reformulação apresentadas no decorrer de sua

história ficam presas ao aperfeiçoamento de um modelo primeiro, de instância

manicomial, que no caso em questão está diretamente afeito ao primeiro

manicômio do hemisfério sul, tendo aqui uma dimensão maior nas críticas

formuladas por FOUCAULT e BASAGLIA. A história que constitui a instituição examinada

tem um poder de aprisionar o presente. Aqui, muito mais que em outro lugar, a

instituição deve ser negada. Os modelos que serão apresentados pretendem uma

reformulação necessária para a superação do manicômio. E a superação só

parece possível com a assimilação dos programas assistencias, já modificados,

na rede de saúde da cidade. E a cidade pode oferecer seu território para que a

saúde mental possa superar o manicômio.

"O território em si, para mim, não é um conceito. Ele só se torna umconceito utilizável para a análise social quando o consideramos a partirde seu uso, a partir do momento em que o pensamos juntamente comaqueles atores que dele se utilizam (SANTOS EM ENTREVISTA A SEABRA &CARVALHO & LEITE, 2000; 22)".

Portanto, a proposta que será aqui apresentada parte de dois pontos: a

negação da instituição manicomial e a absorção dos programas assistenciais,

com as necessárias modificações de ajuste dos modelos à realidade, pelo

território. O diferencial com as reformas acontecidas, até aqui, parte do

pressuposto da negação do manicômio enquanto lugar das ações propostas. As

reformulações que possam estar acontecendo na instituição só serão efetivadas

se levadas ao território da área programática, espécie de distrito sanitário na

cidade do Rio de Janeiro. Mas a noção de território não pode ser confundida com

o espaço geográfico da área programática ou ao bairro do domicílio do sujeito,

mas

"o conjunto de referências socioculturais e econômicas que desenhama moldura do seu quotidiano, de seu projeto de vida, de sua inserçãono mundo. Claro que é uma enorme complicação ajustar este conceitoà selva anônima e desumana das grandes metrópoles. Como pensaros territórios subjetivos e, portanto, a área de alcance das intervenções

96

de atenção psicossocial, no meio das balas perdidas da crise urbana?Que cidade real será capaz de sediar a pólis da antiga utopia grega,lugar onde convivem harmonicamente os cidadãos livres? Mais quelivres, desejamos hoje que sejam fraternos, iguais em direitos, etolerantes em suas diferenças. Uma rede de atenção psicossocial fazparte deste esforço de construção de uma cidade capaz de abrigar emharmonia os inumeráveis territórios subjetivos. Retornando ao modo derealizar o cuidado psicossocial, um serviço só será possível se,localizado em um bairro, emoldurado pelas referências sociais eculturais daquela comunidade específica, puder dar uso prático aoconceito de território. Para cada cliente, seu território familiar, cultural,mitológico, socioeconômico, jurídico. Este me parece um desafioteórico, com notáveis implicações clínicas, e que só passou a terexistência com a regionalização do atendimento e a criação de serviçoslocais de atenção psicossocial." (DELGADO, 1997-B; 42).

A partir da segunda metade dos anos 90, o município do Rio de Janeiro

vem experimentado, embora timidamente, a criação de serviços locais de atenção

psicossocial, com um resultado muito positivo, como efeito demonstrativo do novo

modelo. Em maio de 1996, foi inaugurado o primeiro Centro de Atenção

Psicossocial (CAPS), com o nome de Rubens Corrêa, no bairro de Irajá. Em 1997

dois outros foram implantados: em janeiro, o CAPS Pedro Pelegrino, em Campo

Grande e em março, o CAPS Simão Bacamarte, em Santa Cruz. Naquela época

uma avaliação assim era feita:

"A montagem destes serviços não é uma tarefa fácil. Por um ladoestamos construindo uma lógica de cuidados para uma clientela quehistoricamente nunca foi objeto da Secretaria Municipal de Saúde. Poroutro lado, a construção de dispositivos de atenção com a perspectivade tratamento e reabilitação psicossocial deve ser cautelosa e atentarpara o risco de repetição do modelo excludente do manicômio nomicroespaço do novo serviço. Ou seja, além da constituição de umaética de cuidados, é necessário estar atento para a desconstrução dasrelações, dos valores, dos comportamentos, das atitudes, decorrentesda concepção de negatividade da loucura" (FAGUNDES & LIBÉRIO, 1997;34).

Os cuidados com estes primeiros serviços locais de atenção psicossocial

foram necessários para consolidar um modelo assim definido:

"Os CAPS representam algo mais que uma mera alternativa ao modelohospitalar predominante, funcionando de forma a evitar as internaçõespsiquiátricas e diminuir sua reincidência, mas sobretudo, porpossibilitarem o desenvolvimento de laços sociais e inter-pessoais

97

essenciais para o estabelecimento de novas possibilidades de vida."(FAGUNDES E& LIBÉRIO, 1997; 33).

Em 1998 foi a vez da Ilha do Governador ter o CAPS Ernesto Nazaré e, no

ano seguinte, em Jacarepaguá, era inaugurado o CAPS Artur Bispo do Rosário e

em Bangu, o CAPS Lima Barreto e o CAPS Infanto-Juvenil (CAPSi) Pequeno

Hans, primeiro serviço local para o atendimento de crianças e adolescentes na

cidade, que foi seguido do segundo, em Jacarepaguá, o CAPSi Helena Santa

Rosa.

A figura abaixo mostra a distribuição destes dispositivos na cidade do Rio

de Janeiro e a projeção prevista para este ano. Na área de planejamento 3.2, o

CAPS previsto é a saída para um bairro próximo e de referência de um dos

serviços de atenção diária do Instituto Municipal Nise da Silveira, que serão

tratados adiante.

A distribuição dos serviços de saúde no município do Rio de Janeiro se faz

de maneira bastante desigual dentro das áreas de planejamento (APs) em que foi

dividida a cidade. Nas APs 1 (zona centro) e 2.1 (zona sul) está concentrada a

maioria dos serviços de saúde da cidade. Nas APs 2.2 (zona norte), 3.2 (Grande

Méier, onde está localizado o complexo do Engenho de Dentro) e 4 (Jacarepaguá

e Barra da Tijuca), a rede de saúde só não é suficiente pela pressão de demanda

das outras áreas, onde a escassez de serviços de saúde é dramática. Na zona

oeste (APs 5.1, 5.2 e 5.3, Bangu, Campo Grande e Santa Cruz, respectivamente),

98

AP 5.3 AP 5.2

AP 5.1

AP 3.3AP 3.1

AP 1

AP 2.2

AP 2.1

AP 3.2

AP 4

CAPS existentesCAPSi existentesCAPS projetados

o "vazio sanitário" é um problema crônico, num território de grandes distâncias,

com o agravante de possuir áreas de grandes concentrações populacionais

entrecortadas com paisagens rurais. Mais grave ainda é a situação sanitária do

subúrbio carioca (APs 3.1 e 3.3), que possui a maior concentração de habitantes

por metragem quadrada dentro de um território com os menores Índices de

Desenvolvimento Humano (IDH) da metrópole, onde são piores as habitações,

saneamento, serviços públicos de qualquer natureza e maiores os níveis de

violência em comunidades abandonadas pelo poder público.

A distribuição dos serviços de atenção diária de base territorial, do

Programa de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde, se fez dentro de

uma lógica de prioridade para as comunidades carentes, como pode ser

evidenciado na figura acima. Entretanto, apesar do efeito demonstrativo da

qualidade do atendimento,110 não há possibilidade de cobertura, mesmo com a

projeção de novos serviços. Os CAPS estão trabalhando com uma pressão de

demanda impossível de ser atendida. Para exemplo, tomemos a área de

planejamento do primeiro CAPS em funcionamento: a AP 3.3 possui uma

população de mais de 1 milhão e 200 mil habitantes, comportando, no mínimo,

seis serviços de base territorial.111

Apesar das dificuldades encontradas, o modelo proposto aponta para uma

mudança da atenção em saúde mental, antes centrípeta em direção ao hospital

psiquiátrico. O nível de satisfação do usuário com o sistema de saúde mental da

cidade parece estar colocado em dois extremos: satisfatório, para os que

conseguem ingresso no sistema; péssimo ou inalterado em relação à situação

anterior, para os que não têm acesso ao novo modelo.

Entretanto, é dentro deste planejamento estratégico, para a ocupação da

saúde mental da cidade, dentro do modelo de serviços de atenção diária de base

territorial, que acontece o conjunto de reformas atuais no complexo hospitalar do

Engenho de Dentro.

110 Dentre os indicadores de eficiência destes dispositivos, pode ser destacada a taxa de reinternaçõespsiquiátricas dos pacientes dos CAPS que teve uma queda significativa (Relatório de Atividades daCoordenação de Saúde Mental) e o nível de satisfação do usuário e familiares (LIBÉRIO, 1999).111 Em Trieste, Itália, calculou-se um serviço territorial para 70.000 habitantes. No Brasil tenta-se trabalharcom um máximo de 200.000 habitantes por serviço, o que exigiria um total de 30 serviços na cidade.

99

Engenho de Dentro

O Centro Psiquiátrico Pedro II, complexo hospitalar do Ministério da Saúde,

é municipalizado em janeiro de 2000. Neste momento, este complexo era

constituído por: um Bloco Médico Cirúrgico, prédio de oito andares com o

funcionamento de apenas duas enfermarias clínicas, com 30 leitos, uma

enfermaria psiquiátrica de crise, um ambulatório clínico, um ambulatório

psiquiátrico e a emergência psiquiátrica; a Unidade Hospitalar Adauto Botelho,

prédio de seis andares com duas enfermarias de agudos e quatro enfermarias de

pacientes crônicos; a Unidade Hospitalar Gustavo Riedel, prédio de três andares,

com uma ala para atendimento infanto-juvenil (enfermarias com 30 leitos e

ambulatório), outra ala para moradores com alguma autonomia e uma enfermaria

de pacientes crônicos; a Unidade Hospitalar Odilon Galotti, prédio de três

andares, com a maioria dos espaços desativados, com espaços ocupados por

projetos comunitários- o Centro Comunitário, contendo ainda um abrigo para

crianças da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social; o Pavilhão Braule

Pinto, prédio de dois andares e um anexo contendo uma escola para alunos

especiais (Escola Ulisses Pernambucano), um Núcleo de Artes e um Centro

Escolar, todos projetos da Secretaria Municipal de Educação, além de um

hospital-dia para crianças autistas; o Museu de Imagens do Inconsciente, prédio

de dois andares com o acervo e oficinas terapêuticas do Museu; o Espaço Aberto

ao Tempo, hospital-dia funcionando no antigo pavilhão infanto-juvenil; a Casa

d'Engenho, hospital-dia funcionando em duas casas do complexo; e o antigo

Hospital de Neuropsiquiatria Infanto-Juvenil, prédio de dois andares

completamente desativado.

Mesmo contendo apenas 350 leitos em espaços que, nos momentos de

pujança do manicômio, já possuíra mais de 1500 almas dentro de suas

enfermarias, cada prédio conservava sua autonomia, sua história, uma direção

100

herdeira da história de outras direções e uma equipe com saudades do passado.

Como exemplos, a equipe do projeto de atenção à infância e adolescentes

sonhava com a volta ao velho prédio de neuropsiquiatria. A Unidade Hospitalar

Gustavo Riedel, que agora hospedava o hospital infanto-juvenil, contava com

apenas uma enfermaria de pacientes crônicos (20 leitos), mas mantinha uma

direção com um gabinete com a mesma estrutura de quando a unidade tinha 200

leitos. A Unidade Hospitalar Adauto Botelho possuía enfermarias de pacientes

agudos, pacientes crônicos e um ambulatório de egressos funcionando como uma

unidade autônoma.

O processo de municipalização não foi bem recebido na instituição. Temia-

se a desativação do manicômio e do seu projeto, primeiro desde a sua vocação

imperial como monumento, depois na destinação do Centro Psiquiátrico como

referência nacional. O temor se justificava. Na posse da primeira direção na

instituição municipalizada foi explicitado que o Centro Psiquiátrico Pedro II deveria

deixar de ser um centro para que as ações centrípetas de saúde mental fossem

transformadas em movimentos centrífugos em direção à rede de saúde municipal

e de base territorial.112

Proposições estratégicas ainda no lado de dentro, mas que possibilitemações do lado de fora

Em setembro de 2000, o Centro Psiquiátrico Pedro II, através de decreto do

prefeito da cidade do Rio de Janeiro,113 passa a ser denominado Instituto

Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira. No mesmo momento, o prédio

do antigo Bloco Médico Cirúrgico passa a denominar-se Hospital Municipal de

Reabilitação, separando-se do complexo do Engenho de Dentro.114

Veremos a seguir a primeira versão da proposta de mudança decorrente do

processo de municipalização. O texto foi produzido antes da atual proposta de

112 Conferir vídeo "Solenidade de posse do Diretor do CPPII", de 17 de abril de 2000. Biblioteca do InstitutoMunicipal Nise da Silveira.113 Decreto "N" nº 18917 de 05/09/2000 publicado no Diário Oficial Municipal do dia seguinte.114 A publicação em Diário Oficial sobre a estrutura de uma nova unidade só vai acontecer em 16/01/2003,mas o Hospital Municipal de Reabilitação já vinha funcionando de forma autônoma.

101

mudanças na instituição. Apesar de longa, a citação integral das propostas

primitivas é necessária para a comparação com a realidade existente.

"A ruptura do modelo manicomial, inerente à estrutura organizacionaldo antigo CPPII, hoje é tarefa prioritária para o Programa de SaúdeMental da cidade do Rio de Janeiro, sob pena deste modeloultrapassado, mas de uma força histórica considerável, pôr em risco ahegemonia do modelo dos centros de atenção diária. Há um lugar,ocupado ainda pelo manicômio, que deve sofrer as transformaçõesnecessárias para a consolidação de um projeto da Reforma Psiquiátricano município. "A lógica do modelo das instâncias de departamentos entre internação,emergência e ambulatório traz em si a força centralizadora daenfermaria, do leito, para onde são drenados e, quase sempre,depositados os casos diagnosticados como mais graves. O próprionome, Centro Psiquiátrico, em contraposição ao Centro de Atenção,tem uma função simbólica que deposita na psiquiatria o seu podercentralizador de um saber sobre a doença, sem prestar a atenção queo doente requer(...)"Voltando a invenção em curso para desconstruir este hospitalpsiquiátrico:"A polêmica do nome: Nise da Silveira não precisa de apresentações.A psiquiatra rebelde foi peça de resistência dentro desta instituição.Vale lembrar que CPPII foi uma homenagem da ditadura militar aosanseios do império. Como instrumento de ditaduras (Vargas, CasteloBranco), as mudanças do nome desta instituição foram operadas pordecreto-lei. Na democracia o decreto-lei fica vazio e possível demudanças dependendo da alternância de grupos políticos no poder.Portanto, o nome hoje tem apenas uma importância simbólica:direciona um desejo de mudança. Talvez mais no nível interno: tomapartido entre práticas tradicionais e a Reforma."A importância histórica: O Centro Comunitário já vem organizandoum museu da história do Centro Psiquiátrico Pedro II: vasto materialfotográfico documentando construções de pavilhões, inaugurações,festas, enfermarias, além de galeria dos personagens históricos,diretores, visitantes; objetos de uso histórico: camisa de força,aparelhos de eletrochoque, seringas de insulinoterapia, balanças deprecisão, acervo da histopatologia (fetos, cérebros, órgão internos);móveis e camas que existiram no passado nas enfermarias; placas deinauguração de serviços, entre outros. A Reforma pressupõe umaruptura com o manicômio. A possibilidade de colocar o CPPII no museutambém é simbólica. Sabemos que as práticas asilares permanecemem vários setores da instituição e é nelas onde devemos operar adesconstrução.

102

"Inverter a Hierarquia Institucional: A lógica manicomial trabalha comporta de entrada sem porta de saída, conforme foi exposto no sistemade vasos comunicantes que tende a transbordar a instância dainternação. Ora, a Reforma Psiquiátrica pressupõe estreitar a porta deentrada, uma missão para os serviços de atenção diária que atuam apartir do território e abrir uma porta de saída através da consolidaçãode um programa de moradias. No Instituto temos em funcionamentoquatro serviços de atenção diária (dois de adultos, um de crianças eoutro de adolescentes)115, além das oficinas do Centro Comunitário edo Museu de Imagens do Inconsciente. Está sendo estruturada umaproposta de territorialização destes serviços para que tenhamautonomia e que sejam responsáveis pelo mapeamento e decisão damelhor forma de tratamento para sua clientela. Assim, dentro doterritório estabelecido, são estes serviços que devem regulamentar autilização da Emergência e da Internação, sendo os serviçossubstitutivos colocados para a clientela do território antes dooferecimento dos mecanismos tradicionais da porta de entrada. Poroutro lado, o Programa de Moradias (hoje responsável por pensões emoradias protegidas no espaço do Nise da Silveira, mas com umprojeto a ser implantado a curto prazo de Residências Terapêuticas nacomunidade) deve ser responsabilizado pelos moradores nasenfermarias de internação invertendo o fluxo hierárquico para aefetivação da porta de saída."A Responsabilidade no Território: O compromisso proposto é com orompimento do modelo manicomial para a implantação de programasdentro dos preceitos da Reforma Psiquiátrica. Reforma que tem umcompromisso com o território e com a atenção integral ao usuário dequalquer dispositivo de atenção. Dispositivos que possam ser criadospara tirar o cliente do circuito das instâncias do modelo tradicional, comsua característica centrista na enfermaria, no leito(...) "Encontrar a Porta de Saída: O Instituto Municipal Nise da Silveiratem hoje 300 leitos (longe já se vão os anos de mais de um milhar deinternos), dos quais a metade para a internação de curta e médiapermanência e a outra metade, de moradores.São 150 moradores, dosquais só 53 nos projetos de pensões e moradias assistidas internas.São quase cem pessoas morando em enfermarias de característicasmanicomiais. O Programa de Moradias hoje responde pelaregulamentação destes internos em busca de uma porta de saída. Aconstrução deste inventar já atende na forma de pensões protegidas,república de passagem e moradias independentes no espaço internodo Instituto. Estamos no caminho da construção de ResidênciasTerapêuticas na comunidade. Este Programa discute hoje atransformação de enfermarias em espaços residenciais protegidos para

115 Espaço Aberto ao Tempo, serviço de atenção diária com 180 clientes cadastrados; Casa d'Engenho, serviçode atenção diária que funciona como hospital-dia para 30 vagas diárias; Casa Cor, serviço de atenção diáriapara atendimento de crianças em parceria com uma turma especial da Secretaria de Educação que funciona noInstituto; Centro de Atenção Psicossocial para adolescentes iniciado no mês de abril/2001.

103

os idosos e para os que precisem de cuidados mais intensos: o desafioé a transformação do espaço arquitetônico das enfermarias para que orecorte espacial normativo possa ser substituído por um espaço daindividualidade que permita o fluir da temporalidade."Permear o Espaço da Instituição a Projetos Comunitários: OProjeto do Centro Comunitário vem sendo construído há quase umadécada. A condução do processo de desconstrução do hospitalpsiquiátrico hoje provoca a visibilidade destas ações que antes erammarginalizadas. Os trabalhos de dança, culinária, terceira idade e ofuncionamento da Rádio Comunitária, por exemplo, levam para omesmo espaço de trocas sociais a comunidade que mora no entornodo hospital e os clientes internos e externos. Dois eventos de grandeporte demonstram esta integração: o Bloco "Loucura Suburbana"composto de pacientes do Nise e de outros serviços de Saúde Mental,inclusive do interior do estado, com participação de alas dacomunidade de moradores, inaugurou este ano o Carnaval de rua, quepromete repetir nos próximos carnavais. Um show musical comconjuntos e composições de usuários do Nise e de outros serviços coma participação do compositor Lobão, coloriu o espaço cinzento dohospital numa noite memorável com a participação de moradores dosbairros vizinhos cujo acesso foi trocado por doações de móveis eutensílios para o Programa de Moradias. "A Visibilidade da História: O Museu de Imagens do Inconsciente,com um acervo de 350.000 obras que documenta o trabalho depesquisa da Dra. Nise da Silveira, não é conhecido dos cariocas.Visitantes estrangeiros e de outros estados o conhecem mais. Omódulo da Loucura, na Mostra do Descobrimento Brasil 500 Anosmostrou a importância deste trabalho. É proposta a organização deexposições permanentes abertas ao público, também nos finais desemana, e que constem no calendário turístico da cidade. O Museu daHistória do Centro Psiquiátrico Pedro II vem se organizando parareceber visitantes e pesquisadores. A Biblioteca do Centro de Estudoshoje está num espaço adequado para a pesquisa, possuindo obrasraras em edições originais do antigo Hospício de Pedro II."Entretanto, como estamos falando da difícil arte do inventar, aspropostas anunciadas não fazem parte de um roteiro de cumprimentoobrigatório. A avaliação diária e a certeza de que muito ainda se tempor fazer e o refazer de propostas são inerentes à desconstrução dohospital psiquiátrico. "Para um trabalho de tamanha envergadura, devemos ter no horizontea "utopia da realidade", conceito desenvolvido por Basaglia, emcontraponto à utopia-ideologia116, que permite transceder a realidadepara operar uma transformação institucional.

116 Esta seria a ideologia da transformação, mas que por não poder revelar as contradições de uma realidade,termina por justificar o imobilismo.

104

"O esforço que se fez aqui foi o de imaginar caminhos para atransformação, já que faz parte da utopia o imaginar. No entantosabemos que o caminhar nesta transformação faz o próprio caminho. Oque significa que estas propostas aqui defendidas são mutantes"(OLIVEIRA, 2002).

A intenção destas propostas, no entanto, parecia impedida pela estrutura

organizacional do manicômio. Esta estrutura mantinha o modelo arcaico em

funcionamento. A estrutura das diversas unidades hospitalares do Complexo do

Engenho de Dentro, baseada na história da instituição, impossibilitava a mudança

proposta. Isto é, a estrutura arcaica da forma de direção existente não permitia o

desenvolvimento do novo modelo. Era necessária a implantação de um novo

modelo na estrutura organizacional de direção do Instituto para que um novo

modelo clínico pudesse existir. E, se o direcionamento do modelo clínico fosse na

direção do território, na superação do manicômio, a estrutura organizacional

interna, na forma de gerir a instituição, deveria, ela mesma, possuir o paradoxo de

sua própria superação. Assim, a estrutura organizacional proposta deveria ser

datada, neste momento de transformação, permitindo a sua extinção a partir do

êxito de sua missão.

É neste sentido que acontece uma radical transformação na estrutura

organizacional do Instituto. Extinguem-se os cargos de diretores de unidades

hospitalares do Complexo do Engenho de Dentro, extinguindo-se os limites

geográficos e arquitetônicos do modelo arcaico da estrutura manicomial, e é

proposto um Conselho de Diretores de Programas Assistenciais, a partir da

proposta clínica para cada seguimento de projetos que seriam desenvolvidos no

território. Isto significa que cada Programa Assistencial passa a ser desenvolvido

dentro de uma fronteira clínica, e não arquitetônica e geográfica do modelo

arcaico anterior. E o êxito de cada Programa Assistencial proposto pressupõe a

extinção da estrutura organizacional existente.

Vejamos assim a formulação estratégica de cada programa existente:

1. Atenção Clínica: Ao longo da história da instituição, a constituição de

um Bloco Médico Cirúrgico no Engenho de Dentro (datado da década

105

de 40) propiciou uma verdadeira distorção na atenção às doenças

clínicas em pacientes psiquiátricos: um hospital clínico especializado

para loucos. A inserção dos pacientes da Instituição na rede de saúde

do município do Rio de Janeiro passou a ser o objetivo deste programa.

A transformação do Bloco Médico Cirúrgico no Hospital Municipal de

Reabilitação, que será tratada adiante, favoreceu a consolidação do

programa de atenção clínica dos pacientes da instituição na rede de

atenção à saúde da cidade.

2. Programa de Atenção Psicossocial: Sob a direção deste programa

foram subordinados o Ambulatório de Saúde Mental e os Hospitais-Dia:

Espaço Aberto ao Tempo, Casa d'Engenho e Centro de Convivência,

este último resultado da transformação do ambulatório de egressos da

antiga Unidade Hospitar Adauto Botelho em um Serviço de Atenção

Diária. Este Programa tem como objetivo a transformação dos

Hospitais-Dia em Centros de Atenção Psicossocial no território da Área

Programática 3.2 e a descentralização do Ambulatório Central do

Engenho de Dentro para a rede básica de saúde municipal da mesma

área, como será visto mais adiante.

3. Programa de Moradias: Enfermarias de pacientes crônicos, pensões

protegidas e lares abrigados foram referidas a este Programa,

independente da localização arquitetônica nas antigas unidades da

instituição. O Programa propõe considerar que os moradores do

Instituto, na sua maioria, são sujeitos para os quais ações executadas

em enfermarias psiquiátricas mais produzem efeitos iatrogênicos que de

saúde, e que as ações individualizadas com ênfase num programa

residencial terapêutico podem recuperar alguma auto estima, requisito

essencial para a saúde mental de cada um. Para este Programa,

enfermarias devem ser transformadas em alojamentos, em pensões

protegidas, até a saída para o território num Programa de "Serviços

Residenciais Terapêuticos em Saúde Mental," dos quais trata a Portaria

106 do Ministério da Saúde, de 11 de fevereiro de 2000.

106

4. Programa de Internação Psiquiátrica: A Emergência do antigo Pronto-

Socorro Psiquiátrico e todas as enfermarias de pacientes agudos do

Instituto ficaram subordinadas a uma mesma gerência, independente do

espaço físico ocupado na Instituição, com a finalidade de organizar uma

porta de entrada e uma porta de saída que se relacionem com os dois

programas anteriores e com a rede de ambulatórios e de CAPS da

cidade do Rio de Janeiro, respeitando os princípios de regionalização e

territorialização da atenção em saúde mental.

5. Programa de Atenção à Criança e ao Adolescente: Na gerência

deste Programa ficaram as ações dirigidas a esta clientela com uma

permanente interlocução com os outros programas da Instituição e com

a rede de ambulatórios e CAPSis do município do Rio de Janeiro.

6. Centro Comunitário: Programa responsável por reforçar as ações de

organizações não-governamentais e da comunidade organizada nos

programas da Instituição e na rede de saúde mental da cidade.

7. Museu de Imagens do Inconsciente: Projeto para que este museu,

único no mundo e reconhecido internacionalmente, ocupe um lugar de

destaque na história da psiquiatria brasileira.

8. Centro de Estudos: Projeto voltado ao treinamento, desenvolvimento e

formação de recursos humanos para a rede de saúde mental do

município.

Esta proposta foi fruto de um planejamento estratégico com o objetivo de

ações para: primeiro, criar uma estrutura organizacional na Instituição de forma

horizontal a partir de programas que se interpenetram; segundo, que esta

estrutura possa permitir a saída destes programas para o território, dentro do

Programa de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde, ou, no caso de

permanecerem neste espaço, construírem um novo território comunitário no lugar

do espaço asilar.

Antes de iniciarmos a última parte deste trabalho, duas preocupações

devem ser colocadas, já que são inerentes à elaboração de propostas dentro de

um movimento institucional em acontecimento, pertencentes à própria dinâmica

107

da mediação de modelos com a interação da realidade, que está em permanente

mutação, como alertou Milton SANTOS nas citações anteriores. Primeiro, deve-se

ter em consideração que "as propostas anunciadas não fazem parte de um roteiro

de cumprimento obrigatório. A avaliação diária e a certeza de que muito ainda se

tem por fazer e o refazer de propostas são inerentes à desconstrução do hospital

psiquiátrico". Segundo que, mesmo que o êxito das propostas possa vir a

acontecer, elas não necessariamente serão da forma como previstas na descrição

a seguir.

Um Engenho do Fora

Sendo ainda muito longo o caminho a percorrer para a superação do

manicômio, neste momento apresentamos um balanço do direcionamento em

curso na Instituição. As propostas apresentadas estão em consonância com as

deliberações da III Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em Brasília,

DF, entre 11 e 15 de dezembro de 2001, conforme seu Relatório Final.

A mudança da estrutura organizacional está possibilitando o momento de

transição atual entre o dentro e o fora da instituição. A própria intenção da

construção deste texto tem o sentido de permitir esta passagem, mesmo que

muitos ajustes sejam necessários à sua efetivação. Este trabalho pretende

registrar esta tentativa de mudança. Mesmo que ela não aconteça em decorrência

desta intenção, a Reforma Psiquiátrica no Rio de Janeiro, inevitavelmente, tem na

sua pauta a superação deste manicômio e de sua história.

Em resumo, transcrevemos a seguir, algumas conquistas transacionais

entre o dentro o fora em andamento na proposta de desconstrução.

Atenção em Clínica MédicaComo já foi relatado, o antigo Centro Psiquiátrico Pedro II, em setembro de

2000 foi denominado Instituto Municipal Nise da Silveira e separado do Bloco

108

Médico Cirúrgico, que passou a ser denominado Hospital Municipal de

Reabilitação, com outra vocação assistencial.

O antigo Bloco Médico Cirúrgico, com o sucateamento ocorrido no serviço

público nos anos 1960 e 70, já vinha em processo de desativação. Mesmo com a

última reforma de suas instalações, ocorrida na década de 80, na intenção dos

reformistas da época de municipalizarem a unidade para um atendimento aberto à

comunidade, ele nunca recebeu recursos humanos que permitisse seu pleno

funcionamento e nem interessou às autoridades municipais. Vinha sendo

desativado pelo desuso e por falta de proposta técnica. Tinha duas enfermarias

para atendimento aos pacientes psiquiátricos internados no antigo CPPII e um

ambulatório com algumas especialidades, que existiam no interesse dos médicos

e não da demanda. Internava apenas os pacientes psiquiátricos com

intercorrências clínicas. Num estudo realizado durante o primeiro semestre de

2000 evidenciou-se que o índice de óbitos nas suas enfermarias estava em torno

de 30%, níveis encontrados em centro de internação intensiva de alta

complexidade. Decidiu-se, na ocasião, que os pacientes psiquiátricos com

intercorrência clínica deveriam ser atendidos na rede de saúde comum aos

usuários não internados na psiquiatria. Mas, para que esta proposta pudesse ser

viável, era necessário o desaparecimento deste dispositivo manicomial histórico: o

hospital clínico para internar loucos. E, enquanto esta desativação não ocorreu, a

internação dos loucos e doentes físicos continuava a acontecer por uma pressão

interna e externa. Interna, pela pressão histórica do "sempre assim será". Externa,

pela existência do dispositivo especializado.

Ora, há anos a comunidade já aprovara no Conselho Distrital da Área de

Planejamento 3.2 a transformação do antigo Bloco Médico em um hospital de

apoio ou de reabilitação. Com a municipalização do Complexo do Engenho de

Dentro acontecia a possibilidade de uma ação política para a implementação da

proposta. E assim nascia o Hospital Municipal de Reabilitação, destinado a

doentes em recuperação cirúrgica que necessitassem de reabilitação física.

Mesmo que esta proposta ainda não tenha acontecido em sua plenitude (ele

continua com o mesmo número de leitos e com falta de investimento para a

consolidação da proposta), a mudança de seu perfil obrigou a psiquiatria buscar

109

na rede de saúde da área a solução para os problemas de intercorrências clínicas

dos pacientes internados.

Com as dificuldades iniciais na mudança de uma prática historicamente

determinada, hoje podemos dizer que a atenção às intercorrências dos pacientes

internados na psiquiatria está consolidada na rede de saúde da área e ocorre de

forma natural.

Com a extinção de um dispositivo inoperante acontecia uma transformação

na assistência clínica e cirúrgica dos pacientes psiquiátricos internados, mudando,

sobremaneira, a qualidade do cuidado.

A conclusão desta ação exitosa, interferindo na própria percepção dos

serviços de saúde em relação ao paciente psiquiátrico, reforçou a intensidade e

implementação dos outros programas.

Atenção PsicossocialA organização de uma "porta de entrada" para o atendimento dos casos de

emergência e de pronto atendimento impôs, como missão, a responsabilidade

pelo atendimento integral em saúde mental no território da área de planejamento

3.2 (Grande Méier, composto pelas XIIª, XIIIª e XVIIIª regiões administrativas, com

uma população de aproximadamente 600.000 habitantes).

Dentro desta organização, os três Hospitais-Dia foram sub-regionalizados

dentro da área programática, cada um ficando responsável por uma sub-região,

conforme visualização na figura abaixo. A proposta desta divisão prevêr a saída

dos serviços para a área geográfica de sua responsabilidade. Neste momento, o

primeiro Hospital-Dia que sai para a comunidade (e assim assume o seu papel de

um Centro de Atenção Psicossocial) é o Espaço Aberto ao Tempo, que está

sendo transferido para o bairro do Lins, ficando localizado no território da clientela

que a ele já está sendo referida.

Como conseqüência à descentralização do ambulatório da instituição na

rede básica de saúde do município, existe a proposta de sua deistribuição

conforme a territorialização, visualizada na figura abaixo, nos postos e centros de

saúde hoje existentes na rede.

110

Com esta proposta, em fase de implantação, temos uma cobertura

territorial em saúde mental, na comunidade. O complexo do Engenho de Dentro

derrama-se para fora, na proposta de atenção territorial e descentralização dos

serviços presos na história do manicômio.

Esta ocupação territorial, prevista no mapa acima, em relação aos

ambulatórios, não necessariamente ocupará todos os pontos potenciais indicados,

mas se dará na medida das possibilidades e demandas. De qualquer forma, o

planejamento estratégico em discussão propõe uma ocupação territorial e

integração destes serviços à rede de saúde mental do município.

No espaço institucional, a proposta pretende a permanência de um CAPS

referenciado à sua população adstrita, entre eles os moradores (denominação

para os antigos pacientes crônicos) que permanecerão na instituição dentro do

programa de moradias, que será examinado na seqüência.

Também o ambulatório nuclear, que restará dentro da instituição, na

proposta estratégica, terá uma missão diferenciada dos atuais serviços

ambulatoriais. Sua missão será, prioritariamente, examinar a situação dos

111

Espaço Aberto ao TempoGrande Méier: 235.959 hab.

Casa d’EngenhoInhaúma: 215.361 hab.

Centro de ConvivênciaEng. de Dentro: 113.511 hab.

Postos de Saúdeou PAM

pacientes que estão sendo internados, para o encaixe deles, caso a caso, na rede

de atenção psicossocial da cidade.

Numa proposta em construção, como já foi sinalizado, os modelos deverão

ser submetidos a um teste de realidade com os ajustes necessários. O essencial

nesta construção é a descentralização dos serviços do interior do antigo espaço

manicomial para o território comunitário e o preenchimento deste espaço por

serviços não exclusivos aos loucos, como no antigo manicômio, mas serviços de

atenção à comunidade que incluam ações em saúde mental.

Programa de moradias Seguindo as recomendações da legislação em vigor (Portaria MS

106/2000,117 bolsa auxílio-desospitalização118), a instituição vem trabalhando em

três frentes para a ressocialização possível de parcela de sua clientela de

pacientes antes ditos crônicos.

Primeiro, através da bolsa auxílio-desospitalização, com reintegração de

alguns pacientes em suas famílias, proposta que tem um limite, dado o

rompimento de laços afetivos, sociais e familiares provocados por um longo

período de internação no antigo modelo manicomial.

Segundo, a mesma bolsa possibilitou a pacientes com um maior grau de

autonomia partirem para o aluguel de casas, sendo assistidos por visitas

domiciliares do Programa de Moradia da instituição e recebendo atenção nos

serviços territoriais em saúde mental. Mesmo não sendo este um número

expressivo quantitativamente, é surpreendente o grau de autonomia alcançado

por pacientes com mais de trinta anos de internação psiquiátrica.119

117Cria e regulamenta o funcionamento dos "Serviços Residenciais Terapêuticos". "Desde a 2ª ConferênciaNacional de Saúde, realizada em dezembro de 1992, já se apontava a importância estratégica, para areestruturação da assistência psiquiátrica, da implantação de lares abrigados, agora mais apropriadamentedesignados de serviços residenciais com função terapêutica, parte que são do conjunto de cuidados no campoda atenção psicossocial. Esta portaria tem um papel crucial na consolidação do processo de substituição domodelo tradicional, pois possibilita desenvolver uma estrutura que contrapõe-se à tão propalada, e para algunsinsubstituível, 'hospitalidade' do hospital psiquiátrico" ( MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002; 89). 118 Lei nº 3400 de 17 de maio de 2002, "Cria a Bolsa de Incentivo para Assistência, Acompanhamento eIntegração fora de unidade hospitalar de paciente portador de transtorno mental com história de longapermanência em unidade hospitalar psiquiátrica".119 Aqui autonomia não leva em consideração o quadro clínico psiquiátrico, mas o nível de relações alcançadasna comunidade. Sobre o conceito de autonomia ver TYKANORI (1996).

112

Em terceiro lugar, a combinação da bolsa com a instituição de residências

terapêuticas, financiadas pelo instrumento da Portaria 106/2000, vem

possibilitando a saída de um número maior de pacientes longamente

internados.120

Entretanto a grande maioria de moradores continua a ocupar espaços de

enfermaria na instituição. Para estes foi proposta uma reformulação arquitetônica

de uma unidade da instituição, projeto aprovado, aguardando a liberação de

recursos, e detalhado numa tese de mestrado da arquiteta Maria Paula Zambrano

Fontes (FONTES, 2003), autora do projeto.

Sobre a requalificação dos espaços do antigo pavilhão Adauto Botelho a

autora escreve:

"Quanto ao pavimento tipo, o programa fornecido pela Instituição já seencontrava bastante definido, compondo-se, basicamente, daconcepção dos apartamentos, no lugar das atuais enfermarias. A ele foiacrescentada a ampliação do número de apartamentos, eliminando osambientes atualmente destinados às equipes. Propomos que asequipes ocupem apartamentos comuns, iguais aos pacientes, de modoa permitir uma maior integração entre os clientes e funcionários,reduzindo a sensação de hierarquia entre eles. Desenvolvemos,também, diferentes tipos de apartamentos, de modo a flexibilizar a suaocupação. Foram criados apartamentos de um e dois quartos, a seremocupados por duas a quatro pessoas."Os apartamentos possuirão uma pequena copa, para que os clientespossam, de acordo com suas condições de autonomia, preparar suaspróprias refeições."Foi criada uma área central de convívio e refeitório (para os clientesque não quiserem utilizá-la, haverá espaço para refeições nosapartamentos), já que as alas não terão mais as portas de grades nasua entrada. O espaço das circulações se encontrará livre, integrado àsduas alas de moradias."Cada ala contará, em sua extremidade, onde atualmente se localiza obanheiro coletivo, com uma área de serviço, onde os moradorespoderão proceder aos cuidados com suas roupas."O dimensionamento dos vãos das portas e ambientes, especialmenteos banheiros privativos dos apartamentos foi projetado segundo asnormas da ABNT para acessibilidade. Os banheiros deverão receber,conforme a necessidade, equipamentos para portadores dedificuldades de locomoção, como barras de apoio e bancos.

120 A primeira residência, para quatro ex-pacientes, foi viabilizada em outubro de 2003. Nesta primeira etapajá há liberação de recursos para mais três residências terapêuticas, em fase de implantação.

113

"Durante a pesquisa de campo, foi observado que algumas clientes nãogostam de descer ao térreo para atividades, que outras gostam derealizar trabalhos manuais, e que algumas atividades, comomusicoterapia, às vezes são realizadas nos halls dos pavimentos. Poristo, foi criada, por pavimento, na área central, uma oficina, onde estasatividades possam ser realizadas com mais conforto."Foi eliminado o posto de enfermagem, considerado desnecessário,segundo alguns entrevistados, sendo mantida apenas uma sala deserviços, que também poderá ser utilizada para as reuniões dasequipes" (FONTES, 2003): 155/6).

Esta longa citação sobre a requalificação dos espaços destinados a

moradias internas mostra o refinamento do projeto elaborado por FONTES, que

partiu de uma discussão interna com os funcionários e pacientes a quem o projeto

se propõe a abrigar.

No proposta de restruturação assistencial este prédio não será destinado

exclusivamente a moradores egressos do hospital psiquiátrico, como será

explicitado na seqüência.

A projeção futura para o Instituto Municipal Nise da Silveira

O projeto de ocupação do espaço institucional passa por uma reformulação

do projeto assistencial. A radicalidade da descentralização imposta na

desmontagem manicomial impõe, por sua vez, uma nova destinação da missão

organizacional das formas de ocupação do espaço. Da mesma forma que a

incorporação dos programas de saúde metal pela rede de saúde e na comunidade

está sendo proposta aos serviços que estão sendo colocados fora do espaço

institucional, dentro da instituição, os programas de saúde metal que ficam têm de

incorporar outros programas de saúde, sociais, educacionais, de habitação, lazer,

esportivos e comunitários em geral.

As instituições totais são autônomas, prescindem de relações exteriores,

bastando a si mesmas, o que tira a autonomia dos seus habitantes. A autonomia

do sujeito está relacionada ao grau de dependência às suas relações sociais,121 o

121 Sobre autonomia enquanto dependência de relações, consultar TYKANORY (1996).

114

que tira a autonomia da instituição e força a sua interação ao ambiente. A

dependência institucional possibilita a autonomia dos seus freqüentadores, que se

torna maior na dependência de relações externas.

Esta compreensão leva inevitavelmente a abertura do espaço da instituição

para projetos além dos que exclusivamente tratam o saber psiquiátrico. Até

porque o conceito de saúde metal não pode ser reduzido a um campo do saber,

mas, inevitavelmente, propõe a participação de vários saberes e interações com

as relações sociais pertencentes à vida em comunidade.

Dentro desta perspectiva e numa projeção futura, a saída de vários

serviços para a composição da rede de saúde mental da cidade, direção que está

sendo seguida, não esvazia a missão institucional do Instituto Municipal Nise da

Silveira. Mas, é necessária a requalificação do seu papel. Uma redefinição

institucional, dentro da mudança de sua função histórica, passa a fazer parte de

um planejamento estratégico voltado a dois campos de ação: adequação de

serviços complementares para o desenvolvimento dos projetos da rede de saúde

mental no município, seja no campo da pesquisa histórica, recuperando a

documentação pertencente à história da psiquiatria, ou da formação de recursos

humanos e supervisão para um melhor funcionamento da rede, ou, ainda, na

prestação de serviços que não possam passar, de imediato, para a rede de saúde

mental municipal. No outro campo de ação temos a inter-setorialidade da

instituição com projetos de outras secretarias, proposta que no município do Rio

de Janeiro convencionou-se chamar de macro-função,122 além da interação com

projetos comunitários e da sociedade civil organizada.

Campo de ações inter-setoriais:De certa forma, na história recente da instituição podemos encontrar um

embrião da proposta de inter-relações: a existência de um abrigo para menores

pertencente à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), o

funcionamento de uma escola para alunos especiais, um Núcleo de Artes e Clube

122 No âmbito da Prefeitura do Rio de Janeiro a macro-função é entendida como um somatório de esforços dediferentes secretarias municipais para uma ação comum em um determinado problema. Como exemplo pode-se falar do projeto Favela-Bairro, já que numa intervenção comunitária é necessária a discussão dosaneamento, habitação, educação, esporte e lazer, saúde, etc., como parte do mesmo problema, juntando nestaação na comunidade diversas esferas do poder público com suas secretarias específicas.

115

Escolar, serviços da Secretaria Municipal de Educação (SME), o recém-criado

Hospital Municipal de Reabilitação da SMS e, ainda, as diversas entidades

comunitárias e sociais que compõem o Centro Comunitário, já permeiam o espaço

institucional.

Entretanto, avançar na proposta de inter-relações significa ampliar estas

ações para outras atividades e criar um "condomínio" gerencial, superando as

ações isoladas, para que as atividades sejam integradoras e os projetos se inter-

relacionem de forma a constituírem ações inter-setoriais. A ampliação destas

ações permite parcerias as mais diversas. O Museu de Imagens do Inconsciente e

seu rico acervo, assim como os arquivos da história da psiquiatria, permitem uma

parceria com a Secretaria Municipal das Culturas (SMC) para uma melhor

divulgação e utilização pela comunidade. O projeto de moradias internas permite

uma parceria com a Secretaria de Desenvolvimento Social (SMDS) para a

implantação de abrigos destinados a populações marginalizadas, não exclusivas

do campo do saber psiquiátrico. Os projetos de ensino e pesquisa permitem

ampliar parcerias com Universidades e propiciar campo para pesquisa acadêmica.

A comunidade do entorno e os clientes do Instituto solicitam a implantação de um

parque esportivo, parceria possível com a Secretaria Municipal de Esporte e Lazer

(SMEL).

O campo de ações inter-setoriais é um projeto em construção, que tem um

viés de ocupação do espaço público e outro para ações conjuntas no campo da

saúde mental, não podendo ser projetado em detalhamento futuro. O campo em

construção permite ações inter-setoriais de acordo com as necessidades

estabelecidas no processo.

Adequação de serviços complementares à rede de saúde mental: A Emergência Psiquiátrica Especializada e a Enfermaria de Crise são

dispositivos descendentes do manicômio. Hoje é consenso que a Emergência

Psiquiátrica deve ser integrada à Emergência Clínica Geral e que a Enfermaria

Psiquiátrica deve ser acoplada aos Hospitais Gerais (DELGADO, 1997-A, BRASIL,

1982). Entretanto, presos à história do manicômio no Rio de Janeiro, estes

dispositivos especializados ainda perdurarão por um período considerável,

116

mormente seja examinada a situação de dificuldades por que passa os hospitais

gerais no município. Esta proposta, sem dilemas no campo da saúde mental,

encontra forte resistência na rede de saúde hospitalar. As dificuldades por que

passam os hospitais gerais não permitem esta passagem necessária à construção

de uma rede de saúde mental que, no momento, possa prescindir da

especialização e fazer acontecer a proposta da Reforma Psiquiátrica brasileira

com a radicalidade do sonho "por uma sociedade sem manicômios".

Enquanto perdure a Emergência Especializada e as Enfermarias de Crise

no Instituto Municipal Nise da Silveira, a proposição estratégica pressupõe um

serviço pequeno, sendo vigilante nas suas práticas antimanicomiais, estando em

permanente reavaliação e estando pronto para a absorção na rede de saúde em

geral logo que possível. A proposição estratégica deve levar em conta seu caráter

provisório e a vigilância para que seu fim seja a meta.

No espaço do Instituto algumas moradias, na forma de lar abrigado, serão

viáveis conforme aconteceu na reforma italiana em Trieste.

O Museu de Imagens do Inconsciente com o seu novo projeto

arquitetônico, já aprovado, tem no espaço do Instituto um lugar de destaque. Na

proposição estratégica, o espaço para um Museu da História da Psiquiatria e um

Centro de Pesquisa que abrigue a biblioteca, prontuários e livros de ocorrências

que documentem as práticas da história psiquiátrica devem ocupar o projeto de

desinstitucionalização do antigo Hospício de Engenho de Dentro.

Finalmente, o Centro de Estudos deve ter caráter formador e de supervisão

dos projetos assistenciais desenvolvidos na rede de saúde mental do município.

117

O provisório da conclusão...

Este ensaio não se propõe conclusivo. Nem o caminho percorrido pretende

um desfecho inevitável. São vários os destinos apresentados ao manicômio que

procura seu fim. Aqui importa apontar saídas para o fim.

Tentando concluir este trabalho, sabidamente de uma forma provisória,

deixamos para uma reflexão futura, ou retomada desta empreitada, que a história

da psiquiatria no Brasil marcou de uma forma indelével a constituição do Hospício

do Engenho de Dentro. As proposições estratégicas para a sua superação devem

levar em conta esta marca.

Dois momentos trazem para a discussão de sua superação marcas

históricas de profunda intensidade. Um pouco ao longe temos a constituição do

Hospício do Engenho de Dentro com uma história própria que tem em Gustavo

Riedel seu marco fundador simbólico. O primeiro Ambulatório de Doenças

Mentais da América Latina, o Rivadávia Correa, e a constituição de residências

heterofamiliares são marcos do Engenho de Dentro. Apesar dos impedimentos

concernentes à história da psiquiatria e à hegemonia do pensamento eugênico,

como vimos no terceiro capítulo, são projetos para fora do manicômio,

precursores do ambulatório na rede, dos centros de atenção psicossocial e de um

programa de moradias e lares abrigados. O desenvolvimento do pensamento

psiquiátrico na época tornou possível a absorção do Hospício de Pedro II pelo

Hospício do Engenho de Dentro. O projeto da Praia Vermelha já vinha em

declínio, após o período de Juliano Moreira, e o momento histórico permitiu a

hegemonia do projeto do Engenho de Dentro e a incorporação do antigo Hospício

de Pedro II.

Num momento mais recente, a Reforma Psiquiátrica brasileira pecou na

superação do manicômio. Primeiro com uma proposta tênue de humanização na

década de 1980; depois, com a desistência dos atores para o movimento da

superação. A resistência burocrática permitiu a recuperação dos princípios

manicomiais.

118

Neste momento presente o que se propõe é uma reformulação estratégica

de superação, aproveitando a municipalização de um hospital federal, para que os

serviços existentes possam, de fato, serem absorvidos pela rede de saúde mental

da cidade, tirando do manicômio a organização e execução das ações em saúde

mental.

Os primeiros passos nesta direção coincidem com o provisório desta

conclusão. O que está proposto neste ensaio é a direção que o acúmulo de

conhecimento diz ser possível, não quais os caminhos que serão percorridos. Não

se pode perder o tempo de plantar para que a colheita seja farta. E o tempo de

sonhar "por uma sociedade sem manicômios" permite o devaneio poético:

"Minha fé em todas as colheitas do futuro se afirma no presente. Edeclaro, por muito que se saiba, que a poesia é indestrutível." (PLABO

NERUDA)

119

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