engenharia e ciÊncia no brasil -...

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1 ENGENHARIA E CIÊNCIA NO BRASIL Este artigo questiona a situação da engenharia no Brasil e a inte- ração entre ciência e engenharia. Aborda a geração, preservação, difu- são e aplicação do conhecimento, e a importância de cuidar convenien- temente de todo o processo. Propõe a criação de estrutura voltada para o fortalecimento da engenharia nacional e enfatiza a necessidade de unir governo, engenheiros e cientistas brasileiros na corrida global pela ciên- cia, tecnologia e inovação. 1 – ENGENHARIA Imagine-se a bordo de um avião a caminho da cidade de São Paulo. Você se dá conta de que está voando, com segurança, dentro de uma enorme estrutura muito mais densa que o ar. Isto é engenharia! A porta da cabine se abre e você observa uma série de painéis, controles, medidores e atuadores que controlam o funcionamento das turbinas, dos radares, das comunicações, dos equipamentos de navega- ção eletrônica... Engenharia! O avião está sendo acompanhado e orien- tado de terra através de um complexo sistema de controle do espaço aéreo... Engenharia! À volta, num ambiente iluminado e refrigerado, vá- rios passageiros sentados em poltronas, carregando computadores e seus programas, celulares e seus aplicativos... Engenharia!

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ENGENHARIA E CIÊNCIA NO BRASIL

Este artigo questiona a situação da engenharia no Brasil e a inte-ração entre ciência e engenharia. Aborda a geração, preservação, difu-são e aplicação do conhecimento, e a importância de cuidar convenien-temente de todo o processo. Propõe a criação de estrutura voltada para o fortalecimento da engenharia nacional e enfatiza a necessidade de unir governo, engenheiros e cientistas brasileiros na corrida global pela ciên-cia, tecnologia e inovação.

1 – ENGENHARIA

Imagine-se a bordo de um avião a caminho da cidade de São Paulo. Você se dá conta de que está voando, com segurança, dentro de uma enorme estrutura muito mais densa que o ar. Isto é engenharia!

A porta da cabine se abre e você observa uma série de painéis, controles, medidores e atuadores que controlam o funcionamento das turbinas, dos radares, das comunicações, dos equipamentos de navega-ção eletrônica... Engenharia! O avião está sendo acompanhado e orien-tado de terra através de um complexo sistema de controle do espaço aéreo... Engenharia! À volta, num ambiente iluminado e refrigerado, vá-rios passageiros sentados em poltronas, carregando computadores e seus programas, celulares e seus aplicativos... Engenharia!

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Começando a descer, à medida que se aproxima do destino, da janela do avião pode-se observar no solo estradas, fazendas, tratores, silos, sistemas de irrigação, de fertilização, colheitadeiras... Engenharia! Em seguida, indústrias, caminhões, túneis, pontes, sistemas de distri-buição de energia... Engenharia! Depois, milhares de automóveis, ôni-bus, casas e edifícios de apartamentos com todos os recursos modernos de conforto e segurança. Tudo é engenharia!

Se a engenharia é tão importante para a sociedade, por que, no Brasil, pouco se fala dela? Por que poucos a entendem, a procuram e a valorizam? Por que formamos poucos engenheiros num país tão grande, e por que tão poucos permanecem na carreira? Por que os empresários e empreendedores brasileiros são tão dependentes da engenharia es-trangeira? Por que os engenheiros no Brasil são tão raramente ouvidos na formulação de políticas públicas e na decisão dos grandes investi-mentos? Por que não há um órgão da administração pública dedicado à engenharia?

2 – CIÊNCIA E ENGENHARIA

Para explicar os fenômenos naturais a que estava sujeito e justifi-car suas consequências, o homem inicialmente criou mitos, deusas e deuses, como Apolo, que carregava o sol em sua carruagem, todos os dias. Os intermediários vieram logo em seguida, posando de místicos, sacerdotes e sacerdotisas. Tentavam justificar, com relatos muitas vezes fantasiosos, aquilo que a inteligência humana da época não conseguia explicar.

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A filosofia e os filósofos, os “amigos da sabedoria” ou os que têm “amor pelo saber”, se distinguiram das religiões e de seus sacerdotes por usarem argumentos racionais (como a intuição e a lógica), abando-nando explicações místicas ou divinas na abordagem dos problemas re-lacionados à existência, ao conhecimento e à verdade.

Em paralelo a esse desenvolvimento, armas, casas, templos, pirâ-mides, estradas, portos, navios, aquedutos e incontáveis outras obras foram construídas pelos primeiros engenheiros, que ainda não tinham esse nome, utilizando conhecimentos, materiais e ferramentas então disponíveis.

O método científico e sua sistemática para obter conhecimento, formalizados no início do século XVII, ensejaram o aparecimento da ci-ência e dos cientistas, e a realização de cuidadosas pesquisas com a finalidade de alcançar compreensão mais clara a respeito da natureza, incluindo suas dimensões física, matemática e social.

A partir dos conhecimentos acumulados, empíricos e científicos, foi possível desenvolver novas ferramentas, materiais e conhecimentos prá-ticos (engenharia) para criar “coisas” (engenharia) destinadas a atender

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necessidades da sociedade (incluindo os equipamentos e recursos indis-pensáveis ao avanço da própria ciência). Os dedicados a essa nobre ta-refa têm sido nomeados engenheiros.

A expressão “Ciência e Engenharia” passou então a lembrar os cientistas, que buscam ampliar o conhecimento sobre a natureza, e os engenheiros, voltados à aplicação desses conhecimentos. Ciência e en-genharia, de certa forma, apontam em direções opostas: ciência observa um sistema físico real, prático, e busca desenvolver um modelo descri-tivo, teórico; engenharia parte de um modelo descritivo e busca desen-volver um sistema físico.

Com o passar do tempo, a ciência e os cientistas conquistaram a confiança da sociedade e de seus dirigentes. Um forte indicador dessa confiança foi a criação da “Academia Nacional de Ciências” dos EUA (Na-tional Academy of Sciences – NAS), pelo presidente americano, durante a Guerra da Secessão, para favorecer a União com o enorme diferencial de conhecimentos acumulado no norte do país, especialmente na área de Boston (Harvard havia sido criada duzentos e trinta anos antes).

No Brasil, a Academia Brasileira de Ciências – ABC foi criada em 1916, com o nome de Sociedade Brasileira de Ciências, não pelo Go-verno, mas, por iniciativa privada de professores da Escola Politécnica do Rio de Janeiro.

A “Academia Nacional de Engenharia” dos EUA (National Academy of Engineering – NAE) foi criada em meados do século XX, a partir da já consolidada NAS, e por sua iniciativa.

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No Brasil, a Academia Nacional de Engenharia foi criada em 1991, por iniciativa privada de renomados engenheiros, até hoje sem vínculo forte com a ABC nem apoio governamental.

3 – CIÊNCIA E TECNOLOGIA

A Economia tem influenciado a sociedade de maneira profunda e variada, nos últimos decênios. Por sua influência foi projetada a expres-são “Ciência e Tecnologia”, de abrangência limitada e fácil aceitação, que se baseia no valor econômico do conhecimento.

Ciência é considerada como o conjunto organizado dos conheci-mentos relativos ao universo objetivo, envolvendo todos os seus fenô-menos, quer naturais ou comportamentais. Tecnologia, por sua vez, é entendida como o conjunto organizado de conhecimentos de qualquer origem – científicos, empíricos ou intuitivos – empregados na solução de problemas práticos (engenharia).

A tecnologia de base científica, algumas vezes chamada de ciência aplicada (ou de ciência de engenharia), é o meio-termo entre ciência e tecnologia. Requer, para seu desenvolvimento, o trabalho conjunto e integrado de engenheiros e cientistas.

Tanto ciência quanto tecnologia são definidos apenas como con-juntos organizados de conhecimentos. O conhecimento científico, em princípio, tem caráter universal e pode ser considerado um patrimônio de toda a humanidade. Quem alcança novos conhecimentos científicos não os guarda para si ou para os seus; os divulga e os submete à crítica e aos testes de seus pares.

O conhecimento tecnológico, por outro lado, tem valor econômico. É vinculado a uma determinada realidade e se identifica com interesses e aspirações locais ou regionais. Novos conhecimentos tecnológicos (en-genharia) são guardados a sete chaves, têm muito valor e dão origem a imediatas solicitações de patentes.

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4 – VALORIZAÇÃO DA GERAÇÃO DO CONHECIMENTO, APENAS

No Brasil, a expressão “Ciência e Tecnologia” conquistou a política e a administração pública no século XX. Como exemplo, o CNPQ, Con-selho Nacional de Pesquisas (1951), foi transformado em Conselho Na-cional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico; e em 1996 foi criado o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia – CCT.

Ou seja, o País criou e promoveu instituições nacionais de alto nível voltadas para a obtenção de conhecimentos. Infelizmente, ne-nhuma iniciativa semelhante foi dedicada à difusão e à aplicação desses conhecimentos. Conhecimento sem aplicação pode ser um desperdício. De tempo e de recursos. E quem aplica os conhecimentos para criar “coisas” que atendam às necessidades da sociedade é a Engenharia!!!

Consciente dessa necessidade de aplicação do conhecimento em benefício da sociedade, o Executivo sancionou a Lei 10.973, de 2004, que dispõe sobre incentivos à inovação (engenharia), e o Senado Fede-ral e a Câmara dos Deputados criaram suas Comissões de Ciência, Tec-nologia, Inovação, Comunicação e Informática – CCTCI e CCT, acres-centando “inovação, comunicações e informática”, alguns dos braços da engenharia, à expressão “ciência e tecnologia”.

Em 1985 foi criado, no âmbito do Executivo Federal, o MCT, Minis-tério da Ciência e Tecnologia. Em consequência da Lei acima citada e em razão das devidas preocupações com a aplicação dos conhecimentos gerados, o MCT foi transformado em MCTI - Ministério da Ciência, Tec-nologia e Inovação, em 2011. Hoje, 2017, temos o MCTIC, Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, com o acréscimo de mais aplicação aos conhecimentos.

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5 – VALORIZAÇÃO DA APLICAÇÃO DO CONHECIMENTO

Tudo indica que está amadurecendo o entendimento de que de nada adianta ter conhecimento sem difundi-lo, usá-lo e aplicá-lo. E que a necessidade de criar novos sistemas aciona e motiva a busca pelo conhecimento adequado. Surge então a oportunidade de se criar um setor nacional que cuide da engenharia, e a Academia Nacional de En-genharia precisa se empenhar e contribuir seriamente para esse desfe-cho.

Como comentado ao longo do artigo, o conceito de Engenharia é amplo, abrange tanto a tecnologia quanto inovação, e é fundamental para a solução dos problemas nacionais e regionais de comunicações, transportes, moradia, energia, computação, controle, segurança, defesa e inúmeros outros.

Medidas relativamente simples seriam: renomear o CCT para “Con-selho Nacional de Ciência e Engenharia”; e transformar o MCTIC em “Ministério da Ciência e da Engenharia”.

É certo que nada se altera com uma simples mudança de nomes. Seria necessário que essas instituições passassem a cuidar de todo o processo de geração, preservação, difusão e aplicação do conhecimento. Suas responsabilidades incluiriam o fortalecimento da engenharia no Brasil por meio de medidas viabilizadoras, como:

- criação de incentivos para que os empresários utilizem a enge-nharia brasileira em seus empreendimentos, em lugar de importar en-genharia pronta - contribuindo para o desenvolvimento sócio econômico e a autonomia tecnológica do País (Artigo 219 da CF);

- estímulos para que os centros, instituições e escritórios de pro-jetos e engenharia dirijam suas demandas de novos conhecimentos para a comunidade nacional de ciência e tecnologia - gerando oportunidades para que essa comunidade melhor focalize os problemas brasileiros;

- orientação a engenheiros e cientistas brasileiros para que, em conjunto, participem da corrida global pela ciência, tecnologia e inova-ção – em especial, integrando projetos, bolsas de estudo e estágios às necessidades previstas para a execução de grandes obras públicas;

- eliminação do déficit de engenheiros e de professores de enge-nharia, melhoria da qualidade e combate à evasão dos cursos de enge-nharia no Brasil;

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- garantia da qualidade e preservação da capacitação arduamente conquistada por engenheiros, empresas e instituições brasileiras, em di-ferentes especialidades; e

- debate, definição, priorização e divulgação dos grandes desafios da engenharia brasileira.

O Senado e a Câmara também dariam mais abrangência e objeti-vidade aos trabalhos se renomeassem suas comissões para “Comissão de Ciência e Engenharia”, para que deliberassem sobre todos os aspec-tos do conhecimento, desde sua geração até sua preservação, difusão e aplicação.

Interessante lembrar que, no momento, para cada 10 mil habitan-tes, são formados anualmente 10 engenheiros no Japão, 13 na China, 16 na Coréia do Sul e na Finlândia, e apenas 2 no Brasil.

Marcílio Boavista da Cunha (Janeiro/2017)