encontros e desencontros da ficção com a história

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  • 7/21/2019 Encontros e desencontros da fico com a Histria

    1/4

    EricoVerissim

    o:encontros e

    desencontros

    da fico coma histria

    Oque falar de Erico que j no

    tenha sido dito? Como nose repetir em lugares-comuns

    sobre um escritor consagrado?

    fora de retomar a obra de

    Erico Verissimo, mais uma

    vez, s me resta discuti-lo

    luz dessa questo cada vez

    mais presente entre ns e que aproxima e distancia a histria da

    literatura. Ou, em outras palavras, situar Erico nessa zona de fron-

    teira que a da fico, quando nela se v a histria se escrevendo

    ou o que talvez choque mais quando se admite que historiadores

    lanam mo de recursos ficcionais.

    Pensemos, pois, neste nossoErico Verissimo, to caro ao Rio

    Grande do Sul, e na sua escrita, sobretudo se visto a partir de sua

    obra mxima, O Tempo e o Vento. A literatura, bem o sabemos

    desde Aristteles na sua Potica, narrativa que relata o que

    poderia ter acontecido, cabendo ao discurso histrico o registro

    daquilo que aconteceu. Entretanto, entre a res factaee a res fictae

    entra a mediao do historiador, aquele a quem cabe a rdua tarefa

    SANDRA JATAHY

    PESAVENTO historiadora e professorada UFRGS.

    SANDRA JATAHY PESAVENTO

  • 7/21/2019 Encontros e desencontros da fico com a Histria

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    de dar a ler e dar a ver por que no? ao

    leitor/ouvinte aquilo que se passou por fora

    da experincia do vivido. Dada a impossi-

    bilidade de reproduzir a ocorrncia do quese passou, diante da irreversibilidade do

    tempo fsico escoado, o historiador constri

    a sua narrativa, refigurando o passado no

    presente atravs do tempo histrico, criado

    ou inventado por ele. Nem passado nem

    presente, esse tempo sui generis, que se

    coloca no lugar daquilo que se passou, s

    dado a ver pela fora da imaginao.

    Por estas alturas, o leitor estar a inda-

    gar: mas ento, histria e literatura so a

    mesma coisa, so atividades de pura fico,

    inveno? Tudo, a rigor, fica no domnio

    de umpoderia ter acontecido? No, caro

    leitor, pois o historiador tem, como dever

    de ofcio, in limine, certos pressupostospara a sua atividade narrativa de represen-

    tao da realidade passada: tudo precisa ter

    acontecido (acontecimentos, personagens)

    e ter deixado rastros (as fontes ou marcas

    de historicidade), sob o risco de esse his-

    toriador no ser considerado historiador e

    sim um escritor de literatura? Talvez, mas

    prossigamos neste raciocnio, para poder

    introduzir Erico nesta discusso.

    A histria umromance verdadeiro, disse

    Paul Veyne na aurora dos anos 70 do sculo

    XX, no sentido de que tudo que aconteceu um

    dia pode vir a ser contado de forma diferente,

    mas precisando ter realmente acontecido.

    Logo, a histria pressupe verses mltiplas

    com relao ao passado, cabendo ao historia-

    dor selecionar fontes e argumentos, propor

    questes e montar enredos, decifrar pistas

    e intrigas, fornecendo respostas plausveis,

    possveis, hipoteticamente comprovveis

    atravs do uso das fontes. Verses veros-

    smeis, portanto, deixando a verdade doacontecido como uma meta ou vontade da

    parte do historiador. Tudo, pois, convergindo

    para o tempo verbal consagrado para o uso

    da literatura: tudo teriaacontecido de tal e

    tal forma

    Cheguemos a Erico Verissimo, esse

    escritor que traou um exemplar romance

    histrico sobre o Rio Grande, cometendo a

    faanha de chegar a ser mais aceito na sua

    verso ficcional do passado que os textos

    dos historiadores tout court de sua poca.

    Por que tal recepo? Ora, um romance

    histrico, tal como o texto de histria,

    discorre sobre fatos e personagens de um

    passado acontecido como processo. Ou seja,se os personagens so criao do autor e

    no existiram de fato, a trama se d em um

    tempo histrico do acontecido.

    No caso de Erico, trata-se da formao

    do Rio Grande do Sul, em saga de cerca

    de 200 anos, a partir da conquista da terra,

    no sculo XVIII, at a queda de Getlio

    Vargas, no final do Estado Novo, em 1945.

    Mas um romance histrico pressupe no

    apenas aes transcorridas no passado

    como verossimilhana na narrativa dos

    acontecimentos e no perfil e proceder dos

    personagens. A liberdade ficcional do autor

    permite a criao de personagens, tal como

    de fatos e peripcias, mas o enredo deve

    convencer o leitor, indo ao encontro daquilo

    que, consensualmente, se espera quanto a

    um clima de poca.

  • 7/21/2019 Encontros e desencontros da fico com a Histria

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    REVISTA USP, So Paulo, n.68, p. 270-273, dezembro/fevereiro 2005-2006272

    A escrita de Erico, no caso, faz uso

    de marcas de historicidade, explcitas e

    implcitas. Tanto o autor mescla, em ao

    coerente, personagens histricas com fict-

    cias, quanto obedece a uma datao precisa

    no desenrolar da trama ao longo do tempo.

    Igualmente, Erico usa o recurso de pr o

    leitor em contato com a leitura dos persona-

    gens, a mostrar as verdades do acontecido,

    publicadas na imprensa da poca. Esse re-

    curso de tal forma perfeito que funciona

    quase como uma nota de rodap ou citao

    do texto histrico: recurso de autoridade e

    erudio, o autor como que desafia o leitor

    a refazer o seu caminho de pesquisa nos

    arquivos para certificar-se e concordar com

    ele Nessa medida, o texto tem um saborde real, e as situaes e personagens, foros

    de veracidade.

    Sem dvida, Erico Verissimo leu os his-

    toriadores de sua poca e tambm os mais

    antigos. No preciso cit-los, pois seu

    texto um romance, prope-se como uma

    fico histrica, que dispensa a pesquisa de

    arquivo. Mas as marcas de historicidade l

    esto, e v-se pelo encadeamento processual

    da trama no tempo que houve uma consultacerta, e um leitor mais avisado poder mesmo

    reconhecer alguns desses autores lidos por

    Erico Verissimo nas pginas do romance.

    Mas, ateno: a literatura no se faz para

    confirmar a histria! Se Erico se instrumen-

    talizou das informaes do conhecimento

    histrico sobre o Rio Grande, foi para

    dizer alm, atravs da sua narrativa de um

    poderia ter sido. Erico Verissimo incorpora

    no texto tambm o que se dizia, o que se

    ouvia contar. Toda uma tradio oral e um

    anedotrio poltico se revela na narrativa,

    permitindo que o leitor encontre no texto o

    que j sabia e que lhe contava o pai, a av,

    o vizinho Talvez nem todos os leitores

    reconhecessem nos versos declamados no

    galpo pelo personagem Fandango ndio

    velho sem governo, minha lei o corao

    a poesia popular muito antiga, cantada e

    recontada atravs das geraes, mas prova-

    velmente muitos j os teriam escutado emalgum momento da vida. Essa capacidade

    de fazer o leitor reconhecer-se no narrado,

    de identificar, no texto, coisas que so suas,

    implica atingir verdades do simblico.

    Provavelmente Erico Verissimo lera a

    obra de Augusto Porto Alegre, publicada em

    1906 A Fundao de Porto Alegre, na

    qual o autor, aps discorrer sobre a popula-

    o primitiva que ocupava a rea da capital

    rio-grandense, ps em cena a lenda da ndia

    Obirici, como uma espcie de atestado mti-

    co desse tempo das origens. No captulo A

    Fonte dO Continente, primeira parte da

    trilogia de O Tempo e o Vento, Erico faz da

    experincia missioneira um mito fundador,

    justapondo lenda e histria.

    Os personagens so, a rigor, buscados

    no acontecido e no fantstico: o histrico

    e mtico Sep Tiaraju est presente na tra-

    ma do acontecido literrio, no decorrer daguerra guarantica como tambm nas vises

    do indiozinho Pedro. No por acaso, esse

    menino criado pelo padre Alonso filho de

    uma ndia estuprada por um bandeirante,

    no bojo de uma guerra inaugural, que traa

    um fio condutor na histria do Rio Grande.

    A rigor, poder pensar o leitor, quantos es-

    tupros no teriam ocorrido nesses tempos

    recuados e brutais, onde os bandeirantes

    teriam aprisionado os ndios e violentadosuas mulheres? Tudo, pois, convincente,

    quase histrico, em termos de um provvel

    acontecido.

    Pedro Missioneiro, j adulto, compor

    com Ana Terra, a calada moa filha de

    vicentinos descidos para a conquista do

    sul, o casal ancestral e fundador de uma

    estirpe. Pedro Missioneiro chama Ana de

    Rosa mstica, selando uma unio sagrada

    e profana ao mesmo tempo. Deixar em

    Ana a marca de seus olhos oblquos, trao

    herdado pela descendncia dos Terra, essa

    estirpe de gente calada, de pouca fala, gestos

    bruscos e desconfiada. No assim que os

    ndios so visualizados? Tudo verossmil,

    tudo tem um sabor de verdico, dej sabido

    desde sempre, mas que agora estetizado

    na narrativa romanesca.

    No incio foi a guerra, muita guerra, a

    violncia e a dureza da vida difcil, em um

    tempo cclico, eclesistico, a repetir-se. Alinhagem se completa no segundo par que

    se forma, no tambm emblemtico casal

    Bibiana TerraCapito Rodrigo Cambar.

  • 7/21/2019 Encontros e desencontros da fico com a Histria

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    REVISTA USP, So Paulo, n.68, p. 270-273, dezembro/fevereiro 2005-2006 273

    Este advindo no se sabe bem de onde, filho

    da guerra e do vento, mas descendente de

    um aventureiro que, levando na garupa uma

    moa aoriana, de olhos verdes, decidiu

    assentar-se na vida, criar razes e chamar-se,

    tal como a rvore,Cambar. Tudo plausvel,

    possvel, histrico e ficcional, potico e cru,

    ao mesmo tempo. Ser esse o Rio Grande

    que precisava ser dito, que os leitores de

    histria e literatura esperavam?

    Uma literatura que se faz histria, que

    recebida e percebida como tal pelos leitores.

    Um romancista que se aventura a dizer como

    poderia ter sido, em verso que aceita

    como tendo sido. Pois, mesmo sabendo

    que a trama romanesca no aconteceu, ela

    que se fixa na memria dos leitores, comorepresentao emblemtica.

    Mas o que se dizia do Rio Grande no

    tempo de Erico? Histrias de glrias, de

    guerras e heris, da Revoluo Farroupilha,

    carro-chefe do passado, do gacho, senti-

    nela da liberdade, monarca das coxilhas,

    centauro dos pampas.De um Rio Grande

    sempre de p, pelo Brasil,que no falhava

    ao seu destino herico, como conclamava

    o mote da Revoluo de 30. Por vezes,essa viso ufanista transparece na histria

    contada por Erico Verissimo. Mas no como

    verdade, antes como farsa ou tragdia.

    Para muitos, o romance histrico de

    Erico se converteu na possibilidade de re-

    conhecer-se, apontando para uma maneira

    de ser do Rio Grande e de ser gacho, de

    ter uma histria empolgante, contada de

    forma sedutora, convincente, agradvel.

    Mais cativante, sem dvida, que os textos

    de historiadores, por ser mais solta, mais

    livre, por incorporar na trama aquilo que se

    sabia, que se queria ler, que sempre se dis-

    sera, mas nunca se escrevera. Um horizonte

    de expectativas encontrava sua obra. Para

    outros tantos, Erico disse mais alm, disse

    outras coisas, que a histria no contava.

    Nesse sentido, com a sua fico, Erico

    Verissimo foi ao encontro daquilo que

    historiadores da cultura de nossa passa-

    gem de sculo e de milnio perseguem:

    a enargheia, impresso de vida, marca

    do esprito, de um tempo passado. Erico

    apresentou uma verso que talvez tenha se

    aproximado desses homens misteriosos do

    passado. Os olhos de Erico, por exemplo,

    enxergaram misrias, fraquezas de carter

    e degenerescncia de valores nos protago-

    nistas centrais da trama. Afinal, a linhagem

    masculina dos Terra-Cambar , majorita-

    riamente, fraca. E isso, sem dvida, ver

    um avesso da histria. Os mais famosos da

    linhagem Cambar Capito Rodrigo e o

    Doutor Rodrigo so mulherengos, dbeis

    de carter, egostas, traem seus valores de

    juventude. So simpticos, bem o sabemos.Praticam atos condenveis, mas no so

    maus de todo. So at bons, mas pertencem

    a uma linhagem que, quanto mais se avana

    no tempo, mais se v corroda. H um fio

    condutor que aponta para a degenerescncia

    e para a morte.

    Mas Erico, contudo, viu mais nessa tra-

    jetria ficcional sobre o Rio Grande: viu as

    mulheres, personagens fio-terra, a assegurar

    a permanncia. Suas mulheres so terra, soduras e so firmes e teimosas, seus homens

    so vento. Ana, Bibiana, Maria Valria,

    quem de fato garante tudo, controla a vida,

    garante a linhagem. Forte tambm a trgica

    Luzia, Melpmene dos olhos verdes, Teinia-

    gu a encantar os homens e Erico ainda viu

    mais alm: viu os pobres, a linhagem ou

    contralinhagem, a bem dizer dos Car.

    Aqueles que na guerra eram homens, na

    paz eram bichos. Tais personagens, bem o

    sabemos, nunca existiram. Mas nas tenses

    que se do no tempo na histria, diramos

    h realidades referenciais do mundo que

    muitas vezes s podem ser representadas

    de forma metafrica.

    Em lugar do acontecido, um dizer como,

    umver assim, umpoderia ter sido. Na fico

    de Erico Verissimo, eu veria a histria acon-

    tecendo, capturando a impresso da vida.