emoções e sentimentos - polêmicas sobre o ensino da arte

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A AUTORA Professora Titular da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás, Doutora pela Universidade de Madison-Wisconsin. EMOÇÕES E SENTIMENTOS: POLÊMICAS SOBRE O ENSINO DE ARTE Avançar a concepçio de erisiiio de arte, extrapoIaiido a expressão de sentimentos e emoqões P rofessores e professoras de arte são em que a arte e sua história são con- sabem que a questão-titulo des- ceitos centrais. te texto é comum. 'Ensinar arte Um dos editores2 da referida publica- como expressão de sentimentos e emo- ção chama a atenção para o fato de que ções' é um estereótipo que acompanha a "como artefato ou como Òbjeto, a arte (...) profissão, mas ao mesmo tempo é uma retém uma aura e um determinado valor idéia abrangente, rica e polêmica. Uma cultural, simbólico e especialmente eco- primeira evidência da abrangencia desta nQmico, e este valor estientrelaçado com idéia é a discussão em tomo do próprio sua história (...)". As conexões discipli- conceito de arte. Numa recente publica- nares e teóricas que participam da discus- ção de História da Arte\ vinte e três ter- são sobre o conceito de arte são mais uma mos foram avaliados como pertinentes hs questões da arte na contemporaneidade e cada um deles trata a arte a partir de diferentes abordagens. 'Fetiche', 'sirnu- lacra', 'contexto', 'representação', 'in- terpretação' e "valor' são alguns dos ter- mos discutidos neste livro e que demons- tram a abrangência e riqueza da discus- evidência da abrangência e riqueza que a idéia-título condensa: o srntus social, es- tético e até político da arte e seus objetos; o lugar ou condição de exibição; a posi- ção do objeto dentro de um cinone artis- tico específico e o potencial ou a possibi- lidade de que o trabalho de arte possa transformar seu próprio ambiente'. Além 1. NELSON, Rokn e SHSFF. Richard (Ws) Critical tcrms ror AArt IIistorj~ (Temos críticos de Htst6ria da Artc) Cliicago. Thc University oC Chicago PWSF, 1996. 2. NELTON. Robert. Ar rlie plntr d'ajbrpiivord. rorneone iooking. reading. and writing. In: NELSON, Rokrt e SHIPE Richard (cds) Critical tcrrns forhrt IIistory. (Termos críiico~ da História da Arte) Chicago: The University of Chicago Press, 1996. p xiii. 3 NELSON. Koben. Ar rlie plnce .. op. ri!. p.x.

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Avançar a concepção de ensino de arte, extrapoIando a expressãode sentimentos e emoções.

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  • A AUTORA

    Professora Titular da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Gois, Doutora pela

    Universidade de Madison-Wisconsin.

    EMOES E SENTIMENTOS: POLMICAS SOBRE O ENSINO DE ARTE Avanar a concepio de erisiiio de arte, extrapoIaiido a expresso de sentimentos e emoqes

    P rofessores e professoras de arte so em que a arte e sua histria so con- sabem que a questo-titulo des- ceitos centrais. te texto comum. 'Ensinar arte Um dos editores2 da referida publica- como expresso de sentimentos e emo- o chama a ateno para o fato de que es' um esteretipo que acompanha a "como artefato ou como bjeto, a arte (...) profisso, mas ao mesmo tempo uma retm uma aura e um determinado valor idia abrangente, rica e polmica. Uma cultural, simblico e especialmente eco- primeira evidncia da abrangencia desta nQmico, e este valor estientrelaado com idia a discusso em tomo do prprio sua histria (...)". As conexes discipli- conceito de arte. Numa recente publica- nares e tericas que participam da discus- o de Histria da Arte\ vinte e trs ter- so sobre o conceito de arte so mais uma mos foram avaliados como pertinentes hs questes da arte na contemporaneidade e cada um deles trata a arte a partir de diferentes abordagens. 'Fetiche', 'sirnu- lacra', 'contexto', 'representao', 'in- terpretao' e "valor' so alguns dos ter- mos discutidos neste livro e que demons- tram a abrangncia e riqueza da discus-

    evidncia da abrangncia e riqueza que a idia-ttulo condensa: o srntus social, es- ttico e at poltico da arte e seus objetos; o lugar ou condio de exibio; a posi- o do objeto dentro de um cinone artis- tico especfico e o potencial ou a possibi- lidade de que o trabalho de arte possa transformar seu prprio ambiente'. Alm

    1 . NELSON, R o k n e SHSFF. Richard (Ws) Critical tcrms ror AArt IIistorj~ (Temos crticos de Htst6ria da Artc) Cliicago. Thc University oC Chicago PWSF, 1996. 2. NELTON. Robert. Ar rlie p ln tr d'ajbrpiivord. rorneone iooking. reading. and writing. In: NELSON, Rokrt e SHIPE Richard (cds) Critical tcrrns forhrt IIistory. (Termos criico~ da Histria da Arte) Chicago: The University of Chicago Press, 1996. p xiii . 3 NELSON. Koben. Ar rlie plnce .. o p . ri!. p.x.

  • Comunicao & Educao, So PauFo, (25): 36 a 44, set./dez. 2002

    dessas, inter-relaes mais comumente observadas e diretamente ligadas ao ensi- no de arte como expresso de sentimentos e emoes so: o eu do artista; o eu do objeto artstico e o eu do receptor ou apreciador.

    A aura e o valor que a arte retm entre os seres humanos a coloca no foco de muitas polmicas e, ao mesmo tempo, atesta sua fecundidade. Sabemos que aura e valor so histrica e culturalmente rnutiveis. A teorizao de Benjamim4 sobre a perda da aura da obra de arte sig- nificou uma abertura para pensar o con- ceito de aura a partir de novas contingn- cias. Ao invs de perda, parece ter havido um deslocamento: o conceito de aura des- prendeu-se da obra e deslocou-se para o 'contexto' no sentido amplo que Mondrian d i a este termo, citado em Mattick5. Para Mondrian, tudo deve ser visto como um complexo, como parte de um todo. Diz o artista, '"6s sempre veremos relaes e sempre saberemos uma coisa atravs de outra'*. A aura amplia-se, assume o con- texto e ramifica-se com vrias reas do conhecimento, reforando o valor da arte.

    Podemos falar de valor da arte na nos- sa cultura e sociedade - ou nos grupos que as constituem - e de valor da arte como resultado de uma avaliao sobre um ob- jetolmanifestao artstica. Em ambos os casos, a tarefa fundamental da arte, desde o Iluminismo, tem sido a de "submeter todos os valores absolutos ao julgamento crticow7. Mesmo sem os valores absolu- tos que definiriam qual arte seria a verda- deira, a certa ou a bela, as investigaes

    sobre o valor da arte no foram abandona- das. Ficam sempre muitas perguntas: como so criados os consensos a respeito de cer- tos trabalhos de arte? Como certas inter- pretaes se tornam legitimadas? Como a famlia e a escola colaboram para - ou pre- judicam - a formao do interesse pela arte? O que diferencia um objeto artstico de outros objetos? Que tipos de manifesta- es podem ser considerados artsticos?

    As i-elag6es da arte com outras disciplinas, como a Histria, a Antropologia e a PsicanIise, acrescentaraxn novos tpicos h

    discusso sobre arte e

    arte para a vida pessoal e social dos indivduos.

    Exemplos de questes advindas das re- laes da arte com estas disciplinas so: em que medida a Histria da Arte inter- preta o presente com base no passado e em que medida ela deveria ter o futuro como perspectiva para interpretar o pre- sente? Como o fazer arte se distingue de outras atividades dirias, cotidianas? Que contribuies a experincia esttica ofe- rece para a formao dos indivduos?

    Como campa de conhecimento, a arte manter mistrios e segredos que continuaro a nos incitar. A Esttica uma disciplina nova, se comparada com

    4 BENJAMIM, W. n i e iwrk o jnr t Ni flif ffgc i ~ f iiierlrntiirnl reprorl~~ciiriii. ( A obra dc arte na e n da reproduio ticnica.) In: ARENDT. Hannah (ed.} Illurninations. [s I.] [s.n.l 1968. 5. MAWICK, P. Cr,iriext.(Contexto) In. NELSON. Rohrt e SHIFF. Richard (eds). Crilical t e r m for Art Hitory. Chicago- Thc Univcrsity of Chicago h s s , 19%. p.70-86. 6. MATTICK, P. Corirext (Contexto) ... op. cil 7. KOERNER, .i. c KOERNER, L. Vnliie. (Valor) In: NELSON, Robert e SHIFF, Richard (eds) ... np. cri. p. 293.

  • Emoes e sentimentos: polmicas sobre o ensino de arte

    a Filosofia. Esta disciplina nem sempre tem seu territrio nitidamente demarcado jh que uma nasce da outra. Mas s no sculo XVEII, ainda atrelada i Filosofia, que a pre- ocupao com a arte como morada privile- giada da beleza aparece e apenas no se- guinte, s&uloXiX, que0 artista ganha sfcrdis de um indivduo especial, dotado de gmnde personalidade, visto como se fosse um pro- feta ou um lder. , portanto, no sculo XIX que as preocupaes com a emoo e os sen- timentos do artista predominam nas discus- ses sobre arte.

    Fica claro que o tema - arte como ex- presso de sentimentos e emoes - abrailgente e rico, mesmo se considerar- mos apenas seu primeiro conceito, ou seja, arte. Discutirei alguns riscos deste tema, primeiro, em relao a outras possibiii- dades da arte como, por exemplo, a de que ela expresse valores e comportamentos. Discuto, ainda, alguns riscos que surgem da associao do conceito de 'arte' aos de 'expresso', 'emoo' e 'sentimento'. Por ltimo, penso o tema-titulo em relao ao ensino de arte, propondo algumas idias- guia que possam contribuir para o traba- lho que pretendemos desenvolver com docentes. Meu objetivo iniciar um de- bate que espero acontecer a partir da apre- sentao dessas ideias.

    RISCOS E POLEMICAS DA IDIA DF: AK'1'1i: COMO EXPKESSXO

    Um dos maiores riscos deste tema tal- vez seja o de privilegiar uma dimenszo da arte efn detrimento de tantas outras possi-

    veis. Quando dizemos que a 'arte expres- sa', associamos esta idia a algum tipo de contedo8. Aprisionar este contedo - que denso, ambguo e mltiplo - na esfera do sentimento e da emoo reduzir as possi- bilidades da arie. Mesmo pensando a ex- presso como um conceito amplo, guarda- chuva, necessrio pensar a distino en- tre 'expressar uma ernm$o1 e 'incitar ou provocar' uma emoo. necessrio, ain- da, distinguir a 'expressokcamo urna ao ou estado do artista e a 'expresso' enquan- to 'expressividade' de uma obra.

    Assim conio arriscado dizes que uma obra de arte

    possa ser destituida de expressividade, tambm um risco dizer que os senti~~lentos

    e as emooes so necessnriaii~eiite 0 foco desta expressividade.

    HospessVdiscute essas distines e especificidades da 'expresso" rregistran- do o fato de que na mdernidade que a teoria da arte como expresso domina a cena esttica. Hospers atenta, ento, para a historicidade do conceito de 'expresso', lembrando-nos que os "artistas criaram grandes trabalhos de arte durante muitos sculos e apenas nos ltimos dois sculos ou menos se tomou costume, ou at natu- ral, dizer que a atividade distintiva do ar-

    8. SOUCY, D. Nrio r.ir.ifr r.iprc.t.rri xwri r.oii!t-rdo In: BARROSA. Ana Mae e SALLES. Heloisa (orgs ) O ensino da artc c sua Iiistbria. %i0 Paulo: M u ~ c u dc Anc Conternpor3nea/USP, IrlcHI. p.87-95. 9 HOSI'ERS. I 'Ilre roirrrpr qforrr~rir c..~~irr~.rinii. (O conccito dc cxpressio anstica) In: WEI'IZ. Morris. Problcms in aestliciirs (knblcrna~ dc estdtica) Ncw York: Macrnrllan, 1789 p. 221-245

  • Comunicao & Educao, Sao Paulo, (25) : 36 a 44, set./dez. 2002

    tista a expresso"'O. Segundo Hospers, a idia de expresso como uma descrio ge- ral da atividade artstica estreita e "reflete uma reminiscncia do conceito mistico de gnio, fomentado na em romntica"" .

    Alm da reduo que a idia de 'arte como expresso' representa, atrelar esta idia apenas aos sentimentos e emoes reduzir ainda mais o Smbito possvel da discusso sobre arte e expresso.

    O risco pensar, primeiro, na. arte apenas como expresso;

    e. segundo, na expresso coillo utn canal de

    exterioriznqo aperias de se~itirneiitos e e~noe.

    'Denunciar', hegar', 'representar' e 'explicitar' so conceitos que, ao lado de 'expresso', tambm podem descrever a atividade artstica. Citei anteriormente a idia de arte como expresso de valores e comportamentos e penso em Tolstoy como um exemplo clssico de defesa da primeira idia. Na viso do escritor rus- so, os sentimentos e as emoes so cen- trais, mas devem servir a um valor maior que o da unio espiritual e satisfatria entre os povos. Tolstoy afirmava que "a atividade da arte est baseada no fato de que um homem, recebendo atravs da audio ou viso a expresso de senti- mentos de outro homem, seja capaz de

    experimentar a emoo que moveu o ho- mem que a expre~sou" '~ .

    O sujeito-artista e sua capacidade de expresso, de um lado, e o sujeito-es- pectador e sua capacidade de percepo dessa expresso, de outro, formam a base da ideia de arte no pensamento de Tolstoy. Mas, para ele, no suficiente que os espectadores percebam e sejam "infectados pelos sentimentos que o autor sentiu"'? 0 valor maior da arte - aquilo que a define e a distingue de ou- tras atividades - ser um meio de unir todos os homens nos mesmos sentimen- tos "indispens5veis para a vida e pro- gresso em direo ao bem-estar de in- divduos e da h~rnanidade" '~. No casa de Tolstoy, so os valores que os senti- mentos evocam e no os sentimentos per se, que atestam sobre a arte. E s arte aquilo que satisfaz esta condino.

    As posiqes de Tolstoy e Hosper so claramente distintas e historicamente distantes. Dificilmente a posio de Tolstoy encontraria adeptos na reflexo esttica contempornea. Enquanto ele elege e congela os sentimentos do artis- ta para ser captado e experimentado pelo espectador com vistas a um mundo me- lhor, Hospers questiona a prcipria exis- tncia de sentimentos especficos ou norneveis pat-a que algo seja conside- rado arte. Para Hospers, as especulaes sobre os sentihentos do artista no di- zem respeito i qualidade da obra e nem ao poder que ela possa ter para ondensar e caracterizar certos sentimentos que so

    10 HQSPERS, I. Ti:r ( . O I I ~ P ~ I ... op. t i l . p 224. 1 I I. HOSI'EKS, I. T%w rnrrrep I... np. cri p. 224. I?. TOLSTOY, L. I.Jirir~~roiialr~ii~. In: WEITZ, Morris Pro'blcm in aesthctics. New York: MacmilEan, 1089. p.749. 13. TOLSTOY, L Eiiiori(iiin1isii: ... op. rir p.750 14 TOLSTOY, L. Eiiir~tioiiali\iii ... cip. rir p.750.

  • Emoes e sentimentos: polmicas sobre o ensino de arte

    humanamente reconheciveis e cornpreen- siveis. Expressar valores humanidrios atravs da evocaio de sentimentos , portanto, uma das possibilidades da arte, mas arte no expressa s isso e nem esta forma de expresso mono- plio das artes.

    Exemplos de arte como expresso de comportamentos ou situaes tambm so abundantes. Penso nos registros pi- cos, histricos e sociais que a arte ofere- ce e onde o ser humano pode ser visto nas mais contrastantes circunstncias que YZO da guerra paixo, da solidariedade i explorao. A arte tambm explicita ou iios coloca diante dc certos coinporta- mentos evocando e provocando pensarnen- tos que podem, ou no, d e s e m b a r em sentimentos. H6 uma regio incerta onde pensamento e sentimento se misturam, se complementam e se reforam sem que nenhum se sobreponha ao outro. Goodmam1Qem razo ao observar que nas artes, ou melhor, na experincia esttica, as emoes funcionam cogni- tivamente. Certamente que a prtica docente em arte tem seus prprios exern- plos sobre como os valores que a arte ex- pressa p d e m ter uma funo educacional e socializante - da motivao para cer- tas atividades, das trocas pessoais, da adeso ou estranhamento sobre realida- des e prticas.

    A nfase romntica sobre o indivduo fez com que a arte fosse entendida quase que exlusivamenre atravs deste vis: ex- pressar emoes e sentimentos. Sem a radicalidade da 'transmisso' e 'experi- mentao' de sentimentos que Tolstoy pro-

    jeta na relao artista-espectador, a idia de arte como expresso de sentimentos e emoes senso-comum e muitos alunos(as) e professores(as) ainda se man- tm afeioados a ela. Entretanto, a esttica contempornea, diferentemente da est- tica moderna, no dissocia o objeto ar- tstico das circunstncias de sua produ- o e consumo.

    N5o apenas as circunst~ilcias matei-inis, mas tambm ris

    sociais, ult~irais e histricas devem ser consideradas. Pensar a arte ui~icaniente

    como expresso de sentinientos e emoes resulta ou na

    supervalorizao do artista ou do objero.

    Fica esvaziada a participao de outros componentes no processo artstico como, por exemplo, o pblico, o contexto, as experincias e as condies de produo, exibio e percepo. Seria o caso, ento, de perguntarmos: a idia da arte como expresso de emoes e sentimentos pri- vilegia quais aspectos da nossa relao com a arte? Deixa quais aspectos de fora: contedo? contexto? cultura?

    Reforo o fato de que os riscos da idkia de arte como expresso no se res- tringem a pensar apenas sobre o qu a arte pode expressar. Estes riscos atin- gem tambm a idkia de que a arte, alm

    15. GOODMAN. N. Or nnd and other rnattrrs (Sobre a mente e outras rnat6rias) Carnbridge. Mass: Harunl Univcrsity Prcss, 1984

  • ComunicaBo & Educao, So Paulo, (25): 36 a 44, set./dez. 2002

    de expressar - sentimentos, emo.es, valores ou atitudes - pode construir, pro- vocar e gerar conhecimento. A 'expres- so', portanto, no se separa de um 'con- tedo' e de uma 'forma' e tanto uma coisa quanto outra se articulam num determinado contexto de uma dada cuI- tura e num espao histrico definido. E por esta razio que a idia de arte como expresso de sentimentos e emoo pre- cisa ser repensada para atender as con- tingncias e diversidades que caracteri- zam as situaes em que a arte 'opera', com suas inmeras possibilidades.

    A importncia daqui10 que o tema dei- xa escapar ou que no explicita, ein ter- mos da arte, uma polmica que exige reflexo e crtica constante. Todavia, a conscincia de que a expresso de senti- mentos e emoes uma reduo sobre o que a arte pode fazer, no nos isenta de indagaes que so decorrentes desta po- sio. Essas indagaes orientam o res- tante deste trabalho.

    SENTIMENTOS E EMOICS: PERCALCOS E PERCURSOS

    No incio do trabalho citei uma publi- cao que discute vinte e trs termos con- siderados pertinentes para a reflexo so- bre a arte na contemporaneidade. Nenhum dos temos deste tema - expresso, senti- mento e emoo - aparece naquela sele- o. Num certo sentido, a p5s-modernidade destituiu o poder que estes termos tive- ram durante a mdernidade, quando en- to se defendia a capacidade do indivduo

    para expressar "aquilo que mais subje- tivo dentro do sujeito'"16.

    A ps-modernidade complica e implode esta situao. Complica na me- dida em que libera a arte - sem eliminar - das amarras do sentimento, da emoo e da prpria expresso. Liberando-se des- tas amarras, a arte cumpre sua tarefa de criticas quaisquer valores absolutos, r a u - sando-se a ser propriedade exclusiva seja dos sentimentos, das emoks ou das idias.

    A p6s-nmdemidade implode a idia de 'arte como expresso' porque expande o campo da

    arte tanto ern termos tein~tcos quanto interpretativos.

    Historicamente, a idia da arte como expresso de emoes e sentimentos re- presentou uma mudana em relao 5 idia de arte como imitao da natureza. Mas nenhuma dessas idias respondeu crescente diversificao da produo e conseqente expanso do campo da aste. Reitera-se, em todo momento, a funo critica e questionadora que a arte e suas prticas exercem nas sociedades. Para o filsofo norte-americano Arthur Danto, esta mudana do olho (imitao) para a psique (expresso), no modernismo, "trouxe para o debate um nmero de fato- res que no teriam relevncia especial anteriormente" '? Um exemplo que o au- tor cita o da 'sinceridade' do artista: se a

    16. KOERNER, 1. e KOERNER. L. V d r r ~ . (Valor) In: NELSON, Robert e SHIFF, Richard (eds). Critical ... op. rit. p. 302. 17. DANTO, A. Afrer ihc eiid cif Ar! - Coiiiciiipom~ Ar; aiid rlie pnle n/ Ifi~in~y. (Depois do fim da arte - A arte contempodnea e o empalidecer da Histbria) Pnnceton: R-inceton University Press, 1997. p. 65.

  • Emoe e sentimentos: polmicas sobre o ensino de arte

    arte sempre expressa emoes e sentirnen- tos, como a conceito de 'sinceridade' deve entrar em nossos debates?

    Vimos alguns riscos e polmicas da idia de arte como expresso. Emoo e sentimento so conceitos historica- mente situados, assim como qualquer outro conceito. Em alguns dicionrios, 'emoo' ainda definida como reaqo intensa, perturbada e descontrolada de um indivduo frente a algo inesperado ou grandioso. At recentemente, 'erno- o' era um conceito entendido como desordem psicolgica e psquica. Pes- soas que ioi+navam pblico suas emo- es eram oiisideradus fracas, iiitelec- tualmente deficientes e incapazes para tratar as coisas de maneira objetiva.

    A compreenso que se tem desses tei-mos ii~~pol-tante porque ela orienta a viso que construmos sobre a experii~cia de cri ao,

    percepo e julgamento da arte.

    No livro Sentimento e rnzfiu nas nHe.7, David Bestl%afirma haver, primeiro, uma confuso entre a emoo e o cornporta- rnento que a expressa (emoo). Essa con- fusuo, segundo ele, desconsidera a possi- bilidade de que existam emoes que no possam ser expressas.

    Outra confuso entender emozo como sensaio. Best diz que "esta tenta- o reforada pelo fato de que (a) quan- do a expresso suprimida, as sensaes tendem a manter-se, e (b) as emoes in- tensas (...} so caracterizadas por sensa- es e mudanas fsicas tais como a ace- lerao do pulso, empalidecimento, transpirao e rul>oriza~o'"~. O fato que emoo, sentimento e sensao no so sinnimas e, conforme observa Best, suas diferenas podem orientar, de maneira especial, aos arte-educadores.

    Uma caracterstica da emoo que a distingue da sensao, segundo Best, "6 que na grande maioria dos casos [as emo- es] so direcionadas para um objeto". Best explica que "o objeto, neste sentido, no necessariamente um objeto fisico"", mas tudo o que perceptvel ou apreensivel. Sempre 115 um objeto, ou seja: um indivi- duo est triste em consequnia de algu- ma coisa; ansioso em relao a algo ou irritado com algo. A presena do objeto como caractertstica da emoo estabele- ce um primeiro tipo de relao: a do indi- vduo (conscincia) com o objeto. Mas a ernqo tem seu prprio mundo - alegre, horrvel, cruel, fantstico - e este mundo cria outra relao, tambm primordial, que justamente a do indivduo com o mundo.

    Sartre, no livro As enioes - esboo de Irnin teoria, fala do mundo das emo- es e escreve que "a emoo a trans- forma5o d o mundo"?'. A teoria das emoes que Sartre delineia nesta obra

    18. REST. D. Feclin~and reason in theartq (Scntimcntoe n7Sona artes) Roston: George Allen & Unwin Publishcrs. 1985. 10. IIEST. D FeclNt,q ntid .. np. rir p. 91. 20. REST, D. FeetNr~ mid .. op. rrl p. 93. 21. SAKTRE, 3 P. l'he ernotioni. . r~p . ri?

  • Comunicao & Educao, So Paulo, (25): 36 a 44, set./dez. 2002

    fenomenolgica e, nesta linha, apesar de Sartre no se referir especificamente arte, a transformao rem um carter que envolve tanto o sujeito e a obra quanto o contexto onde se da a relao indivduo- arte. A nfase na transformao - do su- jeita, da aste, do contexto e das formas de relao com a arte - um fator pre- ponderante para pensar o papel da emo- o e dos sentimentos nos processos educacionais.

    Se todo processo educativo est,? entrelaado com algum tipo de t.ransfor~.~~a

  • Emoes e sentimentos: polmicas sobre o ensino de arte

    As idias de processo/aprendisagem, ensino e experincia sustentam estas no- es e orientam uma reviso da ideia de 'arte como expresso de sentimentos e emoes'. Como objetos de reflexo, ernqes e sentimentos podem ser elabo- rados, aprofundados e refinados para enfatizar transformaes que, especial-

    Resumo: O artigo discute a idia de arte coma 'expresso de senlimentos e emoes', par- tindo da constatao de que ela ainda co- mum, quase um esteretipo, entre prafesso- res e professoras de arte. Os termos dessa idia (arte - expresso - sentimento - emo- o) so focos de uma reflexo que aponta alguns riscos da noo de arte como expres- so e, principalmente, de arte como expres- so de sentimentos e emoes. Sem negar a expresividade ddna arte ou as possibilida- des de que emoes e sentimentos passam estar 'expressos' na arte, o artigo chama a ateno para a parcialidade, rnutabilidade, contextualidade e historicidade da idea em questo. Estes pontos so sugeridos como importantes para revisar a idia de'arte como expresso de sentimentos e emoes', relativizando e redimensionando sua fun5o no ensino de arte.

    Palavras-chave: ensino, arte, expresso, sen- timento, emoo, arte-educao

    mente aps a dcada de 60, apontaram para o que Mattickz3 chama de "des- santificao" da arte e para uma decisiva considerao sobre suas conexes com o restante da vida cultural, econmica e so- cial. Os mitos de um "olhar inocente" ou de uma "emqo sem mente", conforme observa Goodmam, tornaram-se obsoletos.

    (Emotions and feelings: controversy on teaching art) Abstmct The artiele discuses the idea of art as the 'expression of feelings and emotions,' beginning from the mntestation of the idea that it is still common, nearly a stereotype, among professors of att, The terms of thi idea (art - expression - feelings - emotion) are the focus ot a reflection that points to a few nsks in the notion of art as expression and, most especially, OS artas the expression of feelings and emotions. WithouZ denying the expresiveness ofhn art, or the pmibility that emotions and feelings may be 'expressed' in art, the article calls one's anention to the partiality, mutability, contextuality and historieity of the idea jn question. These points are suggested as important to rwiew lhe idea of 'arl as the expression of feelings and ernotions,' making its function relatim and re- dimensioning its role in teaching art.

    Key wods: teaching, art, expression, feelings, emotion, art-education