emerson marcelo ruiz a paróquia na mudança de época: uma rede de comunidades na era ... ·...

171
Emerson Marcelo Ruiz A paróquia na mudança de época: uma rede de comunidades na era da informação Dissertação de mestrado Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Teologia. Orientador: Prof. Abimar Oliveira de Moraes Rio de Janeiro Março de 2015

Upload: vancong

Post on 10-Dec-2018

221 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Emerson Marcelo Ruiz

A parquia na mudana de poca: uma rede de comunidades na era da informao

Dissertao de mestrado

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Teologia.

Orientador: Prof. Abimar Oliveira de Moraes

Rio de Janeiro Maro de 2015

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

Emerson Marcelo Ruiz

A parquia na mudana de poca: uma rede de comunidades na era da informao

Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de mestre pelo Programa de Ps-Graduao em Teologia do Departamento de Teologia do Centro de Teologia e Cincias Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comisso Examinadora abaixo assinada.

Prof. Abimar Oliveira de Moraes Orientador

Departamento de Teologia PUC-Rio

Prof. Paulo Cesar Costa Departamento de Teologia PUC-Rio

Prof. Jos Adalberto Vanzella Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil

Profa. Denise Berruezo Portinari Coordenadora Setorial de Ps-Graduao e Pesquisa do

Centro de Teologia e Cincias Humanas PUC-Rio

Rio de Janeiro, 27 de maro de 2015

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

Todos os direitos reservados. proibida a reproduo total ou parcial do trabalho sem a autorizao do autor, do orientador e da universidade.

Emerson Marcelo Ruiz

Graduado em Filosofia, licenciatura, pela FEBE (Fundao Educacional de Brusque) em 1995. Possui graduao em Teologia, bacharelado, pela FAJE (Faculdades Jesutas), de Belo Horizonte, em 2002. Professor na Faculdade Dehoniana de Taubat SP.

Ficha Catalogrfica

CDD: 200

Ruiz, Emerson Marcelo A parquia na mudana de poca: uma rede de comunidade na era da informao / Emerson Marcelo Ruiz ; orientador: Abimar Oliveira de Moraes. 2015. 171 f. ; 30 cm

Dissertao (mestrado) Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Departamento de Teologia, 2015.

Inclui referncias bibliogrficas 1. Teologia Teses. 2. Teologia pastoral. 3.

Parquia. 4. Castells, Manuel. 5. Comunidade crist. 6. Mudana de poca. 7. Sociologia. 8. Redes. I. Moraes, Abimar Oliveira de. II. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Ttulo.

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

Agradecimentos

A Deus.

Minha gratido aos professores e funcionrios do Departamento de Teologia da

PUC-Rio, representados nos professores Abimar Oliveira de Moraes,

coordenador de ps-graduao, e Leonardo Agostini, coordenador do

Departamento de Teologia.

Minha gratido a minha famlia religiosa, os Sacerdotes do Sagrado Corao de

Jesus Dehonianos.

Aos meus familiares: meus pais Odilo e Lurdes, minhas irms, cunhados e

sobrinhos.

Minha gratido ao Povo de Deus das Parquias Sagrado Corao de Jesus

(Mier, Rio de Janeiro RJ) e Nossa Senhora Me da Igreja (Taubat SP).

Obrigado pelo ardor pastoral que sempre encontro em vocs.

Comunidade Religiosa da Parquia Sagrado Corao de Jesus, Mier, RJ: P.

Jos Lus de Gouva, P. Silvio Salgado e P. Renivaldo Rodrigues. Obrigado pelo

apoio nos estudos.

Comunidade Religiosa da Parquia Sagrado Corao de Jesus, de Taubat,

SP: P. Alosio Knob, P. Clber Sanches e P. Armindo Kunz. Obrigado pelo

acolhimento.

A Clia Guina, pela cuidadosa correo dos textos.

Agradecimento ao CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e

Tecnolgico, pelo fomento concedido.

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

Agradecimento PUC Rio, pela bolsa concedida.

Agradeo o professor Joel Portella Amado pelas desafiadoras aulas de Pastoral

Urbana.

Agradeo, com muita estima, o professor Abimar Oliveira de Moraes, pelo

empenho em orientar essa pesquisa.

Agradeo a todos que fizeram crescer meu amor e esperana pela parquia.

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

Resumo

Ruiz, Emerson Marcelo; Moraes, Abimar Oliveira (orientador). A parquia na mudana de poca: rede de comunidades na era da informao. Rio de Janeiro, 2015. 171p. Dissertao de Mestrado Departamento de Teologia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

Esta investigao aborda a parquia catlica na mudana de poca, a partir

das teorias de Manuel Castells. O incio do milnio testemunha, de um lado,

indito interesse pastoral pela parquia. De outro lado, temos muitos estudos

multidisciplinares sobre mudana de poca. Esta dissertao articula estas duas

realidades. Ela analisa a parquia a partir do seu nascimento no sc. IV.

Acompanha sua evoluo histrica at o Conclio de Trento, passando pelas novas

configuraes paroquiais do Vaticano II e do magistrio Latino-Americano. Para

abordar a mudana de poca, esta pesquisa utiliza a teoria sociolgica de Manuel

Castells. A era da informao a era das redes. A parquia poder aclimatar-se na

medida em que compreender os novos significados desta nova estao histrica,

tais como a nova territorialidade, dinmica das redes e interatividade.

Palavras-chave

Parquia; Manuel Castells; Comunidade crist; Mudana de poca; Rede

de comunidades; Sociologia: redes; Pastoral Urbana.

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

Abstract

Ruiz, Emerson Marcelo; Moraes, Abimar Oliveira (advisor). The parish in the change of season: network communities in the information age. Rio de Janeiro, 2015. 171p. MSc. Dissertation Departamento de Teologia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

This research approaches the Catholic Parish in the changing era according

to the theory of Manuel Castells. The beginning of the millennium witnesses,

from one side, an unprecedented pastoral interest to the parish. On the other hand,

there are many multidisciplinary studies about changing era. This paper articulates

these two realities. It analyzes the parish from its birth, in the 4th Century and it

follows its historical development until the Council of Trent, passing through the

new parish settings of Vatican II and the Latin American teaching. By

approaching the changing era, this research uses the sociological theory of Manuel

Castells. The information age is the age of networks. The parish can adapt itself to

this new historical reality by understanding its new meanings, such as the new

territoriality, dynamic networks and interactivity.

Keywords

Parish; Manuel Castells; Christian community; epochal change; Network

communities; Sociology: networks; Urban pastoral.

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

Sumrio

1 Introduo 12 2 A parquia nas mudanas de poca: panorama histrico 16

2.1. Fundamentao bblica da instituio paroquial 16 2.1.1. Razes etimolgicas 16 2.1.2. Primeiras comunidades crists: arqutipo 18 2.2. O nascimento da parquia (sc. IV e V) 20 2.2.1. A expanso da rede paroquial 22 2.2.2. Funo dos presbteros e questes administrativas 23 2.2.3. Os oratrios e os locais de culto 24 2.2.4. A vida religiosa dos fiis e o monaquismo 26 2.3. A infncia da parquia (sc. VI XI) 28 2.3.1. A parquia diante dos Reinos Brbaros 29 2.3.2. A parquia no Imprio Carolngio 31 2.3.3. A parquia nas mos dos poderes laicos 33 2.4. A adolescncia da parquia (sc. XII XIV) 36 2.5. Concluso 41 3 A parquia tridentina: conflito com o mundo e longa juventude 43 3.1. Antecedentes do Conclio de Trento 44 3.1.1. O clero pr-tridentino 45 3.1.2. Os fiis no perodo pr-tridentino 46 3.1.3. Sinais de esperana 48 3.2. O conclio de Trento 50 3.2.1. A autoridade dos bispos 51 3.2.2. O clero tridentino 53 3.2.3. A parquia tridentina 56 3.3. A aplicao do Conclio de Trento no Novo Mundo 61 3.4. A parquia do sc. XIX e o conflito com o mundo em mudana 64 3.4.1. O longo sc. XIX 64 3.4.2. A parquia do sc. XIX 67 3.5. Concluso 69

4 A parquia no magistrio atual: uma comunidade em dilogo com o

mundo 71 4.1. A parquia no Conclio Ecumnico Vaticano II 71 4.1.1. Conclio Vaticano II elementos histricos 72 4.1.2. Conclio Vaticano II eclesiologia 77

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

4.1.3. A parquia do Vaticano II 81 4.1.3.1. A parquia no Vaticano II identidade teolgica 81 4.1.3.2. A parquia do Vaticano II aplicao pastoral 84 4.2. A parquia nas Conferncias do Episcopado da Amrica Latina 86 4.2.1. A parquia no Documento de Medelln 87 4.2.2. A parquia no Documento de Puebla 89 4.2.3. A parquia no Documento de Santo Domingo 91 4.2.4. A parquia no Documento de Aparecida 93 4.3. Concluso 99 5 A atual mudana de poca: a era da informao segundo Castells 101 5.1. Manuel Castells: vida e obra 103 5.2. Uma nova estrutura social: a sociedade em rede 106 5.3. Uma nova economia: a economia informacional 108 5.4. Uma nova cultura: a virtualidade real 111 5.5. Uma nova experincia espacial: o espao dos fluxos 117 5.6. A busca de identidade e os movimentos sociais 121 5.6.1. O novo mundo e o fundamentalismo religioso 124 5.6.2. Outras identidades de resistncia 126 5.7. Concluso 129

6 A parquia na atual mudana de poca: muitas perguntas, algumas 131 pistas

6.1. As primeiras comunidades e a organizao em rede 133 6.2. A parquia na sociedade em rede 135 6.2.1. A parquia em uma sociedade em rede 137 6.2.2. A parquia, elemento nodal de uma Igreja em rede 140 6.2.3. A Parquia, rede de comunidades 142 6.3. A relao entre comunidade e identidade 144 6.4. A parquia na nova economia 148 6.5. A parquia e a nova cultura 150 6.5.1. A interatividade 152 6.5.2. Comunidades virtuais 153 6.6. A parquia e a territorialidade 155 6.7. Concluso 157 7 Concluso 159

8 Referncias bibliogrficas 163

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

Siglas e Convenes AA Apostolicam actuositatem

AAS Acta Apostolicae Sedis AG Ad gentes AT Antigo Testamento BIRD Banco Internacional para Reconstruo e

Desenvolvimento cn. cnon; cnones CASTELLS, v. 1 CASTELLS, M., A sociedade em rede, v. 1, So

Paulo, Paz e Terra, 1999. CASTELLS, v. 2 CASTELLS, M., O poder da Identidade, v. 2, So

Paulo, Paz e Terra, 1999. CASTELLS, v. 3 CASTELLS, M., Fim do Milnio, v. 3, So Paulo,

Paz e Terra, 1999. CD Christus Dominus CELAM Conselho Episcopal Latino-Americano cf. conferir CL Christifideles laici CMC Computer-mediated communication CNBB Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil Col. Coleo CT Catechesi tradendae De Ref. De Reformatione (seo de Trento referente

reforma eclesistica) DAp Documento de Aparecida Ed. Edies; Editora

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

EG Evangelii Gaudium GS Gaudium et spes Med Documento de Medelln FMI Fundo Monetrio Internacional MM Mater et magistra NOM Nova Ordem Mundial NT Novo Testamento ONU Organizao das Naes Unidas org. organizador P Documento de Puebla PO Presbyterorum ordinis RTVE Radio y Televisin Espaola SC Sacrossanctum concilium

SD Documento de Santo Domingo SDP, v. 1 BO, V., Storia della parrocchia, v. 1: i secoli delle

origini (sec. IV-V), Bologna, Dehoniane, 1992. SDP, v. 2 BO, V., Storia della parrocchia, v. 2: i secoli

dellinfanzia (sec. VI-XI), Bologna, EDB, 1990. SDP, v. 3 BO, V., Storia della parrocchia, v. 3: il travaglio

della crescita (sec. XII-XIV), Bologna, EDB, 1991.

SDP, v. 4 BO, V., Storia della parrocchia, v. 4: il superamento della crisi (sec. XV-XVI), Bologna, Dehoniana, 1992.

SDP, v. 5 BO, V., Storia della parrocchia, v. 5: la parrocchia tridentina, Bologna, Dehoniana, 2004.

sess. sesso sc. sculo; sculos URSS Unio das Repblicas Socialistas Soviticas

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

1 Introduo

O ttulo desta dissertao, Parquia da mudana de poca, aponta seu

objeto e finalidade. Isto , a parquia ser abordada a partir do cenrio desenhado

nas ltimas dcadas, marcadas por intensas mutaes sociais. Estas alteraes so

to agudas, que pensadores e documentos do magistrio afirmam que estamos

entrando em um novo perodo epocal.

O subttulo, rede de comunidades na era da informao, denuncia o autor

que escolhemos como referncia terica para nosso estudo, Manuel Castells. Os

termos rede e era da informao aludem a elementos nevrlgicos de seu

edifcio terico.

Portanto, esta pesquisa versa sobre a parquia na mudana de poca. Isto ,

no final deste estudo apresentaremos perguntas e pistas que as recentes mutaes

sociais oferecem instituio paroquial. No se trata de propor um modelo de

parquia para o novo milnio. Nossa misso ser a de expor as muitas indagaes

e as poucas indicaes oferecidas parquia pela era da informao, na

perspectiva de Castells.

O incio do milnio testemunha um indito interesse pastoral pela parquia.

Recentes publicaes do magistrio (pontifcio, continental e nacional) tm dado

parquia um incomum protagonismo eclesial. A farta bibliografia acadmica

comprova a importncia e atualidade do tema. Diante deste oceano de

informaes, possvel escrever algo mais? Acreditamos que sim.

O tema que iremos abordar bem preciso. A expresso mudana de poca

adquiriu cidadania teolgico-pastoral no Documento de Aparecida, em 2007.

Entre os pensadores que tratam a questo, escolhemos o socilogo espanhol

Manuel Castells. Optamos por ancorar nossa pesquisa na trilogia A era da

informao, conjunto mais famoso de sua obra. A teoria sociolgica de Castells

demonstrar que, na nova poca que emerge, a informao se torna elemento

determinante de valorao. Por outro lado, acreditamos, na esteira de Castells, que

a morfologia das redes renovam as dinmicas de poder e de comunho.

Nosso estudo est organizado em cinco captulos.

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

13

No primeiro captulo, apresentaremos a reao da parquia perante outras

mudanas histricas, pois esta no a primeira mutao epocal que afronta a

parquia. Nosso percurso inicia com a apresentao das razes bblicas da

parquia. Em seguida, nas primeiras comunidades do NT, encontraremos o cone

que inspirar as parquias de todas as pocas. Ainda no primeiro captulo,

mostraremos certa biografia da parquia. Seu nascimento (sc. IV-V), infncia

(sc. VI-XI) e adolescncia (sc. XI-XIV). Nesta abordagem, nos debruaremos

sobre alguns temas: clero, vida religiosa dos fiis, irmandades, a parquia em

conflito com poderes diversos (religiosos e civis), relao com o mundo e

urgncia de reforma.

A parquia formatada no Conclio de Trento ser objeto do prximo

captulo, intitulado A parquia tridentina: conflito com o mundo e longa

juventude. A dedicao de um captulo exclusivo parquia tridentina se

justifica pela prevalncia deste modelo durante cinco sculos. Pela primeira vez

na histria ocorreu certa homogeneidade paroquial. Aps a apresentao das

razes da reforma tridentina, sero apresentados os contornos basilares deste

modelo eclesial, marcado negativamente pelo conflito com o mundo e

positivamente pela identidade pastoral. Pode-se afirmar que, em Trento, a

parquia chegou a sua juventude. As duas ltimas sees deste captulo sero

dedicadas parquia na Amrica espanhola e s mutaes que a parquia

tridentina sofre no longo sc. XIX.

O captulo seguinte tratar da parquia a partir de outro conclio, o Vaticano

II: A parquia no magistrio atual: uma comunidade em dilogo com o mundo.

Se Trento forjou uma parquia de contenda, o Vaticano II, mesmo no tendo um

documento especfico sobre parquia, modela a parquia na perspectiva no

dilogo. A segunda parte deste captulo tratar da parquia no magistrio da AL.

Iniciar em Medelln (1968) e chegar at Aparecida (2007), revelando as

distintas leituras que a parquia recebeu nas Assembleias Gerais do Episcopado

Latino-Americano e Caribenho. O Vaticano II dialogou com o mundo

contemporneo. O magistrio da AL optou pelo submundo dos pobres. Estas duas

opes trouxeram consequncias para a parquia.

O quarto captulo tratar da atual mudana de poca na perspectiva de

Castells. Aps apresentao de sua vida e obra, nos deteremos em alguns

elementos que balizam sua teoria: a nova estrutura social (sociedade em rede), a

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

14

nova economia (informacionalismo), a nova cultura (a virtualidade real) e uma

nova experincia espacial e territorial (o espao dos fluxos). Finalmente, ser

exposto um tema com incidncia direta sobre o universo religioso: a busca de

identidade no contexto da mudana de poca.

O ltimo captulo ser dividido em cinco sees. De modo geral, se pode

afirmar que cada seo aplicar parquia os temas tratados no captulo anterior.

No se trata de desenhar a parquia castelliana, mas de elencar as mltiplas

perguntas e alguns caminhos que a era da informao apresenta parquia.

A primeira seo revisitar o primeiro captulo, aplicando s primeiras

comunidades a teoria castelliana. Em seguida, abordaremos alguns elementos da

parquia na sociedade em rede. O principal deles a parquia como rede de

comunidades. Abordaremos igualmente, nas sees seguintes, temas como

identidade, nova economia e nova experincia espacial. Particular ateno merece

esta ltima seo ao abordar a territorialidade.

Apresentado o plano da obra, vejamos trs questes metodolgicas.

Em primeiro lugar, recordemos a natureza nesta pesquisa. Esta obra, ao

analisar a parquia inserida na sociedade em acelerada transformao, reconhece a

dificuldade em identificar contornos precisos em uma instituio que tambm est

em movimento. Por isso, afirmemos mais uma vez: no se trata um projeto de

parquia, mas de uma pesquisa que exibir as perguntas que a era da informao,

a partir da teoria da Castells, faz parquia. Nosso estudo sobre a parquia na

mudana de poca, no sobre a parquia da mudana de poca. Esta preciso

metodolgica essencial. Ela no significa timidez na pesquisa, mas fidelidade s

proposies castellianas. O quinto captulo dar sentido a esta afirmao.

Segunda demarcao metodolgica: o renovado interesse pela parquia

cobra que as pesquisas desbravem novas fronteiras. Neste sentido, acreditamos

que um campo carente de novos estudos a histria da parquia. Por isso, embora

no componha o ncleo da pesquisa, especial ateno ser dedicada ao tema. Nas

mudanas de poca, a pesquisa histrica redescobre elementos que compe a

identidade do objeto estudado. impossvel tratar a mudana de poca, ignorando

a histria. Castells concorda com isto. Seus estudos, sobre determinado ator

social, so precedidos por rigorosa apresentao histrica.

Terceira questo: esta dissertao, ao lado da histria, dedicar ateno

especial (mas no exclusiva) ao magistrio universal e Latino-Americano. Ser

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

15

atravs destes textos que apresentaremos as vigas mestras do edifcio paroquial.

Entretanto, a grande variedade de documentos exige seleo de fontes. Nosso

olhar se deter, ainda que brevemente, no conceito de parquia do Vaticano II e

nas Conferncias Gerais do Episcopado Latino-Americano. Isto exclui

documentos importantes, como EN e CT. A incluso destes textos (e outros)

dilataria por demais a nossa pesquisa.

Concluindo, desejamos que esta dissertao proporcione renovado

entusiasmo pastoral. Entusiasmo pela parquia, fonte em que as pessoas de todas

as pocas tm o direito de buscar gua para saciar sua sede existencial,

parafraseando a analogia de Joo XXIII1. Por fim, entusiasmo pastoral para

anunciar Jesus, princpio e fim, nas novas estaes da histria.

1 Cf. CL 27.

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

2 A parquia nas mudanas de poca: panorama histrico

Esta pesquisa avaliar os desafios da parquia perante a atual mudana de

poca. Para esta abordagem, escolhemos como referncia terica o socilogo Ma-

nuel Castells. Porm, antes de abordar as mudanas contemporneas, precisamos

contemplar a histria de nosso objeto de pesquisa. Por isso, este captulo mostrar

a reao da parquia a algumas mudanas de poca. Vrios autores concordam

que a pesquisa histria caminho privilegiado para acessar a parquia1.

A identidade da parquia ao longo dos sculos no um fato bvio (...). Se a par-quia quer ser ela mesma atravs dos sculos, seus membros, ainda que de forma e em medida diferenciada, precisam se debruar sobre seu passado para compreender seu presente e projetar realisticamente seu futuro.2

Em um primeiro momento, faremos breve apresentao da origem do termo

parquia e do progresso das primeiras comunidades crists. Esta sesso introdu-

tria ser menor que as outras. Em seguida, acompanharemos certa biografia da

parquia: seu nascimento (sc. IV e V), infncia (sc. VI e XI) e adolescncia

(sc. XI e XIV). A parquia tridentina ser objeto do prximo captulo.

Nossa abordagem ser seletiva: este captulo no uma histria da parquia.

Trata-se de um estudo sobre as reaes da parquia a diferentes cenrios. Aps

apresentarmos os elementos mnimos de determinada mudana de poca, sero

expostos alguns tpicos da vida paroquial: clero, vida religiosa do povo, proble-

mas administrativos etc.

2.1 Fundamentao bblica da instituio paroquial

2.1.1. Razes etimolgicas

A palavra parquia nasce da juno de dois termos da lngua grega: a

1 Entre estes autores se encontra M. Castells, que defende que a pesquisa sobre um ator social deve ser acompanhada de pesquisas quantitativas e do estudo da histria do mesmo. O cap. 3 tratar a questo, ao tratar do capitalismo e da mdia. 2 ALMEIDA, A. J., Parquia, comunidades e pastoral urbana, So Paulo, Paulinas, 2009, p. 21.

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

17

preposio (ou advrbio) 3 e do substantivo 4. Desta amarrao brotam

trs vocbulos bblicos5:

a) o substantivo 6, que significa: morada, habitao, resi-

dir como estrangeiro, exilado. Encontramos em At 13,17: O Deus deste povo

de Israel escolheu os nossos pais e fez deles um grande povo, quando moravam

como migrantes no Egito; e de l os fez sair com brao poderoso.

b) o verbo 7, que pode ser traduzido por habitar junto, resi-

dir (Hb 11,9), habitar em, ser estrangeiro (Lc 24,18). Em Hb 11,9 ns lemos:

Pela f, ele viveu como migrante na terra prometida, morando em tendas, com

Isaac e Jac, os co-herdeiros da mesma promessa. Em Lc 24,18 est escrito:

(...) e um deles, chamado Clofas, lhe disse: s tu o nico peregrino em Jerusa-

lm que no sabe o que l aconteceu nestes dias?

c) o adjetivo 8 equivale a vizinho, prximo, que habita junto,

que habita como estrangeiro ou exilado: residente, hspede, estrangeiro. Em At

7,6: Deus, porm, lhe declarou que sua descendncia viveria como migrantes em

terra estrangeira, sendo escravizados e maltratados durante quatrocentos anos.

Estas trs expresses acenam a uma compreenso peregrina das ori-

gens da palavra parquia: estar junto casa , ainda, no estar em casa. Entretan-

to, o substantivo traduz a essncia da Igreja. este povo que vive no

estrangeiro sem direito cidadania. o povo de Deus da eterna aliana, a Igreja

de Cristo 9. Na primeira Carta de Pedro, h duas imagens desta Igreja

paroquial/peregrina: Pedro, apstolo de Jesus Cristo, aos eleitos que vivem como

migrantes dispersos no mundo (...). (1 Pd 1,1). Em 1 Pd 2,11 ns lemos: Cars-

simos, eu vos exorto como a migrantes e forasteiros: afastai-vos das paixes car-

nais (...). Nestes textos fica evidente o enraizamento da palavra p na 3 verbete : A. Advrbio: (...) 1. Absoluto: ao lado de, perto, de lado; 2. Em composio: a. junto a, a longo; b. de da parte de; em; c. (...); B. Preposio + genitivo: 1. De movimento de lugar: de; 2. De origem ou provenincia: de, da parte de; 3. (...); C. Preposio + dativo: 1. De estado em lugar: junto, perto, ao lado de (...), diante, na presena de (...). in: RUSCONI, C., Dicionrio de Grego do Novo Testamento, So Paulo: Paulus, 2003. 4 verbete , -, : habitao, casa: a. em sentido estrito: Mt 2,11; b. sentido amplo: a casa os bens que contm: Mt 23, 13; c. metonmica: quem habita em casa: Jo 4,53. d. metfora: corpo: 2 Cor 5,1. in: RUSCONI, C., Dicionrio de Grego..., 2003. 5 verbete , , , in: KITTEL, G.; FRIEDRICH, G. (org.), Grande Lessico del Nuovo Testamento, v. IX, Brescia, Paideia, 1974, p. 793-830. 6 verbete , in: RUSCONI, C., Dicionrio de Grego..., 2003. 7 verbete , in: RUSCONI, C., Dicionrio de Grego..., 2003. 8 verbete , in: RUSCONI, C., Dicionrio de Grego..., 2003. 9 Cf. ALMEIDA, A. J., Parquia, comunidades..., 2009, p. 24.

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

18

tradio do xodo.

O NT permite identificar os cristos como peregrinos e, ao mesmo tempo, os se-guidores do caminho (cf. At 16,17). Assim a Igreja, comunidade de fiis, integra-da por estrangeiros (cf. Ef 2,19), pelos que esto de passagem (1Pd 1,7) ou, ainda, pelos imigrantes (1Pd 2,11) ou peregrinos (Hb 11,13). Sempre indicando que o cristo no est em sua ptria definitiva (cf. Hb 13,14), que deve se comportar co-mo quem se encontra fora da ptria (cf. 1Pd 1,17). A parquia, desse modo, uma estao onde se vive de forma provisria, pois o cristo caminheiro.10

Com os textos acima, apontamos a raiz etimolgica da parquia11. Ela

estrangeira e peregrina em relao sociedade e ao tempo presente. Ela vive em

certa tenso com o mundo que a cerca. Tenso escatolgica, pois ela sinal do

Reino definitivo12.

2.1.2. Primeiras comunidades crists: arqutipo

Nas primeiras comunidades crists encontramos a fonte que irriga de senti-

do a jornada das parquias na histria. Nos traos da primitiva comunidade de Je-

rusalm descobrimos o cone para as comunidades crists de todas as pocas.

Eles eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos apstolos, na comunho

fraterna, na frao do po e nas oraes. (At 2,42). Neste versculo brotam as ba-

lizas e a fonte de inspirao para a parquia. Foi desta comunidade que saram

movimentos missionrios que irrigaram as grandes cidades da poca13.

Peregrina e estrangeira neste mundo, a Igreja espalhou-se pelas cidades da

bacia do Mediterrneo. Paulo foi o grande responsvel pela expanso crist, pois

10 CNBB, Comunidade de comunidades: uma nova parquia, Estudos da CNBB 104, Braslia, Edies CNBB, 2013, n. 45 (a partir daqui: CNBB. Estudos da CNBB 104). 11 O termo parquia, em sua acepo eclesiolgica, surgir alguns sculos mais tarde. Por isso, as primeiras comunidades crists no so chamadas de parquias, mas simplesmente de igrejas. Por outro lado, Mikuszka, citando C. Dillenschneider afirma de modo diferente: Na carta da Igreja de Ismirna Igreja de Filemon, escrita entre os anos 155 e 157, que narra o martrio de So Policaro, pela primea vez utilizado o substantivo parokia para dar sentido Igreja local. Assim, no s-culo II fica mais claro o conceito de Igreja relacionado Igreja universal, e o de parquia de comunidade particular da Igreja universal (cf. DILLENSCHNEIDER, 1968, p. 12). (MI-KUSZKA, Por uma parquia missionria luz de Aparecida, So Paulo, Paulus, 2012, p. 70) Tal informao no citada por V. Bo na coleo que apresentaremos a seguir. 12 Este dado essencial. Como veremos adiante, o amortecimento da identidade peregrina, em al-guns perodos da histria, coincidiu com os momentos mais obscuros da parquia. 13 Sobre este versculo na perspectiva da parquia: CNBB, Estudos da CNBB 104, n. 36. CNBB, Comunidade de comunidades: uma nova parquia, Documentos da CNBB 100, n. 77-97 (a partir daqui, CNBB, Estudos da CNBB 100)

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

19

soube adaptar-se a diversidade urbana daquela poca14. Pregando nas grandes ci-

dades, fez das casas a estrutura bsica das comunidades por ele fundadas15. So

uma espcie de Igreja Domstica ou Domus Ecclesiae.

So Paulo prefere usar a expresso Igreja Domstica (Domus Ecclesiae) (...). As comunidades crists de Jerusalm, Antioquia, Roma, Corinto, feso, entre outras, so comunidades formadas por Igrejas Domsticas, sendo que as casas serviam de local de acolhida dos fiis para ouvir a Palavra, repartir o po e viver a caridade que Jesus ensinou.16

Estas comunidades primitivas no eram grandes. Entretanto, eram ricas em

ministrios, as mulheres tinham funes relevantes, os vnculos comunitrios

eram intensos e sobressaa a atividade missionria17. Paulo, no final de sua vida,

teria liderado uma Domus Ecclesiae em Roma (cf. At 28,30). H outros exemplos.

No sc. II, entre tantas que se instalaram na cidade, uma Igreja se reunia em resi-dncia particular de um cristo na Via Latina; a Igreja de Justino se encontrava num alojamento alugado perto dos Banhos de Mirtino; outros cristos da mesma poca se reuniam em casas particulares. Calcula-se, com fundamento em testemu-nhos vrios, sobretudo arqueolgicos, que, em Roma, no sc. II, houvesse 25 Igre-jas das casas, transformadas, mais tarde em ttulos (em latim, tituli).18

No sc. II, a Igreja no tinha licena do imprio para ser proprietria de

imveis. Por isso, cada domiclio que recebia uma comunidade para o culto cris-

to tinha uma espcie de tabuleta no alto da porta com o nome do proprietrio. Era

o titulo. Raras excees, no havia no imprio casas de culto cristo com um de-

senho arquitetnico prprio. Mas, paulatinamente, acontece uma evoluo.

medida, porm, que crescia o nmero de cristos, e a vigilncia sobre eles, de tempos em tempos, diminua, casas privadas (...) foram se tornando, por doao ou herana, posse da Igreja. A Igreja foi, ento, aos poucos, transformando essas propriedades anteriormente de cristos individuais em centros de atividade pasto-ral, polos administrativos, depsitos e locais de distribuio de vveres e roupas aos cristos necessitados, lugares de culto.19

Este um retrato rudimentar das primeiras comunidades. No se trata ainda

de parquia, pois quase no havia ncleos cristos com relativa autonomia, con-

14 Assim, livre em relao a todos, eu me tornei escravo de todos, a fim de ganhar o maior nme-ro possvel. Com os judeus, me fiz judeu, para ganhar os judeus. Com os sditos da Lei, me fiz s-dito da Lei embora no fosse mais sdito da Lei , para ganhar os sditos da Lei. Com os sem-lei, me fiz um sem-lei eu que no era sem a lei de Deus, j que estava na lei de Cristo , para ga-nhar os sem-lei. Com os fracos me fiz fraco, para ganhar os fracos. Para todos eu me fiz tudo, para certamente salvar alguns. (1 Cor 9,19-22) 15 Cf. ALMEIDA, A. J., 2009, Parquia, comunidades..., p. 30. 16 Cf. ALMEIDA, A. J., 2009, Parquia, comunidades..., p. 33. 17 CNBB, Estudos da CNBB 104, 2013, n. 46. 18 ALMEIDA, A. J., Parquia, comunidades..., 2009, p. 35-36. Sobre esta questo: BRANICK, V., A Igreja domstica nos escritos de Paulo, So Paulo, Paulus, 1994. 19 ALMEIDA, A. J., Parquia, comunidades..., 2009, p. 37.

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

20

duzidas por um presbtero e subordinadas ao bispo (no residente na comunidade).

No entanto, uma grande mudana se avizinha. Na verdade, uma mudana de po-

ca20.

2.2. O nascimento da parquia (sc. IV e V)

A parquia j passou por vrios momentos histricos que podem ser carac-

terizados como mudana de poca. Estes momentos de crise geralmente foram fe-

cundos para respostas criativas. Coincidentemente, o momento mpar do surgi-

mento da parquia pode ser compreendido como mudana de poca21.

Oficialmente, a instituio paroquial comea a surgir a partir de maro de

313, quando Constantino (tetrarca ocidental) e Licnio (tetrarca oriental) assinam

o Edito de Milo outorgando liberdade religiosa ao Imprio, especialmente aos

cristos. O texto deste documento histrico mais voltado aos cristos, mas a li-

berdade de culto todas as religies. o primeiro documento que concede liber-

dade religiosa, criando assim uma nova sociedade, inaugurando uma nova po-

ca22. Independente da anlise que se faz da conveniente converso de Constantino,

o fato que o cristianismo havia penetrado vrias instncias do imprio. Por isso,

era previsvel seu intento de associar a Igreja ao funcionamento do Estado.

Neste novo cenrio, a Igreja experimenta uma rpida expanso pelo interior

do imprio, que se amplia com a posterior oficializao do cristianismo como re-

ligio oficial, em 391, com o Imperador Teodsio.

Pode-se afirmar, em linhas gerais, que at o Edito de Milo o cristianismo

estava circunscrito s cidades. Cada cidade tinha seu bispo que possua junto a si

um grupo de presbteros e diconos23. neste contexto que se compreende a in-

20 Voltaremos ao tema das primeiras comunidades no ltimo captulo: 4.1 A primeiras comunida-des e a organizao em rede. 21 Este seo depende especialmente do primeiro volume da obra de V. Bo: BO, V, Storia della parrocchia, v. 1: I secoli delle origini (sec. IV-V), Bologna, Dehoniane, 1992. 22 Iremos mostrar adiante que a liberdade religiosa nunca foi plena. Quem a concedeu (o imprio) nunca abdicou de interferir nos rumos do cristianismo. 23 Infatti sino agli inizi del IV secolo ogni comunit cristiana era presieduta e curata personalmente dal vescovo, con lassistenza dell collegio dei presbiteri e dei diaconi. Questo modello organizzativo era facilitato dalla relativa consistenza numerica delle chiese locali. Se vi erano gruppi di fedeli lontani dal centro episcopale, per essi venivano sporadicamente delegati o presbiteri o diaconi, quando resultava difficile per il vescovo raggiungerli tutti di persona e con una certa assiduit periodicit. (SDP, v.1, p. 41).

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

21

formao de que havia 400 bispos no norte da frica na poca de Santo Agosti-

nho (354-430)24. Em torno ao bispo se organizava a comunidade crist que at en-

to havia se expandido nas possibilidades daquele cenrio de religio ilcita.

Com a expanso do cristianismo surgem novos desafios pastorais. Entre

eles, o cuidado pastoral de grandes grupos de novos cristos. Era preciso uma res-

posta a estas novas comunidades crists que necessitavam de organizao e lide-

ranas. Basicamente, havia duas solues disponveis. A primeira era manter o

modelo j referendado nas cidades: cada comunidade com seu bispo. O segundo

caminho era um pouco mais complexo: distinguir na pessoa do bispo o papel de

sucessor dos apstolos da funo de presidente do presbitrio.

Teoricamente si offrivano due soluzioni: o ripetere appunto in ogni nuova comunit il modulo (vescovo-collegio dei presbiteri, diaconi) allora in vigore; oppure ritornare alla situazione della chiesa neotestamentaria e subapostolica, scindendo nuovamente, nel vescovo, la funzione di successore degli apostoli da quella di presidente del presbiterio, costituendo un collegio presbiteriale allinterno di questa nuova comunit presieduto da un episcopo-presidente con la supervisione di un sucessore degli apostoli itinerante e coordinante per tutta la regione.25

Entretanto, a soluo encontrada no foi nem uma e nem outra. Surge a

ideia da delegao de presbteros que pudessem cuidar destas novas comunidades.

Isto , cada comunidade crist do interior do imprio teria um presbtero na presi-

dncia. Neste sentido, a Coleo de Laodiceia um documento preciso26. Igual-

mente, os textos dos Conclios de Elvira (300/306) e de Arles (314) servem como

registro do nascimento da parquia. Os cnones destes dois conclios revelam a

existncia de comunidades crists, distantes da sede episcopal e onde residem,

com estabilidade, presbteros ou diconos, para o cuidado pastoral dos fiis27.

Registramos o contexto do nascimento da parquia, fruto de certa mudana

de poca: a liberdade de culto no imprio romano. Apresentamos os textos que

24 SDP, v.1, p. 73. 25 SDP, v. 1, p. 41. O Conclio de Srdica (343-347), por exemplo, continua a falar dos corepisco-po. So os bispos do campo (core, em grego, significa campo). Eles devem organizar as comu-nidades crists do campo e providenciar leitores, subdiconos e exorcistas. Foi uma resposta ligada segunda possibilidade. (cf. SDP, v. 1, p. 42) 26 il famoso canone 6 che poi riceve una prima norma di applicazione com il canone 57 della Racolta di Laodicea nel quale si prescrive che dora innanzi per le campagne fuori della citt vescovile non saranno pi costituiti corespiscopi, ma saranno inviati presbiteri-visitatori, i periodeutae. (SDP, v. 1, p. 13) 27 quindi nel secolo IV che occorre cercare lavvio graduale ma costante del nuovo tipo di organizzazione territoriale ecclesiale, chiamato poi parrocchia. Infatti i documenti-base che preludono all sua nascita sono due: il canone 77 del conclio di Elvira, celebrato trai il 300 e il 306 e il canone 21 del concilio di Arles, celebrato nel 314. (SDP, v. 1, p. 45)

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

22

servem como registro de nascimento da mesma. A seguir, apresentamos uma

srie de elementos que descrevem os primeiros passos e quedas deste recm-

nascido ator eclesial.

2.2.1. A expanso da rede paroquial

Bo observa que a Igreja parece ter respeitado a organizao da sociedade ci-

vil do imprio em seu processo de expanso pelo interior. O mapa poltico e civil

do imprio hieraquizava civitas, vicus e pagus28. Os vici se distinguem das civita-

tes no somente pelo tamanho, mas tambm pela administrao civil, inexistente

nos vici. Por sua vez, os pagi eram distritos rurais que, em certas reas do imprio

poderiam designar at mesmo uma etnia. Tanto os vici como os pagi possuam

uma posio inferior (e dependente) em relao civitas.

Os textos dos Conclios de Srdica (343/347) e Laodiceia (363/364) revelam

que as novas comunidades criadas no interior no possuam autonomia. Depen-

dem da autoridade externa do bispo. Bo mostra que a administrao eclesial se de-

senvolveu com certo paralelismo com a administrao civil29. Se a comunidade

no tinha independncia civil igualmente no deveria ter autonomia eclesial. A

parquia nasceu como ncleo eclesial sem plena independncia e, por isso, vincu-

lada autoridade de um bispo, no residente naquela comunidade30.

Entretanto, mesmo com este novo e criativo modelo eclesial a populao ru-

ral no foi suficientemente atendida. Alguns problemas: dificuldade de locomoo

das reas rurais at o vicus mais prximo, falta de catequese, escassez de ministros

etc. Para estes desafios, ao poucos surgem respostas, nem sempre positivas.

28 Bo apresenta a distino bsica entre estes elementos. O vicus era um distrito mais prximo da unidade administrativa central, a cidade. Por sua vez os pagi eram as reas mais distantes, que tambm possuam ncleos urbanos, mas pequenos e menores. Entretanto, a definio destes termos se altera durante a histria e a geografia do imprio. (cf. SDP, v. 1, p. 45) 29 Cf. SDP, v. 1, p. 46. 30 SDP, v. 1, p. 46. Duas observaes. Uma sobre o papel dos bispos, outra sobre o ritmo de ex-panso das parquias: a) o surgimento da parquia enquanto comunidade crist presidida por um presbtero tambm o surgimento da diocese enquanto conjunto de comunidades crists conduzi-das e supervisionadas pelo bispo; b) Si pu comunque affermare che la fondazione delle parroc-chie rurali, iniziata nel secolo IV, si sviluppata poi con un ritmo regolare e abbastanza accelerato per tutto il secolo V. (...)Se potessimo, in base a tali considerazioni, redigere una lista dei vici pi importante del secolo V, ci potremmo farci unidea della prima evangelizzazione delle campagne; resterebbe solo da sapere quando ciascuno di questi vici fu dotado di una chiesa parrocchiale. (SDP, v. 1, p. 46)

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

23

2.2.2 A nova funo dos presbteros e questes administrativas

A multiplicao de comunidades nas periferias do imprio ocasionou que

presbteros e diconos assumissem a coordenao de igrejas, o que exigiu a elabo-

rao de normas que balizassem este crescimento. A legislao conciliar da poca

apresenta as respostas aos novos desafios surgidos31. Ao mesmo tempo, estes c-

nones revelam vrios elementos da vida religiosa dos cristos destas primeiras pa-

rquias: local da celebrao, disciplina penitencial, crisma etc32.

Outro tema que surge nos conclios acima citados o da estabilidade do mi-

nistro da comunidade. O presbtero est indissoluvelmente ligado determinada

comunidade e no tem licena para transferir-se para outra comunidade ou dioce-

se. O presbtero somente pode celebrar na sua rea de trabalho e no pode presidir

a eucaristia em outras parquias (ou oratrios) sem autorizao do bispo33.

Especial ateno merece a administrao eclesial, pois o patrimnio das

igrejas cresce sem os limites impostos pela clandestinidade. Os conclios retratam

os problemas e as solues encontradas: necessidade de inventrios, licena do

bispo para vender bens etc34.

31 La fissazione dei poteri, facolt e deleghe si effettua nei concili locali, cio attraverso una consultazione, un ascolto e una decisione collegiale dei vescovi di una stessa regione sempre, e talora anche di pi province contigue. (SDP, v. 1, p. 73) 32 Bo resume o contedo desta nova legislao. Alguns tpicos (i) o sacerdote celebra a Eucaristia na templo, no nas casas; deve fazer uso de oraes j preparadas; (ii) o sacerdote deve tambm realizar um trabalho de catequese; (iii) com mudanas na disciplina penitencial, os sacerdotes da zona rural podem readmitir penitentes somente com a permisso do bispo; (iv) h vrias normas sobre batismo e crisma (ministro, datas, preparao etc.); (v) no permitido aos sacerdotes con-sagrar a crisma ou abenoar oficialmente jovens meninas entre as virgens reconhecidas pela Igreja. (cf. SDP, v. 1, p. 76-77) 33 Cf. SDP, v. 1, p. 75. Ma per tutti i vescovi il problema pi grosso resta sempre quello del passaggio di un chierico da uma chiesa local allaltra e sul quale, como s visto, i vari concili hanno legiferato a lungo, minuziosamente e spesso. Su questo problema scrive Leone Magno: Nessun vescovo ardisca mai a prendere con s un chierico di un altro vescovo senza il regolare congedo (cessio) contenuto si badi in un documento inequivoco di colui al quale il chierico stesso appartiene. (SDP, v. 1, p. 77) 34 Estes cnones podem ser assim resumidos: (i) os sacerdotes podem possuir (e dispor) apenas dos bens provenientes da sua famlia, ou de alguma oferta pessoal; (ii) no que diz respeito aos bens da Igreja, deve-se fazer um inventrio; (iii) os padres no podem validamente alienar os bens da Igre-ja, sem a permisso do bispo; (iv) os bens da Igreja no devem ser para capitalizao, mas distribu-dos aos pobres. (cf. SDP, v. 1, p. 79)

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

24

2.2.3. Os oratrios e os locais de culto

No sc. IV, a penetrao missionria era ainda limitada aos vici e parece ter

sido menor nas villae35, onde vivia uma populao rural ligada s terras dos gran-

des proprietrios. Por sua vez, a populao dos pagi era muito mais atrelada a su-

persties e crendices de todo o tipo que os habitantes da cidade36. No sc. V

mesmo as villae situadas nos pagi mais distantes so alcanadas pela f crist. Os

grandes proprietrios se estabelecem a especialmente no vero e logo constroem

um pequeno edifcio de orao chamado oratoria37. Foi atravs dos oratrios, ou

pelo contato com os cristos de um vicus vizinho que paulatinamente os habitan-

tes mais distantes tm contato com a f. A converso gradual, mas no deixam

decisivamente as crendices pags38.

Os bispos j encontravam dificuldades nos vici, em que aqueles que deti-

nham o poder tentavam fazer valer sua autoridade sobre a religio. Se havia pro-

blemas nos vici, nas villae estas dificuldades seriam maiores. Por isso, muitas vil-

lae se contentaram durante muito tempo com os oratrios. Havia ritos religiosos,

mas no era uma igreja pblica39.

Entretanto, apesar da vigilncia da hierarquia, devido a uma srie de moti-

vos, muitos destes oratrios se converteram em parquias40. O Conclio de Orle-

ans (541) define que para um oratrio tornar-se parquia o proprietrio deve fazer

35 Villa designa outro termo prprio do imprio romano de significados um tanto diferentes, de-pendendo da poca ou da regio. Basicamente, era uma fazenda rural protegida com muro que, es-pecialmente no vero, tornava-se a habitao rural da aristocracia romana. 36 Do termo pagi origina-se pago, pessoa ligada s prticas supersticiosas recebidas dos antigos (cf. SDP, v. 1, p. 189). Outra observao interessante: na penetrao missionria da Igreja nos vici, e posteriormente nos pagi os bispos criaram, pouco a pouco, as dioeceses ou paroeciae. Em algu-mas regies os dois termos eram ainda sinnimos. (cf. SDP, v. 1, p. 189) 37 Traduziremos a expresso latina oratoria por oratrios 38 SDP, v. 1, p. 189. A partir do sc. V, as celebraes pags pblicas so proibidas. Muitos tem-plos pagos foram destrudos ou transformados em templos cristos. No entanto, vestgios da f pag persistiram durante anos. Elementos de paganismo permaneceram principalmente no campo, onde havia menos ministros. (cf. SDP, v. 1, p. 190) As homilias da poca flagram esta inconsistn-cia e o esforo em melhorar a catequese. Massimo di Torino (...-420) questiona pessoas que veem ao culto mas seus pensamentos esto na terra ou na caa. Cesrio de Arles, um sculo depois, criti-ca a populao do campo que decora as canes pags, mas no sabe o Credo ou o Pai Nosso. Este cenrio gerou gradativa reao eclesial. (cf. SDP, v. 1, p. 192) 39 Cf. SDP, v. 1, p. 221. 40 Va da s molti di questi oratoria diventarono ben presto parrocchie per un insieme di cause facilmente comprensibili: aumento del numero dei fedeli gravitante attorno a tali edifici sacri, lontanaza dal centro parrocchiale e, infine, situazioni politico sociali altrimenti no risolvibili. (SDP, v. 1, p. 222).

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

25

uma doao perptua. Assim a parquia era subtrada da sua influncia. Seu nico

direito era o de apresentar tal bem Igreja e defend-lo, se necessrio41.

No eram poucos os riscos que rondavam os oratrios42. O Papa Gelsio

(410-492) j havia se pronunciado defendendo o direito pblico da igreja43. Mas a

relao de direitos e deveres entre proprietrios e Igreja no estava clara. Por isso,

sucessivos conclios regionais devem insistir na liberdade da Igreja, no mais di-

ante do imprio, mas perante latifundirios. Parece que no foram poucas as pes-

soas que viram na fundao do oratrio uma fonte de recursos44. Entre os sc.

V/VI houve um salto no nmero de oratrios.

A ampliao da rede paroquial foi paralela a outro fenmeno: o desenvol-

vimento dos templos45. Em muitas cidades a domus ecclesiae46 foi ampliada ou

transferida para o ncleo central47. No sc. V, comum encontrar dois templos na

mesma cidade. Para a edificao de novos templos, pedras de edifcios pagos so

reutilizadas. Ao mesmo tempo, campanhas so realizadas entre os fiis. Finalmen-

te, um dado que ter influncia decisiva na fase da infncia da parquia: o poder

pblico comea a amparar as obras, no sem a estranheza de parte da populao48.

41 Cf. SDP, v. 1, p. 88. 42 "I vescovi esitarono a lungo a dotare le "villae" di una organizzazione parrocchiale come stava gi avvenendo nei "vici". Infatti sovente le terre appartenevano ad un unico padrone laico e la chiesa eretta in quelle propriet rischiava di essergli soggetta in tutto e per tutto, e considerata come cosa a lui totalmente appartenente. (SDP, v. 1, p. 221) 43 A legislao gelasiana pode ser assim sintetizada: funo pblica do oratrio, subordinao hie-rrquica, doao para manuteno do edifcio e negao de direitos honorficos aos fundadores. Embora seja alicerce para as normas que vieram depois, no h consenso entre os comentadores sobre a natureza destes princpios. (cf. SDP, v. 1, p. 86-87) 44 Cf. SDP, v. 1, p. 87. 45 Sobre os lugares de culto, trs observaes: (a) os santos comeam a dar nome s igrejas: a par-tir da segunda metade do sc. IV surge o costume de designar os lugares de culto com o nome de um santo mrtir. Os principais ttulos das Igrejas: Salvador e Maria, seguidos dos apstolos e ou-tros (SDP, v. 1, p. 200-202). (b) As relquias: cada igreja quer ter a sua relquia. (SDP, v. 1, p. 204). (c) Os tituli e os padroeiros: em algumas grandes cidades existiam os tituli. No incio, o titu-lo levava o nome do proprietrio, no de um santo padroeiro. No incio do sc. IV se manifesta a tendncia de mudana. (cf. SDP, v. 1, p. 204) 46 Ogni fedele delle citt, per la propria vita religiosa, generalmente si reca alla chiesa vescovile, che non ha bisogno di una denominazione speciale: la domus ecclesiae o ecclesia per eccellenza. (SDP, v. 1, p. 197) 47 Temos aqui dois movimentos. Por um lado, o lugar de culto tende a ir para um espao mais cen-tral das cidades. De outra parte, assustados pelas migraes e invases brbaras, muitos templos que estavam fora dos muros so transferidos para a rea murada. (cf. SDP, v. 1, p. 190) 48 Esta ampliao dos lugares de culto no passou despercebida. Jernimo no se ope constru-o de novos templos, mas questiona seus frutos e motivaes. Sono molti coloro che costruiscono muri, ma poi ti scalzano le basi della chiesa; brillano i marmi, rispendono dor i soffitti, spicca laltare tempestato di gemme, ma intanto non appare nessuna distinzione di virt nei ministri di Cristo. (Jernimo, epist. 52, 10, in: SDP, v. 1, p. 200). Tambm Ambrsio crtico do

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

26

Um dado interessante: no entorno da domus ecclesiae se assenta uma espcie de

vizinhana eclesistica: residncias comunitrias, batistrio etc49.

2.2.4. A vida religiosa dos fiis e o monaquismo

Nesta nova poca em que o cristianismo renasce como elemento de agrega-

o social, a eucaristia se torna lugar de encontro de pessoas e espao social por

excelncia.

Lungo tutto il V secolo non solo la chiesa con le sua cerimonie religiose diventa sempre pi il centro che attira le persone, ove ci si reca per pregare e per istruirsi, per sapere le novit e per incontrare gli altri; ma la messa domenicale va occupando nella citt cristiana un posto privilegiato nei rapporti sociali oltre che religiosi, e questa sua funzione per lungo tempo non le sar mai contestata.50

A leitura das homilias dos Santos Padres fonte curiosa de informaes so-

bre as celebraes51. Cesrio de Arles, Agostinho e Ambrsio nos revelam os pro-

blemas morais dos paroquianos: discusses, fofocas, brigas, conversas e sadas

durante as missas ou oraes, roubalheiras no comrcio etc. Neste perodo, muitos

cristos assumiram postos na hierarquia civil do imprio. O testemunho de vida

nem sempre era edificante. A principal acusao era de corrupo. Quando con-

frontados com o erro, estes cristos diziam que faziam isto porque eram emprega-

dos do governo. Outro grave problema eram os divertimentos. Todas as cidades,

mesmo pequenas, possuam seu circo e muitos cristos os frequentavam. Havia

outras dificuldades, como moralidade conjugal e bebedeiras. Enfim, o cristianis-

mo estreitava suas fronteiras com uma sociedade que moralmente enferma52. Era

o esmorecimento da dimenso peregrinante da parquia.

luxo das novas igrejas. Havia, ainda, a polmica questo dos mosaicos e pinturas (cf. SDP, v. 1, p. 209-210). 49 Traduzimos aqui a palavra italiana quartiere por vizinhana, mas o termo pode ser traduzido por quarteiro. A partir do fim do sc. IV, se constitui no entorno da igreja episcopal uma espcie de regio eclesistica. Alm do templo e do batistrio, havia outros edifcios, como a residncia do bispo ou uma comunidade de clrigos. s vezes, havia um grupo de jovens que se preparava para as ordens maiores. (SDP, v. 1, p. 214) Agostinho relata que ao redor de sua igreja episcopal havia uma intensa vida comunitria: grupo de pessoas consagradas, comunidade formada por cl-rigos e espao para o acolhimento de peregrinos (cf. SDP, v.1, p. 216). 50 SDP, v. 1, p. 285. 51 No havia um rito nico para todas as cidades. Existiam muitas diferenas (cf. SDP, v.1, 290-293) H duas questes curiosas. Agostinho e Cesrio de Arles reconhecem que h homilias que so longas e tediosas. Algumas vezes eles criticam os cochichos que aconteciam durante a celebra-o ou at mesmo o fato de fiis que saam durante o culto. (cf. SDP, v.1, 280-282) 52 Esta opinio, da enfermidade moral daquela sociedade, no era somente apontada pelos prega-dores cristos, mas tambm pelos pensadores da poca (cf. SDP, v.1, p. 487).

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

27

O Edito de Milo teve vrias consequncias. At o fim do sc. III, no se

sentia a necessidade de um afastamento da sociedade. O esprito cristo da poca

est bem descrito na Carta a Diogneto53. Mas com a rpida difuso do cristianis-

mo este cenrio sofreu alteraes. Muitos cristos comearam sentir o imperativo

de uma vida espiritual mais viva, diferente do modo como todos pareciam viver a

religio. Bo observa que esta aspirao por radicalidade espiritual coincidia com o

anseio por uma vida comunitria mais intensa. Por isso, as regras monsticas que

surgem neste perodo54 fazem repetidas referncias primitiva comunidade de Je-

rusalm como modelo e fonte da vida comunitria.

A partire dal secolo IV si verifica all interno della comunit cristiana una clamorosa decadenza nella tensione spirituale e conseguentemente vi un generale abbassamento dei valori etici. Tale situazione di fatto crea i presupposti per la diffuzione in tutta la cristianit di un fenomeno che sino alle sogli del secolo IV era rimasto limitato geograficamente e quantitativamente: il monachesimo cristiano.55

Os mosteiros que surgiram nos sc. IV e V ainda estavam ligados s sedes

episcopais. No se tratava de um afastamento radical das cidades. Eram grupos

que se reuniam em comunidade e formavam a base da vida eucarstica e de orao

das igrejas conduzidas pelo bispo. Estavam situados no quarteiro eclesistico. s

vezes, tratava-se de mosteiros compostos tambm por clrigos que ajudavam na

vida litrgica da igreja episcopal56.

No entanto, aos poucos surgiram algumas dificuldades na relao com os

monges. A primeira dificuldade foi a fundao de mosteiros independentes, sem

licena do bispo. Uma segunda questo foi a aceitao de escravos, que possuam

vnculos que com o seu senhor. Uma terceira questo, que aparentemente teve fei-

o positiva, ser duramente questionada nos sculos seguintes: a ordenao de

53 Vivem na sua ptria, mas como forasteiros; participam de tudo como cristos e suportam tudo como estrangeiros. Toda ptria estrangeira ptria deles, e cada ptria estrangeira. Casam-se como todos e geram filhos, mas no abandonam os recm-nascidos. Pem a mesa em comum, mas no o leito; esto na carne, mas no vivem segundo a carne; moram na terra, mas tm sua cidada-nia no cu; obedecem as leis estabelecidas, mas com sua vida ultrapassam as leis (...) so pobres, e enriquecem a muitos; carecem de tudo, e tm abundncia de tudo. (CARTA A DIOGNETO, n. 5,5-13, in: Padres Apologistas. So Paulo: Paulus, 1995, p. 22-23) 54 O surgimento dos mosteiros neste perodo est ligado s consequncias com o Edito de Milo: grande nmero de batizados que no estavam convertidos, enfraquecimento dos vnculos comuni-trios, disputas doutrinrias que se tornavam violentas, abrandamento dos valores ticos, abranda-mento da caridade etc. De todos estes elementos, o que mais havia se deteriorado parece ter sido o da vida comunitria. 55 SDP, v.1, p. 365. 56 Cf. SDP, v.1, p. 374-376. Pouco se sabe sobre mosteiros na zona rural. Existiam, mas eram raros.

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

28

monges para o ministrio presbiteral57. Por fim, uma quarta adversidade que se

manifestar posteriormente: o conflito com o clero58.

So quatro pequenos exemplos de problemas. Porm, a base em que o mo-

naquismo se assentava era o desejo de uma vida espiritual e comunitria mais vi-

va. Por isso, ele ser um repetido julgamento da fragilidade dos vnculos comuni-

trios da vida paroquial.

Vimos, nesta seo, que a partir da liberdade de culto o cristianismo expe-

rimentou uma forte expanso nas reas rurais do imprio. Este novo cenrio pro-

piciou o nascimento de um novo ator eclesial, aos poucos chamado de parquia.

Nasceu nos campos, afastado da cidade, dirigido por um presbtero, dependente da

autoridade do bispo, que residia na cidade. Exposto o seu nascimento, apresente-

mos sua infncia.

2.3. A infncia da parquia (sc. VI XI)

Aps o estudo nascimento da parquia (sc. IV e V), ingressamos na sua in-

fncia59. a poca dos primeiros reinos brbaros, do Imprio Carolngio e dos di-

versos reinos que surgiram da dissoluo dos domnios de Carlos Magno60.

J no sc. III, o imprio romano demonstrava pequenos sinais de desgaste:

inflao, declnio da populao, enfraquecimento das cidades. Tudo isto culminou

com a queda do Imprio Romano do Ocidente em 476, data em que os hrulos

dominaram Roma. Trata-se de um perodo de intensas transformaes sociais, cul-

turais e polticas. Uma verdadeira mudana de poca.

A descrio da infncia da parquia ser mais resumida que a exposio de

seu nascimento. A tese que norteia esta seo esta: assim como uma criana que

no tem liberdade para fazer suas escolhas e constantemente tutelada, assim

aconteceu com a parquia entre sc. VI e XI. Ela foi conduzida e dominada por

diversos poderes maiores que ela.

57 Bo recorda a frase de Cassiano: ci sono due cose che il monaco deve evitare: la donna e il vescovo. (cf. CASSIANO, IC. XI, 18, in: SDP, v.1, 382). Dois motivos conduziram ordenao de monges. O primeiro era o ofcio litrgico no mosteiro, que exigia mais presbteros. O segundo: a presidncia do culto nas reas rurais onde os monges estavam. (cf. SDP, v. 1, p. 382) 58 Cf. SDP, v. 1, p. 382. 59 Este subttulo emprega especialmente do segundo volume da principal obra de V. Bo: BO, V., Storia della parrocchia: i secoli dellinfanzia (sec. VI-XI), Bologna: EDB, 1990. 60 Cf. SDP, v. 2, p. 9.

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

29

Infatti pur nella successone delle realt scio-politiche nelle quali la parrocchia in questi secoli ha operato, essa si trovata sempre o quasi a dover vivere a subire una specie di tutela e di ingerenza, proprio come un infante, da parte di queste realt (regni, imperi, subimperi e loro dipendenze) che ne hanno condizionato spesso pesantemente lautonomia e la funzionalit e le hanno impedito di assumere una sua specifica e peculiare fisionomia: quella di essere in distans immagine della chiesa locale presente nel vescovo.61

Esta coao no cerceou inteiramente a parquia. Mesmo tutelada, ela foi

capaz de estabelecer novos vnculos sociais, que ultrapassam os laos de cl, tribo

e estado social62.

2.3.1. A parquia diante dos reinos brbaros

Nas primeiras dcadas do sc. VI instalam-se alguns reinos brbaros nos ter-

ritrios do antigo imprio romano do ocidente. So os vndalos, visigodos,

burgndios, ostrogodos. Estas invases trouxeram grandes mudanas para a Igre-

ja. Em primeiro lugar, tratava-se de uma troca de poder. A antiga estrutura civil do

imprio deu lugar a uma organizao social brbara. Em segundo lugar tratava-se

de uma mudana religiosa. Com exceo dos francos, que eram pagos, os brba-

ros eram cristos, mas cristos arianos63.

Durante o sc. VI comea a surgir uma nova elite, fruto da fuso dos grupos

brbaros com a antiga nobreza do imprio. No incio do sc. VII, desta elite que

provinham os grandes proprietrios de terra, onde estavam os oratrios64. Por en-

quanto, mantem-se os mesmos costumes. Os oratrios so somente para a missa

dominical. Nos dias mais festivos, os fiis devem procurar uma igreja paroquial.

Os senhores so responsveis em fazer uma oferta para manuteno do clero que

ir oficiar as celebraes nos oratrios65.

Durante os sc. VI e VII, ampliou-se a rede paroquial atravs da criao de

novas parquias. A parquia mostrou-se o melhor caminho, seno o nico, para

61 SDP, v. 2, p. 9. 62 SDP, v. 2, p. 10. 63 Cf. SDP, v. 2, p. 31. No tardou muito para que praticamente todas as tribos brbaras se conver-tessem ao credo catlico e deixassem o arianismo. 64 Questi grandi signori, laici, svolgono (e svolgeranno) un ruolo considerevole nella diffusione e nella determinazione della rete parrochiale. Anchessi, com i nobili del secolo precedente, costruiscono nei loro domin chiese (oratoria) per s e per si propri dipendente per poter assitere alla messa ogni domenica. (SDP, v. 2, p. 31) 65 Um dado importante: no sc. VI muitos eclesisticos se tornam grandes proprietrios, tendncia que se acentuar nos sculos seguintes. (cf. SDP, v. 2, p. 33)

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

30

fornecer aos habitantes dos vici e pagi uma mnima prtica religiosa crist. Os de-

safios eram enormes: adaptao aos novos senhores, esvaziamento de muitas al-

deias, doenas, converses em massa dos povos brbaros sem a devida catequese

etc66. Neste cenrio de grande instabilidade, a parquia revelou-se elemento de

agregao social67.

Por isso, o bispo e, em menor grau, o presbtero se convertem em sinal de

estabilidade, esperana e vnculo social. Acentua-se uma tendncia j presente na

infncia da parquia: cada vez mais o servio eclesistico visto como fonte de

prestgio e poder, atraindo candidatos descomprometidos com valores cristos. Os

conclios procuram responder com antigas e novas normas: vida comum para

presbteros, diferenciao do clero e do leigo (vestimenta prpria, tonsura), vigi-

lncia maior dos bispos atravs da visita pastoral etc.

Neste perodo de intensas mudanas, a Igreja menos se aclimatou e mais se

estabilizou. As missas eram em latim, lngua que os brbaros pouco entendiam.

Diante do medo de heresias h um processo de uniformidade do culto. Nas cida-

des a liturgia celebrada com certa beleza, mas no interior bem rudimentar. Os

sc. V a VII testemunharam progressiva queda na frequncia eucarstica. Por ou-

tro lado, um perodo de intensas mudanas na prtica penitencial68.

Um grande desafio enfrentado na vida sacramental das parquias estava na

vida matrimonial. As tribos brbaras no possuam uma compreenso de famlia

que se harmonizava com a compreenso crist. O matrimnio era, sobretudo, uma

aliana entre famlias. Alm disto, havia comportamentos que no eram vistos

como pecaminosos, como o aborto ou o abandono de crianas69.

A administrao eclesial sofreu modificaes. Devido a uma srie de moti-

vos, h um crescimento dos bens eclesisticos70. Por isso, surgem legislaes mais

66 Cf. SDP, v. 2, p. 37ss. 67 Nel turbinoso avvicendarsi di regni, nel ribollire di nuovi quadri politici e di condizioni socio-economiche, nel configurarsi di nuove classi sociali, solo la chiesa resta in piedi e verso di essa convergono le speranze delle popolazioni. (SDP, v. 2, p. 44) 68 At o sc. IV a penitncia provinha do bispo, era pblica e ligada ao processo de converso. O contato com a cultura germnica e o novo contexto eclesial geraram mutaes, que no foram au-tomaticamente aceitas. Os presbteros comearam a ouvir o penitente em privado, prescrevendo uma penitncia particular. Havia livros para determinar a penitncia, que deixou de ser para ser um momento singular na vida. A converso definitiva parece ter perdido importncia (cf. SDP, v. 2, p. 63). 69 Cf. SDP, v. 2, p. 66ss. 70 A Igreja sobreviveu a este perodo de intensas mudanas. Por isso, tornou-se a proprietria que no perdeu posses. Outro fator que gerou acmulo: a deferncia com que os cristos enterravam

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

31

complexas. Entre as normas, uma se destaca: os bispos devem socorrer as par-

quias do interior, desprovidas de recursos suficientes para sua manuteno71.

No tempo dos reinos brbaros a vida religiosa das parquias marcada de

devoes e supersties. Em uma era de intensas mudanas, a devoo aos santos

foi uma busca de um abrigo seguro perante intensas dificuldades, tais como fome,

frio e violncia. Para outros, a superstio permanecia a fonte de segurana72.

Por fim, neste perodo de choques culturais e sociais a parquia exerceu um

papel catalizador. Na pregao, os pobres e escravos ouviam que o que era proibi-

do para eles, o era tambm para os ricos. O discurso era sobre o ser humano, e por

isso nivelava a todos perante a majestade de Deus73.

2.3.2. A parquia no Imprio Carolngio

Pouco antes da metade do sc. VIII ocorreu uma grande mudana na Euro-

pa: a ascenso da dinastia carolngia74. Uma srie de vitrias polticas e militares

embalou os carolngios no sonho de reviver o imprio romano, o que aconteceu,

ao menos parcialmente, atravs do Sacro Imprio Romano. Carlos Magno foi o

monarca carolngio por excelncia e teve a pretenso de governar tudo, tambm a

religio. Por isso, ele refez o tecido eclesial redistribuindo as sedes episcopais. Ao

mesmo tempo, devolveu bens eclesisticos que seus antecessores haviam tomado.

Para manter seu poder, se utilizou de duas autoridades. Em cada regio havia uma

autoridade civil e outra religiosa. Carlos foi chamado vigrio de Deus, enquanto

o Papa era chamado vigrio de Cristo.

A tutela sobre a parquia intensificou-se, pois o imperador era o responsvel

seus mortos. Nesta poca, difunde-se a missa pelos mortos, o que levou a um aumento dos bens da Igreja. Muitas posses foram doadas s igrejas, para que rezassem por aquele que havia lhes con-fiado a herana. (cf. SDP, v. 2, p. 70) 71 Cf. SDP, v. 2, p. 71s. 72 A devoo aos santos principalmente por proteo, menos que o desejo de imitar suas virtudes. (cf. SDP, v. 2, p. 76) Por outro lado, a superstio continua presente e os conclios enumeram v-rias prticas censuradas. A prtica pastoral no era somente de represso. Havia o esforo para, a partir do contexto cultural dos povos, chegar a uma evangelizao menos traumtica. Sobre isto, h um interessante texto de Gregrio Magno a Melito (Epist. IX, 71). (cf. SDP, v. 2, 77) 73 Cf. SDP, v. 2, p. 79. 74 Carolngia o nome da dinastia franca que sucedeu aos merovngios. A famlia merovngia ex-tinguiu-se com a morte do rei Dagoberto II (652-679) e foi substituda por seus antigos criados, os "Prefeitos do Palcio", que formava a linhagem carolngia. Carlos Magno (742-814) o mais fa-moso representante desta dinastia, sendo coroado imperador do Sacro Imprio Romano pelo Papa Leo III no Natal de 800.

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

32

pela Igreja. Ele a protegia e desejava espalhar a f crist por todas as linhas do

imprio. Sua ingerncia era cada vez maior: convocava conclios regionais e deu

valor civil s normas eclesisticas. A Igreja estava ainda mais atrelada organiza-

o e conservao do imprio75.

At o sc. VIII, o dzimo era incentivado, mas no era obrigatrio. No ha-

via leis precisas sobre isto. Com os carolngios isto mudou. Tornou-se uma lei a

ser fielmente obedecida e agora cobrada pelo imprio. Sua cobrana era feita, se

necessrio, com a violncia.

Igualmente, o clero atingido por esta interferncia externa. Por um lado, h

uma srie de leis que buscam reorganizar e moralizar o servio clerical. Porm,

nem sempre as leis suscitam reformas. Por outro lado, surgem os primeiros sinais

da interferncia dos poderes laicos sobre as parquias. Alguns proprietrios fize-

ram valer sua fora para ordenar seus escravos, e assim ter autoridade sobre a co-

munidade crist de seu territrio76.

A chave para quantificar a vida crist dos fiis era a missa dominical. Prati-

camente todos os conclios da poca tratam a questo. Entretanto, boa parte do

povo no comungava. Merece ateno o sacramento do matrimnio, que adquire

um estatuto cannico, parte do que temos hoje. Da parte do povo, a devoo aos

santos, as peregrinaes e o culto s relquias se expandem77.

O perodo carolngio foi um momento em que a tutela sobre a parquia tor-

nou-se mais intensa78. Estas ingerncias provenientes do imperador se concretiza-

vam, sobretudo, atravs de normas. Neste sentido, foi uma tutela com forte ampa-

ro nas leis. O imprio de Carlos Magno se desfez rapidamente, mas as estruturas

legislativas que ele construiu permaneceram como uma porta aberta ingerncia

dos monarcas subsequentes79.

75 Cf. SDP, v. 2, p. 84. 76 Nesta poca, surgem duas expresses famosas: alto clero e baixo clero. Os primeiros so aqueles que tm cargos. Os ltimos esto nas parquias do interior e tm menos recursos. 77 La parrocchia, in quanto tale, non riesce a smuovere lapatia dei fedeli se non sotto la spinta di forti, ma occasionali e quindi passeggere, emozione. Lo stesso fenomeno crescente dei pellegrinaggi non visto di buon occhio dalle autorit religiose perch spesso si rivela pi motivato da spirito di evasione che scaturito da fede sincera e profonda. (SDP, v. 2, p. 138) 78 A reforma carolngia no conseguiu seu intento porque surgiram guerras que dissolveram a uni-dade do imprio e uma reforma precisa de um tempo de maturao. Por fim, era uma reforma ba-seada principalmente em leis. (cf. SDP, v. 2, p. 178) 79 Cf. SDP, v. 2, p. 138.

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

33

2.3.3. A parquia nas mos dos poderes laicos

A viragem do milnio foi o pice da tutela das parquias, o perodo em que

explodiu o escndalo das investiduras80. O episcopado, em grande parte, foi redu-

zido a uma investidura, quase diludo em um cargo civil de confiana do rei. Re-

formas esto em curso, mas se manifestaro, sobretudo nos sculos seguintes:

pregadores itinerantes de inspirao apostlica, novas ordens, retorno pobreza81.

Os conclios da poca retratam a luta por privilgios e direitos. Quem tem

direitos sobre esta ou aquela parquia? E os dzimos? A soluo passa pelo en-

frentamento da simonia, do nicolasmo e da venda de investiduras82. Neste pero-

do, os papas que vieram da vida monstica procuraram impor sua concepo ecle-

sial: vida comum dos padres, luta contra investiduras, luta contra o matrimnio do

clero etc83.

H uma ampliao da rede de parquias e dioceses, mesmo com a prescri-

o da legislao gelasiana que afirmava que a criao de uma parquia s legi-

tima se ela tem como manter-se. Mas esta norma recebia diferentes interpretaes.

Nesta poca, a maioria das parquias se encontrava em terrenos que pertenciam a

senhores leigos. Eram propriedades que podiam ser dadas em herana ou vendi-

das. Havia tambm o problema dos bispos proprietrios, que possuam terras e

templos em outra diocese e agiam no somente como proprietrios, mas tambm

como bispos, consagrando ou construindo igrejas, sem a licena do ordinrio lo-

cal. Os bispos tinham o direito de negar uma ordenao. Mas se um candidato era

recusado, o proprietrio interessado em ter um proco poderia ir at outro bispo e

solicitar ordenao, o que acontecia com frequncia84.

A intromisso dos poderes laicos era tal que impedia que a parquia cum-

80 Questo das Investiduras o nome dado conflito referente ingerncia dos poderes laicos na nomeao de autoridades eclesisticas. 81 Cf. SDP, v. 2, p. 145. 82 Cf. SDP, v. 2, p. 146. 83 Neste contexto, merece destaque a reforma gregoriana, de Gregrio VII (1073-1085). 84 SDP, v. 2, p. 161. Havia a commendatio ecclesiae: O proco fazia um juramento ao proprietrio, dele recebia as chaves do templo e a ele pagava uma taxa anual. Havia tambm o caso em que a parquia pertencia a um mosteiro ou abadia, que tambm deveria receber sua taxa. No sc. X sur-giu a tese da distino entre altar e igreja (templo). O altar era consagrado e por isso pertencia a Deus. Mas o templo era um edifcio, e por isso deveria ter um proprietrio. O que pertencia ao templo era destinado ao proprietrio. Quanto ao proco, ele recebia uma porcentagem do dzimo, pelos servios prestados. (cf. SDP, v. 2, p. 162-164)

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

34

prisse seu papel evangelizador85. Uma reforma era urgente e ela comeou em al-

guns mosteiros aos quais outros se uniram86. Foi a Reforma Gregoriana87. Num

perodo em que parquia e mosteiros possuam muitos mais vnculos do que hoje,

esta reforma atingiu vrias parquias.

A luta contra as investiduras desembocou na Concordata de Worms88, que

distinguiu, juridicamente, a funo espiritual da funo temporal. Sicch il diritto

di patronato rivoluzion completamente la situazione: al patrono rimase lobbligo

di provvedere alla conservazione dei beni e il diritto di presentare il candidato.89

O proprietrio possua o direito de cuidar do templo e apresentar um candidato ao

cargo de proco, mas no possua nenhuma autoridade espiritual sobre ele. Isto

cabia hierarquia. Em comparao com o modelo do sculo anterior, este modelo

era uma evoluo. Uma srie de conclios regionais converteu em cnones os

princpios da Concordata de Worms90.

Il concordato de Worms del 1122 definisce comunque larea di compentenza sia della chiesa che dello stato nel complesso e intricato problema dell investiture. Da quella data inesorabilmente ma pur sempre decisamente si avvi un certo recupero di autonomia e di indipendenza per la parrocchie sul versante liturgico-cultuale e su quello economico, allora molto avvertito.91

85 Nel secolo XI la situzione della chiesa in generale e della parrocchia in particolare era giunta a un punto tale da impedire a entrambe una sia pur minima fedelt allo spirito religioso che le doveva caratterizzare a causa delle continue tensioni provocate dallintreccio con il potere politico. (SDP, v. 2, p. 167) 86 O mosteiro mais clebre neste processo de reforma o de Cluny, na Frana. Entretanto, outros devem ser lembrados: Gorze (Frana), Montecassino (Itlia), Vallombrosa (Itlia, com S. Giovani Gualberto) e Camaldoli (onde nasceu a ordem dos camaldulenses) (cf. SDP, v. 2, p. 168s). 87 A reforma gregoriana deriva seu nome do Papa Gregrio VII (1073-1085). Entretanto, a reforma j havia iniciado alguns anos antes, com Leo IX (1049-1054) ou Nicolau II (1058-1061). Foi uma reforma encabeada por papas provenientes do monacato. Ao mesmo tempo em que foi um movi-mento de retorno s origens do cristianismo, de purificao e de independncia da f crist, a re-forma foi tambm uma afirmao do poder papal perante o poder feudal, do poder espiritual sobre o poder temporal. Neste sentido, a reforma gregoriana conduziu a uma concentrao de poder nas mos do papa. Internamente, foi uma luta contra a simonia, heresias e nicolasmo e investiduras que teve fortes e positivas influncias sobre a parquia. (cf. SDP, v. 2, p. 168-169; CODINA, V., Para compreender la eclesiologa desde Amrica Latina, Navarra, Verbo Divino, 2008, p. 88-89) 88 A Concordata de Worms foi um acordo entre o Papa Calixto II (11191124) e o Imperador Hen-rique V, celebrado em 1122, perto de Worms, Alemanha. Foi uma conveno que encerrou, ao menos naquele momento, o problema das investiduras. O imperador possua o direito de investir bispos com a autoridade secular (lana), mas no com a poder espiritual (anel e bculo), reservado ao Papa. O imperador apresentava, mas era o papa quem institua. Para a poca foi um avano, pois distinguia poderes. Contemplando do presente, vemos que faltavam vrias estaes na via sa-cra para que a parquia alcanasse alguma libertao. 89 SDP, v. 2, p. 169. 90 Cf. SDP, v. 2, p. 170. 91 SDP, v. 2, p. 172. Obviamente os poderes do estado, dos senhores feudais ou das cidades tenta-ram sempre recuperar o poder sobre a igreja. No entanto, a Concordata de Worms, mesmo que no

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

35

Duas consideraes sobre o clero e a vida social dos fiis... Quando se abor-

da o clero dos sculos VI e XI brotam palavras como simonia ou nicolasmo92. De

fato, tratava-se de um clero no preparado para o pastoreio e com graves limites

morais. Os textos das homilias de bispos reformadores, como S. Pedro Damio,

fazem duras crticas ao comportamento clerical93. As origens desta realidade de-

vem ser buscadas na dependncia que a Igreja vivia em relao aos poderes laicos

e tambm na sociedade da poca. Com o surgimento de vrios senhores, brotaram

diversas e divergentes leis. Isto criou certo caos moral94. Por isso, Bo afirma que

no se pode simplesmente colar no clero dos sc. IX e XI os rtulos de nicolastas

e simonacos. Trata-se de um clero que reflete aquilo de positivo e de negativo

que havia naquela sociedade. Enfim, um clero que no havia ainda recebido os

ventos de reforma, vindos dos mosteiros95.

Estes mesmos mosteiros influenciaram a vida do povo. Muitos leigos se tor-

naram oblatos e trabalham nas terras dos monges. Nesta nova realidade melho-

raram consideravelmente de vida96. Ali aprenderam ofcios que os ajudaram a ad-

quirir nova identidade social. Com o tempo, os laos jurdicos com os mosteiros

se enfraqueceram, mas foi em torno deles que se gestou a futura sociedade.

Nas parquias, a liturgia adquiriu um novo status. Havia prescries sobre o

modo de celebrar a missa (que frequentemente no eram observadas). A prtica

do jejum era muito difundida. Continuava a luta para implantar a indissolubilidade

do matrimnio. Aos poucos, surgiram novas confrarias. Aumentou ainda mais o

interesse pelas peregrinaes, procisses e relquias.

Resumindo, a infncia da parquia foi uma fase de tutela: brbaros, caroln-

gios e novos senhores. A parquia, instituio eclesial encarnada, refletiu as luzes

e trevas daquele momento. Aps sobreviver s intromisses diversas, ela estava tenha resolvido em definitivo o problema, apresentou coordenadas para as discusses futuras (SDP, v. 2, p. 173) 92 Junto a estes dois pecados, os textos conciliares condenam outras prticas que, deve-se intuir, estavam presentes na vida de muitos padres: vaidade (barba ou roupas caras), caa, jogos, usura, bebedeiras, padres com filhos etc. Outra questo era aquela de padres que, em uma estratgia de simonia, foram ordenados mesmo sendo escravos, e por isso deviam obedincia ao seu propriet-rio. Os conclios ordenam sua libertao para validade da ordenao. (SDP, v. 2, p. 188) 93 SDP, v. 2, p. 180. 94 Cf. SDP, v. 2, p. 190ss. 95 Este clero ne avverte il soffio e pur con i suo i limiti culturali e ambientali prepara attraverso la propria azione pastorale, lavvento di quei movimenti popolari a sfondo evangelico-pauperistico che di l a poco caratterizzeranno la vita di molte comunit cristiana, urbane e rurali. (SDP, v. 2, p. 196) 96 SDP, v. 2, p. 203.

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

36

pronta para a adolescncia97.

2.4. A adolescncia da parquia (sc. XII XIV)

A parquia dos sc. XII e XIV participou de um momento mpar da histria

da Europa: crescimento das cidades, renascimento do comrcio, fortalecimento de

algumas naes estado, fundao das primeiras universidades, arquitetura gtica e

filosofia escolstica. Foi, tambm, o tempo de sucessivas guerras, de cruzadas e

heresias, do Exlio de Avignon e da peste negra. Enfim, uma sociedade que viveu

um momento de ebulio, mas que antecedeu mutaes ainda maiores que viriam

com o renascimento98.

Segundo Bo, neste perodo a parquia passa por um trabalho de crescimen-

to. Riva, que faz a apresentao deste volume99 afirma que a adolescncia da

parquia100: uma fase de transio em que a parquia no mais aquela dos per-

odos anteriores, mas ainda no aquela que ser depois de Trento. Neste momen-

to, como um adolescente, a parquia experimenta certa independncia, recente-

mente conquistada com a Concordata de Worms. Esta relativa autonomia se refle-

te em uma srie de conclios que convertem em cnones os princpios da Concor-

data101. Diferentemente da maioria dos conclios anteriores, nestes conclios pre-

dominaram temas pastorais102. Por outro lado, verifica-se um progressivo desres-

peito s normas eclesiais e apego mundanidade. Trento ser a resposta a esta

mistura de foras negativas e reformadoras.

Um dos traos caractersticos daquele momento foi o renascimento urbano,

associado ao crescimento demogrfico, consequncia do desmatamento de novas

97 Cf. SDP, v. 2, p. 225. 98 O perodo histrico estudado nesta seo quase coincide com a primeira metade da Baixa Idade Mdia (sc. XI-XV). Seguindo as balizas epocais de Bo, abordaremos o arco entre a Concordata de Worms (1122) e o retorno dos papas de Avignon (1377). Bo reconhece que um perodo de difcil anlise, com historiadores se dividindo entre distintas apreciaes. 99 Este subttulo colhe os principais elementos do terceiro volume da obra: BO, V., Storia della parrocchia: il travaglio della crescita (sec. XII-XIV), Bologna: EDB, 1991. 100 RIVA, C., Presentazione, in: SDP, v. 3, p. 6. 101 Cf. SDP, v. 3, p. 33-64. 102 Cf. SDP, v. 3, p. 39. Um tema recorrente o paroquiato: apresentao de candidatos, idade e qualidade dos procos, tempo e requisitos para ordenao, proibio da investidura de clrigos analfabetos, obrigao de residncia, testamento do clero, igrejas vacantes etc. Frequentemente, as leis se encerram com a excomunho para aqueles que as desobedecem. (cf. SDP, v. 3, 46-52). Fi-nalmente, h muitos cnones sobre questes administrativas: rendimentos, dzimo, obrigao de inventrio, licenas para construir templos, reformas, mveis etc. (SDP, v. 3, p. 60-61).

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

37

reas nos campos e ampliao de reas cultivveis103. Cidades maiores determi-

naram a criao de novas parquias, o que foi facilitada pela presena de numero-

sos conventos, muitos deles convertidos em parquias. Outro agente foi o surgi-

mento de novos grupos sociais, oriundos principalmente do comrcio, que toman-

do conscincia de seu papel social reivindicam as suas parquias104.

Este processo no foi isento de tenses. Novas parquias foram criadas a

partir do fracionamento de parquias maiores. Esta ao foi gradual, mas no di-

fcil imaginar os conflitos entre procos: reclamaes como diviso de ofertas, di-

reito de sepulturas, dzimos, diminuio do nmero de fiis nas celebraes da

igreja me etc. Neste contexto, surge um trao caracterstico da parquia: a territo-

rialidade105.

Per tutto il primo millennio la parrocchia, intesa come struttura territoriale della chiesa locale, interessa quasi esclusivamente le zone rurali, le campagne che circondano o gravitano attorno alla citt sede del vescovo. Ma bisogna stare attenti anche nella qualifica di territorialit considerata in senso stretto; infatti solo con le disposizione del concilio lateranense IV (1215) che vincolano i fedeli a fare la loro confessione annuale e la comunione pasquale nella propria parrocchia (can. 21) si mette in evidenza la necessit di una precisa delimitazione geografica del territorio parrocchiale.106

Atravs da Concordata de Worms vrios templos foram restitudos Igreja.

Muitas abadias, mosteiros, cabidos de cnegos receberam templos que estavam

nas mos de abastados107. Obviamente, na maioria dos casos, esta devoluo no

foi realizada sem resistncias108. No se tratava somente de templos, mas de re-

cursos. O principal deles era o dzimo. Os senhores laicos impuseram diversos

obstculos para que as parquias recolhessem o dzimo109.

103 Cf. SDP, v. 3, p. 66. 104 Os fiis das paroquias urbanas, motivados por seus fortes vnculos comunitrios, se interessa-vam pela construo e reforma dos templos, o que levou a uma maior participao na administra-o das parquias. Obviamente, isto gerou tanto crescimento, quanto conflitos com a hierarquia. (cf. SDP, v. 3, p. 66) 105 Cf. SDP, v. 3, p. 67-68. 106 Cf. SDP, v. 3, p. 69. 107 Cf. SDP, v. 3, p 72. 108 Neste perodo, o clero foi vtima de perseguio em muitos reinos europeus. Em uma fase de autoafirmao contra os poderes civis, a Igreja utilizou duas armas que tiveram influncia nas pa-rquias: o interdito e a excomunho. O interdito era a suspenso de celebraes religiosas pblicas em uma cidade, parquia, convento ou toda uma diocese. A segunda arma era a excomunho. Mui-tos cnones se encerravam com esta condenao, o que equivalia excluso da vida social. O ex-comungado no podia assistir missa, sequer entrar no templo. No podia, igualmente, ser sepul-tado no cemitrio. Obviamente, ele poderia retornar comunho, desde que cumprisse a penitncia prescrita, se convertesse do mal praticado e recebesse a absolvio. (cf. SDP, v. 3, p. 256-260) 109 Como veremos adiante, o dzimo trocou de mos. Das mos dos poderes laicos, para as mos dos poderes eclesisticos.

DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1312501/CA

38

Entretanto, a Igreja parece no ter tido suficiente conscincia da necessidade

de preparar o clero paroquial. Os conclios insistiram na preparao cultural do

clero, mas a aplicao foi insatisfatria. Insiste-se muito na moralizao dos pa-

dres, combate-se a simonia e defende-se o celibato. A tonsura torna-se obrigatria.

Mas a frequncia com que surge o tema do concubinato clerical nos cnones con-

ciliares denuncia a gravidade da situao110.

Havia o problema da nomeao do proco, competncia do bispo. Entretan-

to, era comum a pr