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Page 1: Embondeiro - arpac.gov.mzFicha Técnica Direcção: João Fenhane e Angélica Munhequete Coordenação e Revisão: Ruben Taibo e Fernando Manjate Autores: Xadreque Mate, Sónia Ajuda,
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Embondeiro Publicação Sócio-Cultural do ARPAC

Perspectivas, Análises e Descrições

ARPAC-Instituto de Investigação Sócio-Cultural

Outubro de 2018

Page 3: Embondeiro - arpac.gov.mzFicha Técnica Direcção: João Fenhane e Angélica Munhequete Coordenação e Revisão: Ruben Taibo e Fernando Manjate Autores: Xadreque Mate, Sónia Ajuda,

Ficha Técnica

Direcção: João Fenhane e Angélica Munhequete

Coordenação e Revisão: Ruben Taibo e Fernando Manjate

Autores: Xadreque Mate, Sónia Ajuda, Sérgio Patrício, Assumail Raidone, Maria Rangel,

Luís Bembele, Zaino Valegy, Pascoal Saraiva e Abel Mazuze

Maquetização: Cândido Nhaquila

Número de Registo: 07/GABINFO-DEPC/2017

Page 4: Embondeiro - arpac.gov.mzFicha Técnica Direcção: João Fenhane e Angélica Munhequete Coordenação e Revisão: Ruben Taibo e Fernando Manjate Autores: Xadreque Mate, Sónia Ajuda,

Apresentação

O Colonialismo e o Destino das Danças Tradicionais Guerreiras em Moçambique……….8

Xadreque Paulo Mate

Conhecimentos, Práticas e Simbologia Comunicativas na Cerimónia de Lobolo……...….19

Sónia Lopes Ajuda

“Mãe das Mães”: o papel das Apwyamwenes entre os A-Makhuwa da Província de Niassa, Norte de Moçambique…………………………………………………………………………….32

Sérgio Roques Patrício & Assumail Raidone

Omissões do Património Cultural na Fortaleza de Maputo na perspectiva dos discursos dos visitantes……………………………………………………………………………………….49 Maria Madalena Rangel

Turismo Cultural: uma reflexão sobre alguns locais associados aos Makombe no desenvolvimento da actividade turística……………………………………………………….57 Pacoal Santos Saraiva

A Revolta do Barué e o Distrito de Tete: entre a insurreição generalizada e aversão

Ngoni………………………………………………………………………………………………....72

Zaino José Valegy

Análise das Logicas Sociais nos Projetos de Desenvolvimento em Turismo em Moçambique: o caso da Localidade de Gala no Distrito de Matutuine, Província de Maputo………………………………………………………………………………………………80

Luís Isidro Bembele

O Esboço Político-Administrativo do Estado de Gaza e Sua Influência no Processo Recente de Legitimação da Autoridade Tradicional em Xai-Xai……………………………..96

Abel Mazuze

Page 5: Embondeiro - arpac.gov.mzFicha Técnica Direcção: João Fenhane e Angélica Munhequete Coordenação e Revisão: Ruben Taibo e Fernando Manjate Autores: Xadreque Mate, Sónia Ajuda,

Apresentação

A Revista Embondeiro, uma edição do ARPAC - Instituto de Investigação Sócio-Cultural apresenta-lhe o seu número dois (N° 2) contendo 8 artigos de investigadores de toda a sua rede espalhada por nove províncias de Moçambique, incluindo a Sede na Cidade de Maputo nomeadamente (Maputo, Gaza, Sofala, Manica, Tete, Zambézia, Niassa e Cabo Delgado). Versando sobre a pesquisa, preservação e divulgação do Património Cultural Imaterial (PCI) moçambicano, a presente edição responde a um dos pilares fundamentais do nosso instituto, nomeadamente a divulgação do conhecimento que é gerado com base em processos de pesquisa sobre a diversidade cultural de Moçambique e a sua História. Tal como no número anterior, o No 2 apresenta uma diversidade de assuntos tais como as danças, formas de vida de comunidades moçambicanas, património cultural, turismo cultural e História de Moçambique.

O primeiro artigo assinado por Xadreque Mathe aborda o colonialismo e o destino das danças tradicionais guerreiras em Moçambique e procura demonstrar o lugar das danças tradicionais de natureza guerreira no contexto do colonialismo em Moçambique, prefigurado pela concepc ao etnocêntrica que pressupõe a existência de culturas “inferiores” e “superiores”, sendo que estas deviam por vontade dos portadores se imporem aquelas no sentido de extingui-las, sobretudo, em situações em que se mostrassem potencialmente antagónicas a ordem politica instituída. Elenca também a forma como as autoridades coloniais procuraram aliciar os autóctones a renunciarem suas raízes culturais em prol dos hábitos e costumes impostos pelo sistema colonial português.

Em Conhecimentos, Praticas e Simbologia Comunicativas na Cerimónia de Lobolo, Sónia Lopes Ajuda, mostra a dinâmica da comunicação que se desencadeia no desenrolar da cerimónia de lobolo, com ênfase no ritual de saudação entre as comitivas encarregues de presidir a cerimónia. O estudo partiu do pressuposto de que e necessário que os interlocutores nas cerimônias de lobolo, dominem as regras de interação para comunicarem adequadamente neste tipo de cerimónia pois, os actos de fala que estão em torno da cerimónia, estão envoltos de simbologias que denotam as regras de interação, respeito, hierarquia, relacionamento ou ainda de boa conduta sociais - na visão do mundo e construção de relações sociais do povo Rhonga e Changana - que requerem competências linguística e comunicativa, próprias da cultura em alusão.

“Em Mãe das Mães”: o papel das Apwyamwenes entre os A-Makhuwa da Província de Niassa, Norte de Moçambique, Sérgio Roques Patrício e Assumail Raidone levam-nos a compreender o papel das Apwyamwenes nas comunidades A-Makhuwa de Niassa, descrevendo a sua legitimidade nas comunidades, reconhecimento pelas autoridades governamentais, e as relações de género existentes entre as diversas lideranças tradicionais. A pesquisa baseou-se na revisão bibliográfica e em entrevistas semi-estruturadas individuais e coletivas a líderes tradicionais, entidades governamentais e religiosas nos distritos de Cuamba, Mandimba, Majune, Marrupa, Maua, Mecanhelas e Metarica.

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Maria Madalena Rangel apresentam as Omissões do Património Cultural na Fortaleza de Maputo na perspectiva dos discursos dos visitantes. O estudo que faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre narrativas de visitantes da Praça Nossa Senhora da Conceição vulgo Fortaleza de Maputo, um local considerado Património Cultural Moçambicano. Na pesquisa foi feita a análise dos discursos dos visitantes à Fortaleza de Maputo permitindo compreender, por um lado, que o património cultural e um lugar que predomina uma história única, e estática e, por outro, que e um lugar dinâmico e de questionamento em que a memoria e reconstruída a cada dia. Com o estudo foi possível compreender que os indivíduos consideram que a Fortaleza de Maputo constitui uma memória omissa quanto a história dos moçambicanos, porque faltam nela exposições dos feitos, conquistas e objectos moçambicanos.

O Turismo Cultural: uma reflexão sobre alguns locais associados aos Makombe no desenvolvimento da actividade turística que nos é trazido por Pascoal Santos Saraiva apresenta uma reflexão sobre a necessidade de preservação do património cultural como base atrativa para o desenvolvimento da actividade turística, com enfoque em alguns locais associados a Dinastia Makombe. Trata-se de uma pesquisa levada a cabo no âmbito das celebrações do centenário da revolta de Bárue. Para tal, foi feito um levantamento de campo sobre o estado actual e os problemas que afectam aos locais históricos culturais, nomeadamente, Amuralhado de Magure, Forte de Massangano e Tambara. As informações obtidas foram analisadas tendo em conta os factores determinantes no desenvolvimento do turismo cultural.

Zaino José Valegy apresente-nos A Revolta do Báruè e o Distrito de Tete: entre a insurreição generalizada e aversão Ngoni cujo estudo se circunscreveu ao movimento de celebração do centenário da Revolta de Bárue. Ele mostra que o processo de conquista e domínio colonial português no centro de Moçambique foi marcado por uma oposição forte por parte dos nativos. O Bárue tornou-se no símbolo mais expressivo desta oposição. Fruto da desagregação do Império de Mwenemutapa, o poderio Bélico dos Bárue teria sido influenciado pela posse de armas de fogo obtidas do comércio com mercadores indianos e europeus. A excelente capacidade que os seus líderes tinham na mobilização e no estabelecimento de alianças com outros grupos étnicos hostis a presença portuguesa, culminou com uma insurreição generalizada, iniciada em Março de 1917. Esta insurreição ultrapassou as suas fronteiras e estendeu-se ate a região norte de Tete.

A análise das Logicas Sociais nos Projetos de Desenvolvimento em Turismo em Moçambique: o caso da Localidade de Gala no Distrito de Matutuíne, Província de Maputo é o trabalho trazido por Luís Isidro Bembele em que examina os projetos de desenvolvimento do turismo implementados em Gala, distrito de Matutuíne, província de Maputo. O pressuposto básico e de que independentemente do tipo de organização ou do modo de intervenção, uma acção de desenvolvimento inevitavelmente da origem a interação entre dois atores sociais pertencentes a mundos diferentes (as agências de desenvolvimento e os que precisam ser desenvolvidos) cujos padrões de conhecimento são regulados por uma variedade de logicas. Nesse sentido, a pesquisa mostra que os atores e grupos estratégicos estão

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em constantes negociações, disputas e confrontações. Por outro lado, embora os atores fossem heterogêneos e com interesses diferenciados, no seio da comunidade de Gala, todos tem poder de interferir no seu contexto mesmo que seja de uma forma desigual.

Em o Esboço Poli tico-Administrativo do Estado de Gaza e Sua Influência no Processo Recente de Legitimação da Autoridade Tradicional em Xai-Xai, Abel Mazuze descreve a forma como o Estado de Gaza conseguiu inserir-se em Xai-Xai (capital da província de Gaza) no século XIX a ponto de manter sua estrutura administrativa legitimada na configuração da autoridade tradicional actual. Para o efeito, faz-se um breve debate conceptual, onde são discutidos os conceitos de autoridade e poder. É também apresentado o historial da evolução da autoridade tradicional em Xai-Xai desde o período pré -colonial a actualidade, onde são debatidas questões relacionadas com a forma como esta manteve seus traços do passado ao presente. A principal conclusão a que o estudo nos remete, e que a autoridade administrativa do Estado de Gaza conseguiu manter-se ao nível da estrutura tradicional, através de uma conjugação de factores como a manipulação da crença generalizada na acção dos ancestrais sobre o dia-a-dia dos vivos; adopção de uma política de assimilação e respeito pelas estruturas linhageiras locais.

João Fenhane (Director Geral do ARPAC)

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O Colonialismo e o Destino das Danças Tradicionais Guerreiras em Moçambique

Xadreque Paulo Mate [email protected]

Resumo

Este artigo procura demonstrar o lugar das danças tradicionais de natureza guerreira no contexto do colonialismo em Moçambique, prefigurado pela concepção etnocêntrica que pressupõe a existência de culturas “inferiores” e “superiores”, sendo que estas deviam por vontade dos portadores se imporem àquelas no sentido de extingui-las, sobretudo, em situações em que se mostrassem potencialmente antagónicas à ordem política instituída. Elenca também a forma como as autoridades coloniais procuraram aliciar os autóctones a renunciarem suas raízes culturais em prol dos hábitos e costumes impostos pelo sistema colonial português.

Palavras – chave: Colonialismo; danças tradicionais guerreiras; autoridades tradicionais.

Introdução

A partir de uma experiência de campo, no âmbito da recolha de dados e captação de imagens sobre danças tradicionais na província de Gaza, que culminou com a produção do livro e do DVD, ambos intitulados, “Algumas Danças Tradicionais da Província de Gaza1”, dos autores Alberto Valoi, Arsénia Matsinhe e João Vilanculo, foi possível ter uma aproximação com o complexo mundo das danças, em particular as praticadas naquela parcela de Moçambique. No entanto, essa participação permitiu, igualmente uma análise minuciosa das mensagens, das histórias, das demonstrações, da indumentária e de outros aspectos, que as danças tradicionais incorporam.

Esta experiência permitiu a construção da tese que constitui a rotunda deste artigo, segundo a qual, as danças tradicionais enquanto manifestação cultural, não são fechadas ao campo da cultura, antes porém, extrapolam os limites da componente que as coloca como uma simples prática cultural cujo papel não passa de simples entretenimento de indivíduos, praticantes ou não. Elas agregam elementos que as tornam a base de sustentação dos processos sociopolíticos e através da força simbólica que elas veiculam, em última instância, são um veículo de mensagens que podem desafiar ou apoiar a ordem política instituída.

Com a implantação do sistema administrativo colonial, devido ao poder simbólico que as danças tradicionais incorporam elas caíram na censura, não só, como também, foi desenvolvido todo um esforço que incluiu a elaboração de teorias e práticas com vista a proibição da prática de algumas delas. Esta empreitada colonial segundo Hanna (1987) deveu-se ao facto das danças serem, simultaneamente, 1 Título do livro e documentário em DVD, lançados em 2015, fruto duma pesquisa de campo levada a cabo pelo Instituto de Investigação Sócio-Cultural ARPAC - Delegação de Gaza. Durante a qual, trabalhei como ajudante de campo na colecta de material escrito e audiovisual.

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objecto e agente de controlo social. Pois, a sua prática em sociedades pode ocultar e manter valores políticos e religiosos, implementar normas e reforçar leis. Isso faz delas um potencial recurso para qual ambas as classes, a subjugada e a opressora, podem recorrer a elas levar a cabo as respectivas estratégias de afirmação social.

Desta forma, as danças tradicionais de natureza guerreira nomeadamente Ndlama, N’qai, Xigubo e Ngalanga, devido a sua conexão com os símbolos do poder, bem como, a sua intrínseca ligação com a tradição combativa dos grupos etnolinguísticos nguni (Ndlama, N’qai e Xigubo) e copi (Ngalanga), depois do declínio do Império de Gaza e implantada a estrutura administrativa colonial, foram as primeiras visadas pelas medidas proibitivas. De acordo com Hanna (op. cit.) estas danças e outras manifestações performativas de cunho guerreiro ou sofreram alterações ou foram abafadas.

Com este artigo, procuramos demonstrar como a queda dos Estados tradicionais em África, principalmente, nos finais do Século XIX, abalou não só a hegemonia política dos chefes africanos, como também, as práticas culturais indígenas, muito particularmente as danças tradicionais de natureza guerreira.

Para tal, torna-se relevante a exposição do poder simbólico que as danças tradicionais veiculam, um exercício que nos ajuda também a desafiar o crescente senso que olha para as danças como uma simples prática cultural cuja utilidade é apenas de entreter as pessoas, menosprezando a dinâmica que elas imprimem em outras esferas sociais, tais como, a economia e a política.

A “agenda cultural” do colonialismo

A relação África – Europa é concebida em três momentos marcantes: i) Inicia com interesses de carácter comercial por parte dos europeus, que pela sua natureza desigual se traduziu numa relação de exploração de uns pelos outros. ii) Seguidamente, atravessa cenários conflituosos, resultantes da iniciativa europeia em destruir os Estados e Impérios africanos e, através disso retirar a hegemonia política dos respectivos chefes. Com esta postura os europeus tinham em conta que o domínio efectivo das unidades políticas africanas constituiria um caminho aberto para o estabelecimento do domínio sobre os recursos naturais. iii) Garantidos o controlo sobre as fontes das matérias-primas (objectivo económico) e o domínio político sobre os africanos (objectivo político), a ideologia colonial focou-se na colonização cultural que na nossa óptica constituiu a etapa da implantação do colonialismo. Auto-atribuindo-se a missão divina de “civilizar”, o colono atacou as estruturas culturais indígenas, tal como concluiu Opoku que,

A instauração do domínio colonial europeu na África não se resumiu a imposição forçada do poder político, económico e social. Foi também uma imposição cultural, e utilizou a cultura para dar apoio às superstruturas políticas, económicas e sociais representadas pelo colonialismo (Opoku, 2010:592).

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Desta forma, o expansionismo europeu deixou de significar apenas a exploração de novos horizontes territoriais e, tornou-se num projecto que ligasse em simultâneo a expropriação do espaço africano e transformação do universo simbólico do indígena africano, procurando modificar suas práticas e concepções culturais. Está explícita aqui, a convicção segundo a qual para uma estabilidade absoluta e para que África se tornasse na desejada extensão territorial europeia, onde os africanos aceitariam a autoridade colonial implantada no lugar dos Impérios e Estados destruídos, não era significativa a derrota militar imposta a eles, mas sim, era preciso impelir o nativo de forma progressiva ou brusca a alienar os valores culturais europeus, anunciando desta forma o desencontro com os seus próprios hábitos e costumes.

Para o efeito, o europeu chamou para si o papel de “civilizar” os africanos, dentro de uma concepção que lhe permitia ver a colonização como uma missão necessária, um processo de evolução por meio do qual as mais elevadas formas da civilização atraem para dentro da sua órbita as que se encontrem menos perfeitamente organizadas. Ademais, segunda a mesma concepção, a obra da colonização, consiste, efectivamente, numa dupla cultura da terra e dos seus habitantes (Marnoco e Sousa, 1906:8).

Numa situação de uma relação que marca um encontro entre duas culturas, a missão de “civilizar” trazia consigo o pressuposto da dicotomia superior e inferior; civilizado e selvagem, ou seja, europeu e africano. Foi dentro deste pressuposto que, segundo Ranger (2000), embora os europeus fossem uma minoria em relação aos africanos, para além da colonização política, também, não se coibiram da ambição de se imporem culturalmente. Para tal, adoptaram estratégias através das quais se fizessem reconhecer como hierarquia dominante e incontestável. Implementaram tradições europeias, tanto para justificar como para definir os seus papéis, e também para fornecer modelos de subserviência, com os quais era possível por vezes atrair os africanos.

Em Moçambique, as autoridades coloniais portuguesas, igualmente, compreendiam que a edificação das superstruturas político-económicas e sociais, só teria a necessária consistência quando acompanhada pela transformação do nativo em um servil dócil. Um nativo que, para além de reconhecer a grandeza da metrópole devia ter uma acentuada aversão pelas suas raízes culturais.

Não obstante ao esforço de “civilizar” os indígenas, como em qualquer outra colónia, Portugal tinha que se lidar com a questão de dualidades. A dualidade cultural e a dualidade de autoridades, expressas durante um período em que as duas formas de estar teriam, inevitavelmente, que conviver. Na ansiedade de pôr em prática a dominação europeia em todas as esferas, algumas alas pensavam em banir subitamente as estruturas do poder político e cultural africanos. Em relação a tais ideias Junod, refere que,

Alguns sonhadores querem ver o sistema tribal inteiramente abolido e a dualidade de governo desaparecer imediatamente pela absorção dos poderes dos chefes, e a sua integração nos comissários dos negócios indígenas. Isto seria um erro. Assim, ainda que não sendo um cidadão eleitor no Estado, o indígena não civilizado permanece um membro responsável do seu clã. Não apressemos por isso a morte do clã. Se tiver que morrer, que seja de morte natural (Junod, 1944:545).

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Em outros termos, Junod, apelava com seu trabalho etnográfico para adopção de uma política administrativa das populações indígenas mais moderada, na qual as duas culturas, do colonizado e do colonizador, pudessem conviver durante um determinado tempo até que os valores culturais dos indígenas cedessem para o domínio dos valores da cultura europeia.

Portugal, em Moçambique enveredou no campo político em absorver as lideranças tradicionais para a órbita da sua máquina administrativa (como veremos mais adiante neste artigo). No campo Sócio-Cultural, desenhou uma política de assimilação2 cuja sua essência definia a existência de Indígenas e não Indígenas, classificados pelo Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique. Prefigurado pela concepção de existência de “raça” superior e inferior, este instrumento de lei determinava todo “itinerário” que devia ser percorrido na passagem do estatuto de indígena para o de Assimilado.

A abertura da possibilidade de transição do estatuto de indígena para o de não indígena, consubstanciado aos direitos liberados para este último, é para nós um incontestável sinal de assédio aos nativos para abandonar a sua cultura em prol da cultura portuguesa, na medida em que para se efectuar a referida mudança de status, havia uma série de requisitos3 a preencher. De forma sumária, estes requisitos significavam a aquisição de uma série de hábitos que espelhassem a renúncia da moçambicanidade.

Esta era o principal objectivo da política de assimilação. Horácio Mavale,4 explica que no período colonial a política de assimilação tinha uma força que conseguia criar no jovem uma aversão pelas práticas culturais. Com efeito, não praticavam e nem assistiam aos eventos relacionados a cultura local. O ideal para muitos jovens, ou seja, o que era bom de se desejar era frequentar dos Clubes da Mocidade Portuguesa ou bailes.

Fora da política de assimilação, as autoridades coloniais também se socorreram da igreja católica romana, que em Moçambique foi um braço muito válido na consecução das políticas discriminatórias do regime colónia. A Igreja também desenvolveu uma espécie de intolerância em relação uma série de valores culturais5

2 Definida pelo Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique, em alteração de alguns preceitos contidos no Estatuto Político Civil e Criminal dos Indígenas e no Diploma Orgânico das Relações de Direito Privado entre Indígenas e não Indígenas dos Decretos n˚ 16.473 e 16.474 de 6 de Fevereiro de 1929. 3 Dentre vários requisitos necessários para a passagem do estatuto de Indígena para o de Assimilado, o indivíduo devia, ter mais de 18 anos; ii) Falar correctamente a língua portuguesa; exercer profissão, arte ou ofício de aufira rendimento necessário para o sustento próprio e das pessoas de família a seu cargo, ou possuir bens suficientes para o mesmo fim. iii) Ter bom comportamento e ter adquirido a ilustração e os hábitos pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses. 4 Horácio Mavale. Entrevista de 20 de Abril de 2017. Cidade de Xai-Xai (Província de Gaza). 5 Dentre vários exemplos de elementos culturais censurados pela igreja destaca-se o uso das missangas como adereço nos vestes, uma prática muito abrangente entre os diversos grupos etnolinguísticos em Moçambique.

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dos moçambicanos. Para os olhos da igreja algumas práticas culturais tradicionais eram consideradas de pagãs e, como tal, inaceitáveis.

Contudo, importa realçar, que embora as dificuldades de inserção e mobilidade sociais impostas para a classe dos indígenas não assimilados eram uma força maior para obrigar os moçambicanos a renegarem suas raízes culturais, digamos que, de forma “voluntária”, há práticas culturais que o governo português de forma imediata tratou de abafar, dentre elas constam algumas danças tradicionais, principalmente, no território de influência nguni no Sul de Moçambique.

O alvo primordial da administração colonial: chefes e danças tradicionais guerreiras

No período histórico imediatamente a seguir a ocupação efectiva, as zonas que anteriormente estavam sob liderança de Estados tradicionais, conheceram uma reestruturação social e política. O poder das autoridades tradicionais foi alienado, os privilégios socioeconómicos dos habitantes, também sofreram hipoteca. Em regiões estratégicas populações inteiras perderam o domínio sobre a terra que sempre foi o seu recurso de sobrevivência. Como, já fizemos referência, este processo era acompanhado por um esforço tendente a alienação cultural.

Na zona sul de Moçambique, concretamente na região que era de influência nguni, o processo de reestruturação teve um tratamento especial. Encontramos um paralelismo na forma como as questões do poder político (chefes tradicionais) e as questões das práticas culturais foram tratadas.

Esta região, mesmo depois, da queda do Império de Gaza e a respectiva prisão de Ngungunyane em 1895, foi sempre tida como sendo um local de iminente perigo. As autoridades coloniais nunca descuraram a possibilidade de haver mais rebeliões lideradas pelos descendentes ou seguidores do último rei do Estado. Este facto viria a se confirmar dois anos mais tarde quando Maguiguane Khosa liderou uma campanha de resistência, reivindicando a devolução do rei preso.

O sistema administrativo colonial, montado em substituição do tradicional nos territórios africanos, tinha em consideração a absorção dos antigos chefes tradicionais na nova estrutura. A respeito disso o administrador colonial francês Robert Delavignette, explicou que não havia colonização sem política indígena; não havia política indígena sem comando territorial; e não havia comando territorial sem chefes indígenas que actuassem como correios de transmissão entre a autoridade colonial e a população. Doravante, todas as potências europeias com espaços coloniais em África adoptaram e aplicaram esta política. Não obstante a isso, ela foi aplicada com necessárias remodelações e adequações de acordo com as condições e o local por administrar.

Por exemplo, em Moçambique, em especial no Estado de Gaza, foram de facto usados elementos indígenas em representação da autoridade colonial junto da população, mas eram régulos de criação colonial e que por consequência da falta de legitimidade tradicional, em muitos casos lhes faltava o poder persuasivo sobre

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aqueles que deviam liderar. Isaacman (1987), refere que no relatório de 1961, o então Governador de Gaza Óscar Carmona, afirmava que à maioria dos chefes falta a capacidade para cumprir as suas responsabilidades e que isso se devia a má escolha que foi feita ao instalar no poder figuras impopulares, algumas delas trazidas de fora.

Esta situação deveu-se ao facto de depois do fim da guerra de resistência naquela parcela, terem sobrado poucos chefes tradicionais legítimos. Pois, temendo um presumível levante, as autoridades coloniais trataram de deportar muitos deles para terras longínquas, a começar pelo próprio rei do Estado que foi deportado para Açores. Grosso número dos deportados era constituídos por aqueles chefes tradicionais que durante o processo de conquista do Estado de Gaza e momentos depois não tinham ido “pegar o pé”6 junto às autoridades coloniais.

Nisto, as autoridades portuguesas mesmo cientes do papel que as autoridades tradicionais tinham na manobra da nova estrutura administrativa, pautaram por uma actuação cautelosa suprimindo todos aqueles, que embora fossem os verdadeiros chefes tradicionais com poderes consagrados, eram tidos como perigosos, como documenta o próprio Mouzinho de Albuquerque:

Os pequenos chefes são auxiliares utilíssimos, indispensáveis mesmo para a administração e política naquelas vastas regiões onde, por vezes, um comando tem uma área de jurisdição muito superior à dos distritos administrativos da metrópole. Apenas os chefes poderosos, os que porfiem na desobediência é necessário suprimir (Almeida, 1940: 540-541).

Uma situação análoga ocorreu no campo cultural. Embora o desejo final fosse de extinguir todos vestígios dos valores culturais indígenas, as autoridades portuguesas em Moçambique, em particular no sul de Moçambique, identificaram aquelas práticas culturais que era preciso de forma urgente banir, ou seja, proibir a sua contínua prática, nomeadamente, Xigubo, N’qai, Ndlhama e Ngalanga, as designadas danças guerreiras.

No quadro legislativo colonial português é difícil flagrar leis abertamente direccionadas a questões ligadas a cultura, no sentido de, por vias legais, proibir as práticas culturais indígenas. Este facto induz a uma conclusão, até certo ponto errónea, de ter havido por parte de Portugal, a prática de uma espécie de liberalismo cultural nas suas colónias. O que contradiz é o facto de a ideologia colonial portuguesa não ter sido diferente das outras potências. Ela seguia as teorias elaboradas e veiculadas pela ciência da colonização.

A ideia de civilizar ou seja de conduzir o moçambicano (cafre, bárbaro, tura, etc.) à um estágio superior na evolução social, sempre esteve presente nos discursos das autoridades portuguesas, como podemos perceber no discurso de um dos mentores da politica colonial portuguesa, a manutenção dos usos e costumes indígenas deve-se

6 Expressão usada para referir o acto de alguns chefes tradicionais na região de Gaza, que descontentes com a administração de Ngungunyane Nqumayo foram prestar o seu apoio às autoridades portuguesas, dando informações sobre o paradeiro do rei.

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considerar como uma situação provisória, que se pode prolongar por mais ou menos tempo, mas destinada a desaparecer (…) à mãe pátria incumbe o dever da tutela para com eles, guiando os seus passos no sentido da civilização (Sousa, 1946:102-107).

A Censura das danças guerreiras

Referenciamos acima que embora o desejo fosse de extinguir os hábitos e costumes dos africanos e todas as suas formas de manifestação, as autoridades coloniais tinham percebido que essa empreitada não era realizável a curto prazo. Isto pressupunha a criação de meios através dos quais o indígena fosse sentir obrigado a renunciar a sua cultura.

Antes de atacarmos as razões que levaram as autoridades coloniais a silenciar certos tipos de dança, primeiro olhemos para as danças tradicionais africanas e o seu significado no seio das comunidades onde elas eram praticadas.

Para Fazenda (2012: 23), a dança é uma forma expressiva cuja existência depende sempre da presença e da acção humanas. Esta autora, tomando em consideração os contextos em que são praticadas e os propósitos da sua execução, descrimina três tipos de dança, nomeadamente, a dança teatral, a dança social e a dança ritual.

A dança social, segundo a autora caracteriza-se pela ausência de separação entre quem dança e quem assiste:

Nesta categoria de danças, os papéis podem alternar-se, ou seja: quem num determinado momento, está a assistir pode, quando o desejar, dançar; quem está a dançar pode, no momento seguinte, parar de dançar e assistir. O propósito deste tipo de danças é a interacção social, o convívio, o entretenimento (Ibidem:48).

Quanto a dança ritual Fazenda (Ibidem) entende que realiza-se num contexto mágico ou religioso, no qual estão implicados outros elementos, tais como cânticos, declamações, música instrumental, gestos, objectos, indumentária, máscaras, que, em conjunto, contribuem para a eficácia do evento.

A partir desta perspectiva é possível analisar que as danças predominantes no período pré-colonial, de um modo geral, eram danças de carácter social e ritual. No estado de Gaza, por exemplo, grande parte das danças de que se tem relato eram de carácter ritual. Muthimba, era uma dança de ritual de entrega da prenda durante o casamento tradicional e por causa da sua conectividade com este evento, alguns autores designam aquele evento social pelo nome da Dança.7 As danças N’qai, Xilembe, Ndlhama e Xigubo eram danças ligadas aos rituais de preparação militar, bravura no campo de batalha e celebração em caso de vitórias nas guerras.

No que diz respeito à significação das danças, Nii-Yartey (2009) defende que a participação na dança e noutras manifestações da cultura expressiva é uma experiência da comunidade. A dança fornece as ligações necessárias, ajudando a sedimentar afinidades grupais baseadas na religião, numa língua comum e na 7Ver Valoi et al. (2015). Algumas Danças Tradicionais da Província de Gaza. ARPAC-Instituto de Investigação Sócio-Cultural.

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solidariedade, que asseguram relações sociais significativas, respeito mútuo e um sentido de pertença entre os membros das diversas comunidades. A sua criação e a sua prática são vistas como uma responsabilidade colectiva. É, portanto, a comunidade que dita as regras que orientam a criação e a prática da dança. O conhecimento e a apreciação da dança são adquiridos através de lendas, histórias populares, canções, rimas e da dança ela própria; ou seja, essencialmente através da participação.

Na percepção da Hanna (1987), as danças tradicionais tem um significado mais profundo, pois é inerente a elas a possibilidade de exercitar o corpo e, através disso comunicar relações de poder; ou seja, potencialmente adequa-se a fins políticos. A dança valida e cria líderes e é um veículo de competição pelo poder, de controlo social, de lidar com a subordinação, de restrições ao exercício do poder, ou de reparação e de transformação. Essa eficácia parece assentar numa combinação de factores: primeiro, porque funciona como um sistema autónomo, eminentemente multissensorial, que causa excitação, medo ou prazer, tanto para o praticante como para o observador.

Nesta lógica, a mesma autora olha para as danças num duplo sentido, por um lado como agentes de controlo social, na medida em que elas podem ocultar e manter valores políticos e religiosos, implementar normas e reforçar leis e, por outro, como objecto, uma vez que tanto os poderosos e como os oprimidos podem recorrer a elas como forma de levar a cabo as respectivas estratégias de afirmação.

As danças guerreiras que temos vindo a mencionar, no Estado de Gaza tinham esse duplo papel. A sua intrínseca conexão com todo processo militar desde a preparação dos guerrilheiros, demonstração de técnicas de combate até a celebração das vitórias, fazia delas, ao mesmo tempo, agentes de controlo social e um objecto de afirmação do poder político.

O N’qai, por exemplo, é uma dança guerreira de origem Nguni, que no seu contexto original era praticada apenas por homens. Envergavam peles de animais ferozes, onde a bravura de cada participante era medida de acordo com a ferocidade do animal que o dançarino trazia. Pois, segundo Abílio Muzamane8, acreditava-se que até ao ponto envergar tal pele de tal animal isso significa que matou o respectivo animal, o que só por si, coloca a este indivíduo num lugar de prestígio aos olhos da comunidade na qual se apresenta. Estas peles eram amaradas na cintura, no tronco e na cabeça. Quase sempre o ritmo dos passos de dança era acompanhado por canções de língua zulu, cujo teor das letras era de glorificação e culto dos reis vivos ou mortos, de prestação de contas aos ancestrais.

Importa realçar que a proibição das danças tradicionais, não só recaiu sobre as de origem Nguni, outras danças de outras etnias, desde que fossem de carácter guerreiro constituíram a prior um alvo a silenciar.

8 Abílio Muzamane, entrevista de 16 de Março de 2017, Distrito de Manjacaze (Província de Gaza-Moçambique).

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Na epopeia do Estado de Gaza, sobretudo, nos finais do reinado de Ngungunyane, é bem conhecida a lealdade dos copi em relação aos portugueses, devido a rivalidade que havia se estabelecido entre este grupo étnico e a aristocracia do Império de Gaza. Mesmo assim, depois da ocupação efectiva, as danças guerreiras, dentre elas o Ngalanga, não escaparam à tentativa de silenciamento.

Mauaie apud. Valoi et. al (2015:38), explica que Ngalanga é um termo que provém da palavra ngala, que na língua tsonga significa um animal feroz e vencedor, objetivado na figura do leão. Assim, Ngalanga passou a designar a dança que celebrava a bravurados guerreiros copi equiparada à ferocidade do leão. Tratava-se de uma dança praticada por homens com idade aceitável para guerra, que mostravam valentia, bravura e coragem.

De acordo com Valoi et. al (op. cit), esta dança tinha um duplo sentido no seio da etnia copi, era praticada dentro das comunidades quando fosse para a celebração do regresso e da vitória dos guerreiros depois das guerras. Para além da celebração, esta dança era, igualmente, usada como exercício de treino e casting dos homens fortes para a guerra. De um modo geral, os treinos tinham lugar no mato, distante das residências e de lá partiam para o campo de batalha. Ainda de acordo com o mesmo autor, o Ngalanga agregava outros valores, pois era uma dança que revelava um carácter de manutenção da unidade tribal e a afirmação da comum lealdade dos membros aos respectivos chefes (Valoi et al, 2015: 39).

Como podemos perceber as danças guerreiras, para além de constituir um espaço efectivo de preparação militar, elas arrastavam consigo um poder simbólico muito forte. Capaz de influenciar ideologicamente aos indivíduos assistentes e praticantes. As autoridades coloniais portuguesas, temendo a força que esta manifestação incorpora trataram de proibir a sua execução. Para o caso de Ngalanga, a título de exemplo, Agostinho Maússe afirma que:

Esta dança é praticada nesta comunidade de Madzucane desde finais de 1940. Ela foi iniciada pelos jovens contemporâneos desse período, tendo-se criado um movimento que quase para todos os jovens era obrigatório saber dançar Ngalanga (…) e aquele que executava melhor tinha maior prestígio na comunidade. Mas esta alegria era constantemente impedida pela administração colonial, chegando mesmo a proibir a sua execução, para tal tinha que se recorrer as matas para dançar. Escondíamo-nos no meio da floresta para evitar problemas (Maússe apud. Valoi et. Al, 2015:40).

Na mesma linha, Hanna (1997) conclui que a tradição destas danças guerreiras em vários países africanos sofreram alterações com o advento do colonialismo. Todas danças que enaltecessem líderes africanos eram consideradas inaceitáveis pelo colonizador. Consequentemente foram abafadas. Esta medida estendeu-se para outras expressões performativas que pudessem, eventualmente, afrontar o controlo colonial através da sua prática social.

Doravante, as danças tradicionais de natureza guerreira foram durante a vigência do domínio colonial português em Moçambique sobrevivendo e subsistindo algumas na clandestinidade, tal como Maússe (op.cit) explica acima. Para evitar problemas, a

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dança Ngalanga, no período de maior controlo, era praticada nas matas de forma isolada.

Considerações Finais

A política de assimilação implementada por Portugal em Moçambique teve um pesado impacto sobre a estrutura sociocultural das comunidades locais. No campo social, as desigualdades sociais eram consagradas e legalizadas, este fenómeno se manifestou em diferentes níveis desde o acesso à educação até aos direitos de posse no contexto individual privado.

Na estrutura cultural, concretamente nas danças, nosso objecto de análise, o colonialismo impôs um período quase que de uma centena de anos de silêncio desta manifestação cultural. Mas mais do que isso, a dominação colonial destruiu a lógica local das danças tradicionais nas comunidades moçambicanas, ao mesmo tempo que propiciou o deslocamento do seu paradigma.

Observando os três tipos de dança (teatral, ritual e social) concebidas por Fazenda (2012) e em função da análise feita sobre as danças tradicionais praticadas na província de Gaza e do seu processo evolutivo, podemos afirmar que grande parte são de natureza ritual. Isto é, a sua prática emana de contextos próprios, eventos específicos, eram danças executadas em acompanhamento de determinados rituais “gratidão aos espíritos; pedidos de chuva, expulsão de pragas, etc”. Desta forma, a desestruturação da ordem social tradicional trouxe consigo a decadência da prática e do significado das danças.

Ainda como corolário do colonialismo sobre as danças, temos o que podemos chamar de “retorno” à uma cultura pré-colonial, um desejo que se transformou numa estratégia dos governos dos novos Estados na África pós-colonial. A ideia era encontrar uma forma de contra-identificação em relação ao legado cultural colonial. Deste retorno, ou se preferirmos, resgate das tradições culturais, encontramos um vazio de referências criado pelo tempo que as danças tradicionais foram silenciadas. Pelo que, no período pós-independência estas danças e outras que outrora eram de carácter ritual, ressurgem fora do seu contexto, ou seja, algumas, de rituais passaram para o tipo social, sobejamente, praticadas para entreter a sociedade.

Podemos afirmar que as danças no período em destaque, testemunham uma experiência de reinvenção que arrasta consigo os seus legítimos paradoxos. Onde podemos salientar exemplos de danças com “ mesma forma de executar, mas com diferentes designações”9 e outras com a “mesma designação, mas com formas diferentes de execução.”10

9 Para esta situação temos danças como Xirwala e Massesse; Makway e Marula. Estas danças são apresentadas com designações diferentes, mas a forma de dançar é a mesma. 10 Esta situação é evidente em danças como Txopo e Xingomane. Txopo é dança originária da província central de Manica, praticada também no distrito de Massangena, contudo neste último local é designada de Xingomane, contrastando com o Xingomane praticado no resto da provincial de Gaza.

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Bibliografia

FAZENDA, M. J. (2012). Dança Teatral: Ideias, Experiências, Ações. Edições Colibri: Instituto Politécnico de Lisboa.

FERREIRA, José Carlos Ney e VEIGA, Vasco Soares da. (1957). Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique.2ed.Lisboa

HANNA, J. L. (1987). To Dance is Human, A Theory of Nonverbal Communication. Chicago: The University of Chicago Press.

JUNOD, Henrique A. (1944). Usos e Costumes dos Bantos – A vida duma tribo Sul-Africana. Lourenço Marques.

MONORCO, António José Ferreira. (1905).Administração Colonial. Coimbra: F. França Amado Editor.

NII-YARTEY, F.(2009). Principles of African choreography, some perspectives from Ghana. In J. Butterworth, Wildschut, L. (Ed.), Contemporary Choreography: A Critical Reader (pp. 254-268). Oxon: Routledge.

OPOKU, Kofi Asare: A religião na África Austral. In: História Geral de África (2010). vol. VII,(pp. 591-624).

RANGER, T. (2000). The Invention of Tradition in Colonial Africa. In R. T. HOBSBAWM E. (Ed.).The Invention of Tradition (pp. 211-262). UK: Cambridge University Press.

Fontes Orais

Abílio Muzamane. Entrevista de 16 de Março de 2017, Distrito de Manjacaze (Província de Gaza).

Horácio Mavale. Entrevista de 14 de Março de 2017, Cidade de Xai-Xai (Província de Gaza).

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Conhecimentos, Práticas e Simbologia Comunicativas na Cerimónia de Lobolo

Sónia Lopes Ajuda11 [email protected]

Resumo

A presente comunicação tem em vista descrever a dinâmica da comunicação que se desencadeia no desenrolar da cerimónia de lobolo, com ênfase no ritual de saudação entre as comitivas encarregues de presidir a cerimónia. O estudo partiu do pressuposto de que é necessário que os interlocutores dominem as regras de interacção para comunicarem adequadamente neste tipo de cerimónia. Pois, os actos de fala que estão em torno da cerimónia de lobolo, estão envoltos de simbologias que denotam as regras de interacção, respeito, hierarquia, relacionamento ou ainda de boa conduta sociais - na visão do mundo e construção de relações sociais do povo Rhonga e Changana - que requerem competências linguística e comunicativa, próprias da cultura em alusão, facto que nos remete ao relativismo cultural e reforça a teoria linguística. Esta pesquisa insere-se no âmbito da Linguística Comportamental, com orientação para a Antropologia Linguística (etnologia de comunicação). Na análise e tratamento de dados, utilizam-se as teorias dos Actos de Fala e do Relativismo Cultural e o circuito de comunicação. Conforme os resultados, as formas de cumprimentar possuem significados sociais na medida em que transparecem afinidade, frequência de encontros, contexto, entre os interlocutores. O estudo espera contribuir para a divulgação dos nossos conhecimentos e práticas e quiçá, fornecer dados para uma etnografia sobre os grupos etnolinguísticos Rhonga e Changana.

Palavras – Chave: Conhecimentos; práticas; comunicação; Lobolo.

1. Introdução

O presente artigo intitulado “Conhecimentos, práticas e simbologia comunicativas na cerimónia de lobolo” pretende descrever a cerimónia / ritual do lobolo. O estudo faz uma análise pragmática12, mais concretamente, uma etnografia da comunicação dos aspectos contextuais em que as palavras são empregues, identificando-se, neste caso, o conteúdo proposicional da palavra, que adiante será designado pela abreviatura (CP), referente ao significado literal que a palavra possui e o conteúdo cultural (CC), que se refere ao significado social atribuído à palavra, num contexto específico.

A descrição do dinamismo comunicativo da cerimónia auxiliará na compreensão do processo da cerimónia de lobolo em si e das regras de interacção dos grupos etnolinguísticos Rhonga e Changana. O lobolo afigura-se importante na medida em que institui um novo estado civil aos indivíduos que o praticam, une famílias, dá direito à paternidade e isenta-os de possíveis sanções tanto dos vivos como dos mortos. De salientar que o lobolo é uma prática secular das sociedades moçambicanas

11 Investigadora Assistente – ARPAC – Delegação de Maputo. Mestra em Antropologia Linguística. 12 A pragmática encara as línguas como instrumentos de acção e de comportamento, também eles regidos por regras, dando simultaneamente conta da relação existente entre as línguas enquanto sistemas formais e a sua actualização em situações de uso (Gouveia, 1996: 384/5).

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em geral e das da província de Maputo em geral (Rhonga e Changana), reflecte a organização social das comunidades e está repleto de ideologias e simbologias dos praticantes, um assunto de debate inesgotável que pode ser abordado em diferentes perspectivas, como são os casos de estudiosos como Feliciano (1998), Granjo (2005), Pinho (2011), Rita- Ferreira (1982), Santana (2009), Taibo (2012), entre outros, que se têm dedicado ao estudo do lobolo, ao longo dos tempos, por forma a explicar a essência deste acto sob diferentes perspectivas de abordagem.

No presente trabalho, a descrição da cerimónia do lobolo implica, por um lado, uma abordagem das práticas discursivas do grupo etnolinguístico em análise e, por outro, fornece instrumentos para a compreensão e interpretação dos actos de fala e discursivos, que demarcam diferenças tanto de género, idade, tópico, espaço, familiaridade, afinidade, entre os interlocutores.

A linguística cultural aborda os domínios linguístico e cultural que interessa os seguidores de Franz Boas e os etnógrafos da fala, os quais assumem que:

A perspectiva do fenómeno que é essencialmente cognitivo, reconhecendo que o significado emerge ao longo do discurso, onde os interlocutores interpretam a performance de uns e outros, onde os significados são contingentes nos eventos do que totalmente fixados nas palavras convencionais e estruturas gramaticais (Palmer, 1996: 36-37).

De salientar que a produção de significados é regida pelo respeito pela hierarquia (Junod, 1996:321-322). Este conhecimento do uso das normas de interacção é transmitido ao longo da socialização e revelam a concepção do mundo, adequando a comunicação ao tópico, contexto e ao interlocutor.

1.1. Breve descrição das regras de interacção dos Rhonga/Changana e conceitos operacionais

Na presente análise, importa iniciar com uma breve descrição das regras de interacção dos Rhonga/Changana, grupos etnolinguísticos da nossa área de estudo, por forma a obtermos um panorama geral da mesma, que nos facilitará na compreensão do dinamismo comunicativo que ocorre em torno da cerimónia do lobolo.

Os grupos etnolinguísticos Rhonga/Changana, à semelhança de qualquer outro grupo, possui regras de interacção que servem para salvaguardar a harmonia e a manutenção do equilíbrio nas relações sociais entre os membros da comunidade.

As interacções sociais revestem-se de capital importância nas diferentes sociedades na medida em que têm subjacentes as relações interpessoais entre os membros da comunidade, facto que comprova que a língua enquanto meio de comunicação possui uma função social a ser tida em conta. No caso vertente da cerimónia de lobolo, a dinâmica comunicativa decorre em torno da função social que se desempenha no acto de cumprimentar.

Estudos similares que abordam os cumprimentos foram feitos por Wolfson (1981), Kiesling (1999), Victor (2000) e Duranti (2000), os quais corroboram no facto de que

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os cumprimentos são um elemento importante da competência comunicativa dos falantes de uma determinada comunidade.

De entre estes estudos, importa realçar que Victor (2000) não aborda especificamente as formas de cumprimentar, este discute de forma mais generalizada os contextos de ocorrência de formas de cortesia na cultura Emakhuwa. Para o autor, o cumprimentar é um acto de cortesia. Segundo Wolfson (1981) apud. Victor (2000:10):

Os actos de fala de cortesia ocorrem frequentemente nas línguas e servem para produzir ou reforçar um sentimento de solidariedade entre os falantes, são usados na saudação, no agradecimento, para repreender, gozar, desprezar, para desculpar ou mesmo como forma de iniciar uma conversa.

Para Victor (Ibidem) o cumprimentar é um acto de cortesia por excelência, assim, o presente estudo, escolheu debruçar-se sobre uma das formas de cortesia apontadas por Victor (2000), os actos de fala de cumprimentar.

Os termos cumprimentar e saudar são muito próximos e funcionam como sinónimos em alguns casos. Segundo Costa & Sampaio e Melo (1997:512/1622), entenda-se por cumprimentar dirigir ou apresentar cumprimentos; saudar; felicitar; lisonjear e; por saudar desejar saúde a...; cumprimentar; cortejar; felicitar; salvar; aclamar; louvar; reverenciar; curvar-se diante de algo ou alguém.

As saudações fazem parte da competência comunicativa que o indivíduo deve ter para se comunicar adequadamente e é dentro da comunidade linguística que são determinadas e partilhadas as regras de interacção e os procedimentos convencionais para o seu uso. Com efeito, a partilha de regras de interacção13tornam os indivíduos membros da comunidade linguística por excelência. Dentro das comunidades linguísticas há vários padrões de uso. Fasold (1990:42) refere que:

Por forma a estudar o comportamento comunicativo dentro da comunidade linguística, é necessário trabalhar com as unidades de interacção.14 Um evento comunicativo (parte de situações de comunicação) tem lugar dentro de uma situação comunicativa (situação associada à fala) e é composto por um ou mais actos de fala (são partes dos eventos comunicativos).15

Com efeito, os padrões de uso não são aleatórios, estes são adquiridos ao longo da socialização,16 principalmente na primária – primeiros anos de vida, e na secundária

13 Hymes (1972:53-5) for example, insists that all members of speech community share not only the same rules for speaking, but at least one linguistic variety as well… Saville – Troike (1982:20) speaks of level of analysis at which a speech community need not share a language. By all definitions, thought, a speech community must at least share rules for speaking (nota da tradução). 14 In order to study the communicative behavior within a speech community it is necessary to work with units of interaction (nota da tradução). 15 A speech event takes place within a speech situation and is composed of one or more speech acts (nota da tradução). 16 Entenda-se por socialização, a necessidade de o individuo se tornar membro efectivo da sociedade (Schieffelin & Ochs, 1986). Outras fontes que se debruçam sobre o assunto, como é o caso do Dicionário de Sociologia (2002) define socialização como sendo o processo através do qual o indivíduo interioriza o sistema de valores, de normas e de comportamentos de uma determinada cultura; por seu turno, a Enciclopédia Luso Brasileira da Cultura refere que a socialização é o desenvolvimento de formas jurídicas de organização e realização de interesses comuns, nomeadamente a personalidade colectiva, estabelecimento de limitações imperativas às liberdades e

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– ao longo da vida, por forma a entrar em consonância com os padrões usados pela comunidade linguística (Saville-Troike,1982).

Este conhecimento do uso das diferentes estratégias de comunicação, tem subjacente a concepção do mundo dos falantes, quando pretendem estabelecer comunicação, tendo em consideração, o tópico, o contexto, o interlocutor e o tempo de que os intervenientes dispõem, entre outros aspectos. Entenda-se por tópico o assunto ou tema abordado; o contexto a situação de comunicação; o interlocutor o indivíduo com quem se interage e o tempo a disponibilidade e duração do acto de cumprimentar. Veja-se os exemplos a seguir que demonstram a aplicação das variáveis a cima apresentadas:

O tópico ou mensagem pode ser uma saudação simples ou elaborada;

O contexto todas as condições que determinam a transmissão da mensagem pode ser público (na rua ou na companhia de alguém) ou restrito (em casa, a sós). A mensagem transmitida depende do contexto.

O tempo depende da frequência dos encontros e determina o tópico e da disponibilidade para a execução do acto de cumprimentar;

O interlocutor compreende o emissor e ou receptor, tendo em conta a relação hierárquica existente entre ambos os intervenientes, onde se destaca a relação vertical (numa relação ascendente e descendente) e relação horizontal (para indivíduos de estatuto igual)

Vertical

Ascendente – elaborada

Descendente – simples

Horizontal

Amigos – simples quando se encontram com frequência e elaborada quando os encontros são espaçados.

Colegas - simples

Íntimos – elaboradas

Conforme pudemos depreendera língua reflecte diferentes crenças acerca da natureza humana e como esta crença e a harmonia social pode ser alcançada. Sumariamente, as diferentes práticas linguísticas reflectem a trajectória das experiências vividas pelos seus falantes e, consequentemente, são emblemáticas e geradoras de várias práticas culturais e crenças, em poucas palavras, o

direitos individuais, reconhecimento de direitos sociais, publicação de certas estruturas; enquanto Costa & Melo (1992:1544) definem socialização, como sendo o acto ou efeito de socializar, querendo significar por socializar, tornar o indivíduo social. Conforme se pode depreender, todas as definições são unânimes na necessidade de iniciar o indivíduo, por forma a integra-lo na sociedade em que vive.

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habitus.17Pretendendo-se fazer um estudo antropológico das formas de cumprimentar, segundo Victor (2000:8), há que ter em conta que a estrutura social, política, e as crenças das várias comunidades são reflectidas na maneira como tais comunidades organizam e usam as formas de tratamento, saudação e de cortesia.

1.2. Competência linguística e comunicativa

O objecto da etnografia da comunicação é bem ilustrado por uma questão muito fundamental: O que é que o falante precisa de saber para comunicar adequadamente dentro de uma comunidade particular e como é que ele aprende (Saville – Troike, 1987).

Hymes (1960) enfatiza que a língua não pode ser separada do como e porquê é usada e que considerações de uso são pré requisito para o reconhecimento e compreensão de várias formas linguísticas, pois para que a comunicação seja bem sucedida, não basta que o indivíduo tenha domínio das regras lexicais, gramaticais, fonológicas e morfológicas de uma língua falada dentro de uma comunidade linguística; é necessário que a par das regras supracitadas, o indivíduo partilhe as regras de uso em vigor na comunidade; regras essas, regidas por regras de retórica específicas à cultura das diferentes comunidades linguísticas. O utente da língua deve saber comunicar de forma apropriada numa comunidade particular. Estes conhecimentos acrescidos aos conhecimentos das regras lexicais, gramaticais, fonológicas e morfológicas, normas culturais como bases da forma e conteúdo dos eventos comunicativos e outras habilidades, constituem a competência comunicativa, que segundo Hymes (1960) apud.Saville – Troike (1987:22),é o conhecimento que um falante fluente de uma língua deve possuir para produzir e compreender contextualmente enunciados apropriados e compreensíveis nessa língua.

Fazendo uma abordagem geral do exposto a cima, pelos diferentes autores, constata-se que todos eles corroboram no facto de considerarem que a aprendizagem da competência comunicativa é feita através da transmissão da cultura, sendo que cada comunidade linguística organiza e padroniza a comunicação como sistema de eventos comunicativos e a forma como esta interage com todos os outros sistemas culturais e usa a língua para categorizar e colocar os indivíduos no seu devido lugar, em cada situação comunicativa. Os padrões de conduta linguística de cada comunidade de falantes devem ser respeitados, sob o risco de incorrer em sanções.

2. Estudo de caso: Conhecimentos e práticas comunicativas em uma cerimónia do lobolo em Magude

Os dados que iremos apresentar foram colhidos na cerimónia de lobolo de P. M, filha de R. E. M, nossa entrevistada. Nesta descrição apresenta-se o significado social que as interacçoes sociais possuem, tendo em conta que não é o conteúdo proposicional

17 Ultimately, these different linguistic practices reflect different trajectories of lived experience for their speakers and consequently are emblematic and creative of wider cultural practices and beliefs, in short, the habitus. (nota da tradução)

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que determina o significado dos enunciados mas, o valor social atribuído aos enunciados à luz das teorias dos actos de fala e do relativismo.

Com efeito, a discussão de dados terá como base as teorias de actos de fala e do relativismo cultural e os parâmetros observados na grelha de entrevistas, a saber, emissor, receptor, tópico (mensagem ou conteúdo proposicional (CP) e respectivo conteúdo social (CS) e espaço (contexto).

Refira-se que os elementos extraídos do circuito de comunicação excluem os parâmetros canal e código, por não considerá-los relevantes para a análise, na medida em que é lógico que as interacções orais têm como canal o ar e sobre o código, referiu-se anteriormente que a língua predominante foi o Xirhonga/Xichangana.

2.1. Emissor (quem fala, género)

Dentro da sociedade Rhonga/Changana, existem hierarquias, que devem ser respeitadas. No quadro da cosmovisão deste grupo etnolinguístico, existe no mundo dos homens vivos uma hierarquia, onde os filhos e as esposas devem obediência ao pai, ao chefe de família ou ainda à família. Aos membros da família com estatuto hierárquico inferior é se lhes exigido que tenham respeito pelos mesmos. O mesmo direito é extensivo a todos os indivíduos com estatuto similar ou que pertençam à mesma faixa etária.

O respeito à hierarquia e regras de interacção se verifica na cerimónia de lobolo, pois a família do noivo fica dependente do género de quem inicia a interacção para encarregarem alguém do mesmo género para conduzir o decurso da cerimónia.

Os conservadores dão muita importância à observância da regra de similaridade de género nas interacções durante a cerimónia do lobolo, cuja infracção pode incorrer em sansão, pois a inobservância de tais preceitos é vista como uma grande ofensa, cuja sanção é determinada em função da vontade expressa pela família ofendida ou, em casos extremos, na inviabilização do lobolo.

2.2. Receptor (quem escuta, género)

Durante a execução da dinâmica comunicativa o receptor deve demonstrar interesse e acompanhamento do que o seu interlocutor diz, através de respostas retóricas que consistem em murmúrios do tipo hum, hum ou outras manifestações.

Neste caso é necessário que o receptor saiba ser um bom ouvinte e o demonstre, por vezes introduzindo valores opinativos a cerca do que ouve, aguardando que o seu interlocutor observe este princípio cooperativo quando os papéis se invertem, passando o receptor a emissor e vice-versa.

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2.3. Género

Tratando-se de um contexto público onde os indivíduos estão envolvidos numa cerimónia de lobolo, por exemplo, os visitantes aguardam que os anfitriões iniciem o acto de cumprimentar e, dependendo do género de quem inicia a interacção, a contraparte também encarrega um indivíduo do mesmo sexo para interagir.

2.4. Tópico (mensagem/conteúdo proposicional)

Durante a cerimónia de lobolo o tópico é basicamente a “procura de água”, neste caso a água representa a mulher que a família procura para lhes servir água para beber, tomar banho, para cozinhar, em suma, “uma mulher para lhes servir”.

O significado do seu uso é determinado pela situação discursiva, pois nem sempre a forma linguística é suficiente para determinar o valor do uso de um enunciado. Para a compreensão do seu uso, é necessário que se tenha domínio dos preceitos de uso dos significados enunciados, o contexto situacional e as relações sociais de poder mantidas entre os interlocutores. Sem perder de vista o facto de a posição de poder variar de interlocutor para interlocutor.

Por isso o dinamismo comunicativo durante a cerimónia de lobolo é ritualizado, o seu emprego é uma manifestação de respeito e consideração que se tem pela família da noiva e pela solenidade do acto. É um momento em que se faz uso da cortesia e de termos simbólicos por excelência para o bom termo da cerimónia.

2.5. Cenário ilustrativo do dinamismo comunicativo na cerimónia de lobolo

O exemplo a seguir ilustra o dinamismo comunicativo numa cerimónia de lobolo. Importa realçar que na presente descrição dos procedimentos do lobolo, iremos entrosar o texto com alguns excertos do ritual da saudação até ao fim da cerimónia. Com efeito, iremos designar noivo à família do noivo e noiva à família da noiva.

O ritual da cerimónia inicia logo à chegada dos familiares do noivo, os quais devem observar escrupulosamente a pontualidade sob o risco de encontrarem um pau de pilar a barrar-lhes a entrada.

Após a permissão da sua entrada, a família do noivo aguarda que os anfitriões os saudem. Na cerimónia em alusão, a dinâmica da comunicação decorreu da seguinte forma:

Fórmulas iniciais

Noiva: I hlikanhi vaka ... mo yini ku pfuka

CP: ‘é tarde, como estão acordar?’

CS: ‘boa tarde, como estão?’

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Noivo: I hlikanhi vamasseve, ha pfuka. Nwine ke?

CP: ‘é tarde compadres, acordamos. E vocês?’

CS: ‘boa tarde compadres, estamos bem. E vocês?’

Noiva: Ha hanya. Mingahibzela lexi ximutisiki muntini weru?

CP: ‘Estamos vivos. Podem dizer-nos o que trouxe a casa nossa?’

CS: ‘Estou bem e você? Em que lhes podemos ser úteis?’

Noivo: Hi ta kombela mati18.

CP :‘Estamos pedir água.’

CS :‘Viemos pedir água.’

Noiva: Lani kaya hini tintombi tinyingi. Mayitiva ntombi leyi miyilavaka?

CP:‘Aqui em casa temos raparigas muitas. Conhecem noiva essa querem?’

CS:‘Temos muitas raparigas cá em casa. Conhecem a rapariga de que procuram?’

Noivo: Hayitiva.

CP:‘Estamos a conhecer.’

CS:‘Conhecemos.’

Noiva: Vitanani tintombi hinkwatu talakaya.

CP:‘Chamem raparigas todas de casa.’

CS:‘Chamam todas as raparigas da casa para indicarem a pretendida.’

Refira-se que o ritual do lobolo obriga que ambas as partes se tratem como ilustres desconhecidos, pese embora a cerimónia decorra na sequência da recepção de uma lista onde são indicados os bens para a compensação matrimonial, aquando da cerimónia de apresentação.

Após se fazerem presentes, cobertas por capulanas, pede-se que um dos membros da comitiva indique a pretendida.

Noivo: Hi lweyi.

CP:‘É esta.’

18Mati i wansati atakavakhela mati, yakuphuza, yakuhlamba, yakusweka

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CS:‘É esta.’

Noiva: Nwanezu, wavativa lava, hivayamukela?

CP:‘Filha nossa, conheces estes, estar receber?’

CS: ‘Nossa filha, conheces esta família? Podemos recebê-los? Filha, estás deveras decidida a prosseguir com o acto? Podemos prosseguir com a cerimónia?’

Conforme se pode depreender a família só pode prosseguir com a cerimónia com a anuência da noiva. Por isso perguntam à rapariga se conhece a família que pretende desposá-la. Concordando, pedem para que ela se ausente do local das negociações.

O prosseguimento da cerimónia só é possível mediante a apresentação da lista enviada ao noivo e a cópia que fica na posse da noiva. Após a confrontação do teor das mesmas, a cerimónia prossegue.

O noivo apresenta os bens arrolados na lista. Cada item deve ser acompanhado por dinheiro que varia de 20 a 100, 00 Mt (Meticais), incluindo para solicitar os beneficiários dos bens e roupas da lista. De salientar que para pegar ou vestir a noiva carece de pagamento de todo e qualquer movimento. Dinheiro desta colecta reverte a favor da cortês.

Terminada a entrega dos bens simbólicos, chama-se todos os familiares, convidados e demais presentes para comemorar o lobolo, entoando cânticos e dançando. Após a grande algazarra, a noiva serve água à família do noivo e diz:

Hilawa mati amimalavetela

CP:‘Esta água estavam procurar.’

CS:‘Eis a água que procuravam.’

De seguida serve-se a refeição preparada para o evento e sentam-se todos à mesa e partilham a comida. O comer juntos é um acto simbólico que significa partilha/união. A água representa a mulher que irá acarretar água para beber, tomar banho, cozinhar e cuidar da família.

Após a partilha de alimentos, segue-se o ritual de despedida. Geralmente, a família do noivo não deve ficar muito tempo em casa dos compadres, por isso, logo que termina a refeição pede para se retirar, comunicando a alguém que esteja por perto ou entoando uma canção de despedida.

Os pais da noiva fazem-se ao local e formulam votos de um bom regresso. Só após a despedida é que os familiares do noivo se retiram.

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Fórmulas de despedida

Noivo: Vamaseve hi kombela kuntlantleka.

CP:‘Compadres estamos pedir estar desamarados.’

CS: Caros compadres, pedimos para nos retirar.

Noiva: Dzungulelani kaya.

CP: ‘Cumprimenta em casa.’

CS: ‘Cumprimentos lá para casa.’

Noivo:Hitadzungulela.

CP: ‘Vamos cumprimentar.’

CS: ‘Serão entregues.’

Noiva:Fambani hahombe.

CP: ‘Partam devagar.’

CS: ‘Idem em paz.’

Noivo: Hi ta vonana.

CP: ‘ver-nos-emos.’

CS: ‘Até à próxima.’

Ainda sobre o uso de estratégias metadiscursivas em formas de cumprimentar, depreende-se que, os actos de fala executados nos cumprimentos abreviados, levam o locutor a produzir enunciados com significados commumente aceites e compatíveis ao contexto em causa, com o objectivo de produzir uma reacção previsível, no alocutário.

Conforme se fez referência anteriormente, por se constituírem actos ilocutórios, as formas de cumprimentar obedecem a certas regras preestabelecidas para o sucesso do acto, designadamente: primeiro deve haver um procedimento convencional, partilhado e reconhecido pelos membros da comunidade linguística, com certo efeito convencional, que inclui o uso de certas palavras por determinadas pessoas em certas circunstâncias; segundo, as pessoas e as circunstâncias específicas, em um dado caso, têm de ser apropriadas para invocar o procedimento específico; terceiro, todos os intervenientes têm de cumprir correctamente com os procedimentos; quarto, têm de cumpri-lo por completo; quinto, nos procedimentos para cujo

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cumprimento as pessoas têm de ter determinados pensamentos ou sentimentos, os interlocutores envolvidos têm de ter, efectivamente, esses pensamentos ou sentimentos e agir de acordo com este; finalmente a sexta regra diz que os intervenientes têm de agir também posteriormente, de acordo com eles, pois se uma das condições não for satisfeita, então o acto de fala não se realiza.

O cumprimentar não é simples cumprimentar, é um fórum no qual vigoram, através de práticas linguísticas, as ideologias culturais, onde o significado do uso de certas formas é determinado pela situação discursiva, pois nem sempre a forma linguística é suficiente para determinar o valor do uso de um determinado enunciado. Para a compreensão do seu uso, é necessário que se tenha o domínio dos preceitos do seu uso, dos significados enunciados, do contexto situacional e das relações sociais de poder mantidas pelos interlocutores. Tendo em conta que as relações de poder variam de interlocutor para interlocutor.

Com efeito, a língua é usada para categorizar e colocar os indivíduos nos seus devidos lugares, em cada situação comunicativa. Portanto, o uso de determinadas formas não é feito aleatoriamente mas, obedece a regras da dinâmica discursiva e das relações de poder existentes entre os intervenientes.

A socialização para o uso destas formas tem em conta as hierarquias existentes dentro da sociedade, por isso as formas de cumprimentar dos Vacopi são prova de que os cumprimentos possuem conteúdo preposicional, na medida em que transportam além de conteúdo proposicional, normas discursivas de uso das mesmas.

3. Considerações Finais

O presente trabalho tinha o objetivo de descrever a dinâmica comunicativa na cerimónia de lobolo. Durante a análise dos actos discursivos constatou-se que os actos de fala empregues na cerimónia de lobolo decorrem da necessidade de se observar a cortesia e respeitar a solenidade do acto. A interacção obedece à similaridade de género e de outros factores socioculturais, que revelam, de certa forma, as relações sociais e de poder que existentes entre os intervenientes.

A interacção na cerimónia de lobolo não é uma simples interaccão, é um fórum no qual vigoram práticas linguísticas e ideologias culturais. Para a compreensão do seu uso, é necessário que se tenha o domínio dos preceitos do seu uso, dos significados enunciados, do contexto situacional e das relações sociais de poder mantidas pelos interlocutores.

Com efeito, o dinamismo comunicativo da cerimónia de lobolo é revestido de procedimentos simbólicos e emblemáticos convencionalmente partilhados e reconhecidos pelos membros da comunidade linguística, os quais geram vários actos de fala que reflectem as crenças e a cosmovisão do grupo.

Na cerimónia de lobolo, a língua é usada para categorizar e colocar os indivíduos nos seus devidos lugares, em cada situação comunicativa. Portanto, o uso de determinadas formas não é feito aleatoriamente mas, obedece a regras da dinâmica

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discursiva e das relações sociais e ou de poder existentes entre os intervenientes. Por isso a interacção obedece à regra de similaridade de género, cortesia entre outras, para salvaguardar a harmonia e o sucesso da cerimónia.

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“Mãe das Mães”: o papel das Apwyamwenes entre os A-Makhuwa da Província de Niassa, Norte de Moçambique

Sérgio Roques Patrício19 [email protected]

Assumail Raidone

[email protected]

Resumo

Este estudo procura compreender o papel das Apwyamwenes nas comunidades A-Makhuwa de Niassa, descrevendo a sua legitimidade nas comunidades, reconhecimento pelas autoridades governamentais, e as relações de género existentes entre as diversas lideranças tradicionais. A pesquisa baseou-se na revisão bibliográfica e em entrevistas semi-estruturadas individuais e colectivas à líderes tradicionais, entidades governamentais e religiosas nos distritos de Cuamba, Mandimba, Majune, Marrupa, Maúa, Mecanhelas e Metarica. Os resultados do estudo, apontam que as Apwyamwenes desempenham os seguintes papéis: conservar a memória da sua linhagem, organizar as cerimónias de maqueya e de emwali, e aconselhar as mulheres sobre saúde sexual e reprodutiva. O estudo apreendeu uma tendência de masculinização do poder nas comunidades. O estudo conclui que, as Apwyamwenes mesmo tendo uma relevância social indiscutível, têm poderes limitados em domínios de tomada de decisão para assuntos de grande relevo. Na sua maioria, reivindicam a falta de reconhecimento por parte do governo.

Palavras-chave:Apwyamwene; Líderança tradicional; Poder; Makhuwa.

Introdução

O presente trabalho tem em vista estudar o papel das apwyamwenes nas sociedades a-makhuwa da província de Niassa. E tem como objectivos: compreender o papel das apwyamwenes nas comunidades a-makhuwa; descrever a sua legitimidade nas comunidades e reconhecimento pelas autoridades governamentais; e, descrever as relações de género entre lideranças tradicionais.

Ao longo da história, as sociedades humanas foram centradas no ideal masculino de detenção do poder nas mais diversas áreas: social, político, económico e religioso (Lima, 2014). No entanto, um número consideráveis de mulheres também fizeram parte das personalidades de grande relevo entre as lideranças tradicionais que exerceram o poder em África. Em muitas sociedades africanas, apesar de ser o homem que detém o poder, sempre existiram mulheres que se destacaram no poder e liderança do seu grupo (Bernardo, 2005).

19 Os autores são colaboradores do ARPAC - Instituto de Investigação Sócio-Cultural, Delegação de Niassa – Lichinga, Moçambique.

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Apwyamwene (do plu. apwyamwenes) é termo Emakhuwa que significa avó do mwene20, a décana, a progenitora. Simboliza uma espécie de “mãe das mães”, que as autoridades governamentais tendem a chamá-las de ‘rainhas’. Geralmente, as apwyamwenes funcionam como uma autoridade representante do ramo feminino da povoação (Amaral, 1990).

Apesar das apwyamwenes serem figuras bastante influentes nas suas comunidades, o seu papel na liderança tradicional nas sociedades a-makhuwa é pouco conhecido, sendo raros os estudos sobre elas. Em Moçambique, tanto no período da política colonial como após a independência, o poder tradicional das apwyamwenes nestas regiões sempre foi secundarizado e houve tendência de considerar-se o poder masculino (régulo, cabo, mwene, camassua e puatapuata) ignorando-se a importância da liderança feminina das apwyamwenes (Medeiros, 1984 apud. Arnfred, 2001:182).

No entanto, em Niassa, as instituições baseadas na consanguinidade e na etnicidade, constituem fenómenos sociais reais e quase maior parte da população da província, se sente representada por essa elite política. Nas comunidades a-makhuwa, vigora o sistema matrilinear, onde a mulher tem uma grande influência, apesar de ser na sua maioria, o homem quem detém o poder público. Exceptuando raros casos em que uma mwene mulher, assume a liderança total da sua comunidade. Numa altura em que aumenta o debate sobre a abordagem de género na questão da governação no país, o tema sobre “mãe das mães”: o papel das apwyamwenes entre os a-makhuwa, vem contribuir com conhecimento sobre as relações de género, visando a valorização e promoção da mulher nos processos multifacetados do desenvolvimento.

Alguns estudos usam os termos Macua (singular) ou Macuas (plural) ao se referirem do grupo etnolinguístico Makhuwa (Amaral, 1990; Geffray, 1990; Lundin, 1993; Wegher, 1998; Arnfred, 2001; Matinez, 2009; Ciscato, 2012), enquanto outros autores, usam makhuwa (do sing.) ou a-makhuwa (do plural) para designar o mesmo grupo (Desrosier, 2011;Filippi & Frizzi, 2005; Frizzi, 2008). Porém, neste artigo, é usada a segunda opção, makhuwa (singular) ou a-makhuwa (plural), pelo facto desta ser a grafia mais aproximada com a pronúncia e escrita local do grupo em estudo.

O trabalho começa por contextualizar o tema dentro da abordagem das relações de género, e mais adiante, apresenta a metodologia usada, os principais papéis das apwyamwenes, a sua legitimidade na comunidade, as relações de género entre as lideranças tradicionais, o reconhecimento por parte do governo, as considerações finais e recomendações e por último as referências bibliográficas.

20Mwene (do singular) ou Mamwene (do plural) é a designação local usada na língua emakhuwa do ou da líder da linhagem. É uma espécie de chefe do grupo. Geralmente, o/a mwene possuí também um pequeno espaço territorial sob sua tutela.

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Abordagem Teórica e Conceptual

O presente estudo sobre o papel das apwyamwenes entreos a-makhuwa da província de Niassa, adopta uma análise baseada na abordagem teórica de Max Weber (1995) sobre os três tipos de dominação ou autoridades legítimas.

Na teoria sobre a tipologia de dominação, Weber aborda três formas, nomeadamente: (a) a dominação tradicional; (b) carismática; e, (c) legal ou racional. Na óptica de Weber (1995), a dominação ou autoridade tradicional é aquela que consiste na aceitação do poder do indivíduo com base na tradição, no hábito e no costume, sendo mais frequente nas sociedades patriarcais. Neste tipo de dominação, as relações sociais são reguladas pela tradição, pelo privilégio, pelas relações de fidelidade, pela honra e pela vontade .

No entanto, a dominação carismática é o tipo de dominação que assenta no carisma, na influência e na personalidade de quem detém o poder. Nestes casos, a figura de decisão é quase sagrada e o seu poder encontra-se legitimado na crença que a maioria deposita nas suas qualidades heróicas. A dominação legal ou racional, é aquela em que as relações sociais são reguladas por leis, regras e uma hierarquia que estabelece as competências e atribuições de cada um dentro da estrutura burocrática de relações (Ibidem).

Neste trabalho é usada como fundamentação teórica, adominação ou autoridadetradicional de Weber, onde o poder patriarcal (poder do pai da família ou chefe do clã/mwene) coexiste com o poder matriarcal (poder da mãe da família, da matriarca, a rainha/mwene ou apwyamwene). Ao contrário do poder legal, o poder tradicional é obedecido por força da dignidade própria de quem o possuí, santificada pela tradição por meio da fidelidade. Geralmente, esse tipo de dominação é assente na acção tradicional que se apoia nos hábitos e costumes que caracterizam as actividades familiares (Weber, 1995).

No contexto das comunidades a-makhuwa de Niassa onde foi realizada esta pesquisa, o poder não é só exercido pelo “homem” (patriarca), mas é partilhado também com as mulheres (apwyamwenes e em alguns casos, as mwenes).Tendo em conta essa realidade de coexistência de poderes femininos e masculinos, corrobora-se com Amadiume quando sugere uma abordagem de oposição paradigmática e contestação estrutural de género, introduzindo o conceito de matriarcado não como um sistema totalitário – isto é, a regra total que governa uma sociedade – mas como um sistema estrutural de justaposição com um outro sistema numa estrutura social(Amadiume, 1997 apud.Arnfred, 2001:183).

Os autores discutidos acima, procuram alertar para o facto de ter-se atenção ao analisar as questões de poder, para não se fechar apenas à masculinidade, mas sim, procurar estudar o fenómeno do poder dentro das relações de género existentes. Dado que, o poder pode ser exercido tanto pelo género feminino ou masculino.

Durante o trabalho, são operacionalizados alguns conceitos, nomeadamente: género e poder que importa aqui definí-los para não criar ambiguidades ao leitor.

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Gênero

Joan Scott (1989:21), em sua obra Gênero: uma categoria útil de análise histórica, define o gênero como, um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre diferenças percebidas entre sexos, e o género é uma forma primeira de significar as relações de poder. Ainda o mesmo autor, acrescenta que, (...) as mudanças na organização das relações sociais correspondem sempre à mudanças nas representações de poder, mas a direcção da mudança não segue necessariamente um sentido único (Ibidem). Segundo Peregrini (2012:3), na definição de Scott, nota-se um esforço de fazer perceber o entendimento do gênero como campo de disputa de poder, o que confere ao termo um peso político que os académicos não poderiam se furtar.

Na sua abordagem sobre gênero, Scott, sugere a necessidade de se deixar de lado a noção de que o poder social é unificado, coerente e centralizado e passar-se a analisar tendo em conta o contexto social onde as relações de poder acontecem, podendo este poder ser exercido por homens ou mulheres, dependendo do caso.

Poder

No que concerne ao conceito de Poder, Talcolt Parsons partindo da concepção funcionalista e integracionista do sistema social, definiu o poder como “a capacidade de exercer certas funções em proveito do sistema social considerado no seu conjunto”. Enquanto isso, Michel Focault, defende que o exercício do poder entre os indivíduos faz-se em rede e não existe uma entidade que centraliza o poder. Na sua óptica, o poder pode ser exercido ao nível micro ou macro (Parsons e Focault apud.Massuanganhe, 2011:120).

Para o caso deste estudo, o poder das apwyamwenes seria considerado como sendo a

posse de um domínio que elas têm sobre o sagrado (o ritual maqueya), pelo facto de

serem elas que servem de elo de ligação entre os vivos e os mortos do seu grupo.

Metodologia

O presente estudo é do tipo descritivo com enfoque qualitativo fenomenológico, que procura compreender o papel das apwyamwenes partindo das experiências e vivências das lideranças tradicionais a-makhuwa. Foram usadas como técnicas de pesquisa: a análise documental, observação directa, entrevistas semi-estruturadas individuais e com grupos focais.

Para a realização do presente trabalho, foram seguidas três fases interdependentes, a saber: A primeira fase consistiu na revisão de literatura que aborda sobre o tema em análise, sendo constituída em artigos electrónicos, lívros, monografias, dissertações e teses.

A segunda fase, baseou-se no trabalho de campo para a colecta de dados que decorreu no período entre Outubro de 2015 a Junho de 2016. A colecta de dados foi

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realizada em sete distritos, nomeadamente: Cuamba nos povoados de Mathia, Mucuapa e Bairro 3 de Fevereiro; Majune nos povoados de Luambala, Pindula 2, Pindula-Muaquia e Majune-sede; Mandimba nos povoados de Namoro, Chipa, Puenhenhe, Nampuriua, Mississi no Posto administrativo de Mitande; Maúa nos povoados de Mugoma, Siciri, Necuto e Maúa-sede; Marrupa no Posto administrativo de Nungo e povoado de Mulapane; Metarica nos povoados de Cuvir e Nacumua; Mecanhelas na Localidade de Iataria, povoado de Sale e Localidade de Entre-lagos. Os dados foram colhidos através das entrevistas semi-estruturadas. Foi considerado como o universo do estudo, a população residente nos distritos de Cuamba, Majune, Mandimba, Maúa, Marrupa, Metarica e Mecanhelas.

A amostra do estudo foi constituída por 36 informantes, dos quais 15 do sexo feminino (2 mwenes e 13 apwyamwenes) e 16 do sexo masculino (4 régulos, 4 cabos e 8 mwenes) considerados informantes-chave. Para enriquecer os dados, foram entrevistados, 1 Administrador distrital, 1 Secretária Permanente distrital, 1 chefe de Posto Administrativo, 2 Chefes de localidade e 1 Padre Católica. Em termos de perfil, os informantes tinham idades compreendidas entre 36 a 75 anos. Os líderes tradicionais eram camponeses, exceptuando um régulo que afirmou ser funcionário do Conselho Municipal. Em termos académicos, dois tinham a 10ª classe concluída, um tinha 4ª classe do antigo sistema, e os restantes declararam não terem frequentado a escola. O administrador e a Secretária permanente, ambos tinham o nível de licenciatura. Os chefes de Posto administrativo de Localidade, tinham a 12ª classe concluída. Os entrevistados foram seleccionados segundo o tipo da liderança tradicional na comunidade, pertença ao grupo sócio-cultural makhuwa, legitimidade da sua liderança na sociedade onde vive e conhecimento do assunto em estudo.

A população do estudo são líderes tradicionais, cujo número da amostra baseou-se no método de saturação teórica de Giorgi (1985), que defende um mínimo de 12 entrevistados e um máximo entre 30 a 60. O método de saturação teórica, pressupõe a interrupção das entrevistas quando os investigadores notam a repetição das respostas e estas não trazem novos factos. Para aceder ao grupo alvo do estudo, a equipa de pesquisa contou com apoio de técnicos disponibilizados pelos governos distritais através do Serviço Distrital de Educaçao, Juventude e Tecnologia, que serviam de guias e intermediários entre os investigadores e as lideranças tradicionais. As informações dadas pelas fontes primárias foram suportadas por dados colhidos de fontes secundárias.

A terceira e última fase, consistiu no tratamento dos dados recolhidos durante o trabalho de campo, análise e discussão dos dados para a produção do relatório do estudo. Neste artigo, por questões éticas, os nomes dos informantes foram omissos para garantir o anonimato dos que solicitaram e foram substituídos por nomes fictícios. Para a realização das entrevistas foi lido o consentimento lívre e informado e explicado a não obrigatoriedade na participação da pesquisa, tendo sido entrevistados apenas os participantes que aceitaram em fazer parte.

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Resultados e Discussão

Ao longo do trabalho de campo, foi apreendido que, as apwyamwenes desempenhavam diversos papéis, entre os quais: a) organizadoras do ritual maqueya e conservadoras da tradição; b) organizadoras da cerimónia de emwali; c) conselheiras de saúde sexual e reprodutiva das mulheres de primeira gravidez e adolescentes.

Também, ao longo da apresentação dos resultados, são discutidos aspectos referentes à legitimidade das apwyamwenes, relações de género entre as lideranças tradicionais e reconhecimento das apwyamwenes pelo Estado.

Papel de organizadoras do ritual Maqueya

Durante o trabalho de campo, apreendeu-se uma tendência de feminização do processo de preparação do ritual maqueya, onde maior parte dos informantes, referiram ser uma tarefa muito restrita e sagrada, mas que, devido às regras consuetudinárias transmitidas de geração em geração, o processo é da exclusiva responsabilidade da “mãe das mães” (apwyamwene), a líder de todas as mulheres do povoado.

Sobre o papel de coordenar o ritual da maqueya, uma entrevistada referiu:

Apwyamwene tem a tarefa de pilar a mapira (mele) que vai ser transformada em farinha (ephepa) que é usada como maqueya para as diferentes cerimónias tradicionais da comunidade, entre as quais, ritos de iniciação (emwali); preces aos espíritos dos antepassados com a finalidade de resolução de doenças que atormentam a comunidade; pedido aos antepassados quando há falta de chuva; rituais de purificação das comunidades em casos de doenças ou outro mal. Quem manda é o mwene, ele é que orienta o que apwyamwene deve fazer. Mas as actividades dos dois são realizadas sempre em coordenação.21

A feminização da maqueya, é também corroborada na literatura, o que demonstra que não é algo novo. Sobre o assunto, Arnfred no seu estudo com título: “Espíritos ancestrais, terras e alimento. Posse de terra e poder em função de género, província de Nampula”, refere que a mapira é uma cultura agrícola feminina, cujo cultivo, sacha e colheita são exclusivamente feitos pelas mulheres, como o pilar dos grãos e a subsequente moagem entre duas pedras, incluindo a deposição da maqueya é uma tarefa feminina realizada pela apwyamwene (Arnfred, 2001).

Os participantes do estudo, referiam que, a preparação da maqueya passa por um processo complexo, que inicia quando leva-se a mapira (mele), resultante da contribuição dos agregados familiares da comunidade em quantidades muito reduzidas colocadas em recipientes pequenos para a casa da apwyamwene. Após a contribuição da mele por parte das famílias, ela é entregue a apwyamwene, que por sua vez, tem a responsabilidade de armazenar em sua casa.

21Entrevista com A. S. Luambala, Distrito de Majune, 18.12.2015.

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Nos distritos de Cuamba, Mandimba, Maúa, Marrupa, Majune, Mecanhelas e Metarica onde decorreu este estudo, os participantes desta pesquisa afirmaram que, amaqueya é pilada somente pela apwyamwene, não sendo envolvidas outras mulheres, esse facto, deve-se pela sacralidade que envolve a preparação da farinha para amaqueya. Daí que, a apwyamwene é a pessoa que coordena o processo de preparação da maqueya, que depois é levada para o mutholo22 para fazer preces aos espíritos dos antepassados (minepa) e de Deus (Muluku).

Esses achados sobre o processo da maqueya, também foram referidos em estudos anteriores feitos por Cipire (1996); Arnfred (2001) e Martinez (2009), que também, chegaram as mesmas evidências. Na óptica destes autores, nas sociedades a-makhuwa da alta Zambézia, parte de Niassa, Nampula e Cabo Delgado, as cerimónias de petição através da maqueya se realizam junto a uma árvore escolhida para servir de santuário da família. Nela, o mwene, que desempenha a função de chefe da família é a pessoa encarregue de dirigir a sua prece aos ancestrais da família, começando por invocar o munepa23 do defunto mais importante do clã.

Uma entrevistada explicando sobre o processo das preces aos antepassados, referiu:

Durante as rezas e pedidos aos espíritos dos antepassados, a apwyamwene é a pessoa que se encarrega de levar a peneira (bacia feita de bambus) onde fica a ephepa, e é ela, que dá ao mwene para colocar no mutholo. Se não for a apwyamwene a carregar a peneira da maqueya, os espíritos não irão receber o pedido.24

Esse depoimento, comunga com Cipire, que refere que em muitas sociedades moçambicanas, durante as preces, a comunidade encaminha o seu pedido aos espíritos dos antepassados encabeçados pelo antepassado mais importante da comunidade, por meio de seus líderes. Neste acto, a alma do antepassado protector do clã, encaminha o seu pedido ao Muluku (Deus) que será responsável pela resolução do problema (Cipire, 1996).

Segundo Mattos (2014), o poder da apwyamwene no processo da maqueya refere-se à sua função e ao seu poder de se comunicar e ser responsável pela conexão com os ancestrais, e por sua vez, ephepà ya mele, constituí o elemento simbólico dessa conexão, servindo como mediadora entre a sociedade e os ancestrais.

O uso da farinha da mapira (ephepa ya mele) no ritual da maqueya é apontado por quase todos como sendo obrigatório. A esse respeito, um entrevistado afirmou:

A mapira é a antiga espécie dos cereais nas nossas comunidades. É grande porque podemos semear este ano, colher e tirar nas machambas, mas, no ano seguinte ela volta a germinar. É tolerante à seca e aos problemas climáticos, como escassez de

22 Árvore sagrada onde as comunidades makhuwa recorrem para fazer preces aos seus antepassados. E também nesta árvore é onde são realizadas as cerimónias tradicionais mais importantes da comunidade. 23O Munepa (do singular) ou Minepa (do plural)é a designação que se dá ao espírito ou aos espíritos dos antepassados na língua emakhuwa. 24Entrevista com A.O.M. Distrito de Metarica, 20.10. 2015.

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chuva ou excesso dela. O seu uso no ritual maqueya é obrigatório e insubstituível, a não ser em casos de força maior, em que não há como tê-la.25

Ainda sobre as razões da pertinência do uso da mapira como cereal ideal para o ritual maqueya, uma outra entrevistada refere:

Esse ekhololue simboliza-nos como pessoas, porque tal como a planta regermina, nós não encontramos os antepassados, mas estamos aqui, ainda vivemos.O ekhololue, significa planta que germina por si após ser colhido ou limpado da machamba. Mesmo depois de ser capinada a mapira germina de novo. Mele simboliza, as pessoas, o ser humano, que mesmo alguns morrendo, outros continuam a preservar a espécie.26

Os depoimentos dos informantes demonstram existência de uma comparação da planta da mapira com a vida humana. Uma vez que, como acontece com a mapira que é cortada ao fim da época da colheita mas volta a germinar, também os seres humanos nascem e morrem, mas a espécie continua, não desaparece. Esse facto é também apontado por Mattos (2014), que sustenta que, a relação da mapira com os antepassados aparece em várias dimensões da sociedade a-makhuwa, incluindo no processo das celebrações ligadas ao exercício do poder político.

Contudo, na óptica dos participantes, as apwyamwenes prestam o papel de organizadoras do ritual da maqueya em simultâneo com o de conselheiras do mwene e de conservadoras da tradição.

Papel das Organizadoras da Cerimónia de Emwali

Os entrevistados durante o estudo, referiram que, nas vésperas da realização de ritos de iniciação, conhecidos na língua emakhuwa por emwali, servem como meio de reintegração social das crianças para a realidade sócio-cultural do seu grupo, através da enculturação dos hábitos e costumes de seu povo. Neste processo de emwali, a apwyamwene joga um papel importante. É ela que organiza todo processo das cerimónias, incluindo a preparação da maqueya que vai ser colocada na árvore sagrada, como forma de pedir aos espíritos protectores dos seus antepassados para que o processo decorra sem sobressaltos.

Referindo-se do seu papel no processo de emwali, uma apwyamwene explicou o seguinte:

Quando chega a vez de colocar as crianças no emwali, no fim das aulas escolares, sou a pessoa responsável em preparar a maqueya que vai ser usada nas preces para que o emwali decorra sem problemas. As crianças são trazidas na minha casa e eu coloco a maqueya nas suas cabeças, depois de termos terminado de pedir aos nossos espíritos para protegerem as crianças de toda a maldade durante o processo. O mesmo acto, repete-se no dia de saída do emwali, só que, ao invés de fazermos preces, colocamos a maqueya em forma de agradecimento pelo facto dos nossos espíritos terem nos ouvido

25Entrevista com M. M. Povoado de Moro, Posto Administrativo de Mitande, Distrito de Mandimba, 12.04.2016. 26Entrevista com A. R. Povoado de Mulapana, Localidade de Marangira, Distrito de Marrupa, 02.10.2016.

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e protegido as crianças. No dia da saída, as crianças iniciadas, concentram-se em minha casa, é lá onde acontecem as cerimónias de entrega aos pais. Antigamente, fazia-se uma bebida chamada otheka, e distribuía-se nesse dia, onde os participantes bebiam e dançava-se o nkharakhara e nauacha.27

Durante o trabalho de campo, foi possível apreender que, os iniciandos (alukhu), só são levados aos ritos de iniciação (emwali), após passarem pelo processo de preces feitas pelo mwene e apwyamwene.

Uma entrevistada referiu-se a esse processo nos seguintes moldes:

Esse processo consiste em serem esfregados a maqueya na cabeça e na cara de cada um. Isso simboliza bênção, para que lá onde vão não lhes aconteça algo de mal. Antes de virem os iniciandos, o mwene e apwyamwene fazem preces, evocando aos espíritos dos antepassados e à Deus, para que o emwali decorra bem.28

Contudo, importa salientar que, no decurso do processo da maqueya, a norma tradicional rege que, quem deve ser a primeira pessoa a pôr a maqueya aos alukhu, é o mwene, e depois segue a apwyamwene. Mas sempre é a apwyamwene quem segura a peneira pequena (ephace) onde fica a maqueya, facto que demonstra que apesar da tentativa de masculinização do poder, a apwyamwene detém o poder do sagrado e consequentemente influencia no poder político, uma vez que, o mwene só pode ter a força no ritual se for por meio da sua apwyamwene.

Malinowski também enfatiza a importância da tradição como sendo um aspecto primordial para a comunidade. Para o caso do contexto deste estudo, essa tradição é passada de geração em geração através dos ritos de iniciação (emwali), constituindo desta maneira, o fulcro da socialização para os futuros herdeiros da sociedade, que são ensinados a ter fidelidade à tradição (Malinowski, 1984 apud. Russo, 2001:144).

Papel de Conselheiras das Mulheres sobre Saúde Sexual e Reprodutiva

Nas comunidades a-makhuwa de Niassa existem aspectos da vida social que são reservados para cada género (feminino ou masculino). Os participantes do estudo explicaram que as questões ligadas à sexualidade feminina e outros aspectos de saúde sexual e reprodutiva, incluindo os assuntos sobre a vida conjugal das mulheres nas comunidades a-makhuwa de Niassa, ficam na responsabilidade das apwyamwenes.

Uma entrevistada referiu-se ao trabalho de conselheiras de saúde sexual e reprodutiva nos seguintes termos:

Nós apwyamwenes, temos a responsabilidade de aconselhar as mulheres sobre como viver nas suas famílias e na sociedade, dar informações e sensibilizar sobre o seguimento das vacinações de crianças e outras campanhas de vacinação organizadas pelo centro de saúde, assistência de partos. Essas são actividades específicas para

27Entrevista com H. J. Povoado de Chipa, Posto Administrativo de Mitande, Distrito de Mandimba, 13.04.2016. 28Entrevista com A. J. Distrito de Mecanhelas. 16.06.2016.

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mulheres. Também é nossa tarefa, aconselhar as mulheres que iniciam a ter gravidez, sobre como se comportar, como agir quando o seu marido precisa de relações sexuais, para que isso não afecte a sua criança no futuro. Como apwyamwenes, essa actividade sexual por parte das mulheres é da nossa responsabilidade, uma vez que somos as conservadoras da tradição do nosso n’loko.29

O papel das apwyamwenes no processo de aconselhamento das adolescentes é também mencionado no estudo de Cipire (1996), que sustenta que, as raparigas quando atingem a menstruação passam por um controlo cerrado, com a finalidade de protegê-las de transgredir as normas impostas pela sociedade nesta fase das suas vidas. Dado que, de acordo com o autor, a rapariga menstruada é vigiada e inculcada tabus ligados à essa nova etapa de vida que acaba de entrar, o que pressupõe a obrigação de cumprimento criterioso de normas e de uma boa conduta na sociedade.

Os participantes desta pesquisa, afirmaram que a tarefa de conselheiras da saúde sexual e reprodutiva que as apwyamwenes desempenham, não termina apenas no momento da primeira menstruação, mas sim, constitui o início de inculcação de valores sociais por elas herdados dos seus antepassados, que passam a ser transmitidos para as novas gerações. Após a fase da primeira menstruação, as apwyamwenes voltam a entrar em cena quando estas raparigas são submetidas nos ritos de iniciação feminino,30 onde vão receber ensinamentos adicionais para a vida adulta, para além daqueles que lhes foram transmitidos durante os aconselhamentos referentes à menstruação.

Outra fase que se segue, vai para o momento da primeira gravidez da rapariga. A fase da primeira gravidez é carregada de muitos simbolismos que são sustentados através de ritos. Van Gennep, sustenta que, os ritos observados entre a gravidez e o parto, tem a finalidade de proteger a gravidez e criar condições para que haja um parto seguro, protegendo desta forma a futura mãe, o bebé e a sua família (Van Gennep apud.André, 2014:20).

Em grande medida, os ritos orientados pelas apwyamwenes, na fase da gravidez, são maioritariamente carregados de proibições e deveres em forma de tabus, referentes à espaços de convívio, alimentares, práticas sexuais e maneiras de vestir (André, 2014).

Contudo, há que realçar também que, no trabalho de campo, foi apreendido, através dos entrevistados, que as apwyamwenes desempenham uma grande tarefa de conselheiras nos casos de existência de conflitos conjugais, quando, por exemplo, um casal se desentende sobre as relações sexuais. Nestes casos, a apwyamwene procura resolver o problema ouvindo e aconselhando a mulher e só pode levar ao mwene, no caso de o problema estar acima das suas capacidades, como por exemplo, quando os envolvidos decidem separar-se ou envolvem-se em violência constantemente.

29Entrevista com M.P. Povoado de Nacumua, Distrito de Metarica. 05.12.2015. 30 Antigamente, as fontes orais indicavam que, nas comunidades Amakhuwa, os ritos de iniciação feminina designavam-se por Ciputo, mas devido a influência da cultura Yao, passaram a praticar o Nsondo.

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Legitimidade das Apwyamwenes nas Comunidades A-makhuwa de Niassa

Tal como os mwenes, as apwyamwenes entre os a-makhuwa de Niassa, gozam de larga credibilidade no seio dos membros da sua comunidade e carregam consigo uma responsabilidade acrescida como autoridade tradicional legítima.

Fazem parte das elites do poder político do povo makhuwa, nomeadamente, régulos, cabos, mwenes, apwyamwenes, akhulukano (curandeiros), nahacos (adivinhos), entre outros, algumas dessas reconhecidas à luz do Decreto 15/2000 de 20 de Junho e revogado pelo Decreto 35/2012 de 5 de Outubro.

Um entrevistado durante a realização do estudo, explicando sobre a legitimidade do poder das apwyamwenes entre os a-makhuwa, referiu:

A apwyamwene é uma líder importante e legítima entre nós, os a-makhuwa. Ela é a mulher mais importante e respeitada da comunidade e a sua escolha é por consenso. É ela quem faz e orienta as cerimónias de maqueya da zona. Para os a-makhuwa, as apwyamwenes, são líderes tradicionais escolhidas por um determinado nloko (linhagem), com legitimidade e reconhecimento por parte das pessoas do seu grupo e pelos espíritos dos antepassados do seu grupo. Por regra, todo o mwene ou régulo deve ter apwyamwene. No entanto, a apwyamwene do régulo sempre fica na dianteira comparativamente às outras, depois vem do cabo e depois do mwene, esta tudo em escadarias.31

Esse depoimento, corrobora com a ideia de Fisher (s/d), segundo a qual, a legitimidade do poder acontece quando um indivíduo faz valer e impôr os seus pontos de vista e é aceite dentro dos valores culturais comuns a uma sociedade. O que constituí deste modo, uma primeira base do poder legítimo (Fixer, s/d apud.Xavier, 2011:39).

Na cosmologia makhuwa, a mulher desempenha uma posição central, pelo facto da ligação essencial entre os mortos, os vivos e os membros da linhagem ainda por nascer ser mantida por meio de poderes femininos. Geralmente, são as mulheres (apwyamwenes) que têm uma ligação mais estreita com o mundo dos espíritos, e, esta comunicação com os ancestrais é feita através do processo de colocação de maqueya na árvore sagrada, túmulo ou em local especial na óptica das comunidades (Arnfred, 2001).

Durante o trabalho de campo, foi possível compreender que o poder das apwyamwenes entre os a-makhuwa é legítimo e reconhecido dentro das regras consuetudinárias que regem a conduta do grupo, e a apwyamwene é uma figura de grande relevo e exerce o papel de mulher mais importante da comunidade.

Em quase todos os povoados onde foram realizadas as entrevistas, nos sete distritos da província de Niassa, verificou-se que a liderança das apwyamwenes e a sua influência para os restantes membros da sua linhagem, não tinham a ver com a condição sócio-económica da pessoa e nem a idade da mulher que desempenha a função. Em maior número dos povoados onde foram feitas as entrevistas, observou-se que as apwyamwenes participantes desta pesquisa eram economicamente pobres,

31 Entrevista com Senhor A. A., Distrito de Cuamba, 2016.

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vivendo em condições muitas vezes humildes comparativamente a maior parte dos membros da zona, mas assumiam uma responsabilidade de destaque em todos aspectos rituais e nas cerimónias e eram muito respeitadas e obedecidas.

Uma outra condição de legitimidade do poder, descrita por Fisher, seria a “noção da delegação”, que pressupõe que o individuo que detém o poder é designado como tal por um agente que pode conferir-lhe legitimidade. Nesta ordem de ideias, é considerada legítima, toda a autoridade que resulta e é investida por uma delegação de poder especificamente estabelecida e reconhecida (Fixer, s/d apud.Xavier, 2011:41). Para o caso em estudo, pode-se perceber que elas são investidas de poder, por meio da força da tradição, que lhes reserva de serem as únicas a terem o domínio sobre o ritual da maqueya e das questões ligadas ao sexo feminino.

Apesar das apwyamwenes não deterem um poder total sobre todos os aspectos políticos e sociais da sua comunidade, elas enquadram-se na perspectiva de poder de Fisher. Pode ser considerado que elas detém o poder pelo facto de serem as guardiãs do seu grupo (nihimo), dentro da sociedade makhuwa, apesar de não estar muitas vezes carregada de poderes totais, havendo algumas limitações em tomar certas decisões que são reservadas para os “homens” ou, raras vezes, mulheres mwene.

Reconhecimento das Apwyamwenes pelo Estado à luz do Decreto 35/2012

A questão de reconhecimento das lideranças tradicionais, é oficialmente integrada no processo legislativo em Moçambique à luz do Decreto 35/2012 de 5 de Outubro, que define as lideranças comunitárias em hierarquias e diferencia em três escalões (primeiro, segundo e terceiro), e a partir destas hierarquias, também indica o tipo de fardas e o subsídio a atribuir a cada escalão.

Ao contrário das lideranças reconhecidas à Luz do Decreto 35/2012, os participantes referiram não acontecer o mesmo reconhecimento para as apwyamwenes. Sobre este facto, uma apwyamwene referiu:

Antigamente, os régulos não tinham fardas, a população levantou-se e contestou alegando que nas reuniões não conseguiam distinguir quem era régulo e quem não. Depois disso, o governo reuniu-se e decidiu atribuir insígnias aos líderes e mais tarde atribuiu fardamento. Agora é fácil distinguir quem é líder e quem não é e os respectivos escalões. O que eu e os outros desejamos é que as apwyamwenes deveriam ter fardamento para que se saiba que elas são apwyamwenes, assim como acontece com os régulos.32

Ainda sobre o sentimento de falta de reconhecimento por parte do Estado, em que as apwyamwenes dizem estar excluídas do processo, um outro entrevistado sugeriu:

Eu gostaria de falar sobre as apwyamwenes. Há necessidade do governo dar subsídios, mesmo que seja duzentos. Porque elas é que põem a maqueya. Elas são importantes aqui na comunidade. Eu tenho tentado ajudar a minha apwyamwene, quando há

32 Entrevista com M.N. Povoado de Necuto, Distrito de Maúa. 03.06.2016.

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maqueya aquilo que sai divido com ela. Quando há resolução de problemas aqui, o que se paga eu partilho com apwyamwene. Mas há outros mwenes que comem sozinhos e não dão algo as apwyamwenes. Isso lhes desmoraliza.33

Contudo, apesar de maior número dos entrevistados terem afirmado que, as apwyamwenes não são reconhecidas pelas autoridades governamentais, convergem na ideia de que, essa presumível falta de reconhecimento é apenas quando se trata de benefícios. Porém, nas ocasiões de cerimónias de Estado, a apwyamwene é solicitada pelas autoridades governamentais para fazer parte na preparação do material usado no processo do ritual da maqueya, principalmente quando se trata de uma inauguração de infra-estruturas construídas pelo Estado, como estradas, pontes e outros edifícios, lançamento de primeira pedra para a sua construção, entre outras actividades.

Os achados sobre a reclamação de falta de reconhecimento das apwyamwenes, também são apontados na literatura. Medeiros num estudo sobre a autoridade tradicional em Moçambique, explica que, tal como os britânicos na Nigéria, em Moçambique, os portugueses eram cegos para com o poder das mulheres. Desta feita, em grande parte a autoridade tradicional, masculina e feminina, continuou nos seus papéis sociais e rituais durante todo o período colonial. Nessa altura, as genearcas e os décanos das linhagens continuaram a reproduzir a organização social numa rede paralela à estrutura dos regulados e clandestinamente aos olhos dos portugueses. Foi a cadeia hierárquica das ‘mães das mães’ (as apwyamwenes) que manteve vivo o poder tradicional (Medeiros, 1984 apud. Arnfred, 2001:187).

De igual modo, Geffray salienta que, após a independência de Moçambique, a política da construção do “Homem Novo” implementada no auge da revolução, afastou do poder todos os chefes tradicionais e substituíu-os por novas figuras de confiança. Porém, o facto curioso é que a política da revolução na altura, só via o poder masculino e, assim, não proibiu as apwyamwenes de continuarem a exercer o seu poder (Geffray, 1985 apud. Arnfred, 2001:187-188).

Neste processo de pesquisa foi possível compreender, igualmente, que há diferenças de poder de decisão entre apwyamwenes e as mulheres mwenes (rainhas). As rainhas, são as mulheres que ocupam duas posições em simultâneo, são mwenes e apwyamwenes ao mesmo tempo, são reconhecidas pelas autoridades governamentais, possuem uniforme e tem subsídio atribuído aos líderes comunitários de acordo com o Decreto 35/2012. Essas rainhas ou mulheres mwenes, têm todo o poder de decisão sobre os diversos aspectos sociais das sociedades onde vivem. Uma dos achados que o estudo traz é de que, as apwyamwenes mesmo tendo uma relevância social indiscutível, têm poderes limitados em domínios de tomada de decisão para assuntos de grande relevo, na sua maioria, reivindicam a falta de reconhecimento por parte do governo.

A pesquisa demonstra também que os escalões das lideranças comunitárias não têm a ver com as hierarquias das lideranças tradicionais legitimadas pelas comunidades através da sucessão e herança, mas há uma miscelânia, encontrando-se entre elas,

33 Entrevista com I. M. . Distrito de Maúa, 02.06.2016.

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por exemplo no primeiro escalão, também secretários de bairros, geralmente indicados por influência política.

Relações de Genéro na Liderança das Apwyamwenes: Permissões e Limitações

Em conversa com os entrevistados, percebeu-se que há tendência de masculinização do poder tradicional tanto pelas comunidades quanto pelo Estado, onde as lideranças masculinas (régulos, cabos, mwenes, camassuas) tendem a tomar as decisões mais importantes da comunidade. A influência de poder na liderança das apwyamwenes entre os a-makhuwa, é um facto inquestionável. Geralmente, todos os residentes do povoado, obedecem as orientações do régulo e da sua apwyamwene. Apesar desse respeito e reconhecimento, é perceptível pelo discurso dos informantes que ela tem poder limitado e, como mulher, não pode decidir sobre alguns aspectos da comunidade, exceptuando naqueles casos em que a mulher é mwene e todo o poder político está a cumulado em si.

Entre os a-makhuwa residentes em Niassa, a família é baseada no direito matriarcal, sendo o regime familiar matrilinear e uxorilocal. A sucessão e a herança defere-se por via transversal uterina. Os tios maternos exercem grande autoridade ao agregado familiar (Amaral, 1990). A chefia da liderança política é exercida pelos homens e, só excepcionalmente, pelas mulheres quando na família detentora do poder se tenha extinguido a sucessão masculina. Junto de cada líder político funciona, porém, personificada pela tia, prima ou sobrinha, uma espécie de uma autoridade representante do ramo feminino da povoação, que se chama por apwyamwene (Ibidem).

Explicando as limitações do poder da apwyamwene e o tipo de problemas que lhe são permitidos resolver, uma entrevistada salientou:

Apesar duma apwyamwene ter poder sobre alguns aspectos, ela não resolve problemas de divórcios ou conflitos de terra ou machamba. Esses problemas grandes, são levados primeiro ao mwene, se este não consegue leva-se para o nduna, se nduna não consegue leva para o régulo. Apwyamwene não tem competências para resolver problemas desse nível na comunidade.34

Como se pode depreender, a informante acima, apesar de ser mulher, ela desempenha o papel de mwene (líder do terceiro escalão), posição que geralmente é desempenhada por homens. Isso confirma aquilo que Tvedten et al. (2009) refere que, nos tempos remotos, entre as sociedades a-makhuwa, os clãs (n’loko) e linhagens (nihimo) eram chefiados por homens e raramente por mulheres, embora houvesse um tipo de poder das mulheres designadas por apwyamwene com um papel importante na preservação da tradição.

Em termos de status social, a apwyamwene é considerada como sendo a principal mulher entre todas as mulheres da sociedade. A presença da liderança das apwyamwenes entre os a-makhuwa insere-se num contexto amplo das hierarquias existentes na liderança política do grupo, que estabelecem uma rede de significados e valores herdados dos antepassados, figuras cruciais na forma de pensar e de agir das

34 Entrevista com I. A. Z. Localidade de Iatara, Distrito de Mecanhelas. 21.06.2018.

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comunidades, onde gestos e símbolos utilizados têm não apenas uma significação, mas várias (Desrosiers, 2011:69).

Ao longo do estudo, os informantes explicaram que há tarefas que são permitidas tanto para o mwene assim como a apwyamwene. Enquanto o mwene ou a mwene (dependendo de ser homem ou mulher), tem a responsabilidade de fazer a atribuição de terras, resolução de problemas de grande relevo e representar a linhagem perante o Estado e os visitantes. As apwyamwenes têm as responsabilidades mais espirituais e cerimoniais.

Esse facto, é também referenciado na literatura. Costa sustenta que são as apwyamwenes que mantém intacta a pureza da língua e das tradições, e estão em permanente contacto com os mortos aí sepultados (Costa, 1960 apud.Arnfred, 2001:186).

Considerações Finais

O estudo tinha como objectivo compreender o papel das apwyamwenes entre os a-makhuwa de Niassa e, neste sentido, conclui-se que: as apwyamwenes desempenham um papel preponderante na preservação e manutenção da tradição da sua linhagem; intermediárias entre os vivos e os espíritos dos ancestrais; organização da maqueya usada para os rituais tradicionais entre os a-makhuwa edos ritos de iniciação (emwali); conselheiras das mulheres em aspectos ligados a saúde sexual e reprodutiva da comunidade; representantes das mulheres na esfera pública.

Nas sociedades a-makhuwa da província de Niassa, as lideranças tradicionais estão subdivididas em hierarquias onde cada tipo desempenha uma função socialmente preestabelecida e aceite por todos. Geralmente, nessas sociedades, existem dois tipos de liderança tradicional feminina, por um lado, a mwene, que é considerada oficialmente como líder do terceiro escalão à luz do Decreto 35/2012, com poderes tradicionais gerais dentro do seu território e com direito à toda estrutura política igual às outras elites de poder tradicional masculinas. Por outro lado, as apwyamwenes, um tipo de liderança tradicional feminina que possui poderes limitados. Ao contrário dos outros tipos de lideranças tradicionais (régulos, cabos e mwenes), as apwyamwenes não beneficiam de subsídio que é reservado pelo Estado de acordo com o Decreto 35/2012, e quase na sua totalidade, sentem-se discriminadas e excluídas pelo poder governamental.

Contudo, apesar de haver uma tendência de perpetuação do poder político e como consequência no domínio da vida pública e controlo dos recursos por parte dos homens nessas sociedades, algumas mulheres (mwenes e apwyamwenes), estão envolvidas na resolução de vários aspectos do dia-a-dia da comunidade e como consequência, a sua participação na esfera pública, está permitindo o exercício de influência na tomada de decisões da sociedade, mesmo que de forma tímida.

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Omissões do Património Cultural na Fortaleza de Maputo na

perspectiva dos discursos dos visitantes

Maria Madalena Rangel35

[email protected]

Resumo O presente artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre narrativas de visitantes da Praça Nossa Senhora da Conceição vulgo Fortaleza de Maputo, um local considerado Património Cultural Moçambicano. O propósito da pesquisa foi a análise dos discursos dos visitantes sobre a Fortaleza de Maputo. Na análise da literatura sobre o património cultural identifiquei duas perspectivas que permitem compreender, por um lado, que o património cultural é um lugar que predomina uma história única, e estática, por outro, que é um lugar dinâmico e de questionamento em que a memória é reconstruída a cada dia. Com base nos resultados da pesquisa etnográfica compreendi que os indivíduos consideram que a Fortaleza de Maputo constitui uma memória omissa quanto a história dos moçambicanos, porque faltam exposições dos feitos, conquistas e objectos moçambicanos. Com isso, percebo que os indivíduos que no passado foram silenciados pelos discursos dominantes, procuram difundir a história sobre o passado na qual eles identificam-se. Os resultados apresentados permitem considerar a Fortaleza como um espaço de diversidade de narrativas sobre o património ali presente, diferentemente da literatura que analisa o património como algo estático.

Palavras-chave: Narrativa, memória e património cultural.

Introdução Este artigo foi escrito de acordo com pesquisa de campo do tipo etnográfico exploratório, desenvolvida para Trabalho de Culminação dos Estudos (TCE) na modalidade de projecto de pesquisa para obtenção do grau de Licenciatura em Antropologia na Faculdade de Letras e Ciências Sociais na Universidade Eduardo Mondlane. Este artigo analisa as narrativas dos visitantes com relação as omissões sobre o Património Cultural. Optei por este assunto ao questionar-me sobre essas narrativas tendo em conta que existe uma história oficial sobre a Fortaleza. A Fortaleza de Maputo conta a história da presença portuguesa em Moçambique e a resistências oferecidas pelos habitantes da terra, o que torna-a num espaço onde convivem narrativas concorrentes. A literatura sobre o Património Cultural permitiu-me analisar a perspectiva sobre o património estático e dinâmico. O autor que subscreve a perspectiva de um património estático é Nora (1989) que defende o museu como um lugar onde a memória cristaliza. Para o autor os

35 Licenciada em Antropologia pela Universidade Eduardo Mondlane e colaboradora do ARPAC-Instituto de Investigação Sócio-Cultural.

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discursos que os indivíduos produzem nas comemorações que tem organizado e realizado nos museus, são um sinal de desaparecimento da memória viva. Diferentemente de Nora (1989), Inguane (2007) defende que, o Estado constrói memória nacional através da produção de uma narrativa nacional em que os espaços estão abertos para a produção de outras narrativas relacionadas e conflituantes, e que o envolvimento de não-elites moçambicanos abre caminhos para a dinâmica transacional da memória social que transcendem os limites do Estado moçambicano da temporalidade histórica comum e entendimento tradicional de pertences. Com base na explicação de Inguane (2007) percebo que existe um órgão que produz uma narrativa, havendo espaço para produção de outras narrativas por parte de outros indivíduos provenientes das não-elites e este aspecto abre caminho para a dinâmica da memória. Na mesma linha de discussão, Peralta (2007) defende que existe uma relação entre a memória oficial e a memória popular, por isso a memória social não pode ser vista apenas como resultado de estratégias do poder dominante. As memórias estão vinculadas em discursos que estão em constante revisão, incorporando práticas discursivas alternativas, as quais podem, elas próprias, transformar, a medida que a sua popularidade aumenta, nestes mesmos discursos dominantes. A explicação de Peralta (2007) permite compreender que os conteúdos difundidos pelos museus são subjectivos, temporários e envolvem discursos de diferentes segmentos da sociedade. Ribeiro apud. John (2012) afirma que a vivência de um período histórico marcado por uma legislação democrática garante que novas perspectivas possam ser construídas em vista da rememorização de uma história mais significativa especialmente de quem e para quem historicamente foi deixado de lado como os mais pobres, os explorados e os dominados. A explicação de John (Idem) permite compreender que apesar da existência de uma ciência com o poder legítimo para preservar as culturas do museu há espaço para a criação de novas histórias envolvendo indivíduos alheios a instituição. Na mesma linha de discussão Karlstrom (2013) refere que é impossível impor um ideal conservacionista em contextos e mundos em que um ideal não conservacionista pode prevalecer, defende que os significados e conceitos de conservação do património diferem em cada contexto. Alternativamente Abreu (2008), refere que numa época em que os museus eram baseados em conceitos dominantes e constituídos a partir de bens seleccionados pelos ocidentais, surge em Amazonas no Brasil, um Museu constituído pela comunidade local Ticuna. A partir das imagens dos livros e fotografias em exposição, foi possível reconstituir os objectos que estavam em desaparecimento. No entanto, Johnston (2014) menciona que a incorporação da significância social nos quadros legislativos e regulamentares da avaliação patrimonial começa a ser considerada na actualidade. Os significados e os valores não reconhecidos, a cada

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ano atraem interesse dos profissionais dos patrimónios. A perspectiva de Johnston permite compreender que há coisas ou lugares que não fazem parte do património, mas que tem significado social. Os significados atribuídos pela sociedade com relação ao que eles consideram como bem cultural a integrar nas avaliações sobre o património, começa a ser considerado para a avaliação dos tipos patrimoniais e a própria legislação começa a incluir aspectos da significância social. Por sua vez, fica por compreender os aspectos de negociação desses significados entre as pessoas e os profissionais que conservam e avaliam o que é ou não um património. De modo geral, os autores defendem que os conteúdos que compõem os museus são renovados a cada momento ou época. E independentemente das formas de poder que predominam nos museus, os indivíduos subalternos que não participavam na produção das narrativas dos museus, na actualidade tem encontrado espaço para negociar essas narrativas através de atribuição de outros ou novos significados. E estes aspectos fazem com que os museus sejam lugares dinâmicos. Localização, caracterização e breve historial da Fortaleza de Maputo A Fortaleza está localizada na Avenida Samora Machel próximo ao Porto, na baixa da cidade de Maputo. A sua frente a Praça 25 de Junho e lateralmente entre as Ruas de Ngungunhane e Timor Leste. No que refere a sua organização, a Fortaleza de Maputo dispõe de duas entradas, a primeira está de frente à Rua Timor Leste e a segunda entrada está do lado da Avenida Samora Machel. No seu interior estão instalados os objectos ou peças que parte delas são integrantes do Museu Histórico Militar em diferentes compartimentos e no jardim da Fortaleza. Na parte externa aos compartimentos da Fortaleza podem ser encontrados objectos que incluem Busto em Bronze de Trigo de Morais36, estátuas do governador colonial Mouzinho de Albuquerque37 e do comissário régio colonial António Enes38, representação da prisão de Ngungunhane39, imperador de Gaza, nos finais do século XIX, representações das campanhas militares de ocupação do território moçambicano, canhões de ferro e de bronze, metralhadoras de diversos calibres e munições ou projécteis. Dentro dos compartimentos há uma divisão onde encontra-se uma sala dedicada a Ngungunhane. Para além dessa sala, pode ser visto num outro compartimento uma sala de piano, duas salas de exposição/galerias de arte, uma sala que actualmente acolhe uma exposição temporária sobre a vida e obra de Eduardo Mondlane, uma sala que funciona um centro de interpretação ou biblioteca da Fortaleza onde estão

36António Trigo de Morais parte de Portugal para Moçambique em 1921, para analisar os rios Búzi e Limpopo, onde desenvolveu uma proposta para o aproveitamento agrícola do Rio Limpopo. 37Joaquim Augusto Mouzinho de Alburquerque foi um militar português que exerceu as funções de governador do distrito de Gaza e governador-geral de Moçambique. 38 António José de Orta Enes foi formado no curso superior de letras, foi um político jornalista, escritor e administrador colonial português. 39 Ngungunhane foi o último imperador do Império de Gaza. O seu reinado como imperador estendeu-se de 1884 a 1895, uma governação que iniciou num momento crítico para África pois coincidiu com a realização da Conferência de Berlim 1884-1885.

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expostas imagens de algumas lápides e duas salas que funcionam como área administrativa e dois balneários. Em termos históricos, segundo a informação disponível na entrada da Fortaleza, a Fortaleza de Maputo é um monumento nacional relacionado com a história da presença portuguesa em Moçambique e com as relações e resistências oferecidas pelos habitantes das terras das margens da baía. A Lei 10/88 de 22 de Dezembro assegura a protecção legal deste monumento que é parte integrante do património cultural moçambicano. A sua história remonta aos finais do século XVIII quando iniciou a construção da primeira fortificação portuguesa na baía, num contexto de rivalidade comercial entre diversos países europeus que incluem os franceses, holandeses, austríacos e ingleses (Folheto de Fortaleza, S/D). De acordo com Oliveira (1965), houve uma frequente sucessão desses países que controlavam a baía de Lourenço Marques num ambiente de rivalidades até a permanência definitiva dos portugueses. O primeiro pequeno forte denominava-se “Forte Lagoa”. Mais tarde foi reformado e ampliado e denominou-se “Lydzaanhei” que significa liberdade. E com a fixação dos portugueses a Fortaleza passou a ser designada de “Praça da Nossa Senhora da Conceição”. Após a Conferência de Berlim40, deu-se o processo da ocupação territorial e montagem da administração colonial. Durante esse período da dominação e no âmbito do programa de salvaguarda do património cultural português no ultramar, precisamente nos meados da década de 40, a Fortaleza de Maputo foi reconstruída seguindo o traçado da anterior e instalou-se nela o primeiro Museu Histórico Militar da cidade, inaugurado em Outubro de 1955, que retratava a história da ocupação militar portuguesa em Moçambique. Esta terá funcionado até pouco depois da independência nacional de Moçambique (Folheto da Fortaleza, S/D). Desde a independência nacional, em 1975, a Universidade Eduardo Mondlane tem sido a guardiã da Fortaleza. A UEM realiza obras regulares de conservação e restauro do monumento e oferece diversos elementos de interpretação da história da ocupação e resistência. Para além disso, a Fortaleza abre as suas portas a múltiplas realizações sociais e culturais, constituindo igualmente um importante atractivo turístico da cidade (Idem). O nome oficial do museu contínua sendo a “Praça Nossa Senhora da Conceição”, a denominação “Fortaleza de Maputo” é um nome que as pessoas têm adoptado desde o período da independência.

40 A Conferência de Berlim, também conhecida como Conferência da África Ocidental ou Conferência do Congo, realizou-se em Berlim de 15 de Novembro de 1884 a 26 de Fevereiro de 1885, marcando a colaboração europeia na partição e divisão territorial de África.

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As “omissões” do património cultural Nesta secção descrevo os aspectos que os visitantes (apresento os seus discursos usando nomes fictícios) afirmam fazer falta na Fortaleza com relação aos feitos, conquistas e objectos dos moçambicanos. O exemplo abaixo menciona esse aspecto:

É importante que a Fortaleza seja um espaço não apenas para transmitir uma história, mas também para trazer as histórias alternativas…, contar a história da reacção dos moçambicanos a ocupação, as armas usadas naquele tempo e as imagens dos guerreiros no momento de acção na guerra.41

A partir do exemplo do Marcelo podemos perceber que faltam histórias alternativas sobre a Fortaleza de Maputo. Afirma que nas histórias alternativas inclui contar sobre a reacção dos moçambicanos à ocupação, as armas e as imagens dos guerreiros no momento de acção no período de guerra. À semelhança do Marcelo, André, outro visitante, afirmou que a Fortaleza é um orgulho moçambicano, sentiria mais orgulho se esta instituição que protege a Fortaleza contasse o outro lado da história escrita sem influência portuguesa. André defende que há falta de uma parte da história, escrita pelos moçambicanos, que precisa ser contada pela instituição que protege a Fortaleza. Informação similar é anunciada por um visitante no livro de sugestões, a Fortaleza é um bem necessário para o turismo moçambicano, e é importante que comecemos a escrever outra parte da história deste lugar que também seja reflectida a partir das imagens de Moçambique.42Para o visitante, falta na Fortaleza uma parte da história que deve ser exposta e apresentada através da exposição das imagens de Moçambique na Fortaleza. Em uma conversa entre os participantes da cerimónia de celebração do Dia das Forças Armadas de Moçambique foi notável a mesma preocupação, a ideia da Fortaleza repleta de representações da actualidade. Foram repetidas expressões como a seguinte: esta sala está muito vazia, esses quadros nem são notáveis deviam colocar mais obras, esculturas e imagens de nossos militares actuais.43Os visitantes entraram num dos compartimentos da Fortaleza e notaram a ausência de objectos e sugeriram a colocação de obras, esculturas e imagens de militares actuais de Moçambique. Outro discurso que enfatiza a necessidade de exposição dos feitos históricos dos moçambicanos é apresentado por Fátima:

Uma vez eu estava a ler os livros que estão na biblioteca da Fortaleza, achei muito interessante porque há vários livros que contam a história do período de ocupação e colonização portuguesa e nos livros falam muito dos militares das lutas por parte dos moçambicanos e também falam das armas que usávamos…está a faltar exposição dessas armas, vestes e estatuas nas paredes e nas salas da Fortaleza.44

41 Depoimento de Marcelo, visitante da Fortaleza de Maputo (25/08/2016). 42Depoimento retirado do Livro de Sugestões da Fortaleza de Maputo (08/09/2016). 43 Comentários dos Participantes da Cerimónia das Forças Armadas de Moçambique (25/09/2016). 44 Depoimento de Fátima Rude, visitante da Fortaleza de Maputo (22/10/2016).

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De acordo com Fátima, na Fortaleza há informação escrita sobre os militares e as armas que os moçambicanos usavam na época da guerra, mas há escassez dessas armas, vestes e estátuas em exposição. Outra visitante teve um posicionamento similar, só lamento não ter encontrado, mas evidências da nossa história (onde estão os objectos que faltam). Gostaria que a Fortaleza colocasse em exposição as armas antigas usadas pelos moçambicanos.45 O depoimento acima permite perceber que a Fortaleza omitiu a informação da história de Moçambique a partir da exclusão de objectos como armas antigas usadas pelos militares moçambicanos. À semelhança do exemplo acima, outra visitante partilhou o seu entendimento:

Saudações pelo trabalho que visa divulgação do património e história de Moçambique, sugerimos que se prossiga com acções visando tornar mais atractiva a Fortaleza, trazendo mais sobre os aspectos da nossa cultura de modo a atrair ainda mais a curiosidade dos visitantes sobre os aspectos culturais de nossa terra. Parabéns.46

Neste exemplo, a visitante reforça a ideia de existência de poucos objectos ou aspectos da cultura moçambicana na Fortaleza, quando afirma que há necessidade de trazer mais sobre aspectos da cultura do país. A inclusão de informação sobre a cultura moçambicana, dará maior credibilidade a cultura de Moçambique e será um motivo para atrair a curiosidade dos indivíduos que frequentam a Fortaleza. A partir dos dados apresentados nesta parte do trabalho é possível perceber que os visitantes reclamam a omissão de objectos usados pelos moçambicanos no período de colonização na Fortaleza. Eles afirmam que faltam na Fortaleza a exposição das armas, vestes e estátuas antigas dos guerreiros ou militares, e também afirmam que poderiam colocar imagens dos militares da actualidade. Para além dos objectos que faltam, os participantes referiram que a instituição que protege a Fortaleza, tem que apresentar memórias alternativas e essa outra informação tem que ser escrita pelos próprios moçambicanos sem influência portuguesa. Considerações Finais Como fenómeno social, os discursos que os indivíduos produzem na interacção com esse património constitui uma memória omissa quanto à história dos moçambicanos na medida em que expressam a ausência da exposição dos feitos, conquistas e objectos moçambicanos. Esses discursos mostram que os indivíduos que no passado foram silenciados pelos discursos dominantes procuram não só difundir memórias por eles escritas, mas procuram difundir a história sobre o passado na qual eles identificam-se. Percebo ainda que os visitantes reclamam mais objectos da cultura moçambicana para tornar mais atractiva a Fortaleza por meio de objectos nacionais. Estes discursos realçam aspectos identitários que os indivíduos produzem na sua interacção com a Fortaleza.

45 Depoimento retirado do Livro de Sugestões da Fortaleza (08/09/2016). 46Depoimento retirado do Livro de Sugestões da Fortaleza (08/09/2016).

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Esses resultados reflectem a diversidade de narrativas sobre a Fortaleza de Maputo apesar de existência de uma narrativa oficial sobre o lugar. A memória apesar de referir­se ao passado imcorpora um discurso que está em constante construção e reconstrução para responder os problemas ou questões da actualidade, num momento em que a Fortaleza de Maputo oferece diversos elementos de interpretação da história da ocupação e de resistência bem como múltiplas realizações sociais e culturais. Esses aspectos corroborram para uma constante problematização das narrativas do património presente na Fortaleza de Maputo sejam em aspectos culturais, sociais ou políticos. No geral resultados apresentados permitem considerar a Fortaleza como um espaço de diversidade de narrativas sobre o património ali presente, diferentemente da literatura que analisa o património como algo estático. Pesquisas futuras podem aprofundar questões sobre as componentes que os indivíduos accionam em cada contexto que os permite negociar e incluir essas narrativas nos lugares de património. Referências Bibliográficas ABREU, R.(2008). “Tal antropologia qual museu?”.Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, Suplemento 7, pp. 121-143. INGUANE, C. (2007). Negotiating Social Memory in Postcolonial Mozambique: The Case of Heritage Sites in Mandhlakazi District. Johannesburg: University of the Witwatersrand. JOHN, N. (2012). Identificação, Valorização e Preservação do Património Histórico e Cultural. Rio Grande: Anpuhrs, pp. 320-336. JOHNSTON, C. (2014). “Inhabiting Place: Social Significance in Practice in

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Turismo Cultural: uma reflexão sobre alguns locais associados aos Makombe no desenvolvimento da actividade turística

Pascoal dos Santos Saraiva47 [email protected]

Resumo

O presente artigo apresenta uma reflexão sobre a necessidade de preservação do património cultural como base atractiva para o desenvolvimento da actividade turística, com enfoque em alguns locais associados a Dinastia Makombe. Trata-se de uma pesquisa levada a cabo no âmbito das celebrações do centenário da revolta de Báruè. Para tal, foi feito um levantamento de campo sobre o estado actual e os problemas que afectam aos locais históricos culturais, nomeadamente, Amuralhado de Magure, Forte de Massangano e Tambara. As informações obtidas foram analisadas tendo em conta os factores determinantes no desenvolvimento do turismo cultural. Os resultados obtidos sugerem que nos locais estudados, o turismo cultural está distante de tornar-se uma realidade, devido, por um lado, ao descaso das autoridades locais em relação à degradação física dos locais e das vias de acesso, por outro, pela degradação da memória colectiva das comunidades no que diz respeito a história dos locais.

Palavras-chave: turismo cultural, património cultural, preservação

Introdução

A cultura envolve as várias formas de expressão do homem, inclui o conhecimento, as crenças, os costumes, a relação entre os homens e destes com o meio ambiente. Deste modo, o Património Cultual define-se como o conjunto de testemunhos materiais e intelectuais representativos da comunidade e da sua evolução através do tempo (PEC48 2012-2022). A definição neste horizonte permite afirmar que Moçambique, pela sua diversidade cultural, possui um rico Património.

Sendo o turismo a deslocação de pessoas temporariamente dos seus locais habituais para outros destinos, o turista que viaja para conhecer as tradições, histórias e aprender sobre o passado de maneira autêntica, diz-se que vai em busca do turismo cultural. Por isso, a aliança entre a cultura e o turismo constitui uma oportunidade de desenvolvimento socioeconómico para o País, em geral e a Província de Manica, em particular.

47 Investigador do ARPAC-Instituto de Investigação Sócio-Cultural, Delegação de Manica. 48 Plano Estratégico da Cultura

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Deste modo, os aspectos que representam a diversidade cultural constituem uma oportunidade para o turismo. Todavia, para que o turismo cultural constitua alavanca da economia, é necessário que sejam oferecidos serviços de qualidade e atraentes.

O turismo é uma actividade multifacetada que apresenta uma forte ligação com o património material e imaterial de um lugar. De facto, actualmente o turismo cultural é uma realidade em muitos países do mundo, que buscam desenvolver de forma sustentável, agregando valor às comunidades locais. Esta visão encontra-se reflectida nos objectivos do turismo cultural proposto pelo ICOMOS49, citado por Camargo & Cruz (2009), segundo a qual, o turismo cultural visa manter viva a protecção do património cultural.

Moçambique para não estar de fora a estas oportunidades de desenvolvimento, inclui na Resolução 12/97 de 10 de Junho que: as expressões culturais, o folclore, as paisagens e parques naturais, monumentos e museus, os trajes, a culinária e os rituais tradicionais constituem elementos importantes para um turismo bem-sucedido. Porém, nota-se que a promoção do turismo cultural no País ainda é fraca, a sua visibilidade encontra-se confinada aos eventos como os festivais de Cultura.

No entanto, o uso da cultura como atractivo de visitantes pressupõe a sua valorização, promoção, manutenção da sua dinâmica e permanência no tempo como símbolos de memória e identidade. Por isso, torna-se imprescindível envolver as comunidades locais, não só pela perspectiva de desenvolvimento económico local mas também pelo espírito comunitário e da melhoria da qualidade de vida da população local (Schneider, 2006).

O presente artigo pretende apresentar e analisar alguns locais de interesse histórico-cultural associado aos Makombe, com vista promover reflexões que possam trazer respostas para impulsionar o desenvolvimento do Turismo Cultural.

2. Desenvolvimento do Turismo Cultural

2.1. Cultura, Património Cultural e Turismo

Para uma melhor compreensão deste segmento, temos que entender primeiro alguns termos que norteiam as reflexões desta pesquisa.

Com base na resolução no 12/97 de 10 de Junho (Política Cultural), a cultura define-se como sendo um conjunto complexo de ser, estar, comportar-se e relacionar-se desde o nascimento até a morte, passando pelos rituais que marcam os principais momentos de integração social e de socialização. Por isso a cultura deve ser entendida a totalidade do modo de vida de um povo ou comunidade. Esta definição remete-nos a conclusão que Moçambique é um País com um mosaico cultural rico e diversificado.

49International Council on Monuments and Sites.

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O conjunto dos bens matérias e imateriais criados ou integrados pelo povo moçambicano ao longo da história, com relevância para definição da identidade cultural moçambicana, define o Património Cultural moçambicano (Lei nº 18/88 de 22 de Dezembro).

A definição do turismo torna mais simples se nos socorrermos da definição fornecida pela WTO (Organização Mundial do Turismo) e amplamente utilizada, segundo a qual: Turismo é a actividade de pessoas que saem e permanecem fora de seu ambiente natural por não mais de que um ano consecutivo por motivos de lazer ou outros propósitos.

A combinação entre a cultura e o turismo configuram um segmento do turismo cultural, que é marcado pela motivação do turista de se deslocar, especialmente com a finalidade de vivenciar aspectos e situações que são particulares da cultura (Brasil, 2010). Desta forma, o património cultural deve ser compreendido como mais um recurso à disposição das comunidades locais para o seu desenvolvimento socioeconómico. Esta concepção de património cultural como recurso económico, capaz de gerar emprego e renda, devem ser associadas às iniciativas de desenvolvimento sustentável e o combate a pobreza.

2.1.2. Património Cultural como Produto Turístico

Em muitos países, particularmente em Moçambique, o turismo vem sendo apresentado como uma importante fonte de renda e aliado ao combate contra a pobreza. Por esta razão, o Plano Estratégico do Turismo (PET) 2015 – 2015, coloca o turismo como uma oportunidade para a diversificação da economia, podendo contribuir para o crescimento económico e captação de divisas, criar emprego, contribuir na distribuição da riqueza e na criação de habilidades técnicas dos envolvidos.

A aliança entre o turismo e o desenvolvimento económico pode ser benéfica, pois o turismo é um fenómeno em constante desenvolvimento e tem adquirido uma importância crescente de promoção de aspectos positivos, tanto para economia, nas relações sociais, na cultura e no meio ambiente (Meneses, 2010).

O turismo cultural, pelas suas características, pode tornar-se um elemento importante no desenvolvimento da região e pode contribuir no desenvolvimento das comunidades locais, pelo uso da sua história e cultura. Desta forma, o património cultural pode impulsionar o turismo para dinamizar da economia local e, ao mesmo tempo, preservar e valorizar o legado histórico e cultural das comunidades detentoras. Em razão disto, esta forma de turismo justifica os esforços pela manutenção e protecção da comunidade local e dos turistas, em razão de benefícios sócio culturais e económicos para a população autóctone. Desta forma, turismo cultural é um segmento do turismo que valoriza a cultura em toda a sua complexidade (ICOMOS, 1999).

Quando bem gerido, o turismo cultural, pode representar uma estratégia de desenvolvimento sustentável, visto requerer o planeamento económico à

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preservação da história e da cultura local, procurando transmitir o legado às gerações futuras. Porém, uma pressão excessiva associada a má gestão destes recursos culturais, pode pôr em risco a sua salvaguarda e até ao seu significado. Deste modo, torna-se imprescindível o envolvimento das comunidades locais nos programas de protecção, conservação, interpretação e a divulgação do património e da diversidade cultural, ou seja, desde a identificação até a gestão.

3. Metodologia

A proposta de reflexão sobre o desenvolvimento do turismo cultural, contempla alguns locais de interesse histórico-cultural do antigo Estado de Báruè. Este abarcava os actuais distritos de Báruè, Macossa, Guro e Tambara, tendo por limites, a Norte, o rio Luenha, a Sul pelo rio Púnguè, a Leste pelos Prazos de Massangano, Tambara e Gorongosa e a Oeste com a Rodésia do Sul (actual Zimbabwe). Báruè foi produto da desagregação do Estado de Mwenemutapa, reino bastante poderoso, conseguiu resistir à devastação Nguni e às disputas com os Estados Militares vizinhos, apesar de constantes e sucessivas crises de sucessão.

Na elaboração do presente artigo foram obedecidas três etapas, a saber:

A primeira que foi a revisão bibliográfica sobre o tema em análise. Este exercício permitiu a familiarização e o aprofundamento de matérias relacionadas ao património histórico-cultural e sua relação com o turismo e culminou com a elaboração de um guião de entrevista com questões sobre a história dos locais, sua importância, bem como os métodos locais de salvaguarda.

A segunda fase consistiu no trabalho de recolha de dados no campo. Para tal, foram administradas entrevistas semi-estruturadas50às lideranças e as comunidades locais com conhecimentos à respeito do fenómeno em análise. Salienta-se que nesta etapa, a observação foi usada para a recolha de dados nos locais.

Por último, os dados colectados foram analisados qualitativamente, tendo resultado, em parte, na elaboração deste artigo.

4. Determinantes do turismo cultural

Na perspectiva desta reflexão, a diversidade cultural constitui uma potencialidade para atracção turística. O património cultural tangível e intangível, em quase toda a Província de Manica, é um grande testemunho histórico e cultural que pode fazer

50Tipo de entrevista que apesar de haver preparação anterior das questões temáticas a abordar, a forma e a ordem como elas são introduzidas acontece de forma menos rígida, adaptando-se ao estilo e configuração que o entrevistado pretende imprimir no seu discurso. Ribeiro, J. S (2003). Métodos e Técnicas de Investigação em Antropologia.

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desta parcela do País, um grande destino para o turismo cultural (ARPAC, 2012). No entanto, o património cultural só pode ser considerado um produto para o turismo cultural, quando houver capacidade de atrair visitantes.

Por isso, a carta internacional sobre o turismo cultural ICOMOS (1999), recomenda que a protecção, conservação, interpretação e a divulgação da diversidade cultural de cada região devem constituir desafios para todos os povos e todas as nações.

O turismo cultural deve ter por objectivo a protecção e a valorização do património histórico-cultural de modo a trazer benefícios sócio-culturais e económicos. A geração de oportunidades de negócios, deve respeitar os valores simbólicos e significados dos bens materiais e imateriais do património cultural.

A protecção implica a manutenção da sua dinâmica e a permanência no tempo como a simbologia da memória colectiva para a sua transmissão de geração em geração. No âmbito legislativo, Moçambique apresenta avanços na componente protecção, mediante a Lei nº 10/88 de 22 de Dezembro, que determina a protecção legal dos bens materiais e imateriais do património cultural moçambicano

A divulgação, instrumento essencial da promoção, significa difundir o conhecimento sobre esses bens, facilitar o acesso e o usufruto, tanto da comunidade detentora como dos visitantes. Esta acção deve surgir em reconhecimento da importância da relação entre a cultura e o turismo com intuito de garantir um desenvolvimento harmonioso e em benefícios de ambos.

De modo a massificar a divulgação, na Resolução no12/97 de Junho o Governo estimula e apoia o conhecimento e apropriação das novas tecnologias, devendo estas coadunar com a realidade nacional e contribuir para a resolução dos problemas do país. Entre as tecnologias merecedoras de particular atenção, situam-se as tecnologias de informação e comunicação, incluindo a comunicação electrónica e a rede de comunicação mundial Internet que já contribuem para o acesso rápido a todo tipo de informação para aproximação entre as instituições do mundo e os homens da cultura, ciência, política e negócio para a tomada rápida de decisão.51

A operacionalização do referido anteriormente, aparece referenciado no Plano Estratégico de Desenvolvimento do Turismo PEDT (2015-2019), como prioridade imediata, ou seja: melhorar a produção e promoção das experiências do turismo cultural e de natureza, especificamente, a produção de website e material impresso de alta qualidade, distribuir conteúdos culturais interpretativos, criar rotas e itinerários, dentre outras.

Um aspecto não menos importante é garantir a interpretação do património de modo que os visitantes consigam compreender a história do local. Para tal, os guias devem ser capacitados para adquirirem habilidades ao atenderem os visitantes. Por um lado, a transmissão do saber sobre a cultura, pode ser feita ao nível local, pelos anciões. Por outro, pelas instituições de pesquisa como é o caso do ARPAC –

51Política Cultural de Moçambique e Estratégias da sua Implementação. Colectânea da Legislação Cultural de Moçambique. 1ª Edição. Maputo 2007.

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Instituto de Investigação Sócio-Cultural ou pelo Departamento do Património Cultural, por intermédio dos Comités de Gestão do Património Cultural.

4.1 Mecanismos de Preservação do Património Cultural

A consciencialização das comunidades sobre a importância do seu património cultural é fundamental para a sua salvaguarda. Por isso, um dos aspectos primordiais é o envolvimento delas. Este envolvimento passa pela integração da comunidade local em todo roteiro, desde a definição dos objectivos, a promoção até à gestão.

No caso dos locais estudados, a preservação e valorização passam pela elaboração de projectos técnicos visando a restauração do estado físico, das vias de acesso, a interpretação do património cultural e, finalmente, a sua gestão sustentável.

Algumas alternativas que passaremos a relatar podem ser usadas para impulsionar a preservação do património de modo a garantir o desenvolvimento sustentável do turismo cultural, a saber:

A operacionalização dos Comités de Gestão do Património Cultural que funcionem como intermediários entre a comunidade e o poder local, com legitimidade para fins de identificação dos bens materiais e imateriais do património para a sua protecção. De facto, incentivar medidas de colaboração, mediante organizações, associações ou representações da comunidade no processo de preservação, pode significar um passo na integração da sociedade aos objectivos da salvaguarda.

É necessária uma adequada sistematização do inventário do património cultural. Este poderá possibilitar o exame e a avaliação contextualizada das diversas tipologias dos bens culturais e, a partir de critérios de selectividade, tendo como pressuposto o significado cultural desses bens no tempo e no espaço, poder-se-á indicar os aspectos mais expressivos que devem ser preservados para o futuro. Desta forma, pode construir-se um suporte para qualquer política de preservação.

Uma medida importante que deve ser tomada pelos envolvidos na conservação e preservação é a de veicular informações sobre estes bens culturais, com intuito de popularizá-los. Os baixos custos de acesso associados a sua universalidade na Internet, pode facilitar a divulgação do património cultural local.

A longevidade do conhecimento sobre os bens culturais, passa pela criação de guias, com roteiros para os visitantes e a rentabilização do património por meio de cobrança de taxas aos visitantes, dentro de um quadro legal. Cada um destes locais deve possuir planos específicos de salvaguarda, desenvolvimento e gestão.

Por último, um aspecto importante que contribui para a preservação é o respeito das crenças locais em torno dos antepassados. Ao nível das comunidades, para que os valores socioculturais estejam intactos, elas servem-se de mitos e tabus, que funcionam como reguladores da vida e conduta social delas.

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5. Alguns locais Histórico-culturais Associados aos Makombe

Os locais históricos culturais associados aos Makombe, são bens culturais tangíveis, que representam um testemunho da evolução histórica e desempenham um papel importante na vida da comunidade local. Dentre vários, nesta reflexão destacaremos os seguintes: (1) Amuralhado de Magure; (2) Forte Massangano; e (3) Ruínas de Makombe (Fortim de Tambara).

5.1. Amuralhado de Magure

Estas ruínas ficam situadas a Sudoeste do Município de Catandica, Distrito de Báruè, concretamente em Munene no regulado de Seguma, ao longo da Serra Chôa, distando cerca de 12 Km da estrada nacional nº 7 que liga Chimoio a Tete.

Trata-se de um complexo de amuralhado construído por pedras, com uma forma oval e cerca de 785 metros de eixo maior dividido em 4 ruínas de duas pontas iguais.

Planta do Amuralhado de Magure52

Acredita-se que esta muralha serviu de protecção dos soldados de Makombe durante as guerras tribais e de resistência contra a ocupação colonial portuguesa. Esta teoria pode estar sustentada pela forma como ele se apresenta-se, mais reforçado do lado de fácil acesso, enquanto do outro lado existe um túnel que dá acesso ao rio Nhacangara, presumivelmente, para fuga em caso da invasão inimiga. Em ponto elevado e estratégico onde se proporciona maior ângulo de visão, encontra-se um pequeno amontoado de pedras, que se presume ter servido o local destinado às sentinelas.

52In: http://sertanejo-manica.blogspot.com/2012/03/magure-zimbabwe-site-distrito-de-barue.html

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Vista exterior do Amuralhado de Magure (Foto: ARPAC-Manica)

5.2. Forte Massangano 1891/1895

A Fortaleza de Massangano localiza-se no Distrito de Guro, Posto Administrativo de Mandie, na Localidade de Massangano.

A região de Massangano servia de caminho dos Nguni (grupo étnico pertencente ao tronco Bantu, oriundo da região setentrional de grandes lagos, que se dedicava à pastorícia e criação de gado bovino, e por isso, andavam em busca de boas pastagens), na sua passagem para a zona norte do rio Zambeze. Nestas caminhadas, eles saqueavam os bens das populações.

Os portugueses ocuparam completamente a região de Massangano, construíram a sua fortaleza e iniciaram o processo de recrutamento de homens e mulheres para a construção de estrada que ligava a Província de Tete à Manica.

Nessa altura, o Makombe residia em Nhatunze, uma região do actual Distrito de Báruè. Foi nesta região onde reuniu os seus homens e decidiu lutar contra os portugueses.

Com o eclodir da revolta de Báruè em 1917, o Makombe Nongwe-Nongwe conseguiu libertar a parte ocupada pelos portugueses, particularmente Massangano onde havia a fortaleza e nela se instalou.

Fortaleza de Massangano - Vista exterior (esquerda) e interior (direita) (Foto: ARPAC-Manica)

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5.3. Ruinas de Makombe (Fortim de Tambara)

Estas ruínas estão localizadas no distrito de Tambara na Localidade de Nhacolo-Sede, círculo de Mitondo.

De acordo com fontes orais, foram os Makombe que construíram a primeira edificação, constituída por pedras sobrepostas, sem o uso de cimento. Posteriormente, os portugueses tomaram-na, reforçaram e edificaram instalações no interior do forte.

Em 1917, aquando da revolta deBáruè, os Makombe saquearam e expulsaram os portugueses. Assim, o Makombe Nongwe-Nongwe tomou conta da muralha. No entanto, depois de os portugueses ganharem uma nova dinâmica de contra ataque, o Makombe foi obrigado a abandonar a respectiva muralha, tendo-se refugiado na Rodésia do Sul, actual Zimbabwe.

Vista exterior do Fortim Tambara (Foto: ARPAC-Manica)

6. Problemas que Afectam o Património Cultural

As expressões da cultura devem facilitar a compreensão do significado do património, quer pelas comunidades detentoras, bem como pelos visitantes (ICOMOS, 1999). No entanto, o desejo de manter as estruturas arquitectónicas surge pela necessidade de manter os laços de continuidade com o passado.

Considerações colhidas mediante a pesquisa de campo e contribuições informais de estudiosos na matéria, que passamos a fazer, destina-se a subsidiar as discussões sobre os factores que afectam a preservação do património cultural e como consequência, o desenvolvimento do turismo cultural:

Gestão

Os Governos distritais, por via dos órgãos consultivos que são responsáveis locais pelo património histórico-cultural, não implementam, nem incentivam acções que promovam a protecção, conservação e valorização dos bens culturais situados no seu território. Contactos informais feitos nos locais do estudo transpareceram que estas

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actividades, ainda são dependentes de intervenção de níveis superior (Provincial e Nacional).

Educação

O primeiro factor diz respeito ao nível de consciencialização das comunidades sobre o património cultural. A ausência de uma educação conservacionista adequada no sistema de educação dá margem a persistência de factores psicológicos negativos, ou seja, não entender que o património cultural deve ser preservado e que o turismo cultural para além de promover o desenvolvimento das comunidades locais, é instrumento de valorização, preservação e veículo para o desenvolvimento sustentável. As comunidades locais, desconhecem as suas referências histórico culturais e a importância da identificação e valorização do seu património cultural. É preciso buscar um “casamento” saudável entre a comunidade, os bens culturais e o turismo.

Os órgãos de comunicação (Rádio e Televisão), com enfoque aos públicos, pouco incluem na sua grelha de programação, informações sobre o património histórico-cultural e a importância da sua preservação. Massificar este tipo de informação contribuiria para educar os cidadãos sobre a importância do património cultural e, consequentemente, da sua preservação.

Investimento

Constata-se a falta de linhas de financiamento que promovam a criação de associações ou organizações com finalidade de restauração e preservação do património histórico-cultural para o desenvolvimento do turismo cultural e como consequência verifica-se a fraca participação das comunidades na conservação do mesmo.

Estrutura física

O estado físico do património cultural constitui um dos atractivos para desenvolvimento do turismo cultural.

Em Magure, observa-se o elevado estado de desmoronamento das rochas que constituem o amuralhado. Por um lado, devido a questões naturais (chuva, vento, etc.), por outro, pela retirada de pedras pela população local, durante a procura de pequenos animais que refugiam-se nesta estrutura.

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Partes da Estrutura física do amuralhado de Magure (Foto: ARPAC– Delegação de Manica)

Em Massangano é visível o estado avançado de degradação das principais componentes que dão vida a muralha. Associado ao facto, estão as causas naturais, a falta de manutenção e a retirada de pedras da estrutura para fins de construção.

Pontos de destruição da Fortaleza de Massangano (Fonte: ARPAC)

Na fortaleza Makombe, é visível o nível elevado de degradação, uma vez que parte das estruturas arquitectónicas encontram-se completamente destruídas e as pedras que compunham a muralha vão desaparecendo na medida em que o tempo vai passando. Este facto fará com que, em caso de restauração, a integridade e a originalidade estejam comprometidas.

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Desmoronamento do Fortim Tambara (Foto: ARPAC)

Os factores mencionados anteriormente sugerem, às estruturas responsáveis pela cultura, um levantamento técnico do estado da estrutura arquitectónica e paisagística, com vista ao restauro, sem no entanto, ferir a originalidade do património.

Vias de Acesso

As vias de acesso jogam um papel preponderante para impulsionar o desenvolvimento do turismo. Porém, verificou-se que o estado das vias que dão acesso a grande parte dos locais apresenta níveis acentuados de degradação, facto que compromete a sua transitabilidade, elevando o tempo médio de viagem para as visitas.

Via de acesso ao Amuralhado Magure (Foto: ARPAC)

Vegetação

As raízes podem danificar a estrutura física do património cultural material. O crescimento descontrolado da vegetação e o aparente estado de abandono apresentam-se como mais um dos notáveis problemas. Estas variadas espécies de plantas não só cobrem o local, bloqueando o acesso ao interior doe edifícios, como também reduzem a beleza estética do próprio amuralhado.

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Além disso, este crescimento da vegetação pode igualmente causar distúrbios nas paredes dos edifícios contribuindo para um eventual colapso parcial ou total da estrutura. Este factor é dominante em grande parte de locais abrangido pelo estudo. Em Magure, por exemplo, o desenvolvimento vegetativo desordenado, constitui problema.

Figura 1:

Desenvolvimento vejetativo em Magure (Foto: ARPAC)

O outro aspecto associado a vegetação é o facto de condicionar a permanência de animais como um local preferencial de pasto, contribuindo para a degradação da estrutura física dos locais. O material orgânico decorrente da vegetação, quando seco, torna-se principal combustível para queimadas descontroladas.

7. Mecanismos de Gestão Sustentável

O objectivo fundamental da gestão do património cultural consiste em dar a conhecer, às comunidades locais e aos visitantes, o seu significado e justificar a necessidade da sua preservação.

A gestão sustentável do património cultural, deve promover a sua salvaguarda e como consequência a elevação da auto-estima da população autóctone. Por isso, torna-se indispensável o envolvimento da comunidade local em todo o circuito de gestão.

A gestão do património cultural deve ser um processo cíclico e deve compreender as actividades de inventariação, avaliação, interpretação, intervenção e monitoria (Box, 1999). O objectivo desta gestão deve assentar-se na protecção da integridade, da autenticidade e originalidade para as gerações futuras assim como a promoção do uso sustentável destes recursos.

Há necessidade de elaborar planos sustentáveis de protecção e conservação, baseadas na autenticidade e significado do local. Nestes planos locais, deverão estar definidos o grau de protecção e o nível de intervenção que os bens requerem.

A gestão deve promover o respeito pelos valores patrimoniais, pelos interesses das comunidades locais e pelos proprietários dos conjuntos históricos (ICOMOS,1999).

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Em momento de globalização crescente, a gestão do património cultural torna-se fundamental, visto que permitirá dar a conhecer às comunidades bem como os visitantes, o significado do património cultural, o respeito do carácter sagrado e a necessidade da sua preservação. A gestão do património cultural para o desenvolvimento do turismo deve estar virada para produzir benefícios económicos e sociais para a comunidade detentora e satisfação dos visitantes.

É necessário que se realize um trabalho coordenado entre os órgãos locais do Governo, a comunidade e operadores do ramo de turismo para criarem e implementarem projectos de investimentos no segmento do turismo cultural.

8. Considerações Finais

Uma grande preocupação que compromete a salvaguarda do património e consequente o turismo cultural, constatado na pesquisa, foi o fraco conhecimento da comunidade local sobre as suas referências histórico-culturais. Deste modo torna-se urgente realizar acções de sensibilização da comunidade para a valorização e compreensão da sua riqueza cultural, mediante a participação da comunidade na inventariação do seu património cultural para a transmissão às futuras gerações, bem como à satisfação dos turistas.

O actual estado físico da estrutura dos locais abrangidos pelo estudo, revelam um acentuado estado de degradação facto que demonstra, a falta de cometimento das autoridades governamentais, lideranças tradicionais e da população, pela preservação, conservação do seu património cultural.

Constatou-se a inexistência Comités de Gestão do Património Cultural, bem como de mecanismos de educação e capacitação da comunidade sobre a importância do património cultural como fonte de atracção turística, com vista a impulsionar o desenvolvimento social e económico das comunidades.

Referências Bibliográficas

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ICOMOS. (1999). Carta Internacional Sobre o Turismo Cultural. México.

JOPELA, A. (2010). Traditional custodianship of Rock Site in Southern Africa: a Case of study from central Mozambique. Dissertation submitted to the Faculty Humanities, University of Witwardterand Johannesburg, in fitment of requirements for award of the degree of Master of Arts (Rock Art Studies).

MENESES, J. (2010).Turismo cultural como um factor de desenvolvimento na Cidade de Ilheus. Brasil.

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SCHNEIDER, C. (2006).Turismo Cultural: uma proposta de preservação do património material. V seminário em pesquisa de turismo MERCOSUL. Caxias Sul.

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A Revolta do Barué e o distrito de Tete: entre a insurreição

generalizada e aversão Ngoni

Zaino José Valegy53

[email protected]

Resumo

O processo de conquista e domínio colonial português no centro de Moçambique foi marcado por uma oposição forte por parte dos nativos. O Báruè tornou-se no símbolo mais expressivo desta oposição. Fruto da desagregação do Império de Mwenemutapa, o seu poderio Bélico teria sido influenciado pela posse de armas de fogo obtidas do comércio com mercadores indianos e europeus. A excelente capacidade que os seus líderes tiverem na mobilização e no estabelecimento de alianças com outros grupos étnicos hostis a presença portuguesa, culminou com uma insurreição generalizada, iniciada em Março de 1917. Esta insurreição ultrapassou as suas fronteiras e estendeu-se até a região norte de Tete. No entanto, a rebelião não conseguiu atrair simpatia dos Ngonis que viram-se obrigados a fornecerem mercenários aos portugueses apenas para se verem vencidos um pouco depois.

Palavras-chave: Revolta; Báruè e Ngonis.

Introdução

Entre finais do Século XIX e princípios do Século XX começaram as guerras de conquista perpetuadas pelos portugueses tendo em vista a implantação do seu domínio em todo território moçambicano. Ao nível da região centro de Moçambique, estas campanhas foram encabeçadas pelas Companhias Majestáticas54que, usando métodos coercivos, tentavam a todo custo subjugar as populações locais.

No entanto, longe de resignarem-se, os nativos empreenderam diversas incursões contra os invasores, tentando defenderem a sua soberania. Foi neste contexto de luta e defesa da soberania que o Estado de Báruè se destacou, não só pelo seu poderio militar mas também, pelo, estabelecimento de alianças com outros Estados e tribos, culminando deste modo com um levantamento generalizado em Março de 1917. Este levantamento contribuiu, sem dúvidas, para o atraso da implantação da autoridade portuguesa na região.

53 Investigador do ARPAC-Instituto de Investigação Sócio-Cultural, Delegação de Tete. 54As Companhias Majestáticas foram companhias privadas às quais os governos coloniais concederam grandes porções de território para serem administradas e exploradas em seu nome. Estas companhias eram tão livres que funcionavam como se fossem autênticos Estados dentro de outro Estado.

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Contudo, apesar destes feitos, os portugueses acabaram levando a melhor, uma vez que para além da sua visível superioridade bélica, também contaram com ajuda dos Ngoni.

Alicerçado nas comemorações do centenário da Revolta do Báruè, o presente artigo pretende sobretudo, através de uma revisão bibliográfica, trazer à tona o legado das personalidades que se destacaram como símbolo de resistência à dominação portuguesa na região, como também apresentar alguns dados que justificam a aversão dos Ngoni neste processo.

2. A origem do Estado e a defesa da Soberania

Sobre o Báruè, aventa-se que o mesmo tenha surgido à partir do Estado dos Mwenemutapa, por volta do Século XVI, mas a documentação a respeito dos seus governantes tende a abordar com frequência o XIX. De acordo com os ensaios de Rita-Ferreira (1982), Makombe55 nasceu a partir do casamento entre Chimupore e Mureche (Muneohe), filha de um dos Mweneputapa e foi este Makombe que submeteu os Tongas do Zambeze, povoando as terras baixas até ao Púnguè. No entanto, Artur explora os aspectos ligados a origem do Báruè, apresentando três pontos de vista diferentes:

Que o Báruè fora oferecido à Muneche - filha do Mutapa Matope Nebedza por ocasião do casamento desta ultima com o filho do Governante Teve; ou que precocemente já independente, tenha sido (ulteriormente) conquistado por Mutapa Matope; ou ainda que Muneche e seu marido Chimupore conquistaram o Báruè e Makombe, filho destes, fundou depois uma dinastia Makombe no Báruè (Artur,1996: 16).

Embora esta seja descrita por diferentes pontos de vista, pode-se constatar um aspecto em comum. Por exemplo, nota-se aqui que a história da fundação do Estado do Báruè está intimamente ligada à desagregação do Estado de Mutapa pelo facto das dinastias dominantes provirem deste lendário império. Alias, conforme atesta Serra (2000), o Báruè foi um dos estados Vassalos que circundava a cintura do Mwenemutapa e, tal como outros estados, tinha a tendência de rebelar-se quando o poder da dinastia Mwenemutapa enfraquecia.

No entanto, não é de todo consensual que tenha sido o próprio Makombe a fundar o Estado. Partindo da escassez de informação descritiva sobre o possível reinado de Chimupore, obtém-se a figura de Makombe, como o pioneiro na defesa da soberania face as pretensões portuguesas no vasto território do complexo do baixo Zambeze.

Importa frisar que, há poucos registos sobre o desenrolar dos conflitos que o primeiro Makombe travou contra os exploradores portugueses. Nos apontamentos de Artur (op.cit.) se descreve que o mesmo odiava os portugueses, sobretudo por causa de questões ligadas a ameaça da sua soberania e, destaca-se a batalha de Chideu, pese embora sem dados cronológicos. Diz-se que nesta Batalha que ocorreu junto ao rio Púnguè, Makombe teria aniquilado o comandante português

55Daí o seu nome ter sido transformado no próprio título dos reis do Báruè.

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denominado Magalhães, graças as armas de fogo adquiridas juntos dos comerciantes estrangeiros.

Portanto, a ilação que se pode tirar do exposto acima, é de que o processo de conquista e domínio colonial português no actual território moçambicano foi marcado por uma oposição forte por parte dos nativos, tal como ocorreu noutros cantos do continente. Alias, conforme atesta Boahen (2010) mediante a erupção do colonialismo, a esmagadora maioria das autoridades e dirigentes africanos mostraram-se decididos a manterem a sua soberania e independência. Em resumo, acrescenta Ranger (2010) praticamente todos os tipos de sociedades africanas resistiram, e a resistência

manifestou‑se em quase todas as regiões de penetração europeia. Em alguns casos, este processo foi desencadeado por meio de submissões temporárias e alianças entre os principais líderes africanos. No caso do Báruè, a primeira submissão temporária parece ter ocorrido após a morte

do Makombe e teria sido levada a cabo no reinado de Chipatata, que, numa disputa

de poder com o seu irmão Chibudo, ascendeu ao trono entre 1830-1846. No entanto,

em 1870, Chipatata foi obrigado a resignar o poder a favor do seu genro Manuel

António de Sousa, mais conhecido por Gouveia56, conforme se descreve:

Entre 1870 e 1892, esteve, porém, sob o controlo de Gouveia que, através de

casamento com Adriana, filha mais velha de Chipatata, Makombe reinante nessa

altura em Báruè, usurpou o poder, exigindo a submissão de Chipatata. Para garantir

o controlo de Báruè, Gouveia, mandou construir um vasto complexo militar de cerca

de nove aringas e outras pequenas fortificações, instalando aí uma importante força

Chicunda (...) apesar das medidas, a oposição contra Gouveia manteve-se (Serra, 200:

311).

A resignação do poder por parte de Chipatata e, consequente submissão a um invasor estrangeiro, não pode, por si só, ser justificada pelo estabelecimento de laços de parentesco, mas também pelo facto do líder africano concluir que a sua luta heroica seria em vão, sobretudo, por causa das constantes disputas internas por um lado e, por outro, pela superioridade logística-militar dos invasores. Entretanto, Gouveia teria sido aprisionado57 pelos Rodesianos da Southern British em 1890 e esta situação motivou aos nativos a desencadearem diversas revoltas. Entre 1890-1892 ocorrem diversos conflitos entre os autóctones e os portugueses nas regiões adjacentes ao Báruè. A título de exemplo, a 19 de Novembro de 1891 teve lugar a Batalha de Mafundaque, segundo Pelissier (1994) constituiu uma grande vitória de Massangano contra João Azevedo Coutinho, como também atrasou por

56O termo Gouveia deriva de uma corruptela do termo Góvêa que no puro ci-sena, significa homem guerreiro, destemido, invencível. Aventa-se que a Sede do Báruè teria tido o nome Vila Gouveia em memória de Manuel António Sousa (Gouveia) que era dono do prazo da Gorongosa e Capitão-mor de Manica, Quiteve e Báruè. 57Motivado pelo conflito luso-britânico, por causa das jazidas minerais em Manica, que ocorrera a 15 de Novembro de 1890 quando os militares da British South African Company pegaram em Paiva de Andrade e Manuel de Sousa (prenderam-nos e enviaram os dois para Salisbúria e depois para a Cidade de Cabo).

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dez anos a conquista do Báruè. Mais adiante, concretamente a 20 de Janeiro de 1892 teve lugar a Batalha de Nyachirondo/Mungari em que mais uma vez, o exército português sofre uma pesada derrota a avaliar pela morte Manuel António de Sousa.58 O sucesso dos nativos nestas campanhas de resistência resulta não só pelo poderio bélico do exército baruísta59 como também, pelas alianças que estabeleceram com intuito de restaurarem a independência. Aventa-se que a primeira aliança no reino de Báruè, no âmbito da luta contra a presença portuguesa, parece ter sido levada a cabo por Canga60, conforme atestam os depoimentos de Pelissier:

Temos que levar a crédito do Báruè, embora dividido, o facto de ter tentado tal como Massangano de Bonga uns trinta anos antes, reunir em seu redor aliados africanos por não poder jogar a carta das rivalidades entre as potências europeias. O Báruè (…) transformou-se, depois de 1892, no símbolo da resistência anti-portuguesa na Zambézia Meridional (…) É claro que Canga tentou ser a alma de uma coligação inter-étnica e superior ao Estado. Os seus esforços viraram-se principalmente para os regulados tongas, outrora submetidos a massangano (…) e para os capitães rebeldes como Cambuemba e Luís Santiago da Gorongosa. Quanto aos primeiros, chegou a estacionar os homens de Báruè nas suas terras a fim de protegê-las dos portugueses (…) e confiou mesmo a Cambuemba o comando supremo das suas tropas (Pelissier, 1994: 140).

Deste modo, pode-se concluir que não é por acaso que o Báruè tornou-se o símbolo mais expressivo da resistência anti-colonial ao nível do centro de Moçambique. Isto deveu-se a forte capacidade que os seus líderes tiverem na mobilização e no estabelecimento de alianças com outros grupos étnicos hostis a presença portuguesa bem como, as sucessivas revoltas que à partir daí foram ocorrendo. Neste caso, Canga parece ter-se destacado, uma vez que a sua influência foi também aceite por vários regulados tauaras e tongas que dependiam nominalmente do Mwenemutapa Chioco, o qual teria aceitado, em 1901, reconhecer-lhe a soberania (Ibidem). Portanto, mais do que uma insurreição localista, a luta do Barué ultrapassou fronteiras, tendo-se estendido até a região norte de Tete. No entanto, após sucessivas lutas, nos finais de 1902, Báruè acabaria por ser subjugado pelos portugueses que para além de instalarem as suas bases militares, implantaram a sua administração. 3. A participação das tribos de Tete na Grande Revolta do Báruè e a Aversão Ngoni Tal como o Makombe Canga que morrera exilado em 1910, o seu sucessor Nongwe-Nongwe também destacou-se como impulsionador de um levantamento contra as

58 Aventa-se que Sousa teria sido ferido em combate e, uma vez fraco, um rapaz teria aproveitado a ocasião para assassiná-lo. Não se sabe exactamente o local que teria sido morto. 59Em troca de ouro e marfim, Báruè tinha adquirido armas com comerciantes portugueses e indianos e tinha um exército de cerca de 10 mil homens. 60 Filho de Makombe Chipapata também conhecido por Hanga, teria ocupado o trono entre 1890-1893.

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pretensões portuguesas em Moçambique. Tudo começa com a entrada formal de Portugal na primeira guerra mundial ao lado dos aliados, o que obrigara a reforçar a segurança dos seus territórios no norte de Moçambique:

As operações militares no norte, onde existiam poucas estradas e nenhuns caminhos-de-ferro ou rios navegáveis significariam (…) a necessidade de um número elevado de carregadores. Nos prazos em toda Zambézia e no Sul de Save, milhares de homens eram alistados a força pela polícia armada (…) Em 1916, os portugueses começaram a recrutar no Báruè. Os homens eram levados para o exército ou o serviço de carregadores e as mulheres para o chibalo nos projectos de construção de estradas sob supervisão da polícia armada (Newitt, 2012: 366).

De acordo com Serra (2000) para além do trabalho forçado, estava a crescente cobrança coerciva de impostos cujas tentativas de protestos foram brutalmente reprimidas pelas autoridades portuguesas. Por outro lado, há relatos de pilhagens e de violações sistemáticas de mulheres e crianças. Vários autores sustentam que estes acontecimentos precipitaram o descontentamento generalizado da população, tendo o Makombe Nongwe-Nongwe e seu primo Macossa aproveitado a situação para vingar-se da acção dos portugueses contra os seus predecessores. Para efeito, procuraram unir todas facções anti-portuguesas que, ao invés de se concentrar contra um inimigo comum, rivalizavam entre elas (Artur, 1996: 62). Consequentemente, em Março de 1917 eclodiu a grande Revolta e as fontes indicam que o exército baruísta conseguiu reunir na sua força conjunta, cerca de 15 mil homens, organizados em três frentes:

(1) Macossa com o seu chefe militar Ngaru, comandando uma força conjunta de exércitos Báruè, Sena, Tonga e Gorongosa, na frente sudeste, com a missão de capturar Sena e destruir as propriedades da Companhia de Moçambique; (2) Nongué-Nongué e o seu conselheiro Militar Kuedzani, com um exército conjunto Báruè Tauara, deviam libertar a região de Mungari-Tete; (3) finalmente, no noroeste forças Tauaras, Ntsengas e grupos de A-Chicundas deviam erradicar a presença portuguesa de Zumbo e dos postos administrativos de Cachomba e Chicoa (Serra, 2000: 315).

Relatos de Artur (op. cit.) dão conta que os revoltosos conseguiram com sucesso repelir os portugueses em quase todas frentes. Na segunda frente, o exército de Báruè Tauara tomaram de assalto, a 28 de Março, o posto de Mungari, tendo culminado com a fuga do respectivo chefe e de outros portugueses estacionados em Tambara e Catandica. Na terceira frente, os Nsengas comandados por Mpangula, dominaram Zumbo a 7 de Abril do mesmo ano. Como se pode depreender, a rebelião atraiu quase toda população do vale do Zambeze (Tawaras, Nsengas, Cheuas) e aventa-se que a mesma tenha ganhado força mediante a crença de que o recurso aos amuletos possibilitava a transformação das balas dos portugueses em água.61 O outro facto não menos importante é de que, na

61 Esta tese de busca ao oculto para a defesa é-nos mostrada por Isaacman, citado por Serra (1983:80): O mundo da magia entrou igualmente em 1917 no arsenal activador do levante do Báruè: grande

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procura de aliados militares todos meios foram empregues, incluindo históricas redes de parentesco, partindo muitas vezes de matrimónios como foi o caso entre baruístas e os Tawaras (Idem:63). No entanto, apesar de generalizada, a rebelião não conseguiu atrair simpatia dos Ngonis e, aventa-se que mais de 30.000 soldados Angonis tenham sido utilizados como mercenários pelos portugueses. De acordo com Serra (2000) este facto teria concorrido para o fracasso da revolta que só foi controlada a 20 de Novembro de 1920. O que teria levado os Ngonis a optarem por defenderem os interesses dos portugueses? Para responder esta questão, talvez devêssemos analisar os depoimentos de Moskopp, missionário Jesuíta que Newiit teve a iniciativa de expor:

25 de Setembro de 1917. De manhã, imensa gente corria pelas areias de Lwangwa. Fogem de auxiliares Angonis. Próximo de Madzombwe vejo fumo das aldeias em chamas (…) Alguns homens e mulheres e crianças mal tinham chegado ao Lwangwa quando os Angonis irromperam dos canaviais. Muitos Angonis corriam ao longo da margem vestindo peles, com penas no cabelo e estavam armados com lanças e enormes escudos. Os que eram apanhados, se homens eram mortos, se mulheres eram levadas para cativeiro (…) Madzombwe rendeu-se aos portugueses em Zumbo. Graças a fome. Os depósitos de alimentos foram incendiados e não existiam mantimentos do nosso lado (…) (Pe. Moskopp, apud. Newitt, 2012: 367).

Alguns documentos dão conta que a motivação dos Angonis em defenderem os interesses dos portugueses, talvez estivesse ligado ao facto destes últimos abrirem espaço para que os mercenários ficassem com todos bens dos insurgentes, inclusive as suas esposas.62 Ao generalizar os factores que estiveram por detrás da aliança entre os nativos e os invasores, Isaacman & Vansina sustentam que:

Os anais do combate pela preservação da independência e da soberania africanas estão repletos de exemplos de africanos que, não contentes por se terem submetido, ainda ajudaram as potências coloniais, a fim de se vingar de abusos cometidos outrora por vizinhos. Os Tonga, de Inhambane, bem como os Sena, ajudaram os portugueses a combater os Shangana e os Báruè, seus suseranos respectivamente (…).

Além disso, muitos chefes africanos tinham a impressão de que, aliando‑se aos europeus, poderiam satisfazer suas aspirações expansionistas, para reforço da sua posição interna (…). Outras sociedades africanas, algumas das quais se tinham

oposto ao invasor desde a primeira hora, juntaram‑se mais tarde a ele, em troca de benefícios materiais e de promessas de melhoria de sua situação no quadro da nova ordem colonial. Os Yao, uma vez vencidos, ajudaram a abater os Nguni Mpeseni, que, por sua vez, ajudaram os portugueses, em seguida, a derrotar os Báruè (Isaacman &Vansina, 2010: 202).

No entanto, o caso da aliança Luso-Nguni, não parece estar ligada a vingança dos últimos contra os restantes grupos étnicos, uma vez que nenhum destes, alguma vez submetera o seu domínio sobre eles. Ademais, foram os Ngonis que sempre tentaram submeter o seu domínio sobre os restantes grupos. Assim, a ideia dos líderes aliarem-se aos invasores na perspectiva de reforçar a sua posição interna, obterem consumo de feitiços de guerra fizeram os que lutaram contra os Portugueses, acreditando que, com o seu uso, poderiam transformar em água as balas disparadas pelas espingardas do inimigo. 62 Fala-se também em salários mensais pagos a esses mercenários Ngoni.

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benefícios materiais e promessas da melhoria da sua situação no quadro da nova ordem colonial, parece ser de todo consensual entre os historiadores. Aliás Uzoigwe (2010) acrescenta que esta conduta, em muitos países africanos foi assinalada não só pela falta de solidariedade, de unidade e de cooperação, mas também pelo facto de alguns líderes aliarem-se aos invasores europeus apenas para se verem vencidos um pouco depois.63 No caso dos Ngonis há que ter em conta que em finais do Século XIX existiam dois estados que englobavam parte do território moçambicano: O Estado dos Ngoni de Ngwana Maseko e seus descendentes, instalados definitivamente em Angónia desde cerca de 1860, englobava partes de Moçambique e Malawi e, o estado de Mpezeni que se fixou por volta de 1870, numa região entre Zâmbia e Moçambique. Entre 1899- 1900, no âmbito do traçado de fronteiras, estes estados acabariam por serem fragilizados pelos Britânicos que tinham pretensões na Rodésia de Norte e Niassalândia. Aproveitando-se desta fragilidade, os portugueses começaram a implementar a política de eliminar os principais régulos64 Ngonis que tinham os seus domínios deste lado da fronteira. Assim, uma vez desmoralizados, os Angonis acabaram mesmo por optar em não revoltarem-se contra os invasores, pelo facto de não possuírem meios necessários para fazer frente ao domínio colonial nos dois lados das fronteiras. Para eles, restava apenas uma aliança com um inimigo que sabiam de antemão que não poderiam vencer. Esta atitude parece estar ligada por um lado a ideia de obterem benefícios materiais e por outro as promessas da melhoria da sua situação no quadro da nova ordem colonial. 4. Considerações Finais O Báruè foi sem dúvidas o símbolo mais expressivo na luta contra a presença portuguesa na região centro de Moçambique e este feito foi conseguido graças a bravura do Makombe. Contudo, deve-se sublinhar que a figura de Makombe não pode ser encarada como um único indivíduo apenas. Na verdade, existiram vários Makombe, mas o fundador da dinastia se destaca por ser o pioneiro a enfrentar os portugueses. Ao longo deste processo, também há que destacar as figuras de Makombe Kanga/Hanga e de Nongwe-Nongwe que pela excelente capacidade na mobilização e no estabelecimento de alianças com outros grupos étnicos hostis a presença portuguesa desencadearam diversas batalhas. As suas hostilidades manifestadas em diversas batalhas, deram lugar à histórica revolta iniciada em Março de 1917 e se expandiu até o norte do rio Zambeze, na região de Tete.

63Neste sentido, a aliança adiava a perca imediata de autoridade destes líderes prolongando-se até a implantação efectiva do sistema colonial português, momento em que a sua subjugação seria inevitável. 64Ngomani I fora fuzilados pelos Britânicos em Niassalândia; O régulo Mandala e seus subalternos Pemba, Mukawira, Kabango, Junga, Zissane de Angónia tiveram o mesmo destino.

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No entanto, deve-se reconhecer que neste processo de lutas, nem todas tribos se tornaram hostis a presença portuguesa. Os Ngonis, que após pesadas derrotas sofridas nos territórios Britânicos da Rodésia do Norte e Niassalândia, viram-se sem forças para enfrentarem os portugueses no território moçambicano. Para eles, restava apenas uma aliança com um inimigo que sabiam de antemão que não poderiam vencer e por via disso optaram em tomar vantagens da situação, comas promessas da melhoria da sua situação no quadro da nova ordem colonial. Referências Bibliográficas: ARTUR, D. R. (1996). MAKOMBE- Subsídios à reconstituição da sua personalidade. Colecção Embondeiro 7. Maputo: ARPAC. BOAHEN, A. (2010). África Diante do Desafio Colonial. In: História Geral da África, VII: África sob dominação colonial, 1880-1935 / editado por Albert Adu Boahen. 2.Ed. Brasília: UNESCO. ISAACMAN A. & VANSINA J. (2010). Iniciativas e Resistência africanas na Africa Central, 1880‑1914. In: História Geral da África, VII: África sob dominação colonial, 1880-1935 / editado por Albert Adu Boahen. 2.Ed. Brasília: UNESCO. NEWITT, M. (2012). História de Moçambique. Portugal: Publicações Europa-América.

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Análise das Lógicas Sociais nos Projetos de Desenvolvimento em Turismo em Moçambique: o caso da Localidade de Gala no Distrito de

Matutuíne, Província de Maputo

Luís Isidro Rogério Bembele65 [email protected]

Resumo

O presente artigo examina os projetos de desenvolvimento do turismo implementados em Gala, distrito de Matutuíne, província de Maputo, sob o ponto de vista de uma arena de desenvolvimento, onde várias lógicas e estratégias entram em confronto. O pressuposto básico é de que independentemente do tipo de organização ou do modo de intervenção, uma ação de desenvolvimento inevitavelmente dá origem à interação entre dois atores sociais pertencentes a mundos diferentes (as agências de desenvolvimento e os que precisam ser desenvolvidos) cujos padrões de conhecimento são regulados por uma variedade de lógicas. A incursão analítica desta pesquisa mostra que durante o período em que vigoraram os projetos de desenvolvimento (PDs) em Gala, permitiram uma série de transformações em nível político, econômico e social, resultantes das iniciativas da Organização Não Governamental (ONG) HELVETAS e do Estado. Nesse sentido, a pesquisa mostra que os atores e grupos estratégicos estão em constantes negociações, disputas e confrontações. Por outro lado, embora os atores fossem heterogêneos e com interesses diferenciados, no seio da comunidade de Gala, todos têm poder de interferir no seu contexto mesmo que seja de uma forma desigual. Evidenciou-se que os atores e grupos estratégicos não só tem diferentes interesses e recursos, mas também agiam de acordo com diferentes modos de ação e pontos de vista culturais do mundo.

Palavras chaves: Desenvolvimento, Grupos Estratégicos, Lógicas Sociais e Arena.

Introdução

O presente artigo tem por objetivo analisar as lógicas sociais nos projetos de desenvolvimento do turismo implementados em Gala, distrito de Matutuíne, província de Maputo. O pressuposto básico é o de que independentemente do tipo de organização ou do modo de intervenção, uma ação de desenvolvimento inevitavelmente dá origem à interação entre dois atores sociais pertencentes a mundos diferentes (as agências de desenvolvimento e os que precisam ser desenvolvidos) cujos padrões de conhecimento são regulados por uma variedade de lógicas. Neste sentido, a localidade de Gala pode ser vista como uma arena de desenvolvimento local, e a relação entre os principais atores – Estado, comunidade local e a ONG HELVETAS Moçambique, de origem suíça – nas iniciativas de desenvolvimento, permitem entender melhor a dinâmica do processo. Pretende-se

65 Investigador do ARPAC-Instituto de Investigação Sócio-Cultural. Mestre em Sociologia e Antropologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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discutir as estratégias dos agentes de desenvolvimento (o Estado e ONGs - HELVETAS) e a “comunidade” de Gala. Especificamente pretende:

1. Discutir o contexto de interação dos projetos de desenvolvimento do turismo em Gala;

2. Analisar a coerência dos projetos de desenvolvimento local do turismo em Gala;

3. Descrever a reação da população alvo aos projetos de desenvolvimento local do turismo em Gala.

Em termos metodológicos o presente artigo foi desenvolvido a partir do entrelaçamento de pesquisa bibliográfica, documental e pesquisa de campo. A pesquisa bibliográfica caracterizou-se pelo levantamento e análise dos estudos sobre obras clássicas e contemporâneas sobre a temática do desenvolvimento de uma forma geral e de Moçambique em particular de modo a embasar teórico e conceitualmente as questões em debate.

Após a revisão bibliográfica, seguiu-se para o trabalho de campo. Esta etapa da pesquisa foi caracterizada pelo levantamento de dados com recurso à entrevista, à observação do cotidiano da gestão do turismo e ao reconhecimento dos atores sociais envolvidos das reuniões dos conselhos consultivos comunitários em Gala. O tipo de observação utilizada foi a de observação não participante que, segundo Michel (2009: 51) consiste no contato do observador com a comunidade, grupo ou realidade, sem integrar-se a ela. Nas entrevistas foi adotada a abordagem de entrevistas de trajetória que consistiu no relato dos atores sobre o seu envolvimento nos PDs. As entrevistas obedeceram a dois momentos. O primeiro consistiu na realização de uma pesquisa exploratória, com objetivo identificar problemas relacionados com a maneira de conduzir a entrevista, a compreensão por parte dos entrevistados, tempo de aplicação e a funcionalidade do roteiro bem como a identificação de outros atores que poderiam fazer parte dos informantes para pesquisa. A análise e interpretação dos dados recorreu-se a análise de conteúdo.

2. Enquadramento Teórico e Conceptual As iniciativas de desenvolvimento constituem sempre uma arena onde várias lógicas e estratégias entram em confronto (De Sardan, 2005: 137). À parte do projeto clássico e dos seus métodos, existem diferentes maneiras de se organizar e promover o desenvolvimento. Neste sentido, De Sardan assevera que:

O “jogo” que os técnicos dos serviços públicos geralmente jogam, a circulação dos assessores agrícolas ou agentes comerciais, formadores rurais, atividades de extensão rural ou ação dos serviços sociais, de criação de infra instrutoras públicas e privadas, orientadores de campanhas de comunicação, estabelecimento de redes bancárias. Todos estes significam organização do desenvolvimento (Ibidem).

Entretanto, segundo De Sardan (Ibidem), independentemente do tipo de organização ou do modo de intervenção, uma ação de desenvolvimento inevitavelmente dá origem à interação entre dois atores sociais pertencentes a mundos diferentes (as agências de desenvolvimento e os que precisam ser

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desenvolvidos) cujos padrões de conhecimento são regulados por uma variedade de lógicas. Em qualquer das formas, diante dos recursos, oportunidades e limitações, através das quais uma iniciativa de desenvolvimento é composta, a interação ocorre de formas contrastantes. Mas, esta não é apenas uma questão de escolha de pessoas, é também reflexo de interesses diversos, normas de avaliação distintas e uma divergência nos objetivos e nas posições ocupadas pelos indivíduos.

O termo “lógicas” aqui utilizado serve como ponto de discussão para a identificação de certos níveis de coerência em torno da interação entre o projeto e a população beneficiária e permite também explicar os tipos de procedimentos similares (e as suas diferenças internas), pois apesar de existir uma infinita variedade de atores individuais e reações, o número de modelos de procedimentos é limitado. Por outro lado, os termos “lógicos” ou “estratégias” permitem mesmo adotar expressão “lógicas estratégicas” na ordem de estabelecer tipologias das várias capacidades que os atores utilizam como oposição às suas “lógicas de pensamento” definidas de acordo com várias formas de perceber a realidade (Ibid.: 138).

De acordo com De Sardan (Ibid.), algumas vezes são usadas referências para sustentar lógicas ou estratégias de reprodução como meio de homogeneizar uma série de comportamentos padrão através da redução dos mesmos em grupos de atores econômicos com objetivos ocultos em si mesmos. Outras vezes, a referência é feita para manter a lógica ou a estratégia apontada junto à minimização de riscos como meio de envolvimento de outros modos coletivos de comportamento econômico, o que pode ser definido, mais ou menos, como subconjunto do primeiro: a gestão de riscos e segurança é uma forma de assegurar sua reprodução e existência. O autor acrescenta ainda que, às vezes, falar de uma lógica de ajuda ou de uma estratégia de busca de ajuda para designar outro grupo de comportamento padrão que intersecta-se com o anterior podem promover a estabilidade. Entretanto, esta variabilidade no uso do termo lógica ou estratégia não deveria desorientar em demasiado. Se os comportamentos não podem ser estabilizados num nível singular da aplicação, isto simplesmente ocorre porque os padrões dos atores por si mesmos ocupam uma variedade de níveis de sobreposição de coerência. A lógica ou estratégia deve ser especificamente definida para fazer sentido, partindo-se do ponto de vista sociológico.

3. Contexto de interação dos projetos de desenvolvimento em Gala Esta seção vai incidir sobre a questão da interação entre o método de intervenção e as populações envolvidas e fazer uma discussão a partir do ângulo dos impactos dos projetos de desenvolvimento. Dentro deste quadro, De Sardan refere que há uma necessidade de se ter em mente o fato de que:

(...) as interações dos projetos ocorrem em um contexto particular (seja ecológico, econômico, institucional ou político) que afeta profundamente o resultado da sua intervenção. As agências de desenvolvimento e as populações que se beneficiariam das iniciativas de desenvolvimento relacionam-se, num contexto e ambiente que não depende deles e que exerce uma pressão significativa sobre o seu relacionamento. Por isso o projeto de desenvolvimento rural é encara-se com uma variedade de fatores fora do seu

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controlo, através dos quais ele é parcialmente dependente: a imprevisibilidade do clima, sistema de preços, estruturas de segurança e comercialização de stocks, outras intervenções ocorrem no mesmo meio social (projetos concorrentes, fiscalização, medidas administrativas), oportunidades, existência de aspetos externos no sistema local de produção (migrações, instrução). A forma como o camponês reage ao projeto depende do grande grau de fatores externos. Este é um dos elementos que as análises devem ter em conta (Ibid.: 139).

Nessa perspectiva, tem razão De Sardan, porque, ao se analisar o “Projeto Tinti Gala Lodge Community”(PTGLC)observa-se que durante a identificação do espaço para construção do Lodge, o que influenciou a decisão para escolha de Gala foi a existência da lagoa de Tinti, que na ótica dos especialistas da HELVETAS seria uma grande atração turística. No entanto, passados três anos após sua inauguração, a seca assolou o país, particularmente as províncias de Gaza e Maputo, e fez com que alguns produtos turísticos baixassem de qualidade ou mesmo se tornassem inviáveis, como ocorreu com a lagoa de Tinti, que não resistiu às intempéries e acabou secando.

Fica óbvio que o projeto foi claramente afetado por fatores naturais que independiam das ações de seus atores, e como consequência, começou-se a verificar a redução da entrada de turistas e a falta de receitas, que, por conseguinte afetou as atividades de manutenção do estabelecimento e provocou a redução da força de trabalho. A este respeito, em declarações proferidas na entrevista concedida para pesquisa, o ex-coordenador do PTGLC Luís Filipe Dinis afirmou:

(...) infelizmente volto a repetir tivemos uma infelicidade numa lagoa que tinha um potencial atrativo para o turismo, tinha ecossistema muito interessante, incluindo hipopótamos, crocodilos, pássaros, borboletas. E de um momento para outro, em três anos havia ficado sem água. Portanto são coisas, são as tais ameaças incontroladas, mas o importante é transformar a infraestrutura que está lá em outro atrativo para zona.(…) Osector privado pode ajudar, pode colocar outros animais. Hoje já há reservas que a gerente cruza-se com zebras, com galinhas do mato, a gente pode cruzar-se com outros animai, que os turistas possam estar lá e sentir-se bem. Que as crianças possam ver.66

Por seu turno e respondendo à mesma questão colocada anteriormente, ex-gestor de projetos da HELVETAS Maputo pronunciou-se nos seguintes termos:

Mas depois, passado anos, começamos a refletir. Aqui pecamos num aspecto, não houve um estudo de base. Não só olhar para aquela lagoa, mas olhar para todos os aspectos que iam fazer parte e ver se de facto é viável ter um Lodge aqui nesse local, isso não foi feito. Daí que tivemos este problema (...) porque a lagoa era para nós o initial point. Era a coisa que mais chamava a atenção, aquilo era o nosso trunfo. E quando seca aquela lagoa começamos

66 Depoimento de Luís Filipe Dinis, Ex-coordenador da HELVETAS Maputo e atual coordenador da LUPA, 2015.

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ter um problema sério, porque já não tinha nada que vender, já não havia nada para vender ali.67

Por sua vez os membros da “comunidade”, debruçando-se sobre a temática em análise, foram enfáticos nas suas afirmações. O senhor France Mussuco descreveu o processo da seguinte forma:

O que aconteceu é que aquele Lodge é que está no mato, e os brancos (turistas) que iam para lá eram poucos porque o principal atrativo do lugar era a lagoa, e contemplavam a vista com crocodilos, elefantes e hipopótamos. Mas, no entanto, a lagoa secou e quando secou nenhum branco (turista) apareceu. Porque ali está no mato, não instalaram num lugar visível, é por isso que a procura por parte dos turistas reduziu de uma forma brusca. As vezes passava um mês dois meses sem os turistas entrarem e neste período não entra dinheiro e as pessoas querem receber. Eu mesma saí daí enquanto me deviam muito dinheiro, cansei. Achei melhor deixar e ficar em casa.68

O Secretário do bairro, Júlio Mathombe pronunciou-se nos seguintes termos:

O que fez falir o Lodge eu penso que foi a água, os turistas queriam a lagoa só que ela secou nem água para tomar banho já não tinha. Por outro lado os trabalhadores também, porque o gerente de fora já não estava a dar conta do estabelecimento como devia ser, portanto já não tinha alguém que pudesse acompanhar o empreendimento de perto. O que acabou acontecendo? O dinheiro já não saía como deve ser.69

A partir dos testemunhos oferecidos tanto pelos gestores da HELVETAS, quanto pelos membros da comunidade, subentende-se que o PTGLC, ocorreu dentro do contexto ecológico particular e tudo estava desenrolando-se como o esperado até a lagoa secar, afetando profundamente o resultado dessa intervenção.

O outro aspecto de realce que é apresentado por De Sardan (op. cit.) tem a ver com o fato de que a maioria dos projetos de desenvolvimento ocorre em meios sociais que já experimentaram intervenções passadas que deixaram marcas. Neste sentido, o autor acrescenta que a tendência natural é a de que o novo projeto ignore a história das iniciativas anteriores, subestimando o que vinha sendo feito antes e enaltecendo seus próprios feitos. Diferentemente do observado por De Sardan, em Gala ficou patente que as agências fizeram uso da experiência com o projeto implementado anteriormente para o desenvolvimento de novos projetos. Falando especificamente do PTGLC, a HELVETAS usou não apenas a experiência anterior com a comunidade, mas também a de outras iniciativas desenvolvidas, como se pode conferir no depoimento do ex- gestor do projeto, Geraldo Palalane:

Em relação a esse projeto houve muita facilitação e aceitação da comunidade em relação à Helvetas. Porquê? Porque nós na altura trabalhamos no Distrito de Matutuine, quase todo Distrito haviam atividades. Já tínhamosrealizado o primeiro diagnóstico participativo que envolvia toda aquela região. Em 2007 haviam um projeto chamado Blanchard, não sei se você já ouviu falar desse

67 Depoimento de Geraldo Palalane, ex – gestor de projetos da HELVETAS Maputo e atual Gestor de projetos da LUPA, 2015. 68Depoimento de France Mussuco residente de Gala, 2015. 69Depoimento de Júlio Mathombe, Secretário de Bairro de Gala, ex – trabalhador do Tinti Gala Lodge Comunitária, e residente de Gala, 2015.

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projeto? De um milionário norte-americano queria fazer uma cadeia de hotéis a partir de Machangulo a descer para Zitundo, então nós rapidamente fizemos um levantamento socioeconômico, fizemos a disseminação da lei de terras, lei de florestas. Começamos a criar a questão da delimitação de terras comunitárias, para ver se dentro daquelas áreas poderiam ter algum benefício do projeto que ia lá aparecer. Então foi nesse âmbito que aquela comunidade já conhecia a organização nesta componente, por outro lado também, já conhecia a organização porque escolas foram construídas ao longo daquele corredor todo como atividade do projeto na altura. Por outro lado também existiu o repovoamento pecuário, houve lá a distribuição do gado bovino, houve algumas atividades de emergência após os acordos de paz, que era o oferecimento de cabritos, outros matérias de construção e etc. Então a Helvetas foi conhecida nessa altura, por isso que houve aceitação, não houve grande dificuldade naquela comunidade.70

Por sua vez, o Governo de Moçambique (GdM), na implementação da política pública dos 20% às comunidades, faz uso da experiência da comissão de gestão criada no PTGLC, o que de alguma forma, rejeita a perspectiva apresentada por De Sardan, como demostra o depoimento do quadro sênior do MITUR Afonso Madope:

Depois da experiência que se teve desses dois projetos, continuo a dizer desses dois projetos de Madjadjane e Gala, recuou-se um pouco e pensou-se na melhor forma. Primeiro de organizar as comunidades em fóruns próprios, que são entidades legais com poder de receber os fundos e aplicar. Cria-se isso, com as assistências do tal apoiante, ou seja, a estrutura ou Organização, que vêm apoiar, a primeira preocupação que nós temos é criar uma estrutura comunitária com liderança própria que seja interlocutor válido em todos os fóruns, no estado, nas ONGs, nos financiadores e por daí em diante. Isto permite que seja uma estrutura sólida, que mesmo que desapareça o financiador o fórum vai continuar de forma legal. E também sabemos que dentro daquele fórum os membros podem não ser os mesmos, mas se mantermos a estrutura criada e reconhecida do fórum ou da associação, então essa associação pode ter apoio rapidamente e reconstituir-se sem se ver de qual é o impacto negativo da saída de um membro mais influente ou a entrada de outros membros na mesma associação.71

Para além dos aspectos mencionados que destacavam a subestimação de todas as experiências que vinham sendo feitas em projetos anteriores para enaltecer seus próprios feitos, De Sardan (op. cit.) afirma ainda que as sociedades camponesas sempre tiveram uma história econômica de trocas, valores dos produtos e desenvolvimento, têm também uma tradição de treinamento rural, popularização da agricultura, cooperativas, festividades, grandes e pequenos projetos, associação de produtores e criação de uma associação dos membros da vila. Esta história está entremeada às suspeitas de corrupção, indícios de relações clientelistas, burocracia, tirania e incompetência. Sobre esse propósito, o ex- gestor de projetos da HELVETAS Maputo, em entrevista concedida, teceu as seguintes considerações:

(...) as pessoas ouviram, e puderam fizer algumas perguntas etc. e o início foi desenvolver duas atividades, uma que era perguntar se havia capacidades

70 Depoimento de Geraldo Palalane, ex – gestor de projetos da HELVETAS Maputo e atual Gestor de projetos da LUPA, 2015.

71Depoimento de Afonso Madope, ex – Director da DNAC, ex-técnico do projeto ACTF e Coordenador do Projeto Mozbio, 2015.

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em termos de pedreiros locais, serventes e etc. e de fato existiam pessoas lá, mas os mestres vinham de lá. Então foi um grupo selecionado da comunidade como servente e pedreiros para trabalhar na parte de construção, e depois paralelamente existiu aquilo que chamamos de capacitação deste grupo, houve uma seleção de dez pessoas que, portanto, foram eleitas como Comitê de Gestão Social.72

O mesmo interlocutor prossegue nos seguintes termos:

Quando iniciou o projeto algumas pessoas foram empregues na construção, mais tarde na fase da operacionalização foram escolhidas algumas pessoas para cozinhar as comidas típicas para quando chegarem os brancos (turistas), outros levavam os turistas para verem plantas medicinais e animais, outro foi entregue o barco para mostrar os hipopótamos ali no Lodge.73

Por sua vez, o depoimento de um membro da comunidade de Gala, David Tembe, demostra claramente o desagrado com as estruturas de poder que são muitas vezes associadas com relações de clientelismo, nepotismo e exclusão:

A escolha das pessoas para trabalharem no Lodge e para fazer parte do comitê de gestão era feita com base em laços de familiaridade e afinidades. Os que não tinham familiares e amigos não chegaram de trabalhar ali.74

Os depoimentos, aqui expostos, deixam claro o quanto a história vivida tem ainda presença determinante no sucesso dos projetos, tal como De Sardan (op. cit.) refere, é possível, em todos os lugares, para trazer à luz uma determinada história local, que poderíamos chamar uma história local de contato com o intervencionismo político-econômico, que necessariamente estrutura os atuais padrões de comportamento, pelo menos em parte. Consequentemente, os contextos sincrônicos e diacrônicos não devem ignorar nenhum evento ou subestimá-lo.

4. Coerência dos projetos de desenvolvimento local em Gala Na operacionalização da abordagem sobre estudos de desenvolvimento, Carneiro (2012: 137) destacam-se dois aspectos que dificultam a coincidência entre os objetivos e resultados do PD. São eles: a complexidade que marca a execução de um projeto de desenvolvimento e os diferentes níveis de coerência que devem ser alcançado nessa execução e o tipo de recepção/reação que esse projeto terá da sua população alvo. Neste contexto, no que tange ao primeiro aspecto De Sardan (2005: 140) refere que os projetos de desenvolvimento sempre clamam por ter uma coerência específica que justifica sua existência e que muitas das vezes é oposta aos projetos antigos ou vizinhos, o que tem feito da configuração de desenvolvimento um mundo de concorrência feroz. No entanto, esta declaração necessária de coerência, que é uma das condições essenciais para obtenção de financiamento e muitas vezes é expressa através de uma retórica específica, está sempre minada não só pela interação entre o projeto e a população-alvo, mas também pelos diversos elementos que participam do projeto em si. Neste sentido, destaca-se a existência de pelo menos quatro níveis de

72 Depoimento de Geraldo Palalane, ex – gestor de projetos da HELVETAS Maputo e atual Gestor de projetos da LUPA, 2015. 73 Ibid. 74Depoimento de David Tembe, membro da comissão de gestão, e residente de Gala, 2015.

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coerência que um projeto de desenvolvimento deve apresentar: i) a coerência do projeto com o paradigma que o orienta; ii) a adequação do projeto ao ambiente macroeconômico em que se encontra inserido; iii) a coerência entre os objetivos apresentados pelo projeto e a atuação prática dos organismos financiadores, e iv) a lógica de funcionamento da organização que realiza o projeto (tradução, Carneiro, 2012).

Segundo Carneiro apud. De Sardan (1995: 125), a observação dos diferentes níveis de coerência que devem decorrer de uma ação de desenvolvimento apontam para a complexidade inscrita na operacionalização de um projeto, cuja execução envolve um conjunto diferenciado de atores sociais, proveniente de mundos diferentes e cujos comportamentos são orientados por lógicas múltiplas. Assim, para estabelecer relação entre os níveis de coerência e as ações de desenvolvimento ocorridas em Gala, o presente estudo vai se demonstrar como esses elementos se manifestaram em Gala conforme os exemplos apresentados a seguir.

O primeiro nível de coerência tem a ver com o paradigma que orienta o projeto, no caso de Gala tem se como exemplo a iniciativa do Turismo de Base Comunitária(TBC) que é um modelo alternativo ao turismo convencional e que atende às necessidades de conservação dos modos de vida tradicionais e da biodiversidade de pequenas comunidades, além de estimular o desenvolvimento econômico local e é fundamentada sobre uma racionalidade técnica claramente definida (Carvalho, 2007). Nesta perspectiva, a inspiração do PTGLC, nas experiências de Covane Lodge em Massingir e de outros projetos do gênero nos países vizinhos, é como afirma De Sardan (op. cit.) uma questão de importação de um modelo de produção para a comunidade de Gala, que também implica, para além da divulgação e formação, uma profunda transformação da atividade da comunidade local. Dito de outra forma, o TBC é um modelo de turismo que está em voga e que é promovido por muitas organizações ligadas ao setor do turismo, tido como um princípio para a redução da pobreza (pro poor Project) pelos países em desenvolvimento. É dentro deste quadro que a Helvetas, implementou o projeto em Gala, como pode-se notar no depoimento do ex-gestor de projetos da HELVETAS:

É isso, pretendíamos disseminar uma boa prática e aquilo que tínhamos aprendido no Massingir, por que o turismo comunitário ou turismo baseado na comunidade já em 2002 acabou por ser também uma moda, uma moda em todo mundo também porque na altura o turismo pro poor que era para a redução da pobreza, a ideia era esta, fazer que o turismo em que o nicho de mercado seria conhecer todos os aspectos culturais e foi nessa altura quando Helvetas trouxe aspectos inovadores para desenvolvimento do país. Não só pensar na agricultura, na questão agropecuária mas também outras atividades que contribuíssem para o desenvolvimento das comunidades.75

Em um outro momento, ainda sobre este assunto o mesmo interlocutor se pronunciou nos seguintes termos:

O PTGLC surgiu porque quisemos fazer uma réplica, porque tivemos a experiência do Covane Comunity Lodge em Massingir. Depois tivemos o

75Depoimento de Geraldo Palalane, ex – gestor de projetos da HELVETAS Maputo e atual Gestor de projetos da LUPA, 2015.

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financiamento da própria Helvetas, daí surgiu a ideia porquê não fazer algum projeto ligado ao turismo, um Lodge comunitário na zona de Matutuine e prosseguimos como os contatos(...).76

Os depoimentos, aqui expostos, deixam claro que critérios nortearam a elaboração do modelo e que o que regula um empreendimento de TBC está ligado às questões de gestão e técnicas de marketing turístico, que são fatores fundamentais para garantir o aumento das receitas. Por outro lado pode-se observar que a proposta apresentada pela HELVETAS traz consigo evidências dos princípios globalizantes, uma vez que estimulou a integração na economia periférica da economia internacional, propiciando e, por esta via, a abertura ao mercado turístico mundial (Conceição, 2015: 173). Portanto, tais práticas são, de alguma forma, associadas aos efeitos negativos de muitos dos projetos de desenvolvimento implementados em países periféricos, onde, em muitos casos, surgem como moda internacional e vão sendo replicados em diferentes espaços territoriais sem de fato obedecerem às particularidades dos respectivos contextos.

Buclet (2002: 12), afirma que os projetos de ONGs são financiados com a condição de respeitar as regras do mercado. O autor acrescenta que um projeto é o resultado de uma interpretação da realidade local pelos agentes da ONG que vão elaborar o projeto, baseando-se nos seus próprios quadros referenciais de análise, ou seja, se o estrangeiro vê só o que sabe, ele também interpreta o que vê segundo seus próprios valores, objetivos e preocupações. Portanto, os projetos são, então, o resultado de uma leitura externa da realidade local. Por sua vez De Sardan (2005: 140), vai dizer que estes conhecimentos são, supostamente, de fácil adaptação e classificados como “simples” em termos da cultura técnica das comunidades do mundo ocidental tidas como referência. No entanto, esta racionalidade técnica é confrontada, dentro da configuração desenvolvimentista em si e, antes de qualquer tipo de interação com as populações locais, com outros registros de coerência.

O segundo nível de coerência está relacionado à adequação do projeto ao ambiente macroeconômico em que se encontra inserido, ou seja, à política econômica ou planejamento nacional, que não tem nenhuma relação direta com turismo e suas técnicas. Neste contexto, De Sardan (Ibid.) refere que esta coerência é às vezes em contradição com os modos “reais” do funcionamento da administração pública. Assim, em Gala, a HELVETAS tinha uma expectativa de que o GdM iria investir em algumas infraestruturas que facilitariam o acesso ao projeto o que de fato não ocorreu, por outro lado esperava-se que o GdM produzisse uma legislação que criasse algumas isenções fiscais a este gênero de projeto. Portanto como afirma De Sardan, as lógicas de ação de determinados mecanismos de aparelho de estado ou da economia nacional às vezes escapam totalmente do controle do projeto, são suscetíveis a comprometer suas políticas. A esse respeito e confirmando as nossas inferências, o ex- gestor da HELVETAS pronunciou-se nos seguintes termos:

A primeira lição aprendida para nós foi a questão de termos, antes de se implantar um acampamento de turismo,que fazer um estudo do mercado, essa é uma lição aprendida que sem isso as coisas podem não avançar. É muito importante que se faça esse estudo e saber se realmente é viável. Por

76Ibid.

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outro lado, temos que ver a questão dos acessos, e na época seca o que acontece, porque um dos pontos principais as pessoas ou muitas pessoas não têm carros com tracção, então é preciso criar condições para que eles tenham alternativas de entradas para esse tipo de turista que se pretende. Por outro lado também é uma lição apreendida, tem que se ter um tempo considerável para capacitar as pessoas que vão estar envolvidas dentro do processo do CBT, se não nada acontece, pois é um problema sério para as pessoas entenderem essa área que é muito complexa. É preciso ter esse tempo, na altura não tivemos muito tempo, aquilo foi tudo a correr, tínhamos que fazer, porque havia um dinheiro, tínhamos que fazer e então isso tudo deu no que deu. E a outra questão que é muito importante, é que o turismo comunitário em Moçambique ainda não tem regulamentos ou leis como em outros países como a Namíbia e Botswana, tem certas isenções, que eles entendem que é um negócio comunitário e não vamos comparar como uma grande indústria hoteleira que tem que pagar imposto e a comunidade não tem fundos.77

O terceiro nível de coerência está relacionado aos objetivos apresentados pelo projeto e a atuação prática dos organismos financiadores, ou seja, o papel de financiadores e doadores e sua influência, que se manifesta indiretamente na escolha dos modelos técnicos, na política econômica nacional e na aprovação dos projetos (De Sardan, op. cit.). Nesta perspectiva, Irving (2002: 98) refere que a consulta comunitária realizada pela HELVETAS em Gala, buscava através das informações e opiniões dos moradores a legitimação da ideia de desenvolvimento pela lógica do financiador, ou seja, um modelo turismo denominado TBC que estava em voga no mercado de desenvolvimento e que seria uma modalidade de turismo desenvolvida pela própria comunidade, passando a articular atividades, operações e empreendimentos na sua localidade, recebendo visitantes nacionais e estrangeiros. Na mesma órbita, Buclet (op. cit.) refere-se à configuração do desenvolvimento como se submetendo às obrigações e regras impostas pelo mercado do desenvolvimento, ou seja, as regras deste campo são frequentemente implícitas e as ONGs talvez não percebam sua influência sobre elas. A autora prossegue dizendo que o acesso aos recursos financeiros funciona cada vez mais por licitação, o que força as ONGs a adaptar os projetos às demandas dos seus financiadores. Portanto, a criação da HELVETAS Maputo, pela sua congênere na Suíça, deixa clara a ideia de que os recursos deviam ser usados simplesmente para implementar o projeto do financiador, ou seja, o TBC. Desconsiderando as atividades tradicionalmente exercidas pela comunidade local, de acordo com a construção de seus saberes sobre os usos dos recursos naturais, é o caso da pesca artesanal e do corte de junco. Neste contexto, em Gala, quando a HELVETAS iniciou suas atividades, orientava seu financiamento para os projetos de desenvolvimento do TBC, mas passados três anos considerou que estas atividades já estavam consolidadas e devia incidir suas intervenções na área do saneamento na região norte de Moçambique. Este nível de coerência está claramente patente na fala do ex-gestor de projetos da HELVETAS, que destaca de forma exaustiva os pontos que caracterizam sua intervenção:

É assim, a HELVETAS, na altura eu chamamos HELVETAS Programa Maputo, realizou várias atividades, nos distritos de Matutuine, Massingir, entre outros. Então no âmbito das mudanças dos coordenadores ao nível da

77Depoimento de Geraldo Palalane, ex – gestor de projetos da HELVETAS Maputo e atual Gestor de projetos da LUPA, 2015.

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Suíça, tivemos uma coordenadora que a um dado momento achou que as atividades na província de Maputo já estavam sólidas daí que não havia necessidade de continuar a financiar algumas atividades porque ela achava que já estava tudo bem e que tinha que se fechar o programa da HELVETAS Maputo. Nós tivemos um grande choque com esta coordenadora e até ao ponto de termos um encontro com o Diretor Regional para África, tivemos um encontro com ele que nós fizemos à explicação de todos os aspectos que nós achávamos importantes à continuidade das atividades aqui. Provamos com A+B que ainda não estava nada fortalecido nas atividades, alguns grupos etc. Que havia necessidade de se continuar. O desenvolvimento não se faz em dez anos, desenvolvimento faz-se em mais tempo. E só que a decisão já tinha sido tomada, em termos de fechar o programa de Maputo na Suíça. O que é que acontece? Nessa altura a decisão foi do próprio Diretor Regional, quando diz, ‘olha, vocês podem continuar com as atividades, a HELVETAS Maputo fecha. Mas que abram outra organização moçambicana que possa servir para dar continuidade nas atividades do projeto’. Foi nessa altura que nós criamos a LUPA e a própria HELVETAS continuou a financiar a LUPA, cerca de cinco para fortalecer aquelas atividades que nós tínhamos iniciado, andamos cinco anos a aguentarmos connosco.78

O quarto e último nível de coerência têm a ver com a lógica de funcionamento da organização que realiza o projeto, ou seja, como diz De Sardan (2005: 41), um projeto de desenvolvimento tem suas lógicas organizacionais, sua econômica informal, que são bastante diferentes do fluxograma oficial, seus condicionantes específicos e suas disfunções. A escada hierárquica, a coleção e o fluxo de informações, a capacidade de adaptação e autocorreção, portanto, são parâmetros de importância primária. Em termos mais gerais, um projeto é como uma organização ou um sistema de interação entre os funcionários e agentes que inevitavelmente leva a vários tipos de desvios do projeto como existe no papel. Em Gala, inicialmente a HELVETAS havia planejado desenvolver o projeto até que as atividades estivessem consolidadas, mas passados três anos após sua implementação, a direção geral da HELVETAS na Suíça decidiu que os programas em Maputo deviam fechar. No entanto, terminadas as negociações, ficou acordado que a HELVETAS Maputo deveria ser extinta e em contrapartida de ser criada uma ONG moçambicana que iria continuar a contar com o financiamento da direção geral da HELVETAS na Suíça por um período de cinco anos até construir sua capacidade de gestão. É neste contexto que foi criada a LUPA, que passou a dar continuidade ao projeto. Esta informação é claramente confirmada nas declarações proferidas pelo ex- gestor de projetos da HELVETAS Maputo Geraldo Palalane:

(...) Nós tivemos um grande choque com esta coordenadora e até o ponto de termos um encontro com o diretor regional da África, tivemos um encontro com ele onde fizemos a explicação de todos os aspectos que nós achamos importantes para continuidade das atividades aqui. Provamos com A+B que ainda não estava nada fortalecido nas atividades de Maputo etc. Que havia necessidade de se continuar. O desenvolvimento não se faz em dez anos, faz-se em mais tempo. E ai só que a decisão havia sido tomada, em termos de fechar o programa de Maputo na Suíça, foi o que aconteceu nessa altura a

78 Depoimento de Geraldo Palalane, ex – gestor de projetos da HELVETAS Maputo e atual Gestor de projetos da LUPA, 2015.

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decisão foi do próprio Diretor Regional, quando diz portanto vocês podem continuar com as atividades e a HELVETAS fecha, mas agora abram uma outra ONG moçambicana que possa servir para dar continuidade nas atividades do projeto, foi nessa altura que nós criamos a Lupa e a própria HELVETAS continuou a financiar a Lupa, cerca de cinco para fortalecer aquelas atividades que nós tínhamos iniciado andamos cinco anos para aguentarmos connosco.79

5. A reação da população alvo aos projetos de desenvolvimento local em Gala Nesta secção vai se procurar analisar as diferentes formas pelas quais os projetos de desenvolvimento são recebidos pela sua população alvo. Neste sentido, De Sardan (2005: 142) refere que, dois princípios operam nessas situações: um princípio de seleção e o princípio de contorno do projeto. No entanto, Carneiro (2012: 138) afirma que tanto em um quanto em outro caso, o que prevalece é a ideia que o público da acção desenvolvimentista não é passivo, atuando, pelo contrário, através de mecanismos de seleção e de recusa do que lhe é proposto pelo dispositivo da ação de desenvolvimento. Neste sentido, Carneiro (2012: 139), acrescenta que esses princípios são operados de forma diferenciada segundo o contexto e as lógicas que presidem a ação do público-alvo, ou seja, as decisões que as populações alvo fazem em cada um desses níveis parecem estar ligadas essencialmente à variáveis relacionadas ao contexto e não para soluções padrão ou soluções de serviços técnicos que geralmente os operadores de desenvolvimento prescrevem, como se pode observar no depoimento Secretário do bairro Júlio Mathombe, quando descreve a situação da entrada do projeto na comunidade:

Então a HELVETAS no topo disse que pretendemos implantar um Lodge aqui nesta comunidade ‘vocês não precisam?’ E antes da informação chegar à comunidade nós a comissão reunimos com a ONG e acordamos que ‘sim precisamos do Lodge e que ele pode ser implantado.’ Depois do acordo havido entre nós e a ONG, reunimo-nos com a população e informamos que a ONG está a propor a implantação do Lodge ‘qual é a vossa opinião?’ A população também ficou do nosso lado. Não havia nada que ocorria sem que a população fosse envolvida. Tomávamos decisões junto a ONG, mas por fim apresentávamos a população no geral. E nisso nós não chegávamos como se fossemos nós a propor o trabalho, mas sim dizíamos que existe isso ‘como iremos fazer?’ E analisamos juntos e ajudávamos dando o ponto de vista. E assim o nosso ponto de vista, o da população e o da ONG se juntava e tornava-se uma única opinião e assim começou a funcionar o Lodge.80

Sobre o mesmo diapasão, outro membro da comunidade Luísa Castelo quando questionada sobre o assunto, afirmou:

Eles desenharam primeiro e fizeram uma reunião connosco e explicaram que o nosso objetivo é este, aquilo e isto, e nós por sua vez como vimos que aquela ideia era uma ideia criadora, aceitamos. Começou-se assim mesmo, e então em conjunto com a comunidade aceitamos que seja construído um

79Depoimento de Geraldo Palalane, ex – gestor de projetos da HELVETAS Maputo e atual Gestor de projetos da LUPA, 2015. 80Depoimento de Júlio Mathombe, Secretário de Bairro de Gala, ex – trabalhador do Tinti Gala Lodge Comunitária, e residente de Gala, 2015.

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Lodge, porque nós pensávamos que ia nos ajudar segundo como eles falaram.81

Desta forma, no princípio de seleção, as mensagens técnicas, intervenções e PD são todos “pacotes” ou conjuntos de medidas coordenadas que se afirmam ser coerente. Segundo De Sardan (2005: 145) considera que essas variáveis pedem ser identificadas em contextos relacionados: a gravidade da crise ecológica, o grau de corrupção do funcionalismo público, o grau de confiabilidade dos circuitos de comercialização, a disponibilidade de oportunidades fora da agricultura, a quantidade de tensão em torno de questões relacionadas à terra, entre outros. No entanto, De Sardan recorda que o pacote proposto nunca é completamente adotado pela população alvo, na medida em que é sempre escolhido de uma forma separada, em maior ou menor grau na seleção que a população alvo faz entre os elementos propostos. Segundo o autor, neste jogo a regra é não levar tudo nem deixar nada. O processo usual é um de adoção seletiva. Assim, pegando como exemplo Gala pode-se notar que o PTGLC foi apresentado sob forma de pacote de técnicas sistematicamente desarticulado com o contexto da “comunidade”, na medida em que o conceito de turismo surge como uma novidade apesar de ter havido algumas formações para que a população alvo se adaptasse a essa nova lógica.

Por outro lado, no princípio de contorno do projeto as razões que motivam a adoção de uma medida de desenvolvimento são determinadas por potenciais usuários geralmente está em desacordo com os motivos citados pelos peritos que propõem o projeto. Em outras palavras, os camponeses exploram as oportunidades à sua disposição de acordo com seus próprios objetivos particulares. Assim, tanto o princípio de seleção como o princípio de contorno podem ser considerados como maneiras em que um grupo-alvo “se apropria” de um projeto. No entanto, o paradoxo é que esta adoção, que, em teoria, é o fim procurado por operações de desenvolvimento, assume frequentemente formas e métodos para executar os objetivos do projeto (De Sardan, 2005).

Considerações Finais

O argumento apresentado ao longo do artigo refere que nos PDs em turismo implementados em Gala foram uma estratégia de acomodação dos interesses dos proponentes, na medida em que todo processo social se incorporam agentes que estão interessados em certos resultados, ou seja, pensando numa perspectiva weberiana adequar meios a fins específicos.

Assim, constatou que os agentes de desenvolvimento, ao apresentarem os seus projetos a comunidade de Gala estavam a procura de legitimidade para as suas iniciativas, mas ao mesmo tempo não deixavam completamente claro os seus fins. Como afirma Sardan (2005), muitos dos agentes envolvidos na arena de desenvolvimento têm e tinham interesses específicos a respeito da melhoria das suas

81 Depoimento de Luísa Castelo, residente de Gala, 2015.

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próprias carreiras e alcance dos objetos da ONG ou mesmo o seu reposicionamento mais geral nas ONGs na África.

Daí que ao se analisar os PDs é importante não tomar os discursos institucionais dos projetos de desenvolvimento no seu valor fácil, pois boa parte da sua eficácia, tem a ver com o fato destes estarem a buscar legitimidade o tempo todo escondendo parte dos seus fins.

Por outro lado, em muitos dos PDs, os agentes de desenvolvimento entendem a “comunidade” como um espaço imaginário que produz uma “sensação de aconchego”, cimentada por consenso, organizada em torno de uma visão de mundo realizada em comum e regulamentada por uma cultura partilhada. No entanto, no caso de Gala, o que se constatou foi uma arena onde atores e grupos estratégicos estão em confrontação, em disputa, e em conflito uns com os outros.

Constatou-se que em Gala os atores e grupos estratégicos não só têm diferentes interesses e recursos, ou seja, seus próprios projetos, mas também agiam de acordo com diferentes modos de ação e pontos de vista culturais do mundo. Portanto, o que parece aos olhos dos especialistas e planejadores como um único projeto é, na realidade, mais complexo, pois cada grupo está buscando seu próprio projeto. Para alguns, é uma questão de realizar objetivos ideológicos abstratos tais como “desenvolvimento”, “participação” e “ajuda” para a “comunidade”. É uma questão de presença simbólica. Já para os líderes locais é um esforço sutil de influência política ou legitimação do seu poder local.

Constatou-se também que enquanto os agentes de desenvolvimento (Estado e ONGs), em suas atividades, tinham como objetivos abstratos a questão de geração de renda e a melhoria das condições de vida e as relações de custo x benefício do projeto, ou seja, medidas quantitativas. A “comunidade” quando ouvia falar de projeto pensava em dinheiro. Dito de outra forma, enquanto para os promotores de desenvolvimento o projeto significa um passo em frente no planejamento de suas carreiras, como se observou no caso da HELVETAS, a “comunidade” está principalmente interessada em melhorar as infraestruturas básicas e garantir o seu sustento.

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O Esboço Político-Administrativo do Estado de Gaza e Sua Influência no Processo Recente de Legitimação da Autoridade Tradicional em

Xai-Xai

Abel Silvestre Mazuze82 [email protected]

Resumo O presente artigo descreve a forma como o Estado de Gaza conseguiu inserir-se em Xai-Xai (capital da província de Gaza) (século XIX) a ponto de manter sua estrutura administrativa legitimada na configuração da autoridade tradicional actual. Para o efeito, faz-se um breve debate conceptual, onde são discutidos os conceitos de autoridade e poder. É também apresentado o historial da evolução da autoridade tradicional em Xai-Xai desde o período pré-colonial à actualidade, onde são debatidas questões relacionadas com a forma como esta manteve seus traços do passado ao presente. A principal conclusão é que a autoridade administrativa do Estado de Gaza conseguiu manter-se ao nível da estrutura tradicional, através de uma conjugação de factores como a manipulação da crença generalizada na acção dos ancestrais sobre o dia-a-dia dos vivos; adopção de uma política de assimilação e respeito pelas estruturas linhageiras locais. Palavras-chave: Autoridade; Legitimidade; Poder; Tradicional.

Introdução A evolução político-administrativa da área correspondente à actual cidade de Xai-Xai está pouco documentada. Esta carência de informação tende a ganhar forma à medida que se recua no tempo, facto que se traduz na existência de um conhecimento relativamente maior sobre a estrutura administrativa colonial portuguesa comparativamente às formas adoptadas antes deste período, como é o caso do arcabouço montado pelo Estado de Gaza e as formas anteriores de organização. A escassez de documentação sobre a estrutura político-administrativa pré-colonial em Xai-Xai não significa, porém, que as formas administrativas do passado não tenham marcas significativas que resistiram aos efeitos do tempo e à acção do homem, a ponto de fazerem-se sentir na actualidade, ainda que em menor escala. Se ao nível da estrutura administrativa formal actual ainda é possível ignorar essas marcas do passado, o mesmo não pode acontecer quando o olhar incide sobre a autoridade tradicional que conserva aspectos daquele passado remoto,

82 Investigador do ARPAC-Delegação da Província de Gaza. Licenciado em Ensino de História pela Universidade Pedagógica de Moçambique.

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transportados para a actualidade através de uma complexa transmissão de valores centrada na oralidade e na prática como mecanismos transferência de saberes. O título deste artigo “O Esboço Político-Administrativo do Estado de Gaza e Sua Influência no Processo Recente de Legitimação da Autoridade Tradicional em Xai-Xai” exprime o objectivo principal do mesmo, de descrever as evidências da influência da organização político administrativa do Estado de Gaza na forma como a autoridade tradicional é legitimada, bem como nos mecanismos de sua articulação na actualidade. De forma específica, este artigo pretende caracterizar o processo de constituição e evolução histórica da autoridade tradicional e perceber a influência do modelo político-administrativo do Estado de Gaza na legitimação da autoridade tradicional actual em Xai-Xai. A ideia de escrever sobre esta matéria não surgiu ao acaso. Foi o culminar de um processo resultante do acompanhamento criterioso da acção das autoridades tradicionais de Xai-Xai aquando da auscultação pública liderada pelo Governo Provincial no sentido de consciencializar os cidadãos sobre a pertinência da reestruturação administrativa no sentido de garantir uma maior aproximação dos serviços públicos aos cidadãos. Durante o referido processo, a autoridade tradicional de Xai-Xai opunha-se à reestruturação administrativa, sob o pretexto de que esta traduzir-se-ia na redução da área de influência dos Ntxayi-Ntxayi Ndlamini, assumidos líderes tradicionais de Xai-Xai. Esta posição do líder e os argumentos que a suportaram suscitaram determinadas curiosidades, entre elas a necessidade de conhecer detalhadamente a área de abrangência do poder tradicional dos Ndlamini e a forma como eles se legitimam junto das comunidades desde a altura de vigência do Estado de Gaza até aos dias de hoje. Sob o ponto de vista metodológico, o artigo faz uma abordagem qualitativa, optando por uma postura interdisciplinar baseada na História Social combinada com um diálogo conceptual permanente com a Antropologia, Sociologia e Ciências Políticas, como forma de reforçar as perspectivas de análise dos factos em estudo. O trabalho de campo foi efectuado na cidade de Xai-Xai e nos distritos circunvizinhos de Chongoene e Limpopo.

2. Poder, Legitimidade e Autoridade Tradicional - Abordagem Teórica Um dos principais desafios à percepção do papel e lugar da autoridade tradicional em Moçambique está relacionado com a precisão necessária ao definir os conceitos fundamentais relativos a esta matéria. Têm sido frequentes confusões semânticas e epistemológicas entre os conceitos de poder e autoridade. Deste modo, torna-se imprescindível trazer à superfície as diferentes percepções à volta do conceito de autoridade tradicional.

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Da mesma forma que a definição da autoridade tradicional é indispensável ao alcance dos objectivos deste artigo, o esboço de um breve quadro histórico desta forma de autoridade passa, necessariamente, pela percepção da sua génese e das questões associadas aos contornos da sua legitimação. Isto é, não se pode avançar para a percepção de aspectos recentes da história da autoridade tradicional sem definir claramente esta forma de comando, sua origem e a maneira como se legitima junto das comunidades a que está adstrita. Entre as principais causas das dificuldades a que se tem vindo a fazer referência destaca-se a tendente interpretação do fenómeno social moçambicano à luz de métodos e teorias importadas. Nesta perspectiva, vale a pena mencionar a percepção de Karl Marx de que a imigração de ideias raramente se faz sem dano, porque ela separa as produções culturais do sistema de referências teóricas em relação às quais as ideias se definiram, consciente ou inconscientemente (...) quer dizer, do campo de produção balizado por nomes próprios ou por conceitos para cuja definição elas contribuem menos do que ele as define (...) (Marx apud.Bourdieu, 1989: 7). Nesta lógica, entende-se o facto de, apesar de possuírem uma enorme base teórica devido ao considerável número de estudos sobre elas, as questões ligadas às autoridades tradicionais estarem constantemente a suscitar novas curiosidades. Tal facto deve-se, entre outros motivos, à sua interpretação mediante teorias “ocidentais ou ocidentalizadas”. Assim, justifica-se a necessidade de estabelecer uma linha orientadora do pensamento através da definição dos conceitos que não possam criar qualquer tipo de confusão no estudo sobre a autoridade tradicional.

2.1. Poder ou autoridade tradicional? A definição do conceito de autoridade tradicional aqui feita visa contornar a confusão que tem sido frequente entre este e o de poder tradicional que, apesar de próximos, são distintos tanto sob o ponto de vista semântico, quanto na perspectiva epistemológica. Deste modo, o esforço desenvolvido nesta definição visa alcançar a maior aproximação possível da realidade moçambicana. Etimologicamente, o termo autoridade é latino, derivado de auctorite, um sinónimo de poder. Ao nível das ciências sociais, o termo autoridade faz parte dos mais explorados no estudo das sociedades hierarquizadas. Apesar de relacionados, a ponto de serem considerados sinónimos, os termos autoridade e poder distinguem-se um do outro pois, o conceito de autoridade está além da simples capacidade de influenciar vontades, a que remete o conceito de poder. Segundo Max Weber apud. Florêncio (2005: 31), poder é a probabilidade de impor a sua própria vontade numa relação social mesmo contra toda a resistência e qualquer que seja o fundamento dessa probabilidade. Ferreirinha & Raitz (2010: 367-371) recorrem a Michel Focault para definir poder como algo que:

(…) não está localizado em uma instituição, e nem tampouco como algo que se cede, por contratos jurídicos ou políticos. O poder em Focault reprime, mas também produz efeitos de saber e verdade. É preciso, antes de qualquer coisa, conhecer a

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etimologia da palavra poder, que vem do latim vulgar potere, substituído ao latim clássico posse, que vem a ser a contracção de potis esse, “ser capaz”; “autoridade”. Dessa forma, na prática, a etimologia da palavra poder torna sempre uma palavra ou acção que exprime força, persuasão, controle, regulação etc.

Há outras perspectivas de análise, sobretudo no campo filosófico, que alargam a percepção e a significação do termo poder, sugerindo que o mesmo remete à capacidade de alcançar determinado objectivo, quer seja por direito, por controlo ou por influência. Nesta óptica, o poder é entendido como sendo também a capacidade de influenciar decisões quer seja no campo político, económico ou social. Se o termo poder limita-se à simples questão da capacidade de impor ou influenciar decisões e comportamentos, que pode ser coactiva, o mesmo não se pode dizer sobre o conceito de autoridade. Na óptica de Fernandes (2009: 56) os conceitos de poder e autoridade são paralelos e distintos, sendo que este último afigura-se-nos importante porquanto nos permite a posterior construção do conceito de autoridade tradicional – sendo certo que as autoridades tradicionais constituem um dos actores políticos locais mais importantes para a análise do fenómeno da descentralização. De facto, as autoridades tradicionais são imprescindíveis na análise dos fenómenos da descentralização em Moçambique, tanto que a motivação deste estudo está associada à intervenção deste tipo de poder, contestação, no caso concreto, ao processo progressivo de descentralização ou mesmo desconcentração, se não quisermos aprofundar estes conceitos. Afinal o que distingue poder tradicional da autoridade tradicional? E qual é a razão da opção por autoridade e não por poder tradicional? A resposta a estas perguntas só pode ser encontrada no debate sobre a legitimidade do poder. É aí que se distingue o simples poder da autoridade, como veremos no item que se segue.

2.2. Questões de legitimidade Segundo Florêncio (2005: 31-32), todas as relações sociais são, na essência, relações de poder. Pois, o poder é um facto inerente a toda a vida em sociedade. Nesta óptica, desde que dois indivíduos se encontrem em relação, existem relações de poder, e elas constituem uma parte fundamental dessa mesma relação, pois existe sempre a tendência de influenciar a relação no sentido do interesse de cada uma das partes. A aprofundar o debate sobre os pressupostos que substantivam o poder, Florêncio (2005), acrescenta o seguinte:

(...) o poder assume um carácter instrumental, na medida em que se orienta para a realização de objectivos e vontades (...). Pressupõe a existência de assimetrias sociais de base, as quais acentua e sobre as quais se alimenta e desenvolve. (...) pressupõe também um campo de relações sociais estruturadas, onde se desenvolvem e consubstanciam as relações de força, relações de poder que lhe são inerentes. (...) [o poder gera] um equilíbrio interno à própria sociedade, no sentido em que o poder tem por função defender a sociedade contra as suas próprias fraquezas. (...) o poder estrutura e limita a competição entre indivíduos e grupos, impedindo que essa competição, por natureza instável, conduza ao caos social (...).

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Na esteira do acima exposto pode-se perceber o poder como um conceito ambíguo que agrega elementos coercivos e de coesão dos grupos sociais. A coerção evidencia-se sempre que se mostra necessário o uso da força, sendo que a coesão deriva da aceitação da legitimidade do poder de um sobre o outro, onde o detentor desse poder é um elemento socialmente assumido como garante da unidade do grupo. No debate sobre a origem e significado do termo autoridade, autores como Dava et al (2003), Florêncio (2005) e Fernandes (2009) recorrem ao conceito apresentado por Marx Weber que define autoridade como a dominação legítima, distinta da dominação/submissão. Os fundamentos deste tipo de dominação designado autoridade podem ter três naturezas: i) legal ou racional, em que a obediência refere-se a ordenações impessoais e objectivas, legalmente estatuídas e às pessoas por elas designadas; ii) tradicional, em que a obediência orienta-se a um chefe instituído conforme os ditames tradicionais e iii) carismática, fundamentada no prestígio e confiança pessoal no meio em que se reproduz o seu carisma (Fernandes, op.cit.: 57). Com recurso aos subsídios de Marx Weber, Florêncio (op.cit.) acrescenta que todas as formas de autoridade, ou dominação, procuram encontrar e fomentar a crença na sua legitimidade. A legitimidade constitui, assim, a essência da verdadeira autoridade” (Weber apud. Florêncio, 2005: 34). O mesmo autor refere-se ao poder nos seguintes termos:

(...) O poder cumpre-se no seio de uma relação social específica: comando vs obediência, obediência essa que se realiza ou através do consentimento ou da violência. No primeiro caso estamos perante uma situação de exercício de poder legítima; no segundo caso, a imposição forçada transforma a relação comando vs obediência numa relação de dominação, submissão (...) (Lapierre apud.Florêncio, 2005: 33).

É essa forma legítima exposta na primeira das duas circunstâncias acima que assume a designação de autoridade. É neste alinhamento que Dava et al apresentam o conceito de autoridade tradicional derivado da conjugação dos termos “autoridade” e “tradicional”, como a capacidade de impor e influir sobre outras pessoas, baseada fundamentalmente na legitimidade comunitária e nas leis consuetudinárias (Dava et al, 2003:6). Refira-se que o conceito de autoridade tradicional acima, explorado por Dava et al (2003) já tinha sido apresentado por Marx Weber em 1922, na mesma perspectiva em que é reproduzido por Fernandes (2009: 57), nos seguintes termos: (...) no que respeita à autoridade tradicional, Marx Weber considera que o poder do soberano que exerce a sua autoridade não advêm do cargo que ocupa, nem a obediência se deve a disposições estatuídas (...) mas sim à pessoa que por via da tradição se encontra investida desse poder. Fica assim explicada a distinção entre poder e autoridade tradicional e, desta forma, a razão de se ter optado por autoridade tradicional no alinhamento deste artigo, exactamente por fazer referência à forma legítima e socialmente aceite de exercer o poder.

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3. ORIGEM E EVOLUÇÃO DA AUTORIDADE TRADICIONAL EM XAI-XAI Os primeiros assentamentos humanos resultantes da expansão Bantu em Xai-Xai registaram-se na faixa costeira e, simultaneamente no vale do rio Limpopo, por volta dos anos 500 da nossa era. Sobre este processo a pouca informação disponível deriva da interpretação dos achados nas referidas áreas, que sugerem a existência de pequenas aldeias, sendo que algumas delas foram se expandindo ao longo do tempo. Os dados das fontes materiais são consubstanciados por relatos de fontes orais que relacionam a origem de determinadas comunidades a processos migratórios iniciados no norte e aos vestígios dos antepassados disponíveis nas estações arqueológicas da faixa costeira.

Imagem 1: vestígios de cerâmica patentes nas estações arqueológicas de Xai-Xai

Fonte: Foto do autor

Autores como Duarte (1976) e Souto (1996) fazem referência a este primeiro momento de configuração dos assentamentos humanos. Duarte (1976) concentra maior atenção aos trabalhos arqueológicos realizados em Xai-Xai, onde para além dos vestígios de cerâmica, é possível documentar parte do modus vivendi daquelas aldeias costeiras através dos restos de conchas. Por sua vez, Souto (1994) traça um rescaldo geral do processo de expansão Bantu e descreve os contornos das distinções entre as “tradições” envolvidas nesse processo. Na descrição feita por Souto pode-se perceber que a cerâmica patente em Xai-Xai pertence à tradição Matola e apresenta as mesmas características que os vestígios descobertos na Estação Arqueológica da Matola, o que sustenta a ideia da continuidade daquele processo migratório.

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Imagens 2 e 3: Cacos de cerâmica e conchas das estações arqueológicas de Chongoene (esquerda) e da Praia Velha em Xai-Xai (direita)

Fonte: Foto do autor

A referência feita aqui aos sinais da expansão Bantu tem em vista apenas testemunhar aqueles que foram os primeiros passos da configuração de comunidades sedentárias em Xai-Xai que, ao longo do tempo, foram sofrendo reconfigurações. Portanto, a partir do processo de sedentarização foram surgindo comunidades/aldeias cujas relações políticas eram reguladas por sistemas de linhagem segmentária. É este o sistema de organização política que, a concordar com autores como Liesegang (1986); Souto (1994) e o Departamento de História da UEM (1999), vigorou em parte considerável do sul de Moçambique antes do século XIX, altura em que foi fundado o Estado de Gaza. Nesta altura, cada zona da actual cidade de Xai-Xai era dirigida por um chefe linhageiro, sendo que o nome do mais antigo chefe de linhagem de que se tinha conhecimento correspondia ao apelido da família que ocupava essa mesma região e, ao mesmo tempo, nome geográfico desse local. Desta forma, a área de prevalência do apelido Macamo recebia a designação de Macanwine (zona dos Macamo); onde predominavam os Chilaúle, chamava-se Chilauene; Mapilele – Mapileleni, assim por diante, com alguma diferenciação em função das variações dos próprios apelidos. As relações de autoridade estabeleciam-se dentro da linhagem. E, o equilíbrio de forças era feito entre um número de segmentos equivalentes definidos pela linhagem local. Portanto, a série de relações intersegmentárias da estrutura política consistia num compromisso de lealdades locais opostas, não havendo um mecanismo institucionalizado de resolução de possíveis conflitos.

3.1. A montagem da estrutura político-administrativa do Estado de Gaza A avaliar por Souto (1994), no início do século XIX registou-se uma grande invasão, sobretudo em direcção a Moçambique, de povos oriundos do sul da região do Natal (os nguni), como resultado de uma importante revolução social registada naquela região, a qual tomou o nome de Mfecane. Esta revolução pode ser entendida como sendo um processo de modificações políticas no centro do qual esteve a emergência de um novo tipo de estado na Zululândia.

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A integração de Xai-Xai no circuito político-administrativo do Estado de Gaza contribuiu para a ocorrência de uma série de mudanças na paisagem política, económica e sociocultural local. A toponímia não escapou. Por exemplo, o nome Gaza é de origem nguni, as designações chopi/copi e changana/xangana, correspondentes às duas principais etnias da província de Gaza surgiram nessa altura. O termo changana/xangana corresponde ao pseudónimo “Soshangane” usado por Manicuse (fundador do Estado de Gaza), com o significado de povo de Soshangane. Por sua vez, o termo chopi/copi, deriva de va-chopi, com a significação de povos detentores de armas de arremesso (Junod, 1974: 25). De uma forma geral, o Estado de Gaza ocupou uma vasta região entre os vales do Incomati e Zambeze (é verdade que havia áreas consideráveis dentro deste perímetro que estavam fora do controlo do Estado de Gaza). Sua rápida expansão foi facilitada pela política de assimilação adoptada por Sochangane (1º rei de Gaza: 1821-1858) e também implementada por seus sucessores, que consistia na integração das populações locais na hierarquia político-administrativa do Estado. O controlo de um território tão vasto implicava a criação de uma rede administrativa eficaz. Para tal, os governantes do Estado de Gaza serviram-se das estruturas existentes na sociedade nguni. Os filhos do rei e chefes de linhagens importantes recebiam, como áreas tributárias, certas zonas compostas de um ou vários reinos antigos. Os antigos chefes locais podiam dirigir-se ao chefe do Estado de Gaza através destes novos senhores, que estabeleceram um sistema de tributação e cujo poder crescia à medida que aumentava o número de súbditos. O monarca do Estado de Gaza partilhava a autoridade política e militar com os seus tios e irmãos, havendo, por isso, menor possibilidade de conflitos entre os membros da família real (Departamento de História da UEM, 2000: 90). No vale do Limpopo a aristocracia nguni coabitava com os antigos chefes, os quais eram geralmente nomeados para posições juniores na administração. Como intermediários entre os nguni e seus súbditos, eles jogavam um papel importante na cobrança de impostos e no recrutamento de homens para o exército (Covane, 2001: 67). Durante a primeira metade da década de 1890, a zona do Baixo Limpopo era politicamente turbulenta por causa das tentativas dos portugueses de monopolizar o comércio com Gaza e ganhar maior influência sobre a política externa deste estado. As tentativas falhadas de persuadir Ngungunhane, o rei de Gaza, a respeitar os “acordos” de vassalagem de 1861 e de 1885 e o acordo comercial sobre o vinho de 1891, associadas à recusa na entrega de chefes africanos dissidentes que tinham-se refugiado no Estado de Gaza83, foram as razões que levaram Portugal a pautar pela acção militar com vista a colonização de Gaza em 1895/7 (Ibid.: 68).

83Em 1895 Mahanzule e Nwamatimbedjani, líderes de chefaturas em Maputo, rebelaram-se contra a autoridade colonial, facto que culminou com confrontos militares e posterior fuga daqueles líderes que se refugiaram em Gaza. Pressionado para entregar aqueles chefes à autoridade colonial, Ngungunyane, chefe do Estado de Gaza recusou-se.

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4. O DESAPARECIMENTO FORMAL DO ESTADO DE GAZA E A CONFIGURAÇÃO DA SUA ESTRUTURA ADMINISTRATIVA NA ESFERA

TRADICIONAL Uma vez concluída a ocupação colonial (1895-1897), iniciou-se o processo de montagem da estrutura político-administrativa portuguesa. É nesse momento que as lideranças do Estado de Gaza, as que não mostrassem resistência directa à colonização, submeteram-se à nova ordem e passaram a trabalhar ao nível das estruturas de base. O entrosamento entre as estruturas administrativas do Estado de Gaza e a comunidade local em Xai-Xai, graças à política de assimilação adoptada por aquela unidade pré-colonial e à pouca intervenção/interferência dos órgãos centrais (de Gaza) no poder local, foi tal que, à altura da ocupação colonial efectiva, todos já tinham-se tornado parte de um único corpo em que ngunis e assimilados estavam no centro do poder. Assim, iniciou-se a transição e legitimação da autoridade do Estado de Gaza ao nível tradicional. 4.1. Reprodução das estruturas do Estado de Gaza durante o período colonial A ocupação efectiva portuguesa às terras de Gaza precisou de uma forte intervenção militar. Apesar das baixas sofridas no campo de batalha, os portugueses conseguiram impor-se ao poderio do Estado de Gaza. Para tal, contribuíu também a relativa fragilidade interna causada pela violência com que Ngungunyana exercia o poder, estando em constantes conflitos com vizinhos reinos africanos, numa altura em que o estabelecimento de parcerias seria a melhor estratégia (Liesegang, 1996: 57). No caso de Xai-Xai em que reinava certa calmia, dado o relativo afastamento das lideranças centrais do Estadode Gaza, a que se tinha feito referência, o governo colonial tentou manter Ntxayi-Ntxayi Ndlamini no poder como forma de conquistar a confiança das comunidades locais. Porém, este não aceitou passar à condição de régulo, tendo optado por abandonar suas terras devido às ameaças dos dirigentes coloniais, como avança Horácio Ndlamini, actual líder de Xai-Xai:

(…) o administrador colonial tentou nomear Ntxuayive Ndlamine Ntxai-Ntxai ao cargo de régulo. Mas no entender de Ntxayi-Ntxayi, ser régulo significava reduzir o seu poder à condição de rei pequeno (Xi Hosani). Ser régulo seria o mesmo que estar na condição de um nduna, uma espécie de oficial subalterno. Os regulados criados pelo governo colonial correspondiam às terras dos antigos chefes, representantes de Ntxayi-Ntxayi nas respectivas comunidades. Assim, num dia desses, cansado das humilhações e da pressão que sofria, Ntayi-Ntxayi pegou no seu burro e rumou para Nyampfunwine, actual distrito de Chongoene, de onde nunca mais voltou (...).

Na circunstância, foi reconhecido o seu filho Xilwani Ndlamini como autoridade tradicional legítima, passando a cumprir a tarefa subalterna de, no gozo da sua influência sobre o meio social, estabelecer a conexão entre as comunidades e as autoridades coloniais. Na verdade, todas as potências coloniais dependiam do chefe tradicional ou designado, como elemento nuclear da estrutura administrativa.

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Imagens 4 e 5: sepulcro de Ntxayi-Ntxayi em Nhampfunwine

Fonte: Foto do autor

No estado de Gaza poucos chefes tradicionais sobraram, pois as autoridades portuguesas temendo um presumível levante, trataram de deportar muitos deles. As deportações não significaram, efectivamente, o não reconhecimento do papel dirigente dos chefes tradicionais para a consecução dos objectivos do governo colonial. Este reconhecimento salienta-se nos seguintes pronunciamentos de Mouzinho de Albuquerque:

Os pequenos chefes são auxiliares utilíssimos, indispensáveis mesmo para a administração e política naquelas vastas regiões onde, por vezes, um comando tem uma área de jurisdição muito superior à dos distritos administrativos da metrópole. Apenas os chefes poderosos, os que porfiem na desobediência é necessário suprimir (…) (Almeida, 1940: 541).

De facto, a administração portuguesa não dispensou a valiosa contribuição das autoridades tradicionais, tendo apenas alterado o seu estatuto de administradores locais para régulos ou regedores. A medida, baseada num senso de desprezo, visava diminuir o valor e o prestígio dos chefes tradicionais, pois régulo é sinónimo de rei pequeno, pelo que para os portugueses, os verdadeiros reis só existiam na Europa e não em África.

Tabela 1: Régulos da sede do Concelho de Gaza

Nr Nome do regedor Regedoria Área

1 Matsenhengue Matavele Chirrinzene P. Sede

2 Estevão Nhacassane Mucavele (Mpfutani)

Chiluane P. Sede

3 Joaquim Bila Jovucaze P. Sede

4 Punguine Bila Langoene P. Sede

5 Vicente Simbine Carre P. Sede

6 Uamutsotso Arone Manhique Magola P. Sede Fonte: adaptado do Anuário de Moçambique, 1958.

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4.1.1. Um episódio de usurpação do poder Há registo de um episódio de usurpação, ou mesmo, recuperação do poder da estrutura linhageira anterior ao Estado de Gaza em Xai-Xai. O líder de Xai-Xai, Horácio Ndlamini relata o seguinte:

(...) Com a saída de Ndlamini Ntxayi-Ntxayi de Feniseleni (regedoria de Chiluane, como passou a ser designada a região no período colonial, em referência a Xilwani Ndlamini, filho de Ndlamini Ntxayi-Ntxayi), como consequência da pressão do regime colonial por ele ter-se recusado a assumir o cargo de régulo, o poder tradicional foi assumido por Xilwani Ndlamini, seu filho. Sucessivamente, com a morte de Xilwani, e em obediência ao critério de sucessão de pai para filho, Mayiwani Xilwani Ndlamini também assumiu o poder.Mayiwani tinha demasiada confiança num dos seus indunas (conselheiros) de nome Mpfutani Mucavele que lhe representava com regularidade nos encontros convocados pelo administrador colonial. Nesses encontros ele recebia orientações para o régulo, no entanto, não as fazia chegar. Por outro lado, quando lhe mandassem chamar o régulo para as audiências com o administrador, este oferecia bebida ao régulo e ia aos encontros em sua representação, fazendo passar uma imagem de bêbedo ao seu régulo junto das estruturas administrativas coloniais, como forma de conquistar a confiança destas.A situação agravou-se quando, em 1949, o administrador organizou uma feira comercial de gado em Denguene. Na circunstância Mpfutani engendrou mais uma das suas artimanhas e, como de costume, ofereceu aguardente ao régulo sob o pretexto de que ia representá-lo na feira. E, procurou os criadores de gado que já tinham informação da vinda de compradores brancos para a exposição/feira de venda de gado a quem passou a falsa informação sobre o adiamento do evento. Nestas condições, o administrador fez-se ao local com os compradores que não encontraram expositor algum. Revoltado, o administrador procurou saber de Mpfutani o que estava acontecendo e este respondeu que o régulo tinha-se embebedado e comunicado aos criadores que a exposição tinha sido adiada. Para agravar a situação, Mpfutani levou o administrador à casa do régulo Mayiwane, onde este testemunhou o estado de mela em que este se encontrava. Consequentemente, o administrador retirou o distintivo a Mayiwani e empossou Mpfutani Mucavele em seu lugar (...).

A partir desse momento o poder tradicional passou para a família Mucavele que, não sendo a família real representante do Estado de Gaza, tinha seu prestígio limitado ao restrito círculo do seu antigo domínio linhageiro que, por sinal, coincidia com o centro do poder dos Ndlamini, o regulado Chiluane. Refira-se que os Mucavele tinham sido dirigentes da área onde mais tarde veio a ser instalada a sede administrativa do Estado de Gaza em Xai-Xai. Por conseguinte, a acção de Mpfutani foi entendida como vingança pelo facto de, aquando da invasão nguni, o então chefe local Mazengani Mucavele, seu pai, ter sido colocado na condição de cativo de Ntxayi-Ntayi Ndlamini, por ter tentado rebelar-se contra aquele dirigente. 4.2. Legitimação da autoridade tradicional no Xai-Xai actual- devolução do poder aos Ndlamini Ntxayi-Ntxayi Com a independência nacional, o governo moçambicano, aplicando a filosofia de tendência marxista de criação do “homem novo” e de escancaramento de todos os sinais residuais do regime colonial português considerou que os chefes tradicionais tinham sido fiéis servidores do colono e, as suas actividades, como traços do obscurantismo que se pretendia combater.

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Na sua análise sobre os factores que facilitaram a inserção da RENAMO em algumas comunidades moçambicanas, Geffray (1991) entende que as medidas tomadas pelo governo, entre as quais o bloqueio da acção das autoridades tradicionais serviram de pretexto para o apoio daquelas lideranças à RENAMO, tal foi o exemplo do distrito de Erati na província de Nampula. O cenário exposto por Geffray não ocorreu em Xai-Xai pois, apesar do relativo afastamento entre as autoridades comunitárias e o governo, estas mantiveram-se fiéis, limitando-se a interpretar esta situação à luz da tradição. A avaliar por Dava et al (2003: 11), este tipo de interpretação era comum entre as autoridades tradicionais no período imediatamente posterior à independência nacional, como pode-se constatar no seguinte fragmento:

(...) certas manifestações sócio-culturais, como cerimónias de pedido de chuvas e rituais de combate às pragas, foram consideradas práticas obscurantistas e, consequentemente, desencorajadas. A partir de então, as comunidades rurais começaram a ter dificuldades na interpretação de fenómenos cósmicos, como as secas, cheias e ciclones. Mesmo as causas das guerras surgidas a seguir à proclamação da independência não foram explicadas a partir de conjunturas políticas e económicas internas ou externas, mas como resultado da revolta dos espíritos dos antepassados (...).

O período que se estende de 1990 em diante, na história da autoridade tradicional em Moçambique é de reconciliação entre estas e as autoridades governamentais. Os grupos dinamizadores, organização administrativa dos bairros instituída logo após a proclamação da independência nacional, tinham sido o principal elo de ligação entre as estruturas administrativas centrais e as comunidades locais. Estes exerciam, segundo Dava et al (Ibid.: 15), diversas tarefas tais como:

(...) Orientar, coordenar e controlar as comissões dos quarteirões, no âmbito da vigilância popular, saúde, higiene, saneamento do meio e habitação, assuntos sociais, alfabetização, educação, cultura, desporto, informação e propaganda; apoiar, orientar e dinamizar a vida económica do bairro, nas cooperativas de produção e de consumo; apoiar o funcionamento dos postos e centros de saúde, maternidades e escolas; organizar os residentes para o combate à candonga (especulação) e no controlo do abastecimento (...).

A Constituição de 1990 colocava fim ao papel dos Grupos Dinamizadores e abria uma nova página na história de Moçambique. Iniciava assim, um processo de auscultação liderado pelo Ministério da Administração Estatal no sentido de encontrar os melhores mecanismos para o reconhecimento das autoridades comunitárias. Este processo alastrou-se por praticamente toda a década de 1990, tornando-se o centro do debate, quer a nível académico, quer político, até que no ano 2000, através do Decreto 15/2000 do Conselho de Ministros, de 20 de Junho estas formas de poder foram formalmente reconhecidas pelo governo. À luz deste decreto a autoridade comunitária seria exercida pelos chefes tradicionais, secretários dos bairros, chefes das aldeias e outros líderes reconhecidos pelas comunidades.

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Em Xai-Xai foram instituídas autoridades tradicionais a dois níveis, em conformidade com a antiga estrutura político-administrativa do Estado de Gaza, em que tínha-se um chefe (distrital) e os tinduna (locais). Nesta nova organização, os Mucavele já não podiam exercer o controlo do poder a nível distrital, tendo-se limitado a sua acção ao local, sendo que Horácio Ndlamini foi reconhecido como legítimo líder de nível distrital, seguido pelos representantes das localidades, bairos, etc. A legitimidade dos Ndlamine Ntxayi-Ntxayi reside, em primeiro lugar, no facto de o nome do distrito coincidir com o nome do seu ancestral e antigo dirigente de, praticamente, todo o distrito. Por outro lado, a crença na acção dos espíritos nguni na vida da comunidade, sobretudo no controlo de eventos de natureza climatérica e na ocorrência de guerras e outras tragédias exerce uma influência igualmente importante nesse sentido. A devolução do poder aos Ntxyi-Ntxayi significou o fim da contenda entre os líderes Ndlamini e Mucavele. Esta pacificação foi cimentada com o casamento entre um filho do Mucavele e uma filha do Ndlamini, como se da continuidade do processo de assimilação iniciado durante a vigência do Estado de Gaza se tratasse. A divisão da autoridade tradicional à luz da antiga estrutura administrativa do Estado de Gaza, ainda que não documentada, salienta-se no próprio processo de governação levado a cabo pelo governo distrital. Com efeito, Felicidade Mapilele, Secretária Permanente do Distrito de Xai-Xai afirma ser prática recorrente a visita do Administrador do Distrito aos diferentes postos adminitrativos e à cidade de Xai-Xai para auscultação dos anseios e demandas das comunidades. Nestas deslocações, o Administrador faz-se, regularmente, acompanhar pelo líder Ndlamini. De igual forma, nas visitas presidenciais e em outras cerimónias públicas, o líder Ndlamini tem encabeçado as preces de evocação dos antepassados.

Conclusão A integração de Xai-Xai na estrutura político-administrativa do Estado de Gaza no século XIX traduziu-se no primeiro momento em que a região viu-se sob liderança de um governo centralizado, tendo as estruturas das antigas chefias linhageiras passado à condição de autoridade tradicional. A política de assimilação adoptada pelo Estado de Gaza conduziu a uma reconfiguração da autoridade tradicional, fundamentada no controlo da ligação entre os vivos e os ancestrais. Com efeito, os espíritos dos ancestrais nguni passaram a ser reconhecidos como legítimos espíritos defensores do Estado seguidos pelos espíritos dos ancestrais das estruturas linhageiras locais. Através da assimilação, o Estado de Gaza conseguiu incutir seus usos e costumes junto das comunidades locais. A inserção dos dirigentes nguni em Xai-Xai, apesar da relativa passividade, observou pequenos confrontos, como o liderado pelos Mucavele, cujo chefe foi tornado cativo de Ntxayi-Ntxayi.

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Com a colonização portuguesa, Ntayi-Ntxayi não aceitou submeter-se à condição de régulo que lhe era imposta, facto que culminou com a sua fuga de Xai-Xai para Nyampfunwine, onde passou o resto da sua vida. O primeiro régulo saído da antiga estrutura administrativa do Estado de Gaza foi Xilwani Ndlamini que deu nome à regedoria Chiluane. Este foi sucedido por Mayiwani Ndlamini que mais tarde veio a ser usurpado o poder por Mpfutani Mucavele. A acção de Mucavele foi entendida pelos Ndlamini como uma espécie de vingança pelo tratamento que seu pai tinha sofrido na tentativa de resistência. Refira-se que o poder manteve-se a cargo dos Mucavele durante cerca de 40 anos até à altura em que o governo moçambicano decidiu reconhecer as autoridades comunitárias através do decreto 15/2000 de 20 de Junho. O reconhecimento do papel das autoridades comunitárias traduziu-se na aceitação da antiga estrutura administrativa do Estado de Gaza. Portanto, a alteração do nome da cidade de João Belo para Xai-Xai foi, na essência, uma forma de reconhecimento de Ntxayi-Ntayi como antigo dirigente. Desta forma, o poder foi dividido a dois níveis, sendo que os Ndlamini, representantes do antigo Estado de Gaza assumiram o poder de nível distrital e, as antigas estruturas linhageiras desdobram-se pelo poder tradicional local em coordenação com outras formas de poder local que não sejam, necessariamente, da esfera tradicional. Na essência, a autoridade administrativa do Estado de Gaza conseguiu manter-se ao nível da autoridade tradicional em Xai-Xai através de uma conjugação de factores como a manipulação da crença generalizada na acção dos ancestrais sobre o dia a dia dos vivos; adopção de uma política de assimilação e respeito pelas estruturas linhageiras locais. Bibliografia ALMEIDA, A. (1940). “O Esboço Histórico das Organizações Tradicionais dos Régulos de Angola e Moçambique: os grandes régulos, os chefes indígenas”, in: Congresso do Mundo Português: Publicações XV volume: memórias e comunicações apresentadas ao Congresso Colonial (IX Congresso), Lisboa. BOURDIEU, Pierre. (1989).O Poder Simbólico. DIFEL: Lisboa. COVANE, Luís. (2001).O Trabalho Migratório e a Agricultura no Sul de Moçambique (1920-1992). Maputo:PROMEDIA. CRUZ, Daniel. (1910).Em Terras de Gaza. Porto: Gazeta das Aldeias. DAVA, Fernando et. al. (2003).A Participação das Autoridades Comunitárias na Governação Local (Actas do Seminário de Capacitação das Autoridades Comunitárias).Maputo:ARPAC.

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DAVA, Fernando et. al. (2003).Reconhecimento e Legitimação das Autoridades Comunitárias à Luz do Decreto 15/2000: O Caso do Grupo Etnolinguístico Ndau. Maputo: ARPAC. DUARTE, Ricardo Teixeira. (1976).A Expansão Bantu e O Povoamento do Sul de Moçambique: algumas hipóteses.Maputo. FERNANDES, Tiago de Matos. (2009).Poder Local em Moçambique: Descentralização, Pluralismo Jurídico e Legitimação. Porto: Edições Afrontamento. FERREIRINHA, Isabella Maria Nunes & RAITZ, Tânia Regina. (2010).As Relações de Poder em Michel Foucault: reflexões teóricas. In: ISSN. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro. FLORÊNCIO, Fernando. (2005).Ao Encontro dos Mambos: Autoridades Tradicionais vaNdau e Estado em Moçambique. ICS: Lisboa. GEFFRAY, Cristian. (1991). A Causa das Armas. Antropologia da Guerra Contemporânea em Moçambique. Porto: Afrontamento. HALL, Martin. (1987).The Chanchinga Past: Farmers, Kings and Traders in Soutern Africa, 200 – 1860. Cape Town: David Philip. JUNOD, H. (1974).Usos e Costumes dos Bantos: A vida duma tribo do Sul de África. Lourenço Marques: Imprensa Nacional de Moçambique. 2ª edição. LIESEGANG, Gerhard J. (1996). Ngungunhane: A figura de Ngungunhane Nqumayo, rei de Gaza 1884-1895 e o desaparecimento do seu Estado. Maputo: ARPAC. M’BOKOLO, Elikia. (2011).África Negra: História e Civilizações do Século XIX aos Nossos Dias. Vol II. Lisboa: ISBN. PAULME, Denise. (1996).As Civilizações Africanas. Mira-Sintra: Publicações Europa-América. DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA UEM. (1999).História de Moçambique. Maputo: Livraria Universitária. Vol. I. _______________________________. (2000).História de Moçambique. Maputo: Livraria Universitária. Vol. II. SOUTO, Amélia Malta de Matos Pacheco Neves de. (1994).Guia Bibliográfico para o Estudo da História de Moçambique (200/300 – 1926/30). Maputo: UEM.

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Entrevistados

1. Felicidade Mapilele, 17 de Abril de 2018, Xai-Xai. 2. Filipe Nataniel Manhique, 06 de Abril de 2018, Xai-Xai. 3. Gabriel Dove, 23 de Abril de 2018, Xai-Xai. 4. Horácio Obadias Ndlamini, 05 de Abril de 2018, Xai-Xai.