em torno da embriaguez reflexões sobre o imaginário poético baudelairiano
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Este artigo trata sobre o psicológico e o processo criativo poético de Baudelaire, associando a evolução de sua escrita com os gêneros literários.TRANSCRIPT
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Dissertação final de Iniciação Científica (Nível I)
Em torno da embriaguez: reflexões sobre o imaginário
poético baudelairiano
Orientando: Rômulo Titton Dezen
Orientadora: Profª Drª Flávia Nascimento
Resumo
Com base na leitura das principais obras de Baudelaire e de ensaios críticos da área de
poesia e teoria literária, o presente trabalho expõe reflexões a partir de uma imagem
importante e corrente na obra de Baudelaire: a embriaguez, um estado psicológico/poético
atingido por meio de estímulo sensorial ou por meio da própria poesia. O tema que aqui é
estudado reflete as preocupações do escritor quanto ao alcance do Ideal e ao distanciamento
dos terrores da realidade, tratado por vezes como Spleen; dois estados provenientes também
da embriaguez que permutam entre si e atravessam a obra baudelairiana. A embriaguez está
sempre ligada ao funcionamento do processo criativo e ao imaginário poético. Esta condição
de distanciamento do mundo também será analisada em correlação aos gêneros literários,
buscando-se com isso entender as especificidades genéricas prosa, poesia metrificada e poesia
em prosa.
Palavras-chave: Embriaguez. Baudelaire. Ideal. Imagem. Imaginário. Poesia.
Parte I e II – Mapeamento do tema embriaguez e estudo de suas diferentes
manifestações na obra baudelairiana
A embriaguez é um tema que sempre esteve presente na obra de Baudelaire (1821-
1867), entretanto, está mais evidenciada na antologia Le Vin dentro de Les Fleurs du Mal, na
obra Les Paradis Artificiels e em alguns poemas de Petits poèmes en prose (Le Spleen de
Paris). Neste contexto, Baudelaire expõe algumas razões para a embriaguez, como a
suavização do passar do tempo, que o tortura. Há outro motivo que, embora não seja
explícito, é lembrado por Max Milner: trata-se da sua necessidade de alívio devido aos seus
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problemas físicos causados pela sífilis. Seus métodos de anestesiamento tranquilizavam-no e
o tiravam da depressão. De modo geral, a embriaguez aparece concretamente na vida do poeta
da Modernidade como uma solução paliativa sempre prolongada a fim de atenuar os fardos da
realidade e manter a criatividade aguçada para desfrutar exponencialmente do poder poético.
Assim, como se pode ler no poema “Enivrez-vous”, vale o lema: “Embriagar-se sem cessar é
preciso”.1
O tema embriaguez aparece nos textos de Baudelaire de formas variadas, com o fim de
atingir um âmbito superior à realidade, o infinito, o “Ideal”. O estado desejado de êxtase é ora
atingido através do vinho, ora através de substâncias alucinógenas e ora por intermédio de
variados elementos.2 Em As Flores do Mal, o vinho é o mais aparente revigorante do poeta e
age nos cinco poemas da série: tanto sobre o homem laborioso como sobre os amantes,
assassinos, moribundos e solitários; ele é uma entidade personificada verdadeiramente
harmonizadora, que evoca cânticos, sacia os que têm sede, traz felicidade e preside às
comemorações.
“A alma do vinho” é o poema que introduz o leitor ao significado do Vinho para
Baudelaire, e abre caminho aos outros poemas que também se constroem em torno dessa
imagem poética. Este primeiro poema exalta, no nível divino, a beleza do processo árduo que
é a produção da bebida; nele, também são exaltados a gratidão e deleite eternos do próprio
vinho, que aparece personificado. Em “O vinho dos trapeiros”, Baudelaire enaltece as virtudes
do vinho retratando a relação entre o poeta e o trapeiro, ambos talentosos trabalhadores da
noite que juntam seus “trapos” para formar “gloriosos projetos” que os igualam em suas
virtudes e em sua condição. O vinho age tanto sobre as aptidões do poeta para criar, quanto
sobre a “virtude”3 do homem que carrega o imenso saco repleto de trapos. Sobre os homens, o
vinho age como mágica.
O poema seguinte, “O vinho do assassino”, põe em cena a embriaguez como ritual que
propicia liberdade ao criminoso que matou a mulher que o atormentava. Assim como no
poema passado, o vinho “Terrasse les méchants, relève les victimes” (p.362); entende-se,
1 Nesse trabalho utilizaremos as seguintes traduções da obra de Baudelaire; duas bilíngues: As flores do mal,
Ivan Junqueira (2012); Pequenos poemas em prosa, Dorothée de Bruchard (2011). E uma monolíngue: Os
Paraísos Artificiais, José Saramago (1971). 2 Nem sempre é evidente o que leva o poeta à embriaguez, contanto, sempre há sugestões nos textos: seja de
entorpecentes, dadas por meio de ambiguidades de palavras como “viajava” (vide “O bolo”, Spleen de Paris,
p.85), ou de estímulos perceptivos como a visão do céu, os odores, a paisagem, sons ou ruídos. 3 Assim como foi dito, este trabalho foi feito com amparo de edições bilíngues. Neste caso, “vertu” (p.362, v.
12) foi traduzida por Ivan Junqueira para “talento imenso” (p.363) tendo em vista o ritmo, a rima e o metro.
Entretanto, as traduções dos termos do original utilizadas neste trabalho, que foram feitas por mim por sugestão
da orientadora, têm em vista unicamente o conteúdo; desse ponto de vista, no caso a melhor escolha é mesmo
“virtude”.
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pois, que o sujeito deste poema não é propriamente “mau”; destarte, o vinho em momento
algum condena este homicida sem remorsos, ele liberta a mulher da exaustão e o homem de
seus tormentos. Enfim, o licor eleva o assassino a tal ponto que este se encontra acima de
tudo, inabalável mesmo diante da culpa que por ele é reconhecida. Na penúltima e na última
estrofes é possível identificar uma imagem muito presente em toda a coletânea do vinho: o
sono, como descanso supremo decorrente dos efeitos da embriaguez.
“O vinho do solitário” faz uma descrição da influência do vinho na relação entre o
homem, como amante solitário, e Adelina, mulher galante e libertina. A garrafa, que é quase
insuficiente para sanar as inquietações do admirador, traz ao apaixonado a esperança, a
juventude, a vida, o orgulho e a riqueza, bens que o aproximam de “Deus”. Vê-se, cada vez
com mais recorrência nesse conjunto de poemas, a embriaguez como meio para sanar as
angústias e misérias humanas.
O último poema da série, “O vinho dos amantes”, contrapõe-se aos princípios da
embriaguez observados nos poemas “O vinho do solitário” e “O vinho dos trapeiros”, pois o
ritual do vinho, naqueles poemas, visava à libertação dos humanos perante suas angústias.
Com os amantes, o vinho revela todo seu poderio como um meio para tentar uma vida sem
impedimentos, uma fuga rumo a um “paraíso de sonhos”. Os amantes, embalados e
“cavalgando sobre o vinho”, partem em busca de uma “miragem longínqua”.
A partir desta terceira parte de Les Fleurs du Mal, entende-se que a manifestação da
embriaguez pelo vinho, nesta obra, não tem restrições. O sentimento de enlevo atinge os mais
distintos indivíduos nas mais distintas ocasiões, como naquelas que foram apresentadas:
homicídio, trabalho, solidão, amor e falta de esperança. A embriaguez se apresenta, na
maioria das vezes, como um tratamento necessário – ou como um meio – para aqueles que
desejam a languidez, a fuga, ou o abrandamento das dificuldades da vida. Entretanto, o efeito
proveniente do vinho vai além disso: ele também é um meio para chegar a um “paraíso” que
nada tem de religioso e que pode ser visto, por vezes, como uma espécie de fuga de uma
realidade insatisfatória.
Diferentemente da antologia sobre o vinho acima comentada, em Le Spleen de Paris
(Pequenos poemas em prosa), há pouca ênfase quanto às substâncias que podem ser fonte de
embriaguez. O foco dos poemas está no ambiente sonhado e nas ilusões criadas. Assim, a
embriaguez, nos poemas em prosa de Baudelaire, manifesta-se nas fantasias e, por
consequência, estimula a fluência poética e traz um pouco de recreação, outro fruto decorrente
do efeito, que ajuda a salvar o devaneador dos fardos do tempo e dos horrores do mundo real.
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A embriaguez neste livro sempre está nos sonhos e delírios, mas estes nem sempre aparecem
de forma acolhedora ou proporcionam ao eu poético a almejada fuga da realidade.
Em “Embriaguem-se”, Baudelaire retrata a embriaguez em si, o que ilustra, de modo
geral, como ela aparece em todos Os pequenos poemas em prosa. Apesar de nem sempre estar
evidentemente indicada, seu efeito sempre está presente; às vezes o que o embriaga é a
paisagem ou um perfume, bem como ele diz: “De vinho, poesia ou virtude, a escolha é sua.
Mas embriaguem-se.” (p.177).
“As tentações, ou Eros, Pluto e a glória” é um poema onírico em que parecem
coincidir o eu-lírico e o próprio Baudelaire. O sonho começa a ser desenvolvido quando três
demônios aparecem. Cada um deles oferece ao narrador/eu poético um tipo de poder supremo.
O primeiro deles lhe propõe tornar-se um ser múltiplo (dando-lhe o poder de “sair de si
mesmo para esquecer-se em outrem, e de atrair as outras almas até confundi-las com a sua),
detentor do cargo supremo de “mestre da matéria viva”. O segundo oferece “algo” que tudo
consegue e substitui. O terceiro, a Diaba, oferece-lhe conhecer o poder que ela detém, que
chega por meio de uma gigantesca trombeta ornada, que trazia, por sua vez, tiras com
manchetes de todos os jornais do mundo e ecoaria o nome de Baudelaire (ou o do eu
lírico/narrador) até o mais longínquo planeta. Em meio a todas estas ofertas, todavia, o eu-
lírico, envolto pela embriaguez do sono, efemeramente fortalecido e orgulhoso, desdenha
todas as propostas. Responde da seguinte forma ao primeiro deles:
Muitíssimo obrigado! Não me interessa esta pacotilha de seres que, sem dúvida, não
valem mais que meu pobre eu. Embora sinta alguma vergonha em relembrar, nada
quero esquecer. E mesmo que não o conhecesse, velho monstro, sua misteriosa
cutelaria, seus frasquinhos equívocos, as correntes em que seus pés se enredam são
símbolos que explicam com suficientemente clareza os inconvenientes da sua
amizade. Fique com seus presentes. (p.111)
Apesar de o poema expor aspectos que não podem ser chamados de agradáveis, estes
não são necessariamente ruins. Além disso, é possível dizer que há nele nuances que dialogam
com a depressão de Baudelaire.4 O poeta, mergulhado na embriaguez do seu sono, valoriza-
se, renegando, precipitadamente, todas as propostas que lhe são feitas. Entretanto, assim que
acorda, vê-se desprotegido pela força e orgulho que o envolviam durante o adormecimento, e
se arrepende de sua decisão. Contrariamente ao que se passa no momento em que está
4 Baudelaire, depois de ter vivido diversas experiências narcóticas, passou a sofrer de uma depressão ainda mais
acentuada; tratava-se de um efeito colateral oriundo de uma espécie de queda emocional, provocada
principalmente pelo ópio, algo que sempre ocorre com o usuário após o fim dos efeitos da droga (cf. “Torturas
do ópio”, Um comedor de ópio, em Os Paraísos Artificiais).
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adormecido, em que tem o sentimento de dominar o ideal e a realidade, quando acordado, o
narrador/eu lírico se dá conta de não poder alcançar seus desejos quiméricos. Portanto, após
tamanho desdém, ele se desculpa e implora fortemente aos demônios que voltem, mas sabia
que os demônios jamais retornariam, pois os havia intensamente ofendido.
Tomadas em conta as lembranças do tempo vivido fora da realidade, e não obstante a
questão anterior de que nem sempre faz-se uma ilusão puramente associada a sentimentos
desejáveis, compreende-se que os resultados da embriaguez são complexos quando ela está
relacionada a fantasias ou a sonhos na obra baudelairiana, pois o que se lê nos textos, como
no último poema evocado, são vivências integrais em um universo paralelo à “realidade”.
Em Paraísos Artificiais, o tema principal a ser tratado é, de fato, concretamente, a
embriaguez. Baudelaire, lúcido, explica as formas de utilização das substâncias das quais faz
uso, descreve com minúcias suas experiências anteriores e posteriores ao uso dos
entorpecentes que, no caso, são o ópio e o haxixe, considerados como os principais meios
para alcançar o ideal e o infinito.
O que se compreende, com a embriaguez de maravilhas e prazeres trazida pelo vinho
em As Flores do Mal, de 18575, é, sem dúvida, muito próximo do ideal e da satisfação. Já em
Os Pequenos poemas em prosa [O Spleen de Paris], escrito entre 1855 e 1864 (mas publicado
em 1869), há tanto sentimentos próximos do ideal, como outros distorcidos e muito mais
aproximados da realidade. Em Os Paraísos Artificiais, o efeito de embriaguez se torna, de
fato, confuso e sombrio, há sentimentos aprazíveis misturados a torturas e paranoias. Vê-se,
portanto, uma certa “decadência” (“queda”) do efeito produzido pela embriaguez: a beleza
incondicional dos poderes do vinho, por volta de 1850, passa, já devido ao impacto sofrido
pelo poeta com o uso de substâncias mais graves, às realidades hibridizadas de Spleen de
Paris, em torno de 1859; e finaliza com as torturas e grandes inconstâncias em 1860. Esse
percurso assinala o desgaste do poeta conforme o passar do tempo que leva o homem ao
declínio, torturando-o. Essa preocupação é um tema que perpassa toda obra baudelairiana.
Os Paraísos Artificiais, obra publicada já nos últimos sete anos de sua vida, dá mostra
de precauções que expressam o quão inconstantes são as manifestações dos efeitos da
embriaguez produzidos pelo haxixe e pelo ópio. Assim está no excerto seguinte:
Presumo que haveis tido a precaução de escolher bem teu momento
para esta aventurosa expedição. Todo o desregramento perfeito precisa de
5 Não se sabe ao certo quando Baudelaire começou a escrever esta obra, mas pelo que foi registrado, alguns dos
poemas que a compõem começam a serem escritos a partir de 1841 e continuam durante toda a sua vida,
passando por todas as devidas alterações em suas respectivas publicações: 1857 (primeira edição), 1861, 1866.
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um vagar perfeito. Sabeis, por outro lado, que o haxixe cria a exageração,
não só do indivíduo, mas também da circunstância e do meio; não tendes
deveres a cumprir exigindo pontualidade, exactidão; nenhuns desgostos de
família, nenhumas dores de amor. Há que ter cuidado. Esse desgosto, essa
lembrança de um dever que reclama a vossa vontade e atenção num minuto
determinado, viriam soar como um toque de finados através da embriaguez e
envenenariam o prazer. A inquietação tornar-se-ia angústia; o desgosto,
tortura. Se observadas todas estas condições prévias, o tempo está bonito, se
estais colocado em meio favorável, como uma paisagem pitoresca ou um
apartamento poeticamente decorado, se além disso podeis contar com um
pouco de música, então tudo correrá bem. (Saramago, 1971. p.23).
Parte III – Especificidades das formas genéricas prosa, poesia metrificada e poesia em
prosa sob o olhar do tema embriaguez.
Cada gênero poético praticado por Baudelaire para elaborar sua obra foi adotado
cuidadosamente. No contexto desse estudo, o tema da embriaguez se expressa nas seguintes
formas genéricas: prosa, poesia metrificada e poema em prosa, que são empregados de forma
a se alinharem às manifestações sentimentais do poeta em cada texto seu. Em O vinho, por
exemplo, de acordo com o que foi dito anteriormente, o que marca a embriaguez é sua
manifestação harmoniosa, sonora (inclusive por meio de cânticos), exclamativa e fluida.
Portanto, para poder expressar tais sensações, nenhum gênero se encaixaria melhor do que a
poesia metrificada, que compartilha os mesmos traços expressivos desejados por Baudelaire,
só que de forma material: nos planos visual (metro) e sonoro (rima).
Alain Vaillant deixa claro que a poesia, por meio de sistemas extraordinários,
estabelece uma relação privilegiada entre as palavras e as coisas. Ela reativa a linguagem, o
sistema arbitrário e convencional de comunicação. Isso serve de explicação genérica para o
modo de produção de significados que os poetas constroem quando versificam seus poemas.
Em outras palavras, a “produção extraordinária de significados”, impressão experimentada a
partir da leitura de poemas, é a reativação da linguagem por meios não convencionais
(poéticos). Este resultado de “exaltação” que se manifesta no efeito da embriaguez é inerente
à linguagem poética e é mantido pela sonoridade e pelo lirismo, abrindo diversas
possibilidades de interpretação. Vale lembrar que quando se diz “dificuldade” de
interpretação ou “falta” de sentido no poema, trata-se de uma série de “mecanismos de
truques”, como dizia Baudelaire, que apontam para figuras de linguagem, imagens e alegorias
criadas pelo poeta, aspectos enriquecedores do texto poético.
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Em contrapartida, a prosa é tomada como opositora da poesia metrificada, pois, ao
contrário desta, o texto escrito em parágrafos e dividido por linhas não é sonoro nem rítmico,
consequentemente, o texto corrido não dá ênfase à forma, mas sim ao conteúdo. Logo, a prosa
se apresenta como um gênero perfeito para a descrição, narração e argumentação. Visto isso,
não havia melhor maneira para Baudelaire descrever suas “aventuras” e experiências com o
haxixe e o ópio do que com a prosa, o que se concretizou na coletânea de ensaios Paraísos
Artificiais.
O gênero poema em prosa conta, de acordo com Stalloni, com características tanto da
prosa como da poesia metrificada, mas ainda é um “gênero incerto”, como diz esse autor, pois
não se fundamenta em padrões estéticos próprios, embora seja possível diferenciá-lo da prosa
e da poesia. Não há tantos traços singulares desse tipo de texto como há nos outros gêneros já
cristalizados. Mas de qualquer forma, essa mistura entre diferenças e semelhanças dos outros
formatos é o que torna os “poemas em prosa” um estilo único de texto. Quando se pensa em
um poema em prosa, vem à mente um texto curto, que é fechado em si mesmo, e que pode ter
um título. É uma variedade de escrita que foge ao conteúdo informativo, argumentativo e
dialógico, mas que não deixa de se identificar com o espírito narrativo e descritivo. O que
rege o poema em prosa é uma certa heterometria aplicada ao texto prosaico, palavras com
sentido poético empregadas com ritmo variável, colocadas em linhas.
Com essas considerações, é possível compreender que O Spleen de Paris revela o
efeito de embriaguez manifestado de forma consoante com o gênero no qual foi concebido.
Os momentos de êxtase e de transcendência na obra são transmitidos ao leitor de forma
narrativa, mas não se aproximam em nenhum momento da lucidez de Baudelaire em Os
Paraísos Artificiais, e evidentemente não possuem a cadência rítmica de As flores do mal,
coletânea que, como se sabe, caracteriza-se por um grande rigor formal. Como já foi dito, os
poemas desta obra póstuma não continuam a refletir um nível tão alto de harmonia como na
série O Vinho. Os poemas em prosa demonstram uma manifestação da embriaguez que tange
um nível complexo de sentimentos, uma confusão que tende menos para o fantasioso e mais
para o real. Fazem parte disso narrativas do cotidiano, incluindo personagens pobres de Paris,
bem como alguns problemas sociais, entre eles, a fome, bem evidente em vários poemas da
obra, como: “Os olhos dos pobres”, “O Bolo” e “O brinquedo do pobre” (p.133, 85, 99).
Apesar de expostos nos textos assuntos graves e sérios, ainda é perceptível, nesses textos, esta
mistura que oscila entre o Spleen e o Ideal, amargura e embriaguez, conteúdo rítmico e
poético interpretativo.
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Parte IV – O alcance e o sentido do tema/imagem embriaguez na obra de Baudelaire
Feita a leitura crítica da obra baudelairiana, é possível afirmar que a embriaguez tem
grande extensão e complexidade. Menos abrangente do que o todo “imaginário poético”, a
embriaguez é uma condição atingida por meio de uma causa estimuladora, seja por simples
percepções empíricas, como a visão do céu e das nuvens que chegam ao poeta (vide “O
Bolo”), ou por substâncias que levam à embriaguez concretamente, como o vinho que faz
com que os dons do trapeiro se exaltem, ou mesmo o ópio que eleva o poeta a tão alto grau
que o faz apagar a consciência do tempo. Esta constatação abrange o tema embriaguez para
muito além da antologia O Vinho e dos delírios contados em Os Paraísos Artificiais, que
expõem meios mais óbvios de alteração dos estados de consciência. Baudelaire deixa claro no
poema “Embriaguem-se” que a fertilização de seu imaginário pode ser feita até com virtude
ou poesia. Seja qual for o modo, é necessário estar sempre com seu imaginário ativo, isto é,
embriagar-se sempre, “de vinho, poesia ou virtude” (p.177), sendo a escolha dos meios,
talvez, menos importante. Embriagar-se, isso sim, é o que conta, para aquele que deseja
superar os fardos da vida que levam os humanos, inexoravelmente, ao declínio.
A imagem da embriaguez expõe a representação do real de maneira distorcida e (ou)
adaptada ao gosto do imaginário do poeta, sempre levando em conta seu estado de lucidez.
Baudelaire constrói suas imagens por metáforas e comparações. Embora prefira esta última
forma, símbolos e figurações que exigem um nível mais profundo de interpretação também
aparecem em sua obra com frequência.
Parte V – A imagem poética
A “Imagem poética”, segundo o estudo de Gérard Dessons, é tradicionalmente “uma
coisa sendo chamada por um outro nome que não o seu”. O significado deste expediente é
ligado à analogia: a dissociação de um sentido da sua palavra, ou então, uma coisa
representando outra. Esse deslocamento abre o sentido do termo ao imaginário de quem
escreve.
Baudelaire tinha suas preferências quanto às figuras de linguagem, e optava
preferencialmente pela comparação, preterindo a metáfora. Mas, entre aquela e a imagem, a
última é a predileta. Os recursos metafóricos fazem parte do processo da criação da imagem,
que é um conjunto complexo e fluido que se adequa à necessidade de Baudelaire de trazer aos
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seus textos verdades criadas por ele, pouco convencionais ou mesmo totalmente inéditas. Para
por em forma poética seu desejo de representar o universo sem o ser humano, por exemplo,
(Dessons, p.68), o poeta se valeu incessantemente da imagem e da alegoria. Um exemplo
célebre do uso destes recursos, agrupamentos de figuras de linguagem, está no poema
“Correspondências” (poema IV de As Flores do mal), conforme é citado no trecho:
Comme de longs piliers qui de loin se confondent
Dans une ténébreuse et profonde unité,
Vaste comme la nuit et comme la clarté,
Les parfums, les couleurs et les sons se répondent (p.139).
A história da imagem muda conforme os manifestos literários, deste modo, é possível
afirmar que a experiência que é trazida ao mundo é indireta, pois tem-se na dissociação dos
sentidos um princípio da linguagem poética. A poesia moderna renovou este recurso poético
organizando a imagem como um retrato da dissolução do senso comum ou da coerência
lógica. Baudelaire faz isso com precisão: ao preferir uma letra maiúscula em vez de uma
minúscula, por exemplo, transforma o vinho, de uma simples bebida, em uma imagem que
remete a uma entidade maior, com personalidade deificada: O Vinho. Bem distante de
Baudelaire no tempo, mas mesmo assim ainda passível de comparação, na corrente literária de
Breton, de acordo com o estudo de Vaillant, entendia-se que “o imaginário é o que tende a se
tornar real”. A partir disso, os surrealistas, décadas mais tarde, usaram este artifício
linguístico na tentativa de unir dois termos completamente desconexos. Baudelaire o fez
muito antes, como fica claro em sua obra, toda ela estruturada pela oposição entre Spleen e
Ideal.
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