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Histórias das BEMM Rui Abreu

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Page 1: Em terras Latan

Histórias das BEMM

Rui Abreu

Page 2: Em terras Latan

Ficha técnica

Título: Em terras de Latan

Autor: Rui Abreu

Ilustrações: Francisco Machado, Helena Oliveira e Martim Silva

Arranjo gráfico: Graça Silva e José Plácido

Edição: Bibliotecas Escolares Marquês de Marialva

Coleção: Histórias das BEMM, n.º1, dezembro de 2015

Em terras de Latan de Rui Abreu está licenciado com uma Licença Creative Com-mons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.

Page 3: Em terras Latan

Aos que acreditam na paz e na harmonia entre os povos…

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Triiiiiiimmm…

Mesmo antes de ter terminado a aula e do tão esperado

“Podem sair!”, alguns dos meus colegas de turma já tinham ar-

rumado as coisas à socapa e segredavam entre eles: “Temos de

sair rapidamente! Não podemos perder tempo.”

“Onda MM. Novidade para gente miúda e graú-da! Chegou, hoje, à nossa Biblioteca, um novo

livro: Em terras de LATAN.”

“Em terras de LATAN?! Era este o segredo? Tanta agitação

por causa de mais um livro recém-chegado à BE? Não podia ser!

Até parece que é alguma novidade... Todos os anos, por altura

do Natal, surgem sempre novos livros.”

“Não vens, Lucas? Despacha-te!”

Como não queria ficar para trás, acompanhei-os na corri-

da desenfreada em direção à biblioteca. Saímos todos em gran-

de velocidade do Bloco D sob os gritos da funcionária:

“Meniiiiinooooos, o que é isto? Corriiiiiidas… lá fora. Aten-

çããããããão ao piso molhado… podem caiiiiir...”

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Só no polivalente é que me lembrei de que tinha o pão na

mão. Dei-lhe algumas dentadas… Comer e correr não dá muito

jeito de fazer! Não havia outra alternativa: comer o pão com

calma dar-me-ia, com certeza, o último lugar na corrida

para a BE. Evitei a rampa e com um único salto, ágil e certeiro,

galguei os três degraus. À entrada da biblioteca ainda tive tem-

po para guardar o resto do pão no bolso do blusão que o meu tio

me trouxera da Suíça e que eu recuperara umas semanas antes.

Esquecera-me dele durante algum tempo no bengaleiro da en-

trada da casa de banho dos rapazes.

“Caramba! Apesar do esforço não alcancei os primeiros

lugares.” À porta da biblioteca respirei fundo e entrei. “Tanta

corrida para isto?!” Os meus colegas tinham ocupado todos os

computadores. “Que falta de sorte!” Não tinha outra alternati-

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va a não ser ir à prateleira procurar um livro: “82-93 Literatura

infantojuvenil A”.

Nesse preciso momento, senti alguém tocar-me no ombro.

Era a funcionária da biblioteca, dirigindo-se a mim: “Não queres

dar uma vista de olhos pelas novidades?”

Para não ser indelicado, virei-me, os meus olhos percorre-

ram o escaparate de alto a baixo e fixaram-se num livro de capa

vermelha com o título em dourado: Em terras de LATAN. Sem-

pre de olho nos computadores para ver se algum deles ficava

livre, abri o livro por abrir…

Numa terra distante, em tempos que já lá

vão, vivia um marquês, viúvo, com os seus dois

filhos gémeos. Cansado de governar sozinho o seu

marquesado, sentia ter chegado a hora de aprovei-

tar a vida e conhecer o mundo. Na esperança de

evitar conflitos futuros entre os irmãos, decidiu

dividir o seu território, a terra de LATAN: o Mar-

quês de Alvamaria ficaria com LATAN norte e o

Marquês de Marialva com LATAN sul.

Desde crianças que se notavam diferenças

nos seus temperamentos, especialmente na época

do Natal. Tal como o seu pai, o Marquês de Marial-

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va adorava esta quadra: as ruas enfeitavam-se

com cores e luzes e em todas as casas se vivia o

espírito de Natal. Ele próprio se dedicava a deco-

rar algumas salas do palácio, especialmente a en-

trada onde uma grande árvore imperava, cheia de

bolas, fitas e luzes mul-

ticolores. Debaixo dessa

árvore, encontravam-se já

imensos embrulhos colo-

ridos, deixados pelo Pai

Natal, para serem distri-

buídos pelo velho mar-

quês a todas as crianças

que ali se dirigissem. Ao

lado da árvore, havia

igualmente uma grande

mesa repleta de iguarias

tradicionais do Natal.

Pelo contrário, o Marquês de Alvamaria de-

testava o Natal e todas as festividades desta épo-

ca. Ia sempre contrariado receber os outros meni-

nos, na companhia do seu pai, e assistir à Missa do

Galo. Achava tudo uma patetice e um gasto de di-

nheiro desnecessário. Para ele, o Pai Natal, essa

figura velha, gorda e barbuda, não existia. Se

existisse, ele já o teria visto, decerto, e o seu de-

sejo secreto já teria sido satisfeito. Contudo, nun-

ca se atrevera a criticar abertamente o seu pai,

que não compreendia a razão dessa sua aversão.

E assim veio a acontecer. Cada um dos ir-

mãos tomou posse das suas terras. Cada um gover-

nou-as a seu bel-prazer.

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As terras de LATAN norte eram mais ricas

do que as do sul, mas nem por isso os seus habi-

tantes eram mais felizes, pois não apreciavam o

autoritarismo do seu marquês. Por outro lado, as

gentes do sul, embora com menos, eram bem mais

felizes, dado que o seu senhor se preocupava com

eles e gostava que se divertissem.

Depressa se soube nas terras do norte que a

vida dos habitantes do sul era mais agradável, de-

vido à relação amistosa que mantinham com o seu

marquês.

Desejosos de terem outro viver, as gentes

do norte começaram a segredar entre si sobre a

hipótese de abandonarem aquelas terras. Para

maior desgosto, no início do inverno, o Marquês de

Alvamaria decretou a proibição de qualquer feste-

jo natalício, no seu território, daí em diante. Esta

ordem revoltou ainda mais os habitantes do norte

que começaram a emigrar para sul. Da noite para

o dia, algumas povoações do norte ficaram quase

despovoadas, o que levou o Marquês de Alvamaria

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a mandar encerrar as fronteiras com o território

do irmão. Nunca tal se vira!

Com a chegada das gentes do norte ao sul,

as primeiras reações do povo não se fizeram espe-

rar: “Assim não pode ser!” - exclamavam uns;

“Vieram estragar a nossa vida!” - reclamavam ou-

tros; “Voltem para as vossas terras!” - gritavam

ainda outros.

Apercebendo-se destas reações, o Marquês

de Marialva mandou reunir o povo na praça em

frente ao palácio, que fora a residência de verão

dos seus pais.

O palácio era de pedra alva e tinha uma

arquitetura graciosa. Duas escadarias laterais uni-

am-se a meio da torre principal, ladeada por duas

torres menores. Da janela central, já aberta, pen-

dia uma tapeçaria que ostentava o brasão do Mar-

quês de Marialva, em tons de azul, vermelho e

branco, com flores-de-lis ricamente bordadas a

fios de ouro.

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O marquês assomou à janela:

“Caríssimos concidadãos, reconheço que

estamos a viver uma nova realidade nas nos-

sas terras. Já tentei que o meu irmão voltas-

se atrás na sua decisão, mas ele não me quis

receber. Por isso, cabe-nos a nós minorar es-

ta situação. Sempre fomos um povo hospita-

leiro com todos os que vieram por bem. Aco-

lher os nossos irmãos do norte, não pode ser

diferente. É nossa obrigação abrigá-los nas

nossas terras. Eu próprio respeitarei estas

palavras e gostaria que seguissem o meu

exemplo para bem de todos!”

Assim, o marquês acolheu algumas famílias

do norte numa ala desabitada do seu palácio e ou-

tros lares seguiram o seu exemplo. Claro que esta

situação acarretava gastos suplementares, mas

uma boa gestão de recursos permitiu que todos

vivessem com algum conforto, em paz e harmonia.

Com aproximação do Natal, todas as crian-

ças de A a Z, que moravam em LATAN sul, foram

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fazendo desenhos alusivos à época. Estes destina-

vam-se aos seus amiguinhos que permaneceram no

norte e seriam entregues pelo Pai Natal: quadros

natalícios com famílias numerosas e felizes, mesas

com iguarias de regalar os olhos e abrir gulosos

apetites, cânticos de Natal de paz, esperança,

amor e fraternidade, céus cheios de estrelas bri-

lhantes e douradas como ouro, brinquedos, pinhei-

ros triangulares enfeitados, bonecos de neve bran-

cos, gordos e fofos, com nariz de cenoura, de bar-

rete e cachecol coloridos, renas…

Alguns dias depois, a casa do Pai Natal fi-

cou inundada com imensos desenhos, de vários ta-

manhos e cores. A todos eles foi aplicado o selo

mágico do Pai Natal. Os duendes não tiveram mãos

a medir e os enormes sacos vermelhos do Pai Natal

começaram a engordar. Eram uma barrigada de

desejos bons. Não houve tempo nem espaço para

carregar o trenó com presentes. Este Natal seria

diferente...

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A partida estava eminente e a voz grave do

Pai Natal não se fez esperar:

“Ho! Ho! Ho!

É chegada a hora!

O trenó cheio está.

Sem mais demora,

Renas, partamos já.

Ho! Ho! Ho!”

A neve tornava-se cada vez mais espessa à

medida que o Natal se aproximava. As terras do

norte estavam tristes, devido aos poucos habitan-

tes que lá permaneciam e à falta das luzes que

aqueciam as ruas frias e invernosas.

Na véspera de Natal e de regresso ao seu

palácio, mas ainda a três léguas de distância, o

Marquês de Alvamaria seguia pela floresta no seu

cavalo branco quando, de repente, este se assus-

tou, se empinou e atirou com o cavaleiro ao chão,

onde ficou por minutos desmaiado.

O marquês só acordou quando uma língua

áspera e quente lhe lambeu o rosto. Abriu os olhos

e deu de caras com um nariz muito vermelho e

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brilhante que iluminava a neve em seu redor. Era

uma rena e ele reconheceu-a das histórias que a

sua mãe lhe contava na infância - era a rena Ro-

dolfo. As renas estavam atreladas a um enorme

trenó, enfeitado com luzes e sinos e, sentado com

as mãos a segurar as longas rédeas, encontrava-se

um homem, velho, gordo e barbudo, vestido de

vermelho e branco. Era o Pai Natal! Ele nem que-

ria acreditar! Afinal as histórias que a mãe lhe

contava eram verdadeiras. O Pai Natal existia

mesmo!

Triiiiiiimmm…

… vinte minutos tinham passado sem que Lucas se tivesse

apercebido de que um computador ficara livre. “Que chatice! O

intervalo acabou. Vou ter Geografia na A 7. E sem tempo para

requisitar o livro. Tenho de voltar no próximo intervalo!”

O Lucas não compreendia o que lhe estava a acontecer:

“Eu nem gosto de ler!”

Não gostavas! Por ele subia uma vontade incontrolável de

retomar a leitura. Estava espantado!

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Espantado estava o marquês por ser convi-

dado a subir para o trenó, sentindo-se já uma pe-

na a levantar voo. O Pai Natal levou-o de volta ao

seu palácio, ao mesmo tempo que se ouvia DLIM,

DLÃO, DLIM, DLÃO… doze vezes repetido nas altas

torres das igrejas. Ainda sobrevoavam as povoa-

ções, quando algo mágico aconteceu, fazendo pas-

mar o marquês. Inesperadamente, começou a cho-

ver… mas não era uma precipitação de gotas. Eram

os desenhos feitos pelos meninos e pelas meninas

de LATAN sul que, lançados nos ares do norte, se

misturavam com os alvos flocos de neve. Ao toca-

rem no manto branco que cobria o chão, os dese-

nhos saíram das folhas de papel e transformaram

a noite silenciosa e escura. Por todo o lado come-

çaram a aparecer luzes, enfeites, música, árvores

de Natal, estrelas, bonecos de neve… e muitas,

muitas pessoas. Outros desenhos, entrando pelas

chaminés das casas vazias, depressa transforma-

ram aqueles espaços desoladores em numerosas

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famílias reunidas para a Ceia de Natal, num ambi-

ente verdadeiramente festivo, digno de comemo-

ração.

Rapidamente as terras do marquês se repo-

voaram perante os seus olhos ainda incrédulos. No

meio daquela imensidão de desenhos alados, um

deles veio na direção do marquês, irradiando uma

luz intensa que o deixou enfeitiçado. Essa luz aca-

bou por trespassá-lo até ao seu coração insatisfei-

to e endurecido.

A transformação no seu interior não se fez

esperar graças àquele desenho feito com o coração

de uma criança. Ao acordar deste gostoso adorme-

cimento, o Marquês de Alvamaria era um homem

novo. O seu olhar recuperara a luz há muito apaga-

da nos seus tempos de criança e os traços carrega-

dos do seu rosto suavizaram-se. Só agora é que o

seu desejo de Natal da infância se tinha realizado.

Conseguira voar no trenó do Pai Natal na distribui-

ção de sonhos e desejos, tal como uma criança.

Depressa nasceu nele uma ardente vontade

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de estar com o irmão e festejar o Natal em

família. Disso sabia o Pai Natal e as renas tam-

bém! A rota estava traçada até às terras de LA-

TAN sul, ao palácio do seu querido irmão, antigo

companheiro de travessuras e brincadeiras.

Já a sobrevoar o palácio, o Pai Natal lan-

çou o último desenho pela chaminé da sala dos

convivas, onde decorria a Ceia de Natal. Prestes a

tocar no fogo da imponente lareira, o desenho

irrompeu na sala em múltiplas estrelinhas que se

espalharam pelo salão, em grande velocidade,

antes de chegar ao dono do palácio.

Criou-se entre os convivas um burburinho

de admiração. Todos os olhares estavam agora

concentrados na mesa principal, onde se encon-

trava o marquês e a sua família. Mas os olhos do

marquês estavam fixos na porta e todos o imita-

ram, ainda perplexos perante aquele fenómeno

tão insólito.

Entretanto, lá fora, o Pai Natal e o outro

marquês tinham acabado de aterrar em frente à

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frontaria principal do palácio, encaminhando-se, a

passos largos, para a sala de jantar, acompanha-

dos por um diligente serviçal.

Este, com três pancadas na velha e dura

porta de madeira, anunciou a chegada dos inespe-

rados hóspedes. Ao ver o irmão a entrar no salão,

o Marquês de Marialva compreendeu a mensagem

simbólica do desenho: duas mãos, dois poderes,

um só povo, uma só terra.

Redobrada a sua generosidade, acolheu o

irmão e o Pai Natal de braços abertos e coração

quente, convidando-os a sentarem-se a seu lado,

na mesa principal. E não se esqueceu das renas.

Mandou que fossem recolhidas e alimentadas, a

fim de recuperarem forças para o regresso.

Antes de terminar a Ceia de Natal, chegou,

inesperadamente, o pai dos dois marqueses para

contentamento de todos. E assim se iniciou uma

semana de muita festa e de muita alegria.

O Ano Novo trouxe novas decisões e novas

vidas para todos os habitantes de LATAN norte e

sul. Tinha chegado a hora de os irmãos as comuni-

carem aos respetivos povos. A decisão fora simples

de tomar: os dois territórios voltariam a ser ape-

nas um só e só um irmão iria governar, o Marquês

de Marialva. O Marquês de Alvamaria confiara-lhe

essa difícil responsabilidade, ficando apenas como

seu conselheiro-mor. Agora tinha de ter algum

tempo livre para ajudar o Pai Natal na sua árdua

tarefa anual.

Unidas e em paz, as terras de LATAN foram

rebatizadas de Terras de NATAL, em homenagem

ao velho Pai Natal.

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… e no poder mágico do Natal.

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