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Abas:

Rose Feller 30 anos, manequim 42. Profissão: advogada. Sonho: encontrar um homem

que tire seus óculos, olhe fundo nos seus olhos e a faça sentir-se linda.

Maggie Feller, 28 anos, manequim 38. Profissão: desempregada desde a última quarta-

feira. Sonho: ser VJ da MTV, isso se o teleprompter não a atrapalhasse.

Rose e Maggie são irmãs, mas nada parecidas. Rose sempre foi a melhor aluna da classe,

enquanto Maggie... bem, Maggie freqüentava as turmas de necessidades especiais. Por outro lado,

ela sempre foi a mais bonita e popular da escola, e Rosa... pode-se dizer que nesse campo era um

fracasso.

Marcadas pela trágica morte da mãe, e apesar das diferenças, ou justamente por elas, as

meninas cresceram unidas. Mas nem tão unidas assim. Rose passou a vida tentando proteger e

salvar a irmã caçula de confusões. Agora elas estão mais velhas, mais maduras e... exatamente

iguais. Rose ainda não começou seu programa de exercícios nem desistiu de convencer Maggie a

arrumar um emprego decente, se estabilizar e pagar as dívidas. Maggie, por sua vez, ainda busca

fama e dinheiro a qualquer preço, e, mais do que tudo, quer mudar todo o guarda-roupa de Rose.

Quer dizer, quase todo: os sapatos - realmente maravilhosos - podem ficar.

Com a ajuda da avó, que não viam de meninas, e de Petúnia, uma linda cadelinha pug, elas

estão prestes a viver as maiores transformações e fazer a mais importante descoberta de suas

vidas. No mundo de Rose e Maggie a palavra irmã ganhará um novo e inesquecível sentido.

Jennifer Weiner nasceu em De Ridder, Louisiana. Formou-se em Inglês em Princeton e

escreveu colunas e contos para revistas e jornais, como Philadelphia Inquirer. Em 2001,

publicou seu primeiro livro, Bom de cama, que conquistou o público brasileiro. Atualmente vive

com o marido e seu rat terrier, Wendell, na Filadélfia.

www.jenniferweiner.com

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Contra - Capa:

"Irresistível." - Washington Post

Duas irmãs exatamente iguais e completamente diferentes.

Maggie, a caçula, é bonita e disléxica e sabe como conseguir tudo o que quer - mas não

sabe manter o que conquista. Rose, a mais velha, é desajeitada, inteligente e responsável, sabe

tudo sobre leis e tribunais, mas não sabe o que a faria realmente feliz.

Apesar de estar acostumada às confusões da caçula, Rose não se sente capaz de perdoar a

irmã quando ela seduz seu novo namorado. A briga as leva a repensar suas vidas. Rose inicia um

período sabático, encontra um novo trabalho e muda seu estilo de vida. Maggie se esconde em

Princeton, aprende a gostar de poesia e guarda algum dinheiro.

Mas com a ajuda de Ella, a avó que vivia afastada das meninas havia muito tempo, Maggie

e Rose vão descobrir os mistérios da família e aprender a lidar com suas neuroses,

vulnerabilidades e talentos.

Um romance divertido e emocionante. Em seu lugar chega às telas estrelado por

Cameron Diaz, Toni Collette e Shirley MacLaine.

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Para Molly Beth

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PARTE UM

Em seu lugar

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—1111 —

uerida — gemeu o sujeito. Ted? Tad? Alguma

coisa assim. E espremeu os lábios contra a

lateral do pescoço de Maggie, que teve o rosto

empurrado contra a parede da cabine do banheiro. Isto é ridículo, pensou Maggie, enquanto

sentia o vestido ser enrolado em torno dos seus quadris. Mas Maggie tomara cinco vodcas com

tônica durante a última hora e meia e, a esta altura, não tinha o direito de chamar ninguém de

ridículo. Nem tinha certeza se conseguiria pronunciar a palavra.

— Como você é gostosa! — exclamou Ted ou Tad, descobrindo o fio-dental de couro

que Maggie comprara especialmente para a ocasião.

— Eu quero o fio-dental de couro — dissera. — A vermelha.

— Rubi — corrigira a vendedora da Victoria's Secret.

— Ou isso — disse Maggie. — Pequena — acrescentou. — Tamanho PP, se houver. —

Lançou um olhar de escárnio para a vendedora, comunicando que, embora não soubesse

distinguir vermelho de rubi, ela, Maggie Feller, estava se lixando para isso. Podia não ter

concluído a faculdade. Podia não ter um grande emprego... ou, melhor dizendo, desde a última

quinta-feira, emprego nenhum. A soma total de sua experiência nas telas eram os três segundos

nos quais um pedaço de sua nádega esquerda aparecera no penúltimo videoclipe do Will Smith. E

avançava pela vida aos trancos e barrancos enquanto algumas pessoas — para ser bem clara, sua

irmã Rose — tornavam-se peritas pelas melhores universidades do país para obter um diploma de

advogado, e depois para firmas de advocacia e apartamentos luxuosos na Rittenhouse Square

como se tivessem nascido de bunda para a lua. Apesar disso, ela, Maggie, tinha uma coisa de

— Q

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valor, uma coisa rara e preciosa, possuída por poucos, cobiçada por muitos: um corpo de arrasar.

Quarenta e oito quilos distribuídos harmonicamente por um metro e setenta e um centímetros,

cada um deles bronzeado artificialmente, torneado, depilado, hidratado, perfumado, perfeito.

Maggie tinha uma tatuagem de margarida um pouco acima das nádegas, a frase

"NASCIDA PARA SER MÁ" tatuada em torno do tornozelo esquerdo, e um coração vermelho,

rechonchudo e perfurado, em torno da palavra "MÃE" no bíceps direito. (Ela pensou em

acrescentar a data da morte da mãe, mas por algum motivo essa tatuagem doera mais que as

outras duas juntas.) Maggie também tinha seios grandes. Ela os ganhara de presente de um

namorado casado, e eram feitos de solução salina e plástico, mas isso não importava.

— Eles são um investimento no meu futuro — dissera Maggie. Na ocasião seu pai

parecera magoado e perplexo, e Sydelle — a madrasta — inflara as narinas, e sua irmã mais velha,

Rose, perguntara naquela sua voz esnobe que a deixava parecendo uma senhora de setenta anos:

— Que tipo de futuro exatamente você está planejando?

Maggie deixara essas palavras entrarem por um ouvido e saírem pelo outro. Não estava

nem aí para o que os outros pensavam. Tinha agora 28 anos, e, em sua décima reunião de colegas

do segundo grau, ela era a garota mais bonita da festa.

Todos os olhos ficaram grudados em Maggie enquanto adentrava o Cherry Hill Hilton

usando seu vestido de noite preto colante e os sapatos de salto agulha de Christian Louboutin

que surrupiara do armário da irmã semanas antes. Rose podia ter se transformado em pura

gordura — além de irmã mais velha, uma irmã maior —, mas pelo menos as duas ainda calçavam

sapatos do mesmo tamanho. Maggie sentiu o calor dos olhares enquanto sorria e caminhava até o

bar, quadris ondulando como música, pulseiras tilintando nos pulsou, deixando seus antigos

colegas de classe verem o que tinham perdido: a garota que haviam ignorado, ou zombado e

chamado de retardada, a garota que costumava ser vista circulando pelos corredores da escola no

folgadíssimo casaco militar do pai e se enrolando com o cadeado do armário. Bem, Maggie

desabrochara. Que vejam, e que babem. Marissa Nussbaum e Kim Pratt, e principalmente aquela

piranha da Samantha Bailey, com seus cabelos pintados de louro e os seis quilos que ganhara nos

quadris desde a escola. Todas as chefes de torcida, aquelas que tinham zombado dela ou a

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ignorado. Elas que me olhem e babem... ou melhor ainda, que seus maridos gorduchos e quase

carecas me comam com os olhos.

— Ah, Deus! — gemeu o ursinho Ted, desafivelando o cinto.

Na cabine ao lado, alguém deu a descarga.

Maggie vacilou em seus calcanhares enquanto Ted/Tad mirava e errava e mirava de novo,

estocando contra suas coxas e bunda. É como ser socada por uma cobra-cega, pensou, e grunhiu

de desprezo, ruído que Ted evidentemente compreendeu como um gemido de paixão.

— Isso, garota! Você gosta, não é? — perguntou, e começou a golpeá-la com ainda mais

força. Maggie conteve um bocejo e baixou os olhos para o próprio corpo, notando com prazer

que suas coxas — enrijecidas por horas e horas na esteira, lisas como plástico devido à recente

depilação com cera quente — não chegavam nem a tremer diante dos golpes violentos de Ted. E

a manicure tratara seus pés com perfeição. Na hora não tivera muita certeza sobre esse tom de

vermelho — não era suficientemente escuro, preocupara-se, mas, enquanto olhava para os pés,

reluzindo sedutoramente, viu que fizera a escolha certa.

— Meu DEUS! — berrou Ted. Seu tom misturava êxtase e frustração, como um homem

que diante de uma visão espiritual não sabia ao certo o que ela significava. Maggie conhecera-o

no bar, mais ou menos meia hora depois de chegar, e o cara era exatamente o que ela tinha em

mente: louro, forte, não era gordo e nem estava ficando careca como todos os rapazes que

tinham sido deuses do futebol e reis dos bailes nos tempos de escola. Adulador, também. Dera ao

barman uma gorjeta de cinco dólares para cada rodada, embora a bebida fosse liberada. Além

disso, dissera a Maggie tudo que ela queria ouvir.

— O que você faz da vida? — perguntara, e Maggie abrira um sorriso.

— Sou artista. — O que era verdade. Nos últimos seis meses Maggie tinha sido backing

vocal de uma banda chamada Whiskered Biscuit*, que fazia covers em estilo thrash-metal de

clássicos da discoteca dos anos 1970. Até agora a banda conseguira fazer precisamente uma

apresentação, talvez porque a demanda por versões thrash-metal de "MacArthur Park" não fosse

muito grande. E Maggie sabia que estava na banda apenas porque o vocalista tinha esperanças de

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que ela fosse para a cama com ele. Mas já era alguma coisa. Um pequeno meio de alcançar seu

sonho de ser famosa, de ser uma estrela.

___________

*Whiskered biscuit é uma gíria para o órgão sexual feminino. (N. do E.)

— Você nunca foi da minha turma — dissera, correndo com o indicador em torno do

pulso de Maggie. — Eu certamente me lembraria de você.

Maggie baixou os olhos, brincando com um de seus cachos castanho-avermelhados,

considerando se deveria roçar a sandália ao longo da panturrilha da perna dele, ou soltar os

cabelos, deixando os cachos caírem por suas costas. Não, ela não tinha sido da turma dele. Tinha

sido aluna das turmas "especiais", das turmas de "alunos problemáticos", de repetentes e

excepcionais, das turmas que usavam os livros didáticos com letras grandes e de formato

diferente — ligeiramente mais compridos e finos — daqueles que as outras crianças carregavam.

Era possível encapar esses livros com papel pardo e escondê-los na mochila, mas as outras

crianças sempre descobriam. Bem, elas que fossem para o inferno. Que todas elas se fodessem.

Que fossem para o inferno as chefes de torcida bonitas e os rapazes que adoravam boliná-la no

banco traseiro dos carros de seus pais, mas que nem lhe diziam "oi" nos corredores da escola na

segunda-feira seguinte.

— Deus! — tornou a gritar Ted.

Maggie abriu a boca para mandar que ele falasse baixo, e vomitou no chão — um jorro de

vodca com tônica, percebeu como se a uma grande distância, mais alguns macarrões em

decomposição. Ela comera massa — quando? Na noite anterior? Estava tentando se lembrar de

sua última refeição quando Ted agarrou seus quadris e virou-a, de modo que ela ficou olhando

para a frente da cabine e seus quadris ficaram batendo contra o rolo de papel higiênico.

— AHHHHH! — berrou Ted, e gozou nas costas de Maggie.

Maggie virou-se para encará-lo, movendo-se o mais rápido que pôde sobre a sujeira de

vodca e macarrões.

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— No vestido, não! — disse ela. E ali estava Ted, piscando, calças enroladas em torno

dos joelhos, ainda segurando o pau. Sorriu para ela, todo bobo.

— Foi demais! — comemorou, e olhou intrigado para o rosto dela. — Como é mesmo o

seu nome?

A 24 quilômetros dali, Rose Feller tinha um segredo — um segredo que neste momento

estava deitado de costas e roncando, um segredo que de algum modo conseguira desacomodar o

lençol justo e jogar três travesseiros no chão.

Rose apoiou-se no cotovelo para se levantar e examinou seu amante à luz das lâmpadas

da rua que entrava através das persianas. Fez isso com um sorriso doce, secreto. Um sorriso que

nenhum de seus colegas no dormitório de advocacia Lewis, Dommel e Fenick teria reconhecido.

Isto era o que ela sempre quisera, aquilo com que passara a vida inteira sonhando secretamente:

um homem que olhasse para ela como se fosse a única mulher no recinto, no mundo; a única

mulher que já existira. E era bonito, e ainda mais bonito sem roupas. Perguntou-se se poderia

bater uma foto. Mas o ruído iria acordá-lo. E a quem ela poderia mostrar a foto?

Rose conformou-se em permitir que seus olhos passeassem pelo corpo dele: as pernas

fortes, os ombros largos, a boca. Entreaberta para melhor roncar. Rose virou-se de lado, para

longe dele, puxou o cobertor até a altura do queixo e sorriu, lembrando.

Eles tinham trabalhado até tarde no caso Veeder, que era tão tedioso que Rose poderia

ter se debulhado em lágrimas se seu parceiro não fosse Jim Danvers, por quem estava tão

apaixonada que poderia ter passado uma semana revisando documentos apenas no intuito de

ficar perto deste homem para sentir o aroma da lã de alta qualidade de seu terno, o cheiro de sua

água-de-colônia. Deviam ter trabalhado até as oito da noite, mas eram nove quando finalmente

lacraram a última das páginas na mochila do contínuo e ele olhou para ela com um sorriso de

astro de cinema e disse:

— Quer comer alguma coisa?

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Foram até o bar no porão do Le Bec-Fin, onde uma taça de vinho virou uma garrafa, os

freqüentadores foram indo embora e as velas queimaram até que deu meia-noite. Eles estavam

sós e a conversa parou. Enquanto Rose tentava decidir o que dizer em seguida — alguma coisa

sobre esportes, talvez —, Jim segurou sua mão e murmurou:

— Você tem noção do quanto é bonita?

Rose fez que não com a cabeça, porque realmente não tinha nenhuma noção. Ninguém

jamais lhe dissera que ela era bonita, exceto seu pai, uma vez, e ele não contava. Quando se

olhava no espelho, não via nada além de uma garota comum, uma garota qualquer, uma CDF já

adulta com um guarda-roupa decente — tamanho G —, cabelos castanhos e olhos marrons,

sobrancelhas grossas e retas e um queixo que se sobressaía como se dissesse: Você e quem mais?

Exceto que sempre nutrira a esperança secreta de que um dia ouviria de alguém que ela

era bonita, um homem que desfaria seu rabo-de-cavalo, tiraria os óculos de seu rosto e a olharia

como se ela fosse Helena de Tróia. Esse era um dos principais motivos para ela jamais ter

adotado lentes de contato. E assim ela se inclinara para a frente, cada fibra de seu ser

estremecendo, fitando Jim, esperando mais daquelas palavras que sempre quisera ouvir. Mas Jim

Danvers apenas segurou sua mão, pagou a conta e convidou-a a sair pela porta e subir até o

apartamento dela, onde tirara seus sapatos, arriara sua saia, pusera-se a beijá-la do pescoço à

barriga e então passara 45 minutos fazendo coisas com Rose com as quais ela apenas sonhara (e

vira uma vez em Sex and the City).

Ela estremeceu de prazer, puxando a manta de lã para mais perto do queixo, lembrando a

si mesma de que isto poderia causar problemas. Dormir com um colega de trabalho era contra

seu código pessoal de ética (um código fácil de obedecer, precisava admitir, porque jamais tivera

um colega que quisesse dormir com ela). Contudo, mais problemático era o fato de que

relacionamentos entre funcionários e sócios eram estritamente proibidos pelas regras da firma.

Ambos poderiam ser punidos caso alguém descobrisse. Ele ficaria enrascado. Ela provavelmente

seria convidada a sair da firma. E teria de achar outro emprego, começar tudo de novo — mais

uma maratona de entrevistas, mais tardes ou manhãs tediosas recitando as mesmas respostas para

as mesmas perguntas: Você sempre quis ser advogada? Quais áreas do direito mais lhe

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interessam? Que tipo de clientela você se imagina desenvolvendo? Como você poderia se

encaixar nesta firma?

Jim não tinha sido assim. Ele a entrevistara quando ela viera à Lewis, Dommel e Fenick.

Há três meses, numa bela tarde de setembro, ela entrara na sua sala de reuniões, vestindo seu

terno azul de entrevistas, com uma pasta repleta de currículos e documentos apertada contra o

peito. Depois de cinco anos na Dillert McKeen ela estava querendo mudar para uma firma

ligeiramente menor que lhe desse mais responsabilidades. Esta era sua terceira entrevista da

semana, e seus pés, calçados com sapatos Ferragamo azul-marinho, a estavam matando. Mas

bastou pousar os olhos em Jim Danvers para esquecer todos os pensamentos sobre pés doídos e

outras firmas. Ela esperava um sócio comum: quarentão, careca, de óculos, cuidadosamente

amigável e prestativo com potenciais colegas femininas. E ali estava Jim, parado diante da janela,

e quando se virou para cumprimentá-la, a luz do fim da tarde transformou seus cabelos louros

numa coroa dourada. Ele não era um sujeito nem um pouco comum, e também não era

quarentão. Talvez tivesse uns 35 anos, pensou Rose, um sócio jovem, cinco anos mais velho que

ela, e lindo de morrer. Que queixo! Que olhos! O aroma atordoante de loção de barbear que

deixava em seu rastro! Era o tipo de sujeito que nunca daria papo para Rose nos seus tempos de

escola e de faculdade de direito, quando ela mantinha os olhos no chão e as notas na estratosfera.

Mas quando ele sorriu, Rose vislumbrou algo metálico em seus dentes. Um aparelho ortodôntico,

ela viu, seu coração levitando dentro de seu peito. Então talvez ele não fosse perfeito. Talvez

houvesse esperança.

— Srta. Feller? — perguntou, e ela fez que sim com a cabeça, sem poder confiar em sua

voz. Ele sorriu para ela, atravessou a sala em três passos longos e tomou sua mão na dele.

Para ela começara naquele momento: o sol por trás dele, a mão dele envolvendo a dela,

enviando raios de eletricidade direto entre suas pernas. Sentira algo sobre o que apenas lera, algo

no que ela nem tinha certeza se acreditava: paixão. Uma paixão ardente, tão fumegante quanto

nos romances da editora Harlequin, uma paixão de tirar o fôlego. Admirou a pele lisa do pescoço

de Jim Danvers e quis lambê-la, bem ali na sala de reuniões.

— Meu nome é Jim Danvers — disse ele.

Rose pigarreou. Sua voz estava ofegante, áspera.

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— Meu nome é Rose. — Merda. Qual era mesmo seu sobrenome? — Feller. Rose Feller.

Oi.

Começara lentamente. A troca de olhares que demorara mais que o normal durante a

espera do elevador, a mão que permanecera na cintura de Rose, a forma como os olhos dele

procuravam-na na multidão sempre que se realizava uma reunião entre sócios e funcionários. E

nesse meio-tempo ela colhia todas as fofocas que podia.

— Solteiro — definiu a secretária de Rose.

— Solteiro ao extremo — disse uma assistente jurídica.

— Um destruidor de corações — sussurrou uma sócia recente, enquanto retocava o

batom no espelho do banheiro feminino. — E me disseram que ele é bom de cama.

Rose enrubescera, lavara as mãos e fugira. Não queria que Jim tivesse uma reputação.

Não queria que falassem dele em banheiros. Queria que ele fosse seu e apenas seu. Queria que ele

lhe dissesse que ela era bonita, uma vez mais e outras tantas.

Uma descarga soou no banheiro do apartamento de cima. Jim grunhiu enquanto dormia.

Quando ele se virou na cama, Rose sentiu o pé dele roçar em sua canela. Ai, meu Deus. Rose

roçou o dedão por sua panturrilha. As notícias não eram boas. Vinha planejando depilar-se, vinha

planejando isso há um bom tempo, sempre prometendo a si mesma que iria depilar as pernas

antes da próxima aula de aeróbica, mas fazia três semanas desde que fora à academia pela última

vez, e vinha usando meia-calça para trabalhar todos dias, de modo que Jim rolou na cama de

novo, empurrando Rose para a beira do colchão. Ela olhou desolada para sua sala de estar, na

qual poderia haver uma plaqueta definindo: mulher solteira, solitária, fins dos anos 1990. Uma

trilha de roupas dele e dela jazia no chão ao lado dos halteres de dois quilos, amarelo vivo, que

amparavam uma fita de vídeo de aula de tae-bo ainda lacrada com o plástico original. A esteira

elétrica — que comprara para cumprir uma resolução de ano-novo há três anos — servia como

suporte de roupas sujas. Havia um resfriador de vinho da Passionberry Punch meio vazio na

mesinha de centro, quatro caixas de sapato da Saks empilhadas ao lado do armário e meia dúzia

de livros de romance ao lado da cama. Um desastre, pensou Rose, perguntando-se o que poderia

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fazer antes do amanhecer para conferir a seu apartamento a aparência de ser habitado por alguém

com uma vida interessante. Haveria um empório 24 horas que vendesse almofadões e estantes de

livros? E seria tarde demais para fazer alguma coisa a respeito de suas pernas?

O mais silenciosamente possível, esticou a mão para pegar o telefone sem fio e caminhou

até o banheiro. Amy atendeu ao primeiro toque.

— E aí? — saudou Amy. Ao fundo, Rose ouviu Whitney Houston uivando, o que

significava que sua melhor amiga estava assistindo a Falando de amor pela centésima vez. Amy não

era negra, mas isso não a impedia de tentar.

— Você não vai acreditar — sussurrou Rose.

— Você trepou?

— Amy!

— E então, trepou? Por que mais você me ligaria a uma hora dessas?

— Na verdade... — disse Rose, acendendo a luz para examinar seu rosto resplandecente

no espelho. — Na verdade, sim. E foi... — Fez uma pausa, e então deu um pulinho no ar. — Foi

tão bom!

Amy bradou um viva.

— Tá mandando ver, amiga! E então, quem é o felizardo?

— Jim — sussurrou Rose. Amy gritou um viva ainda mais alto.

— Quase não acredito nisso! — disse Rose. — Quero dizer, ele é tão...

O sinal de chamada em espera do telefone de Rose soou. Ela olhou para o aparelho com

cara de quem não conseguia acreditar.

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— E a garota é popular! — disse Amy. — Me liga depois!

Rose desligou e olhou para o relógio. Quem estaria ligando para ela a quase uma da

manhã?

— Alô? — Ela ouviu música alta, vozes: um bar, uma festa. Ela se encostou contra a

porta do banheiro. Maggie. Grande surpresa.

A voz do outro lado da linha era jovem, masculina, desconhecida.

— Queria falar com Rose Feller.

— É ela. Quem é?

— Ah... bem, meu nome é Todd.

— Todd — repetiu Rose.

— Sim. E, bem... Estou aqui com sua irmã, acho. Maggie, certo?

Ao fundo, Rose ouviu o grito bêbado da irmã.

— Irmã caçula — acrescentou Rose num tom mal-humorado, pegando uma garrafa de

xampu, "desenvolvido especialmente para cabelos finos, fracos e sem vida", e escondeu-o

debaixo da pia, raciocinando que se Jim permanecesse para tomar banho, não precisaria

confrontar-se com a evidência dos problemas capilares de Rose.

— Ela está... enjoada, acho. Bebeu demais — prosseguiu Todd. — E ela estava... bem...

não sei o que mais ela estava fazendo, na verdade, mas a encontrei no banheiro e a gente ficou

dando uns amassos aqui, mas então ela meio que desmaiou, e agora está... bem, está ficando meio

barulhenta. Ela me mandou ligar para você primeiro — acrescentou. — Isso antes de desmaiar.

Rose ouviu a irmã caçula gritando "Sou o rei do mundo!"

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— Que simpático da parte dela — disse Rose, enfiando seu creme para espinhas e uma

calcinha enorme no mesmo lugar onde escondera o xampu. — Por que você simplesmente não a

leva para casa?

— Realmente eu não queria me envolver...

— Diga-me, Todd — começou Rose de forma agradável, no tom que ela praticava desde

a faculdade de direito, o que ela imaginava usar para conduzir testemunhas a lhe dizer o que

precisava saber. — Quando você e minha irmã estavam dando uns amassos no banheiro, o que

exatamente estava acontecendo?

Houve silêncio do outro lado da linha.

— Certo, eu não preciso saber os detalhes, mas estou inferindo que você e minha irmã já

estão, para usar sua palavra, "envolvidos" — disse Rose. — Então, por que você não mostra que

é um cavalheiro e a leva para casa?

— Olha, acho que ela precisa de ajuda, e eu já estava de saída... Peguei emprestado o

carro do meu irmão e preciso devolver...

— Todd...

— Bem, há mais alguém para quem eu possa ligar? Seus pais? A mãe de vocês ou alguém

assim?

O coração de Rose deu um pulo. Ela fechou os olhos.

— Onde vocês estão?

— No Cherry Hill Hilton. Na reunião da escola. — Clique. Todd não estava mais na

linha.

Rose debruçou-se contra a porta do banheiro. Aqui estava ela: sua vida verdadeira, a

verdade sobre quem ela era, atropelando-a como um ônibus sem freios. Aqui estava a verdade —

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ela não era o tipo de pessoa por quem Jim poderia se apaixonar. Não era o que fingia ser: uma

garota alegre e descompromissada, uma garota normal com uma vida feliz e organizada, uma

garota que usava sapatos bonitos e não tinha nenhuma outra preocupação na cabeça além de

descobrir se o episódio desta semana de Plantão Médico seria inédito ou reprise. A verdade era

sua fita de exercícios que não tivera tempo de abrir, quanto mais de usar; a verdade eram suas

pernas cabeludas e calcinhas horríveis. E, acima de tudo, a verdade era sua irmã, sua irmã

deslumbrante, enrolada, inacreditavelmente infeliz e surpreendentemente irresponsável. Por que

esta noite?

— Porra — gemeu baixo. — Porra, porra, porra. — E então Rose caminhou na ponta

dos pés de volta para o quarto, procurando seus óculos às apalpadelas, calças de moletom, botas

e chaves do carro. Rabiscou um bilhete rápido para Jim ("Emergência familiar, volto logo") e

correu até o elevador, reunindo forças para dirigir pela noite e, mais uma vez, salvar a pele da

irmã.

Na porta da frente do hotel ainda estava pendurada uma faixa de "Bem-vinda turma de

1989". Rose correu pelo saguão — soalho de mármore falso coberto por um tapete carmesim —

e entrou no salão de festas deserto, que recendia a fumaça de cigarro e cerveja. Havia mesas

cobertas por toalhas baratas de papel, vermelhas e brancas, com pompons de plástico ornando

seus centros. No canto, um homem e uma mulher muito bêbados estavam se agarrando contra

uma parede. Não era Maggie. Caminhou até o bar, onde um homem numa camisa branca

manchada estava recolhendo copos e onde sua irmã, num vestido minúsculo que parecia

impróprio para o frio de novembro — ou melhor, impróprio para qualquer aparição em público

—, estava debruçada numa banqueta.

Rose parou um minuto para planejar sua estratégia. Olhando de longe, Maggie parecia

bem. Sem se aproximar não dava para notar a maquiagem borrada e o cheiro de bebida e vômito

que certamente a cercava como uma nuvem.

O barman dirigiu um olhar compassivo para Rose e explicou:

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— Ela está aqui há meia hora — disse ele. — Fiquei de olho nela. Só dei água para ela

beber.

Que maravilha, pensou Rose. Onde você estava enquanto ela provavelmente era

currada por um bando no banheiro?

— Obrigada — preferiu dizer Rose, e sacudiu o ombro da irmã. Não fez isso com

delicadeza.

— Maggie?

Maggie abriu um dos olhos e resmungou:

— Me deixa em paz.

Rose segurou as alças do vestido preto da irmã e as puxou. O traseiro de Maggie subiu 15

centímetros do assento.

— A festa acabou — sentenciou Rose.

Maggie levantou cambaleante e, com uma sandália prateada, chutou a canela de Rose com

força. A dita sandália prateada era uma Christian Louboutin de salto de agulha, notou Rose ao

olhar para baixo, uma sandália prateada cobiçada por três meses, adquirida há apenas duas

semanas e que, acreditava ela, ainda estava protegida em sua caixa de sapato. Uma sandália

prateada que agora estava emporcalhada e manchada com resíduos pegajosos de coisas que ela

preferia nem saber o que eram.

— Ei, essas sandálias são minhas! — acusou Rose, sacudindo a irmã pelo vestido. Maggie,

pensou ela, sentindo a fúria que ela conhecia tão bem começando a correr por suas veias. Maggie

pega tudo que é meu.

— Vá se ferrar! — urrou Maggie, e contorceu o corpo de um lado para o outro, tentando

soltar-se das mãos de Rose.

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— Você é impossível — sussurrou Rose, puxando as alças do vestido enquanto Maggie

se debatia. Os sapatos de Maggie — ou melhor, os sapatos dela — chutavam as canelas de Rose.

Agora ela está abusando, pensou Rose, imaginando "os machucados" que encontraria pela

manhã. — Eu ainda nem usei essas sandálias!

— Ei, calma aí, vocês duas — gritou o barman, claramente torcendo para que aquilo

virasse uma porrada entre irmãs.

Rose o ignorou e, meio que arrastando meio que carregando a irmã do bar, largou Maggie

no banco do passageiro.

— Se você for vomitar, avise antes — aconselhou Rose enquanto puxava o cinto de

segurança em torno da irmã.

— Te mando um telegrama — murmurou Maggie, abrindo sua bolsa para pegar um

isqueiro.

— Ah, não — disse Rose. — Nem pense em fumar aqui dentro. — Ela acendeu a luz,

virou o volante para a direita e começou a sair do estacionamento deserto para a rodovia. Seguiria

para a ponte Ben Franklin e para Bella Vista, onde Maggie tinha o mais recente de uma longa

série de apartamentos.

— Para lá não — disse Maggie

— Certo. — Frustradas, as mãos de Rose apertaram o volante. — Para onde vamos?

— Me deixa na casa da Sydelle — murmurou Maggie.

— Por quê?

— Me deixa lá, tá bem? Não começa o interrogatório.

— Claro que não. Sou apenas sua motorista de táxi particular. Não precisa explicar nada

para mim. Basta ligar para minha casa que estou disponível 24 horas por dia.

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— Puta — xingou Maggie. Deixou a cabeça cair no encosto da poltrona, e ficou virando

de um lado para outro a cada virada do volante.

Empregando seu tom de voz mais sensato, Rose disse:

— Sabia que é possível comparecer a uma reunião de ex-colegas de escola sem acabar

bebendo tanta vodca que você nem percebe que desmaiou no banheiro?

— Merda, agora você vai me passar um sermão — lamentou Maggie.

Rose prosseguiu:

— É possível simplesmente comparecer, reencontrar velhos amigos, dançar, jantar, beber

com responsabilidade, usar roupas que comprou para si mesma em vez de roupas que tirou do

meu armário...

Maggie abriu os olhos e fitou a irmã, notando o enorme prendedor de plástico que

prendia os cabelos de Rose.

— Ei, 1994 telefonou e pediu para você devolver seu estilo de penteado.

— O quê?

— Sabia que ninguém usa mais piranhas no cabelo?

— É mesmo? — retrucou Rose. — Então por que não me diz o que as mulheres que

estão na moda devem usar para ir buscar suas irmãs bêbadas no meio da noite? Puxa, como eu

queria saber. Nicky e Paris Hilton já lançaram uma linha para nós?

— Foda-se — murmurou Maggie, olhando pela janela.

— Você está feliz com esta vida? — prosseguiu Rose. — Bebendo toda noite, andando

com Deus sabe quem...

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Maggie abaixou o vidro da janela e ignorou a irmã.

— Você devia voltar a estudar — insistiu Rose. — Você podia arrumar um trabalho

melhor.

— E ser igualzinha a você — retrucou Maggie. — Não seria divertido? Nada de sexo há

quantos anos, Rose? Três, quatro? Qual foi a última vez que um homem olhou para você?

— Usando essas roupas aí eu podia fazer muitos homens olharem para mim.

— Até parece que elas caberiam em você — disse Maggie. — Sua perna não caberia

neste vestido.

— Ah, é mesmo — disse Rose. — Esqueci que ser tamanho zero é a coisa mais

importante do mundo. Porque é óbvio que isso fez você muito bem-sucedida e feliz. — Apertou

a buzina um pouco mais que o necessário para mandar o carro da frente se mover. — Maggie,

você tem problemas. Precisa de ajuda.

Jogando a cabeça para trás, Maggie soltou uma gargalhada.

— E você é perfeita, não é isso?

Rose balançou a cabeça, pensando no que poderia dizer agora para fazer sua irmã calar a

boca, mas quando finalmente formulou uma linha de ataque, viu que Maggie estava de olhos

fechados e com a cabeça encostada na janela.

Chanel, o golden retriever — o cachorro de Sydelle, a madrasta má—, corria loucamente

em círculos pelo quintal enquanto Rose subia a entrada para automóveis. Uma luz acendeu num

dos quartos do andar de cima, e outra surgiu no corredor enquanto Rose agarrava Maggie pelas

alças do vestido, obrigando-a a ficar de pé.

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— Vamos, levante-se — ordenou.

Apoiada pela irmã, Maggie cambaleou pelo quintal até chegar à porta da frente da casa

moderna, de formato estranho, que o pai e a madrasta chamavam de lar. As cercas vivas tinham

sido aparadas em arabescos tortuosos segundo as instruções de Sydelle e o capacho anunciava

"Bem-vindos, amigos!". Rose sempre tinha achado que o tapete fora vendido junto com a casa,

porque sua madrasta não era nada amigável ou hospitaleira. Maggie cambaleou mais alguns

passos e se curvou. Rose achou que ela estivesse vomitando, mas então viu-a levantar um

paralelepípedo e apanhar uma chave.

— Pode ir agora — disse Maggie, inclinando-se contra a porta, atrapalhando-se ao

introduzir a chave na fechadura. Sem nem mesmo se virar, deu um tchauzinho para a irmã. —

Valeu pela carona. Agora, cai fora.

A porta da frente abriu com violência quando Sydelle Levine Feller saiu noite afora, lábios

comprimidos, roupão de banho amarrado com força em torno de seu corpo de um metro e

cinqüenta e dois centímetros, rosto reluzindo com creme facial. A despeito das horas de

exercícios, dos milhares de dólares gastos em injeções de botox e do vício recente em delineador

permanente tatuado nas sobrancelhas, Sydelle Levine Feller não era uma mulher bonita. Para

começo de conversa, tinha olhos marrons pequenos e tediosos. Além disso, tinha narinas

enormes e dilatadas — e Rose deduzia que os cirurgiões não conseguiriam corrigir esse tipo de

coisa, porque Sydelle certamente havia notado que podia enfiar um salame italiano em cada uma

delas.

— Está bêbada — disse Sydelle, narinas inflando. — Que surpresa. — Como de hábito,

endereçou seu comentário ferino a sete centímetros para a esquerda do rosto do interlocutor,

como se estivesse fazendo uma observação para algum espectador invisível que certamente

compreenderia seu lado da situação. Rose podia lembrar-se de dezenas, ou melhor, centenas de

observações maldosas passando zunindo por sua orelha esquerda... e pela de Maggie. Maggie,

você precisa se dedicar mais aos deveres da escola. Rose, eu não acredito que você precise se

servir de novo.

— Não consigo esconder nada de você, não é mesmo, Sydelle? — perguntou Maggie.

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Rose não conseguiu conter um grunhido de escárnio e, por um momento, as duas irmãs

eram novamente uma dupla, unidas contra uma inimiga comum e terrível.

— Sydelle, preciso falar com meu pai — disse Rose.

— E eu preciso usar as instalações — anunciou Maggie.

Rose olhou para cima e viu o reflexo dos óculos do pai através da janela do quarto. Sua

silhueta alta, magra, ligeiramente curvada flutuava em calções de pijama e numa camiseta velha, e

seus cabelos grisalhos e finos estavam penteados para cobrir parte da área calva de sua cabeça.

Quando ele ficou tão velho?, pensou Rose. Parecia um fantasma. Desde que se casaram, Sydelle

ficara mais vívida — seu batom cada vez mais brilhante, os reflexos de seu cabelo cada vez mais

dourados — ao passo que o pai havia esmaecido como uma fotografia deixada ao sol.

— Ei, papai! — gritou Rose. O pai virou-se na direção de sua voz e começou a abrir a

janela.

— Querido, deixa que eu cuido disso — disse Sydelle em direção à janela do quarto. Suas

palavras foram doces, mas seu tom foi gélido. Michael Feller parou com as mãos na base da

janela, e Rose imaginou o rosto dele desabando em sua expressão habitual de tristeza e derrota.

Um instante depois as luzes se apagaram e o pai desapareceu.

— Merda — murmurou Rose, embora não estivesse surpresa. — Papai! — chamou de

novo, em vão.

Sydelle balançou a cabeça.

— Não — disse ela. — Não, não, não.

— Este episódio foi um oferecimento da palavra Não — disse Maggie, e Rose riu, mas

então voltou a atenção para sua madrasta. Rose lembrou-se do primeiro dia em que Sydelle

aparecera no apartamento deles. O pai estava saindo com Sydelle havia dois meses e se arrumara

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todo para a ocasião. Rose lembrou-se dele alisando as mangas de seu blazer informal e

reajustando o nó da gravata.

— Ela está ansiosa por conhecer vocês duas — disse o pai a Rose, que na época tinha

doze anos, e Maggie, dez. Rose lembrou-se de que na época considerou Sydelle a mulher mais

deslumbrante que ela tinha visto em sua vida. Usava pulseiras e brincos de ouro, com sandálias

douradas brilhosas para combinar. Usava reflexo nos cabelos e sobrancelhas feitas para formar

parênteses dourados. Até seu batom tinha um tom dourado. Rose ficou embevecida. Demorou a

notar os aspectos menos amáveis de Sydelle — a boca que franzia sem que ela percebesse, os

olhos da cor de uma poça de lama, as narinas que pareciam túneis gêmeos no centro de seu rosto.

Durante o jantar, Sydelle empurrou a cesta de pão para fora de seu alcance.

— Nada disso para nós — disse com um sorriso afetado e algo que Rose julgou ser uma

piscadela conspiratória. — Nós meninas precisamos cuidar da silhueta! — Ela fez a mesma coisa

com a manteiga. Quando Rose cometeu o erro de esticar a mão para se servir das batatas pela

segunda vez, Sydelle comprimiu os lábios. — O estômago demora vinte minutos para enviar ao

cérebro uma mensagem dizendo que está cheio — disse em tom de sermão. — Por que não

espera um pouco para ver se realmente quer essas batatas? — O pai e Maggie tomaram sorvete

de sobremesa. Rose comeu uma tigela de uvas. Sydelle não comeu nada. — Não ligo para doces

— justificou. O episódio todo deixou Rose com vontade de vomitar... vomitar e voltar

sorrateiramente até a geladeira para servir-se de uma tardia taça de sorvete. O que, se ela se

lembrava direito, foi exatamente o que fez.

Agora ela olhava para Sydelle, implorando, querendo desesperadamente terminar esta

tarefa: livrar-se de Maggie e voltar para Jim... se é que ele ainda estava lá.

— Eu sinto muito — disse Sydelle num tom que indicava que ela não sentia

absolutamente nada. — Se ela bebeu, não pode entrar.

— Bem, eu não bebi. Deixe-me falar com meu pai.

Mais uma vez Sydelle fez que não com a cabeça.

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— Maggie não é sua responsabilidade — recitou, imitando o discurso que decerto

decorara de algum livro de auto-ajuda. Ou, mais provavelmente, de um panfleto sobre um livro

de auto-ajuda. Ela não era muito de ler.

— Deixe-me falar com ele — repetiu Rose, sabendo que era inútil.

Sydelle moveu-se para bloquear a passagem da porta, como se Rose e Maggie pudessem

tentar passar por ela. E Maggie não estava ajudando em nada a situação.

— Ei, Sydelle! — grasnou Maggie, empurrando a irmã para tirá-la da frente. — Você está

ótima! — Ela franziu os olhos para ver melhor o rosto da madrasta. — Fez alguma coisa nova,

não foi? Plástica no queixo? Implante de bochecha? Um pouquinho de botox? Qual é o seu

segredo?

— Maggie — sussurrou Rose, agarrando os ombros da irmã e implorando

telepaticamente para que calasse a boca. O que Maggie não fez.

— Que forma de gastar a nossa herança! — uivou.

Sydelle finalmente olhou diretamente para elas, em vez de olhar para o espaço entre as

duas. Rose praticamente podia ouvir o que ela estava pensando, que a filha dela, a tão louvada

Márcia, jamais se comportaria assim. Márcia — ou Minha Márcia, como costumava ser chamada

— tinha 18 anos e era uma caloura em Syracuse quando Sydelle e o pai tinham se casado. Minha

Márcia, como Sydelle jamais se cansava de lembrar a Rose e a Maggie, usava um perfeito

tamanho P, formara-se com honras, trabalhara durante três anos como assistente de um dos

principais decoradores de interiores de Nova York antes de se casar com um multimilionário do

ramo da internet e graciosamente se dedicar à maternidade e a uma casa de sete quartos em Short

Hills.

— Vocês duas precisam ir embora — disse Sydelle e fechou a porta, deixando Maggie e

Rose no frio.

Maggie olhou para a janela do quarto, talvez torcendo para que o pai jogasse a carteira

pela janela. Finalmente, virou-se e seguiu até a entrada da garagem, parando apenas para arrancar

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uma das cercas vivas de Sydelle do chão e jogá-la na soleira da porta, onde pousou numa chuva

de terra. Em seguida, Maggie tirou as sandálias de salto alto e jogou-os na grama diante da irmã.

— Aí estão.

Rose cerrou os punhos. Ela devia estar no seu apartamento, na cama com Jim. Em vez

disso, aqui estava ela, no meio da noite, no meio de um gramado gelado em Nova Jersey,

tentando ajudar sua irmã, que nem queria ser ajudada.

Maggie atravessou o gramado descalça e começou a descer mancando pela rua.

— Aonde você pensa que está indo? — gritou Rose.

— Algum lugar. Qualquer lugar— respondeu Maggie. —Não se preocupe comigo, ficarei

bem. — Ela estava quase na esquina quando Rose a alcançou.

— Vamos — disse Rose, áspera. —Você pode ficar comigo. — No exato instante em

que as palavras saíam dos lábios de Rose, seus alarmes internos soavam uivos de advertência.

Convidar Maggie a ficar em sua casa era como se oferecer para hospedar um furacão, o que

aprendera da pior forma possível há cinco anos, quando Maggie fora morar com ela durante três

semanas horríveis. Maggie em sua casa significava que seu dinheiro vivia desaparecendo, junto

com seu melhor batom, seu par de brincos favoritos e seus sapatos mais caros. Seu carro sumia

durante dias e retornava com o tanque vazio e os cinzeiros cheios. As chaves de sua casa

desapareciam e suas roupas saíam bailando dos cabides para nunca mais serem vistas. Maggie na

residência significava bagunça e transtornos, cenas dramáticas, lágrimas, brigas e sentimentos

feridos. Significava o fim de toda paz e tranqüilidade pelas quais ela possa tolamente ter esperado.

E muito possivelmente, pensou com um arrepio, significaria o fim de Jim.

— Vamos — repetiu Rose.

Maggie balançou a cabeça para um lado e para o outro, na negativa exagerada de uma

criança.

Rose suspirou.

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— Será só por esta noite — disse ela. Mas ao toque da mão de Rose em seu ombro,

Maggie se virou.

— Não, não vai ser — disse ela.

— O quê?

— Porque fui despejada de novo, entendeu?

— O que aconteceu? — perguntou Rose, para não acrescentar "desta vez".

— Só faço merda — murmurou Maggie.

Fazer merda, Rose aprendera há muito tempo, era a forma sucinta de Maggie dizer que

não conseguia acompanhar o mundo, que sua dificuldade de aprendizagem a prejudicava

imensamente. Ela se enrolava com números, frações e direções. Fazer sua contabilidade pessoal

era absolutamente impossível. Ela era incapaz de cozinhar qualquer coisa seguindo uma receita.

Quando precisava seguir do Ponto A para o Ponto B Maggie acabava num Ponto K, onde

invariavelmente localizava um bar e já tinha reunido uma multidão de rapazes ao seu redor

quando Rose chegava para resgatá-la.

— Muito bem — disse Rose. Vamos encontrar uma solução para isso amanhã de manhã.

Maggie abraçou a si mesma e se levantou, magra e trêmula. Ela realmente deveria ter sido

uma atriz, pensou Rose. Era uma pena que todo este potencial dramático jamais tivesse

encontrado uso melhor do que extrair dinheiro, sapatos e abrigo temporário de sua família.

— Estarei bem — disse Maggie. — Ficarei aqui até clarear, e então... — Ela fungou. Os

pêlos de seus braços e ombros estavam arrepiados. — Então encontrarei algum lugar para ir.

— Vamos indo — disse Rose.

— Você não me quer — repetiu Maggie com tristeza. — Ninguém me quer.

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— Apenas entre no carro — Rose se virou e começou a andar até a entrada da garagem.

Não ficou nem um pouco surpresa quando, depois de um instante, Maggie seguiu-a. Havia coisas

na vida com as quais sempre se podia contar, e Maggie precisar de ajuda, Maggie precisar de

dinheiro e o simples fato de Maggie precisar era uma delas.

Maggie ficou calada durante o percurso de vinte minutos até a Filadélfia, enquanto Rose

tentava decidir como impediria sua irmã de notar que havia um homem sem calças em sua cama.

— Você fica no sofá — sussurrou depois que elas tinham entrado no apartamento,

correndo para tirar o terno de Jim do chão. Mas Maggie não deixava passar nada.

— Ora, ora, o que temos aqui? — perguntou, maliciosa. Conduziu a mão até o bolo de

roupas nos braços de Rose e emergiu, segundos depois, segurando triunfante a carteira de Jim.

Rose tentou pegar a carteira de volta, mas Maggie se esquivou. E assim começa, pensou Rose.

— Devolve isso — sussurrou. Maggie abriu a carteira.

— James R. Danvers — pronunciou alto. — Sociedade Hill Towers, Filadélfia, PA. Muito

bonitinho.

— Shhh — sussurrou Rose, lançando um olhar alarmado para a parede atrás da qual

James R. Danvers presumivelmente dormia.

— Mil novecentos e sessenta e quatro — leu Maggie com estardalhaço. Rose

praticamente pôde ouviu as engrenagens girando na cabeça de Maggie enquanto ela fazia a conta.

— Ele tem 35 anos? — perguntou finalmente. Rose tomou a carteira da mão de Maggie.

— Vá dormir — sibilou.

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Maggie escolheu uma camiseta das roupas jogadas sobre a esteira elétrica de Rose e puxou

o vestido dela pela cabeça.

— Não diga isso — alertou Maggie.

— Você está tão magra! — exclamou Rose, chocada pela visão da clavícula proeminente

de Maggie e dos ressaltos individuais de suas vértebras, que ficavam ainda mais patéticas devido

aos seus ridículos seios artificiais.

— E você não tem usado o Ab Master que te dei — retorquiu Maggie, puxando a saia

pela cabeça e se deixando cair no sofá.

Rose abriu a boca, e então a fechou. Apenas faça com que ela durma, disse a si mesma.

— Mas o seu namorado parece bonito — disse Maggie, e bocejou. — Traz para mim um

copo d'água e dois Advils?

Rose rangeu os dentes, mas pegou o medicamento e a água, e observou Maggie engolir as

pílulas, beber a água e fechar os olhos sem nem se dar ao trabalho de dizer "obrigada". No

quarto, Jim ainda estava deitado do seu lado na cama, roncando baixinho. Ela pousou

suavemente uma das mãos no braço dele.

— Jim? — sussurrou. Ele não se mexeu. Rose pensou em deitar na cama com ele, puxar

os lençóis sobre a cabeça e deixar para pensar sobre o dia seguinte pela manhã. Olhou novamente

para a porta, tornou a baixar os olhos para Jim e compreendeu que não conseguiria. Ela não

podia dormir com um homem nu tendo a irmã no cômodo ao lado. Seu trabalho era, e sempre

tinha sido, servir de exemplo para Maggie. Dormir com um homem que era mais ou menos seu

chefe não servia de exemplo. E se ele quisesse fazer sexo de novo? Maggie poderia ouvi-los, ou

pior, entrar no quarto para ver. E rir.

Em vez disso, Rose recolheu um cobertor extra do chão ao lado da cama, pegou um

travesseiro, caminhou na ponta dos pés até a sala de estar e se ajeitou na poltrona, pensando que

nos anais da história romântica, esta provavelmente era a pior maneira de terminar uma noite

como a dela. Fechou os olhos e ficou escutando a respiração de Maggie, da forma como fizera

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tantas vezes nos anos em que haviam compartilhado o mesmo quarto. Então ela rolou de um

lado para o outro, tentando se esticar o máximo possível. Por que ela pelo menos não ficou com

o sofá? Por que ela convidou Maggie, afinal de contas? E então, Maggie começou a falar.

— Lembra-se da Pão de Mel?

Rose fechou os olhos na escuridão.

— Lembro. Lembro, sim.

Pão de Mel chegara a elas na primavera, quando Rose tinha oito anos e Maggie, seis. A

mãe delas, Caroline, acordara-as bem cedo numa manhã de quinta-feira.

— Silêncio! — sussurrou, instigando ambas a vestirem seus melhores vestidos de festa, e

depois suéteres e casacos por cima. — É uma surpresa especial!

Despediram-se do pai, ainda debruçado sobre seu café e o caderno de economia do

jornal, passaram correndo pela cozinha — cuja mesa estava coberta por caixas de chocolate e a

pia entupida com pratos sujos — e entraram na caminhonete da família. Em vez de parar diante

do portão da escola, como ela fazia quase todas as manhãs, Caroline passou direto por ele e

seguiu adiante.

— Mamãe, você errou o caminho! — avisou Rose.

— Nada de escola hoje, querida — disse alegremente a mãe virando-se para trás. — Hoje

é um dia especial!

— Isso! — gritou Maggie, que ficara com o cobiçado banco da frente.

— Por quê? — perguntou Rose, que estivera esperando por aquele dia porque era o Dia

da Biblioteca na escola, e ela pegaria mais livros.

— Porque aconteceu uma coisa muito incrível — disse a mãe delas, Rose podia lembrar-

se precisamente de como a mãe estava naquele dia, o jeito como seus olhos castanhos reluziam e

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do cachecol turquesa diáfano que usava em torno do pescoço. Caroline começou a falar muito

depressa, as palavras emendando umas nas outras, olhando para trás para contar a Rose a grande

novidade. — É doce — disse ela. — Na verdade, um bolinho de chocolate. Bem, é diferente de

bolo. É melhor que bolo. É como uma cobertura cremosa de chocolate e açúcar. Já comeram

isso, meninas?

Rose e Maggie balançaram as cabeças negativamente.

— Eu estava lendo na Newsweek sobre uma mulher que fazia cheesecakes — divagou

Caroline, cantando pneu numa curva e parando abruptamente num sinal. — E todos os amigos

dela se desmanchavam em elogios pelos cheesecakes, e primeiro ela conseguiu um supermercado

na vizinhança para vendê-los, e depois conseguiu um distribuidor, e agora os cheesecakes dela são

vendidos em 11 estados. Onze!

Um coro de buzinas tocou atrás delas.

— Mamãe, o sinal ficou verde — disse Rose.

— Ah, certo, certo — disse Caroline, pisando fundo no acelerador. — Então ontem de

noite eu estava pensando, bem, eu não sei fazer cheesecake, mas sei fazer bolinho, que é um

bolo de chocolate com cobertura. A minha mãe fazia o melhor bolinho com cobertura de

chocolate do mundo, com nozes e marshmallows. Então liguei para ela para pedir a receita e

fiquei acordada a noite toda, fazendo fornadas e mais fornadas. Tive de ir duas vezes ao

supermercado comprar ingredientes, mas aqui está! — Ela virou o volante para o lado, parando

num posto de gasolina. Rose notou que as unhas de sua mãe estavam quebradas e amarronzadas,

como se ela tivesse cavado na terra. — Aqui! Experimentem! — Enfiou a mão na bolsa e retirou

dois quadrados embrulhados em papel vegetal. — "Bolinho com cobertura de chocolate R e M"

dizia o rótulo, escrito com uma coisa que Rose julgou ser lápis de sobrancelha.

— Tive de improvisar, claro. A embalagem vai mudar, mas provem e me digam se não é

o melhor bolinho com cobertura de chocolate que vocês já provaram em suas vidas?

Rose e Maggie desembrulharam o bolinho.

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— Delicioso! — disse Maggie de boca cheia.

— Hum, gostoso... — disse Rose, esforçando-se para engolir um naco do bolinho que

estava preso em sua garganta.

— "R e M" significa Rose e Maggie! — disse a mãe, voltando a dirigir.

— Por que não pode ser "M e R"? — perguntou Maggie.

— Para onde estamos indo? — indagou Rose.

— Para Lord and Taylor — respondeu alegremente a mãe. — Eu pensei nos

supermercados, é claro, mas decidi que este é um produto fino, não um artigo para prateleiras de

supermercado, e deve ser vendido em lojas requintadas e em lojas de departamento.

— O papai sabe sobre isto? — perguntou Rose.

— Vamos fazer uma surpresa para ele — respondeu Caroline. — Tirem esses suéteres e

limpem os rostos. Estamos indo fazer uma visita de vendas, meninas!

Rose virou-se de lado, lembrando o resto do dia — o sorriso educado do gerente quando

a mãe abriu a bolsa no balcão da loja e despejou duas dúzias de quadrados com rótulo "Bolinho

com cobertura R e M" em papel vegetal (e dois quadrados escritos "M e R", que Maggie mudara

no carro). Como a mãe levou as duas até o departamento infantil e lhes comprou luvinhas de pele

de coelho. Como almoçaram no salão de chá da Lord and Taylor, sanduíches de cream cheese e

azeitonas com picles não mais compridos que o mindinho de Rose, e fatias de bolo de claras de

ovos com morangos e creme batido. Como a mãe estava bonita, as faces rosadas, os olhos

cintilando, as mãos adejando como passarinhos, ignorando o próprio almoço enquanto descrevia

suas idéias de vendas, seus planos de marketing, como o "R e M" se tornaria tão popular quanto

Keebler ou Nabisco.

— Estamos começando por baixo, meninas, mas todo mundo precisa começar em algum

lugar — dissera.

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Maggie fez que sim com a cabeça, disse a Caroline quanto o bolinho era gostoso e pediu

para repetir os sanduíches e o bolo, enquanto Rose continuou sentada, tentando forçar goela

abaixo algumas mordidas do almoço e se perguntando se tinha sido a única a notar as

sobrancelhas erguidas e o sorriso excessivamente educado do gerente quando todo aquele doce

fora despejado no balcão.

Depois do almoço elas foram passear no shopping.

— Cada uma de vocês vai ganhar um presente — disse a mãe. — Qualquer coisa que

quiserem. Qualquer coisa mesmo! — Rose pediu um livro da Nancy Drew. Maggie pediu um

cachorrinho. A mãe não hesitou.

— Claro, um cachorrinho! — disse ela, elevando a voz. Rose notou que outros clientes

estavam olhando para elas: duas meninas com roupas de festa, uma mulher com uma saia florida

e um cachecol turquesa, alta e bonita, carregando seis sacolas de compras e falando alto demais.

— Devíamos ter comprado um cachorrinho há muito tempo!

— Papai é alérgico — disse Rose. A mãe ou não ouviu ou decidiu ignorá-la. Pegou as

filhas pelas mãos e correu com elas até a loja de animais, onde Maggie escolheu um pequeno

cocker spaniel castanho-amarelado que batizou de Pão de Mel.

— A mamãe era doida, mas era divertida, não era? — perguntou Maggie num tom

sonolento.

— Sim, era sim — disse Rose, lembrando-se de como elas tinham chegado em casa,

carregadas com bolsas de compras e a caixa de papelão de Pão de Mel, e encontrado o pai

sentado no sofá, ainda vestido com o terno e a gravata de trabalho, esperando.

— Meninas, vão para o quarto de vocês — disse ele, pegando Caroline pela mão e

conduzindo-a até a cozinha. Rose e Maggie, carregando Pão de Mel em sua caixa, subiram

silenciosamente mas mesmo através da porta fechada do quarto podiam ouvir a voz da mãe cada

vez mais alta. Michael, era uma boa idéia, uma idéia comercial legitima, não tem motivo para

não funcionar, e eu apenas comprei algumas coisinhas para as meninas, sou a mãe delas,

posso fazer o que quiser. Posso não levá-las para a escola de vez em quando, isso não

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importa, nós tivemos um dia agradável, Michael, um dia especial, um dia do qual sempre

irão se lembrar, e lamento ter esquecido de ligar para a escola, mas você não deveria ter

ficado preocupado, porque elas estavam comigo e EU SOU A MÃE DELAS, EU SOU A MÃE

DELAS, EU SOU A MÃE DELAS...

— Essa não — sussurrou Maggie, enquanto o cachorrinho começava a ganir. — Eles

estão brigando? A culpa é da gente?

— Shhh — disse Rose. Ela tomou o cachorrinho nos braços. O polegar de Maggie subiu

até sua boca enquanto ela se encostava na irmã. As duas ficaram escutando os gritos da mãe,

agora intercalados com o som de coisas sendo arremessadas e coisas quebrando, e o murmúrio

do pai, que parecia consistir numa única expressão: Por favor.

— Por quanto tempo tivemos Pão de Mel? — perguntou Maggie. Rose contorceu-se em

sua poltrona e se esforçou para lembrar.

— Um dia, acho — respondeu. Agora estava lembrando-se de tudo. Na manhã seguinte

ela saiu cedo para passear com o cachorro. O corredor estava escuro; a porta do quarto dos pais

estava fechada. O pai estava sentado sozinho à mesa da cozinha.

— A sua mãe está descansando. Pode cuidar do cachorro? Pode fazer o café para você

mesma e para Maggie?

— Claro — respondeu Rose. Olhou demoradamente para o pai. — A mamãe... está bem?

O pai suspirou e tornou a abrir o jornal.

— Ela está apenas cansada, Rose. Está descansando. Tente ficar quietinha e deixe-a

descansar. Cuide da sua irmã.

— Eu vou cuidar — prometeu Rose.

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Naquela tarde quando Rose voltou da escola, o cachorro tinha sumido. A porta do quarto

dos pais ainda estava fechada. E aqui estava ela, 22 anos depois, ainda mantendo aquela

promessa, ainda tomando conta de sua irmã.

— O bolinho com cobertura de chocolate era gostoso mesmo, não era? — perguntou

Maggie. No escuro, ela parecia ter novamente seis anos — feliz e otimista, uma menininha feliz

que queria acreditar em tudo que sua mãe lhe dizia.

— Era delicioso — disse Rose. — Boa noite, Maggie — disse num tom que, ela esperava,

deixaria claro que não estava interessada em mais conversas.

Quando abriu os olhos na manhã seguinte, Jim Danvers viu que estava sozinho na cama.

Espreguiçou-se, coçou-se, levantou-se, enrolou uma toalha na cintura e foi procurar Rose.

A porta do banheiro estava trancada e ele ouviu água correndo por trás dela. Bateu com

gentileza, suavemente, sedutoramente, imaginando Rose no chuveiro, a pele de Rose ruborizada e

encoberta por vapor, o busto nu de Rose adornado com gotinhas de água...

A porta abriu e uma garota que não era Rose saiu.

— Oi, você, quem é? — disse Jim, atordoado.

A garota desconhecida era mais magra, com cabelos castanho-avermelhados presos no

alto da cabeça, um rosto delicado em forma de coração, e lábios rosados e carnudos. Tinha unhas

pintadas, pernas bronzeadas que se esticavam até o queixo e mamilos duros (ele não pôde evitar

notar) marcando a malha de sua camiseta. Ela olhou sonolenta para ele.

— Isso aí que você falou, por acaso, é a minha língua? — perguntou. Seus olhos eram

grandes e castanhos, adornados por cílios e sobrancelhas pintados. Olhos duros e vigilantes, da

cor dos olhos de Rose, mas de algum modo muito diferentes.

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Jim tentou novamente.

— Olá — disse ele. — Rose está aqui?

A garota desconhecida apontou com o polegar para a cozinha.

— Lá — disse ela.

A garota se encostou contra a parede. Jim percebeu subitamente que tudo que estava

usando era uma toalha. A garota dobrou uma perna atrás de si, descansando o pé contra a parede,

e muito devagar examinou Jim dos pés à cabeça.

— Você divide o apartamento com a Rose? — perguntou, sem conseguir lembrar se Rose

tinha mencionado isso.

A garota balançou a cabeça. Rose finalmente apareceu no fundo do corredor,

completamente vestida, de sapatos e batom, segurando duas xícaras de café.

— Oh! — exclamou Rose, e parou tão de repente que o café pulou para trás, molhando

seus pulsos e a frente de sua blusa. — Vocês se conheceram?

Mudo, Jim fez que sim com a cabeça. A garota não disse nada... apenas ficou olhando

para ele com um sorriso enigmático.

— Maggie, este é Jim — disse Rose. — Jim, esta é Maggie Feller. Minha irmã.

— Olá — disse Jim, e curvou a cabeça, segurando a toalha com firmeza.

Maggie cumprimentou-o com um aceno curto. Ficaram de pé ali durante um instante, os

três, Jim sentindo-se ridículo só de toalha, Rose, com café pingando das mangas, e Maggie

olhando de um para o outro.

— Ela chegou ontem à noite — explicou Rose. — Ela foi a reunião de ex-colegas de

escola e...

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— Não acho que ele precise de detalhes — disse Maggie. — Ele pode esperar pelo E!

True Hollywood Story, como todo mundo mais.

— Desculpe — disse Rose.

Maggie fungou, virou-se e começou a caminhar de volta para a sala de estar. Rose

suspirou.

— Desculpe-me — repetiu. — Com ela tudo é sempre um drama.

— Ei, eu quero ouvir a história toda — disse Jim, baixinho. — Me dê só um minutinho...

— disse ele, apontando com a cabeça para o banheiro.

— Oh! — exclamou Rose. — Sinto muito.

— Não se preocupe — disse ele, sussurrando. Beijou o rosto de Rose, roçando a pele

macia com sua barba por fazer. Ela estremeceu, e o café que sobrara agitou-se nas xícaras.

Meia hora depois, quando Jim e Rose estavam saindo, Maggie retornara para o sofá. Um

pé descalço e uma panturrilha lisa e nua sobressaindo dos lençóis. Rose teve certeza de que ela

não estava dormindo. Teve certeza de que isto — a curva bronzeada da perna, as unhas

vermelhas — era uma exposição calculada. Enquanto conduzia Jim apressadamente até a porta,

Rose pensou que era aquilo que ela tinha desejado fazer — o clássico despertar hollywoodiano,

toda cheia de marcas e bela, com um sorriso sedutor no rosto. Mas, como sempre, tinha sido

Maggie quem fizera o papel de sensual e fascinante, enquanto ela aparecera toda agitada como

Betty Crocker, oferecendo café às pessoas.

— Vai trabalhar hoje? — perguntou ele.

Ela assentiu.

— Trabalhando nos fins de semana — brincou. — Eu tinha esquecido como é ser um

funcionário. — Ele se despediu dela na porta da frente com um beijo, uma beijoca rápida de

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colegas de trabalho, e procurou em sua carteira pelo recibo do estacionamento. — Que coisa

estranha — disse ele, testa franzida. — Podia jurar que tinha umas cem pratas aqui.

Maggie, pensou Rose consigo, enquanto buscava uma nota de vinte em sua carteira.

Maggie, Maggie, Maggie, que sempre me faz pagar.

—2 2 2 2 —

anhã. Deitada sozinha no centro da cama, Ella Hirsch avaliava suas

diversas dores, aflições e sofrimentos. Começou com o

desconjuntado tornozelo esquerdo, progrediu para o latejante

quadril direito, parou nos intestinos (que pareciam a um só tempo vazios e embrulhados) e

moveu-se gradualmente para cima, passando pelos seios que encolhiam a cada ano, pelos olhos (a

cirurgia de catarata do mês passado fora um sucesso) e pelos cabelos que, compridos e tingidos

de castanho-claro, estavam terrivelmente fora de moda, mas eram sua única vaidade.

Nada mal, nada mal, pensou Ella enquanto empurrava para fora da cama primeiro a

perna esquerda, depois a direita, repousando suavemente os pés no frescor do soalho azulejado.

Ira, seu marido, sempre fora contra azulejos: "Duros demais", dizia. "Frios demais!" Por causa

disso, eles haviam coberto todo o chão da casa com carpete. Carpete bege. No dia em que Ira

bateu as botas, Ella pegou o telefone e, duas semanas depois, o carpete tinha ido embora e ela

tinha azulejos: lisos e refrescantes azulejos brancos, de aspecto marmoreado, levemente puxados

para o creme.

Ella colocou as mãos sobre as coxas, embalou-se para trás e para a frente, uma vez e

então duas, e fez força para sair, gemendo um pouco, da cama tamanho queen — sua segunda

aquisição pós-Ira. Era a segunda feira depois do Dia de Ação de Graças, e a Golden Acres, "uma

comunidade de aposentados ativos da terceira idade", estava anormalmente silenciosa, porque a

M

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maior parte desses cidadãos ativos passara o feriado com os filhos e os netos. Ella também

celebrara, ao seu próprio modo. Jantara um sanduíche de peru.

Alisou a colcha e se pôs a planejar o dia: desjejum e o poema que precisava concluir;

depois pegaria o bonde elétrico até o ponto de ônibus e seguiria para sua sessão semanal como

voluntária no abrigo de animais. Depois viria para casa almoçar e tirar um cochilo, e talvez ler

durante uma ou duas horas — estava no meio de um livro de contos de Margaret Atwood para

deficientes visuais. O jantar era servido cedo. Ouvira alguém dizer brincando "Aqui o restaurante

encerra a hora do jantar às quatro da tarde", e era engraçado porque era verdade. Depois disso o

clube ofereceria a Noite de cinema. Mais um dia vazio, ocupado ao máximo possível.

Ella cometera um erro ao se mudar para cá. Flórida tinha sido idéia de Ira.

— Um novo começo — dissera ele, abanando-se com os folhetos diante da mesa da

cozinha, com as lâmpadas reluzindo na área calva, no relógio de ouro e na aliança. Ella mal olhara

as fotografias em papel brilhante das praias ornadas com palmeiras, dos prédios brancos com

elevadores, rampas para cadeiras de rodas e boxes de chuveiro com corrimões de aço inoxidável

embutidos. Pensara apenas que Golden Acres, ou qualquer uma da dúzia de comunidades que

eram iguais, sem tirar nem pôr, seria um bom esconderijo. Nada mais de velhos amigos e

vizinhos para alugá-la no correio ou na mercearia, colocando mãos bem-intencionadas em seu

braço e perguntando: Como vocês estão se saindo? Faz quanta tempo agora? Ela ficara quase

feliz, quase esperançosa, empacotando todos os seus pertences na casa de Michigan.

Na época ela não sabia, não poderia ter adivinhado, que uma comunidade de aposentados

era focada em crianças. Eles não mostravam isso nos panfletos, pensou amarga. Eles não

mostraram que cada sala de estar que ela visitaria teria cada superfície disponível abarrotada com

fotografias de crianças, netos, bisnetos. Como toda conversa sempre terminava nesse bem tão

precioso. Minha filha adorou esse filme. Meu filho comprou um carro igualzinho a esse.

Minha neta vai prestar vestibular. Meu neto disse que o senador é um vigarista.

Ella mantinha-se o mais afastada possível das outras mulheres. Mantinha-se ocupada com

o abrigo para os animais, o hospital, o programa Refeições sobre rodas, arrumando livros nas

estantes da biblioteca, etiquetando itens na loja de artigos de segunda mão, e escrevendo coluna

para o semanário de Golden Acres.

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Naquela manhã sentou-se à mesa da cozinha, a xícara de chá fumegante à sua frente, o sol

reluzindo no soalho azulejado, e pegou um caderno e uma caneta. Ia terminar o poema que

iniciara na semana anterior. Não que fosse uma grande poeta, mas Lewis Feldman, editor da

Golden Acres Gazette, procurara-a em desespero depois que a poeta regular fraturara o quadril.

O prazo final era quarta-feira, e ela queria deixar a terça livre para a revisão.

"Apenas porque sou idosa" era o título que inventara. "Apenas porque sou idosa",

começava o poema, "porque caminho um pouco mais lentamente, porque meu cabelo está

ficando grisalho, porque passo a maior parte do dia dormindo..."

E ela só tinha chegado até aí. Bebericou o chá, pensando. Apenas porque ela era idosa... e

depois?

"EU NÃO SOU INVISÍVEL", escreveu em letras de fôrma grandes. Depois riscou. Não

era verdade. Ela sentia que tinha sido apagada ao chegar aos sessenta anos, e que estava invisível

havia 18 anos. As pessoas de verdade — as pessoas jovens — olhavam através dela. Mas

"invisível" era uma palavra muito difícil para se encontrar rima.

Decidiu retomar a frase "eu não sou invisível" e escreveu, na linha de baixo, "Eu sou

importante". Importante seria mais fácil de rimar. Mas rimar com o quê? "Embora não seja mais

uma debutante", "Ainda não estou agonizante", "Mesmo não sendo mais provocante".

Sim! Provocante era bom. As pessoas em Golden Acres iriam se identificar com isso. Em

particular, pensou e esboçou um sorriso, sua quase amiga Dora, que era voluntária junto com ela

na loja de artigos de segunda mão. Todas as roupas de Dora tinham elástico na cintura, e mesmo

assim ela sempre pedia chantili para acompanhar a sobremesa.

— Passei setenta anos cuidando da silhueta — dizia ela, enfiando na boca uma colherada

de bolinho com cobertura de chocolate ou cheesecake. — Como o meu Mortie já se foi, por que

eu deveria me preocupar?

"Eu sou importante, mesmo não sendo mais provocante, ainda estou aqui", escreveu Ella.

"Tenho ouvidos para escutar os sons da vida ao meu redor..."

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O que era verdade, pensou. Exceto que os sons da vida em Golden Acres eram, para ser

completamente honesta, o zumbido constante do tráfego, o uivo ocasional de uma sirene de

ambulância, e pessoas brigando porque tinham deixado suas roupas na secadora coletiva que

ficava no fundo do corredor, ou posto garrafas de plástico na cesta de lixo "apenas para vidros".

Nada disso poderia ser definido como material poético.

"O ronronar gentil do oceano", escreveu. "Os risos das crianças. A melodia de sol e

sorrisos."

Pronto, isso estava bom. A parte do oceano até era possível. Golden Acres ficava a um

quilômetro e meio da praia. O bonde ia até lá. E "a música de sol e sorrisos". Lewis gostaria

disso. Em sua vida antes de Golden Acres, Lewis administrara uma rede de lojas de ferramentas

em Utica, Nova York. Mas ele gostava muito mais de editar — fazer jornais, como ele se referia.

Sempre que o via, estava com um lápis vermelho enfiado atrás da orelha, como se pudesse ser

chamado a qualquer momento para redigir uma manchete ou revisar algum texto.

Ella fechou o caderno e tomou um gole de chá. Oito e meia e já estava esquentando.

Levantou da cadeira pensando apenas no dia cheio que a aguardava, a semana cheia depois disso.

Enquanto caminhava, ouviu as coisas sobre as quais acabara de escrever: risos de crianças.

Meninos, a julgar pelo som. Ouviu seus gritos e suas sandálias estalando no chão enquanto

corriam pelo corredor do lado de fora, caçando os pequenos camaleões que ficavam nos peitoris

das janelas se banhando ao sol. Eram os netos de Mavis Gold, pensou. Mavis mencionara que

estava para receber uma visita.

— Peguei um! Peguei um! — gritou um dos meninos, a voz cheia de empolgação.

Ella fechou os olhos. Devia sair e dizer que eles não precisavam ter medo, que os

camaleões tinham mais a temer das palmas e dedos dos meninos que os meninos tinham a temer

dos camaleões. Devia ir até lá aconselhá-los a parar de gritar antes que o Sr. Boehr do 6-B saísse e

começasse a protestar, aos gritos, que sofria de insônia.

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Em vez disso, deu as costas para a janela antes que abrisse as persianas para olhar os

meninos. Crianças doíam... mesmo que mais de cinqüenta anos tivessem se passado desde que

sua filha fora criança, e mais de vinte anos desde que vira suas netas pela última vez.

Ella comprimiu os lábios e caminhou resoluta até o banheiro. Hoje não seguiria esse

caminho. Não queria pensar na filha que se fora, ou nas netas que jamais viria a conhecer, na vida

que lhe fora roubada, extirpada completamente como um tumor, sem deixar nem mesmo uma

cicatriz para lembrá-la do passado.

—3 3 3 3 —

ada vez mais, Rose Feller suspeitava de que seu chefe era maluco. Claro,

todo mundo pensa que seu chefe é maluco. Todos os amigos de Rose —

está certo, Amy — reclamavam das coisas de sempre: as exigências

irracionais, o tratamento desatencioso, uma passada de mão depois de uma bebedeira durante o

piquenique da firma.

Mas agora, entrando na sala de conferências para a reunião de incentivo que Don

Dommel instituíra como um ritual das tardes de sexta-feira, Rose mais uma vez se deparou com a

possibilidade de que um dos sócios fundadores de sua firma não era apenas excêntrico ou

peculiar, ou qualquer um dos adjetivos educados que se costuma atribuir a homens poderosos,

mas simplesmente louco de pedra.

— Pessoal! — gritou o homem do momento, esmurrando um gráfico de horas de folga

da empresa feito em Power Point. — Nós TEMOS de fazer MELHOR que ISTO! ISTO é

BOM, mas não é ÓTIMO. E com o talento que temos, nem ÓTIMO é SUFICIENTEMENTE

BOM! Precisamos LARGAR o corrimão e FAZER UMA MANOBRA RADICAL PARA CIMA

até a excelência! VAMOS DAR UM OLLIE!

C

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— Hein? — murmurou o funcionário à direita de Rose. Ele tinha cabelos ruivos

encrespados e sua pele desnatada, branca como leite, era uma insígnia de honra neste lugar, o

indício de que ele estava usando o mínimo de suas horas de folga e, portanto, não saindo muito.

Simon fulano de tal, pensou Rose.

Rose deu de ombros, e se afundou em sua cadeira. Quantos escritórios de advocacia

tinham reuniões de incentivo às sextas-feiras, afinal? Quantos funcionários recebiam skates

fabricados sob encomenda com a frase ADVOCACIA DOMMEL pintada, em vez do

costumeiro bônus em dinheiro antes do feriado de Natal? Quantos sócios-gerentes faziam

discursos semanais baseados em metáforas esportivas, seguidos por uma interpretação

superamplificada de "I Believe I Can Fly"? E aliás, quantos escritórios de advocacia tinham uma

canção-tema? Não muitos, Rose pensou amargamente.

— Um Ollie é uma pessoa ou uma coisa? — persistiu Simon fulano de tal.

Rose deu de ombros, torcendo, como fazia todas as semanas, para que o olhar Xtreme de

Dommel não caísse sobre ela. Don Dommel sempre tinha sido um atleta. Começara a correr nos

anos 1970 e atingira seu apogeu nos anos 1980, chegando mesmo a completar algumas

competições de triátlon antes de mergulhar de cabeça no admirável mundo novo dos esportes

radicais e levar seu escritório de advocacia junto. Em algum momento depois de seu aniversário

de cinqüenta anos, ele decidira que os exercícios convencionais, por mais vigorosos que fossem,

não bastavam. Don Dommel não queria apenas estar em excelente forma física; Don Dommel

queria ser bacana e radical. Queria ser um advogado de 53 anos num skate. Don Dommel,

aparentemente, não via qualquer contradição entre essas duas coisas.

Comprou dois skates de fabricação especial, encontrou um menor praticamente

abandonado que parecia morar no Love Park e contratou-o como instrutor. (Tecnicamente, o

menino trabalhava na sala de correspondências, mas ninguém jamais tinha visto mais do que as

pontas de suas trancinhas do tipo rastafári lá embaixo.) Ele construiu uma tampa de madeira

dentro do estacionamento da firma e passava cada minuto de sua hora de almoço praticando

nela. Continuou treinando mesmo após ler quebrado o pulso e fraturado o cóccix, acidente que

durante algum tempo o fez andar cambaleando pelos corredores da firma, como uma drag queen

que precisava urgentemente de ensaio.

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E não lhe bastava que ele próprio se tornasse um guerreiro urbano. Don Dommel

precisava estender sua visão a toda a firma. Certa sexta-feira, Rose chegara ao trabalho e

encontrara uma camisa de náilon enfiada na sua caixa de correio, com seu sobrenome nas costas

acima das palavras Eu posso voar!

— Pelo amor de Deus, eu mal consigo andar antes de tomar o café — dissera Rose à sua

secretária.

Mas as camisas de náilon não eram opcionais. Um e-mail enviado à firma inteira declarou

que todos os funcionários deveriam usá-las todas as sextas-feiras. Na semana seguinte, depois de

relutantemente jogar a camisa sobre os ombros, Rose colocara sua caneca sob a máquina de café

e descobriu que, assim como todas as máquinas de refrigerante na firma, só tinha Gatorade. Que,

da última vez que Rose verificou, não continha cafeína. O que significava que não lhe faria bem

nenhum.

Assim, agora ela estava sentada desanimadamente no centro da terceira fileira com a

camisa sobre seu terninho, tomando uma bebida esportiva morna e desejando desesperadamente

tomar café. "Isto está ficando ridículo", murmurou para si mesma, enquanto Dommel mais uma

vez interrompia sua palestra sobre o tema previamente divulgado ("Depoimentos eficazes", se

Rose lembrava bem) para exibir um vídeo com os melhores momentos de Tony Hawk.

— Prist — chamou Simon com o canto da boca, enquanto Dommel atacava um

funcionário que se afundava cada vez mais na cadeira. ("VOCÊ! VOCÊ ACREDITA QUE

POSSA PAIRAR NOS ARES?")

Rose olhou para ele.

— "Prist"? Você realmente disse "prist"? Por acaso estamos numa trama detetivesca?

Simon levantou as sobrancelhas de modo furtivo e abriu uma sacola de papel marrom. O

nariz de Rose se contorceu ao sentir o aroma de café. Ela ficou com água na boca.

— Quer um pouco? — sussurrou ele.

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Ela hesitou, olhou a sua volta, considerou as brechas na etiqueta envolvidas em bebericar

o café de outra pessoa então decidiu que, se não ingerisse um pouco de cafeína, ficaria irrequieta

e irritada pelo resto do dia. Ela abaixou a cabeça e tomou um gole.

— Obrigada — ela sussurrou. Ele balançou a cabeça positivamente, e nesse exato

instante o olhar fulminante de Don Dommel focou nele.

— VOCÊ! — berrou Dommel. — QUAL É O SEU SONHO?

— Medir um metro e noventa — respondeu sem hesitação Simon. Um sussurro ecoou

no fundo da sala. — E jogar pelos Sixers. — O sussurro aumentou. De pé no palco, Don

Dommel parecia estarrecido, como se a sua platéia de funcionários leais tivesse subitamente se

transformado em burros. Simon continuou: — Talvez não no centro. Eu não me importaria de

jogar no meio campo. Mas se isso não vai acontecer... — Ele fez uma pausa e olhou fixamente

para Don Dommel. — Então eu me contentaria em ser um bom advogado.

Rose soltou uma risadinha. Don Dommel abriu a boca, e então a fechou; finalmente

avançou pelo palco.

— ISSO! — anunciou. — ESSE é o ESPÍRITO que estou procurando. Eu quero que

TODOS VOCÊS pensem nesse tipo de ATITUDE VENCEDORA! — concluiu Dommel. Rose

tirou a camisa de cima de seu terninho e a enfiou na bolsa antes que ele calasse a boca.

— Tome — disse Simon, oferecendo-lhe sua xícara de café. — Tenho mais na minha

sala, se você quiser este.

— Ah, obrigada — respondeu Rose, aceitando a xícara, ainda vasculhando o mar de

corpos em retirada à procura de Jim. Ela o encontrou diante da mesa da recepcionista.

— Pelo amor de Deus, o que foi aquilo? — perguntou.

— Por que não vem à minha sala e conversamos sobre isso? — perguntou em benefício

de qualquer um que por acaso estivesse ouvindo, e abrindo um sorriso matreiro exclusivamente

para ela. Ele fechou a porta e girou-a em seus braços.

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— Humm... será que estou sentindo um gostinho de café? — perguntou, depois de beijá-

la.

— Não me entregue — disse Rose, beijando-o em resposta.

— Jamais — grunhiu ele, agarrando-a pelos quadris, levantando-a (Oh, Deus, pensou

Rose, não permita que ele se machuque!) e colocando-a sobre sua mesa. — Seus segredos estão

seguros — disse ele, beijando o pescoço de Rose. E agora seus lábios estavam descendo pelo

colo de Rose, e suas mãos ocupavam-se dos botões das roupas dela. — Estão seguros comigo.

—4 4 4 4 —

s onze horas da manhã da segunda-feira seguinte, Maggie Feller abriu os

olhos e esticou os braços para cima. Rose tinha ido embora. Maggie

caminhou até o banheiro, onde bebeu bastante água e prossegui o exame

minucioso de seu habitat, começando com o armário de remédios, onde as prateleiras estavam

tão bem estocadas que parecia que a irmã esperava que uma terrível emergência médica se

abatesse sobre a Filadélfia, e que ela sozinha seria convocada para bancar a Florence Nightingale

para a população inteira da cidade.

Havia garrafas de analgésicos, caixas de antiácidos, um frasco tamanho gigante de Pepto-

Bismol, uma caixa tamanho-família de Band-Aid e um estojo de primeiros socorros aprovado

pela Cruz Vermelha. Havia Midol, Advil e Nupin, NyQuil e DayQuil, xarope para tosse,

antigripais e absorventes internos. Está aqui uma garota que sustenta seu farmacêutico, pensou

Maggie, enquanto verificava ataduras e complexos multivitamínicos, suplementos de cálcio e fio

dental, álcool e água oxigenada, peróxido de benzoil e quatro escovas de dentes ainda lacradas.

Onde estava o delineador? Onde estavam o blush e o corretivo dos quais sua irmã tanto

precisava? Maggie não encontrara nenhum cosmético além de um único batom usado pela

metade. Havia também removedor de maquiagem — uma bisnaga de creme para limpeza da pele

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—, mas nenhuma maquiagem. O que Rose achava? Que alguém iria entrar no seu apartamento

no meio da noite, amarrá-la, aplicar maquiagem em seu rosto e então ir embora?

Além disso, não havia uma única camisinha ou tubo de espermicida, embora houvesse um

pacote não aberto de Monistat — apenas para o caso de sua irmã celibatária contrair de alguma

forma uma infecção por fungo num assento sanitário ou algo assim. Provavelmente estava em

promoção, Maggie grunhiu de desprezo enquanto se servia de uma garrafa de Midol.

O banheiro também não dispunha de balança. O que não era surpresa, considerando o

histórico de Rose com balanças de banheiro. Quando elas eram adolescentes, Sydelle pregou com

fita adesiva uma tabela na parede do banheiro das meninas. Toda manhã de sábado Rose subia na

balança, olhos fechados e rosto impassível, enquanto Sydelle registrava o peso e em seguida

sentava sobre o assento da privada para interrogá-la sobre o que comera durante a semana.

Maggie ainda podia ouvir a voz excessivamente doce de sua madrasta: Você comeu salada?

Bem, que tipo de molho usou como acompanhamento? Era sem gordura? Tem certeza? Rose,

só estou fazendo isto para ajudar. Eu só penso no que é melhor para você.

Tá bom, pensou Maggie. Como se Sydelle se interessasse por alguém além de si mesma e

sua própria filha. No quarto, Maggie vestiu uma calça de moletom da irmã e prosseguiu seu

inventário, colhendo o que chamava de Informação.

— Você é uma menina muito esperta — costumava dizer-lhe sua velha professora do

primário, a Sra. Fried. A Sra. Fried, com seus cachos cinzentos e busto imponente, com suas

correntes de contas para prender os óculos e coletes de tricô, ensinara a Maggie durante seis anos

o que era denominado sob o eufemismo de "melhoramento" (e o que era conhecido pelos

estudantes como "educação especial"), da segunda à sexta série. Era uma mulher gentil, com ar de

vovó, que se tornara aliada de Maggie, sobretudo durante seus primeiros meses numa nova

escola, num novo estado. — Parte do que faz de você uma menina tão esperta é que sempre

pensa em outra maneira de completar uma tarefa. Assim, se você não sabe o que uma palavra

significa, o que deve fazer?

— Chutar? — chutou Maggie.

A Sra. Fried sorriu.

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— Eu chamaria isso de deduzir pelo contexto. O que importa é encontrar soluções.

Soluções que funcionem para você. — Maggie assentira com a cabeça sentindo-se satisfeita e

envaidecida, que não eram sentimentos que ela costumava ter na escola. — Então imagine que

você está indo ao teatro para assistir a um show, mas se depara com um engarrafamento terrível.

Você iria para casa? Faltaria ao show? Não. — Assim dissera a Sra. Fried antes que Maggie

tivesse uma chance de perguntar quem estava tocando nesse show hipotético para que ela

pudesse deduzir quanto valia a pena esforçar-se por ele. — Você só teria de descobrir outra

maneira de chegar lá. E você é inteligente o bastante para fazer isso muito bem.

Além de descobrir um significado a partir do contexto, as estratégias alternativas da Sra.

Fried ensinaram Maggie a somar números se não conseguisse multiplicá-los, a marcar o

significado de um parágrafo, circulando o sujeito, sublinhando os verbos. Desde a escola, Maggie

inventara algumas estratégias próprias, como a da Informação, que poderia ser definida como

descobrir coisas sobre as pessoas que elas não queriam ou não esperavam que você descobrisse.

Informação sempre era útil e em geral era muito fácil de obter. Com o passar dos anos, Maggie

secretamente xeretou contas de cartão de crédito e diários, extratos bancários e fotografias velhas.

No segundo grau, localizou um exemplar velho de Forever debaixo do colchão da cama de Rose.

Rose dera-lhe toda sua mesada durante quase um ano letivo antes de decidir que não se

importava se Maggie contasse ao pai que ela havia dobrado a ponta das páginas com as cenas de

sexo.

Maggie xeretou a mesa de sua irmã. Encontrou uma conta de gás, uma de luz, uma de

telefone e uma de TV por assinatura, todas reunidas com um clipe, os envelopes de resposta já

portando selos e etiquetas com endereções. Aqui estava um recibo da Tower Records, que lhe

informava que Rose comprara (e pior, não fora em promoção) um CD com os maiores sucessos

de George Michael. Maggie guardara o recibo, certa de que ele seria útil, ainda que não tivesse

certeza de como. Um recibo da Sarks por um par de sapatos. Trezentos e doze dólares. Muito

bom. Um horário de aula na ginástica, seis meses defasado. Nenhuma surpresa aí. Maggie fechou

a gaveta e seguiu para o que tinha certeza de que seria a região mais deprimente do armário de

Rose.

Ela olhou de cabide em cabide, balançando a cabeça com pesar para as roupas que

variavam em tom de preto a marrom, com um ocasional suéter cinza misturado por diversão.

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Sem graça, sem graça, sem graça. Terninhos tediosos enfileirados, suéteres desalinhados, meia

dúzia de saias projetadas para ressaltar os culotes de Rose, como se ela as tivesse escolhido para

conferir às pernas a ilusão de que eram bem grossas. Maggie poderia ajudá-la, mas Rose não

queria ajuda. Rose achava que sua vida era boa. Rose achava que as outras pessoas é que tinham

problemas.

Houve uma época, quando eram menininhas, em que as pessoas pensavam que elas eram

gêmeas, com seus rabos-de-cavalo e olhos marrons idênticos, e a forma petulante com que seus

queixos apontavam para a frente. Bem, não era mais assim. Rose talvez fosse cinco ou seis

centímetros mais alta, e pelo menos 22 quilos mais pesada, talvez mais — Maggie podia detectar

uma leve flacidez debaixo da mandíbula, o começo do temido papo. No armário havia blusas da

marca Lane Bryant que Maggie nem queria tocar, embora soubesse que gordura não fosse

contagiosa. E Rose simplesmente não se importava. Seus cabelos, que chegavam aos ombros,

geralmente eram embolados num coque desleixado ou num rabo-de-cavalo ou, pior, presos numa

daquelas piranhas de plástico que todo mundo concordara tacitamente em parar de usar há cinco

anos. Maggie nem sabia ao certo onde Rose ainda conseguia encontrá-las — talvez em lojas de

US$ 1,99 —, mas de algum modo ela possuía um suprimento infindável, embora Maggie sempre

fizesse questão de jogar algumas no lixo sempre que a visitava.

Maggie respirou fundo, empurrou o último casaco para o lado e começou com a coisa

que vinha guardando para o final — os sapatos do sua irmã. Como sempre, o que viu a deixou

embasbacada e enjoada, como uma menininha que comeu doces demais. Rose, a gorda,

preguiçosa e cafona Rose. Rose, que não se dava ao trabalho de esfoliar, hidratar ou polir as

unhas, milagrosamente conseguira adquirir dúzias de pares dos sapatos mais absolutamente

perfeitos do mundo. Havia sapatos baixos, altos e de salto agulha da marca Mary Janes,

mocassins de camurça macios que você queria esfregá-los no rosto, um par de sandálias Chanel

que eram pouco mais que uma fina sola de couro com fios e um laço. Havia botas Gucci pretas

reluzentes que iam até a altura do joelho, botas de cano curto Stephane Kelian em tom de canela,

um par de botas de caubói carmesim. Hush Puppies rendados; Sigerson Morrison de salto baixo

e mules de Manolo Blahnik. Havia mocasssins de camurça Steve Madden e, ainda em sua caixa da

Saks, um par de Prada brancos com margaridas brancas e amarelas aplicadas sobre os dedos.

Maggie respirou fundo e os calçou. Como sempre — como acontecia com todos os sapatos de

Rose —, eles couberam perfeitamente.

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Não é justo, pensou enquanto caminhava até a cozinha com o par de Prada. Onde Rose

usaria um par de sapatos como este? E para quê? Com uma careta de raiva, abriu o armário da

cozinha. Pães integrais. All-Bran. Cereais. Arroz integral. Meu Deus, pensou, torcendo o nariz.

Será que era a Semana do cólon saudável? E não havia Cheetos, nem Doritos... nada do

importantíssimo grupo alimentar das frituras. Vasculhando o freezer, passou por hambúrgueres

de soja e sorvetes naturais de frutas até finalmente encontrar uma sujeira: uma caixa de Ben and

Jerry's New York Superfudge Chunk, ainda em sua caixa de papel marrom. Sorvete sempre fora o

que ela consumia quando precisava de consolo, pensou Maggie, pegando uma colher e voltando

para o sofá, onde um caderno de jornal jazia no centro da mesa de café, com uma caneta

vermelha pousada ao lado. Maggie pegou a caneta. Os classificados do dia, prestativamente

fornecidos por sua irmã Rose. É claro.

Bem, pensou ela, este é um momento ruim. Esta era uma das coisas que a Sra. Fried

costumava dizer. Sempre que alguma coisa dava errado na sala de aula — uma lata de tinta

derramada, um livro perdido —, a Sra. Fried levava as mãos ao peito e, balançando a cabeça até

que a corrente que prendia seus óculos chacoalhasse, dizia:

— Bem, este é um momento ruim!

Porém, nem mesmo a Sra. Fried poderia ter previsto isto, pensou Maggie, tomando

sorvete com uma das mãos e folheando os classificados com a outra. Nem mesmo a Sra. Fried

poderia ter previsto que a queda de Maggie Feller seria tão rápida, deixando-a com a impressão

de que entre as idades de 14 e 16 anos ela tivesse despencado de um penhasco e estivesse caindo

desde então.

O primário e o primeiro grau tinham sido agradáveis, lembrou enquanto enfiava mais

rapidamente colheradas de sorvete na boca (e não notando quando, sem querer, deixou cair uma

noz coberta de chocolate no sapato). Maggie precisava comparecer às aulas de "melhoramento"

durante a hora do recreio três vezes por semana, mas nem isso a incomodava muito, porque

ainda era a menina mais bonita e divertida da turma, a menina que tinha as roupas mais

charmosas, as fantasias de Halloween mais imaginativas — feitas por ela mesma —, as invenções

mais interessantes sobre o que fazer durante a hora do recreio. E depois que a mãe morreu e eles

se mudaram para Nova Jersey, enquanto o pai passava a tarde no trabalho, Sydelle saía para

alguma atividade voluntária e Rose, obviamente, estava ocupada com o clube de xadrez ou com a

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equipe de debates, Maggie era a menina com acesso a uma casa vazia e um armário de bebidas

sem cadeado. Ela era popular. Era Rose quem era a CDF, a esquisita, a perdedora; era Rose quem

caminhava curvada com seus óculos grossos escondendo metade do rosto e que tinha caspa

acumulada nos ombros; era de Rose que as meninas riam.

Fechando os olhos, Maggie ainda podia lembrar-se de uma tarde durante o recreio. Ela

estava na quarta série e Rose, na sexta. Maggie estava indo brincar de amarelinha com Marissa

Nussbaum e Kim Pratt quando Rose, distraída, segurando um livro diante da cara, passou no

meio de um jogo de queimado.

— Ei, sai daí! — gritou um dos meninos mais velhos, da sexta série, e Rose levantou a

cabeça e pareceu desorientada.

Saia daí, Rose, pensou Maggie o mais forte que podia, enquanto Kim e Marissa riam.

Rose continuou caminhando, sem apertar o passo. Um dos outros meninos grandes pegou a bola

e a arremessou contra Rose, tão forte quanto pôde, ofegando com o esforço. Mirou no corpo,

mas sua pontaria não foi boa; acertou Rose atrás da cabeça. Os óculos dela foram jogados longe.

Os livros saíram voando de seus braços quando Rose cambaleou para a frente, trocou um pé pelo

outro e caiu de cara no chão.

O coração de Maggie parou de bater. Ficou parada como se tivesse sido congelada,

imóvel como o círculo de meninos da sexta série, que se entreolharam inquietos — como se

tentando decidir se aquela ainda era uma situação engraçada ou se haviam machucado a menina e

estivessem enrascados. Finalmente um deles — mais provavelmente Sean Perigini, o menino

mais alto da sexta série — desatou a rir. E logo todos estavam rindo, todos os meninos da sexta

série, e em seguida todos que haviam assistido à cena, enquanto Rose, obviamente, chorava

enquanto limpava a sujeira do rosto com uma das palmas, que sangrava devido à queda, e

começava a tatear à sua volta à procura dos óculos.

Maggie ficou parada lá, parte dela sabendo que não deveria deixar que eles fizessem

aquilo, e parte dela pensando, cruelmente, deixe que Rose se vire. É ela quem é uma perdedora.

Foi ela quem pediu isto. Além do mais, não era Maggie quem ajeitava as coisas. Era Rose.

Assim, Maggie ficou parada, observando, durante o que pareceu um período insuportavelmente

logo, até Rose achar seus óculos. Uma das lentes tinha se rachado, percebeu Maggie enquanto

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Rose levantava cambaleante, recolhendo seus livros e... oh, não. As calças de sua irmã haviam

rasgado atrás e Maggie e todo mundo podiam ver sua calcinha. As risadas chegaram ao ponto da

histeria. Ah, meu Deus, pensou Maggie sentindo-se enjoada, por que Rose tinha de vestir essa

calcinha hoje?

— Você vai me pagar! — gritou Rose para Sean Perigini, segurando seus óculos

quebrados e sem ter a menor idéia de que todos podiam ver sua calcinha. As risadas aumentaram.

Os olhos de Rose percorreram o playground, passaram pelo jogo de queimado e pelas crianças

nos balanços e gangorras, crianças grandes, as da quinta e da sexta séries que estavam rindo dela,

até finalmente focar em Maggie, parada entre Kim e Marissa no pequeno trecho de gramado ao

lado do canteiro deflores que era, por consenso não declarado, reservado às meninas mais

populares. Rose semicerrou os olhos para enxergar a irmã.Maggie pôde enxergar o ódio e a

mágoa nos olhos dela com tanta clareza quanto se Rose tivesse caminhado até ela e gritado em

sua cara.

Eu devia ajudar, tornou a sussurrar uma voz dentro de Maggie. Mas Maggie ficou parada

ali, observando, ouvindo as outras crianças rirem, pensando que de algum modo isto era uma

parte sombria da acordo que fizera dela a irmã bonita.

Ela estava bem, pensou Maggie enquanto Rose limpava o rosto, juntava os livros e,

ignorando as provocações, os risos e a cantoria de "Olha a calcinha dela! Olha a calcinha dela!"

que algumas das meninas da quinta série já haviam iniciado, caminhou lentamente de volta para a

escola. Maggie jamais cometeria o erro de passar no meio de um jogo de queimado e certamente

nunca usaria calcinhas com personagens de desenhos estampados. Ela estava bem, pensou

enquanto Rose passava pela porta dupla de vidro e entrava na escola — seguindo, certamente,

para o gabinete da diretora.

— Você acha que ela está bem? — perguntou Kim, e Maggie balançou a cabeça com

desdém.

— Acho que ela é adotada — retrucou. Kim e Marissa riram, Maggie também riu, embora

a risada tenha doído em seu peito.

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E então, tão depressa quanto uma bola de queimado voando pelo ar para atingir sua

cabeça distraída, tudo mudou. Quando, exatamente? Quando Maggie estava com 14 anos, na

oitava série, no fim do primeiro grau, quando ela reinava, e às vésperas do segundo grau, quando

tudo desmoronou.

Começou com o teste de avaliação padrão.

— Nada com que se preocupar! — assegurou-lhe, num tom falsamente alegre, a

substituta da Sra. Fried para o segundo grau. A nova professora de "melhoramento" era feia, com

maquiagem pesada e uma verruga ao lado do nariz. A mulher disse a Maggie que ela poderia fazer

o teste sem limite de tempo. — Você vai se sair bem!

Quando olhou a página de lacunas em branco que deveria preencher com seu lápis

número dois, Maggie sentiu o coração afundar, compreendendo que não ia se sair bem. Você é

uma garota esperta, dissera-lhe tantas vezes a Sra. Fried. Mas a Sra. Fried tinha ficado para trás,

no primário. O segundo grau ia ser diferente. E aquele teste — "Apenas para os nossos registros!

Os resultados são mantidos em segredo!"— havia de alguma maneira lhe passado a perna e

arruinado tudo. Ela não devia ver suas notas, mas a professora deixou uma cópia em sua mesa, e

Maggie dera uma espiada, primeiro tentando ler as palavras de cabeça para baixo e depois

agarrando a porcaria do papel e virando-o para que pudesse ler. As palavras acertaram-na como

um martelo. "Disléxica", dizia. "Dificuldade de aprendizado." Era a mesma coisa que estar escrito

"você está morta", pensou Maggie, porque era isso que aquelas palavras realmente significavam.

— Agora, Maggie, não vamos ficar histéricas — dissera Sydelle naquela noite, depois que

a professora telefonara para divulgar os resultados "confidenciais". — Vamos arranjar um

professor particular!

— Não preciso de aulas particulares! — disse Maggie furiosa, sentindo lágrimas

queimarem sua garganta.

Rose, sentada num canto da sala de estar toda branca de Sydelle, levantou os olhos do

livro que estava lendo, A longa jornada.

— Pode ajudar, sabe?

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— Cala essa boca! — retrucou Maggie, as palavras proibidas disparando de sua boca. —

Não sou burra, Rose. Cala essa boca!

— Maggie — disse o pai —, ninguém está falando que você é burra...

— O teste disse que sou burra — disse Maggie. — E querem saber de uma coisa? Estou

me lixando. E por que você contou a ela? — inquiriu, apontando para Sydelle. — E para ela? —

prosseguiu Maggie, apontando para Rose. — Não é da conta delas!

— Todos nós queremos ajudar — disse Michael Feller. Maggie insistiu que não precisava

de ajuda, que não estava nem aí para o que a porcaria do teste dizia, que era esperta como a Sra.

Fried sempre lhe assegurava. Ela não precisava de professor particular. Ela não precisava ir para

uma escola particular. Ela tinha amigos, ao contrário de certas pessoas. Tinha amigos e não era

burra, apesar do que o teste dizia, e além disso, mesmo se fosse burra, preferia ser burra a ser feia

e quatro-olhos, e mesmo se fosse burra, isso não era um problema tão grande assim, ela ficaria

bem.

Mas ela não ficou bem. Quando Maggie iniciou o segundo grau, seus amigos foram

remanejados para as turmas de melhores alunos, ao passo que ela foi enfiada nas classes de alunos

problemáticos, sem nenhuma Sra. Fried para lhe dizer que ela não era burra ou retardada, que seu

cérebro apenas funcionava de forma um pouco diferente e que elas pensariam em maneiras de

ajudá-la. Maggie viu-se sob a tutela de professoras indiferentes — as mais velhas e estafadas que

queriam apenas fazer seu trabalho em paz, como a Sra. Cavetti, que usava perucas tortas e

perfume em excesso, ou a Sra. Learey, que ordenava que os alunos lessem durante a aula

enquanto enchia álbuns com fotografias de seu netos.

Maggie logo matou a charada: os piores professores pegavam os piores alunos como

punição por serem maus professores. Os piores alunos pegavam os piores professores como

punição por serem pobres... ou burros. Adjetivos que, nesta cidade esnobe, freqüentemente eram

sinônimos. Bem, concluiu Maggie, se ela era a punição de alguém, então agiria como uma

punição. Parou de levar seus livros para a escola e começou a carregar um estojo de maquiagem

do tamanho de uma caixa de ferramentas. Tirava esmalte das unhas durante as aulas e as pintava

durante os testes de múltipla escolha, aos quais sempre respondia com a mesma letra: A para uma

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matéria, B para a outra. Testes de múltipla escolha eram a única coisa que esses professores

faziam.

— Maggie, por favor, venha ao quadro — ordenava ocasionalmente um dos professores

de meia-tigela.

Maggie balançava a cabeça sem levantar os olhos do espelho de maquiagem.

— Desculpe, mas não posso ajudar — dizia, abanando as pontas dos dedos. — Minhas

unhas estão secando.

Ela devia ter sido reprovada em tudo, devia ter repetido cada série. Mas os professores

insistiam em deixá-la passar de ano — provavelmente porque não queriam vê-la novamente no

ano seguinte. E a cada ano os amigos de Maggie se afastavam mais dela. Ela tentou durante

algum tempo, e Kim e Marissa tentaram também, mas no fim das contas a lacuna ficou grande

demais. Elas jogavam, freqüentavam o conselho estudantil, faziam cursos preparatórios e

visitavam universidades... e Maggie ia ficando para trás.

No segundo ano do segundo grau, Maggie decidiu que se as meninas iriam ignorá-la, os

rapazes não iriam. Começou a usar o cabelo em penteados altos e ressaltava a fenda dos seios,

elevada por sutiãs rendados com armações de arame que sobressaíam por baixo das camisetas.

Ela chegou ao primeiro dia de aula usando uma calça de cós baixo, botas de couro preto com

salto alto, e um bustiê que usava por baixo do casaco de exército que surrupiara do pai. Batom,

esmalte, sombra suficiente nos olhos para pintar uma parede, um dos braços cheio de pulseiras

de borracha preta, e laços de tecido no cabelo. Ela se inspirou na Madonna, a quem idolatrava.

Nessa época, a MTV começava a exibir os videoclipes da cantora. Maggie devorava todas as

notícias sobre Madonna que encontrava — cada entrevista em revistas, cada perfil em jornais —

e se maravilhava com as semelhanças entre elas. Ambas tinham perdido as mães. Ambas eram

bonitas. Ambas eram dançarinas talentosas que praticavam sapateado e jazz desde pequeninas.

Ambas sabiam se virar nas ruas e tinham sex appeal para dar e vender. Os meninos zumbiam em

torno de Maggie como moscas, comprando maços de cigarro para ela, convidando-a para festas

onde pais não estariam, mantendo seu copo cheio, segurando sua mão e no fim da noite levando-

a para um quarto vazio ou para o banco traseiro de um carro.

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Levou um tempo até Maggie perceber que eles não ligavam para ela, não a convidavam

para os bailes, nem mesmo a cumprimentavam nos corredores. Ela chorava por causa disso —

tarde da noite, quando Rose já estava dormindo, quando ninguém podia escutá-la —, e depois

decidiu que não iria chorar mais. E daqui a dez anos, todos eles se arrependeriam, quando ela

fosse famosa e eles não fossem ninguém, encalhados nesta cidadezinha desprezível, gordos, feios

e pessoas comuns, sem nada de especial.

Então assim foi o segundo grau. Seguindo a turba popular como um vira-lata que ainda se

apegava às lembranças dos dias em que tinha sido o bichinho de estimação de alguém. Festas nos

fins de semana na casa daquele cujos pais estavam viajando. Cerveja e vinho, baseados ou ácido, e

ficariam bêbados, e Maggie acabou descobrindo que seria mais fácil se ela também se

embebedasse, se as coisas ficassem um tanto fora de foco e ela poderia imaginar o que quisesse

ver nos olhos deles.

E Rose... bem, Rose não sofreu o tipo de metamorfose que se vê nos filmes de John

Hughes, em que a mocinha tira os óculos, passa a usar o cabelo num corte decente e o capitão do

time de futebol americano apaixona por ela no baile de formatura. Mas ela mudou em coisas

menores. Parou de ter caspa, por exemplo, graças ao truque não tão sutil de Maggie, que deixava

grandes garrafas de xampu anti-caspa no chuveiro. Ela ainda usava óculos, ainda se vestia de um

jeito esquisito, mas em algum momento ao longo do percurso ela ganhou uma amiga — Amy,

que era, na opinião de Maggie, tão esquisita quanto Rose — e não parecia se importar com o fato

de que as meninas bonitas ainda riam dela, ou a ignoravam, e às vezes ainda se referiam a ela

como a garota da calcinha aparecendo. Rose estava nas turmas de melhores alunos, Rose só tirava

10. Durante muito tempo, Maggie considerou essas coisas apenas mais evidências da falta de

sociabilidade de sua irmã, mas então essas conquistas começaram a fazer diferença.

— Princeton! — disse Sydelle, e repetiu várias vezes, quando Rose estava no último ano

da escola e sua carta de aceitação chegou. — Bem, Rose, esta é uma conquista e tanto!

Sydelle até preparou os pratos favoritos de Rose para o jantar: galinha frita, pãezinhos e

mel... e não disse uma palavra quando Rose repetiu.

— Maggie, você deve estar muito orgulhosa da sua irmã! — disse Sydelle.

Maggie simplesmente rolou os olhos num "não estou nem aí" mudo. Como se ser aceita

em Princeton fosse tão importante assim. Como se Rose fosse a única pessoa no mundo a se

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tornar bem-sucedida apesar de ter perdido a mãe. Bem, Maggie também tinha perdido a mãe, mas

por acaso ganhara pontos extras por isso? Não, não ganhara. Ela só ganhava perguntas. Dos

vizinhos. Dos professores. De qualquer um que conhecesse sua irmã.

— Podemos esperar coisas grandiosas de você? — perguntavam a ela.

Bem, obviamente, eles não podiam, pensou Maggie, marcando bem forte um círculo

vermelho em torno de um anúncio à procura de garçonetes para um "restaurante movimentado e

bem-sucedido do centro da cidade". Ela ficou com o corpo, Rose ficou com o cérebro, e agora

estava parecendo que o cérebro contava muito mais.

Então, Rose formou-se em Princeton enquanto Maggie cursou sem ânimo alguns

períodos na faculdade local. Rose ingressou na faculdade de direito, e Maggie foi garçonete numa

pizzaria, babá e empregada doméstica e abandonou um curso para formar bartenders quando o

instrutor tentou enfiar a língua em sua orelha depois da lição sobre martínis. Rose era sem graça,

gorda e malvestida, e até esta manhã Maggie jamais soubera que ela estava namorando alguém

exceto por um período muito curto na faculdade de direito. E mesmo assim era Rose quem

possuía o apartamento maravilhoso (bem, o apartamento que poderia ser maravilhoso se Maggie

o tivesse decorado), dinheiro e amigos; era para ela que as pessoas olhavam com respeito. E este

sujeito, Jim Sei Lá O Quê, era certinho mas bonito, e Maggie podia apostar que ele também era

rico.

Não era justo, pensou Maggie, voltando para a cozinha. Não era justo que a mãe delas

tivesse morrido. Não era justo que ela tivesse de alguma maneira gastado seus poucos anos bons

na escola e agora vivesse à sombra da irmã, condenada a ver Rose conseguir tudo o que queria,

ao passo que ela não conseguia nada. Amassou a caixa vazia de sorvete, pegou o jornal e estava

começando a jogar ambos fora quando uma coisa no jornal atraiu seu olhar: testes. Maggie largou

a caixa de sorvete e concentrou toda sua atenção no jornal. "MTV Anuncia Testes para VJ's", leu

Maggie. A empolgação inflou dentro dela como um balão, junto com pânico — e se ela já tivesse

perdido os testes? Correu os olhos pela matéria o mais rápido que pôde. 1º de dezembro. Teste

aberto. Em Nova York. Ela poderia ir até lá! Diria a Rose que tinha uma entrevista de emprego,

que, tecnicamente era quase a verdade, e faria Rose emprestar-lhe dinheiro para uma passagem de

ônibus, e roupas. Ela precisaria de um traje completo. Teria de comprar alguma coisa nova;

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percebeu isso instantaneamente — nada do que tinha era apropriado. Maggie fechou o jornal

cuidadosamente e correu até o armário da irmã para ver que sapatos usaria na Big Apple.

—5 5 5 5 —

ewis Feldman conduziu a Sra. Sobel até seu escritório — um closet

convertido com as palavras Golden Acres Gazette pintadas no vidro

— e fechou a porta.

— Obrigado por ter vindo — disse, tirando o lápis vermelho de trás da orelha e

pousando-o na mesa. A Sra. Sobel empoleirou-se numa cadeira, cruzou os tornozelos e

entrelaçou as mãos sobre o colo. Era uma mulher pequena, com cabelo azulado e suéter de lã

azul e veias azuis pousando nas mãos. Lewis dirigiu a ela o que esperava ser um sorriso

tranqüilizador. Ela respondeu com um leve meneio de cabeça.

— Deixe-me começar dizendo o quanto estou grato por sua ajuda — falou ele. —

Estávamos realmente num aperto. — O que era verdade. Desde que o crítico de culinária

anterior da Gazette, o Noshing Gourmet, sofrerá um ataque cardíaco que o fizera cair de cara

numa omelete, Lewis fora obrigado a reciclar críticas antigas, e os moradores tinham ficado

inquietos, para não dizer cansados de ler sobre a Rascal House.

— Este foi um primeiro esforço muito louvável — afirmou ele, estendendo a prova de

página sobre sua mesa, para que a Sra. Sobel pudesse ver como sua critica ficaria na página.

“Restaurante italiano é uma Tentação para as Papilas Gustativas”, dizia a manchete, abaixo de um

desenho de um passarinho piscando — o Pássaro Matutino, claro — com uma minhoca no bico.

— Tenho apenas algumas sugestões — disse Lewis, enquanto a Sra. Sobel dirigia-lhe outro

meneio trêmulo. Ele inspirou fundo — dirigir lojas de ferragens não tinha sido nem de perto tão

difícil quanto lidar a cada duas semanas com os egos frágeis de mulheres aposentadas — e

começou a ler.

L

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— “O Restaurante Italiano Mangiamo está localizado no shopping de Powerline Road,

perto de onde era o Marshall e em frente à loja de sorvetes de iogurte de baixo teor calórico.

Parece fácil de chegar, mas meu marido, Irving, teve dificuldade em dobrar à esquerda."

A Sra. Sobel fez outro meneio, este ligeiramente mais confiante. Lewis continuou a

leitura.

— “O restaurante tem tapete vermelho, toalhas de mesa brancas com pequenas velas

sobre elas. O ar-condicionado fica ligado no máximo de modo que você deve levar um suéter se

for ao Mangiamo. A sopa de minestrone não é como a que eu faço. Ela tem feijões, que nem eu

nem Irving gostamos. A Caesar salad é boa, mas é feita com anchovas, logo, se você é alérgico a

peixe, deve pedir a salada da casa."

E agora a Sta. Sobel estava balançando animadamente em sua cadeira, meneando a

cabeça, repetindo as palavras num sussurro baixo.

— “De entrada, Irving queria o frango com parmesão, embora queijo não lhe faça bem

ao estômago. Eu pedi espaguete com almôndegas porque achei que Irving acabaria comendo

isso. Dito e feito: o frango era duro demais para ele mastigar, e eu lhe dei minhas almôndegas,

que eram macias.

Lewis olhou para a Sra. Sobel, que estava inclinada para a frente, olhos brilhando.

— Veja, o problema é este — disse ele, perguntando-se se Ben Bradlee e Willian

enfrentavam situações como essa. — Neste tipo de matéria a senhora deve ser objetiva.

— Objetiva — repeliu Sra. Sobel.

— Devemos tentar passar uma imagem geral de como é comer no Mangiamo.

Ela assentiu novamente, a confusão substituindo a avidez em seus olhos.

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— Portanto, quando a senhora fala sobre a dificuldade de virar à esquerda, ou que a sopa

que eles fazem é diferente da sua... — Cuidado, Lewis, disse a si mesmo, pegando seu lápis e

colocando-o novamente atrás da orelha. — Bem, essas são coisas interessantes, e estão muito

bem escritas, mas podem não ser úteis para outras pessoas que irão ler o artigo e usá-lo para

decidir se querem ou não ir lá.

A Sra. Sobel agora estava empertigada na cadeira, um caniço trêmulo e indignado.

— Mas tudo isso que eu disse é verdade! — protestou.

— Claro que é verdade — acalmou-a Lewis. — Estou questionando apenas se elas são

úteis. Como, por exemplo, falar sobre o ar-condicionado e recomendar às pessoas que levem um

suéter. Esse é um detalhe muito, muito útil. Mas a parte da sopa... nem todo leitor precisa ser

informado sobre a sopa do restaurante em relação ao contexto da sua sopa. — E então ele sorriu,

torcendo para que o sorriso funcionasse. Pensou que provavelmente funcionaria. Sua esposa,

Sharla, a saudosa Sharla, falecida há dois anos, sempre lhe disse dissera que ele conseguia sair de

qualquer enrascada sorrindo. Lewis não era um homem bonito e sabia disso. Ele tinha um

espelho, e seus olhos não eram tão mais atraentes. Ele ainda podia dizer que era mais parecido

com Walter Matthau do que com Paul Newman. Ele tinha rugas até nos lóbulos das orelhas. Mas

o sorriso ainda funcionava. — Tenho certeza de que qualquer sopa seria pior se comparada à sua.

A Sra. Sobel fungou. Mas definitivamente estava parecendo menos ofendida.

— Por que a senhora não leva esta prova para casa, dá uma olhada nela e tenta perguntar

a si mesma se cada coisa escrita aqui pode ajudar... — ele pensou por um segundo, e então

inventou um nome — ... o Sr. e a Sra. Rabinowitz a decidirem se querem ir jantar lá.

— Oh, os Rabinowitz jamais iriam lá — disse a Sra. Sobel. — Ele é muito pão-duro. —

E então, com Lewis ainda sentado atrás de sua mesa, absolutamente aturdido, a Sra. Sobel

recolheu a bolsa, o suéter e a prova de página de sua matéria e marchou pomposamente até a

porta, cruzando corri Ella Hirsch, que estava entrando.

Ella, Lewis notou com grande alívio, não tremia nem meneava a cabeça. Não era nem de

perto tão anciã ou frágil quanto a Sra. Sobel. Tinha olhos castanho-claros e cabelos avermelhados

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que usava presos, num coque atrás da cabeça, e ele jamais a vira em calças de poliéster, que eram

as preferidas da maioria das moradoras de Acres.

— Como vai? — pergunto Ella.

Lewis balançou a cabeça.

— Francamente, não sei — respondeu.

— Isso não parece bom — disse ela, estendendo-lhe seu poema datilografado com

perfeição. Será que ele teria uma quedinha por Ella mesmo se ela não fosse a melhor escritora da

Golden Acres Gazette? É pouco provável, decidiu Lewis. Só que ele não achava que ela estivesse

interessada. Nas vezes em que a convidara para tomarem café e conversarem sobre idéias para

matérias, parecera feliz em acompanhá-lo, tão feliz quanto o se despedir depois do café.

— Obrigada — disse ele, colocando os papéis em sua caixa. — E então, o que você está

planejando esse fim de semana?

— Vou preparar o sopão amanhã á noite e depois terei mais dois livros para os cegos

lerem — disse ela.

Foi uma resposta educada, considerou Lewis, mais ainda assim, uma recusa. Será que Ella

havia lido aquele livro que as mulheres estavam passando uma para as outras na piscina, há alguns

anos? O livro que ensinava a se fazer de difícil e que levara a Sra. Asher, então com 86 anos, a

desligar na cara dele, no meio de uma conversa, depois de declarar que ela era uma criatura única

e que, como tal, cabia-lhe finalizar todas as conversas telefônicas com homens?

— Bem, obrigado pelo poema. Você foi a única que cumpriu seu prazo. Como sempre.

Ella dirigiu a Lewis um leve sorriso e se dirigiu para a porta. Talvez fosse a aparência dele,

pensou com tristeza. Sharla dera-lhe um calendário com fotos de buldogues em um dos

aniversários que ele tinham passado juntos na Flórida, e ele a acusara de estar tentando lhe dizer

alguma coisa. Ela lhe dera um sonoro beijo na bochecha e lhe dissera que, embora ele não tivesse

muitas chances de iniciar uma carreira de modelo, ela o amava assim mesmo. Lewis balançou a

cabeça, tentando afastar as lembranças, e então pegou o poema de Ella. “Só porque eu sou

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velha”, ele leu e sorriu ao ler a linha que dizia “EU NÃO SOU INVISÍVEL”, e decidiu que Ella

valia outra tentativa.

—6 6 6 6 —

ose Feller inclinou-se sobre a mesa e perguntou:

— As estipulações de costume, advogado?

O advogado opositor — um homem de rosto amarelado vestido com um lamentável

terno cinza-esverdeado — fez que sim, embora Rose pudesse apostar que ele, tanto quanto ela,

não sabia o que eram, na verdade, “as estipulações de costume”. Mas como cada testemunho do

qual participara sempre começara com o advogado encarregado mencionando “as estipulações de

costume”, foi isso que ela disse.

— Muito bem, se todo mundo está preparado, vamos começar — disse ela, com uma

confiança mais fingida que sentida, como se tivesse presidido centenas de testemunhos, em vez

de apenas dois. — Meu nome é Rose Feller e sou advogada da Lewis, Dommel e Fenick. Hoje

estou representando a Veeder Trucking Company e Stanley Willet, o controlador da Veeder, que

está presente e sentado á minha esquerda. Este é o testemunho de Wayne LeGros... — Fez uma

pausa e olhou para a testemunha do outro lado da mesa, torcendo por uma confirmação de que

estava pronunciando seu sobrenome corretamente. Wayne LeGros — prosseguiu decidindo que

se estivesse falando errado ele iria corrigi-la —, presidente de Majestic Construction. Sr. LeGros,

pode começar nos dando seu nome e endereço?

Wayne LeGros, que era baixo, na casa dos cinqüenta, com cabelos grisalhos e um anel de

formatura bastante pesado num dedo grosso, engoliu em seco.

— Wayne LeGros — disse ele alto. — Resido na Tasker Street, 513. Na Filadélfia.

R

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— Obrigada — disse Rose. Na verdade, ela meio que sentia pena do sujeito. Ela nunca

havia prestado depoimento, exceto na faculdade, num julgamento simulado, mas tinha certeza de

que não era divertida. — Pode nos dizer o seu título profissional?

— Presidente. Majestic — disse, loquaz, o Sr. LeGros.

— Obrigada — repetiu Rose. — Agora, como tenho certeza de que seu advogado lhe

explicou, estamos aqui hoje para colher informações. Meu cliente alega que o senhor lhe deve...

— Baixou rapidamente os olhos para suas anotações. — Oito mil dólares, por arrendamento de

equipamento.

— Caminhos de lixo — esclareceu LeGros.

— Isso mesmo — disse ― Pode nos dizer quantos caminhões forem arrendados?

LeGros fechou os olhos.

― Três.

Rose deslizou um pedaço de papel sobre a mesa.

― Esta é uma cópia do contrato de arrendamento que o senhor assinou com a Veeder.

Eu já pedi ao relator que o marcasse como prova quinze-A do querelante. ― O relator do tribunal

assentiu positivamente. ― Posso lhe pedir que leia as partes que destaquei?

LeGros respirou fundo e espremeu os olhos para ler.

― Diz que a Majestic concorda em pagar a Veeder dois mil dólares semanais por três

caminhões de lixo.

― Essa é sua assinatura?

LeGros levou um minuto para examinar a fotocópia.

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― Sim ― disse finalmente. ― A assinatura é minha. ― Sua voz fora tomada por um tom

petulante, e ele retirou seu anel de formatura e começou a girá-lo na mesa de reunião.

— Obrigada — disse Rose. — Agora, esse projeto em Ryland foi completado?

— A escola? Foi sim.

— E a Majestic Construction foi paga por seu trabalho?

LeGros meneou a cabeça. Seu advogado ergueu as sobrancelhas em direção a ele.

— Sim — confirmou LeGros.

Rose deslizou uma folha de papel sobre a mesa.

— Esta é a prova dezesseis A do querelante: uma cópia de seu recibo para a diretoria da

Ruland School, marcado com “completamente pago". Essa foi paga?

— Foi.

— Então vocês foram pagos pelo trabalho que fizeram no projeto?

Outro meneio. Outra expressão emburrada do advogado dele. Outro “sim”. Durante

meia hora seguinte, Rose impiedosamente conduziu que LaGros por uma pilha de recibos

carimbados e avisos emitidos por uma firma de cobrança. Não era o tipo de coisa emocionante

que acontece nos romances de John Grisham, pensou Rose enquanto prosseguia com sua

estratégica, mas se desse sorte, ela conseguiria seu intento.

— Portanto, o trabalho em Ryland foi completado e o senhor pagou os subempreiteiros?

— resumiu Rose.

— Sim.

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— Com exceção da Veeder?

— Eles receberam o pagamento — murmurou. — Eles foram pagos por outras coisas.

— Perdão, não entendi — disse Rose educadamente.

— Por outras coisas — repetiu LeGros. Ele abaixou a cabeça. Girou o anel. — Coisas

que eles deviam a outras empresas. Coisas que ele deviam á minha despachante — disse,

pronunciando cada sílaba. — Por que não pergunta a ele sobre a minha despachante?

— Vou perguntar, com certeza — prometeu Rose. — Mas neste momento estamos

procedendo com o seu testemunho. É a sua vez de contar a sua história.

LeGros olhou novamente para baixo, para o anel, para as mãos.

— Diga-me o nome da sua despachante — incitou com gentileza.

— Lori Kimmel — murmurou LeGros.

— E onde ela mora?

Olhou para baixo taciturnamente.

— No mesmo lugar que eu. Tasker Street, 513.

Rose sentiu a pulsação acelerar.

— Ela é sua...

— Amiga — disse Legros, com uma expressão no rosto que comunicava e o que você

tem com isso? — pergunte a ele. Ele sabe tudo a respeito dela.

O advogado de LeGros pousou a mão no antebraço de seu cliente, mas LeGros não

podia mais ser calado.

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— Pergunte a ele sobre as horas extras que ela trabalhou! Pergunte por que ele nunca a

pagou! Pergunte a ele por que, quando ela saiu da empresa, ele disse que pagaria pelas férias e

dispensas de doença dela, mas nunca pagou!

— Podemos fazer um intervalo? — perguntou o advogado de LaGros. Rose fez que sim.

O relator do tribunal ergueu as sobrancelhas.

— Claro — disse Rose. — Quinze minutos. — Ela levou Willet até seu escritório

enquanto LeGros e seu advogado confabulavam no corredor.

— O que foi isso?

Willet deu de ombros.

— O nome me parece familiar. Eu poderia dar uns telefonemas.

Rose apontou a cabeça para o telefone.

— Aperte nove. Voltarei num minuto. — Ela correu até o banheiro. Testemunhos

deixavam-na nervosa, e ficar nervosa lhe dava vontade de urinar, e...

— Srta. Feller? — Era o advogado de LaGros. — Posso falar com você um minuto? —

Ele a puxou para a sala de reunião. — É o seguinte, queremos um acordo.

— O que aconteceu?

O advogado balançou a cabeça.

— Você provavelmente pode deduzir. A namorada dele trabalhava para o seu cliente. Até

onde posso contar, ela se demitiu sem notificar e deduziu que tinha direito a todas as suas férias e

licença de doença. Veeder mandou ela nem contar com isso, e acho que o meu cliente deduziu

que poderia simplesmente cobrar a Veeder pelo que ela dizia que lhe era devido.

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— Você não sabia disso?

O advogado deu de ombros.

— Só peguei esse caso há duas semanas.

— Então ele irá... — Rose deixou sua voz arrastar-se sugestivamente.

— Pagar o devido. Tudo.

— Mais juros. Isso já se arrasta por três anos — disse Rose.

O advogado de LeGros estremeceu.

— Um ano de juros — disse ele. — Faremos o cheque imediatamente.

— Deixe-me consultar meu cliente — disse Rose. — Vou recomendar que ele aceite. —

Estava com o coração acelerado, sangue pulsando nas veias, Vitória! Ela sentia vontade de

dançar. Em vez disso, foi ao encontro de Stan Willet, que estava examinando os diplomas dela.

— Eles querem fazer um acordo.

— Bom — disse, sem virar-se para ela.

Rose engoliu a decepção. Claro que ele não ficaria tão empolgado quanto ela. Para Willet,

oito mil dólares era uma ninharia. Mas ainda assim! Ela mal podia esperar para contar a Jim como

havia se saído! Ela expôs os termos.

— Eles estão dispostos a assinar o cheque imediatamente, o que significa que você não

perderá tempo indo atrás do dinheiro. Minha recomendação é de que aceitemos.

— Bom — disse ele, olhos ainda fixos nas molduras e nos textos em latim dos diplomas

de Rose. — Vamos acabar logo com isto. — Finalmente ele se virou para ela. — Bom trabalho lá

dentro. — Esboçou um sorriso fino. — Acabou com eles só mostrando documentos, não foi?

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— Isso mesmo — concordou Rose, sentindo o coração afundar. Ela tinha sido brilhante!

Bem, talvez não brilhante de uma forma cinematografia, mas competente. Extremamente

competente. Ela tinha caçado cada memorandozinho, cada continha, cada pedacinho de papel

que servisse de prova no caso do seu cliente! Acompanhou Stan Willet até o elevador, correu de

volta para seu escritório e ligou para o ramal de Jim.

— Eles fizeram um acordo — disse alegremente. — Oito mil mais um ano de juros.

— Belo trabalho – disse ele, parecendo satisfeito. Satisfeito e distraído. Ela ouviu ao

fundo o clique de seu mouse. — Pode me escrever um memorando?

Rose sentiu que haviam jogado um balde de água fria em sua cabeça.

— Claro — disse ela. — Estará pronto até o fim da tarde.

A voz de Jim suavizou quando ele disse:

— Parabéns. Tenho certeza de que você foi fantástica.

— Os documentos que reuni acabaram com eles — disse Rose. Podia ouvir a respiração

de Jim e o som de outras vozes ao fundo.

— Como assim?

— Nada. — ela desligou o telefone sem se despedir. No mesmo instante, uma mensagem

apareceu na tela. De Jim. Ela clicou para abri-la.

“Desculpe por não ter podido falar mais”, dizia a mensagem, e então — o coração de

Rose disparou ao ler as palavras —, “posso passar na sua casa esta noite?”

Rose digitou a resposta. “SIM!” E então recostou-se na cadeira, sorrindo —, exultante

sentindo-se satisfeita, pensando que tudo finalmente estava certo em seu mundo. Ela era um

sucesso profissional. Era noite de sexta-feira e ela não estaria sozinha. Ela estava com um homem

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que a amava. Era verdade que ela também estava com a irmã caçula acampada no sofá, mas isso

não duraria para sempre, pensou, e começou a digitar o memorando.

A euforia perdurou até as quatro da tarde; a felicidade até as seis, e quando o relógio

marcou nove horas e Jim ainda não havia aparecido, o humor de Rose estava afundando. Ela

caminhou até o banheiro, onde sua irmãzinha sempre prestativa deixava um artigo da Allure

colado no espelho. “As melhores sobrancelhas desta estação!” dizia a manchete. E havia pinças

na pia.

— Certo, sei entender uma insinuação — disse Rose a si mesma. Pelo menos, desta fora,

quando — se Jim chegasse, ele a encontraria com as sobrancelhas perfeitas. Rose olhou para sim

mesma no espelho e decidiu que sua vida seria mais fácil se tivesse nascido como outro tipo de

garota. Não realmente diferente, mas uma versão melhor, mais bonita, mas requintada,

ligeiramente mais magra, do que ela já era. O problema era que ela não fazia a menor idéia de

como ser diferente do que era. E não era por falta de tentativas.

Quando tinha 13 anos, Rose e Maggie Feller mudaram-se para a casa de Sydelle.

— Simplesmente é o que faz mais sentido — disse Sydelle num tom doce. — Eu tenho

espaço de sobra.

A casa era uma monstruosidade moderna de quatro quartos, em branco reluzente, e

parecia fora de lugar numa rua cheia de casas coloridas, como uma espaçonave que tinha feito

uma aterrissagem forçada numa rua sem saída. A casa de Sydelle — e Rose jamais pensou nela de

outra forma — tinha janelas imensas, ângulos estranhos e cômodos de formatos inusitados (uma

sala de jantar que era praticamente um retângulo, um quarto que não era exatamente um

quadrado). Os cômodos eram cheios de mesas de vidro, mobílias de vidro e metal com cantos

pontudos, e espelhos por toda a parte, incluindo uma parede espelhada na cozinha que mostrava

cada digital, cada respiração profunda — ou cada mordida ou beliscada que qualquer pessoa dava

na cozinha. Além disso, havia balanças digitais em cada banheiro, incluindo no toucador do

térreo, e uma variedade de ímãs com Slogans relativos a dietas na geladeira. O que Rose lembrava

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melhor tinha o desenho de uma vaca mastigando grama animadamente debaixo da legenda “Se

comer de novo, vai virar uma vaca”. Cada superfície brilhante e reluzente, cada imã de geladeira e

cada balança pareciam conspirar com Sydelle para enviar a mensagem de que Rose era

inadequada, não feminina, não bonita o bastante, e gorda demais.

Na semana em que eles se mudaram para a casa, Rose pediu dinheiro ao pai.

— Você está precisando de alguma coisa em especial? — perguntou, olhando preocupado

para ela. Rose jamais pedira-lhe dinheiro além dos cinco dólares que recebia semanalmente de

mesada. Era Mggie quem vivia explorando o pai: ela queria bonecas Barbie, lancheira nova,

hidrocores perfumados, figurinhas, um pôster de Rick Springfield para sua parede.

— Material escolar — disse Rose.

O pai lhe deu uma nota de dez. Ela foi até a papelaria e comprou um caderninho de capa

roxa. Durante o resto do ano escolar ela o usou para fazer anotações cuidadosas de tudo o que as

mulheres faziam. Era o seu projeto secreto. Sydelle, ela sabia, adoraria dizer a ela o que as

mulheres faziam e o que não faziam, diziam, vestiam, e, o mais importante, comiam. Mas Rose

queria descobrir por si mesma. Recordando agora, deduziu que tinha alguma noção difusa de que

em algum momento de sua adolescência deveria ter magicamente absorvido as informações

pertinentes... e o fato de que não as havia absorvido e de que Sydelle sentia-se na obrigação de

emitir declarações sobre cuidados com a pele e contagem de calorias era uma atribuição de culpa

à sua mãe morta. O que, obviamente, deixou Rose ainda mais determinada a desvendar esses

mistérios sozinha.

"Unhas arredondadas, e não retas!", escrevia. Ou "nada de piadas bobas!". Ela convenceu

o pai a fazer assinaturas anuais das revistas Seventeen e Young Miss, e economizou toda a sua

mesada para comprar um livro de capa flexível chamado Como Ser Popular!, que vira anunciado

na quarta capa de ambas a revistas. Estudou essas páginas com o cuidado que um teólogo dedica

ao livro sagrado de sua religião. Rose observava suas professoras, suas vizinhas, sua irmã, e até as

senhoras com redes no cabelo que trabalhavam na lanchonete, e tentava descobrir como as

garotas e as mulheres deveriam ser. Era como um problema de matemática, dizia a si mesma, e

depois que o resolvesse, depois que calculasse a equação de sapatos mais roupas mais penteados e

cortes de cabelo mais o tipo certo de personalidade (e, obviamente, depois que tivesse deduzido

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como simular o tipo certo de personalidade), Rose faria as pessoas gostarem dela. Ela seria

popular, como Maggie.

Obviamente isso havia sido um desastre, pensou enquanto esfregava o embaçado que sua

respiração deixara no espelho e se aproximando ainda mais dele com suas pinças. Todo aquele

planejamento, todas aquelas anotações... por nada. A popularidade era um código que ela não

conseguia decifrar. Por mais que ela preenchesse páginas e páginas em seu caderno de capa roxa;

por mais que ela se imaginasse sentada com a Srta. Fox e Gail Wylie na lanchonete da escola,

bolsa pendurada nas costas da cadeira, Coca Light e Baggies de cenoura à sua frente, nunca havia

funcionado direito.

Quando chegou ao segundo grau, Rose havia desistido das roupas e da maquiagem, do

cabelo e das unhas. Desistira de ler as colunas de conselhos e matérias de revistas que ditavam

tudo, desde como falar com um homem até o ângulo preciso da curvatura de uma sobrancelha.

Rose abandonou a esperança de que viesse um dia a ser bonita ou popular, e mantinha o que

restara de seu foco em moda nos sapatos. Sapatos, raciocinava ela, jamais poderiam ser usados de

forma incorreta. Com sapatos não havia variáveis: colarinhos para levantar ou abaixar, mangas

para enrolar ou deixar desenroladas, jóias e estilos de penteados para combinar ou estragar tudo

(no caso de Rose, na maioria das vezes estragavam tudo). Sapatos eram sapatos, e mesmo se ela

os usasse com as coisas erradas, não poderia usá-los da forma errada. Seus pés sempre pareciam

certos. Ela pareceria uma garota popular dos tornozelos para baixo, mesmo que dos tornozelos

para cima ainda fosse uma perdedora.

Era natural que ela estivesse com trinta anos e não tivesse a menor noção a respeito de

nada relacionado com estilo, exceto pelos méritos relativos do nobuck contra a camurça ou o

formato dos saltos desta estação. Rose suspirou e olhou para si mesma de soslaio. Toda torta.

— Merda — disse ela, e levantou as pinças.

A campainha tocou.

— Estou indo! — berrou Maggie.

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— Ah, não! — gritou Rose. Ela saiu correndo do banheiro e empurrou sua irmã, que a

empurrou de novo.

— Meu Deus, qual é o seu problema? — perguntou Maggie, esfregando o ombro.

— Saia daqui! — disse Rose, pegando sua carteira, extraindo um maço de notas e

empurrando-o para Maggie. — Vá embora! Vá ver um filme!

— São quase dez horas — disse Maggie.

— Encontre uma sessão da meia-noite! — disse Rose, abrindo a porta. E ali estava Jim,

cheirando levemente a água-de-colônia e, mais fortemente, a uísque, com uma dúzia de rosas

vermelhas nos braços.

— Olá, damas! — disse ele.

— Oh, que lindas! — disse Maggie, pegando as flores. — Rose, ponha elas num vaso —

disse ela, entregando-as à irmã. — Posso pegar seu casaco? — perguntou a Jim.

Meu Deus! Rose rangeu os dentes e caminhou até a cozinha. Quando voltou para a sala

de estar, Maggie e Jim estavam sentadas lado a lado no sofá. Maggie não demonstrava qualquer

sinal de querer sair, e, Rose notou, o dinheiro que ela lhe dera desaparecera como por encanto.

— E então, Jim!—disse Maggie animadamente, inclinando-se na direção dele, seu decote

ousado em plena vista. — Como você tem passado?

— Maggie — disse Rose, equilibrando-se no braço do sofá, que era o único lugar

disponível —, você não tinha planos?

Rose dirigiu a Maggie um sorriso maligno.

— Não mesmo, Rose. Vou passar a noite aqui.

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—7 7 7 7 —

a manhã de segunda-feira, Maggie Feller levantou, jogou a mochila

sobre o ombro, saltou do ônibus e pisou em Nova York. Eram nove e

meia, e os testes haviam começado às nove. Chegaria mais cedo se

tivesse decidido logo entre as botas de couro caramelo Nine West (com calças jeans em estilo

country) ou as sandálias Stuart Weitzman (com saia-envelope e meias arrastão).

Dobrou a esquina da Rua 42 e seu coração afundou dentro do peito. Devia haver mil

pessoas diante das vitrines do estúdio da MTV, entupindo cada centímetro da calçada, enchendo

a pequena faixa de grama no centro da Brondway.

Maggie parou uma garota com chapéu de caubói.

— Você está aqui para os testes?

A garota olhou para Maggie com uma expressão desolada.

— Eu estava. Mas eles pegaram as primeiras três mil pessoas e mandaram o resto de nós

voltar para casa.

O coração de Maggie afundou ainda mais. Isso não estava certo. Isso não estava nem um

pouco certo! Correu no meio da multidão o mais rápido que seus sapatos altos lhe permitiam,

finalmente localizando uma mulher de aparência atormentada com um walkie-talkie e uma

jaqueta com a logomarca da MTV em amarelo, nas costas. Confiança, disse Maggie a si mesma, e

cutucou a mulher no ombro.

— Estou aqui para os testes anunciou.

A mulher fez que não com a cabeça.

N

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— Desculpe, meu bem — disse ela, sem levantar os olhos da prancheta. — As portas

estão fechadas.

Maggie abriu sua mochila, pegou a garrafa de Midol que surrupiou da irmã e praticamente

esfregou-a na cara da mulher.

— Tenho um problema de saúde.

A mulher olhou para ela e ergueu uma das sobrancelhas. Maggie cobriu o rótulo com os

dedos, mas não rápido o bastante.

— Midol?— disse a mulher.

— Tenho cólicas debilitantes — afirmou Maggie. — E tenho certeza de que você

conhece a Lei para Americanos com Deficiências.

Agora a mulher estava fitando-a com curiosidade.

— Você não pode me discriminar só por causa do meu útero problemático — disse

Maggie.

— Está falando sério? — resmungou a mulher... mas Maggie podia ver que ela estava

achando a situação mais divertida do que irritante.

— Olhe, apenas me dê uma chance — rogou. —Vim lá da Filadélfia!

— Há gente aqui que veio lá de Idaho. Maggie revirou os olhos.

— Idaho! Eles têm TV a cabo lá? Olhe, você não imagina o quanto eu me preparei para

vir para cá.

A mulher ergueu as sobrancelhas.

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— Talvez lhe interesse saber — prosseguiu Maggie — que eu tive uma parte muito

pessoal da minha anatomia inserida na logomarca da MTV.

Por um instante Maggie achou que a mulher ia pedir para ver a tal parte. Em vez disso,

ela riu, rabiscou alguma coisa em sua prancheta e fez um sinal para que Maggie a acompanhasse.

— Meu nome é Robin. Venha comigo — disse ela.

Assim que a mulher se virou, Maggie pulou no ar, bateu os calcanhares e soltou um

gritinho de alegria. Tinha conseguido! Bem, tinha conseguido uma parte, pensou, correndo atrás

de Robin. Agora era apenas uma questão de agradar aos juízes, e então o céu seria o limite.

No prédio da MTV, os corredores estavam mais congestionados que as calçadas do lado

de fora. Havia rapazes com cabelos em traças paralelas ao estilo africano e bandanas e garotas

lindíssimas com minissaias e tops curtos segurando espelhos de mão para se ajeitar. Maggie logo

deduziu que a maioria dos candidatos tinha vinte e poucos anos, e subtraiu cinco anos de sua

idade no formulário que Robin deu-lhe para preencher.

— De onde você é? — perguntou a garota que estava na frente de Maggie na fila, uma

moça alta e magricela que se arrumara como a Ginger das Spice Girls.

— Filadélfia — respondeu Maggie, deduzindo que não tinha nada a perder sendo

simpática. — Sou Maggie.

— Kristy. Está nervosa? — perguntou a garota.

Maggie expressou seu estado de espírito com um floreio.

— Na verdade, não. Nem sei o que eles querem que a gente faça.

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— Falar com a câmera por trinta segundos — disse Kristy, e suspirou. — Preferia que

mandassem a gente dançar ou alguma coisa assim. Estudo dança desde que tinha quatro anos. Sei

sapateado e jazz, sei cantar, decorei um monólogo...

Maggie engoliu em seco. Ela também estudara dança. Durante 12 anos. Mas nunca

estudara interpretação, e a única coisa que havia decorado para a ocasião era o endereço de Rose,

para que a MTV soubesse para onde enviar flores depois que ela tivesse vencido.

Kristy correu os dedos pelo cabelo.

— Não consigo me decidir — murmurou Kristy, amontoando o cabelo no topo da

cabeça, e então deixando-o desmoronar de volta para os ombros. — Para cima ou para baixo?

Maggie examinou Kristy por um momento.

— Que tal uma trança? — ofereceu ela, metendo a mão na mochila à procura da escova,

spray, dos grampos e elásticos.

A fila avançou alguns centímetros, e quando Maggie chegou à frente, três horas haviam

passado voando, e ela arrumara o cabelo de Kristy e refizera sua maquiagem, passara sombra nos

olhos de uma garota de 18 anos chamada Kara e emprestara a Latisha, que estava atrás dela na

fila, as botas Nine West de Rose.

— Seguinte! — chamou o homem de cara entediada atrás da câmera.

Maggie respirou fundo, sentindo absolutamente nenhum nervosismo, sentindo

absolutamente nada além de extrema confiança e uma alegria intensa ao entrar no cubículo

pequeno e com carpete azul sob um círculo escaldante. Atrás do operador de câmera, Robin

sorriu e fez um sinal com o polegar para cima.

— Diga seu nome, por favor.

Maggie sorriu.

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— Sou Maggie May Feller — disse ela, sua voz baixa e limpa. Meu Deus, ela podia se ver

no monitor instalado no teto! Arriscou uma espiadela e ali ela estava! Na TV! E maravilhosa!

— Maggie May? — perguntou Robin.

— Minha mãe me deu esse nome por causa da música — respondeu Maggie. — Acho

que ela sempre soube que eu estava destinada ao sucesso no meio musical.

Robin correu os olhos pelo formulário de Maggie.

— Aqui diz que você foi garçonete.

— Isso mesmo — disse Maggie, lambendo os lábios. — E acho que isso me dá a

experiência perfeita para trabalhar com estrelas do rock.

— Como assim? — perguntou Robin.

— Bem, depois que você lida com rapazes de fraternidades universitárias fazendo guerras

de waffles, você pode lidar com qualquer coisa. E uma garçonete conhece todo tipo de pessoa.

Garotas fazendo dieta com todos os tipos de alergias. — Ela levantou a voz para um tom de

soprano. — "Tem amendoim neste negócio?" Eu não me importaria, mas elas perguntam isso

com relação a tudo. Até chá gelado. Você conhece vegetarianos exigentes, gente que não come

nada de origem animal, naturalistas, seguidores da dieta de Beverly Hills, diabéticos,

macrobióticos, diabéticos macrobióticos, com pressão alta que não podem comer sal... — E

agora ela estava completamente solta, ignorando as luzes, ignorando a competição, ignorando até

Robin e o cara com boné de beisebol. Era só ela e a câmera, da forma como sempre deveria ter

sido. — E se você deixa cair café gelado no colo de um cara porque ele acha que tem o direito de

deixar a gorjeta no seu decote, bem, você não vai ter medo de Kid Rock.

— De que tipo de música você gosta? — perguntou Robin.

— De todos os tipos — respondeu Maggie. Ela lambeu os lábios e jogou o cabelo para

trás. — Sou fanática pela Madonna. Só não curto aquela mania dela de ioga. Simplesmente não

consigo entrar nessa. E, é claro, também sou cantora, numa banda chamada Whiskered Biscuit...

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O cara atrás da câmara começou a rir.

— Talvez vocês conheçam nosso single, que está para chegar nas paradas a qualquer

momento, "Lick Me Where I'm Pink" — perguntou Maggie.

— Canta um pedacinho para a gente? — pediu o operador de câmera.

Maggie abriu um sorriso. Era por isto que ela estava esperando! Tirou sua escova da

mochila e usou-a como microfone, jogando o cabelo para trás e uivando:

— "Lick me where I'm pink! Pour yourself a drink! Don't wanna hear your problems,

what am I, your fucking shrink?"* — Ela se perguntou, no momento em que falou "porra", se

essa era uma linguagem adequada para a MTV, mas então percebeu que já era tarde.

— Mais alguma coisa que devemos saber sobre você, Maggie? — perguntou Robin.

— Apenas que estou pronta para o horário nobre. E que se o Carson Daly ficar solteiro

de novo, vocês têm o meu número. — Ela soprou um beijo para a câmera, e então, de

brincadeira, mostrou a língua, exibindo o seu piercing.

— Mandou ver! — sussurrou Kristy. Latisha estava aplaudindo, e Kara fez um sinal de

positivo. Robin saiu correndo da cabine para a fila, cutucou Maggie no ombro, sorriu e conduziu-

a por um corredor onde cerca de um dúzia de outras pessoas aguardavam.

— Parabéns — sussurrou Robin. —Você vai fazer novos testes.

— Você está onde? — inquiriu Rose.

— Estou em Nova York! — gritou Maggie no celular. — A MTV está fazendo testes

para VJs e adivinha quem foi chamada para novos testes?

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Houve silêncio do outro lado da linha.

— Você me disse que ia a uma entrevista de emprego — disse Rose finalmente.

O rosto de Maggie corou.

— O que você acha que isto é?

— Uma chance em mil — disse Rose.

— Meu Deus, você nunca fica feliz por mim? — A garota ao lado de Maggie, uma

amazona com mais de um metro e oitenta, numa roupa colante de couro preto, olhou para ela de

cara feia. Maggie retribuiu a cara feia e foi até um canto da sala de espera.

— Eu ficaria feliz se você conseguisse um emprego.

— Eu vou conseguir um emprego!

— Ah, e você sabe com certeza que a MTV vai te contratar? E sabe o quanto estão

pagando?

____________

*Me lambe onde sou rosa! Tome um drinque. Não quero ouvir seus problemas, o que eu sou,

a porra de sua analista? (N. do T.)

— Muito — disse Maggie, desanimada. Na verdade, ela não tinha certeza de quanto era o

salário... mas devia ser muito. Era para aparecer na televisão, certo? — Mais do que você está

ganhando. Sabe o que eu acho? Que você está com inveja.

Rose suspirou.

— Não estou com inveja. Só queria que você desistisse dessa sua obsessão pela fama e

arrumasse um emprego, em vez de desperdiçar dinheiro indo para Nova York.

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— E ser igualzinha a você — disse Maggie. — Não, obrigada.

Maggie enfiou o telefone na bolsa e olhou furiosamente para o chão. Maldita Rose! Por

que ela tinha pensado que sua irmã ficaria feliz por ela, ou impressionada em saber como ela

tinha conseguido entrar para fazer os testes e deixar todo mundo de queixo caído? Bem, pensou

ela, procurando pelo batom dentro de sua bolsa, ela iria mostrar à sua irmã maior. Ela ia dominar

o teste, conseguir o emprego e, da próxima vez que Rose a visse, ela estaria na TV, maior que a

vida e duas vezes mais bonita.

— Maggie Feller?

Maggie respirou fundo, deu um toque final de batom à sua boca e foi conquistar seu

sonho. Desta vez eles a conduziram a uma sala maior onde três refletores lançavam luzes

ofuscantes sobre ela. Robin sorriu para Maggie de sua prancheta e apontou para um televisor.

— Já leu de um teleprompter? — perguntou Robin.

Maggie fez que não com a cabeça.

— Bem, é muito fácil — disse Robin, demonstrando. Ela caminhou até um X marcado

com fita-crepe no chão e olhou para a tela.

— No próximo bloco! — leu, voz alta e entusiasmada. — O novo e fantástico videoclipe

das Spice Girls! E tira a mão desse controle remoto porque ainda na próxima hora você vai ver...

Britney Spears!

Maggie levantou-se e olhou o televisor. As palavras desciam pela tela, e então revertiam,

voltando tão depressa para cima que Maggie sentiu-se instantaneamente enjoada. Ela podia ler.

Ela podia ler muito bem. Mas apenas não podia ler tão depressa quanto as outras pessoas. E não

com as palavras se movendo daquele jeito!

Maggie percebeu que Robin estava olhando para ela.

— Tudo bem? — disse Robin.

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— Claro! — disse Maggie. Ela caminhou com as pernas trêmulas até o X marcado com a

fita. — No próximo bloco — sussurrou Maggie para sim mesma. Balançou o cabelo, lambeu os

lábios. As luzes brilharam sobre ela, impiedosas como fogo. Ela sentiu suor formar-se no alto da

testa.

— Quando você estiver pronta— disse o operador de câmera.

— No próximo bloco — começou Maggie com uma confiança que não sentia. As

palavras começaram a descer pela tela. — Temos... — Ela fitou a tela. As palavras se

contorceram mais. — O novo e fanático videoclipe das Spice Girls! E... — Merda. "Fantástico",

não "fanático". — Fantástico! — disse ela em voz alta, e se perguntou, talvez pela milionésima

vez na vida, por que havia palavras tão parecidas umas com as outra. O operador de câmera

estava rindo, só que agora era de escárnio. Ela observou a tela, rezando do fundo do seu coração,

por favor, permita que eu leia isto direito. A B. Alguma coisa com um B e um Y. O quê? —

Boys II Men? — presumiu. — Sim, Motown Philly está de volta! E...

O operador de câmera estava olhando com curiosidade para ela. E Robin também.

— Você está bem? — perguntou Robin. — Consegue ver a tela direito? Quer tentar de

novo?

— No próximo bloco! — disse Maggie, alto demais.

Por favor, Deus, pensou ela, concentrando-se o máximo que..... conguiu. Jamais pedirei

por qualquer coisa novamente; apenas me deixe ser capaz de fazer isto. Olhou para a tela,

esforçando-se ao máximo, enquanto os bs se dobravam em ds e os ws viravam de cabeça para

baixo.

— Temos muita música boa, logo depois do próximo comercial... — E agora as palavras

tinham se dissolvido em hieróglifos incompreensíveis, e Robin e o operador de câmera olhavam

para Maggie com expressões que ela podia interpretar com clareza: piedade.

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— No próximo bloco, teremos a mesma merda que tocamos para vocês ontem —

rosnou Maggie enquanto se virava nos saltos — mais precisamente, nos saltos de Rose — e

corria para a porta, enxugam os olhos. Atravessou correndo a sala de espera, quase derrubando a

Srta. Colante Preto, e abriu caminho a cotoveladas até o saguão, mas não antes de ouvir a voz de

Robin pela última vez, dizendo:

— Próxima! — E: — Vamos nos apressar, pessoal. Ainda temos muitos de vocês para

testar.

—8 8 8 8 —

ewis Feldman parou no patamar da escada, buquê de tulipas numa das

mãos, caixa de bombons na outra, e uma sensação de medo pesando

tanto sobre seus ombros quanto um casaco de inverno. Será que este

tipo de coisa jamais ficava fácil —, perguntou-se, respirando fundo e levantando os olhos para a

porta de Ella Hirsch.

"A pior coisa que ela pode fazer é dizer não", lembrou a si mesmo.

Trocou as tulipas para a mão esquerda e os bombons para a direita; baixou os olhos para

as calças, que, apesar de seu empenho na lavanderia, estavam amassadas e havia uma mancha

suspeita abaixo de um dos bolsos, como se uma caneta tivesse estourado — o que, pensou

sorumbático, devia ter sido precisamente o que acontecera.

Um "não" não iria matá-lo, lembrou a si mesmo. Se o leve ataque cardíaco que sofrera há

três anos não o havia matado, certamente a rejeição de Ella Hirsch também não iria. E havia

outros peixes no mar, peixes que tinham saltado da água direto para seu barco antes mesmo que

ele tivesse pensado em colocar isca no anzol. Mas ele não se intessava por Lois Ziff, que o

visitara duas semanas depois do funeral de Sharla trazendo um kugel e com um botão da blusa

L

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aberto para expor sete centímetros enrugados da parte superior dos seios. Ele não se interessava

por Bonnie Begelman, que no mês passado introduzira um envelope por baixo de sua porta. O

envelope continha dois ingressos de cinema e um bilhete dizendo que ela ficaria feliz em assistir a

um filme com ele "quando você estiver preparado". Nos dias que se seguiram à morte de sua

esposa, nas semanas em que recebeu visitas diárias do que denominava Esquadrão da Quentinha

— dúzias de mulheres com expressões preocupadas e trazendo potes de plástico —, ele achava

que jamais estaria preparado, ainda que Sharla tivesse lhe dado suas bênçãos.

— Encontre alguém — dissera Sharla. Ela estava no hospital pela última vez, e ambos

sabiam disso, embora essa verdade permanecesse velada entre eles. Lewis estava segurando a mão

de Sharla, aquela sem as agulhas intravenosas, e se inclinara para a frente a fim de retirar os

cabelos finos que cobriam a fronte da esposa.

— Sharla, não vamos falar sobre isso — pediu Lewis. Ela sacudiu a cabeça e o fitou

intensamente, seus olhos azuis acendendo-se com uma centelha familiar... uma centelha que ele

não tinha visto desde o dia em que ele chegara em casa para encontrá-la sentada silenciosamente

no sofá. Bastara olhar para Sharla que Lewis ficou sabendo, mesmo antes que ela levantasse a

cabeça, mesmo antes que ela lhe dissesse: Voltou. O câncer voltou.

— Não quero que você fique sozinho — disse ela. — Não quero que você vire um

daqueles viúvos chatos, Você vai ingerir sódio demais.

— É só com isso que você está preocupada? Meu sódio?

— Esses homens ficam asquerosos — disse ela. Seus olhos estavam se fechando. Ele

segurou o canudo nos lábios dela para que ela pudesse tomar um gole. — Egoístas e rabugentos.

Não quero que isso aconteça com você. — Sua voz estava sumindo. — Quero que encontre

alguém.

— Tem alguém em mente? — perguntou. — Alguém especial que você tenha notado?

Sharla não respondeu. Ele achou que tivesse adormecido — pálpebras fechadas, peito

franzino subindo e descendo lentamente por baixo das ataduras recém-colocadas —, mas ela

disse mais alguma coisa para ele.

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— Quero que você seja feliz — disse ela, cada palavra saindo numa respiração separada.

Abaixou a cabeça, com medo de que, se olhasse para ela, sua esposa, a mulher que ele

amara e com quem vivera durante 53 anos, ele começasse a chorar e não conseguisse mais parar.

Assim, ficou sentado ao lado da cama de Sharla, sussurrando ao seu ouvido o quanto a amava. E

pensou que jamais conseguiria olhar para outra mulher depois que Sharla morresse. E de fato, as

vizinhas, com seus kugel e decotes, não o atraíam. Ninguém o encantara... até agora.

Não que Ella o fizesse lembrar de Sharla — pelo menos não fisicamente. Sharla era

baixinha e com a idade encolhera ainda mais. Tinha olhos redondos e azuis e cabelos louros

encaracolados, um nariz grande demais e um quadril igualmente grande que ela detestava.

Adorava batom coral e bijuterias: colares de contas de vidro pintadas, brincos grandes que

reluziam e tilintavam quando se movia. Sharla sempre o fizera lembrar de algum pássaro pequeno

e exótico com plumagem iridescente e canto alto e agradável. Mas Ella era diferente. Era mais

alta, com feições mais delicadas — nariz fino, queixo firme — e cabelos longos e castanho-

avermelhados que mantinha numa trança em torno da cabeça, ainda que todas as outras senhoras

de Golden Acres usassem cabelo curto. Ella lembrava-lhe um pouco Katherine Hepburn — uma

Katherine Hepburn judia, não tão régia ou intimidadora. Ella era uma Hepburn mergulhada

numa melancolia secreta.

— Hepburn — murmurou. Ele balançou a cabeça por suas tolices e começou a subir os

degraus. Desejou que sua camisa não estivesse amassada. Ele se arrependeu por não ter vindo de

chapéu.

— Ora, olá!

Lewis levou um susto tão forte que chegou mesmo a dar um pulinho, e então fitou a

mulher cujo rosto não reconhecia.

— Mavis Gold — informou a mulher. — E aonde você está indo, vestido assim deste

jeito?

— Eu... bem...

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Mavis Gold bateu palmas, fazendo seus braços bronzeados balançarem em celebração.

— Ella — sussurrou Mavis, um sussurro tão alto que os motoristas na estrada deviam ter

ouvido, pensou Lewis. Ela acariciou o topo de uma tulipa. — São muito bonitas. Você é um

cavalheiro! — disse Mavis, sorrindo para ele. Ela o beijou numa das bochechas, que esfregou em

seguida para apagar o batom que deixara. — Boa sorte!

Ele assentiu positivamente, respirou fundo, reposicionou seus presentes pela última vez e

tocou a campainha. Esperou ouvir um rádio ou um televisor, mas escutou apenas os passos de

Ella se aproximando.

Ela abriu a porta e o fitou com uma expressão intrigada.

— Lewis?

Lewis fez que sim, subitamente sem palavras. Ella usava calças jeans azuis, do tipo que

chegavam apenas até a metade das panturrilha, e uma camisa branca folgada. Descalça. Os pés

eram compridos e brancos, belissímamente formados, com esmalte cor-de-pérola. Aqueles pés

deixaram-no com vontade de beijá-la. Em vez disso, ele engoliu em seco.

— Olá — disse ele. Pronto. Já era um começo.

Um vinco apareceu entre as sobrancelhas de Ella.

— O poema ficou longo demais?

— Não, não, o poema estava ótimo. Estou aqui porque... bem, eu estava pensando se...

— Vamos, velho!, disse a si mesmo. Ele estava na guerra; sepultara uma esposa; vira seu filho

virar republicano e colar um adesivo do Rush Limbaugh na traseira de sua minicaminhonete. Ela

sobrevivera a coisas muito piores que isto. — ...se você gostaria de jantar comigo.

Lewis percebeu que ela estava prestes a fazer que não com a cabeça antes mesmo disso

acontecer.

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— Eu... eu acho que não.

— Porque não? — A pergunta saiu mais alta do que ele pretendia.

Ella suspirou. Lewis se aproveitou de seu silêncio momentâneo.

— Posso entrar? — perguntou.

Ella pareceu relutante enquanto abria a porta e o conduzia para dentro. Seu apartamento

não era entulhado de coisas, como tendiam se tornar muitas das residências ainda menores de

Golden Acress, cujos moradores tentavam enfiar todo uma vida de posses num espaço que

nunca foi planejado para conter muita coisa. O apartamento de Ella tinha chão azulejado, paredes

cor do creme, o tipo de sofá que, na experiência de Lewis, era muito melhor na teoria que na

prática, sobretudo se você tinha netos, e esses netos gostassem de suco de uva.

Lewis sentou-se numa extremidade do sofá. Ella sentou-se na outra, parecendo

constrangida enquanto puxava os pés descalços para baixo de si. Ela começou:

— Lewis....

Ele se levantou.

— Por favor, não vá. Deixe que eu me explique.

— Não estou indo embora, estou procurando um vaso.

— Não se preocupe, estou apenas preparando uma xícara de chá para nós — assegurou.

— Espere — disse ela, parecendo alarmada ao pensar nele mexendo em suas coisas. —

Deixe que eu faço isso. — Ela correu até a cozinha e tirou um vaso do armário. Lewis encheu o

vaso com água, colocou as tulipas dentro, voltou para a sala de estar e colocou-o no meio da

mesinha de centro.

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— Pronto — disse ele. — Agora, se você vai dizer não, terá de olhar para essas tulipas

todos os dias e se sentir culpada.

Por um instante, ela pareceu prestes a sorrir. E então a expressão sumiu, como se ele a

tivesse imaginado.

— A questão é... — começou.

— Espere um pouco — disse Lewis. Ele abriu a caixa de bombons.

— Primeiro você.

Ella empurrou a caixa.

— Na verdade, eu não posso...

Ele colocou os óculos e desembrulhou a caixa.

— Os corações de chocolate preto têm recheio de cereja — informou. — Os redondos

são de nugá.

— Lewis — disse com firmeza. — Você é uma pessoa maravilhosa, e...

— Mas... — disse ele. — Percebo que aí vem um "mas". — Lewis levantou-se

novamente, caminhou até a cozinha, pôs água para ferver. — Onde está a sua porcelana boa?

— Oh! — exclamou Ella, e foi correndo atrás dele.

— Não se preocupe, estou apenas preparando uma xícara de chá para nós — assegurou.

Ella olhou para Lewis, e então para a chaleira.

— Certo — disse ela, e retirou de uma prateleira duas canecas com o símbolo da

Biblioteca Pública do condado de Broward. — Lewis colocou os saquinhos de chá nas canecas,

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localizou o açucareiro (cheio com pacotes de adoçante artificial) e colocou-o na mesa, junto com

uma garrafa de leite sem lactose.

— Você é sempre tão prestativo?

— Nem sempre fui — disse ele. Abriu a geladeira, encontrou um limão e fatiou-o

enquanto conversava, — Mas então minha esposa adoeceu, e ela sabia... bem. Ela sabia. E

começou a me ensinar.

— Sente falta dela? — perguntou Ella.

— Todo dia. Sinto falta dela todo dia. — Colocou a caneca sobre um pires e levou-a até a

mesa. — E você?

— Bem, como nunca conheci sua esposa, não posso dizer que sinta falta dela...

— Uma piada! — Lewis bateu palmas e se sentou ao lado dela. Olhou atentamente para a

mesa e disse: — Acho que ainda falta alguma coisa. — Abriu o freezer de Ella. — Posso?

Ela fez que sim com a cabeça, parecendo ligeiramente atordoada. Ele olhou em todos os

cantos até encontrar um objeto de formato familiar que reconheceu imediatamente como bolo

inglês Sara Lee. Era um dos doces favoritos de Sharla. Mais de uma vez ele acordara no meio da

noite e a encontrara de frente para a televisão, assistindo a infomerciais e mastigando um pedaço

de bolo Sara Lee. Em geral essas noites sinalizavam a conclusão de uma das dietas de atum e suco

de toranja que fazia semestralmente. Depois voltava para a cama com um sorriso culpado e uma

boca com sabor de manteiga. Me beija, sussurrava ela enquanto tirava a camisola. Vamos

queimar algumas destas velhas calorias.

Ele passou o bolo para Ella.

— Tudo bem?

Ela fez que sim e colocou o bolo no forno de microondas. Lewis bebericou seu chá e

observou Ella se mover. Seus quadris pareciam originais, pensou ele, e riu para si mesmo por

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notar esse tipo de coisa. Adam, um de seus netos, tinha lhe dito em sua última visita que

conseguia perceber, apenas olhando, se os seios de uma mulher eram de verdade ou não, Lewis

decidiu que tinha o mesmo talento para juntas de quadril.

— Do que está rindo? Ele deu de ombros.

— Do meu neto.

A expressão de Ella se fechou. Ela se recompôs tão rapidamente que Lewis ficou com

certeza de que o que tinha visto era, como havia parecido, desespero. Ele quis segurar as mãos

dela, segurá-las com força e lhe pedir que contasse qual era seu problema, o que a fizera ficar com

aquela cara. Lewis chegou mesmo a mover as mãos sobre a mesa, mas então notou que ela olhava

para baixo como se uma barata tivesse acabado de subir no bolo recheado.

— O que foi?

Ella apontou para as mangas da camisa dele. Lewis olhou para baixo. Uma das mangas

estava sem botão; a outra estava muito gasta e ligeiramente escurecida.

— Você queimou isso?

— Acho que sim — respondeu Lewis. — Não sou grandes coisas com o ferro de passar.

— Oh — exprimiu Ella. — Eu poderia... — Fechou a boca abruptamente e alisou o

cabelo, parecendo constrangida. Lewis viu sua oportunidade, um jangada frágil flutuando em

ondas agitadas, e agarrou-se a ela com todas suas forças.

— Poderia me dar algumas lições? — pediu humildemente. Perdoe-me, Sharla, pensou,

imaginando que teria de esconder todos os bilhetes que ela deixara, as caixas e garrafas que ela

rotulara cuidadosamente "para roupas coloridas" e "para roupas brancas".

Ella estava hesitando.

— Bem... — começou a dizer.

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O microondas apitou. Lewis retirou o bolo. Serviu uma fatia a Ella, cortou outra para si

mesmo.

— Eu sei que estou abusando, e sei o quanto você é ocupada. Mas desde que minha

esposa morreu, eu vivo metendo os pés pelas mãos. Na semana passada cheguei mesmo a pensar

se não seria mais fácil simplesmente comprar roupas novas todo mês...

— Não, não faça isso! — exclamou Ella. — Eu vou ajudar você. — Lewis percebeu que a

promessa fora feita com muita dificuldade, que uma batalha estava sendo travada por trás de seus

olhos, seu senso de dever e sua simpatia por ele guerreando com seu desejo feroz de ficar

sozinha. — Espere um instante que vou pegar meu livro.

O livro revelou-se uma agenda muito grossa que era um labirinto, quase ilegível, de

rabiscos, setas, números de telefones e bilhetes auto-adesivos.

— Vejamos — disse Ella, examinando cada página. — Quarta-feira estou no hospital...

— Algum problema?

— Eu embalo bebês — explicou, — Quinta estou na cozinha da instituição de caridade,

fazendo sopa. Sexta é o dia em que participo do programa Refeições sobre rodas...

— Sábado? — perguntou Lewis. — Não quero assustar você, mas estou quase sem

cuecas.

Ella produziu um ruído no fundo da garganta que quase soou como uma gargalhada.

— Sábado — concordou.

— Bom. Que tal às cinco da tarde? Depois levarei você para jantar. Lewis tinha saído

antes que ela pudesse dizer-lhe qualquer coisa e, enquanto caminhava assobiando pelo corredor,

não se surpreendeu ao cruzar com Mavis Gold, que afirmou que estava indo para a lavanderia,

apesar da ausência evidente de uma cesta de roupas sujas.

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— Como foi? — sussurrou Mavis.

Lewis fez sinal de OK para Mavis, que sorriu e bateu palmas. Então correu para casa.

Precisava derramar tintas nas calças e puxar alguns botões de sua camisa favorita.

—9 9 9 9 —

uito bem — disse Rose de sua cadeira diante

do computador. — Seu nome eu já preenchi.

Endereço, pode usar o meu. — Seus dedos

dançaram furiosamente no teclado. — Objetivo?

— Arrumar um emprego— disse Maggie, esparramada no sofá com o rosto enterrado

debaixo de um centímetro e meio do que informara à irmã ser uma máscara de argila para reduzir

poros.

— Que tal se dissermos "uma oportunidade no varejo?" — indagou Rose.

— Pode ser — disse Maggie, ligando a tevê. Era manhã de sábado, cinco dias depois de

seu teste vergonhoso, e a MTV estava apresentando a vencedora do concurso de VJs: uma

morena bonita e alegre com um piercing na sobrancelha.

— No próximo bloco! O novo e fantástico videoclipe das Spice Girl! — balbuciou a

garota. Maggie prontamente mudou de canal.

— Ouça — disse Rose. — Estou tentando te ajudar. Pode fazer o favor de prestar

atenção?

— M

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Maggie bufou e desligou a tevê.

— Experiência profissional — disse Rose.

— Hein?

— Você sabe, seus empregos anteriores. Maggie, você nunca fez um currículo?

— Mas é claro. Faço sempre. Sabe, tanto quanto você faz ginástica.

— Empregos anteriores — repetiu Rose.

Maggie olhou com desejo para os cigarros em sua bolsa, mas sabia que acendê-los

resultaria na palestra de Rose sobre câncer de pulmão ou no sermão "minha casa, minhas regras".

— Certo — disse Maggie, fechando os olhos. — TJ. Maxx — começou. — Durante seis

semanas. De outubro até um pouco antes do Dia de Ação de Graças.

Maggie suspirou. Realmente tinha gostado daquele emprego. E se saíra muito bem nele.

Quando trabalhou na cabine de provas, não dava simplesmente às suas clientes a plaquinha com

número de peças e apontava para onde deveriam experimentar as roupas. Pegava as roupas,

conduzia as clientes até as cabines, abria uma delas e pendurava cuidadosamente cada peça, do

jeito que faziam nas lojas de departamento e butiques chiques do centro da cidade. E quando as

mulheres saíam para se olhar no espelho de três faces, apertando um cinto ou puxando a blusa de

dentro da saia, Maggie as acompanhava, oferecendo sugestões, dizendo a elas com honestidade

(mas com cuidado) quando um vestido não lhes caía bem, e corria de volta para as prateleiras

para encontrar outro tamanho ou cor, ou alguma coisa completamente diferente, alguma coisa

que elas nem haviam se imaginado usando, mas que Maggie conseguia ver.

— Você é uma jóia! — dissera uma das clientes, uma mulher alta e magra, de cabelos

pretos, que teria ficado ótima em qualquer coisa, mas que ficara maravilhosa com as peças que

Maggie escolhera: um vestidinho preto com a bolsa de couro preto perfeita, sandálias pretas e um

cinto de argolas douradas que resgatara da seção de ponta de estoque. — Vou dizer à gerente

como você me ajudou!

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— O que aconteceu? — indagou Rose.

Maggie manteve os olhos fechados.

— Pedi demissão — murmurou.

Na verdade, o que acontecera fora o que costumava acontecer com seus empregos — as

coisas corriam bem até que ela esbarrava com algum problema. Sempre havia algum problema.

Neste caso, tinha sido no caixa. Ela havia passado no leitor óptico um cupom de desconto de dez

por cento, mas não havia funcionado.

— E por que você não registra manualmente? — inquirira a cliente.

Maggie olhara com cara feia para ela, e então fitara o total. Cento e quarenta e dois

dólares. Então dez por cento dava... Ela mordeu o lábio.

— Quatorze dólares! — disse a mulher. — Ande logo! — Nesse momento, Maggie

empertigou-se lentamente, bipou para a gerente e começou a atender a cliente seguinte na fila

com um sorriso.

— Em que posso ajudá-la?

— Ei! — gritou a mulher dos dez por cento. — Você não acabou de me atender.

Maggie ignorou-a enquanto a cliente seguinte empilhava seus suéteres e calças no balcão e

Maggie abria uma bolsa plástica. Ela sabia o que ia acontecer. A mulher ia chamá-la de burra. E

Maggie não conseguiria ouvir isso calada. Ela nem queria estar aqui. Seus talentos estavam sendo

desperdiçados no caixa, seu tempo era mais bem usado nas cabines de provas, onde ela podia

ajudar as pessoas em vez de simplesmente operar um leitor óptico, como se fosse um robô.

A supervisora chegou correndo, as chaves da registradora tilintando contra seu peito.

— Qual o problema?

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A mulher dos dez por cento apontou um dedo para Maggie.

— Ela não registrou meu cupom.

— Maggie, qual é o problema?

— O aparelho não aceitou — murmurou Maggie.

— Bem, dez por cento — disse a supervisora. — Quatorze dólares!

— Desculpe — murmurou Maggie, olhando para o chão, enquanto a cliente rolava os

olhos.

No final do seu turno, quando a supervisora começou a dizer alguma coisa como usar

uma calculadora ou pedir ajuda sempre que precisasse, Maggie tirou seu avental de poliéster,

deixou cair o crachá no chão e saiu pela porta.

— Muito bem — disse Rose. — Mas se perguntarem, diga a eles que não achou o

emprego desafiador o suficiente.

— Bom — respondeu Maggie, e olhou para o teto como se sua lista de empregos

passados estivesse escrita nele, uma versão de lojas de roupas e lanchonetes da Capela Sistina. —

Antes da T.J. Maxx, trabalhei na Gap, e antes disso na Pomodoro Pizza, e antes disso na

Starbucks da Walnut Street, e antes na Limited... não, espere, está errado. Na Urban Outfitters, e

antes disso na Limited, e...

Rose estava digitando freneticamente.

— Banana Republic — prosseguiu Maggie. — Seção de acessórios na Macy's, seção de

perfumes na Macy's, Cinnabon, Chik-fil- A, Baskin-Robbins...

— E quanto àquele restaurante? O Canal House?

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Maggie estremeceu. Ela estava muito bem no Canal House até que Conrad, o gerente

dominical, começou a pegar no seu pé. MargarET, os saleiros não estão cheios. MargarET,

preciso que você dê uma mãozinha ao ajudante de garçom. Ela dissera, não sabia quantas vezes,

que seu nome não era Margaret — apenas Maggie —, mas ele ignorou-a durante um mês inteiro,

até que ela tramou sua vingança. No final de uma noite de maio, ela e seu então

"meioquenamorado" subiram no telhado para arrancar o C do letreiro do restaurante. O que

significou que dúzias de senhoras tinham vindo fazer seu almoço de Dia das Mães no Anal

House.

— Eu me demito — disse Maggie. Antes que eles me demitam, pensou.

— Bem, agora vamos precisar cortar coisas — disse Rose, olhando para a tela.

— Tanto faz — disse Maggie, e marchou para o banheiro, onde lavou a argila do rosto.

Certo, sua experiência profissional não era a melhor do mundo, pensou furiosa. Mas isso não

significava que ela não trabalhava duro! Isso não significava que ela não tentava!

Rose bateu na porta.

— Maggie, já está acabando aí? Preciso tomar um banho.

Maggie limpou o rosto, voltou para a sala e ligou o televisor antes de sentar-se na frente

do computador. Enquanto Rose tomava banho, Maggie olhou seu currículo, abriu uma nova

janela e começou a digitar uma lista para Rose. Exercitar-se regularmente (aeróbica e pesos),

digitou. Faça exercícios faciais regulares. Faça sua inscrição na Jenny Craig (eles estão com

uma promoção!) Ela digitou, sorrindo, e então acrescentou um link para um artigo sobre a

cirurgia de perda de peso de Carnie Wilson. Enfiou um cigarro entre os lábios e caminhou até a

porta, deixando a lista impressa na cadeira e o artigo ("Estrela perde metade do peso corporal!")

na tela do computador, para que fosse a primeira coisa que sua irmã visse ao voltar para casa do

trabalho.

— Tranque a porta ao sair! — gritou Rose do quarto. Maggie a ignorou. Se era tão

esperta, que trancasse a própria porta, e saiu para o corredor.

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— Uma advogada? — O homem barbudo franziu os olhos para Rose. — Ei, como se

chama seis advogados no fundo do oceano?

Rose deu de ombros e olhou para a porta da frente de Amy, torcendo para que Jim

passasse logo por ela.

— Um bom começo! — berrou o barbudo.

— Não entendi — disse Rose.

Ele a fitou, sem saber se ela estava brincando.

— Não entendi. Quero dizer, por que os advogados estão no fundo do oceano? Estão

fazendo pesca submarina ou algo desse tipo?

Agora o barbudo estava parecendo pouco à vontade. Rose franziu a testa.

— Espere... eles estavam no fundo do oceano porque tinham se afogado?

— Bem, é — disse o barbudo, arrancando o rótulo de sua cerveja com a unha.

— Certo — disse Rose lentamente. — Então há seis advogados mortos por afogamento

no fundo do oceano... — Ela parou e olhou para o barbudo, esperando a parte engraçada.

— Foi só uma piada.

— Mas não entendi por que é engraçada.

O barbudo deu dois passos para trás.

— Espere — disse Rose. — Espere! Você tem de acabar de me explicar a piada!

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Vai ser... hum... — disse o barbudo. Ele foi saindo de fininho em direção ao bar. Amy

lançou um olhar reprovador do outro lado da sala e balançou a cabeça. Má menina, disse com os

lábios, fazendo um sinal de advertência com o dedo indicador. Rose deu de ombros. Ela não

costumava ser tão rude, mas o atraso de Jim — combinado com a hospedagem de Maggie, que já

contava três semanas — deixara-a com um mau humor dos diabos.

Rose olhou para sua melhor amiga, pensando que pelo menos uma delas mudara desde o

sofrimento na escola. No final do segundo grau, Amy media quase um metro e oitenta, pesando

talvez quase 50 quilos, e os meninos de sua turma a chamavam de Olívia Palito... ou só Palito

para encurtar. Mas ela acabara se sentindo à vontade com seu corpo esguio. Agora ostentava seus

pulsos protuberantes como braceletes caros e os ossos ressaltados do rosto e dos quadris como

peças de arte incomuns. Ela usara trancinhas do tipo rastafári na faculdade, mas depois da

formatura cortara os cabelos e os tingira de vermelho-escuro. Usava blusas pretas apertadas e

calças compridas pretas, e ficava absolutamente fabulosa. Exótica e misteriosa, e sensual, mesmo

quando abria a boca e deixava escapar seu sotaque arrastado de garota de Nova Jersey. Amy

sempre tinha pelo menos meia dúzia de namorados, ex-namorados e possíveis namorados

fazendo fila para ter o privilégio de lhe pagar uma pizza e ouvi-la analisar a situação da música

hip-hop nos Estados Unidos.

Além disso, Amy era engenheira química — profissão que não costumava incitar pelo

menos algumas perguntas interessantes dos estranhos que conhecia em festas —, ao passo que

Rose era advogada, o que geralmente provocava uma de duas reações: a primeira, caracterizada

pela piada de advogado que o barbudo acabara de contar, e a segunda, Rose tinha certeza

absoluta, logo seria demonstrada pelo sujeito alto e pálido de óculos que se posicionara no sofá

ao lado dela, interrompendo seu momento privado com a bacia de salgadinhos de queijo.

— Amy disse que você é advogada — começou ele. — Sabe, eu estou lendo um

probleminha legal.

Claro que você está, pensou Rose, forçando um sorriso. Olhou o relógio. Quase onze.

Onde estava Jim?

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— Tem uma árvore na minha propriedade, entende? Mas as folhas caem principalmente

no quintal do meu vizinho...

Sim, sim, sim, pensou Rose. E vocês dois são preguiçosos demais para catar as malditas

folhas. Ou ele podou a árvore sem sua permissão. E, em vez de simplesmente conversar sobre a

árvore como pessoas normais, ou, Deus me livre, contratar um advogado, vocês querem me

consultar de graça.

— Com licença — murmurou Rose, cortando o sujeito no meio da história, escapou e

embrenhou-se pela multidão até achar Amy na cozinha, encostada na geladeira, girando um cálice

de vinho nos dedos, cabeça curvada para trás, rindo do que o homem na frente dela estava

dizendo.

— Dan, esta é a minha amiga Rose.

Dan era alto, moreno, bonito.

— Prazer em conhecê-la — disse ele.

Rose dirigiu-lhe um sorriso fraco, pegando sua bolsa — e dentro dela seu celular. Ela

precisava falar com Jim. Ele era a única pessoa que poderia acalmá-la, fazê-la sorrir e convencê-la

de que a vida não era sem sentido e que o mundo não era cheio de idiotas piadistas e

proprietários de árvores litigiosos. Onde ele estava?

Rose se afastou de Dan e enfiou a mão dentro da bolsa, mas Amy estava bem atrás dela.

— Esqueça isso — disse com severidade. —Não o persiga. Não é próprio de uma dama.

Lembra? Os homens gostam de ser os caçadores, não as presas. — Amy tomou o celular da mão

de Rose e o substituiu por uma colher. — Bolinhos de camarão — disse ela, apontando para

Rose o forno e um pote de água fumegante.

— O que você tem contra Jim, afinal? — perguntou Rose.

Amy olhou para o teto e então voltou a encarar Rose.

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— Não é ele, é você. Estou preocupada com você.

— Por quê?

— Estou preocupada que você esteja mais envolvida do que ele. Não quero que se

magoe.

Rose abriu a boca, e então fechou-a depressa. Como convencer Amy de que Jim estava

tão envolvido quanto ela, quando ele nem estava aqui? E havia mais uma coisa, uma pulga

cocando atrás de sua orelha a respeito da noite em que ele chegara tarde, com os braços cheios de

flores, e a forma como cheirava a uísque, botões de rosa e, vagamente, a outra coisa. Perfume?,

perguntou-se, e então interrompeu o pensamento e construiu uma parede em torno dele, uma

parede composta principalmente pela palavra não.

— E ele não é seu chefe?

— Não exatamente — respondeu Rose. Jim não era seu chefe. Pelo menos não mais que

qualquer outro sócio era seu chefe. O que era o mesmo que dizer que ele era ao menos um pouco

seu chefe. Rose engoliu em seco, enfiou esse pensamento no esconderijo costumeiro no fundo de

sua mente e pegou uma porção de bolinhos de camarão. Assim que Amy lhe deu as costas, Rose

pegou sua bolsa novamente, percorreu um corredor decorado com máscaras africanas, entrou no

banheiro de Amy e ligou para o telefone de Jim no escritório. Ninguém atendeu. Ligou para sua

própria casa. Talvez ele a tivesse entendido errado e passado na casa dela em vez de seguir direto

para a de Amy.

— Alô?

Merda. Maggie.

— Oi — disse Rose. — Sou eu. Jim ligou?

— Não.

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— Bem, se ele ligar, diga a ele... diga a ele que nos vemos mais tarde.

— Provavelmente não estarei aqui. Estou saindo.

— Oh — disse Rose. Havia uma dúzia de coisas que ela queria perguntar: indo para

onde? Com quem? Com que dinheiro? Ela segurou a língua. Perguntas deixavam Maggie furiosa,

e soltar uma Maggie furiosa na cidade era como dar uma arma carregada a uma criança de dois

anos.

— Fecha a porta quando sair — recomendou.

— Farei isso.

— E, por favor, tire os meus sapatos — disse Rose.

Houve uma pausa.

— Não estou usando seus sapatos — disse Maggie.

Claro, porque você acaba de tirá-los, pensou Rose.

— Divirta-se — preferiu dizer.

Maggie prometeu que iria se divertir. Rose jogou água fria na face e nos pulsos e se olhou

no espelho. Ela havia manchado a região em volta dos olhos com seu rímel. O batom havia

evaporado. E estava presa numa festa comendo bolinhos de camarão, sozinha. Onde ele havia se

metido?

Rose abriu a porta e tentou passar por Amy, que estava parada no vão da porta com seus

braços compridos cruzados diante do peito ossudo.

— Ligou para ele? — indagou.

— Para quem? — retrucou Rose.

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Amy soltou uma gargalhada.

— Você não melhorou nada como mentirosa desde sua paixão por Hal Lindquist. —

Usando um guardanapo, Amy limpou o rímel de baixo dos olhos de Rose.

— Eu não fui apaixonada por Hal Lindquist!

— Claro que não. Você apenas escreveu exatamente o que ele estava usando nas aulas de

matemática porque queria que as gerações futuras tivesse um registro do que Hal Lindquist usava

em 1984.

Rose sorriu.

— E então, com qual daqueles caras você está?

Amy fez uma careta.

— Não pergunte. Devia ser o Trevor.

Rose se esforçou para lembrar o que Amy contara-lhe sobre Trevor.

— Ele está aqui?

— Na verdade, não está — disse Amy, — Vê se você me acompanha: estamos jantando.

— Onde? — perguntou Rose, atenciosa.

— No Tangerine. Muito chique. E estamos sentados lá, as luzes estão baixas, as velas

estão tremeluzindo, e eu não derramei cuscuz no colo, e ele me conta por que rompeu com a

última namorada. Parece que ele desenvolveu certos interesses.

— Quais interesses?

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— Merda — respondeu Amy com uma expressão séria.

— Hein?

— Isso mesmo que você ouviu. Atos de defecação.

— Tá brincando — disse Rose, de queixo caído.

— Uma merda que estou. E eu fiquei ali, sentada na frente dele, absolutamente

horrorizada. Nem preciso dizer, mas não comi mais nada. Além disso tive de passar o resto da

refeição me segurando para não peidar, para ele não pensar que eu estava flertando...

Rose desatou a rir.

— Vamos — disse Amy, jogando fora o guardanapo e enfiando uma cerveja na mão de

Rose. — Aproveite a festa.

Rose voltou para a cozinha, aqueceu um molho de alcachofras, encheu novamente a cesta

de torradas e conversou com mais outro pretendente de Amy. Depois não lembraria de mais

nenhuma palavra do que o sujeito disse. Rose só tinha pensamentos para Jim que, a julgar pelas

aparências, não tinha pensamentos para ela.

—11110 0 0 0 —

im Danvers abriu os olhos e pensou a mesma coisa que pensava todas as

manhãs: hoje eu vou ser bom. Livrai-me das tentações, recitou deslizando

a lâmina de barbear pelo queixo, olhando para si mesmo no espelho do

banheiro. Sai de mim, Satã, disse enquanto vestia as calças.

J

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O problema era que Satã estava em toda parte. A tentação espreitava de cada esquina.

Aqui estava ela, encostada na parede de um prédio, esperando um ônibus. Jim freou seu Lexus e

olhou a loura de calças jeans apertadas, perguntando-se como era seu corpo por baixo do casaco

volumoso, como ela se movia na cama, qual era seu cheiro, que sons fazia e o que seria preciso

para descobrir.

Pare, ordenou a si mesmo, simplesmente pare, e ligou o rádio. A voz do locutor

sensacionalista Howard Stern ribombou nos alto-falantes.

— São de verdade, querida? — perguntou à atriz iniciante que era sua convidada naquela

manhã.

— Silicone autêntico — respondeu ela, rindo.

Jim engoliu em seca e sintonizou na estação de música clássica. Era tão injusto.Desde

seus 12 anos, quando um sonho erótico na terceira noite de um acampamento de escoteiros

anunciara sua entrada na puberdade, Jim sonhava com mulheres com uma ferocidade

concentrada, o desejo de um homem faminto preso numa ilha deserta com exemplares antigos da

revista Bon Appetit. Louras, morenas, ruivas, magricelas de seios pequenos, baixinhas roliças,

negras, hispânicas, asiáticas, brancas, jovens, velhas, e tudo no meio disso. E, Deus do Céu, até

uma garota bonita de muletas a quem vira na maratona de televisão do Jerry Lewis. Em seu

mundo de fantasia, Jim Danvers era um patrão que dava oportunidades iguais para todos.

E ele jamais seria capaz de tê-las. Não aos 12 anos, quando era baixo e gorducho, e perdia

o fôlego com facilidade. Não aos 14, quando ainda era baixo e não mais gorducho, mas gordo, e

seu rosto era coberto pelo que o Dr. Guberman jurou ser o pior caso de acne cística que vira.

Aos 16 anos ele cresceu 15 centímetros, mas o mal já tinha sido feito e não podia mais se livrar

do apelido de Baleia, que seguiu com ele para a faculdade. A conseqüência disso foi o clássico

círculo vicioso — era infeliz por causa de seu peso; comia demais para suportar o sofrimento

alimentando sua dor com pizza e cerveja, o que apenas o deixava mais gordo, o que apenas

afastava mais as mulheres. Perdeu a virgindade no último ano do segundo grau com uma

prostituta que o olhou dos pés à cabeça, mastigando seu chiclete num jeito meditativo antes de

insistir que ela ficaria por cima.

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— Não quero criticá-lo, meu bem — disse a prostituta —, mas acho que temos aqui um

caso de responsabilidade legal.

A faculdade de direito poderia ter sido diferente, pensou ouvindo as cordas calmantes de

Bach. Ele tinha ficado ainda mais alto, e depois dos dez minutos constrangedores com a

prostituta, começara a correr, refazendo a rota de Rocky pelas ruas da Filadélfia (embora tivesse

certeza de que Rocky teria chegado bem mais longe do que três quarteirões sem perder o fôlego).

Ele emagreceu. Sua pele ficou limpa, deixando apenas uma leve teia de cicatrizes interessantes.

Ele corrigiu os dentes. O que sobrou foi uma timidez debilitante, uma falta de auto-estima

crônica. Durante seus vinte e tantos anos, durante os anos em que galgou os degraus na Lewis,

Dommel e Fenick, sempre que ouvia mulheres rindo, ele deduzia que estavam rindo dele.

E então, de algum modo, tudo mudou. Lembrou-se da noite em que fora promovido a

sócio. Nessa noite juntou-se a três de seus colegas recém-promovidos num bar Irlandês na

Walnut Street.

— É noite das babás — disse um deles com uma piscadela significativa.

Jim não sabia o que isso significava, mas não demorou a descobrir. O bar estava cheio de

garotas irlandesas, suecas de olhos azuis, finlandesas com tranças nos cabelos. Meia dúzia de

sotaques ritmados misturavam-se no bar decorado em bronze e mogno. Jim ficou pasmo. Pasmo

e absolutamente paralisado num canto, afogando-se em champanhe e cerveja preta até bem

depois de seus colegas terem ido para casa. Ficou parado ali, olhando impassível para as moças

rindo e se queixando de seus trabalhos. A caminho do banheiro masculino, esbarrou numa ruiva

de rosto sardento com olhos azuis reluzentes.

— Parado aí! — disse a ruiva, rindo enquanto ele murmurava uma desculpa. Seu nome

era Maeve, disse ela enquanto o levava até sua mesa. — Sócio num escritório de advocacia! —

exclamou ela, enquanto suas amigas meneavam as cabeças em sinal de aprovação. — Parabéns!

E de algum modo Jim acabou na cama com Maeve, passando seis horas alegres provando

suas sardas, enchendo as mãos com seus cabelo de fogo.

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Depois disso virou um galinha. Não havia outra palavra para descrever. Não era um Don

Juan ou um Romeu. Não era um garanhão ou um conquistador. Era um galinha, realizando cada

uma das fantasias de sua adolescência frustrada numa cidade que subitamente parecia cheia de

garotas generosas na casa dos vinte, cada uma delas tão ansiosa quanto ele por uma noite sem

compromissos. Ele havia virado alguma espécie de esquina mágica onde o que ele era (e o que

havia conquistado) de algum modo compensara por sua aparência. Ou talvez sua aparência

tivesse melhorado. Ou, para as mulheres, a frase "sou sócio num escritório de advocacia" soasse

exatamente como "tire as calcinhas". Ele não podia explicar, mas de uma hora para a outra havia

babás, estudantes, secretárias e garçonetes, mas ele nem precisava ir a bares para encontrá-las.

Ora, aqui mesmo no escritório havia uma certa assistente de advocacia que ficaria feliz em ficar

até tarde, trancada no escritório dele, e tirar tudo, menos um sutiã lilás e um par de sandália com

amarrações em suas panturrilhas, e...

Pare, Jim disse a si mesmo. Era inadequado. Era constrangedor. Precisava parar. Ele tinha

35 anos e era sócio de um escritório de advocacia. Ele estava há mais de um ano e meio se

empanturrando num bufê carnal do tipo "coma tudo o que quiser". Já bastava. Pense nos riscos,

instruiu a si mesmo. Doenças! Dor de cotovelo! Pais e namorados furiosos! Os três sujeitos que

tinham sido promovidos junto com ela já eram casados, e dois eram país, e embora nada explícito

tivesse sido dito, era claro que eles tinham sido escolhidos pelo tipo de estilo de vida que a firma

aprovava. Lar e família, com no máximo uma diversão paralela bem discreta, e não esses fins de

semana selvagens com garotas cujos nomes ele nem sempre lembrava. As atitudes de seus colegas

já estavam mudando de pasmo para escárnio. Logo, olhariam para ele só como passatempo.

Muito em breve iriam desprezá-lo.

E também havia Rose. Jim sentiu-se mais calmo ao pensar nela. Rose não era a garota

mais bonita, nem a mais gostosa, com quem ele já tinha ficado. Ela se vestia como uma

bibliotecária reprimida, e sua noção de lingerie sensual era quando suas calcinhas de algodão

combinavam com seu sutiã de algodão. Mas, ainda assim, havia alguma coisa em Rose que

contornava a brasa debaixo de seu cinto e cravava direto em seu coração. A forma como ela

olhava para ele! Como se ele fosse um dos homens das capas dos livros românticos que ela lia,

como se ele tivesse deixado seu cavalo branco atrelado a um parquímetro e atravessado uma

cerca de espinhos para resgatá-la. Jim estava surpreso pela firma inteira não ter descoberto o que

estava acontecendo entre eles, a despeito das regras que proibiam sócios de saírem com

funcionários. Mas talvez ele estivesse cego. Talvez todo mundo já tivesse descoberto o caso dos

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dois. E aqui estava ele, com a tentação que lhe acometia uma centena de vezes por dia de partir o

coração de Rose.

Doce Rose. Ela merecia alguém muito melhor, pensou Jim enquanto guiava seu Lexus

para a garagem da firma. E por ela, ele tentaria ser o melhor que pudesse. Ele já havia trocado sua

secretária gostosa por uma senhora na casa dos sessenta com hálito do pastilhas para tosse, e

estava longe dos bares há um tempo recorde de três semanas. Ela era| boa para ele, disse Jim a si

mesmo, entrando no elevador que iria levá-lo até seu escritório. Era inteligente e gentil; o tipo de

garota com quem ele conseguia se ver envelhecendo, passando com ela o resto da vida. E por

Rose entraria nos eixos, jurou, olhando para o trio de secretárias tagarelas que entrara no

elevador, antes de respirar fundo para sentir uma última vez a mistura de seus perfumes, engolir

em seco e olhar em outra direção.

—11111 1 1 1 —

ais uma vez: por que precisamos fazer isto?

— perguntou Maggie enquanto afundava no

banco do carona. Fazia essa mesma pergunta

sempre que iam a um jogo de futebol americano. Faziam isso uma vez por ano há quase vinte

anos, e a resposta nunca mudava.

— Porque o nosso pai é um homem muito limitado — respondeu Rose, e começou a

dirigir para o estádio. — Você vai ser afetuosa com ele, não vai?

Maggie vestira-se para o jogo de futebol americano numa roupa colante preta, botas

pretas de salto alto e casaco de couro preto com gola de pele falsa. Quanto a Rose, estava de

calça jeans e suéter, mais chapéu, cachecol, luvas e um casaco amarelo muito folgado. Olhando

com nojo para o casaco, Maggie disse:

— M

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— Você parece um colchão no qual alguém mijou.

— Obrigada por me dizer. Ponha o cinto.

— Tá — disse Maggie, tirando um frasco de um dos bolso , minúsculos do casaco.

Tomou um gole e ofereceu a garrafa à irmã. — Conhaque de damasco.

— Estou dirigindo — disse Rose, com uma expressão impassível.

— E eu estou bebendo — retrucou Maggie com uma risadinha. O som da risada da irmã

fez Rose se lembrar de cada partida de futebol americano à qual elas tinham ido desde que o pai

delas, numa atitude ligeiramente equivocada de aproximação com suas filhas, comprara os

primeiros ingressos em 1981.

— A gente odeia futebol americano — informara Maggie com a convicção absoluta de

ter dez anos e ter certeza a respeito de tudo. O rosto de Michael Feller ficara pálido.

— A gente não odeia! — disse Rose, e deu um beliscão no braço da irmã.

— Ai! — gritou Maggie.

— É mesmo? — perguntou o pai.

— Bem, a gente não gosta muito de ver na TV — disse Rose. — Mas a gente adoraria ver

um jogo de verdade! — Para garantir que Maggie não iria contrariá-la, Rose deu um beliscão de

advertência na irmã.

E as coisas tinham ficado assim. Todo ano, os três — e mais tarde, quando Sydelle entrou

em cena, os quatro — iam juntos aos jogos dos Eagles quando eles jogavam em casa. Maggie

costumava usar suas vestes diurnas — luvas enfeitadas com pele falsa e chapéus com pompons

fofinhos, e certa vez, se Rose lembrava bem, um par em miniatura de botas de líder de torcida.

Rose fazia sanduíches de geléia e manteiga de amendoim e os guardava numa merendeira, junto a

uma garrafa térmica com chocolate quente. Nos dias mais frios eles levavam cobertores, e os três

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ficavam agarradinhos, lambendo manteiga de amendoim dos dedos entorpecidos, enquanto o pai

xingava cada mancada do seu time, e então olhava cheio de culpa para as meninas. E dizia:

— Desculpe meu francês.

— Desculpe o meu francês — murmurou Rose. Maggie olhou com curiosidade para ela,

bebericou novamente seu conhaque e afundou ainda mais na poltrona.

O pai e Sydelle estavam esperando por elas ao lado de uma bilheteria. Michael Feller

vestia calça jeans, suéter do Eagles e um colete em prata e verde, as cores do time. Sydelle estava

com sua costumeira expressão gélida, rosto cheio de maquiagem e mu casaco de mink que descia

os calcanhares.

— Maggie! Rose! — gritou o pai, balançando os ingressos.

— Garotas — disse Sydelle, beijando o ar sete centímetros à direita de suas faces. Em

seguida, reaplicou seu batom.

Rose seguiu a madrasta até seus lugares. Ouvindo os saltos de Sydelle estalarem no

concreto, Rose se perguntou — não pela primeira vez — por que diabos esta mulher havia se

casado com seu pai. Sydelle Levine era uma divorciada no meio da casa dos quarenta cujo marido

acionista se comportara mal trocando-a pela secretária. Très cliché,, mas Sydelle sobrevivera a

essa indignidade, talvez consolada pela gorda pensão que seu marido concordara de bom grado

em pagar. (Rose imaginava-o pensando que até um milhão de dólares por ano seria um preço

baixo a pagar para se ver livre de Sydelle). Michael Feller era oito anos mais jovem que ela, um

gerente de cargo intermediário num banco médio. Ele sempre viveria com conforto, mas jamais

seria rico. Além disso, ele tinha bagagem: esposa morta, filhas.

Qual teria sido a atração entre eles? Rose gastara horas e mais horas de sua adolescência

tentando desvelar isso nos anos que se seguiram ao encontro de Michael Feller e Sydelle no

saguão do Beth Shalom (Sydelle estava saindo de um jantar beneficente de quinhentos dólares

por prato, e Michael estava indo para uma reunião da Associação de Pais sem Companheiros).

— Sexo! — dissera Maggie, rindo.

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E era verdade que, falando objetivamente, o pai era um homem bonito. Mas Rose não

tinha certeza. Ela achava que Sydelle tinha visto o pai dela não apenas como um homem bonito,

ou um bom partido, mas como seu amor verdadeiro, sua segunda chance. Rose sempre acreditara

que Sydelle realmente o amava — pelos menos no princípio. E ela sempre apostara que seu pai

não estivera procurando por nada mais que uma companhia para viagens — e, obviamente, uma

mãe substituta para Maggie e Rose, considerando o sucesso de Sydelle com "Minha Márcia".

Michael Feller já havia achado o amor de sua vida, e o sepultado em Connecticut. E a cada

semana Sydelle ficava mais ciente dessa verdade, e mais desapontada — e um pouco mais

rigorosa com as filhas de Michael.

Era triste, pensou Rose enquanto sentava, puxava o chapéu sobre as orelhas e apertava o

cachecol mais forte em torno do pescoço. Triste, e improvável de mudar. Sydelle e seu pai

ficariam juntos até o fim.

— Quer um pouco?

Assustada, Rose pulou na cadeira e virou-se para sua irmã, que tinha esticado as pernas no

encosto da cadeira à sua frente e estava oferecendo sua garrafa de conhaque de damasco.

— Não, obrigada — disse Rose, e se virou para o pai.

— Como você tem passado? — perguntou.

— Ah, você sabe. O trabalho me mantém ocupado. Meu fundo Vanguard 500 teve um

trimestre péssimo. Eu... CORRE SEU VIADO!

Rose inclinou-se sobre sua irmã para falar com Sydelle.

— E como vão as coisas com você? — perguntou, fazendo seu esforço habitual de ser

gentil com a madrasta no dia de jogo.

Sydelle afofou seu mink.

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— Minha Márcia está redecorando.

— Que incrível — disse Rose, tentando soar entusiasmada.

Sydelle fez que sim com a cabeça.

— Em fevereiro vamos a um SPA — disse ela, e lançou um olhar significativo para a

cintura de Rose. — Sabe, Minha Márcia comprou um vestido tamanho P da estilista Vera Wang

quando se casou e...

— ...ele cabe nela até hoje — recitou Rose silenciosamente para si mesma, enquanto

Maggie proferia as mesmas palavras, só que em voz alta.

Sydelle estreitou os olhos.

— Não sei por que você se sente compelida a ser rude.

Maggie ignorou Sydelle e, vendo que as líderes de torcida tinham enchido o campo,

estendeu a mão para pegar o binóculo do pai.

— Gorda, gorda, velha, gorda — recitou enquanto corria o binóculo pela fila. — Pintura

de cabelo ruim. Eca, silicone malfeito, velha, gorda, velha...

Michael Feller fez sinal para o vendedor de cerveja. Sydelle segurou a mão dele e a

colocou de volta em seu colo.

— Ornish! — sussurrou.

— Como é? — disse Rose.

— Ornish — disse Sydelle. — Estamos fazendo a dieta de Dean Ornish. Baseada em

plantas. — Ela olhou de lado mais uma vez, desta vez para as coxas de Rose. — Você deveria

tentar.

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Estou no Inferno, pensou Rose. O inferno é um jogo dos Eagles, em que sempre faz

muito frio, o time sempre perde e a minha família é insana.

O pai cutucou o ombro de Rose e abriu a carteira.

— Quer comprar chocolate quente para a gente?

Maggie inclinou-se até ele.

— Também quero dinheiro! — gritou, e então espiou a carteira. — Quem é esse aí?

— Ah, sim. — O pai pareceu embaraçado. — É apenas um artigo que recortei. Estava

querendo dá-lo a Rose...

— Papai, esse aí é Lou Dobbs — disse Rose.

— Isso mesmo — disse o pai.

— E você carrega uma foto de Lou Dobbs na carteira?

— Não uma foto — disse Michael Feller. — Este artigo. É sobre como se preparar para a

aposentadoria. É muito bom.

— Você tem fotografias da gente aí? — inquiriu Maggie, agarrando a carteira. — Ou

apenas desse tal Lou? — Ela folheou as fotos. Rose olhou, também. Havia fotos dos tempos de

escola de Rose o Maggie, de quando estavam na sexta e na quarta séries, respectivamente. Uma

foto de Michael e Caroline no dia de seu casamento: Caroline soprando para cima para afastar o

véu da testa, e Michael olhando para ela. Rose notou que não havia nenhuma foto de Michael e

Sydelle. Ela se perguntou se Sydelle já havia notado isso. A julgar pela expressão gélida de Sydelle,

pela forma como seus olhinhos estavam fixos à frente, Rose deduziu que a resposta era sim.

— Vamos, Birds — berrou no ouvido de Rose o homem na fileira de trás, usando um

arroto como exclamação. Rose se levantou e caminhou até a lanchonete, onde comprou uma

caneca de chocolate quente aguado e um cachorro quente que devorou em quatro mordidas

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gigantescas. Depois encostou no corrimão e ficou catando migalhas de seu cachecol, contando os

minutos que faltavam até as oito da noite, quando iria jantar com Jim.

Agüente firme, disse a si mesma. Comprou mais três canecas de chocolate quente e as

carregou de volta com muito cuidado até as cadeiras.

—11112 2 2 2 —

ra. Lefkowitz? — Ella bateu com força na porta

de alumínio, equilibrando uma bandeja de

almoço no quadril. — Olá?

— Vá pro inferno! — soou a voz arrastada lá de dentro. Ella suspirou e continuou

batendo.

— Hora do almoço! — gritou Ella, o mais animada que conseguiu.

— Vá tomar no cú! — berrou a Sra. Lefkowitz. A Sra. Lefkowitz sofrera um derrame, e

sua recuperação infelizmente coincidira com a semana que o Golden Acres estava recebendo

HBO de graça. Naquela época a programação da HBO incluía um especial da comediantes de

palco Margaret Cho. Desde então a Sra. Lefkowitz vinha xingando Ella com os palavrões mais

abomináveis, e rindo cada vez que fazia isso.

— Trouxe sopa — anunciou Ella.

Houve uma pausa do outro lado da porta.

— Creme de champignon? — perguntou, esperançosa, a Sra. Lefkowitz.

— S

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— Sopa de ervilhas — confessou Ella.

Mais uma pausa, e então a porta foi aberta, e ali estava a Sra. Lefkowitz, um metro e

quarenta e nove, cabelos brancos e desgrenhados. Usava suéter cor-de-rosa, calças de malha da

mesma cor e botinas brancas e rosas — o tipo de roupa que você daria a um recém-nascido,

pensou Ella, e tentou não sorrir, porque sua última cliente do programa Refeições sobre rodas

naquele dia fitou-a furiosamente.

— Que bosta, sopa de ervilha — disse a Sra. Lefkowitz, canto esquerdo do lábio inferior

caindo um pouco. Fitando Ella, perguntou com cara de cachorrinho abandonado: — Será que

você não podia fazer um creme de champignon para mim?

— A senhora tem champignon em casa?

— Claro, claro — respondeu a Sra. Lefkowitz, arrastando os pés até a cozinha, seu

corpinho nadando em todo aquele tecido rosa. Ella acompanhou-a, pousando a bandeja na mesa

da cozinha. — Desculpa por ter gritado com você. Pensei que era outra pessoa.

"Quem?", quis perguntar Ella. Até onde sabia, era a única pessoa que visitava a Sra.

Lefkowitz, fora seus médicos e a faxineira que vinha três vezes por semana.

— Meu filho — informou a Sra. Lefkowitz, virando-se para Ella com uma lata de sopa

Campbell na mão direita.

— A senhora manda o seu filho tomar... — Ella não conseguiu repetir. — ...naquele

lugar.

— Jovens de hoje — disse, complacente, a Sra. Lefkowitz.

— Bem, que bom que ele tem visitado a senhora — disse Ella, largando numa panela o

concentrado cinzento.

— Mandei ele não vir — disse a Sra. Lefkowitz. — Mas ele disse: "Mãe, você está à beira

da morte." E eu disse: "Tenho 87 anos. Você achava que eu estava a beira do quê? Da piscina?"

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— Bem, que bom que ele tem visitado a senhora.

— Bom uma ova — disse a Sra. Lefkowitz. — Ele só vem para pegar um pouco de sol.

Eu aou conveniente — disse ela, o lábio caído tremendo. — Acho que ele está aqui agora. Na

praia. Olhando as garotas de biquíni e bebendo cerveja. Ele estava louco para sair daqui.

— É agradável ir à praia.

A Sra. Lefkowitz puxou uma cadeira da mesa, sentou-se cuidadosamente e esperou até

que Ella havia empurrado a sua para perto da beira da mesa.

— Deve ser — disse a Sra. Lefkowitz. Ella pousou a tigela na frente da velha senhora. A

Sra. Lefkowitz mergulhou a colher no caldo e levou-a até os lábios. Seu pulso tremia, e metade do

sopa acabou na frente do seu suéter. — Merda — disse ela, e sua voz pareceu pequena, trêmula,

derrotada.

— Tem planos para o jantar? — perguntou Ella, que deu um guardanapo à Sra.

Lefkowitz e verteu a sopa numa caneca de café.

— Eu disse a ele que ia fazer comida. Peru. Ele gosta de peru.

— Eu posso ajudar a senhora. Talvez possamos fazer um prato de sanduíches naturais.

Algo fácil de comer. — Levantando-se, procurou por uma caneta e um bloco para fazer uma

lista. — Podemos comprar um pouco de pão integral, peito de peru e carne enlatada. Também

podemos fazer uma salada de repolho e uma salada de batatas, se ele gostar...

A Sra. Lefkowitz sorriu com metade da boca.

Eu costumava comprar sementes de cominho. Depois do jantar sempre achava uma pilha

de sementes de cominho ao lado do prato dele. Ele nunca reclamava... apenas catava todas elas e

as deixava lá.

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— A minha filha era assim com passas. Tirava as passas de tudo — disse Ella. Ao ver que

a Sra. Lefkowitz olhava-a com curiosidade, Ella deixou sua voz morrer na garganta.

A Sra. Lefkowitz levou uma colher cheia de sopa até a boca, parecendo não importar-se

com o silêncio de Ella.

— E então, vamos fazer compras? — perguntou ela.

— Claro — respondeu, curvando-se para colocar os pratos sujos na máquina. Virando-se

para a Sra. Lefkowitz, lembrou que Lewis iria pegá-la em casa à noite. Eles iam ao cinema. E

quanto tempo demoraria até que Lewis começasse a fazer aquelas perguntas? Você tem filhos?

Você tem netos? Onde eles estão? O que aconteceu? Você não os vê? Por que não? — Claro.

—11113 3 3 3 —

ocê chegou! — disse Maggie.

Rose tinha entrado no apartamento na ponta dos

pés. Fora um dia terrível por treze horas, a porta do escritório de Jim permanecera fechada na

maior parte desse tempo e ela não estava com nenhum clima para as bobagens de Maggie.

Na pequena sala de estar do apartamento, todas as luzes estavam acessas, alguma coisa

cheirava a queimado na cozinha, e Maggie, vestida num short vermelho e uma camisa de malha

na qual estava escrito "gatinha sexy" em letras prateadas, estava empoleirada no sofá, zapeando

pelos canais da tevê. Uma bacia de pipoca de microondas estava pousada no centro da mesa, ao

lado de uma tigela de aveia requentada, duas barras de cereais, e um vidro de manteiga de

amendoim. Isto, no mundo de Maggie era uma refeição balanceada.

— V

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— Como está a procura por emprego? — perguntou Rose, pendurando o casaco e

caminhando até seu quarto, onde sua cama estava coberta pelo que parecia ser o conteúdo inteiro

de seu armário. — O que é isto? O que aconteceu?

Maggie curvou-se sobre o topo da pilha.

— Decidi separar as suas roupas.

Rose olhou para o emaranhado de blusas, casacos e calças, agora tão bagunçados quanto

as roupas de Maggie na sala de estar.

— Por que você está fazendo isto? — perguntou. — Não toque nas minhas coisas!

— Rose, estou tentando te ajudar — disse Maggie, parecendo afrontada. Acho que é o

mínimo que poderia fazer, considerando o quanto você tem sido generosa. — Ela olhou para o

chão. — Desculpe se você não gostou. Só queria ajudar.

Rose abriu a boca, e a fechou em seguida. Isto fazia parte do talento particular de sua

irmã: bem no momento em que você estava para matá-la, chutá-la para a rua, exigir que pagasse

seu dinheiro e devolvesse suas roupas e sapatos, ela dizia uma coisa que fisgava seu coração como

um anzol.

— Tudo bem — murmurou Rose. — Apenas ponha tudo de volta depois que tiver

terminado.

— O certo é fazer uma triagem de todas suas coisas a cada seis meses — disse Maggie. —

Li isso na Vogue. E você está muito fora de moda. Eu achei até jeans desbotados! — acrescentou

com um arrepio. — Mas não se preocupe; joguei fora.

— Você devia tê-los separado para o Exército da Salvação.

— Só porque alguém é pobre, não precisa ser cafona — declarou Maggie. Ela estendeu a

tigela de aveia para a irmã. — Quer um pouco?

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Rose pegou uma colher e se serviu.

— Como você sabe o que eu estou e o que não estou usando?

Maggie deu de ombros.

— Bem, algumas dessas coisas são óbvias. Como as calças tamanho M da Ann Taylor.

Rose lembrava-se bem dessas calças. Comprara-as numa liquidação há quatro anos, e

conseguira vesti-las, hiperapertadas, uma vez, depois de uma semana alimentando-se apenas de

café preto e milk-shake dietético. Estavam penduradas em seu armário desde então, uma

lembrança silenciosa do que era possível se ela se contivesse e parasse de comer batatas fritas,

pizza e... bem, praticamente tudo de que gostava.

— São suas — disse Rose.

— São grandes demais para mim. Bem, talvez possa mandar apertar — disse Maggie, e

voltou sua atenção para a tevê.

— Quando você vai guardar tudo de volta? — perguntou Rose, imaginando-se tentando

dormir no topo da pilha de roupas.

— Shh! — disse Maggie, um dedo na frente da boca. Apontou para a tevê onde um

boneco de metal pintado de vermelho ameaçava um objeto azul de cujo centro estendia-se uma

serra rotativa.

— O que é isso?

— Televisão — respondeu Maggie, esticando uma perna à sua frente, e se pondo a virá-la

de um lado para o outro, inspecionando sua panturrilha. — É uma caixa que mostra imagens, e

as imagens contam uma história maravilhosa!

Rose pensou em abrir sua carteira. Isto é um contracheque, diria. Ele representa

dinheiro, que é o que você recebe quando mantém seu emprego. Maggie tomou um gole da

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garrafa de champanhe aberta que estava ao seu lado. Rose abriu a boca para perguntar como ela

conseguira champanhe, e então compreendeu que era a garrafa que alguém dera a ela quando

desmaiara no bar e que estivera no fundo da geladeira desde então.

— Como está o champanhe? — indagou Rose.

Maggie tomou outro gole.

— Delicioso. Agora, preste atenção. Veja e aprenda. Neste programa, BattleBots, tem uns

caras que constroem robôs...

— Esse é um bom passatempo — disse Rose, que tentava, sempre que podia, encorajar

Maggie a perseguir homens aceitáveis.

Maggie fez um gesto de "nem pensar".

— Eles são todos uns esquisitos. Eles constroem esses robôs, e os robôs lutam uns

contra os outros, e o vencedor ganha... alguma coisa. Não tenho certeza do quê. Olha, olha,

aquele ali é o meu favorito — disse ela, apontando para o que parecia um caminhão de lixo em

miniatura com uma estaca soldada no seu meio. — É o Philiminator.

— Hein? — perguntou Rose.

— O cara que fez o robô se chama Phil, de modo que o robô se chama Philiminator. —

E com efeito, a câmera focou num homem magro e pálido usando um boné de beisebol com a

palavra "Philiminator". — Ele está invicto há três rodadas — disse Maggie, enquanto um

segundo robô entrava em quadro. Esse era verde brilhante e parecia um aspirador de pó

recauchutado.

— Grendel — disse o narrador do programa.

— Certo, você torce pelo Grendel — disse Maggie.

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— Porquê? — perguntou Rose, mas o duelo já estava começando. Os dois robôs

começaram a seguir um ao outro, correndo pelo assoalho de concreto como cães pequenos e

enraivecidos.

— Manda ver, Philiminator! — gritou Maggie, brandindo exuberantemente a garrafa de

champanhe. Ela olhou para a irmã.

— Vai, Grendel — torceu Rose.

O robô de Maggie aproximou-se. A estaca em seu centro levantou, e levantou, e desceu

violentamente como uma guilhotina, transpassando o centro de Grendel. Maggie aplaudiu e

gritou para incentivá-lo.

— Uau! Começou bem — disse Maggie.

Os robôs circularam um ao outro, em preparação para se engalfinhar de novo.

— Manda ver, Philiminator. ACABA COM A RAÇA DELE! — berrou Maggie.

Rose desatou a rir, enquanto uma roda dentada emergiu da frente de Grendel e começou

a girar.

— Olha só... lá vou eu!

Agora Grendel avançou contra seu oponente. O Philiminator levantou a estaca e espetou

o centro do outro robô.

— Isso! — gritou Maggie.

Os dois robôs agora estavam travados um no outro, conectados pela estaca. Grendel

virou para um lado e para o outro, incapaz de se soltar.

— Vamos... vamos... — murmurou Rose. A roda de Grendel girou, arrancando faíscas do

chão. O Philiminator levantou sua estaca para o golpe mortal, e Grendel recuou.

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— VAI, GRENDEL! — gritou Rose, levantando-se. — Isso! ISSO!

Maggie bufou quando Grendel investiu contra o Philiminator, que era bem maior, enfiou

o nariz por baixo do oponente e o derrubou.

— Nãooooo — uivou Maggie, enquanto o robô passou por cima do dela uma vez, e

então outra, até que a coisa não era nada mais que um monte de partes esmagadas e peças

quebradas.

— Isso. ISSO! — gritou Rose, golpeando o ar com o punho fechado. — É disso que

estou falando! — gritou, imitando os homens da fileira atrás no jogo dos Eagles depois dos

lances mais cruciais. Então se virou para a irmã, para se certificar de que Maggie estava rindo

dela, demonstrando o quanto considerava patética a empolgação de Rose. Só que Maggie não

estava rindo dela. Maggie, faces coradas, sorriu para a irmã e estendeu a mão dizendo "toca aqui".

Em seguida, ofereceu a garrafa de champanhe à irmã. Rose hesitou, e então tomou um gole.

— Quer pedir uma pizza? — ofereceu Rose. Ela podia visualizar o resto da noite:

pijamas, pipoca, as duas no sofá debaixo do cobertor, assistindo a tevê.

Maggie então fez cara de troça, mas só um pouco. E sua voz estava quase gentil.

— Você está realmente vivendo agora, não está? — perguntou. — Você devia sair mais.

— Eu já saio o suficiente — disse Rose. — Você devia ficar mais em casa.

— Já fico em casa o suficiente — disse Maggie, levantando graciosamente. Caminhou até

o quarto, e minutos depois retornou vestida numa calça jeans desbotada e extremamente

apertada, blusa vermelha que deixava um ombro e um braço completamente à mostra, e as botas

de caubói de couro avermelhado de Rose, compradas num fim de semana no Novo México,

onde participara de um seminário sobre direito.

— Você não se importa, não é? — disse Maggie, pegando sua bolsa e as chaves. — Achei

estas botas no seu armário. Elas pareciam solitárias.

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— Claro — respondeu Rose. Ela olhou para a irmã e se perguntou como deveria ser

passar pela vida sendo tão magra e bonita; como seria ter homens olhando para você com

aprovação incondicional, desejo ilimitado. — Divirta-se.

— Sempre me divirto — disse Maggie, e correu para a porta, deixando Rose com a

pipoca, a champanhe choca, a bagunça de roupas largadas sobre a cama. Ela desligou a tevê,

devolvendo-a ao seu silêncio habitual, e começou a limpar a bagunça.

—11114 4 4 4 —

m que posso ser útil? — perguntou Ella. Era sua

tarde na loja de artigos de segunda mão, onde

passava algumas horas agradáveis, quase sem

interrupções, separando roupas por tipos e colocando etiquetas com preços em mobílias e pratos.

Uma jovem de calça comprida laranja e camisa de malha manchada aproximou-se pelo corredor,

já decorado com pinheiros de plástico e lantejoulas prateadas e douradas para o Natal.

— Lençóis — disse a mulher, mordendo nervosamente o lábio. Ella viu o leve resquício

de um ferimento no alto da sua bochecha. — Estou procurando lençóis.

— Bem, este é o seu dia de sorte — disse Ella. — Por acaso recebemos uma remessa da

Bullock. Sobra de estoque, claro, mas eu não vi nada errado neles, com exceção das cores, que

são um pouco... bem, você vai ver.

Ela começou a percorrer o corredor, caminhando rapidamente em suas calças pretas e

blusa branca com seu crachá preso na frente.

— E

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— Estão bem aqui — disse Ella, apontando para onde os lençóis estavam... apenas

algumas dezenas de pacotes, alguns para camas queen, alguns para camas de casal. Eram em

turquesa e rosa-berrante, mas eram novos. — Estão a cinco dólares cada. De quantos vai

precisar?

— Bem, dois de casal. - A mulher pegou alguns pacotes embrulhados era plástico, e

virou-os nas mãos. — As fronhas de travesseiro são cobradas à parte?

— Ah, esqueci de dizer. Não. Cinco dólares por cada conjunto.

A mulher pareceu aliviada ao pegar um par de fronhas e caminhar até o caixa. Ela tirou

uma nota de cinco do bolso, e duas notas amassadas de um dólar. Quando começou a procurar

trocados, enfileirando cuidadosamente centavos no balcão, Ella enfiou os lençóis da mulher

numa sacola plástica.

— Isso basta — disse Ella.

A mulher levantou os olhos para ela.

— Tem certeza?

— Isso basta — repetiu Ella. — Cuide-se. E volte, porque estamos sempre recebendo

coisas novas.

A mulher sorriu - educadamente, pensou Ella — e foi embora, chinelas batendo

ritmicamente na calçada. Ella fitou as costas da mulher, lamentando não ter encontrado uma

forma de enfiar algumas toalhas na bolsa dela, junto com os lençóis. Suspirou, e sentiu-se

frustrada. Tinha sido assim com Caroline — Ella sempre querendo fazer mais, consertar as coisas

para a filha, correr atrás dela, com conselhos, bilhetes, dinheiro ou promessas de viagens, dizendo

a mesma coisa de uma dúzia de formas diferentes: Deixe-me ajudar você. Mas Caroline não

queria ser ajudada, porque significava admitir que ela não podia se virar sozinha. E veja só como

tudo havia acabado. A porta abriu-se novamente e Lewis entrou na loja carregando um maço de

jornais debaixo do braço.

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— Acabou de ser impresso! — exclamou. Ella forçou um sorriso e olhou seu poema.

"EU NÃO SOU INVISÍVEL", ela leu. Não invisível, pensou com tristeza. Apenas amaldiçoada.

Lewis estava olhando atentamente para ela.

— Ainda quer almoçar? — perguntou, e quando ela fez que sim e fechou a registradora,

Lewis ofereceu seu braço. Ella saiu no sol escaldante, ainda querendo ter feito as coisas de forma

diferente. Queria ter sido capaz de iniciar uma conversa, talvez perguntar se a mulher precisava

de ajuda, e então decidir como ajudá-la. E queria que Lewis jamais descobrisse que tipo de pessoa

ela realmente era. Ella não falara a respeito de filhos e netos e, até agora, Lewis não perguntara...

mas em breve perguntaria. E então, o que diria? O que poderia dizer, realmente, exceto que já

tinha sido mãe, que não era mais mãe, e que a culpa disso era apenas sua? E ele ficaria olhando-a,

inca-paz de compreender, e ela não seria capaz de explicar corretamente, ainda que soubesse que

era verdade, e que era a pedra que não conseguia engolir, o rio que não conseguia cruzar. Sua

culpa. E por mais que tentasse compensar, por mais que praticasse pequenos atos de bondade,

carregaria isso consigo até o dia de sua morte.

—11115 5 5 5 —

em uma pessoa aqui querendo ver você — disse

a secretária de Rose. Rose levantou os olhos do

computador e viu sua irmã,

resplandecentemente em suas calças de couro pretas, jaqueta de brim e as botas de caubói

vermelhas, bailar para dentro do seu escritório.

— Boas notícias! — anunciou Maggie, sorrindo de orelha a orelha.

Por favor, que seja um emprego, rezou Rose.

— O que é?

— T

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— Tive uma entrevista de emprego! Num bar novo e chiquérrimo!

— Que bom! — exclamou Rose, tentando ecoar o entusiasmo de Maggie. — Isso é

ótimo! Quando você acha que vão te dar a resposta?

— Não tenho certeza — respondeu Maggie, que estava reposicionando livros e folders

na estante de Rose. — Talvez depois dos feriados de fim de ano.

— Mas essa não deveria ser a época mais movimentada deles?

— Que droga, Rose, eu não sei! — Maggie pegou a boneca da Xena, a Princesa Guerreira

(um dos presentes de aniversário da Amy) e a virou de cabeça para baixo. — Você acha que

poderia tentar ficar feliz por mim?

— Claro — disse Rose. — E você fez algum progresso colocando minhas roupas de

volta no armário? — Durante as últimas noites, a pilha de roupa tinha passado da cama para o

chão, mas ainda não chegara ao armário.

— Comecei — disse Maggie, aboletando-se na cadeira de frente para a mesa de Rose. —

Vou cuidar disso. Não é nada demais.

— Claro, para você não é.

— O que você quer dizer com isso?

Rose se levantou.

— Quero dizer que você está morando comigo sem pagar aluguel, não encontrou um

emprego...

— Eu lhe disse, eu tive uma entrevista!

— Não acho que você esteja tentando com afinco.

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— Mas estou! — gritou Maggie. — O que você sabre isso?

— Shh! — ordenou Rose.

Maggie bateu a porta e lançou um olhar furioso para a irmã.

— Eu sei que não pode ser tão difícil encontrou um emprego! — disse Rose. — Para

todo lugar que olho, vejo cartazes com ofertas de trabalho! Cada loja, cada restaurante...

— Não quero trabalhar em outra loja. Não quero mais ser garçonete.

— Mas então o que você vai fazer? — inquiriu Rose. — Vai ficar sentada que nem uma

princesa, esperando a MTV ligar?

O rosto de Maggie enrubesceu como se tivesse levado um tapa.

— Por que você é tão cruel?

Rose mordeu o lábio. Elas já haviam dançado ao som desta música, ou melhor, Maggie

tinha... com o pai, com seus namorados bem-intencionados, com um ocasional professor ou

chefe preocupado. Parceiros diferentes, os mesmos passos. Ela sabia o instante preciso em que

Rose iria pedir desculpas. E um segundo antes de Rose abrir a boca, no instante em que começou

a inalar o ar que formaria as palavras sinto muito, Maggie começou a falar de novo.

— Eu estou tentando — disse ela, enxugando os olhos. — Estou tentando de verdade.

Não é fácil para mim, Rose. Não é todo mundo que consegue as coisas tão fácil quanto você.

— Eu sei disse Rose com gentileza. Eu sei que você está tentando.

— Eu tento. Todos os dias. Não fico sentada sentindo pena de mim mesma. Eu saio para

procurar trabalho todo... dia. E eu sei que jamais serei uma advogada como você...

Rose produziu um ruído de protesto. Maggie gritou um pouco mais alto.

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— ...mas isso não significa que eu fico parada sem fazer nada. Estou tentando, Rose.

Estou tentando tanto...

Rose atravessou a sala para abraçá-la. Maggie recuou.

— Certo — disse Rose. — Certo, não se preocupe. Você vai encontrar um trabalho.

— Sempre encontro — disse Maggie, mudando de uma chorosa Renée Zellweger para

uma determinada Sally Field. Enxugou os olhos, assou o nariz, endireitou a coluna e olhou para a

irmã.

— Sinto muito — disse Rose. — Sinto muito, mesmo. — No mesmo momento em que

dizia essas palavras, ela se perguntou precisamente pelo que estava se desculpando. Agora já tinha

passado mais de um mês. Maggie não dera sinal de partir. Suas roupas e artigos de higiene, caixas

de CDs e isqueiros, ainda estavam largados pelo apartamento de Rose, que parecia menor a cada

dia. E na noite anterior, Rose queimara o dedo ao afundá-lo numa panela que ela achou conter

caramelo, quando na verdade continha cera para depilar sobrancelhas. — Olha, você já jantou?

— perguntou Rose. — Nós podíamos sair, talvez ver um filme...

Maggie enxugou os olhos e fitou sua irmã.

— Sabe o que a gente devia fazer? Sair. Realmente sair. Ir para a noite. Para uma

discoteca ou algo assim.

— Eu não sei — disse Rose. — Sempre tem fila para entrar nesses lugares. E eles são

esfumaçados e barulhentos.

— Vamos lá. Só uma vez. Vou te ajudar a escolher uma roupa...

— Está bem — disse Rose. — Sempre com relutância. — Acho que vai ter uma festa de

advocacia num daqueles lugares na Delaware Avenue.

— Que tipo de coisa? — perguntou Maggie.

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Rose remexeu suas correspondências até encontrar o convite.

— Uma festa de Natal — leu. — Salgadinhos, brincadeira. Talvez a gente possa ir até lá.

— A gente pode começar por lá — corrigiu Maggie. Abriu a porta e saiu do escritório. —

Vamos nessa!

De volta ao apartamento de Rose, Maggie pegou um suéter azul e uma saia preta na pilha

ao lado da cama.

— Vá tomar um banho — disse ela. — E não deixe de passar hidratante!

Quando Rose saiu do chuveiro, o estojo de maquiagem de "andares" múltiplos de Maggie estava

aberto, e ela enfileirara vários produtos na bancada. Dois tipos de base, três corretivos diferentes,

meia dúzia de sombras e blush, pincéis para olhos, bochechas, lábios... Rose sentou na tampa da

privada e olhou para tudo aquilo, sentindo-se tonta.

— De onde veio tudo isso? — perguntou.

— Daqui e dali — respondeu Maggie, apontando um lápis de sobrancelha cinza.

Rose examinou novamente o estojo.

— Quanto custou tudo isso?

— Não faço idéia — disse Maggie, passando loção nas faces da irmã com movimentos

rápidos e seguros. — Mas qualquer que tenha sido o preço, valeu cada centavo. Espere!

Rose ficou sentada lá, imóvel como um manequim, durante os 15 minutos de cócegas que

Maggie dedicou apenas às sim: pálpebras. Sentiu-se impaciente enquanto Maggie misturava base

nas costas da mão e a aplicava com um pincel, para então recuar um passo, avaliar, e voltar

novamente com pó-de-arroz e blush; e estava absolutamente entediada quando Maggie trouxe

um curvex, para curvar ainda mais os cílios, e um lápis labial, mas precisava admitir que o efeito

cumulativo era... bem, era surpreendente.

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— Essa aí sou eu? — perguntou Rose, olhando para si mesma no espelho, para as novas

saliências sob seus ossos malares, e a forma como seus olhos pareciam esfumaçados e misteriosos

sob a sombra dourada e creme que Maggie aplicara.

— Não está fantástica? Eu faria sua maquiagem todos os dias — disse Maggie. — Mas

primeiro você precisa começar um tratamento de pele sério. Você precisa fazer uma limpeza de

pele! — disse Maggie, no mesmo tom que um bombeiro diria "você precisa sair deste prédio em

chamas!" Ela segurava uma saia preta e uma blusa azul numa das mãos, um par de sandálias azuis

de salto alto na outra. — Tome, experimente isto.

Rose apertou-se na saia e na blusa de corte curto. Ambas eram mais apertadas que as

roupas que costumava usar, e juntas...

— Eu não disse, esforçando-se a olhar para seu corpo e não ser distraída por ser rosto. —

Você não acha que eu estou parecendo uma... — A palavra piranha se insinuou em seus lábios.

Suas pernas pareciam longas e finas nos sapatos azuis, e ela estava com um decote fundo como o

Grand Canyon. Maggie aprovou.

— Você está ótima! — disse ela, e borrifou sua irmã com sua estimadíssima garrafa de

perfume Coco. Vinte minutos depois, o cabelo de Rose estava para cima, os brincos certos

adornavam suas orelhas, e as duas irmãs estavam saindo de casa.

— Que merda de festa — disse Maggie, sugando seu martíni seco.

Rose levantou sua blusa enquanto franzia os olhos na direção das pessoas. Não conseguia

enxergar sem óculos, mas obviamente Maggie não deixara que ela usasse. "Rapazes não cantam

mulheres de óculos!", ela recitara, e depois passara cinco minutos perguntando à sua irmã por que

ela já não tinha feito os tratamentos com laser, como as apresentadoras de telejornais e as top

models.

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Estavam no Dave and Buster's, um fliperama chique para adultos na margem, não muito

bonita, do rio Delaware, onde ficava o escritório de advocacia. O crachá de Rose, pregado ao

lado de seu decote estonteante, dizia, "SOU Rose Feller", e depois ela acrescentara, entre

parênteses, "Litígio". O crachá original de Maggie dizia "SOU uma bêbada", até que Rose o

arrancara. Agora dizia, "SOU Monique", o que fizera Rose olhar para cima com um suspiro, mas

decidir que não valia a pena brigar por isso.

O lugar estava muito barulhento e cheio de jovens advogados, fazendo contatos e

bebericando cerveja, vendo Don Dommel e seu protegido com trancinhas rastafári na cabeça

exibirem suas habilidades de skatistas na Virtual Vert Ramp. Havia um bufê servido perto de uma

das paredes — Rose podia discernir o que pareciam bandejas de salada e pastas, e uma travessa

de aço inoxidável com algum tipo de salgadinho frito — mas Maggie puxara-a para longe de lá.

— Misture-se! — dissera Maggie.

Maggie cutucou a irmã e apontou para uma bolha em forma de homem parada ao lado da

mesa de totó.

— O que é aquilo? — inquiriu.

Rose forçou a vista. Tudo que conseguiu ver foi cabelo louro e ombros largos.

— Não tenho certeza.

Maggie jogou os cabelos para trás. Maggie, obviamente, estava inacreditável. Usava

sandálias cor-de-rosa e calças de couro preto — que Rose sabia com certeza terem custado

duzentos dólares porque encontrara o recibo na mesa da cozinha — combinando com uma

pequena frente única, cintilante e prateada que envolvia seu pescoço, deixando suas costas

completamente nuas. Ela secara o cabelo até deixá-lo reto — processo que levara quase uma hora

— e adornara os braços finos com fileiras de pulseiras prateadas. Maggie passara batom rosa-

claro nos lábios, carregara na maquiagem e passara rímel prateado nos olhos. Parecia uma

visitante do futuro, ou talvez de um seriado de televisão.

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— Bem, eu vou lá falar com ele — anunciou Maggie. Ela correu os dedos pelos cabelos,

que pendiam numa cortina castanha-clara perfeitamente reta, sorriu para Rose, perguntou se

estava com batom nos dentes e se meteu no meio da multidão. Rose deu uma última puxada em

sua frente única. Seus pés doíam, mas Maggie insistira que ela deveria usar aqueles sapatos.

— É preciso sofrer um pouco para ficar bonita — decretara Maggie, dando dois passos

para trás e inspecionando cuidadosamente sua irmã.

Rose olhou para o outro lado da sala para ver sua irmã provocando o inocente advogado

levantando o braço para ajeitar o cabelo ao mesmo tempo que chocoalhava as pulseiras em seu

braço. Decidindo que aquilo não era da sua conta, Rose seguiu até a mesa do bufê, olhou para

trás cheia de culpa e encheu um pratinho com pasta, torradas, cenourinhas, queijo em cubinhos e

uma colherada de sei-lá-o-quê frita. Achou uma mesa no canto, tirou os sapatos e começou a

comer.

Outra bolha em forma de homem — esta baixa e pálida, com cabelos cor de gengibre

cacheados — aproximou-se dela.

— Rose Feller? — inquiriu.

Rose engoliu em seco o e fez que sim, forçando a vista para ler o nome no crachá dele.

— Simon Stein — disse o homem. — Estávamos sentados lado a lado outro dia no

discurso de treinamento.

— Ah — disse Rose, e tentou assentir de uma maneira que desse a impressão de que o

reconhecia.

— Eu lhe dei café.

— Isso mesmo! — exclamou Rose, lembrando. — Você salvou a minha vida! Muito

obrigada!

Simon meneou a cabeça modestamente.

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— Então vamos ser companheiros de viagem.

Rose olhou para ele. A única viagem que tinha planejado era um passeio até a faculdade

de direito da Universidade de Chicago na segunda-feira, onde fariam uma reunião de

recrutamento. Apenas ela e Jim.

— Vou substituir o Jim Danvers — explicou Simon.

— Ah — disse Rose, sentindo o coração afundar.

— Ele está ocupado, por isso perguntaram se eu queria ir.

— Ah — disse ela novamente.

— Escute, você mora em Center City? Eu lhe dou uma carona para o aeroporto.

— Ah — disse Rose pela vez, acrescentando outra palavra só para variar. — Claro.

Simon inclinou-se para mais perto dela.

— Escute, você por acaso não joga softball, joga?

Rose fez que não com a cabeça. Sua única experiência com o jogo tinha sido na aula de

ginástica no primeiro ano do segundo grau, quando não conseguira rebater nem mesmo uma vez

durante seis semanas de partidas, e acabara levando uma bolada no peito.

— Nós temos uma equipe, sabia? Moção Negada — disse Simon, como se não tivesse

notado o meneio negativo de Rose. — Rime misto. Só que não temos mulheres suficientes na

equipe. Se não acharmos mais nenhuma, não poderemos jogar.

— Ai de mim! — disse Rose.

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— É um jogo fácil — garantiu Simon. Rose deduziu que ele fosse um litigante. Os

homens litigantes tendiam a ser persistentes. — Bom exercício, ar fresco...

— Por acaso pareço precisar de exercícios e ar fresco? — perguntou, e então baixou os

olhos para o próprio corpo e acrescentou, melancólica: — Não responda.

Simon Stein continuou seu discurso.

— É divertido. Você vai conhecer muita gente.

Rose balançou negativamente a cabeça.

— Francamente, você não vai me querer no time. Sou péssima.

Uma mulher apareceu e enganchou um dos braços no de Simon.

— Querido, vamos jogar sinuca! — convidou.

Rose estremeceu. Esta era a garota que ela chamava particularmente de Noventa e Cinco,

sendo 1995 o ano em que se formara em Harvard, fato que conseguia introduzir em cada

conversa.

— Rose, esta é Felice Russo — apresentou Simon.

— Nós já nos conhecemos — disse Rose. Felice estendeu a mão para alisar o cabelo de

Simon, que, na opinião de Rose, não seria alisado nem por milagre. Nesse exato instante Maggie

retornou, faces enrubescidas e um cigarro aceso na mão.

— Esta festa ainda está uma merda — decretou, e olhou em volta. — Me apresenta.

— Maggie, estes são Simon e Felice — disse Rose. — Nós trabalhamos juntos.

— Oh — disse Maggie, e deu uma tragada no cigarro. — Que maravilha.

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— Bracelete bonito esse seu — disse Felice, apontando para uma das pulseiras de Maggie.

— É indígena?

Maggie fitou a mulher por um instante antes de responder.

— Hã? Comprei na South Street.

— Ah — exprimiu Felice. — É que havia uma butiquezinha em Boston que vendia umas

pulseiras parecidas, e comprei algumas quando estava na faculdade.

Lá vem, pensou Rose.

— Eu estive uma vez em Boston — disse Maggie. — Tinha uma amiga na Northeastern.

Três... dois... um...

— É mesmo? — disse Felice. — Que ano? Eu fiz Harvard...

Rose sorriu. E ela imaginou isso, ou Simon Stein também tinha sorrido?

— Vamos sentar — disse Simon, e os quatro moveram-se para uma mesa de pernas finas.

Felice ainda estava se queixando do inverno em Cambridge. Maggie engoliu seu martíni. Rose

pensou em voltar até o bufê.

— E então, vai pensar sobre o softball? — insistiu Simon.

— Bem... eu... claro.

— É realmente divertido — garantiu.

— É? — disse Felice. — Na universidade, eu costumava praticar squash. É claro que não

são muitas universidades que têm quadras de squash, mas por sorte Harvard tem.

E agora ela não estava imaginando. Simon Stein definitivamente revirara os olhos.

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— Nós também nos encontramos para happy hours — disse Simon.

— Mesmo? — perguntou Rose, apenas por educação. — Onde?

Enquanto Simon desfiava a lista de bares que o Moção Negada havia visitado, Maggie e

Felice tinham, de alguma forma, começado a falar de televisão.

— Ah, Os Simpsons. Adoro Os Simpsons! — disse Felice, inclinando-se para a frente

como se estivesse prestes a compartilhar um segredo valioso. — Lembram daquele episódio com

a mãe do Homer, no qual ela tem uma carteira de motorista falsa?

— Não — disse Simon.

— Não — disse Rose.

— Não gosto de desenhos — disse Maggie.

Felice ignorou-os.

— O endereço na carteira era Bow Street, número 44, que é o endereço verdadeiro da

revista The Harvard Lampoon!

Maggie fitou Felice por um minuto, e então inclinou-se para a irmã e encenou um

sussurro:

— Sabe duma coisa? Acho que ela estudou em Harvard.

Simon começou a tossir e tomou um grande gole de cerveja.

— Com licença — murmurou Rose, puxando Maggie até a porta.

— Não foi gentil — disse Rose.

— Me poupe! — disse Maggie. — Como se ela fosse um doce de pessoa.

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— Na verdade, não é — reconheceu Rose. — Ela é desagradável.

— Desagradável! — repetiu Maggie. Ela puxou a irmã na direção da placa de saída.

— Vamos. Para longe desta gente desagradável.

— Para casa? — perguntou Rose, voz carregada de esperança.

Maggie fez que não com a cabeça.

— Para um lugar bem melhor.

Mais tarde — muito, muito mais tarde — as irmãs sentaram-se uma de frente para a outra

à mesa da International House of Pancakes.

Tinham ido a uma discoteca. Depois a um clube que abria de madrugada. Depois a uma

festa na casa de desconhecidos. E então, a não ser que Rose estivesse sofrendo algum tipo de

alucinação induzida por consumo de vodca, tinha havido um karaokê. Balançou a cabeça para

clareá-la, mas a memória permaneceu: ela, de pé no palco, descalça, uma multidão bradando seu

nome enquanto uivava uma versão, não muito afinada, de "Midnight Train to Georgia" enquanto

Maggie fazia a segunda voz.

— He's leaving... — arriscou cantar Rose.

— All aboard! All aboard! All aboard! — cantou Maggie.

Meu Deus, pensou Rose, afundando na cadeira. Então era verdade. Vodca nunca mais,

ralhou consigo mesma, e mordeu o lábio, lembrando o que a levara a beber. Jim, que cancelara a

viagem deles até Chicago, e a deixara com Simon Stein. "Acho que você está mais envolvida do

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que ele", dissera Amy, e as evidências certamente sugeriam que Amy tinha razão. O que ela tinha

feito de errado? Como poderia reconquistá-lo?

— Então prontas, moças? — perguntou a garçonete de cara entediada, caneta

posicionada no bloquinho de pedidos.

Rose correu as pontas dos dedos pelo cardápio como se ele estivesse em braile.

— Panquecas — disse finalmente.

— De que tipo? — perguntou a garçonete.

— Ela vai querer as panquecas com leitelho — disse Maggie, tomando o cardápio das

mãos de Rose. — Eu vou querer a mesma coisa. E também queremos dois sucos de laranja

grandes e um bule de café, por favor.

A garçonete se retirou.

— Eu não sabia que você cantava! — disse Maggie enquanto Rose começava a soluçar.

— Eu não canto — disse Rose. — Eu advogo.

Maggie despejou quatro saquinhos de adoçante artificial na xícara de café que a garçonete

colocara à sua frente.

— Não foi divertido?

— Divertido — repetiu Rose. Ela soluçou de novo. O rímel e o lápis de sobrancelha que

Maggie aplicara com cuidado na noite anterior tinham escorrido e manchado. Ela parecia um

texugo.

— E então, o que vai fazer? — perguntou.

— A respeito do quê? — indagou Maggie.

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— A respeito da vida — disse Rose.

Maggie bufou.

— Agora eu lembro porque a gente nunca saía juntas. Você tomava meia garrafa de vinho

que estava no balde para gelar e decidia montar um plano de dez passos para consertar a minha

vida!

— Só queria ajudar. Você precisa de um objetivo.

A garçonete chegou, largou os pratos e um jarro de geléia quente.

— Espere — disse Rose. Estreitou os olhos para ver a garçonete. — Vocês estão

precisando de funcionários?

— Acho que sim — confirmou a garçonete. — Trarei um formulário de inscrição junto

com a conta.

— Não acha que é super qualificada? — perguntou Maggie. — Quero dizer, faculdade,

diploma de direito... você realmente quer apenas servir panquecas?

— Não é para mim, é para você — disse Rose.

— Ah, você quer que eu sirva panquecas.

— Quero que você faça alguma coisa — disse Rose, gesticulando com o exagero de uma

bêbada. — Quero que pague sua conta de telefone. E que talvez me dê algum dinheiro para

compras de supermercado.

— Eu não como nada! — protestou Maggie, o que não era exatamente verdade. Ela não

comia muito... um muffin aqui, um pouco de leite com cereais ali. O custo total não era muito

alto. E não era como se Rose não tivesse dinheiro para pagar por isso. Maggie vira os extratos

bancários da irmã, que eram mantidos em ordem cronológica numa pasta de papel manilha

rotulada "Extratos bancários." Ainda assim, podia imaginar Rose entrando na cozinha com um

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bloco, tomando notas. Uma refeição congelada de frango xadrez light! Meia caneca de suco

de laranja! Dois pacotes de pipoca de microondas! Três colheres de sal!

Maggie sentiu suas faces esquentarem.

— Vou te dar dinheiro — disse, pronunciando com raiva cada sílaba.

— Você não tem dinheiro.

— Vou conseguir algum.

— Quando? — perguntou Rose. — Quando esse evento abençoado vai acontecer?

— Fiz uma entrevista.

— O que é fantástico, mas não é um trabalho.

— Vá à merda. Estou saindo — disse Maggie, jogando seu guardanapo no chão.

— Senta aí — disse Rose, cansada. — Tome seu café. Eu vou ao banheiro.

Rose saiu da mesa. Maggie sentou, ficou remexendo sua comida com o talher e não a

comeu. Quando a garçonete chegou com o formulário de inscrição, Maggie afanou uma caneta

da bolsa da irmã, mais vinte dólares de sua carteira, e preencheu o papel com o nome de Rose,

marcando cada lacuna de "tempo disponível" e acrescentando "farei qualquer coisa!" na seção de

comentário. Deu o formulário à garçonete, derramou toda a geléia de amora nas panquecas da

irmã, sabendo que Rose não gostava de geléia artificial com corantes, e saiu do restaurante.

Rose voltou para a mesa e olhou intrigada para seu café da manhã arruinado.

— A sua amiga foi embora — disse a garçonete.

Rose balançou lentamente a cabeça

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— Ela não é minha amiga, é minha irmã — disse, pagou a conta, vestiu sua jaqueta,

estremeceu ao ver seus pés cheios de bolhas e caminhou mancando até a porta.

—11116 6 6 6 —

ais não — disse Ella, e passou a mão sobre o

topo de seu cálice de vinho. Era a primeira

vez que eles saíam para jantar, o primeiro

"jantar-encontro" oficial, que ela finalmente consentira depois de semanas de esforço da parte de

Lewis. Além disso, concordara em tomar uma garrafa de vinho com ele, o que fora um erro.

Fazia anos — talvez até uma década — desde que tomara vinho pela última vez, e a bebida,

previsivelmente, subira direto para sua cabeça.

Lewis pousou a garrafa na mesa e limpou a boca.

— Detesto os feriados de fim de ano — disse tão casualmente como se tivesse dito a ela

que nunca havia gostado de alcachofras.

— O quê?

— Os feriados de fim de ano. Não suporto. Eles já são uma tortura para mim há muito

tempo.

— Por quê?

Ele se serviu de meio cálice de vinho.

— Porque meu filho não vem me visitar — disse sucintamente. — O que me torna igual

ao restante das fofoqueiras.

— M

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— Ele não vem nunca?— perguntou Ella, hesitante. — Você... Há algum...

— Ele festeja com a família da mulher — explicou Lewis e, por seu tom de voz, Ella

percebeu que era um assunto doloroso.

— Eles vêm me ver em fevereiro, quando as crianças estão de férias.

— Bem, isso deve ser bom.

— É muito bom — concordou Lewis. — Eu mimo muito as crianças. E fico louco para

que essa época chegue, mas os feriados de fim de ano são horríveis. — Ele deu de ombros, como

se quisesse dizer que não era a pior coisa do mundo, mas Ella sabia que devia ser muito difícil

estar sozinho.

— E quanto a você? — perguntou Lewis, como ela já sabia que ele perguntaria, porque,

por mais que eles estivessem se afinando, ela não poderia evitar esse assunto para sempre. — Fale

sobre sua família.

Ella se forçou a relaxar, lembrando a si mesma para não retesar os ombros ou cerrar as

mãos em punhos. Ela já esperava por este momento. Era apenas natural.

— Bem, meu marido, Ira, era professor universitário. Era especialista em história da

economia. Morávamos em Michigan. Ele morreu faz 15 anos. Derrame cerebral.

Este era o resumo aceitável em Acres para um cônjuge morto: nome, profissão, quanto

tempo tinha de falecido, e causa mortis em termos genéricos (as mulheres, por exemplo, não

hesitavam em sussurrar "câncer", mas nada conseguiria arrancar de seus lábios o complemento

"de próstata").

— Era um bom casamento? — perguntou Lewis. — Eu sei que não é da minha conta...

— E então sua voz morreu na garganta e ele olhou para Ella com um ar esperançoso.

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— Era... — começou, brincando com a faca de manteiga. — Era um casamento à moda

antiga, creio. Ele trabalhava fora, eu cuidava da casa. Cozinhava, limpava, recebia as visitas...

— Como era o Ira? Do que ele gostava de fazer?

O curioso era que Ella não conseguia lembrar. E a única palavra que lhe veio à mente

para defini-lo foi a palavra suficiente. Ira tinha sido suficiente. Bom o suficiente. Inteligente o

suficiente. Ganhara dinheiro suficiente, cuidara dela e de Caroline o suficiente. Tinha sido um

pouco pão duro (frugal, era como se definia), e mais do que um pouco vaidoso (Ella não

conseguiu evitar encolher-se ao lembrar do tempo que ele gastava diante do espelho se

penteando), mas na maior parte do tempo ele era... suficiente.

— Ele era bom — respondeu, sabendo que isso era, na melhor das hipóteses, uma

avaliação sem entusiasmo. — Não deixava faltar nada — acrescentou, ciente de quanto isso

soava antiquado. — Era um bom pai — concluiu, embora isso não tivesse sido bem a verdade.

Ira, com seus livros de economia e cheiro de giz, nunca soubera como lidar com Caroline — a

bonita, frágil, estranha e furiosa Caroline, que insistia em usar sua roupa de bailarina no primeiro

dia do jardim de infância e que anunciou, aos oito anos, que não atenderia por nenhum outro

nome além de princesa Magnólia. Ira levava-a para pescar e assistir a jogos de beisebol, e

provavelmente, secretamente, desejava que sua única cria tivesse sido um filho, ou pelo menos

um tipo de menina mais normal.

— Então você tem filhos? — perguntou Lewis.

Ella respirou fundo.

— Eu tive uma filha, Caroline. Ela morreu. — Aqui Ella havia que-brado o protocolo de

Golden Acres. Sua resposta oferecera um nome e o fato da morte, porém nada mais: o que

Caroline tinha sido, quando morrera e o que a matara.

Lewis pousou gentilmente a mão sobre a dela.

— Sinto muito — disse ele. — Não consigo nem imaginar como pode ser isso.

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Ella não disse nada, porque não havia palavras para expressar como era. Ser a mãe de

uma filha morta era pior do que tudo que os clichês diziam sobre isso. Era a pior coisa de todas.

Era tão ruim que ela só conseguia pensar na morte de Caroline em fragmentos, como fotos

instantâneas, que nem eram muitos, e havia apenas um punhado de memórias, cada uma delas

mais dolorosa que a última. Lembrava do mogno lustroso do caixão, frio e sólido sob sua mão.

Podia ver os rostos das filhas de Caroline em seus vestidinhos azuis, cabelos castanho-escuros

amarrados em rabos-de-cavalo idênticos, e como a menina mais velha tomara a mais nova pela

mão c a conduzira até o caixão, e como a mais nova estava chorando e a mais velha não. "Diga

adeus para a mamãe", lembrava Ella de ter ouvido a mais velha dizer em sua voz enérgica. A irmã

mais nova só balançou a cabeça e chorou. Conseguia lembrar de estar de pé no velório, sentindo-

se profundamente vazia, como se uma mão gigantesca tivesse arrancado tudo de dentro dela —

suas tripas, seu coração — e a deixado com a mesma aparência, só que ela já não era mais a

mesma. Lembrava de Ira conduzindo-a de um canto para outro como se fosse uma aleijada, ou

cega, com uma das mãos no seu cotovelo, ajudando-a a entrar no carro, a sair do carro, a seguir o

caixão atrás de Maggie e Rose. Essas meninas não têm mãe, pensara Ella, e esse pensamento

atingira-a como uma bomba explodindo em seu cérebro. Ela perdera sua filha, que era uma coisa

terrível e uma tragédia, mas essas menininhas tinham perdido uma mãe. E certamente isso era

pior.

— Devíamos nos mudar para cá — dissera ela a Ira naquela noite, depois que ele a guiara

até a cadeira em seu quarto de hotel. — Podíamos vender a casa, alugar um apartamento...

Sentado ao seu lado na cama, limpando os óculos com a ponta da gravata, Ira fitou-a com

piedade no olhar.

— Não acha que isso seria o mesmo que trancar a porta do celeiro depois do cavalo ter

fugido?

— Celeiro! — gritara Ella. — Cavalo! Ira, nossa filha morreu! Nossas netas não têm mãe!

Nós precisamos ajudar! Precisamos ficar aqui!

Ira olhara para ela... e então expressara sua única previsão em quase trinta anos de

casamento:

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— Talvez Michael não nos queira aqui.

— Ella? — perguntou Lewis.

Ela engoliu em seco, lembrando como chovia forte na noite em que recebera o

telefonema, e como, dias depois, de volta em casa, destruíra o telefone: desatarraxara o bocal,

arrancara o fio espiral que ligava o fone ao telefone propriamente dito, conseguindo arrancar o

disco do telefone, desparafusando a parte inferior e puxando os fios e circuitos do aparelho,

reduzindo às suas partes componentes aquele aparelho que lhe trouxera notícias tão devastadoras.

Ella olhara para o telefone, arfante, pensando irracionalmente: Não pode me machucar agora;

não pode me machucar agora. Poderia contar a ele que com isso conseguira acalmar-se por

cerca de cinco minutos, até deparar consigo mesma na oficina de Ira no porão, usando o martelo

dele para esmagar cada uma das peças em mil fragmentos brilhantes. No fim, quisera martelar as

próprias mãos como punição por ter acreditado no que queria acreditar: que Caroline estava lhe

dizendo a verdade, que estava tomando seu medicamento, que tudo estava bem.

Lewis estava olhando para ela.

— Você está bem?

Ella respirou fundo.

— Estou. Estou bem.

Lewis fitou-a por um momento, e então se levantou e ajudou Ella a fazer o mesmo.

Manteve uma mão quente em seu cotovelo, e a conduziu até a porta.

— Vamos caminhar um pouco — disse Lewis.

—11117 7 7 7 —

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aggie Feller passou a tarde de domingo na fortaleza completamente

branca de Sydelle, praticando Informação.

Ela despertara da ressaca com a campainha estridente de um telefone.

— Rose, o telefone! — gemera Maggie, mas Rose não respondera. E Sydelle, a Terrível,

não desligou até Maggie finalmente atender o telefone e prometer passar na casa para tirar suas

coisas de seu quarto.

— Precisamos do espaço — dissera Sydelle.

Enfia ele no teu nariz, pensou Maggie. Tem espaço de sobra nele.

— Bem, e onde eu vou botar tudo aquilo? — preferiu perguntar.

Sydelle suspirou. Maggie praticamente podia ver sua madrasta — lábios finos

comprimidos como a espessura de uma folha de papel, narinas infladas, fios de cabelo louro-

acinzentado recém-pintado sacudindo enquanto ela balançava a cabeça.

— Você pode deixar suas coisas no porão, acho — disse Sydelle, tom indicando que isso

era uma concessão equivalente a permitir que sua enteada impertinente montasse uma montanha-

russa no jardim da frente.

— É muita generosidade sua — disse Maggie com sarcasmo. — Vou passar aí hoje á

tarde.

— Nós estaremos num curso — disse Sydelle. — Culinária macrobiótica. — Como se

Maggie tivesse perguntado. Maggie tomou um banho quente, pegou as chaves do carro de Rose e

dirigiu até Nova Jersey. A casa estava vazia, com exceção daquele cachorro idiota, Chanel (a

quem Rose apelidara Imitação) que, como de costume, latiu como se ela fosse uma assaltante, e

então tentou se esfregar em sua perna. Maggie afugentou o cachorro e passou meia hora

arrastando caixas até o porão, o que lhe deixou com uma hora inteira para praticar Informação.

M

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Ela começou pela mesa de Sydelle, mas não tendo encontrado nada interessante —

algumas contas, pilhas de papéis de carta, um envelope com fotografias do tamanho para colocar

na carteira de "Minha Márcia" em seu vestido de noiva, um porta-retratos com uma foto dos

gêmeos de "Minha Mareia", Jason e Alexander —, seguiu para o campo de caça mais gratificante

do closet do quarto principal, que já havia oferecido uma das descobertas mais importantes de

Maggie: uma caixa de jóias de madeira esculpida. A caixa estava vazia, exceto por um par de

argolas e um bracelete de elos, ambos de ouro. De sua mãe? Talvez, pensou Maggie. Não podia

ser de Sydelle porque Maggie sabia onde sua madrasta guardava seus pertences. Maggie ficou

tentada a afanar os braceletes, mas decidiu não fazer isso. Talvez seu pai costumasse olhar essas

coisas, e acabaria abrindo essa caixa e descobrindo que não havia nada em seu interior.

Começou pela primeira prateleira. Havia um maço, amarrado com elástico, de antigos

recibos de devolução do imposto de renda que ela pegou, folheou e pôs de volta no lugar. Os

troféus de líder de torcida de "Minha Márcia", os suéteres de Sydelle. Maggie ficou na ponta dos

pés e esticou o braço sobre as fileiras de camisetas cavadas do pai até roçar a ponta dos dedos

pelo topo do que parecia uma caixa de sapatos.

Maggie retirou a caixa da prateleira. Era cor-de-rosa, parecia velha e estava amassada nas

bordas. Limpou o pó da tampa, saiu com a caixa do closet, sentou-se na cama. Não era da

madrasta, Sydelle rotulava suas caixas com uma descrição dos sapatos que continham (em sua

maioria muito caros, com bicos dolorosamente pontudos). Além disso, Sydelle calçava 36, e esta

caixa, segundo o rótulo, já contivera um par de sapatilhas de balé cor-de-rosa da Capezio,

tamanho 32. Sapatos de menina. Maggie abriu a caixa.

Cartas. Estava cheia de cartas, pelo menos duas dúzias delas. Na verdade, cartões, em

envelopes coloridos, e o primeiro que ela retirou estava endereçado a ela, à Srta. Maggie Feller,

para seu endereço antigo, a casa de sala e dois quartos na qual moravam até o pai se mudar com

elas para a casa de Sydelle. O selo tinha carimbo de 4 de agosto de 1980, de modo que a

correspondência fora remetida por volta do seu oitavo aniversário (que, se ela lembrava bem,

tinha sido uma comemoração cheia de glamour no boliche da vizinhança, com pizza e sorvete

depois). Havia um adesivo como endereço de resposta no canto superior esquerdo. Dizia que o

cartão viera de alguém chamada Ella Hirsch.

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Hirsch, pensou Maggie, sentindo seu coração acelerar com a perspectiva deste mistério,

Hirsch tinha sido o nome de solteira de sua mãe.

Ela abriu o envelope. Depois de quase vinte anos, a cola soltou fácil. Era um cartão de

aniversário, um cartão para crianças com o desenho de um bolo com glacê cor-de-rosa e velas

amarelas. "PARABÉNS PARA VOCÊ!", dizia na frente. E dentro do cartão, debaixo da

mensagem já impressa "QUE VOCÊ TENHA UM ANIVERSÁRIO MUITO, MUITO

FELIZ!", ela leu: "Querida Maggie, eu lhe desejo tudo de bom. Sinto muitas saudades de você e

adoraria que você entrasse em contato comigo." E então um número de telefone e uma

assinatura que dizia "Vovó", com o nome Ella Hirsch entre parênteses logo abaixo. E uma nota

de dez dólares, que Maggie prontamente enfiou no bolso.

Interessante, pensou Maggie enquanto levantava e caminhava até a janela do quarto,

olhando para a rua em busca de sinais do carro de Sydelle. Maggie sabia ter uma avó, possuía

lembranças vagas de sentar no colo de alguém, sentir um perfume floral, e sentir uma face macia

contra a sua enquanto sua mãe batia uma foto. Lembrava vagamente da mesma mulher, esta avó,

no funeral de sua mãe. O que acontecera à fotografia não era mistério: depois que eles tinham se

mudado para a casa de Sydelle, todas as evidencias públicas da mãe delas haviam desaparecido.

Mas o que acontecera à avó? Ela lembrava, anos atrás, em seus primeiros aniversários em Nova

Jersey, de perguntar ao pai:

— Onde está a vovó Ella? Ela me mandou alguma coisa? — O rosto de seu pai ficara

subitamente melancólico.

— Sinto muito — dissera o pai, ou pelo menos era isso que Maggie achava que ele havia

dito. — Ela não pôde vir.

E então, no ano seguinte, Maggie lembrava de ter feito a mesma pergunta e obtido uma

resposta diferente.

— A vovó está num lar.

— Bem, nós também estamos — retrucou Maggie, que não via qual era a novidade disso.

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Mas Rose sabia.

— Não este tipo de lar — disse ela, olhando para o pai, que assentiu. — Um lar para

pessoas idosas.

E com isso uma pedra fora posta no assunto. Mas ainda assim, num lar ou não, a avó

delas havia enviado estes cartões. E então, por que Maggie e Rose nunca os haviam recebido?

Ela se perguntou se os cartões eram sempre iguais, e escolheu outro do maço, este de

1982, endereçado à Srta. Rose Feller. Este cartão desejava a Rose um feliz chanuca, e era

assinado da mesma forma: "...eu te amo, eu sinto saudades de você, eu espero que você esteja

bem, com amor, vovó (Ella)." E outra nota, desta vez uma de vinte dólares, que se juntou à de

dez no bolso de Maggie.

Vovó Ella, pensou. O que acontecera? A mãe delas morrera, e tinha havido um funeral. A

avó estivera lá, com toda certeza. Depois eles tinham se mudado, de Connecticut para Nova

Jersey, aproximadamente um mês após a morte da mãe, e por mais cuidadosamente que Maggie

vasculhasse sua memória, não se lembrava de ter visto ou ouvido falar de sua avó outra vez.

Os olhos de Maggie ainda estavam fechados quando ouviu o zumbido da porta da

garagem abrindo, seguido por portas de carro sendo fechadas. Ela acrescentou o cartão de Rose

ao dinheiro em seu bolso e se levantou.

— Maggie? — chamou Sydelle, saltos tamborilando no soalho da cozinha.

— Estou quase acabando! — berrou Maggie. Ela colocou a caixa de volta na prateleira e

desceu a escadaria para o térreo, onde seu pai e Sydelle estavam descarregando sacolas de

supermercado repletas de vários tipos de legumes e grãos integrais.

— Fique para o jantar — convidou o pai, beijando-a na bochecha, enquanto Maggie

vestia seu casaco. — Vamos comer... — Ele se calou e forçou a vista para ler um nome numa das

sacolas.

— Quinos — disse Sydelle, pronunciando a palavra com um falso sotaque italiano.

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— Não, obrigada — disse Maggie, fechando lentamente os botões, observando seu pai

guardar os mantimentos.

Era difícil acreditar que seu pai já fora um homem bonito. Mas ela vira fotos dele de

quando era mais jovem, antes de o contorno de seu couro cabeludo ter-se movido para o centro

de sua cabeça, e seu rosto ter desabado numa massa de rugas e resignação. E, às vezes, visto por

trás, ou quando ele se movia de uma certa forma, ela podia olhar para seus ombros e os traços de

seu rosto e ver alguém que havia sido suficientemente bonito para despertar o amor de uma

mulher belíssima como sua mãe. Maggie queria perguntar ao pai sobre os cartões, mas não na

frente de Sydelle, que conseguiria mudar o assunto da avó misteriosa para o que exatamente

Maggie estava fazendo xeretando o seu closet.

— Ei, papai — começou ela. Sydelle passou zunindo por ela, seguindo para a despensa

com latas da mesma sopa sem calorias, colesterol, sal, cor ou sabor que ela achara na cozinha de

Rose. — Quer almoçar comigo esta semana?

— Claro — disse o pai, no mesmo instante em que Sydelle perguntou:

— Como está indo a busca por emprego, Maggie?

— Muito bem! — disse animadamente. E pensou: piranha.

Sydelle posicionou seus lábios pintados em vermelho coral num sorriso falso.

— Fico feliz em saber — disse ela, dando as costas para Maggie e voltando para a

despensa. — Você sabe que queremos apenas o melhor para você, Maggie, e estamos

preocupados...

Maggie agarrou a bolsa.

— Preciso ir — disse Maggie. — Lugares para ir, pessoas para encontrar!

— Liga para mim! — disse o pai.

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Maggie fez um aceno breve e distraído, e entrou no carro de Rose, onde sacou o cartão e

o dinheiro e os olhou atentamente para se certificar de que eles ainda estavam lá, que ela não os

inventara, que diziam o que ela achava que diziam. Vovó. Rose vai saber o que fazer. Só que,

quando Maggie chegou em casa, Rose estava fazendo as malas.

— Estou indo para o escritório terminar um relatório. Vou chegar tarde e amanhã de

manhã vou sair muito cedo. Viagem a trabalho — disse ela, no seu tom arrogante, correndo com

seus terninhos e um laptop. Bem, quando Rose voltasse para casa, as duas iriam pensar juntas e

elucidar o "mistério da avó desaparecida”.

—11118 8 8 8 —

a manhã de segunda-feira, Simon Stein estava no saguão do prédio de

Rose, de calças cáqui e mocassins, camisa pólo com a logomarca da

Lewis, Dommel e Fenick no peito, e um boné de beisebol da Lewis,

Dommel e Fenick na cabeça. Rose saiu apressada do elevador e passou direto por ele.

— Ei! — exclamou Simon, acenando.

— Ah! — exprimiu Rose, correndo as mãos pelos cabelos molhados. — Oi.

A manhã começara muito mal. Quando se abaixara diante da pia do banheiro para pegar

seus absorventes internos, encontrara uma caixa vazia, apenas com embalagens de plástico e os

restos de um único aplicador.

— Maggie! — gritou ela. E Maggie, que estava dormindo, remexeu em sua bolsa e jogou

para Rose um único absorvente tamanho regular. — Para onde foram todos os meus tamanho

super? — inquiriu Rose.

N

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Maggie respondeu com um mero encolher de ombros. Rose teria de comprar mais no

aeroporto, isso considerando que pudesse livrar-se de Simon Stein por tempo suficiente, e...

— ...ansioso por isto — estava dizendo Simon, conduzindo o carro para a rodovia.

— Como é?

— Eu disse estou realmente ansioso por isto — ele repetiu. — Você não?

— Bem, acho que sim — respondeu Rose. Na verdade, ela não estava nem um pouco

ansiosa por esta viagem. Rose passara semanas sonhando em ficar sozinha com Jim, numa cidade

que nenhum deles conhecia, longe de todo mundo da firma. Eles fariam um maravilhoso jantar

romântico em algum lugar... ou talvez apenas pediriam serviço de quarto. Ficariam no hotel.

Iriam se conhecer melhor. E agora ela estava presa com Simon Stein, o "menino prodígio".

— Você acha que nos escolheram porque somos bons exemplos de jovens funcionários

ou porque querem se livrar da gente? — perguntou Rose.

— Bem, eles me escolheram porque sou um bom exemplo. Você, porque querem se

livrar — disse Simon, guiando o carro para o estacionamento.

— O quê?

— Brincadeirinha — disse ele, com um sorriso travesso. Revoltante, pensou Rose.

Homens maduros não deviam ser travessos.

Chegaram ao portão 45 minutos antes da hora marcada para o embarque. Perfeito,

pensou Rose, e largou suas coisas numa cadeira.

— Olha, eu preciso correr até a banca de jornais — disse ela, e ficou aliviada quando

Simon assentiu e abriu um exemplar de ESPN: The Magazine.

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Era ridículo, ela sabia disso, mas jamais tinha sido uma daquelas mulheres que conseguem

colocar uma caixa de absorventes internos em cima da alface e do peito de peru e ficar na fila do

supermercado sem pestanejar enquanto o rapaz do caixa registrava suas compras. Não mesmo.

Ela precisava comprar seus absorventes numa farmácia, e ela ficava aguardando até ter certeza de

que não pegaria fila e seria atendida no caixa por uma mulher. Não era nada de mais, ela sabia (e

Amy e Maggie tinham lhe dito isso mil vezes), mas por algum motivo ela sempre ficava

constrangida ao comprar essas coisas. Provavelmente porque quando tivera sua primeira

menstruação, seu pai entrara em pânico e a deixara no banheiro, sangrando sobre papel higiênico

embolado, por três horas, até Sydelle voltar de sua aula de jazz com uma caixa de absorventes.

Maggie, ela se lembrava, ficara esperando pacientemente do outro lado da porta, extraindo

informações de Rose.

— O que tá acontecendo aí? — perguntou Maggie.

— Eu me tornei uma mulher — respondeu Rose da ponta da banheira, onde estava

empoleirada. — Viva para mim.

— Oh! — exclamou Maggie. — Bem, parabéns. — E, Rose lembrava, Maggie tentara

passar uma revista People por baixo da porta, e chegara mesmo a fazer um bolo, cheio de

chocolate, com "Parabéns, Rose" escrito em glacê. É verdade que o pai delas ficara tão

atormentado que não conseguira dar uma única mordida, e Sydelle produzira ruídos

desagradáveis sobre o excesso de calorias e o erro de grafia, mas fora agradável.

No avião, ela enfiou sua mala de mão no compartimento superior, fechou o cinto de

segurança e olhou para a janela, beliscando seus amendoins, tentando ignorar os roncos de seu

estômago, pensando que se não tivesse sido tão perfeccionista com seu relatório, ou perdido

tempo brincando de "Adivinha o que a Maggie pegou agora", teria tido tempo de comprar um

pão rosca. Simon, enquanto isso, abaixou-se para pegar, debaixo de sua cadeira, uma pequena

bolsa de náilon em formato de caixa. Ele abriu seu zíper com um floreio.

— Aqui — disse ele.

Rose olhou para a esquerda e viu que ele estava segurando um pãozinho salpicado com

sementes.

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— Nove grãos — disse ele. — Da LeBus. Eu comprei um de onze grãos.

— Para o caso de nove grãos não serem suficientes? — perguntou Rose. Ela olhou com

curiosidade para ele, e então aceitou o pãozinho, que ainda estava quente e, precisava admitir,

delicioso, um minuto depois ele cutucou o braço dela e lhe ofereceu uma fatia de queijo.

— O que é isto? — ela finalmente perguntou. — A sua mãe preparou a merenda para

você?

Simon fez que não com a cabeça.

— As merendas da minha mãe não se pareciam nem um pouco com isto. Ela não é uma

pessoa matutina. Todas as manhãs ela descia cambaleando pela escada...

— Cambaleando? — perguntou Rose, preparando-se para demonstrar a simpatia

necessária caso Simon começasse alguma história tenebrosa sobre o problema de sua mãe com a

bebida.

— Ela não é a mulher mais graciosa do mundo nem sob as melhores circunstâncias,

quanto mais quando está sonolenta. Assim, descia as escadas cambaleando, pegava um saco de

pão de fôrma, qualquer tipo de carne que tivesse na geladeira e um tablete de margarina.

Rose quase conseguiu visualizar a mãe dele, de camisola e pés descalços, de pé diante do

balcão da cozinha, executando a tarefa que tanto detestava.

— Ela pegava duas fatias de pão, passava margarina nelas, ou tentava, porque margarina

gelada não se espalha bem e esfarela o pão. Então enfiava a carne entre essas fatias de pão meio

esfareladas com nacos de margarina gelada, embrulhava o sanduíche num plástico e o colocava

num saco de papel marrom junto com alguma fruta amassada e um punhado de amendoins com

casca. E isso era meu lanche. — E puxando um brownie de sua bolsa, ofereceu metade dele a

Rose e concluiu: — E isso me explica.

— Como isso explica você?

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— Se você cresce numa casa onde ninguém se importa com comida, acaba não se

importando com comida também. Ou então se importando demais. — Ele acariciou a barriga. —

Adivinha de que tipo eu sou. Como eram as suas merendas?

— Dependia — disse Rose.

— De quê?

Rose mordeu o lábio. Suas merendas se dividiam em três categorias. As merendas felizes

e cheias de detalhes de sua mãe: os sanduíches com a casca do pão cortada, as cenouras

despeladas e cortadas em bastõezinhos de tamanho igual, a maçã lavada, um guardanapo de papel

dobrado no fundo da lancheira, às vezes contendo cinqüenta centavos para um de sorvete em

forma de sanduíche e um bilhete dizendo, "coma uma guloseima por minha conta". Depois

surgiram os lanches deteriorados. As fatias de pão com cascas. As cenouras sem nem ter sido

despeladas. Certa vez, sua mãe pusera uma cenoura inteira em sua lancheira, com as folhinhas

verdes ainda na ponta. Ela se esquecia de botar guardanapos, de botar dinheiro para o leite, às

vezes se esquecia até de botar o sanduíche. Certa vez, lembrou Rose, Maggie fora procurá-la no

vestiário, com uma cara arrasada.

— Olha — dissera Maggie, e mostrara a Rose sua lancheira, que não continha nada além

de, inexplicavelmente, o talão de cheques da mãe. Rose olhara dentro de sua própria bolsa e

encontrara uma luva de couro amassada.

— Na maioria das vezes eram refeições quentes — disse a Simon. O que era verdade. Ela

tivera dois anos de lanches de sua mãe, bons e maus, seguidos pela terceira categoria: dez anos de

merendas com pizza, um tipo de carne que ela não conseguia decifrar qual era, e as ofertas de

refeições light e saladas de Sydelle, que Rose geralmente recusava.

Simon suspirou.

— Eu teria matado por uma refeição quente. — De repente, ele sorriu. — Mas mudando

de assunto, você acha que isto vai ser divertido?

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— Lembra-se de como você era no primeiro ano da faculdade de direito?

Simon pensou um pouco antes de responder:

— Insolente.

— Certo. Eu também. Então acho que podemos esperar que a vasta maioria desses

garotos sejam tão detestáveis quanto nós éramos.

— Ah! — exprimiu Simon. Ele pegou sua pasta e retirou um punhado de revistas. —

Material de leitura?

Rose pensou em pegar um exemplar de Cook's Illustrade, e então pegou alguma coisa

chamada The Green Bag.

— O que é isto?

— Uma revista jurídica satírica — disse Simon.

— Como se advogados tivessem humor — comentou Rose. Ela se virou novamente para

a janela e fechou os olhos, torcendo para que Simon a deixasse em paz. Ficou aliviada quando ele

o fez.

A primeira candidata piscou para Rose e Simon, repetindo a última pergunta que ele

fizera.

— Meus objetivos? — perguntou.

Revoltantemente jovem em seu terninho preto, a candidata olhava para Rose e Simon de

um modo cuja intenção era transparecer confiança, mas em vez disso apenas a fazia parecer

míope.

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— Daqui a cinco anos eu quero estar sentada onde vocês estão agora.

Só que com melhor proteção feminina, pensou Rose. Durante os últimos dez minutos ela

estava com a nítida impressão de que o absorvente comprado no aeroporto não estava

cumprindo bem sua função.

— Conte para a gente porque está interessada na Lewis, Dommel e Fenick — pediu

Simon.

— Bem, estou muito impressionada com o compromisso social de sua firma, que presta

atendimento gratuito aos menos favorecidos...

Simon olhou para Rose e fez um ponto de interrogação no papel que eles estavam usando

para registrar as pontuações.

— ...e respeito a percepção dos sócios de que deve haver equilíbrio entre trabalho e

família...

Simon fez um segundo ponto de interrogação.

— E — concluiu a jovem — acho que Boston será uma cidade maravilhosa para se

trabalhar.

Rose e Simon se entreolharam, pontos de interrogação agora estampados em seus rostos.

Boston?

— Há tanto a fazer lá! Tanta história!

— É verdade — disse Simon. — Só que nossa sede fica na Filadélfia.

A jovem engoliu em seco.

— Ah! — exprimiu.

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— Mas há muito a fazer na Filadélfia, também — disse Rose, pensando que este era o

tipo de mancada que ela teria cometido em seus tempos de universidade: marcar tantas

entrevistas que em sua mente todas as firmas se misturariam num enorme borrão de firmas

socialmente compromissadas e favoráveis à família.

— Fale-nos sobre você — disse Rose ao ruivo sentado de frente para ela.

Ele suspirou.

— Bem, eu me casei no ano passado.

— Isso é ótimo — disse Simon.

— É — respondeu, amargamente, o rapaz. — Só que ontem à noite ela me disse que vai

me deixar para ficar com nosso professor de direito criminal.

— Meu Deus — murmurou Rose.

— "Ele está me ajudando com a minha tese", ela me disse. Certo, eu não suspeitava de

nada. Vocês teriam suspeitado? — inquiriu a Simon e Rose.

— Bem, eu não sou casado — disse Simon.

— Olha, vocês estão com o meu currículo — disse o estudante de direito, curvando sua

postura. — Se estiverem interessados, vocês sabem onde me achar.

— Sim — sussurrou Simon, enquanto o rapaz saía da sala para que o candidato seguinte

entrasse —, nos arbustos diante da casa do professor, com óculos de visão noturna e um vidro de

maionese no qual mijar.

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— Comecei minha carreira de direito por revolta — disse a morena de lábios finos. —

Lembram do caso do McNugget quente?

— Não — disse Rose.

— Na verdade, não — disse Simon.

A estudante de direito balançou a cabeça e olhou para eles com desdém.

— Uma mulher chega ao drive-thru do McDonald's e pede Mc Nuggets chegam, recém-

saídos da frigideira. Eles estão quentes. A mulher morde o McNugget, queima o beiço, processa

o McDonald's por não tê-la informado que os McNuggets estariam perigosamente quentes e

ganha centenas de milhares de dólares. Eu fiquei revoltada. — Ela arregalou os olhos para

ressaltar sua revolta. — São recompensas como essa que criam o câncer do litígio nos Estados

Unidos.

— Sabe, meu tio teve isso — disse Simon, com tristeza. — Câncer de litígio. Não há

muito o que se fazer.

A mulher arregalou os olhos de novo.

— Estou falando sério! — insistiu. — Processos frívolos são um problema terrível para a

profissão de advogado. — Simon assentiu positivamente e Rose conteve um bocejo enquanto a

mulher passava 15 minutos concedendo-lhes exemplos, casos, sentenças e informações adicionais

pertinentes de sua tese, até que se levantou abruptamente, alisando sua saia.

— Tenham um bom dia — disse ela, e marchou para a porta.

Rose e Simon se entreolharam, e então caíram na gargalhada.

— Meu Deus! — exclamou Rose.

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— Acho que temos uma vencedora — decretou Simon. — A McNugget Quente. É assim

que iremos chamá-la. Concorda?

— Eu não sei — disse Rose. — Que tal o cara que cuspia enquanto falava? Ou a Srta.

Boston?

— Eu estava doido para dizer a ela que não iria gostar de Boston. porque não é bem uma

cidade universitária, mas ela não parecia ser alguém que gostasse de Spinal Tap. Sabe, estou

arrependido de não ter perguntado a eles o que achavam de esportes alternativos. — Ele

balançou a cabeça, fingindo desespero. — Acho que não podemos voltar para a Filadélfia!

— O cara da ex-esposa parecia ser do tipo que tem um snowboard na garagem.

— É verdade. Bem ao lado da sua besta. E que tal aquela loura?

Rose mordeu o lábio.

"Aquela loura" tinha sido a antepenúltima candidata. Notas medíocres e nenhuma

experiência, mas era deslumbrante.

— Eu acho que alguns dos sócios teriam gostado dela — disse Simon secamente.

Rose estremeceu. Será que ele estava se referindo a Jim?

— Em todo caso, o que você gostaria de jantar? — perguntou Simon, reunindo seus

papéis na inevitável pasta da Lewis, Dommel e Fenick.

— Serviço de quarto — respondeu Rose, levantando-se.

Simon pareceu decepcionado.

— Não, não, não. Nós precisamos sair para comer em algum lugar. Chicago tem

restaurantes maravilhosos!

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Rose dirigiu-lhe o que esperava ser um olhar gentil.

— Estou realmente cansada — disse ela, o que era verdade.

Além disso, ela estava com cólicas. E queria estar em seu quarto de hotel para o caso de

Jim, no intuito de compensar sua ausência, lhe oferecer como prêmio de consolação um

telefonema. Será que sexo por telefone era muito difícil —, perguntou-se. Será que ela

conseguiria praticá-lo sem soar como a garota de um daqueles comerciais de telessexo que

passavam na TV a cabo de madrugada? Ou pior, como ela mesma, lendo um dos depoimentos

do caso Clinton/Lewinsky?

— Azar o seu — disse Simon. Ele levantou a mão num cumprimento, enfiou sua pasta de

cartolina numa mochila da Lewis, Dommel e Fenick (homens crescidos não deveriam andar de

mochila, pensou ela) e foi embora. E Rose correu para o quarto de hotel, e o telefone, e Jim.

—11119 9 9 9 —

aggie fez uma aposta consigo mesma de que arrumaria um emprego

antes que Rose voltasse de Chicago. Se ela tivesse um emprego,

calculou, Rose ficaria satisfeita com ela e disposta a ajudá-la no caso

da "avó desaparecida". Assim, desistiu do trabalho como barwoman e saiu com seu maço de

currículos. Em um dia ela havia achado trabalho na Elegant Paw, uma pet shop chique

especializada em banho e tosa que ficava na esquina do prédio de Rose, num quarteirão com dois

bistrôs franceses, uma charutaria, uma butique feminina e uma loja de cosméticos chamada Kiss

and Make Up.

— Você gosta de cães? — perguntara Bea, a gerente, que estava usando macacão e

fumando um Marlboro sem filtro enquanto aplicava secador num shih tzu.

M

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— Gosto muito — respondera Maggie.

— E posso ver que você tem senso de estilo — disse Bea, olhando para as calças jeans

apertadas e o suéter, mais apertado ainda, de Maggie. — Você vai se dar bem aqui. Deve dar

banho, aparar unhas e bigodes, aplicar condicionador nos pêlos e secá-los. A gente paga oito

dólares por hora — acrescentou, pegando o shih tzu pelo rabo e pela coleira e colocando-o num

caixote de plástico.

— Está bom para mim — disse Maggie.

Bea deu-lhe um avental, um frasco de xampu infantil Johnson, e apontou com a cabeça

pari um poodle pequeno e sujo.

— Você sabe lidar com as glândulas anais?

Maggie fitou Bea, torcendo para que tivesse ouvido errado.

— Como é que é?

Bea sorriu.

— Glândulas anais — repetiu. — Vou mostrar a você.

Maggie assistira, repugnada, Bea levantar a cauda do cachorro.

— Está vendo aqui? — perguntou Bea, apontando para a área em questão. — Esprema.

— Ela demonstrou. O fedor era horrível. Maggie sentiu vontade de vomitar. Até o poodle

pareceu envergonhado.

— Eu tenho de fazer isso com todos cachorros? — perguntou.

— Apenas com aqueles que precisarem — disse Bea. Como se isso fosse consolo.

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— E como eu vou saber qual precisa? — persistiu Maggie.

Bea soltou uma gargalhada.

— Você dá uma olhada para ver se o ânus está inchado. Maggie estremeceu de nojo, mas

engoliu em seco e começou a trabalhar em seu primeiro cachorro, que parecia tão preocupado

com a empreitada quanto ela.

Depois de oito horas, Maggie lavara 16 cães e tinha 16 tipos diferentes de pêlo de

cachorro grudados em seu suéter.

— Bom trabalho — elogiou Bea enquanto amarrava um lenço de listras coloridas na

coleira de um sheltie. — Na próxima vez, use sapatos melhores. Sem saltos, ou tênis. Você tem

sapatos assim?

Bem, ela não tinha, mas Rose tinha. Maggie cambaleou para a rua, mãos enrugadas nos

bolsos, satisfeita porque ao menos teria a casa só para si naquela noite. Poderia fazer uma bacia

de pipocas e tomar uma bebida, e sua irmã não estaria por perto para se queixar de que ela estava

ouvindo música muito alto ou usando perfume demais, ou fazendo perguntas irritantes sobre

para onde ela ia e quando estaria de volta.

Maggie olhou para a vaga onde deixara o carro de Rose... vaga neste momento ocupada

apenas por uma poça enregelada e umas folhas secas.

Certo, talvez não fosse exatamente esta vaga, pensou, tentando acalmar o coração que

começava a bater com força no seu peito. Pine Street. Definitivamente tinha sido na Pine Street.

Caminhou até a placa de "pare" ao lado de um dos bistrôs franceses, atravessou na esquina,

desceu toda a rua, passou pela charutaria e pela Kiss and Make up, que já haviam fechado. Passou

por cada um dos postes de luz, de círculo iluminado para escuridão densa, e ainda assim, nenhum

carro.

Caminhou até a esquina, e então refez o percurso sob as lâmpadas dos postes de luz com

decorações natalinas, sentindo o ar gélido morder seu pescoço. Fora na Pine Street, ela tinha

certeza, mas... e se estivesse errada? Seria a gota d'água para Rose, Maggie se deu conta,

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imaginando sua irmã voltando de Chicago e descobrindo que seu carro havia desaparecido. Antes

que Maggie tivesse chance de se explicar, Rose iria chutá-la de sua casa, obrigando-a a pedir

abrigo a Sydelle. Bem, a vida de Maggie sempre tinha sido assim. Um passo para a frente, dois

para trás. Conseguir um teste na MTV e se enrolar com o teleprompter. Arrumar um emprego e

descobrir que o carro tinha sido roubado. Chegar onde ela queria, bem a tempo de ter a porta

fechada em sua cara. Merda. pensou, dando a volta. Merda, merda, merda!

— Te pegaram também? — disse um homem de couro que vinha se aproximando dela.

Ele apontou para a placa que Maggie não tinha notado até então. — Limpeza de ruas — disse

ele, e balançou a cabeça. — Antigamente eles apenas multavam a gente, mas como ninguém

pagava as multas, eles começaram a rebocar na semana passada.

Merda. — Para onde eles levam os carros?

— O campo de apreensões — disse, dando de ombros. — Eu me ofereceria uma carona,

mas... — E olhou para o espaço onde o carro dele presumivelmente estivera estacionado com

uma expressão tão lastimosa que Maggie teve de rir. — Venha comigo — disse ele. Maggie fitou-

o, tentando discernir suas feições, mas estava escuro e ele estava com a cabeça coberta pelo capuz

do casaco. — Vou tomar uma cervejinha enquanto espero por um amigo, e ele poderá nos levar

até lá. Está com seu talão de cheques?

— Bem... — disse Maggie. — Será que aceitam cartão?

O cara deu de ombros.

— Acho que vamos ter de descobrir.

O nome do sujeito era Grant, e o de seu amigo era Tim, e uma cerveja na verdade foram

três, mais o irish coffee que Maggie bebericou enquanto ondulava os ombros ao ritmo da música

e tentava não olhar para o relógio enquanto executava os movimentos necessários. Fechar as

pernas, lamber os lábios, enrolar um cacho de cabelo. Parecer fascinada, e mesmo assim um

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pouco misteriosa. Olhar por baixo dos cílios, como se o sujeito fosse o homem mais interessante

que ela já tinha visto, como se o que ele estava dizendo fosse a coisa mais extraordinária que ela

já ouvira. Fazer beicinho como uma modelo num anúncio de meia-calça e lingerie. Ficar

brincando com o canudo da bebida. Fitar o sujeito, e então baixar os olhos tímida. Maggie

poderia fazer tudo isso de olhos fechados. E os caras nunca sabiam que era só encenação.

— Ei, Monique, quer ir com a gente até uma festa depois que tivermos recuperado os

carros?

Ela respondeu com um discreto meneio de cabeça, um leve encolher de ombros, e cruzou

as pernas novamente. Grant pousou a mão no joelho dela, e começou a subir em direção à sua

coxa.

— Você é tão macia — disse ele.

Ela se curvou até ele por um segundo, e então recuou. Para a frente, depois para trás.

— Primeiro vamos pegar os carros, depois veremos — disse ela, sabendo que depois que

pegasse o carro iria direto para casa. Estava cansada, e tudo que queria era pegar o carro, tomar

um banho, e se jogar na cama confortável de sua irmã.

Já havia passado das dez quando eles finalmente se levantaram e vestiram os casacos.

Grant estendeu o braço para ela. Maggie emitiu um leve suspiro de alívio e sorriu enquanto ele a

ajudava a descer da banqueta do bar e subir no caminhão de Tim. Eles entraram na rodovia,

depois saíram, depois entraram de novo. Estavam em algum lugar no sul da Filadélfia, pensou

Maggie. Achou que podia ver o rio Delaware em meio à escuridão. Finalmente Tim entrou numa

estrada longa e sinuosa sem postes de iluminação. Maggie sentiu um aperto no coração enquanto

os homens riam e cantavam junto com o rádio, e passavam uma garrafa de um para o outro por

cima de sua cabeça. Isto pode ser uma roubada, pensou. Onde ela estava? Quem eram esses

caras? Como ela podia ter sido tão burra?

Ela estava tentando formar um plano quando Tim virou o caminhão para a direita e

pegou uma estrada lateral. Ela viu que eles estavam passando por um estacionamento cheio de

carros, delimitado por uma cerca fantasmagoricamente sem brilho.

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— Aqui estamos — disse ele.

Maggie forçou a vista para enxergar na escuridão. Ali havia carros e mais carros. Dúzias

de fileiras deles, carros arruinados e carros novinhos em folha. E ali, bem na frente, estava o

Honda prateado de Rose. E, lá no fundo, as silhuetas difusas de cães de guarda — pastores

alemães, pensou Maggie — movendo-se lentamente ao longo da cerca.

Tim abriu a porta, mastigando o que parecia meio pacote de balas de hortelã.

— O escritório é por ali — disse ele, apontando para uma casinha de cimento onde se via

uma luz acesa através da janela. — Vocês dois estão vindo?

Maggie deu outra olhada. O portão estava aberto. Ela podia simplesmente caminhar até o

carro, entrar nele e passar pelo portão. Ela escorregou pelo banco do caminhão e pulou para o

chão.

— Vou pegar meu carro — anunciou Maggie.

— Bem, claro. Foi para isso que trouxemos você aqui — disse Tim.

Maggie mordeu o lábio. A verdade era, sua carteira de motorista tinha expirado há seis

meses, e ela queria renová-la, mas vivia se esquecendo. Além disso, o carro estava registrado no

nome de Rose, não no dela. Provavelmente, mesmo se aceitassem pagamento no cartão eles não

iriam deixá-la sair com o carro. Ela teria de pensar em outra coisa.

Ela embalou os quadris, ajustando os pés no chão. Estava tão frio que suas faces doíam,

tão frio que a parte interna de seu nariz estava congelando e cada centímetro de seu corpo estava

arrepiado. E então ela começou a caminhar, como se estivesse pisando em carvão quente. Nem

muito devagar nem muito depressa.

— Ei! — disse Grant. — Ei!

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Ela sentiu, mais do que viu, que ele começou a se mover, e pôde ver o que ele tinha em

mente como se uma tela de cinema subitamente tivesse descido diante de seus olhos. Primeiro

eles pegariam os carros, depois voltariam para o bar, onde uma bebida viraria três ou quatro ou

cinco. Então eles diriam que ela não estava em condições de dirigir, e a convidariam a ir até o

apartamento deles, descansar, tomar um café. E o apartamento teria cheiro de roupa suja e

sovaco; a mesa estaria coberta por caixas de pizza vazias e a pia entupida de louça suja. Quer ver

um filme?, eles perguntariam, e seria um filme pornô; eles lhe ofereceriam uma garrafa de alguma

bebida, e um deles olharia para ela com olhos anuviados, Ei, benzinho, ei, por que não fica mais

à vontade? Por que não vem até aqui?

E com esse pensamento, Maggie começou a correr.

— Ei! — berrou Grant mais uma vez, parecendo realmente furioso.

Enquanto seus pés produziam um som rápido ao bater no chão enregelado, Maggie podia

ouvir Grant arfando atrás dela. Maggie lembrou de uma história, a história de Atalanta, que não

queria se casar; Atalanta, a quem os deuses permitiram que corresse atrás do pomo de outro;

Atalanta, que corria mais rápido que todos os homens, que teria vencido a corrida se não tivesse

sido enganada. Bem, ninguém iria enganar Maggie.

A-ta-lan-ta, A-ta-lan-ta, soavam os pés de Maggie enquanto sua respiração saía em arfadas

prateadas. Ela estava quase lá, quase lá, tão perto que se estivasse os dedos poderia roçar a

maçaneta da porta do motorista... mas então Grant a agarrou pela cintura e a levantou do chão.

— Para onde está indo? — arfou ele na orelha de Maggie, bafo fedorento e úmido. —

Para onde está indo com tanta pressa? — Acrescentou, enfiando uma das mãos por baixo do

suéter de Maggie.

— Ei! — gritou Maggie, agitando as pernas, enquanto ele a mantinha longe de si e ria.

Um cão uivava ao longe quando Tim chegou correndo.

— Ô cara, pára com isso — disse Tim. — Bota ela no chão.

— Me bota no chão! — gritou Maggie.

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— Ainda não — disse Grant, a mão apertando um dos seios de Maggie. — Antes de ir,

não quer se divertir um pouco com a gente?

Ai, meu Deus, pensou Maggie. Não. Maggie lembrou de uma noite como esta há muito

tempo atrás. Uma noite nos tempos de escola, uma festa no quintal de alguém. Maggie tomara

umas cervejas, fumara um baseado, e então alguém lhe deu uma caneca com uma bebida marrom

e pegajosa, e ela tomou isso também. A partir daí as coisas ficaram nebulosas. Ela tinha ficado

com um cara, e de repente eles estavam deitados na grama, atrás de uma árvore; ele com a

braguilha aberta; ela com o suéter levantado até o pescoço. Então ela olhou para cima e viu mais

dois caras de pé, olhando para eles, segurando latas de cerveja. Estavam parados lá, esperando

sua vez. E nesse momento Maggie sentiu quanto era pequeno seu poder, quão rápido as coisas

poderiam sair de seu controle, como uma faca na pia, toda ensaboada, tão rápida e profunda-

mente poderia cortá-la. Maggie havia se levantado, produzindo sons de náusea muito

convincentes.

— Enjoada — arfara Maggie, e correra para dentro da casa com os dedos sobre a boca.

Depois havia se escondido no banheiro e ficado ali até as quatro da manhã, quando todo mundo

já havia desmaiado ou ido para casa. Mas o que ela faria agora, quando não havia banheiro para

onde correr, festa onde desaparecer e ninguém ao seu redor para salvá-la?

Maggie chutou com toda força que conseguiu. Sentiu seu calcanhar contra o músculo

macio da coxa de Grant. Ele arfou, e ela se desvencilhou de seus braços.

— Que porra é essa? — gritou Maggie, enquanto Grant fitava-a de olhos arregalados, e

Tim olhava para o chão. — QUE PORRA É ESSA?!?!? — repetiu.

— Provocadora — disse Grant.

— Babaca — retrucou Maggie. Ela estava com as mãos tremendo tanto que deixou cair

as chaves duas vezes antes de conseguir destrancar a porta do carro.

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— Você vai ter de pagar por isso — disse Tim, caminhando lenta- mente até ela, palmas

levantadas. — Eles têm o número da sua placa... Eles vão te mandar uma multa pelo correio, vão

fazer você pagar todos os tipos de multa...

— Vá se foder — disse Maggie. — Fica longe de mim. A minha irmã é advogada. Ela vai

te processar por tentativa de estupro.

— Olha, eu sinto muito — disse Tim. — Ele bebeu demais...

— Vá se foder! — gritou.

Maggie ligou o carro e acendeu os faróis altos. Grant cobriu os olhos com os braços.

Maggie engatou a marcha e durante um segundo pensou em pisar fundo no acelerador e esmagá-

lo como um esquilo. Mas não fez isso. Ela respirou fundo, tentou firmar as mãos no volante e

dirigiu até o portão.

—20 20 20 20 —

e Maggie fosse uma hóspede comum, a conta de telefone teria sido o

começo do fim, a última gota. Mas Maggie não era uma hóspede

comum, lembrou Rose a si mesma. Maggie era sua irmã. Mas quando

Rose chegou em casa depois de dois dias em Chicago (o vôo tinha atrasado, sua bagagem se

perdido, o aeroporto estava mais quente que o habitual e entupido com viajantes de Natal) e

encontrou a conta de telefone na mesa da cozinha, ficou estarrecida em ver que era de mais de

trezentos dólares, um aumento significativo de sua conta habitual de quarenta dólares. O culpado:

um telefonema de duzentos e vinte e sete dólares para o Novo México.

Rose jurou que não daria uma bronca assim que sua irmã entrasse. Ela deixaria Maggie

pendurar o casaco, tirar os sapatos e então mencionaria casualmente que a conta havia chegado, e

S

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perguntaria se Maggie tinha feito um amigo em Albuquerque. Porém, ao entrar no quarto para

guardar suas coisas, Rose viu que todas suas roupas ainda estavam empilhadas no chão, e que

seus lençóis e travesseiros tinham sido largados no topo do "monte Moda". O que significava que

Maggie tinha dormido em sua cama. E usado seus sapatos, pensou Rose. E teria comido seu

mingau, caso Rose tivesse mingau.

Rose ficou sentada no sofá — bufando de raiva — até bem depois da meia-noite, quando

Maggie chegou, cheirando a chão de bar, com alguma cotia remexendo debaixo do casaco.

— Você chegou! — exclamou Maggie.

— Sim, cheguei! — disse Rose. — E a conta de telefone também — acrescentou

enquanto Maggie chutava os sapatos para o canto e largava a bolsa no sofá.

— Te trouxe uma coisa! — disse Maggie. Estava corada e suas pupilas estavam dilatadas.

E fedia a uísque. — Na verdade, duas coisas — disse ela, mostrando dois dedos. Então abriu o

casaco com um floreio. — Pão de Mel II! — anunciou, enquanto uma cadela marrom, pequena e

gordinha, caía no chão. Tinha olhos marrons úmidos, coleira de couro marrom e um rosto que

parecia ter sido esmagado com uma frigideira.

— Maggie... o que é isso? — perguntou Rose, estarrecida.

— Pão de Mell II — repetiu Maggie, caminhando até a cozinha. — Meu presente para

você!

— Não posso ter cães neste apartamento! — berrou Rose.

A esta altura, a cachorrinha marrom já fizera uma breve incursão pelo apartamento de

Rose e estava parada diante da mesinha de centro, parecendo uma viúva aristocrata indignada

com seu quarto de hotel.

— Você vai ter de devolver esse bicho.

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— Tá bem, tá bem — disse Maggie, retornando para a sala de estar. — A cachorrinha é

apenas uma visita.

— Visita de onde?

— Do meu novo trabalho — disse Maggie. — Agora sou cabeleireira de cachorros na

Elegant Paw. — Ela fez uma careta para a irmã. — Estou empregada. Estou trabalhando há dois

dias. Satisfeita?

— Precisamos conversar sobre a conta de telefone — disse Rose, esquecendo seu plano

de ser calma e razoável. — Telefonou para o Novo México?

Maggie balançou a cabeça negativamente.

— Não que eu me recorde.

Rose praticamente esfregou a conta na cara da irmã. Maggie olhou para o papel.

— Ah, é.

— Ah, é, o quê?

— Liguei para o teletarô. Mas, puxa! A ligação nem passou de meia hora! Não imaginei

que ia sair tão caro.

— Teletarô — repetiu Rose.

— Foi um pouco antes do meu teste — murmurou Maggie. — Precisava descobrir se era

um dia auspicioso para um novo emprego.

— Inacreditável — disse Rose, olhando para o teto.

— Rose, precisamos conversar sobre isto agora? — perguntou Maggie. — Estou morta

de cansaço. Foi uma noite realmente difícil.

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— Ah, claro — retrucou Rose. — Depois de dois dias de trabalho você deve estar

exausta.

— Pense o que quiser — disse Maggie. — E eu vou pagar a conta de telefone.

A cachorrinha olhou mais uma vez para ela e, emitindo uma bufada desdenhosa, saltou

para o sofá, onde se pôs a afofar o travesseiro, arranhando-o com as unhas.

— Não vem que não tem! — gritou Rose.

A cachorra a ignorou, continuando a golpear e espetar o travesseiro até deixá-lo ao seu

gosto, e então enroscou-se sobre ele para dormir instantaneamente.

— Maggie! — gritou Rose. Não houve resposta. A porta do banheiro permaneceu

fechada, e tudo que ela ouvia era a água correndo e a cadelinha roncando. — Qual é a outra

surpresa? — Nenhuma resposta. Rose ficou de pé diante da porta do banheiro, conta de telefone

na mão, antes de se retirar, tentando se acalmar. Amanhã de manhã, prometeu a si mesma.

Exceto que a manhã seguinte começou com o que havia se tornado um evento de rotina

no apartamento de Rose: uma ligação de um cobrador de impostos.

— Alô, posso falar com Maggie Feller? — começavam assim os telefonemas. — Aqui é a

Lisa, ligando da Lord and Taylor. — Ou Karen da Macy's, ou Elaine da Victoria's Secret. Hoje,

era Bill da Gap. À noite, Rose voltaria para casa e encontraria a secretária eletrônica entupida com

mensagens: Strawbridge, Bloomingdale's, Citibank, American Express.

— Maggie! — gritou Rose. Sua irmã estava encolhida no sofá, e a cadelinha estava

enroscada num travesseiro no chão — um travesseiro agora manchado de baba. — Telefone!

Maggie não se virou nem abriu os olhos — simplesmente estendeu um braço até o

telefone. Rose enfiou-o na mão dela e seguiu para o banheiro, fechando a porta enquanto a voz

irada de Maggie ficava cada vez mais alta, dizendo "Sim" e "Não", e "Eu já enviei um cheque para

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vocês!" Quando Rose saiu do chuveiro, Maggie ainda estava ao telefone, e a cadela estava roendo

algo que Rose tinha certeza de que era uma de suas botas de caubói vermelhas.

— Meu Deus! — sussurrou Rose, e bateu a porta com a toda força que conseguiu.

Rose desceu de elevador para o saguão e atravessou a rua, acreditando que seu carro

estaria na mesma vaga onde o deixara antes de sua viagem a Chicago. E ali estava ele, quase

exatamente onde Rose o deixara. Graças a Deus pelas pequenas bênçãos, pensou, sentando-se ao

volante, quando um velho bateu no vidro, dando-lhe um susto tão grande que ela soltou um

gritinho.

— Eu não faria isso se fosse você — aconselhou o velho.

— Hein? — retrucou Rose.

— Travaram você — explicou. — Dá uma olhada.

Rose saiu do carro e o contornou até a porta do passageiro. Com efeito, uma trava de

metal amarelo e reluzente fora anexada à roda dianteira, junto com uma multa laranja e reluzente.

— Delinqüente? — leu Rose. Maggie, pensou ela. Isto é culpa de Maggie. Ela olhou o

relógio e concluiu que dispunha de tempo para voltar para o apartamento e arrancar algumas

respostas da Srta. Maggie. Atravessou o saguão do prédio como uma locomotiva ("esqueceu

alguma coisa?", perguntou o porteiro às suas costas), apertou o botão do elevador, olhou

furiosamente para o teto espelhado enquanto o elevador subia e marchou pelo corredor de volta

para seu apartamento.

— Maggie! — gritou. Sem resposta. O chuveiro estava aberto. — Maggie! — gritou Rose,

batendo na porta do banheiro. Sem resposta. Rose girou a maçaneta. Destrancada. Entrou furiosa

no banheiro determinada a arrancar a cortina do chuveiro, sem se importar com o fato de que sua

irmã estava nua, e obter algumas respostas sobre que diabos estava acontecendo. Deu um passo

para dentro do banheiro cheio de vapor e parou. Conseguia discernir a silhueta da irmã através

do plástico da cortina do chuveiro. Estava de costas para a porta, com a testa pressionada contra

a parede azulejada. E pior do que isso — muito pior do que isso — era o que Maggie estava

dizendo.

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— Burra... burra... burra... burra...

Rose permaneceu imóvel onde estava. Maggie parecia-se com um pombo que ela tinha

visto certa vez. Ela estava caminhando até uma lanchonete na esquina e quase pisou no pombo,

que em vez de se assustar, olhou para Rose com seus olhos pequeninos inchados de ódio. Ela

tinha tropeçado, quase caído, e quando voltou a caminhar, viu qual era o problema. Um dos pés

do pombo estava horrivelmente estropiado. Ele estava saltitando com seu pé bom, com o ferido

junto ao corpo.

Rose pensara durante um momento se deveria ajudá-lo.

— Oh... — exprimira, estendendo a mão pensando... pensando o quê? Que iria colher o

pássaro imundo e levá-lo correndo para um veterinário? O pássaro simplesmente fitara-a antes de

se afastar saltitando com uma dignidade ferida, patética.

Maggie estava exatamente como aquele pombo, pensou Rose. Também estava ferida, mas

você não podia perceber isso, não podia oferecer-lhe ajuda, não podia dizer nada que insinuasse

que Maggie estava ferida ou machucada, que havia coisas que ela não podia resolver sozinha.

Rose se afastou silenciosamente do banheiro, fechando a porta. Maggie, pensou ela,

sentindo arder no peito aquela mistura, tão familiar de piedade e fúria. Caminhou de volta até o

elevador, atravessou o saguão, saiu para o sol, e pegou um táxi na esquina. O carro, pensou ela. A

conta de telefone. Os cobradores de impostos. A cadela. As roupas no chão, os cosméticos

cobrindo a bancada do banheiro, os envelopes de "Notificação final" entulhando a caixa de

correio. Rose fechou os olhos. Isto precisava acabar. Mas como?

—21 21 21 21 —

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lla estava com areia nos sapatos. Tirou-os e esfregou as solas dos pés

cuidadosamente no soalho do carro, tentando desalojar os grãos antes

de tornar a se calçar.

Lewis olhou-a quando eles pararam num sinal vermelho.

— Tudo bem? — perguntou.

— Tudo — respondeu, e sorriu para provar. Eles tinham saído para jantar tarde (tarde

significava depois das sete), e depois ido a um concerto — e não um no clube de Acres, mas num

clube decente, em Miami, com Lewis dirigindo seu carro grande bem devagar por uma noite

quente e de odor adocicado.

Agora, enquanto Lewis passava pelo portão dos residentes em Golden Acres, Ella se

perguntou o que iria acontecer. Se ela fosse uma mulher mais jovem, provavelmente teria

contado seus encontros (até agora, seis), calculado há quanto tempo eles vinham saindo e

chegado à conclusão de que Lewis provavelmente estava interessado em "alguma coisa". Sessenta

anos atrás ela teria se preparado para uma meia hora de agarração antes da hora de dormir acabar

com sua diversão. Mas o que aconteceria, em sua idade? Ela estava atrás de quê? Ella pensava que

seu coração estava morto, reduzido a um músculo incapaz de qualquer sentimento. pelo menos

era o que ela acreditava desde a morte de Caroline. Mas agora...

Lewis parou numa vaga na frente do prédio em que morava.

— Quer subir para tomar alguma coisa? Um café?

— Se tomasse café, ficaria acordada a noite inteira — disse ela, e soltou uma risadinha

como uma adolescente boba. Eles subiram de elevador cm silêncio absoluto. Ella pensou que

talvez tivesse interpretado como más as intenções dele. Talvez Lewis quisesse apenas oferecer-lhe

chá e atormentá-la com fotos de seus netos. Ou, mais provavelmente, estivesse simplesmente

procurando por uma amiga, alguém que o escutasse, alguém que ouvisse histórias sobre sua

esposa morta. Sexo estava fora de questão. Ele provavelmente estava sob medicação, como todo

mundo que Ella conhecia. Mas e se... e se ele tomasse Viagra? Ella mordeu o lábio.

E

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Provavelmente estava pensando bobagens. Ela estava com 78 anos. Quem estaria ansioso para

levá-la para a cama, toda caída, enrugada e salpicada de manchas senis como ela estava?

Lewis fitou-a com curiosidade enquanto destrancava a porta.

— Você está parecendo distante, pensando em outras coisas?

— Bem, eu... — começou Ella, insegura sobre o que dizer enquanto o seguia. O

apartamento dele, ela logo percebeu, era maior que o seu, e enquanto o seu dava para o

estacionamento e a interestadual, o dele dava para o oceano.

— Sente-se — disse ele. Ella plantou-se no sofá e sentiu um arrepio de... de quê? Medo?

Empolgação? Ele não havia acendido as luzes.

Lewis voltou e sentou-se ao lado dela, pressionando uma caneca de chá morno cm suas

mãos. Então se levantou novamente e abriu as persianas, e Ella viu a água reluzindo ao luar.

Podia ver as ondas beijando a areia pálida. E as janelas eram tão grandes, fazendo com que ela se

sentisse perto da água. Era como...

— É como estar num navio! — exclamou Ella, E era. Embora ela não viajasse de navio

há muitos anos, esta era exatamente a sensação. Ela quase podia sentir o movimento, o embalar

das ondas, levando-a para o mar, para longe do que ela conhecia, para longe de si mesma. E

quando Lewis segurou sua mão, pareceu uma coisa certa, tão certa e natural quanto o movimento

da água subindo e descendo pela areia.

—22222222 —

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la tem de sair da minha casa — disse Rose a Amy.

Estavam sentadas num canto do café favorito de

Amy, bebericando chá gelado e esperando que

seus almoços chegassem. Rose tomara um táxi para o trabalho e passara a maior parte da manhã

ao telefone com o departamento de trânsito da Filadélfia, tentando descobrir o que acontecera ao

seu carro e quanto a última travessura de Maggie tinha lhe custado. Em dado momento olhara o

relógio, gemera, compreendera que não trabalhara nada ainda e telefonara para o seu

apartamento. Maggie não atendera. Rose deixara uma mensagem concisa: "Maggie, ligue para o

escritório depois que ouvir isto." Até uma da tarde não tinha havido resposta, e Rose foi se

encontrar com Amy para comer salada e formular uma estratégia.

— Lembra-se daquela vez em que ela ficou lá em casa durante três semanas seguidas?

Lembra que pensei que aquilo era um inferno na Terra? Lembra que jurei que não ia acontecer

nunca mais?

Amy meneou a cabeça com simpatia.

— Sim, eu lembro.

Rose se encolheu. Ela também se lembrava de como, durante a visita de Maggie, Amy

passara na sua casa para assistir a um filme, e descobrira no dia seguinte que dois batons e

quarenta dólares tinham sumido de sua bolsa.

— Olhe, você tem sido uma boa irmã para ela — disse Amy. — Tem sido mais do que

paciente. Ela conseguiu um emprego?

— Ela disse que conseguiu.

— Ela disse — repetiu Amy. — E ela está dando dinheiro pelo aluguel? Para as compras

de supermercado? Para qualquer coisa?

Rose fez que não com a cabeça. A garçonete negra, alta e linda, chegou com os pratos,

pousou-os na mesa, e saiu rebolando aparente-mente sem notar o copo de água vazio de Rose.

— E

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— Por que a gente insiste em vir aqui? — perguntou Rose, pegando seu garfo. — O

atendimento é péssimo.

— Eu gosto de manter meu dinheiro na comunidade — justificou Amy.

— Amy, você não pertence à comunidade — disse pacientemente Rose. Ela beliscou um

pouco sua salada, e então empurrou seu prato. — O que vou fazer com a Maggie?

— Chuta ela para o olho da rua — sugeriu Amy enquanto mastigava espinafre. — Diz

para ela que está na hora de ir embora.

— E para onde ela vai?

— O problema não é seu — disse Amy. — Olhe, sei que isso parece cruel, mas Maggie

não vai passar fome nas ruas. E ela não é responsabilidade sua. Você é a irmã dela, não a mãe

dela.

Rose mordeu o lábio. Amy suspirou.

— Sinto muito — disse ela. — Sinto muito por Maggie ser um desastre. Sinto muito por

Sydelle ser uma bruxa. Sinto muito pela sua mãe. Mas, Rose, o que você está tentando fazer... não

vai funcionar. Você não pode ser a mãe dela.

— Eu sei. Eu só não sei o que fazer. Quero dizer, sei o que devo fazer, mas não sei

como.

— Repita comigo: "Maggie, você precisa ir embora" — disse Amy. — Estou falando

sério. Ela vai para a casa do seu pai e de Sydelle, e se isso não a convencer de andar na linha até

conseguir dinheiro suficiente para ter um lugar só dela, nada convencerá. Você até pode dar

algum dinheiro para ela... e note que citou falando "dar" e não "emprestar". Se você quiser, eu te

ajudo.

— Obrigada — disse Rose, e se levantou. — Preciso ir.

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— E Maggie também — disse Amy. — Você precisa cuidar de você mesma. — Rose

assentiu aflita. — Liga para mim se precisar de ajuda. Liga para mim se precisar de qualquer coisa.

E me conta o que acontecer.

Rose prometeu que faria isso, e voltou para seu escritório. Ela verificou suas mensagens.

Nada de Maggie, mas havia uma de Sydelle. "Rose, por favor ligue para nós. Imediatamente."

Então talvez tivesse sido para lá que sua irmã tinha ido. Rose respirou fundo e discou.

— É Rose — disse ela.

— Você precisa fazer alguma coisa com relação a sua irmã — disse Sydelle, começando a

enumerar os abusos mais recentes e notórios de Maggie. — Sabia que tem cobradores de

impostos ligando aqui para casa às oito da manhã?

— Para mim também.

— Bem, você não pode fazer nada? — inquiriu Sydelle. — Você é advogada, não pode

dizer para eles que é ilegal ligar para cá? Querida, isso não é bom para o seu pai...

Rose sentiu vontade de dizer que não era bom para ela também — que nada que Maggie

fazia era bom para ninguém além de Maggie —, mas ficou de bico fechado e disse que faria o que

fosse possível. Ela desligou e telefonou novamente para casa. Ainda, nenhuma resposta. Agora

estava ficando preocupada. Talvez Maggie estivesse no trabalho. Claro, pensou com amargura, e

talvez os juizes dessem um pulinho na sua casa para lhe dar a coroa de Miss América. Rose ligou

seu computador e viu seus e-mails. Alguma coisa de um sócio perguntando, num tom bastante

conciso, quando Rose terminaria o rascunho de sua súmula. Um e-mail de Simon Stein intitulado

"Reunião pré-temporada de softball que Rose deletou sem ler.

Ela se levantou e começou a caminhar de um lado para o outro em seu escritório.

Precisava ver Jim, decidiu. Precisava vê-lo agora. Precisava vê-lo, querendo ele ou não vê-la.

Olhou para baixo e notou que estava usando dois mocassins pretos completamente diferentes um

do outro — uma conseqüência natural do fato de que sua irmã havia jogado cada sapato que ela

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tinha no chão. Maggie! pensou com raiva. E marchando velozmente, passou pela secretária de

Jim ("Ei! Ele está num telefonema, Rose!") e entrou direto no escritório dele.

— Rose? O que está acontecendo? — perguntou Jim, desligando o telefone e fechando a

porta atrás dela.

Rose baixou os olhos para seus sapatos díspares. O que estava acontecendo era que seu

apartamento estava uma zona, sua vida estava desmoronando, ela devia duzentos dólares ao

departamento de trânsito, havia uma cadela vivendo ilegalmente em sua sala de estar, e, evidente-

mente, ela nem conseguia mais se vestir direito. Ela precisava que ele a abraçasse, que ele

segurasse o rosto dela em suas mãos e lhe dissesse que eles dois estavam apenas começando, e

que tinha sido um começo problemático devido à onipresença de Maggie, mas que logo eles

estariam juntos novamente.

— Ei — disse Jim, conduzindo-a à cadeira de couro em frente à sua mesa, a reservada a

clientes, a cadeira Eames que sempre era mantida ligeiramente reclinada para assegurar que Jim

sempre parecesse mais alto do que eles, não importando a situação.

Rose preferiu ficar de pé, e respirou fundo. Resuma, disse a si mesma.

— Estou com saudades de você — disse ela.

— Sinto muito, Rose, mas tem sido uma loucura aqui.

Rose teve a impressão de estar numa montanha-russa que acabara de descer uma ladeira

que ela não tinha previsto, e agora o chão de seu mundo estava desmoronando. Jim não

conseguia ver que ela precisava dele?

Jim envolveu os ombros de Rose com os braços, mas manteve o corpo afastado.

— Como posso ajudar? — murmurou. — O que posso fazer?

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— Passe lá em casa esta noite — disse ela, pressionando os lábios contra o pescoço dele,

sabendo que estava fazendo precisamente aquilo que as mulheres não devem fazer sob nenhuma

circunstância: implorar. — Preciso ver você. Por favor!

— Posso passar lá bem tarde — disse ele. — Lá pelas dez, ou mais tarde.

— Não tem problema se você chegar tarde. Eu vou esperar por você. — Eu vou esperar

para sempre, pensou, e se retirou do escritório. A secretária de Jim lançou um olhar furioso para

ela.

— Você não pode simplesmente ir entrando — disse a secretária. — Você precisa ser

anunciada.

— Sinto muito — disse Rose, tendo a impressão de que não fizera outra coisa o dia

inteiro além de pedir desculpas. — Sinto muito mesmo.

—23 23 23 23 —

telefone de Rose estava tocando novamente. Maggie ignorou-o, largou a

toalha no chão da sala de estar e caminhou até o chuveiro. Era o terceiro

banho que tomava naquela manhã. Maggie havia tomado muitos banhos

no dia que se seguiu a seu encontro íntimo e pessoal com a dupla dinâmica Grant e Tim,

passando dez, vinte, trinta minutos esfregando-se com a esponja e lavando o cabelo. E ela ainda

se sentia suja. Suja e furiosa. Todas aquelas semanas no sofá de Rose, e o que ela havia

conseguido? Nenhum dinheiro. Nenhum homem. Nenhuma conquista. Nada, nada, nada, apenas

babacas que a agarravam em estacionamentos como se ela não fosse nada. Como se ela nem

fosse real.

Maggie ouviu a voz da irmã gritando da secretária eletrônica:

O

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— Maggie, você está aí? Atenda, se estiver. Eu realmente preciso falar com você.

Maggie...

Maggie embrulhou-se numa toalha, passou a mão no espelho para limpar o embaçado,

ignorando a voz da irmã na secretária eletrônica e olhou para si mesma. A "arma um", como

sempre, era seu corpo, e era mais precisa que uma pistola, mais afiada que uma faca. Ela iria

encontrar aqueles caras novamente. Iria procurar pela cidade inteira até encontrá-los, num bar ou

num ônibus. Em algum lugar. Ela passaria caminhando por eles, peito empinado, e sorriria. O

sorriso seria a parte mais difícil, mas tinha certeza de que conseguiria. Ela era uma atriz. Ela era

uma estrela. Ela sorriria e pousaria a mão no ombro de Tim, perguntaria como ele estava. Ela

bebericaria seu drinque, deixando marcas de batom na borda do copo, e roçaria seu joelho no

dele. Ela se inclinaria até ele e sussurraria que tinha se divertido muito naquela noite, que

lamentava ter fugido, e sugeriria que eles tentassem de novo. Será que eles estariam livres naquela

noite? E eles a levariam de volta até o apartamento. E então ela usaria a "arma dois". Talvez uma

faca, uma arma, se pudesse achar uma. Alguma coisa que lhes causasse dano permanente, alguma

coisa que lhes mostrasse que ela não era o tipo de garota com quem podiam mexer

impunemente.

O telefone tocou de novo.

— Maggie, eu sei que você está aí. Pode, por favor, atender o telefone? Acabo de falar

novamente com o pessoal do departamento de trânsito e eles disseram que o carro foi retirado de

um campo de apreensão. Por causa disso, tem um bando de multas...

Maggie ignorou o telefone e ligou o aparelho de som no volume máximo — Axl Rose

uivando "Welcome to the Jungle". "Do you know where you are?", gritava Axl. Maggie enfiou

os pés na mais recente aquisição de Rose, um par de botas de couro preto cujos canos subiam até

os joelhos e apertavam suas panturrilhas. Botas de 268 dólares, e sua irmã podia comprá-las sem

pestanejar, porque nada jamais dava errado com Rose. Não, Rose jamais se enrolaria com um

teleprompter. Rose jamais estacionaria no lado da rua. Rose não seria agarrada por babacas em

estacionamento. E Rose certamente jamais pegaria um trabalho que envolvesse espremer ânus de

cachorros para garantir seu sustento. Rose tinha tudo, e Maggie não tinha nada. Absolutamente

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nada, exceto a cachorrinha que tinha sido largada na Elegant Paw meses atrás e que Maggie

resgatara e levara para casa.

Completamente nua, exceto pelas botas, Maggie ficou caminhando do quarto para a sala

de estar, e de lá para a cozinha, e de volta, escutando o rangido das solas no assoalho de madeira,

sentindo o cheiro de couro, sabão e suor exalado por seu corpo, enxergando uma névoa

vermelha. Vendo a faca, vendo a si mesma de relance e no espelho enquanto passava pelo

banheiro, ruborizada, molhada e linda — um disfarce inteligente, uma flor com pétalas sedosas

em um caule de pernas compridas. Ninguém que a olhasse suspeitaria o que ela realmente era.

O interfone zumbiu. A cadela ganiu.

— Não se preocupe — disse Maggie, e vestiu uma camisa de malha. Pensou em botar a

calcinha, mas então concluiu: por que se dar ao trabalho? Eram oito da noite — cedo demais para

Rose estar em casa e lhe passar outro sermão. Provavelmente era o bundão do apartamento ao

lado vindo mandar que ela abaixasse a música.

Desligou as luzes e abriu a porta, olhos inflamados, preparada para mandar alguém para

aquele lugar, e viu o namorado de Rose parado diante dela.

— Rose? — perguntou ele franzindo os olhos para ela em meio à escuridão.

Maggie soltou uma gargalhada — inicialmente uma risadinha curta, mas a gargalhada

continuou subindo por sua garganta como veneno, como um vômito. Ela não era Rose. Ela

jamais seria Rose. Ela carecia das capacidades de sua irmã, do sucesso fácil de sua irmã. Ela

jamais ofereceria conselhos, jamais iria censurar e estabelecer regras e oferece-ria compaixão sem

valor imiscuída de impaciência. Rose. Rá! Ela jogou a cabeça para trás e deixou a gargalhada vir.

— Nem de perto — respondeu finalmente.

Ele olhou-a dos pés à cabeça, os olhos demorando-se nas botas, nas coxas nuas, nos

seios.

— Rose está em casa? — perguntou.

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Maggie balançou a cabeça negativamente e abriu um sorriso safado. Um plano se formava

em seu cérebro. Vingança, pensou, o sangue martelando suas têmporas. Vingança.

— Você não gostaria de entrar e esperar por ela? — perguntou. Jim olhou para ela, olhos

lambendo-a da cabeça aos pés, e Maggie pratica-mente podia ler sua mente. Ela era Rose, só que

melhorada, desenvolvida, aperfeiçoada digitalmente; Rose, só que mil vezes melhor.

Ele fez que não com a cabeça. Maggie encostou-se atrevida na verga da porta.

— Deixe-me adivinhar — disse ela num tom provocante. — Você está enjoado de carne

moída e louco por um bom filé.

Jim balançou a cabeça novamente, ainda fitando-a.

— Ou talvez queira nós duas — disse Maggie. — É isso que você quer? Um sanduíche de

irmãs?

Ele a fitou, tentando parecer ultrajado, mas Maggie percebeu, pela expressão que

relampejou no rosto dele, quanto ele achou essa idéia interessante.

— Bem, você vai ter de esperar — disse Maggie. — Não tem mais ninguém em casa além

de euzinha. — Ela segurou a bainha de sua camisa de malha e a puxou para cima, tirando-a pela

cabeça, arqueando as costas de modo a fazer seus seios praticamente roçarem o peito dele. Ele

gemeu. Ela deu um passo curto para a frente, reduzindo a distância entre eles. As mãos dele

seguraram os seios dela, e ela estava chupando o pescoço dele com uma boca quente e ávida.

— Não — sussurrou ele, embora seus braços ainda a estivessem envolvendo.

— Não — disse ela, e o envolveu com uma perna nua, pressionando-se contra ele.

— Não o quê?

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E agora ela levantou outra perna de modo que estava enrascada em torno dele como uma

serpente, e ele gemeu enquanto a levantava nos braços e a carregava para dentro.

— Não me diga não.

Já eram quase nove da noite quando Rose voltou ao seu prédio. O elevador estava lotado

e Rose espremeu-se no último pedaço de espaço disponível e tentou ignorar o perfume sufocante

da mulher ao seu lado.

— Eu juro, ou estou ficando maluca ou tem um cachorro neste prédio — anunciou a

mulher para todos no elevador.

Rose olhou para os pés.

— Eu não consigo imaginar quem teria o descaramento de ter um bicho de estimação

aqui — prosseguiu a mulher. — Tem pessoas que sofrem de alergias terríveis.

Rose olhou desesperadamente para o indicador de andar. Terceiro andar. Faltavam treze.

— Tem gente que é inacreditável — continuou a mulher. — Elas simplesmente não se

importam com os outros! E se você disser para elas que existem regulamentos, elas vão falar:

"Ora, esses regulamentos são para outras pessoas, não para mim, porque eu sou especial".

Finalmente, a mulher de perfume forte saiu do elevador e Rose chegou ao seu andar.

Caminhando pelo corredor, torceu para que a irmã estivesse em casa e começou a ensaiar seu

discurso. Maggie, nós precisamos conversar sobre algumas coisas sérias. A cachorra precisa

ir embora. Os telefonemas precisam parar. Eu preciso do meu apartamento de volta. Eu

preciso dos meus sapatos de volta. Eu preciso da minha vida de volta.

Girou a chave, abriu a porta e entrou na escuridão densa. Escutou vozes, uma risadinha, o

ganido da cadelinha.

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— Maggie? — chamou Rose. Havia uma gravata jogada no sofá. Que maravilha, pensou

desolada. Agora ela está trazendo homens para o meu apartamento. E fazendo só Deus sabe o

quê com eles na minha cama. — Maggie! — gritou ela, e caminhou até o quarto. E ali estava sua

irmã, na cama, vestida com mais nada além das botas Via Spiga que Rose acabara de comprar,

debaixo de um Jim Danvers pelado.

— Ah, não — disse Rose. Ela ficou de pé parada, olhando para aquilo, tentando

compreender o que estava vendo. — Não — sussurrou ela, Maggie saiu de baixo de Jim e se

espreguiçou, permitindo à sua irmã uma visão demorada das costas delgadas, bundinha perfeita, e

pernas lisas emergindo das botas de couro preto, antes de pegar a camiseta de Jim no chão, vesti-

la, e marchar para fora do quarto, para o corredor, como se estivesse numa passarela, como se

houvesse uma platéia de milhares de pessoas, com flashes e blocos de anotações todos esperando

por ela. Jim lançou um olhar envergonhado para Rose e puxou os lençóis sobre seu corpo.

Rose cobriu a boca com ambas as mãos, virou-se e correu para o banheiro, onde vomitou

na pia, Deixou a água correr até que todos os restos de seu almoço tivessem descido pelo cano.

Então ela jogou água no rosto, penteou os cabelos com mãos molhadas e trêmulas, e retornou

para o quarto. Jim agora estava de cuecas, e vestia apressadamente o resto de suas roupas. Rose

viu o aparelho dental dele reluzindo na mesinha de cabeceira dela.

— Saia — disse ela.

— Rose — disse ele, e tentou segurar as mãos dela.

— Saia e leve ela com você. Não quero ver nenhum de vocês nunca mais em minha vida.

— Rose — disse ele.

— Saia! Saia! Saia! — Ela podia ouvir sua voz transformando-se em um grito agudo. Ela

procurou alguma coisa para jogar nele — um abajur, uma vela, um livro. Sua mão pegou uma

garrafa de óleo de massagem aromatizado com sândalo. Aberta. Sem tampa. Recém-usada, sem

dúvida, e comprada com o cartão de crédito de Maggie, outra conta que sua irmã não pagaria

nunca. Ela o arremessou nele com toda força, lamentando não ser de vidro, para que quebrasse e

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o cortasse. Em vez disso a garrafa quicou de seu ombro sem causar danos e rolou no chão,

derramando o óleo enquanto rolava para debaixo da cama

— Sinto muito — murmurou Jim, sem conseguir olhá-la nos olhos.

— "Sinto muito" — repetiu Rose com escárnio. — Ah, você sente muito, é? E isso deixa

tudo bem? — Ela olhou para ele, tremendo. — Como você pôde? Como pôde?

Saiu correndo para a sala de estar, onde Maggie estava sentada no sofá, zapeando os

canais da tevê, e entrou na cozinha. Pegou um saco de lixo e começou a enfiar nele tudo que

encontrava que pertencesse a um deles. Pegou o isqueiro e os cigarros de Maggie na mesinha de

centro e os enfiou no saco. Pegou a maleta de Jim e bateu-a contra a parede com toda a força que

conseguiu, ouvindo com satisfação o som de alguma coisa quebrar dentro dela. Foi até o

banheiro e pegou as meias e sutiãs de Maggie, farrapos de cetim sintético pretos e creme, que

estavam dependurados no varal da cortina de banheiro, e enfiou-os também no saco de lixo. De

volta ao quarto, Jim estava vestindo as calças. Rose ignorou-o e pegou o livro de Maggie,

Cinqüenta grandes currículos. O esmalte e o removedor de esmalte de Maggie, seus tubos, latas

e potes de blush, base, rímel e creme de cabelo, suas blusas minúsculas, a calça jeans apertada e a

bota Doc Martens.

— Vá embora, vá embora, vá embora — murmurou Rose, puxando o saco de lixo atrás

de si.

— Falando sozinha, Rose Posuda? — perguntou Maggie. As palavras eram frias como

gelo, mas a voz de Maggie estava trêmula. — Você não devia fazer isso. Te faz parecer maluca.

Rose pegou um tênis e o arremessou contra a cabeça da irmã. Maggie se esquivou. O

tênis bateu na parede e caiu no chão.

— Saia da minha casa — disse Rose. — Você não é bem-vinda.

Maggie soltou um pio.

— Não sou bem-vinda? Bem, isso não é tão ruim assim.

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Ela marchou para o banheiro, ofegando, suando. Rose puxou a bolsa para o seu quarto.

Jim tinha vestido suas roupas, mas seus pés ainda estavam descalços.

— Acho que não vai adiantar nada dizer que sinto muito. — A expressão de Jim mudara

de ferido para meramente acanhado.

— Guarde isso para alguém que se importa — rosnou Rose.

— Bem, eu quero dizer de qualquer jeito. — Pigarreou. — Sinto muito, Rose. Você

merece coisa melhor.

— Babaca — disse ela, num tom seco que a surpreendeu e a assustou, e lembrou outra

pessoa, de muitos, muitos anos atrás. Sentiu como se isto tudo estivesse acontecendo a uma

grande distância, ou a outra pessoa. — Com a minha irmã. Minha irmã.

— Sinto muito — repetiu Jim.

Maggie, que agora estava parada no corredor com a mão na cintura. e que se vestira numa

calça jeans pintada e numa blusa com alças finas como espaguete, não disse nada.

— Você sabe qual é a parte realmente patética? Eu poderia ter te amado. E Maggie nem

vai lembrar o seu nome — disse ela a Jim. Ela sentiu as palavras, palavras odiosamente proibidas,

palavras que ela jamais pronunciara antes, borbulharem em seu peito. Ela pensou que talvez

devesse tentar detê-los, e então pensou, por quê? Por acaso os dois tinham tentado deter a si

mesmos? — Entenda, Maggie é muito bonita, mas não é muito inteligente. — Ela se virou,

lentamente, colocando os cabelos atrás das orelhas. — Na verdade, Jim, se eu fosse uma mulher

de apostas, eu diria que ela nem consegue soletrar o seu nome. Mesmo tendo apenas três letras

— disse ela, mostrando três dedos. — É, ela não consegue. Quer perguntar a ela? Hein? Ei,

Maggie, quer tentar soletrar o nome do Jim?

De trás dela, ela ouviu Maggie arfar.

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— Você é um babaca — continuou no mesmo tom, voltando-se para Jim, fuzilando-o

com os olhos. — E você — disse ela, virando-se para olhar novamente para a irmã. O rosto de

Maggie estava pálido, seus olhos enormes. — E você... eu sempre soube que você não tinha

cérebro. Mas agora eu sei que também não tem coração.

— Porca gorda — murmurou Maggie.

Rose riu. Ela largou o saco de lixo e riu. Ela riu até que lágrimas começaram a brotar dos

cantos dos seus olhos.

— Está louca — disse Maggie alto.

— Porca... gorda... — Rose arfou. E apontando para Jim, disse: — Meu Deus, você é um

traidor, e você... — Apontou para Maggie, procurando pela palavra certa. — E você... é minha

irmã — disse finalmente. — Minha irmã. E a pior coisa que pode dizer de mim é me chamar de

"porca gorda"?

Ela levantou o saco, girou-o, deu um nó, e jogou-o com toda força no chão.

— Saiam daqui, vocês dois — disse ela. — Nunca mais quero ver nenhum de vocês.

Rose passou a maior parte da noite de gatinhas, esfregando o chão, tentando remover de

seu apartamento cada resíduo de Maggie e Jim. Ela tirou os lençóis, cobertores e fronhas de

travesseiro da cama, arrastou-os para a lavanderia e colocou-os de molho em duas xícaras de

detergente. Lavou o chão da cozinha e do banheiro com desinfetante e água quente. Passou pano

de chão no soalho de madeira de lei da sala de estar, do quarto e do corredor. Esfregou a

banheira com desinfetante, e depois esfregou as paredes de azulejo do banheiro com um spray

antibacteriano e antifúngico. A cachorrinha ficou olhando durante algum tempo, seguindo-a de

cômodo em cômodo, como se Rose fosse a nova faxineira e a cachorra, uma matrona

desdenhosa, e então bocejou e retomou seu cochilo no sofá. Às quatro da manhã, a cabeça de

Rose ainda estava girando, e a única coisa que podia ver claramente ao fechar os olhos era a

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imagem de sua irmã, com suas botas novas, subindo e descendo o corpo por cima de Jim, deitado

na cama com uma expressão extasiada no rosto.

Ela vestiu uma camisola limpa, foi para a cama e — com um movimento zangado dos

pulsos — puxou os lençóis limpos até o queixo. Então fechou os olhos, ofegando. Pensou que

conseguiria cansar-se até apagar. Pensou que conseguiria dormir.

Em vez disso, cerrou os olhos e mergulhou de cabeça na lembrança que ela sabia que

estava lá, oculta, de tocaia e esperando por ela. A lembrança da pior noite de sua vida, que

também foi estrelada por Maggie.

Era meados de maio, e devido a uma reunião dos professores, mal tinha passado do

meio-dia quando a escola dispensou os alunos. Rose havia retirado seus livros do armário e

encontrado Maggie diante da sala da turma do primeiro ano, e verificou se sua irmã também

estava com sua mochila. Ela também segurava um papel cor-de-rosa familiar numa das mãos.

— De novo? — indagou Rose, e tomou de Maggie o bilhete da professora. Ela o leu

enquanto a irmã caminhava à sua frente, em direção à trilha atrás da escola primária que

conduziria à sua casa.

— Maggie, você não pode morder as pessoas — asseverou Rose.

— Foi ela que começou — retrucou, emburrada, a irmã.

— Isso não importa. Lembra o que a mamãe disse? Você precisa aprender a usar suas

palavras.

Rose apertou o passo para alcançar a irmã, ofegando levemente devido ao peso de sua

mochila.

— Sangrou? — perguntou a Maggie. Maggie fez que sim com a cabeça.

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— Eu podia ter arrancado com os dentes — vangloriou-se Maggie. — Se a Srta. Burdick

não estivesse olhando.

— Por que você haveria de querer arrancar o nariz de alguém com os dentes?

Maggie premeu ainda mais forte os lábios.

— Ela me deixou zangada.

Rose balançou a cabeça.

— Maggie, Maggie — disse Rose, do jeito que ouvira a mãe falando. — O que vamos

fazer com você?

Maggie revirou os olhos, e então olhou para a irmã.

— Vou ficar de castigo?

— Não sei.

Maggie comprimiu os lábios.

— Hoje tem a festa do pijama da Megan Sullivan.

Rose deu de ombros. Ela já sabia a respeito da festa do pijama. Maggie estava com sua

malinha cor-de-rosa da Barbie pronta há dias.

— Pegou algum livro na biblioteca? — perguntou Rose.

Maggie fez que sim e tirou Boa-noite, Lua da mochila.

— Esse é um livro para crianças bem pequenas — disse Rose.

Maggie olhou de cara feia para a irmã. Era verdade, mas ela não se importava.

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— "Boa noite, luvas na cadeira. Boa noite, pessoas, em toda parte" — sussurrou, e

começou a dar saltinhos pela trilha.

A trilha terminou atrás do quintal dos McIlheney. Rose e Maggie passaram ao largo da

piscina, cruzaram o jardim da frente dos McIlheney e em seguida atravessaram a rua até sua casa,

que era igual à dos McIlheney — na verdade, igual a cada outra casa da rua. Dois pavimentos,

três quartos, tijolos vermelhos aparentes, cortinas pretas, quintais gramados, como casas no livro

de colorir de uma criança.

— Espera aí! — gritou Rose, enquanto Maggie saltitava pela rua e corria pelo caminho de

cascalho que conduzia até a porta da frente da casa. — Você não pode atravessar a rua sozinha!

Você deve segurar minha mão.

Maggie ignorou-a, correndo na frente, fingindo que não estava escutando.

— Mamãe! — gritou Maggie, colocando sua chave no balcão da cozinha e cheirando para

saber o que havia para o almoço. — Ei, mamãe! Chegamos!

Rose passou pela porta da frente e colocou a mochila no chão. A casa estava silenciosa, e

ela percebeu, antes mesmo que Maggie lhe dissesse, que a mãe não estava em casa.

— O carro dela não está aqui! — informou, ofegante, Maggie. — E eu olhei debaixo do

ímã de maçã e não tem bilhete.

— Talvez ela tenha esquecido que hoje a gente ia ser dispensada cedo — disse Rose.

Exceto que ela havia lembrado isso à mãe naquela manhã, entrando sorrateiramente no quarto

escuro, sussurrando Mamãe? Ei, mamãe? A mãe assentira com a cabeça quando Rose

comunicou que elas chegariam cedo em casa, mas não abrira os olhos. Seja uma boa menina,

Rose, dissera a mãe. Cuide de sua irmã. Era a mesma coisa que ela dizia todas as manhãs —

quando dizia alguma coisa.

— Não se preocupe — disse Rose. — Ela vai voltar até as três. — Maggie pareceu

preocupada. Rose segurou a mão dela. — Vamos, vou fazer seu almoço.

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Rose fizera ovos, o que era bom, embora isso fosse supostamente errado, porque ela não

tinha permissão de acender o forno.

— Não se preocupe — disse a Maggie. — Você pode conferir depois se eu apaguei

mesmo.

A essa altura já era uma e meia da tarde. Maggie queria atravessar o jardim dos fundos

para brincar na casa de sua amiga Natalie, mas Rose achou que seria muito melhor se elas

ficassem e, casa e esperassem a mãe voltar. Assim, sentaram-se na frente da televisão e passaram

meia hora assistindo a desenhos do Faísca e Fumaça (escolha da Maggie) e depois Vila Sésamo

(escolha da Rose).

Às três da tarde a mãe ainda não chegara em casa.

— Ela deve ter esquecido, só isso — disse Rose, mas agora também ela começava a se

preocupar. No dia anterior ela ouvira sua mãe ao telefone.

— Sim! — gritara a mãe com alguém. — Sim! — Rose caminhara na ponta dos pés até a

porta fechada do quarto e pressionara a orelha contra ela. Fazia meses desde que não ouvia a mãe

falar de uma forma que não fosse por murmúrios, entorpecida pelos medicamentos. Mas agora

ela estava gritando, cada palavra alta e clara. — Eu. Estou. Tomando. Meus. Remédios — dissera

a mãe. — Pelo amor de Deus, não me enche a paciência! Me deixa em paz! Estou bem! Bem!

Rose fechou os olhos. Sua mãe não estava bem. Ela sabia disso, e seu pai sabia disso, e

provavelmente a pessoa com que sua mãe estava gritando também sabia.

— Está tudo bem — repetiu para a irmã. — Você consegue achar a caderneta de

telefones vermelha da mamãe? Precisamos ligar para o papai.

— Por quê?

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— Apenas ache, tá? Maggie voltou correndo com a caderneta. Rose encontrou o telefone

do trabalho do pai e discou com cuidado.

— Por favor, posso falar com o Sr. Feller? — pediu, numa voz pelo menos uma oitava

acima de seu tom habitualmente rouco.—Aqui é a filha dele, Rose Feller. — Ela esperou, face

imóvel, telefone pressionado contra a orelha, sua irmãzinha de pé ao seu lado. — Ah, entendo.

Tudo bem. Não. Apenas diga a ele que a gente se vê mais tarde. Obrigada. Certo. Tchau.

Ela desligou o telefone.

— O quê? — perguntou Maggie. — O quê?

— Ele está fora — disse Rose. — A mulher não sabia dizer a que horas ele vai voltar.

— Mas ele vai estar em casa na hora do jantar, não é? — perguntou Maggie, voz ficando

mais e mais aguda até terminar num grasnado. Estava com a face pálida, os olhos enormes, como

se a perspectiva de ter ambos os pais desaparecidos fosse demais para ela agüentar. — Não é?

— Mas é claro — disse Rose, e então fez uma coisa que comunicou a Maggie que

realmente havia alguma coisa a temer: ela deu à irmã o controle remoto e saiu da sala.

Maggie foi atrás de Rose.

— Me deixa — disse Rose. — Preciso pensar.

— Também posso pensar — disse Maggie. — Posso te ajudar a pensar.

Rose tirou os óculos e os limpou na barra da saia.

— Então vamos ver se está faltando alguma coisa.

— Como uma mala?

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— Isso.

As meninas subiram correndo as escadas, abriram a porta do quarto dos pais e olharam

dentro dele. Rose se preparou para a bagunça costumeira: lençóis embolados, travesseiros no

chão, uma coleção de copos cheios até a metade e torradas comidas pela metade na mesinha de

cabeceira. Mas a cama estava arrumada. Todas as gavetas da penteadeira estavam fechadas. Na

mesinha de cabeceira, Rose encontrou um par de brincos, uma pulseira, um relógio e um anel de

ouro simples. Sentiu um arrepio, e então enfiou o anel no bolso antes que Maggie o visse, e

pudesse iniciar perguntas sobre por que a mãe limpara seu quarto e tirara a aliança de casamento.

— A mala está aqui! — anunciou Maggie, saltando alegremente do armário.

— Bom — disse Rose, com lábios que pareciam congelados. Ela teria de ligar novamente

para o pai e dizer a ele o que havia achado, assim que conseguisse ocupar a irmã com alguma

outra coisa. — Vamos — disse ela, e conduziu Maggie para fora do quarto e de volta para o

térreo.

Maggie distraía-se abrindo e fechando o lacre da sacola plástica cheia de batatas chips.

Rose olhou para cima para ver as horas no relógio. pela terceira vez em menos de um minuto.

Eram seis horas. Rose estava tentando fingir que tudo estava bem, embora nada estivesse nem

um pouco bem. Ela não conseguira falar com o pai pelo telefone, e a mãe ainda não estava em

casa. Mesmo se a mãe tivesse se esquecido de que as crianças sairiam mais cedo da escola, deveria

estar de volta às três e meia.

Pense!, disse mentalmente Rose a si mesma, enquanto sua irmã esfarelava as batatas,

reduzindo-as a pedaços pequenos e em seguida a pó. Ela já tinha para si que a mãe mais uma vez

havia ido para LÁ. Ela e Maggie não deviam saber sobre LÁ — sobre onde era, sobre o que a

mãe fora fazer LÁ. Mas Rose sabia. No verão passado, depois que a mãe retornara de LÁ, Maggie

viera lhe mostrar uma brochura amassada.

— O que diz isto? — perguntara Maggie.

Rose lera cuidadosamente.

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— "Instituto de Viver" — dissera, olhando para o desenho: um par de palmas em concha

segurando os rostos de uma mulher, um homem, uma criança.

— O que significa isto

— Eu não sei — dissera Rose. — Onde você achou?

— Na mala da mamãe.

Rose não perguntara por que Maggie estivem xeretando a mala da mãe. Mesmo aos seis

anos, Maggie era uma xereta notória. Algumas semanas depois, Rose estava no carro dos Schoen,

voltando para casa de uma excursão da escola hebraica, quando eles passaram por uma série de

prédios com um letreiro na frente, e o letreiro ostentava o mesmo desenho que a brochura:

mesmos rostos, mesmas mãos em concha

— O que é aquilo? — perguntara, tentando parecer natural, porque o carro passara tão

depressa pelo letreiro que ela não conseguira vê-lo direito.

Steven Schoen soltara um risinho

— É a casa dos doidos — dissera, e a mãe dele virara-se tão depressa para ele que seus

cabelos tinham chicoteado suas faces, e Rose sentiu o cheiro de sua água-de-colônia.

— Steven! — ralhara a mãe do garoto. Em seguida ela se virará para Rose e dissera numa

voz macia: — Aquele é um lugar chamado Instituto do Viver — explicara. — É um tipo especial

de hospital para pessoas que precisam de ajuda com seus sentimentos.

Então ali é que era LÁ. Rose não estava tão surpresa, porque qualquer um podia ver que a

mãe precisava de algum tipo de ajuda. Mas onde ela estava agora? Teria voltado para LÁ?

Rose olhou novamente para o relógio. Seis e cinco. Ligou mais uma vez para o trabalho

do pai, mas o telefone tocou sem que ninguém atendesse. Desligou o telefone e entrou na sala,

onde Maggie agora estava sentada no sofá, olhando pela janela. Ela sentou-se ao lado da irmã.

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— A culpa é minha? — sussurrou Maggie.

— O quê?

— A culpa é minha por ela ter ido embora? Ela ficou zangada comigo porque arrumo

problemas na escola?

— Não, não — respondeu Rose. — A culpa não é sua. Ela não foi embora. Ela deve ter

ficado apenas confusa, ou algo assim, ou talvez tenha tido algum problema com o carro. Podem

ter sido milhares de coisas! — Porém, mesmo enquanto acalmava Maggie, Rose enfiou a mão no

bolso para sentir a aliança de ouro fria. — Não se preocupe.

— Estou com medo — sussurrou Maggie.

— Eu sei — disse Rose. — Eu também.

Ficaram sentadas no sofá, lado a lado, enquanto o sol se punha, esperando.

Michael Feller estacionou diante da casa logo depois das sete da noite. Rose e Maggie

saíram correndo pela porta para recebê-lo.

— Papai, papai! — disse Maggie, agarrando-se nas pernas do pai. — Mamãe não está

aqui! Ela foi embora! Ela não voltou!

Michael virou-se para a irmã mais velha.

— Rose? O que está acontecendo?

— Chegamos mais cedo da escola... hoje é dia de reunião dos professores, semana

passada eu trouxe um comunicado para casa a respeito disso...

— Ela não deixou bilhete? — perguntou o pai, caminhando para a cozinha tão rápido

que Rose e Maggie tiveram de correr para alcançá-lo.

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— Não — respondeu Rose.

— Onde ela está? — indagou Maggie. — Você sabe?

O pai fez que não com a cabeça e pegou a caderneta vermelha e o telefone.

— Não se preocupem. Tenho certeza de que não temos motivos para nos preocupar.

Meia-noite. Rose fizera Maggie comer um pouco de macarrão com atum e tentara fazer o

pai comer um pouco também, mas ele recusara e continuara curvado diante do telefone, dando

telefonemas e mais telefonemas. Às dez da noite ele notara que as duas ainda estavam acordadas

e mandara que vestissem seus pijamas e fossem para suas camas, esquecendo-se de mandá-las

lavar os rostos ou escovar os dentes.

— Vão dormir — ordenara ele.

Durante as duas últimas horas elas haviam ficado deitadas lado a lado na cama de Rose

com os olhos bem abertos na escuridão. Rose contara histórias a Maggie — Cinderela — a gata

borralheira, Chapeuzinho Vermelho, e a história da princesa com chinelas encantadas que havia

dançado sem parar.

A campainha tocou. Rose e Maggie sentaram-se na cama exatamente no mesmo instante.

— A gente devia ir ver — disse Maggie.

— Pode ser ela — disse Rose.

Deram-se as mãos enquanto desciam correndo a escadaria com os pés descalços. O pai já

estava na porta, e Rose percebeu, sem ouvir nem mesmo escutar uma palavra do que era dito,

que alguma coisa muito ruim havia acontecido, que sua mãe não estava bem, que nada, nunca

mais, estaria bem novamente.

Um homem alto estava na porta, um homem de uniforme verde e chapéu marrom de aba

larga.

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— Sr. Feller? — perguntou o homem. — Esta é a residência de Caroline Feller?

O pai engolira em seco e fizera que sim. O chapéu do homem alto gotejava água de chuva

no chão.

— Sinto dizer que trago más notícias, senhor.

— Você achou a nossa mãe? — perguntou Maggie numa voz pequenina e sufocada.

O policial rodoviário olhou com tristeza para elas. Seu cinto de couro rangeu quando ele

colocou uma das mãos no ombro do pai das meninas. Gotas de chuva caíram nos pés descalços

de Maggie e Rose. Ele baixou os olhos para as meninas, e então olhou de volta para o pai.

— Acho que devemos conversar em particular, senhor — disse ele. E Michael Feller,

ombros curvados, rosto desabado, conduziu o policial rodoviário até um canto.

E depois disso...

Depois disso foi o pai delas com seu rosto fechado. Depois disso foi "acidente de carro",

e empacotar a casa toda em Connecticut, deixar a escola, a casa, os amigos, a rua. O pai juntou as

coisas da mãe em caixas destinadas ao Exército da Salvação, e Rose, Maggie e o pai embarcaram

num caminhão de mudança e seguiram para Nova Jersey.

— Para começar de novo — dissera o pai. Como se isso pudesse acontecer. Como se o

passado fosse uma coisa que pudesse ser deixada para trás como um papel de bala ou um par de

sapatos que já não cabe em você.

Em sua cama na Filadélfia, Rose sentou-se na escuridão, sabendo que não conseguiria

dormir naquela noite. Recordou o funeral. Recordou o vestido azul-marinho que usara,

comprado para o primeiro dia de escola, nove meses antes, e como já estava curto, fazendo o

elástico das mangas bufantes deixarem marcas vermelhas em seus braços. Lembrou-se da

expressão do pai diante da sepultura, uma expressão remota e distante. E lembrou-se da mulher

mais velha com cabelos castanho-avermelhados, sentada no fundo da funerária, chorando

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baixinho num lenço. A avó. Que fim levara ela? Rose não sabia. Depois do funeral eles mal

haviam falado sobre sua avó, ou sobre sua mãe. Eles agora viviam muito longe do policial com o

chapéu cheio de chuva, e do quintal no qual ele estacionara seu carro-patrulha, com as luzes azuis

ainda piscando mudas na escuridão, e da estrada que o levara até a casa deles. A estrada molhada

e escorregadia com suas inúmeras curvas, sinuosa e traiçoeira como uma serpente negra. Elas

tinham ido para muito longe da estrada, e da casa, e do cemitério onde a mãe estava sepultada,

sob um cobertor de terra e uma lápide que tinha seu nome, os anos de seu nascimento e morte, e

as palavras Esposa e Mãe Dedicada cinzeladas. E Rose jamais voltara lá.

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PARTE DOIS

Reforço de Aprendizado

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—24 24 24 24 —

la precisava, pensou Maggie Feller, era de um plano. Estava sentada

num banco dentro da Thirtieth Street Station, um recinto grande e de

aspecto cavernoso, entulhado com jornais velhos e embalagens de fast-

food, fedendo a graxa, suor e casacos de inverno. Era quase meia-noite. Mães de aparência

oprimida arrastavam os filhos pelos braços. Mendigos dormiam espalhados nos bancos de

madeira. Eu poderia ser um deles, pensou Maggie, o pânico crescendo em seu íntimo.

Pense!, disse ela a si mesma. Ela tinha um saco de lixo cheio de tralhas, mais sua bolsa,

sua mochila, e duzentos dólares, duas notas novinhas de cem dólares que Jim lhe dera antes que

ela saltasse de seu carro. Posso ajudar você?, perguntara ele, de forma até gentil, e ela estendera a

mão sem fitar seus olhos.

— Eu quero duzentos dólares — dissera-lhe Maggie. — Esse é o meu cachê habitual. —

Ele havia retirado o dinheiro da carteira sem uma única palavra de protesto.

— Sinto muito — dissera Jim. Mas pelo que ele sentia muito? E a quem ele estava

pedindo desculpas? Não a ela, disso Maggie tinha certeza. Ela precisava agora era de um lugar

para ficar... e depois de um novo emprego.

Rose estava fora de questão. Seu pai também. Maggie sentiu um arrepio só de pensar em

arrastar suas malas pelo gramado enquanto o cachorro idiota latia, imaginava a expressão de

compaixão falsa e desgosto mal disfarçado de Sydelle ao abrir a porta, e como seus olhos diriam.

Isto é exatamente o que nós esperávamos de você, mesmo se sua boca dissesse outra coisa.

Sydelle iria querer detalhes, iria querer saber o que acontecera com Rose e com seu trabalho.

Sydelle iria alfinetá-la com dúzias de perguntas, e o pai ficaria sentado ali perto, olhos anuviados e

derrotados, sem dar um pio.

E

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E quais eram suas opções? Maggie não conseguia se ver num abrigo. Todas aquelas

mulheres, todas aquelas vidas fracassadas. Ela não era assim. Ela não havia fracassado. Não

daquele jeito. Ela era uma estrela, só que ninguém via isso!

Você não é uma estrela, sussurrou uma voz em sua cabeça, e a voz parecia com a voz de

Rose, só que mais fria que a voz de Rose. Você não é uma estrela, é uma piranha, uma piranha

burra. Você não consegue nem operar uma caixa registradora! Você não consegue nem

controlar o seu orçamento! Despejada! Praticamente uma mendiga! E dormiu com o meu

namorado!

Pense, pensou Maggie furiosamente, tentando afogar a voz. O que ela possuía? Seu

corpo. E só. Jim dera-lhe os duzentos dólares com facilidade. Havia homens que pagariam para

dormir com ela, e homens que pagariam para vê-la dançar pelada. E pelo menos isso se

enquadrava na industriado entretenimento. E muitas estrelas em ascensão antes dela tinham feito

essas coisas como um último recurso.

"Tudo bem", pensou Maggie, segurando com mais força o saco de lixo enquanto o

mendigo a dois bancos atrás dela gemia em seu sono. Strip-tease. Tudo bem. Não era o fim do

mundo. Mas isso não resolveria o problema de onde ela ficaria. Era janeiro, a época mais fria do

inverno. Ela tinha planejado pegar um trem para Trenton, e depois outro para Nova York. Mas

ela não conseguiria chegar lá ale as duas da manhã, e então o que faria? Para onde iria?

Levantou-se, segurando sua mochila com força numa das mãos e seu saco de lixo na

outra, e forçou a vista para enxergar o painel de trânsito de Nova Jersey e os nomes das cidades

para onde os trens iriam: Rahway. Westfield. Matawan. Metuchen. Red Bank. Little Silver. Essa aí

parecia agradável, mas e se não fosse? Newark. Grande demais. Elizabeth... o alvo das piadas de

Nova Jersey. Brick... eca. Princeton.

Maggie visitara Rose em Princeton algumas vezes, aos 16 e 17 anos. Fechando os olhos,

Maggie pôde ver a cidade: edifícios de pedras cinzentas, cobertos de heras, com gárgulas

espreitando dos peitoris. Lembrou-se dos dormitórios com lareiras e sofás-camas, e das janelas de

vidro cobertas por persianas. Lembrou-se das salas de aula imensas e cheias de mesas de estudo

em madeira. Lembrou-se de uma festa no porão, com um barril de cerveja num canto. Lembrou-

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se do quanto a biblioteca parecia grande... com três pavimentos acima da superfície mais três no

subsolo, cada um amplo como um campo de futebol. O cheiro de madeira queimando e folhas

caídas, cachecol vermelho de lã emprestado enrolado no pescoço, percorrendo um dos caminhos

calçados com pedras até uma festa, sabendo que jamais seria capaz de encontrar sozinha o

caminho de volta, porque as trilhas eram muitas e todos os prédios pareciam idênticos.

— É muito fácil se perder aqui — dissera-lhe Rose, para que ela não se sentisse mal. —

Eu me perdi muitas vezes quando era caloura.

Talvez ela pudesse se perder lá agora. Ela pegaria um trem para Trenton e depois seguiria

para Princeton, e ficaria lá durante alguns dias, integrando-se ao local. Todo mundo sempre dizia

que ela parecia mais nova do que era, e ela tinha uma mochila, símbolo universal dos estudantes.

— Princenton — disse em voz alta, e caminhou até o guichê, onde pagou sete dólares por

uma passagem de ida.

Sempre quis voltar à faculdade, pensou, subindo a rampa para os trens. Portanto, e daí se

esta não era a forma mais normal de fazer isso? Desde quando ela, Maggie Feller, era uma garota

normal?

Às duas da manhã Maggie atravessou o campus escurecido da Universidade de

Princenton. Os músculos dos ombros latejavam devido ao peso da mochila, e ela mal sentia suas

mãos de tanto puxar o saco de lixo cheio de roupas, mas tentou caminhar depressa enquanto se

juntava aos estudantes que caminhavam ao longo da calçada, com a coluna reta e o queixo

erguido, como se soubesse exatamente para onde estava indo.

Saltara do trem na estação de baldeação de Princeton, no meio de um estacionamento

imenso, com lâmpadas halogênias brilhando frias na noite. Num instante de pânico, ela se virou

e, com efeito, lá havia estudantes — ou pelo menos pessoas que pareciam estudantes — fluindo

pela plataforma até uma passagem subterrânea sob a linha do trem. Maggie seguiu-os até o outro

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lado, onde mais um trem, bem menor, aguardava. Comprou uma passagem para o trem, e dois

minutos depois chegou ao campus.

Enquanto subia a ladeira, analisou rápida e cuidadosamente seus companheiros de viagem

— jovens voltando do recesso de fim de ano, deduziu, a julgar pelas conversas e pela quantidade

de bagagem. Evidentemente, cuidar da aparência não era prioridade para essas mulheres, ao passo

que comprar roupas nas lojas de departamento Abercrombie & Fitch era. Nenhuma delas usava

mais do que brilho nos lábios, e vestiam alguma versão de jeans desbotado, suéteres, casacos bege

e camadas e camadas de chapéus, cachecóis, luvas e botas de inverno. Bem, isso explica Rose,

pensou, e começou a eliminar mentalmente algumas peças de seu guarda-roupa. Blusas

minúsculas, não. Calças de couro, provavelmente não. Suéter de caxemira? Certamente, se tivesse

um, pensou, c estremeceu quando uma lufada de vento frio beijou seu pescoço nu. Precisaria de

um cachecol. Além disso, também estava precisando de um cigarro, embora nenhuma dessas

garotas estivesse fumando. Talvez porque estava frio demais, mas provavelmente porque

simplesmente não fumavam. Provavelmente porque nenhuma das garotas nos anúncios da

Abercrombie &. Fitch era fumante. Maggie suspirou e se aproximou o máximo que pôde de um

grupo de garotas que tagarelavam; precisava obter informação.

— Eu não sei — disse uma delas, com uma risadinha, enquanto passavam por quadros de

aviso cobertos por folhetos anunciando tudo, desde filmes e shows até violões usados à venda.

— Acho que ele gosta de mim, mas eu dei meu telefone para ele, e até agora, nada.

Então ele não gosta de você, sua panaca, pensou Maggie. Se eles gostam de você, eles te

ligam. Simples assim. E estas são as garotas inteligentes?

— Talvez você deva telefonar para ele — sugeriu uma das amigas.

Claro, pensou Maggie, que não telefonava para um homem desde os treze anos, quando

deixara de passar trotes. E talvez você também deva brandir uma bandeira na frente do

alojamento dele, para o caso de ele não entender.

O grupo parou na frente de um edifício de pedra de quatro andares com uma porta de

madeira pesada. Uma das garotas tirou uma das luvas e digitou um código num painel. A porta se

abriu e Maggie foi atrás delas.

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Estava numa espécie de área comum. Havia meia dúzia de sofás cobertos por um tecido

azul de aparência indestrutível, algumas mesinhas de centro manchadas cobertas por jornais e

revistas, um televisor exibindo A felicidade não se compra — que, na verdade, se compra sim,

pensou Maggie. No fundo havia uma escadaria que, presumivelmente, conduzia a quartos

individuais... e, a julgar pelo barulho que vinha de lá, estavam acontecendo festas. Maggie colocou

suas bolsas no chão e sentiu os dedos formigarem enquanto o sangue voltava para eles. Estou

dentro, pensou, sentindo um triunfo misturado com ansiedade enquanto se preparava para sua

próxima investida.

O grupo de garotas estourou escadaria acima, graciosas como uma manada de elefantes

em suas botas pesadas. Maggie seguiu-as até o banheiro ("Então, se eu ligar para ele, o que vou

dizer?", perguntou a garota que não tinha recebido o telefonema num tom melancólico). Esperou

até elas terem saído, e então jogou água morna no rosto e limpou o que restava de sua

maquiagem. Amarrou o cabelo num rabo-de-cavalo (o penteado preferido de Princeton, pelo que

ela tinha visto até agora), reaplicou desodorante e uma leve borrifada de perfume, e fez um

bochecho com água da pia. Para que a parte seguinte de seu plano funcionasse, ela teria de estar

lindíssima, ou o mais bonita possível depois de tudo pelo que passara.

Então voltou para a área comum e correu os olhos pelo local. Se deixasse o saco de lixo

atrás do sofá, será que alguém iria roubar suas coisas? Não. Todo mundo aqui possuía todas as

roupas que poderiam querer, deduziu Maggie, afundando numa poltrona num canto, enquanto

abraçava os joelhos e observava, e esperava.

Não esperou por muito tempo. Um grupo de rapazes — quatro, talvez cinco, vestindo

suéteres e calças cáqui, falando alto e cheirando a cerveja — passou apressado pelo guarda na

frente da casa, passou por Maggie e seguiu para a escadaria. Maggie os seguiu.

— Ei, olá — disse um dos rapazes, olhando para Maggie como se ela estivesse do outro

lado de um telescópio. — Está indo para onde?

Maggie sorriu.

— Para a festa, respondeu, como se fosse óbvio.

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E com uma das mãos encostada na parede para conseguir se equilibrar, o rapaz sorriu

para Maggie, dizendo que então aquele era o dia de sorte dele.

A festa — e, obviamente, havia uma festa, porque embora esta fosse uma das melhores

universidades do país, ainda era uma universidade, o que significava que sempre havia uma festa

— ficava depois de quatro lances de escadas, no que Maggie deduziu ser uma suíte. Havia uma

sala de estar com sofá e aparelhagem de som, dois quartos com dois beliches cada um, e, entre

eles, uma banheira cheia de gelo com o inevitável barril de cerveja deitado sobre ela.

— Bebe alguma coisa? — ofereceu-lhe um dos rapazes da escadaria — talvez aquele que

havia dito que este era seu dia de sorte, talvez um de seus amigos.

Na penumbra, com todo aquele barulho e o espaço exíguo entre a multidão de corpos, ela

não podia ter certeza; mesmo assim assentiu, inclinando-se até ele e deixando seus lábios roçarem

sua orelha quando murmurou:

— Obrigada.

Quando ele voltou ziguezagueando pela multidão, derramando metade da cerveja no chão

durante o percurso, Maggie já havia se empoleirado num canto do sofá e cruzado suas pernas

compridas.

— Qual é o seu nome? — perguntou ele. Era um rapaz baixo, de feições agradáveis, com

cachos louros que seriam mais adequados a uma menininha de seis anos do que a um

universitário, e uma expressão vigilante, esperta.

Maggie estava preparada para responder àquela pergunta.

— M — disse ela. Durante a viagem de trem Maggie decidira que não seria mais Maggie.

Ela havia fracassado como Maggie, havia fracassado em encontrar a fama e a fortuna. De agora

em diante, ela seria apenas M.

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O cara pareceu intrigado.

— Em? Como a tia Em?

Maggie fez uma careta. E ela lá sabia quem era tia Em?

— Apenas M — respondeu.

— Tudo bem — disse o rapaz, dando de ombros. — Eu ainda não tinha te visto na

universidade. Está fazendo o quê?

— Subterfúgio — disse Maggie.

O cara assentiu como se tivesse entendido. Bem, pensou Maggie, talvez subterfúgio fosse

realmente um curso neste lugar. Ela teria de verificar isso.

— Faço ciências políticas — retrucou o cara, e soltou um sonoro arroto. — Desculpa.

— Tudo bem — disse Maggie, como se achasse gás estomacal a coisa mais fascinante e

encantadora no mundo. — Qual é o seu nome?

— Josh — disse o cara.

— Josh — repetiu Maggie, como se isso também fosse fascinante.

— Quer dançar? — perguntou Josh.

Maggie bebericou sua cerveja com a pose de uma dama e deu-lhe o copo, que ele bebeu

até o último gole. Eles se levantaram, ficaram cara a cara e dançaram... ou melhor, Josh balançou

para a frente e para trás como se o seu corpo estivesse recebendo uma descarga elétrica de baixa

voltagem, enquanto Maggie lentamente encostava os quadris nele.

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— Uau — disse Josh, satisfeito. Ele deslizou as mãos em torno da cintura de Maggie

pressionou-a contra a protuberância na frente de sua calça cáqui. — Você dança muito bem.

Maggie quase riu. Doze anos de aulas de balé, jazz e sapateado, e isto era considerado

dançar bem. Que babaca. Ela empinou a cabeça até ele, mais uma vez mirando seus lábios e sua

respiração em direção à sua orelha, deixando seus lábios roçarem de leve em seu pescoço.

— Podemos ir para um lugar tranqüilo? — perguntou. As palavras levaram um minuto

para serem registradas, mas quando isso aconteceu, os olhos de Josh se acenderam.

— Claro! — disse ele. — Tenho um quarto só para mim.

Bingo, pensou Maggie.

— Primeiro, que tal mais uma cerveja? — perguntou ela, numa voz de menininha.

Ele retornou com duas cervejas e acabou tomando a sua e mais da metade da de Maggie.

Depois abraçou novamente a cintura dela, jogou a mochila sobre o ombro e a conduziu de volta

até a escadaria e o prazer que ele acreditava que o esperava em seu apartamento de solteiro num

dormitório chamado Blair. Blair, recitou Maggie para si mesma, enquanto caminhava e ele

cambaleava. Ela já havia começado a fazer uma lista — os nomes dos lugares, os nomes dos

homens. Ela teria de ser cuida-dosa. Ela teria de ser inteligente. Mais inteligente até do que Rose.

Sobreviver num lugar como este quando você realmente devia estar aqui era uma coisa, mas

sobreviver aqui quando você não devia estar aqui fio merecedor de toda a astúcia, de toda a

habilidade, que a Sra. Fried garantira-lhe, anos atrás, que ela possuía, a despeito do que os testes

diziam.

Josh abriu a porta como um imperador revelando as paredes de cedro e os soalhos de

ouro de seu palácio, e Maggie percebeu que este seria o momento mais complicado. Ela teria de

se preparar para a possibilidade de realmente transar com este cara. Dois homens numa noite,

pensou com tristeza. Não era um precedente que ela quisesse estabelecer.

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O quarto era um pequeno retângulo, entulhado com livros, tênis e roupas sujas, e fedia a

meias suadas e pizza velha.

— Não faça cerimônias — disse Josh, jogando-se na cama e empurrando para o chão um

livro de química, uma garrafa de água, um halter de cinco quilos e O que Maggie considerou ser a

metade fossilizada de um megassanduiche. Ele se espreguiçou e lançou para ela o olhar frio de

um menino que tinha rodos os brinquedos que queria e os quebrava apertas por curtição. —

Venha pro papai.

Em vez disso, Maggie abriu lentamente um sorriso malicioso e sentou-se no chão ao lado

da cama. Com ar de garotinha tímida, enrolou com a ponta de um dos dedos uma mecha de

cabelo.

— Tem alguma coisa para beber? — sussurrou.

— Na mesa — disse Josh, apontando.

Maggie encontrou uma garrafa marrom. Tônica sabor pêssego. Eca. Ela tomou um gole,

tentando não fazer careta ao sentir o gosto de pêssego, e inclinou a cabeça para Josh, desafiando-

o com os olhos. Num estalar de dedos ele estava ao lado de Maggie, lábios frios e levemente

repulsivos encostados nos dela. Maggie moveu a língua dentro da boca de Josh ao ritmo de Cyndi

Lauper cantando "Girls Just Want to Have Fun", que ela estava tocando para si mesma em sua

cabeça, e deixou o líquido grosso escorrer de sua boca para a dele.

"When the working day is done", ouviu Cyndi uivar em sua cabeça, enquanto Josh fitava-

a com um apreço alcoolizado, claramente acreditando que tinha morrido e ido para o céu, ou

pelo menos para a seção pornô de sua vídeo-locadora interna.

Maggie pousou uma de suas mãozinhas no centro do peito de Josh e o empurrou

gentilmente. Ele tombou na cama como uma árvore. Maggie tomou outro gole de tônica e

montou em Josh, esfregando a virilha contra ele, sorrindo. Coragem, disse a si mesma. Curvou-se

para trás sobre suas coxas e tirou a blusa. Os olhos de Josh arregalaram-se

diante da visão dos seios de Maggie à luz tênue que chegava da rua pela janela. Maggie tentou

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colocar-se no lugar de Josh, imaginando o que ele via — uma garota curvilínea e seminua, com

cabelos cascateando nos ombros, pele branca, barriga tanquinho e mamilos castanhos e duros

brilhando para ele.

Ele estendeu os braços até ela. Agora, pensou ela, e virou a garrafa de tônica sabor

pêssego de modo a fazer a bebida escorrer por seus seios, desenhando uma trilha pegajosa até a

cintura de suas calças jeans.

— Oh, meu Deus! — gemeu Josh. — Como você é gostosa!

Josh bufava e arfava, emitindo palavras ininteligíveis enquanto aspirava a pele e a tônica

que a recobria, suas mãos atrapalhando uma à outra enquanto tentavam desesperadamente abrir

as calças de Maggie. Ela tinha apostado que ele estava bêbado demais para abrir os botões de

uma braguilha, e aparentemente ganhara a aposta.

— Espere — sussurrou ela, saindo de cima de Josh para se deitar ao seu lado. — Deixe-

me cuidar de você.

— Você é tão incrível — disse ele, e ficou deitado com os olhos fechados. Maggie

inclinou-se até ele e beijou seu pescoço. Ele suspirou. Ela criou uma trilha de beijinhos do lábio

da orelha à base do pescoço de Josh, movendo-se mais lentamente a cada beijo. Ele suspirou de

novo, baixando a mão até a frente de sua cueca. Maggie começou a conduzir a língua até o peito

dele. Devagar, disse a si mesma, usando as batidas de seu coração para cronometrar as lambidas e

beijos. Devagar...

Cada beijo era mais suave que o anterior. Cada beijo demorava mais para chegar. Ela se

conteve, segurando a respiração, tensa ao lado dele, até ouvir a respiração de Josh descer para um

ritmo regular, até ouvir o primeiro ronco. Levantou a cabeça um pouquinho e olhou para o rosto

dele para ter certeza. Josh estava de olhos fechados, boca aberta, uma bolha de saliva expandindo

e retraindo entre os lábios. Estava dormindo.

Dormindo ou desmaiado. Ela não sabia qual das duas alternativas, e nem queria saber.

Até agora seu plano dera certo. Ela enfiou uma das mãos no bolso dele e voltou com um cartão

de plástico. A carteira estudantil dele. Perfeito. Em seguida levantou-se da cama, localizou sua

blusa, e vestiu-a novamente enquanto Josh roncava. Ela achou uma toalha no chão — cheirava

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mal e estava áspera, mas não adiantaria procurar por nada limpo aqui, pensou, pegando um balde

de plástico que continha sabão e xampu.

A carteira dele estava na mesa. Olhou para ela, pensativa, e então pegou-a e abriu-a.

Continha meia dúzia de cartões de crédito e uma quantia decente em dinheiro vivo. Deixaria para

olhar isso depois, decidiu, e enfiou a carteira inteira no bolso antes de se virar para o armário.

Deveria? Caminhou na ponta dos pés até o armário e abriu e entreabriu a porta. Josh tinha não

uma, mas duas jaquetas de couro, mais todos os tipos de camisas, suéteres e calças cáqui, tênis e

botas de caminhada, calças jeans e camisas pólo, casacos, mantos de inverno e até um smoking

embrulhado em plástico. Maggie pegou dois suéteres, e então olhou no canto. Bônus! Ali havia

um saco de dormir dobrado cuidadosamente, com uma lanterna elétrica de acampamento ao

lado. Ele jamais daria por falta dessas coisas, e se desse, ela tinha certeza de que quem as havia

comprado para ele não se importaria em mandar um cheque para que ele comprasse novas.

Josh resmungou alto e rolou na cama, deitando um braço sobre o travesseiro onde a

cabeça de Maggie havia estado. Maggie sentiu o coração parar. Ela se forçou a contar até cem

antes de se mexer novamente, e então reuniu seus espólios, enfiando o saco de dormir e a

lanterna em sua mochila. Abriu a porta e saiu para o corredor. Eram quatro da manhã. Maggie

ainda podia ouvir aparelhos de som a todo volume, e gritos bêbados vindo das festas.

Os banheiros ficavam no fim do corredor, e tinham fechaduras que requeriam códigos.

Por sorte, a porta do banheiro feminino estava aberta pelo corpo de uma aluna desmaiada que

sucumbira meio para dentro, meio para fora, de uma das cabines. Maggie passou sobre as pernas

dela e se despiu, pendurando suas roupas cuidadosamente num dos ganchos, pendurando a

toalha sobre eles.

Abriu o chuveiro e fechou os olhos enquanto a água morna caía sobre seu corpo. Tudo

bem, disse a si mesma. Tudo bem. O passo seguinte seria conseguir comida e um lugar onde

ficar. Ela estava pensando na biblioteca, pensando que em toda universidade que ela havia

cursado ou visitado os guardas de segurança jamais olhavam muito atentamente os cartões de

identificação. Se você parecia pertencer ao lugar, eles simplesmente deixavam você entrar. Assim,

a primeira coisa que ela teria a fazer seria retirar suas roupas de trás do sofá no saguão, e então

usar sua carteira de estudante para entrar num dos refeitórios para comer um pouco, e depois...

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Maggie olhou para baixo e viu um prendedor de plástico de cabelo pousado no suporte

de sabão... o mesmo tipo da coisa feia que sua irmã usava para afastar o cabelo do rosto. Rose,

pensou, e subitamente foi engolfada por uma onda de remorso que fez sua respiração ficar presa

na garganta. Rose, pensou, sinto muito. E nesse instante nua e sozinha Maggie sentiu-se

desprezível, desprezível como nunca havia se sentido em toda a sua vida.

—25 25 25 25 —

alvez esta seja a sensação de enlouquecer, pensou Rose, e rolou

na cama, obrigando-se a dormir novamente.

Em seu sonho, Rose estava perdida numa caverna, e a caverna

ficava cada vez menor, o teto cada vez mais baixo, até que ela já podia sentir as estalactites — ou

as estalagmites, sempre confundia uma com a outra — roçarem em seu rosto.

Acordou. A cadela que Maggie deixara para trás estava empoleirada num travesseiro ao

seu lado lambendo suas bochechas.

— Argh — disse Rose, enterrando o rosto num travesseiro e rolando para longe. Durante

um minuto ela não lembrou de nada. Então tudo voltou: Jim e Maggie. Na cama. Juntos.

— Meu Deus — gemeu. A cachorra colocou a pata sobre a testa de Maggie, como se

estivesse verificando sua temperatura, e emitiu um ganido inquisidor.

— Vá embora — disse Rose.

Em vez disso, a cadela deu três voltinhas sobre o travesseiro, enroscou-se toda parecendo

formar um bolo cor de biscoito integral e começou a roncar. Rose fechou os olhos e

acompanhou a cachorra de volta ao sono.

T

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Quando acordou novamente, havia passado das onze da manhã. Levantou cambaleante e

quase escorregou na poça molhada e quente diante do banheiro. Fitou entorpecida seus pés

molhados, e então olhou de volta para a cachorra, ainda empoleirada na cama.

— Você fez isto? — perguntou. A cachorra simplesmente ficou olhando para ela. Com

um suspiro desanimado, Rose desencavou o desinfetante e um rolo de papel toalha de papel para

limpar a sujeira. Mas ela não podia culpar a cachorra... ninguém levara a coitadinha para passear

desde o dia anterior.

Rose caminhou trôpega até a cozinha, pôs uma chaleira de café para ferver, serviu-se de

uma tigela de cereais, e ficou remexendo-os com a colher para a frente e para trás. Ela não queria

cereais, compreendeu. Ela não queria nada. Ela nem conseguia acreditar que algum dia voltaria a

sentir fome.

Olhou para o telefone. Que dia era hoje? Sábado. O que lhe dava o fim de semana para se

recuperar. Ou talvez ela devesse ligar para avisar agora que estava doente, deixar um recado para

alguém de que não compareceria esta semana. Mas para quem? Se Maggie estivesse aqui, ela

saberia o que dizer. Maggie era a rainha das mentirinhas, das meias verdades, que ela se sentia

completamente à vontade em contar. Maggie.

— Ai, Deus — gemeu novamente Rose. Maggie estava de volta à casa do pai delas, ou

então espreitando nos arbustos ou dormindo num banco lá fora, certa de que a manhã iria fazer

Rose mudar de idéia. Bem, é melhor você esperar sentada, pensou, desistindo do desjejum e

pousando a tigela ao lado da pia.

A cadela, evidentemente, não compartilhava do mau humor ou da falta de apetite de

Rose. Ela havia se materializado diante dos pés dela e estava fitando sua tigela de cereais com

olhos ávidos e úmidos. Rose se deu conta de que não tinha a menor idéia de como Maggie

alimentava esse bicho. Ela não havia visto nenhuma comida de cachorro na casa. Se bem que ela

não podia confiar nos seus olhos, porque estava com a mente ocupada por Jim, ou pela ausência

dele. Arriscou abaixar sua tigela de cereais até o chão. A cadela cheirou a tigela, abaixou o

focinho, deu uma lambidela no leite e então emitiu um único latido de desprezo e olhou para

Rose.

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— Não está bom? — perguntou Rose. Ela vasculhou seus armários. Sopa de ervilhas.

Provavelmente não. Feijão preto... certamente não. Atum! Ou isso era para gatos? Ela decidiu

experimentar, misturando o atum com maionese e o pousando na frente da cachorra, junto com

uma tigela de água. O animal engoliu a comida, emitindo grunhidos de felicidade e empurrando a

tigela com o focinho por todo o chão da cozinha, numa tentativa de lamber cada naco de pasta.

— Muito bem — disse Rose.

Agora era a inimaginável hora de uma da tarde. Seu apartamento estava impecável, graças

à limpeza da noite anterior. Foi ao banheiro e ficou se olhando no espelho por um momento. Era

uma garota comum, com cabelo comum e olhos marrons comuns. Tinha lábios, bochechas e

sobrancelhas, e não havia nada de marcante em nenhum deles.

— O que há de errado comigo? — perguntou ao rosto no espelho. A cadela sentou no

chão do banheiro e ficou olhando para ela. Rose escovou os dentes, lavou o rosto, fez a cama,

movendo-se pelo apartamento sentindo as pernas pesadíssimas. Sair? Ficar? Voltar a dormir?

A cachorra estava arranhando a porta da frente.

— Ei, pára com isso! — Ela olhou em torno, tentando adivinhar onde Maggie havia

deixado uma coleira, e então pegou um lenço de pescoço que comprara durante uma única tarde

de desorientação em que pensara que poderia se tornar o tipo de pessoa que usava lenços no

pescoço — o tipo de mulher que se enfeitava, em vez do tipo de mulher cujos lenços

inevitavelmente acabavam presos na porta do carro ou mergulhados em sua sopa.

Ajoelhou-se e passou o lenço pela coleira da cachorra. O animal pareceu infeliz e

indignado, como se percebesse que o lenço era de poliéster, e não de seda verdadeira.

— Mil perdões — disse Rose com sarcasmo, encontrando suas chaves, óculos de sol e

luvas. Também enfiou no bolso uma nota de vinte dólares para comprar comida de cachorro.

Seguiu para o elevador, tomou a cachorra nos braços e escondeu-a debaixo do casaco. Seguiu

para a saída passando o mais rápido que pôde pelo porteiro. Se ela lembrava bem, havia um

gramadinho no canto da rua. A cachorra poderia fazer suas necessidades ali, e depois ela seguiria

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a rua até o mercadinho, amarraria o bicho num parquímetro, como outras pessoas fariam, e

compraria comida de cachorro e uma rosquinha. Uma rosquinha recheada com geléia.

Possivelmente duas de geléia, e café com creme e três saquinhos de açúcar. Ela ia engordar... mas

não estava nem aí para isso. Quem iria vê-la nua agora! Quem iria se importar? Ela podia ganhar

peso; podia deixar os pêlos da perna crescerem até poder fazer trancinhas neles; podia usar todas

calcinhas grandes com cintura de elástico que possuía. Nada disso importava mais.

A cadela lançou um olhar grato a Rose assim que elas saíram do prédio. O bicho trotou

até a sarjeta e se acocorou lá, mijando pela primeira vez em muito tempo.

— Desculpa por ter feito você esperar — disse Rose. A cadela bufou. Rose não teve

certeza do que isso queria dizer. A cachorra bufava muito. Talvez fosse apenas... uma coisa de

raça. Talvez este fosse um tipo de cachorro que bufava. Rose não tinha a menor idéia. Depois de

Pão de Mel, seu cachorro por um dia, ela e Maggie não tinham tido nem um peixinho num

aquário. Um animal de estimação seria muita responsabilidade extra para o pai delas, que

claramente já achava as duas um fardo pesado demais. E depois que ela e Maggie tinham saído da

casa, Sydelle comprara seu cachorro de madame, um cão com pedigree, e documentos para

provar isso.

— Sou alérgico — dissera o pai.

— Não diga besteira— retrucara Sydelle.

E o assunto acabara aí. Chanel, o golden retriever idiota, permaneceu. E o pai delas

sofria com isso.

— Que pug fofinho! — exclamou uma mulher de cabelos pretos, ajoelhando-se para

deixar que a cachorra cheirasse sua mão. Pug, disse Rose a si mesma. Certo, então a raça da

cadela era pug. Isso era um começo.

— Venha —disse Rose, dobrando o lenço em torno de sua mão. A cadela caminhou

preguiçosamente ao lado do calcanhar esquerdo de Rose enquanto elas seguiam até o

mercadinho. — Fica ai — disse Rose, e amarrou seu lenço de pescoço em torno de um

parquímetro. O bicho — a pug — olhou para ela como um convidado para o jantar esperando a

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sopa. — Eu vou voltar — disse Rose. Ela entrou no mercadinho e passou dez minutos

examinando uma miríade de rações para cachorro antes de comprar um saco de ração para cães

adultos pequenos. Também comprou uma vasilha de plástico para despejar a comida, duas

rosquinhas recheadas com geléia, café, dois potes de sorvete e um saco de salgadinhos de queijo

que pegou num mostruário que prometia que eles eram a coisa mais deliciosa do mundo. O caixa

olhou intrigado para as compras de Rose. Rose vinha muito aqui, mas sempre comprava apenas

jornais, café preto e ocasionalmente uma lata de Slim-Fast.

— Estou de férias — explicou, perguntando-se por que sentia a necessidade de explicar

sua vida para um sujeito que trabalhava no caixa do mercadinho. Mas ele lhe dirigiu um sorriso

encantador, e colocou em sua bolsa, junto com a nota, uma caixa de chicletes.

— Divirta-se — desejou o caixa. Rose, meio envergonhada, retribuiu o sorriso e saiu do

mercadinho. A cadela ainda estava sentada, amarrada ao seu parquímetro.

— Como você se chama? — perguntou Rose em voz alta.

A cadela apenas olhou para ela.

— Meu nome é Rose — disse Rose. — Sou advogada. — A cachorra caminhou ao lado

dela. Alguma coisa no jeito como a cachorra a olhava, com as orelhas bem empinadas, dava a

impressão de que ela realmente estava ouvindo. — Tenho trinta anos. Eu me formei com louvor

em Princeton. Depois fui para a faculdade de direito da Universidade da Pensilvânia, onde fui

editora da Law Review e...

Por que ela estava dando seu currículo à cachorra? Isto era estúpido. A cachorra não iria

contratá-la. Provavelmente nem ela nem ninguém mais. Boatos corriam sobre ela e Jim.

Provavelmente já haviam começado. Provavelmente todos na firma já estavam falando nisso, mas

ela estava tão boba, tão entorpecida de amor, que não tinha percebido.

— Eu estava tendo um caso — disse Rose, enquanto ela e a cachorra paravam num sinal

vermelho. A adolescente com uma argola no beiço, parada ao lado de Rose na calçada, olhou-a

com curiosidade, e então começou a caminhar mais depressa. — Tinha um cara... — Ela fez uma

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pausa. — Bem, sempre há um cara. Ele era meio que o meu chefe, e ele acabou se revelando

um... — Ela engoliu em seco. — Um sujeito mau. Muito, muito mau.

A cachorra emitiu um único latido agudo — de desespero? Afirmação? Rose não tinha

certeza. Ela queria telefonar para Amy, mas não sabia se tinha forças para a dolorosa tarefa de

informar à sua melhor amiga que ela tinha razão, que Jim era o calhorda que Amy havia

imaginado... e que Maggie, sua irmã, a quem ela recebera em sua casa de braços abertos, a irmã

que ela tentara ajudar, era pior ainda. O sinal ficou verde. A cachorra latiu de novo e puxou

suavemente o lenço amarrado à sua coleira.

— Acabou — disse Rose, apenas para dizer alguma coisa, apenas para terminar a história

de algum jeito, mesmo que estivesse apenas falando com um cachorro, e que o cachorro não

estivesse ouvindo. — Acabou — repetiu, e atravessou a rua. O cachorro olhou para ela e em

seguida tornou a olhar para baixo.

— A moça que estava cuidando de você. Aquela era a Maggie. Minha irmã — prosseguiu,

enquanto elas se aproximavam do prédio de Rose. — Nós teremos de alimentar você, te dar uma

coleira e descobrir de onde você veio. Teremos de devolver você. — Ela parou numa esquina e

olhou novamente para a cadela: pequena, cor de café e, supunha, inofensiva. A cachorra olhou

para ela e então emitiu um grunhido curto que Rose julgou carregado de arrogância. — Não

precisa agradecer — disse Rose, e então atravessou a rua e voltou para casa.

—26 26 26 26 —

uem já contou a verdade sobre seu casamento? Certamente Ella

jamais fizera isso. Ela e suas amigas conversavam sobre os maridos

como se eles fossem crianças, ou bichos de estimação — alguma

espécie estranha responsável por cheiros ruins, sons estranhos e bagunças que elas precisavam

limpar. Elas transformavam seus maridos em piadas. Falavam deles de forma sucinta, num

Q

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código de reviradas de olhos e pronomes. Ele. Dele. "Se ele não come verduras, como eu vou

fazer as crianças comerem? Eu adoraria fazer essa excursão, mas é claro que terei de perguntar a

ele.”

Ella costumava contribuir com seu próprio estoque de anedotas, as histórias que faziam

Ira parecer tão simples quanto o personagem de um desenho animado infantil. Ela fazia as

senhoras se dobrarem de rir à mesa de bridge com historias de como ele não podia sair para uma

viagem de mais de 30 quilômetros sem um vidro de maionese para o caso de não gostar dos

banheiros dos postos de gasolina, ou dos oitenta dólares que ele gastara num conjunto de

fabricação caseira de iogurte. Nem sorvete, nem cerveja, dizia ela para as mulheres, que coravam

de tanto rir, ou qualquer outra coisa que você realmente poderia querer, mas iogurte. ira, o rei do

iogurte.

Contava essas histórias, mas jamais a verdade sobre seu casamento. Jamais contava às

amigas como era viver com um homem que se tornara mais alguém com quem dividia a casa do

que um marido. Jamais contara a elas sobre a educação excessiva, a forma como Ira agradecia

quando ela lhe servia o café, ou a forma como segurava seu braço quando saíam em público, em

casamentos ou na festa de Natal da empresa em que ele trabalhava, como se ela fosse feita de

vidro. Como se ela fosse uma estranha. E decerto jamais mencionara a forma como eles haviam

passado a dormir em camas separadas depois que Caroline entrará na escola, ou como Ira

mudara-se para o quarto de hóspedes depois que sua filha saíra de casa para morar no campus da

faculdade. Coisas assim jamais eram mencionadas, e Ella nem saberia como iniciar esse tipo de

relato.

Um som de batida acordou-a de seu devaneio. A Sra. Lefkowitz estava batendo na porta.

— Rainha das Babacas? Você está em casa?

Ella levantou correndo para deixá-la entrar, torcendo para que nenhum dos vizinhos

tivesse ouvido. A Sra. Lefkowitz entrou na cozinha de Ella, abriu sua bolsa de crochê cor-de-rosa

e retirou uma garrafa de vidro, que pousou na mesa da cozinha.

— Picles — anunciou a Sra. Lefkowitz. Ella conteve um sorriso e esvaziou a garrafa num

prato de servir, enquanto sua convidada espiava sua sala e cheirava o ar.

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— Ele ainda não chegou?

— Ainda não — disse Ella, dando uma espiada no forno. Ela jamais havia se adaptado à

culinária da Flórida, se é que tal coisa existe, e nas raras ocasiões em que tinha de cozinhar para

alguma outra pessoa, descobria-se recorrendo ao mesmo punhado de refeições básicas que fizera

durante seus anos de casamento. Esta noite ela serviria carne assada, panquecas de batata,

ensopado de cenouras com passas, chalah comprado na padaria, os picles da Sra. Lefkowitz e

dois tipos de bolo e uma torta. Muita comida, pensou. Comida demais para apenas eles três, e

pesada demais para uma noite quente na Flórida, mas enquanto ela corria até o supermercado ou

cozinhava em sua cozinha apertada, o trabalho fizera-a esquecer de quanto estava nervosa.

— Eu gostaria de conhecer seus amigos — dissera Lewis.

Como Ella poderia dizer-lhe que na verdade não tinha amigos aqui? Lewis pensaria que

ela era doida, ou que tinha algum problema. E a Sra. Lefkowitz tinha sido ainda mais insistente.

— Acompanhada por um cavalheiro! — dissera com um risinho, depois que Ella

cometera o erro de permitir que Lewis a levasse de carro para cumprir seus deveres para com o

programa Refeições sobre rodas. A Sra. Lefkowitz seguira-a pela cozinha, apoiada em sua

bengala. — Ele é bonito? Tem boa renda? É viúvo ou divorciado? Usa peruca? Marca-passo?

Dirige? Dirige à noite?

— Basta! — dissera Ella, rindo, com suas mãos no gesto universal de rendição.

— Então está combinado — dissera a Sra. Lefkowitz, com um sorriso torto que a deixava

parecida com o gato risonho de Alice no país das maravilhas.

— O que está combinado? — perguntou Ella.

— Vocês precisam me levar para jantar. Vai fazer bem para mim jantar fora — disse,

aérea, a Sra. Lefkowitz. — Meu médico recomendou isso. — A Sra. Lefkowitz pegou na mesa de

centro o que afirmou ser um Palm Pilot. — Que tal às cinco?

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Isso tinha sido há três dias. Ella olhou as horas. Cinco e cinco.

— Atrasado! — observou prestativamente da sala de estar a Sra. Lefkowitz.

Lewis bateu na porta.

— Olá, senhoritas — disse ele. Trazia um buquê de tulipas, uma garrafa de vinho e

alguma coisa numa caixa de papelão quadrada que trazia debaixo do braço. — O cheiro está

maravilhoso!

— Eu fiz demais — disse Ella.

— Então você terá sobras — disse ele, e estendeu as mãos para a Sra. Lefkowitz, que,

Ella viu, passara batom cor-de-rosa.

— Olá, olá! — cantarolou a Sra. Lefkowitz, olhando para Lewis enquanto ela a ajudava a

se levantar.

— Deve ser a Sra. Lefkowitz — disse ele. na cozinha, Ella segurou a respiração, torcendo

para que finalmente descobrisse o primeiro nome da Sra. Lefkowitz. Mas em vez de dizer seu

nome, a Sra. Lefkowitz soltou uma risadinha e permitiu que Lewis a conduzisse até a mesa.

Depois do jantar, da sobremesa e do café na sala de estar, a Sra. Lefkowitz suspirou de

satisfação e soltou um arrotinho.

— Meu bonde está chegando — anunciou, e capengou para a noite. Lewis e Ella

trocaram um sorriso.

— Eu lhe trouxe uma coisa — disse Lewis.

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— Ora, você não devia — disse Ella, enquanto Lewis pegava uma caixa de papelão. Ella

sentiu o coração contrair para um cubo de gelo ao ver o que ele tinha trazido. Um álbum de

fotografias.

— Outro dia eu estava lhe contando sobre a minha família, então achei que você gostaria

de ver algumas fotos — disse Lewis, acomodando-se no sofá de Ella como se o que estava para

fazer não fosse incomum ou aterrorizante. Como se qualquer um pudesse fazer isto: abrir um

álbum de fotografias, olhar o passado diretamente. Ella sentia-se extremamente deprimida, mas

se forçou a sorrir, e a sentar-se ao lado dele.

Lewis abriu o álbum. Ali estavam fotos dos pais dele, primeiro parados de pé em suas

roupas antiquadas, e de Lewis e seus irmãos. E aqui estava Sharla, com roupas laranja, cor-de-

rosa ou turquesa (e, ocasionalmente, as três cores juntas), e o filho deles. Havia fotografias da

casa de Lewis e Sharla em Utica, um rancho com vasos de rosas ao lado de cada porta

— Essa foi a formatura de John no colegial, ou será que foi na faculdade? Estas fotos são

do Grand Canyon, mas acho que você teria reconhecido sem minha ajuda... Este foi meu jantar

de aposentadoria.

Fotos de casamentos, festas de bar mitzvah, a praia, as montanhas, os nenéns. Ella

admirou cada uma delas, sorrindo, assentindo e dizendo as coisas certas até que, finalmente,

abençoadamente, Lewis fechou o livro.

— E você? — perguntou Lewis.

— O que tem eu?

— Posso ver fotos suas?

Ela balançou a cabeça.

— Não tenho muitas — respondeu. E era verdade Quando venderam sua casa em

Michigan e se mudaram para cá, Ella e Ira tinham posto todos os tipos de coisas num armazém

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— mobília, casacos, caixas e caixas de livros. E todas as suas fotografias. Doía muito ver essas

coisas. Mas talvez...

— Espere um pouco — disse Ella. Foi até o armário no quarto dos fundos e tateou

caixas de roupas e toalhas extras até encontrar uma bolsa velha que continha um envelope branco

simples, com um punhado de fotos. Voltou para o sofá e mostrou a Lewis a primeira foto na

pilha, uma fotografia dela e ira, em sua lua-de-mel, parados diante das cataratas do Niágara.

Lewis observou cuidadosamente, virando-a de um lado para o outro sob a luz do abajur

da mesa de canto.

— Você parece preocupada — disse finalmente.

— Talvez eu estivesse — disse ela, folheando as fotos. Ali estava Ira, posando ao lado de

uma tabuleta de "Vendida" ao lado de sua casa em Michigan, ira atrás do volante em seu primeiro

carro zero-quilômetro. E, finalmente, no fundo da pilha, uma foto de Ella com Caroline.

— Aqui — disse, passando a foto para Lewis. A vizinha de porta tirara essa foto no dia

em que eles haviam voltado para casa do hospital. Ella estava no fundo, com sua malinha, e Ira

estava ao lado da porta, com Caroline, três dias de idade, embrulhada numa manta cor-de-rosa,

em seus braços olhando desconfiada pela brecha do pano. — Minha filha — disse, preparando-se

para o que viria em seguida. — Caroline.

— Ela era um bebê lindo — disse Lewis.

— Ela tinha cabelos pretos. Uma cabeça cheia de cabelos pretos — lembrou Ella. — E

ela chorou sem parar pelo que pareceu um ano.

Ela mostrou as últimas duas fotos. Caroline e o pai, posando num barco a remo, usando

bonés iguais e colete de pescador. E, finalmente, Caroline no dia de seu casamento, com Ella

parada ao seu lado, ajeitando as dobras de seu véu.

— Que moça linda — disse Lewis. Ella não fez qualquer comentário. Os dois ficaram em

silêncio até que Lewis disse: — Eu não quis falar sobre Sharla durante meses. Portanto, entendo

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que você não queira falar sobre sua filha. Mas às vezes faz bem falar. Lembrar os bons

momentos.

Houve bons momentos com Caroline? Ella tinha a impressão de que tudo de que

conseguia se lembrar era do aperto no coração e das noites infindáveis de preocupação,

esperando de olhos bem abertos no escuro, alerta para o crepitar da porta (ou da janela, caso

Caroline tivesse ficado de castigo) sendo aberta. Lembrava-se de ficar sentada no sofá da sala,

pequeno demais para se deitar, aguardando que sua filha voltasse para casa.

— Ela era realmente uma moça linda — começou Ella. — Alta, com cabelos castanhos,

pele perfeita, e era... animada. Engraçada. — Louca, sussurrou sua mente. — Tinha problemas

mentais — preferiu dizer. —Era maníaco-depressiva. Tinha transtorno bipolar, como chamam

agora. Descobrimos isso quando ela estava no segundo grau. Ela estava tendo... surtos. — Ella

fechou os olhos, lembrando-se de como Caroline havia se trancado no seu quarto por três dias,

recusando-se a comer, gritando do outro lado da porta que havia formigas em seus cabelos e que

ela podia senti-las quando dormia.

Lewis emitiu um ruído simpático. Ella continuou falando, as palavras emendando umas

nas outras como se estivessem com pressa para sair, depois de terem ficado guardadas por muito

tempo.

— Nós consultamos médicos. Todos os tipos de médicos. E eles receitaram remédios

que a fizeram melhorar em alguns aspectos, mas que também a deixaram mais lerda. Ela

costumava dizer que sentia dificuldade de pensar. — Ella podia lembrar-se de quando Caroline

tomava lítio, e de como isso deixava seu rosto redondo e pálido e as mãos inchadas como luvas

de personagens de desenho animado, e fazia com que passasse o dia bocejando. — Ela tomava

os remédios de vez em quando, e então parava, e nos dizia que estava tomando. Ela foi para a

faculdade, e tudo pareceu bem durante algum tempo, mas então... — Exalou um suspiro trêmulo.

— Ela se casou, e parecia feliz. Teve duas filhas. E morreu com 29 anos.

— O que aconteceu? — perguntou Lewis num tom gentil.

— Acidente de carro.

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O que era a verdade. Ou uma verdade. Caroline estava num carro. O carro bateu. Ela

morreu. Mas o que aconteceu antes também era verdade, o fato de que Ella não havia intercedido

quando deveria. Ela cedera aos apelos insistentes da filha para ser deixada em paz, para viver sua

vida. Cedera com um sentimento de resignação e tristeza, mas também com um grande e

vergonhoso alívio, um alívio sobre o qual jamais poderia contar — nem a Ira, nem a ninguém.

Ela telefonava todas as semanas para Caroline, mas a visitava apenas duas vezes por ano, quando

passava fins de semana com ela. No lugar dos fatos, ela criara ficção — a Filha, para combinar

com o Marido. Ela mostrava a todos fotos de Caroline como uma mão vencedora de pôquer:

Caroline e o marido, Caroline e Rose, Caroline e Maggie. As amigas de Ella exprimiam "ohs" e

"ahs", mas no fundo Ella sabia a verdade. As fotos eram bonitas, mas a realidade da vida de

Caroline era outra. Uma realidade invisível, como recifes pontiagudos escondidos sob belas ondas

do oceano, como graxa preta no asfalto.

— Acidente de carro — repetiu, como se Lewis a tivesse interrogado, porque "acidente

de carro" era uma parte significativa da verdade, não importando a carta que chegara do correio

um dia após o funeral, a carta enviada de Hartford no dia em que Caroline morrera, a carta com

duas linhas, redigida num papel pautado arrancado do caderno de escola de uma das meninas, em

letras nervosas. "Eu não posso mais. Cuide das meninas."

— E as netas? — perguntou Lewis.

Ella pressionou as mãos contra os olhos.

— Não as conheço — respondeu.

A mão de Lewis moveu-se em círculos mornos nas costas de Ella.

— Não precisamos mais falar sobre isso — disse ele.

Mas ele não sabia, e ela não podia explicar. Como Lewis poderia entender o último desejo

de Caroline, e de como com o passar dos anos ficou cada vez mais fácil afastar-se dela? Caroline

dissera "Deixe-me em paz", e ela a deixara em paz, e Michael Feller dissera, "Estamos melhor

sem você", e Ella se afastara, sentindo tristeza misturada com aquele alívio secreto, vergonhoso.

E agora jamais conheceria as netas. E era exatamente isso que ela merecia.

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—27 27 27 27 —

ose acordou na manhã de segunda-feira, depois na terça, e na quarta e

na quinta, também, pensando que este seria o dia — o dia em que ela

tomaria um banho, escovaria os dentes, levaria a cachorra para passear,

voltaria para casa, e então vestiria seu tailleur e meia-calça, tiraria sua pasta do armário do

corredor e iria trabalhar como as outras pessoas.

Todas as manhãs ela acordava, cheia de boas intenções e cheia de energia. Durante o

banho ela passava um sermão em si mesma, lembrando-se de que o ideograma chinês para crise

era o mesmo que para oportunidade. Ela levava a cachorra para passear na Rittenhouse Square e

olhava para o sul, para onde a fachada de vidro do arranha-céu que abrigava a Dommel, Lewis e

Fenick avultava-se como uma repreensão de 52 andares, e seu coração afundava. Na verdade,

tudo afundava — todos os seus órgãos internos, rins e fígado e tudo mais lá embaixo, tudo se

juntando numa única massa contraída, tudo pensando "Não", "Não posso", "Hoje não".

Assim ela ia para casa e telefonava para Lisa, sua secretária, e explicava que ainda estava

doente.

— Acho que é gripe — lamentou-se, na segunda-feira.

— Tá — dissera Lisa. Lisa, que jamais desperdiçava mais do que uma palavra com Rose,

quando meia palavra bastava. Mas no fim da semana Lisa não estava soando mais tolerante, e

chegou mesmo a oferecer uma frase inteira a Rose. — Você volta na segunda, certo?

— Certo — respondeu Rose, tentando soar firme, competente e segura de si mesma. —

Certamente. É claro.

R

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Depois Rose se jogou no sofá para assistir a História de um casamento. Em sua semana

longe do trabalho, Rose ficara completamente viciada nesse programa. História de um

casamento durava meia hora e era cuidadosamente estruturado como um soneto, ou uma prova

de geometria. Primeiro bloco: Conheça a noiva e o noivo (ontem à noite tinha sido Fern, uma

balconista de farmácia, e o noivo, Dave, um caminhoneiro muito barbudo, vinte anos mais velho

que ela). Segundo bloco: Como eles se conheceram ("Saí para comprar antiácido", dissera Dave,

"e ali estava ela, atrás do balcão. A garota mais bonita que eu já tinha visto"). Bloco três: Planos

de casamento (Fern e Dave iriam se casar num hotel da cadeia Radisson. Depois da cerimônia,

jantar e dança, com os dois filhos de Dave, de seus dois casamentos anteriores, como seus

padrinhos). Último bloco: O grande dia (Fern entrando na capela, uma visão em branco-creme.

Dave chorando. Rose também).

Tinha sido assim por quatro dias seguidos. Comendo rosquinhas, chorara ao ver cada

noiva, cada noivo, cada vestido, cada mãe sogra, cada primeiro beijo e primeira dança; conhecera

noivas que eram assistentes sociais do Alabama, professoras de Nova Jersey, técnicas de

informática de San Jose; garotas com pele ruim e gramática pior ainda.

Qualquer pessoa no mundo pode fazer isso, menos eu, pensava Rose enquanto a

cachorra se levantava de seu colo para lamber suas lágrimas. Todo mundo menos eu.

No sábado de manhã o telefone começou a tocar. Rose ignorou-o, puxando a cachorra

pela coleira que ela finalmente comprara e correndo até a porta antes de notar que ainda estava de

pantufas. Suas pantufas felpudas de coelhinho! Bem, que se dane. Um mendigo olhou

apreciativamente para ela.

— Tu é muito gostosa! — gritou ele. Bem, isso e animador, pensou Rose. — Tu é gorda,

mas ainda é gostosa! — Certo, talvez não tão animador, adicionou Rose.

Ela passou vinte minutos deixando a cachorra cheirar meios-fios, hidrantes, bases de

parquímetros e bundas de outros cachorros, e quando voltou para casa, o telefone ainda estava

tocando, como se nunca tivesse parado. O telefone continuou tocando enquanto Rose mantinha-

se parada, dura como chumbo, debaixo do chuveiro, deixando a água trovejar sobre sua cabeça,

tentando reunir energia para lavar o cabelo. Às cinco da tarde, Rose finalmente levou o fone ao

ouvido.

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— Que é?

— Onde diabos você esteve? — inquiriu Amy. — Eu deixei 15 mensagens na sua

secretária eletrônica; te mandei seis e-mails; dei uma passada aí uma noite dessas... — Sua voz

morreu na garganta.

Rose recordava vagamente de alguém batendo, e de ter enfiado a cabeça debaixo do

travesseiro até as batidas pararem.

— A sua secretária diz que você está doente, e a minha amiga Karen te viu passeando

pela Rittenhouse Square de pijamas e pantufas.

— Eu não estava passeando. E não estava usando pijamas — disse Rose, indignada,

preferindo ignorar a parte sobre as pantufas. — Estava usando uma calça de moletom, só isso.

— Ou isso — disse Amy. — O que está acontecendo? Está doente?

Rose virou-se desejosa na direção do televisor, e então se forçou a olhar em outra direção.

— Preciso conversar com você — disse finalmente.

— Encontra comigo no La Cigale em 15 minutos — disse Amy. — Não, meia hora.

Você vai precisar encontrar suas roupas comuns. Não pense que vai ser bem-vinda de pijaminha.

— Não era pijama! — repetiu Rose, mas Amy já havia desligado. Ela pousou o telefone

de volta na mesa da cozinha e foi procurar sapatos.

— Muito bem — disse Amy, que já tinha pedido café e duas casquinhas de sorvetes

grandes como luvas de beisebol. — O que ele fez?

— Hein? — perguntou Rose.

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— Jim — disse Amy, impaciente. — Sei que isto é culpa daquele filho-da-puta. Diz pra

mim o que ele fez e a gente vai bolar uma maneira de pagar na mesma moeda.

Rose abriu um sorrisinho. Depois de anos amargando namorados ruins, Amy afiara a sua

filosofia de relacionamentos fracassados e como se comportar depois deles. Passo um: Chore por

um mês (duas semanas se o relacionamento não envolveu sexo). Passo dois: Se você foi chutada

ou trapaceada, permita-se um ato de vingança escandaloso (o último namorado dela, um

vegetariano radical, certamente ficara horrorizado ao se descobrir matriculado no Clube da

Carne). Passo três: Supere. Sem lamentações, sem depressão, sem telefonar alcoolizada para o ex.

Simplesmente seguir para a próxima aventura.

— E então, o que ele fez?

— Ele me traiu.

Amy balançou a cabeça vigorosamente.

— Eu sabia. — Estreitou os olhos. — Agora, como vamos fazer ele pagar? Humilhação

profissional? Carta anônima para o escritório de advocacia? Algum presentinho deixado em seu

carro?

— Como o quê?

— Patê de anchovas — disse Amy. — Um pouco no porta-luvas e o Lexus dele jamais

será novamente o mesmo.

— Bem, não foi apenas ele.

— Como assim?

— Foi Maggie.

— O quê? — exclamou Amy, quase se engasgando com a casquinha do sorvete.

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— Maggie — repetiu Rose. — Flagrei os dois. — Rose dissera isso tantas vezes em sua

cabeça e para a cachorrinha que, quando finalmente deu voz à história, teve a impressão de que

estava recitando um poema decorado há muitos anos. — Entrei no quarto e peguei os dois na

cama. E ela estava usando as minhas botas novas.

— As da Via Spiga? — Cada revelação deixava Amy ainda mais horrorizada. — Puxa,

Rose, eu sinto muito.

Mas não se sente surpresa, pensou Rose.

— Ah, meu Deus — disse Amy parecendo arrasada. — Aquela piranhazinha!

Rose concordou com a cabeça.

— Como ela teve coragem?

Rose deu de ombros.

— Depois que você deu um lugar para ela morar, e provavelmente dinheiro, e tentou

ajudá-la... — Amy revirou os olhos para o teto. — O que nós vamos fazer?

— Nunca mais olhar para a cara dela — disse Rose.

— Sim — disse Amy. — Embora eu ache que isso vai te valer alguns dias de Ação de

Graças bem constrangedores. E então, onde está a vagabunda?

— Eu não sei — respondeu Rose, desanimada. — Com meu pai e Sydelle, acho.

— Bem, então ela já está sofrendo — disse Amy. — Agora, e quanto a você?

— Eu? Eu estou sofrendo muito — disse Rose. Com um suspiro, pôs-se a lamber seu

sorvete.

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— O que eu posso fazer? — perguntou Amy.

Rose deu de ombros.

— Nada, além de me dar seu tempo, acho.

— E um pouco de terapia consumista - disse Amy, obrigando-a a se levantar. — O

shopping nos chama. Isso vai animar você. Vamos.

Durante toda a tarde, Amy e Rose caminharam pelo shopping King of Prussia. Rose

acabou conseguindo encher três sacolas de compras com coisas de que ela não precisava, com

qualquer coisa que atraísse sua atenção e lhe desse uma ínfima esperança de que sua vida — e ela

mesma — poderia ser consertada. Comprou esponjas para esfoliar a pele e hidratantes. Comprou

velas perfumadas com lavanda, um osso de cachorro sabor churrasco e uma bolsa de noite de

duzentos dólares enfeitada de contas. Comprou batons, brilhos labiais e rímeis, três pares de

sapatos, uma saia de caxemira justa que ela não conseguia se imaginar realmente usando. Por

último, seguiu para a livraria.

— Auto-ajuda? — perguntou Amy. — Faça sexo melhor com a ioga? Como seduzir

aquele bonitão em dez passos? Rose riu um pouco, balançou a cabeça e localizou a seção de

ficção contemporânea. Dez minutos depois havia adquirido uma pilha de dez livros de bolso

sobre mulheres que tinham encontrado o amor, perdido o amor e o encontrado de novo.

— Mas não esqueça que ainda tenho aquele patê de anchovas, para o caso de você mudar

de idéia — disse Amy enquanto atravessavam o estacionamento. — E se você quiser uma pessoa

imparcial para dizer umas poucas e boas à Maggie, sabe a quem procurar.

— Você não é imparcial — disse Rose.

— Bem, não. Apenas parcialmente imparcial. — Ela olhou as horas. — Quer que vá com

você para sua casa? Ou quer vir comigo? Estou indo jantar na casa da minha mãe...

— Rose balançou a cabeça.

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— Estou bem — garantiu, pensando que poderia passar sem uma noite na casa da mãe

de Amy; o inevitável prato de massa seguido por algumas horas ouvindo a mãe de Amy falar

sobre sua paixão pelas bonecas de louça e pelas jóias da QVC.

— Liga pra mim — disse Amy. — Estou falando sério.

Rose disse que ligaria. Em seu primeiro passo rumo a uma vida normal, presenteou a pug

com o osso e se forçou a ouvir todas as 43 mensagens em sua secretária eletrônica. Dezesseis de

Amy, uma dúzia do trabalho, três de seu pai, algumas de operadoras de telemarketing, meia dúzia

de cobradores e um único e inexplicável telefonema da International House of Pancakes

instruindo Rose a comparecer para uma entrevista a qualquer hora que ela quisesse. Ela deixou

uma mensagem para o seu pai dizendo que estava viva e bem, apagou o resto e dormiu dezoito

horas seguidas. Na manhã de domingo — o dia que ela decidira que seria o seu último de fossa

— ligou para Amy para dizer que ainda estava viva, ainda que não muito bem. Passou batom,

vestiu a saia de caxemira, enfiou um dos livros no bolso, colocou a coleira na cachorrinha e

caminhou até o seu banco costumeiro no parque. Era hora para uma decisão.

— Pró: sou uma advogada e tenho um bom trabalho — sussurrou para si mesma

enquanto a cadela cheirava seus pés. — Contra: fico doente só de pensar em ir lá.

Abriu seu livro, tirou uma caneta do bolso e começou a escrever ao lado das citações que

decoravam as primeiras páginas de todos os livros que ela costumava comprar ("Uma narrativa

sensual e picante!"). "Pró: se eu for trabalhar, terei dinheiro", escreveu na capa interna do livro.

"Contra..." A cachorrinha aos seus pés emitiu um latido curto. Rose olhou para o lado e viu que

um segundo cachorro, um bicho com aparência estranha e pêlo malhado do tamanho de um

gato, tinha saltado para o banco e agora estava sentado ao lado dela, fitando-a com destemidos

olhos negros.

— Olá — disse ela, e permitiu que o cachorro cheirasse sua luva. — Quem é você? —

Ela leu a inscrição na coleira e se perguntou que tipo de nome era Nifkin. Provavelmente

estrangeiro. — Vá para casa — incitou ao cachorro malhado, cujos bigodes tremiam a cada

exalação. — Vá procurar a sua turma. — O cachorro meramente fitou Rose e não demonstrou

nenhum sinal de que tencionava mover-se. Rose decidiu ignorá-lo.

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— Contra" — continuou. Fechou os olhos novamente e sentiu uma onda de enjôo

derramar-se sobre ela ao imaginar-se entrando no saguão, entrando no elevador, saltando em seu

andar e caminhando pelos corredores nos quais apaixonara-se por Jim e imaginara que ele estava

apaixonado por ela.

— "Contra" — repetiu, e abriu os olhos. Nifkin ainda estava sentado ao seu lado no

banco, e agora havia uma menininha de casaco vermelho de pé na frente dela. Usava luvas

vermelhas e botas de borracha da mesma cor, e os cabelos da cor de xarope de bordo estavam

amarrados num rabo-de-cavalo fino, em forma de cenoura. Meu Deus, pensou Rose, quem eu

sou?A porra da Branca de Neve?

— Cachorro! — anunciou a menininha, e brandiu um punho enluvado.

— Isso mesmo — disse Rose, enquanto a pug bufava curto e empolgada.

A menina curvou-se para acariciar a cabeça da pug, que se contorceu de prazer. Enquanto

isso, o pequeno e trêmulo Nifkin saltara do banco e estava sentado ao lado da menininha, de

modo que ambos estavam olhando para Rose.

— Sou Joy — anunciou a menininha.

— Oi! — saudou Rose numa voz alta e animada. — Este é... — Oh, Deus. Ela ainda não

tinha a menor idéia de qual era o nome do cachorro. Este é o cachorro que eu levo para passear!

A menininha assentiu como se aquilo fizesse pleno sentido, puxou a coleta de Nifkin e

começou a caminhar pelo parque. Nesse instante, uma mulher de cabelos brancos, usando óculos

de sol, estava olhando para eles.

— Petúnia? — disse ela. — É a Petúnia?

Petúnia, pensou Rose. O pug olhou para ela, e Rose pensou ter detectado uma pitada de

constrangimento em suas feições amassadas.

— Oi, Petúnia — disse a mulher, e Petúnia emitiu um bufar régio.

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— Então a Shirley já voltou da Europa? — perguntou a mulher.

— Hum-hum — exprimiu debilmente Rose. Ela não contava esbarrar com nenhum dos

amigos íntimos da cachorra.

— Achei que a Shirley ia manter a cachorra dela hospedada até o mês que vem —

prosseguiu a mulher.

Rose enxergou nisso um salva-vidas, e o agarrou com todas as forças.

— Isso mesmo — disse ela. — Isto, na verdade, é um novo serviço... um passeio diário.

Para que os cães possam, você sabe, pegar um pouco de ar fresco, visitar suas vizinhanças, ver

seus amigos...

— Mas que idéia fantástica! — disse a mulher, enquanto dois outros cães, um enorme

cachorro cor de chocolate com uma cauda larga e peluda, e um poodle preto e brincalhão,

aproximaram-se delas. — Então você trabalha no canil?

— Na verdade... eu... sou autônoma — disse Rose. Ela lembrou de ter lido um conto de

fadas no qual uma princesa recebia uma maldição e, cada vez que abria a boca, sapos e rãs

saltavam dela. Rose decidiu que tinha sido amaldiçoada de forma semelhante... quando abria a

boca, saíam não anfíbios, mas mentiras. — O canil me paga para levar cachorros para passear,

mas eu também presto serviços para particulares...

— Você tem um cartão? — perguntou um senhor na extremidade da coleira do poodle.

Rose fingiu procurar em seus bolsos, e apresentou as mãos vazias.

— Sinto muito, mas acho que deixei todos em casa...

O velho tirou caneta e papel do bolso e Rose rabiscou o seu telefone de casa, e então

acrescentou as palavras Feller, Passeadora de cães. E logo estava de pé no centro de uma turba

de donos de cães, todos, aparentemente, em busca de tratamento responsável de animais.

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Sim, disse Rose a eles. Ela também cuidava de gatos. Não, ela não fazia adestramento,

mas ficaria mais do que feliz em acompanhar os cães às aulas.

— Babá de bichos! — chamou uma mulher num suéter verde. Seu cachorro ficava tão

próximo ao chão quanto Petúnia, mas tinha provavelmente o dobro de seu tamanho, com um

rosto profundamente enrugado e baba escorrendo de sua enorme papada. — Fim de semana do

Memorial Day?

— Estarei aqui — respondeu Rose. Petúnia e o cachorro enrugado dirigiram um ao outro

fungadas solenes, como se fossem membros do mesmo clube e estivessem trocando um

cumprimento secreto.

— Você tem licença? — perguntou a mulher, no ritmo rápido de um sargento de

treinamento. — Tem licença? Tem seguro?

— Bem... — disse Rose. A multidão aguardou ansiosamente a resposta. — Estou

terminando de dar entrada nos papéis. Na semana que vem vou estar com tudo certinho —

concluiu, fazendo uma anotação mental de descobrir o que precisaria para obter licença de

passeadora de animais e conceder seguro.

— E quanto você cobra?

Quanto cobro?, pensou Rose.

— Hum... Dez dólares por passeio, vinte e cinco dólares por um dia inteiro de

tratamento. — A julgar pelas expressões nos rostos dos donos de cachorros, o preço que Rose

tinha oferecido era uma pechincha. — É a minha promoção para novos clientes — acrescentou.

— E, é claro, se vocês preferirem que seus cães fiquem no canil, posso pegá-los lá e levá-los para

passear no parque todos dias. Pensem nisso como o melhor de ambos os mundos. É só me ligar!

— Ela acenou animadamente e saiu o mais rápido que pôde do parque. — Quem é Shirley? —

perguntou à pug, que não respondeu nada. — O seu nome é mesmo Petúnia? — perguntou. A

pug continuou a ignorá-la, enquanto Rose seguia na direção do Elegant Paw. Os sinos da loja de

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animais repicaram quando ela empurrou a porta, e a mulher atrás do balcão levantou-se

abruptamente.

— Petúnia! — gritou a mulher, apagando seu cigarro. Petúnia latia uma vez e começou a

balançar não apenas seu rabo, mas todo o seu traseiro. — Oh, graças a deus! Estávamos ficando

malucas!

— Oi — disse Rose, enquanto a mulher contornava correndo o balcão, ajoelhava-se no

chão e esfregava Petúnia da cabeça ao rabo.

— Onde você a achou? — perguntou a mulher. — Meu Deus, nós estávamos em pânico!

A dona dela só vai voltar daqui a três semanas, mas a gente não queria ligar para ela... quero dizer,

você consegue imaginar? Você deixa seu cachorro no canil e viaja para a Europa e recebe um

recado dizendo que seu cachorro está perdido? — A mulher se empertigou, alisou o macacão de

brim e olhou para Rose através de seu emaranhado de cachos grisalhos. — E então, onde você a

achou? — repetiu.

— No parque — respondeu Rose, que decidiu que tinha contado mentiras suficientes

para o mês inteiro, para o ano, até, num único dia. — Ela não parecia perdida nem nada assim,

mas eu a conhecia... quero dizer, não a conhecia, mas já a tinha visto antes no parque e deduzi

que talvez vocês a conhecessem...

— Graças a Deus — repetiu a mulher, e tomou Petúnia nos braços. — Nós estávamos

muito preocupadas. Pugs são animais muito delicados, você sabe. Eles contraem com facilidade

resfriados, infecções respiratórias, qualquer coisa no ar... eu não sei quem andou cuidando dela

nas últimas semanas, mas parece ter feito um excelente trabalho. — Ela olhou novamente para

Rose. — Claro, tem uma recompensa...

— Não, não — disse Rose. — Estou apenas feliz por tê-la trazido de volta para onde ela

estava...

— Eu insisto — disse a mulher, contornando novamente o balcão para abrir a caixa

registradora. — Qual é o seu nome? Mora aqui por perto?

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— Eu, bem... — disse Rose. — Na verdade, sim. Moro no Dorchester e sou funcionária

da Lewis, Dommel e Fennick. Mas aí está a questão. Estou iniciando um novo negócio. Uma

companhia especializada em passeios para cães.

— Bem, já tem algumas dessas na cidade — disse a mulher, jogando um biscoito para

Petúnia, que ela pegou no ar e mastigou ruidosamente.

— Eu sei. Mas aqui está a diferença: passearei com cães que estejam hospedados em

canis. Assim eles poderão tomar ar fresco e se exercitar.

Agora a mulher estava parecendo medianamente interessada.

— Quanto?

— Vou cobrar dez dólares por passeio — disse ela. E, exatamente quando a expressão da

mulher começava a se fechar, Rose acrescentou: — Que eu vou dividir com você. Porque seria

bom para um novo negócio.

— Então eles pagariam dez dólares por um passeio, e você me pagaria cinco?

— Isso mesmo — disse Rose. — Isso durante o primeiro mês de negócios. Então

veremos em que pé me encontro. — Ela já estava começando a fazer a matemática, calculando

de cabeça: cinco dólares por caminhada vezes, talvez, dez cães por dia no canil, mas talvez mais

três ou quatro por dez dólares por passeio...

— Eu também prestarei serviços para os donos — disse Rose, pensando rapidamente em

todas as coisas para as quais ela nunca tivera tempo em sua vida passada como advogada. —

Lavagem a seco, fazer compras, marcar consultas em médicos e dentistas, comprar presentes...

Se você quiser me testar, levarei Petúnia para passear de graça.

— Vou lhe dizer o que farei — disse a mulher. — Vou lhe dar uma chance, contanto que

possamos manter a pequena aventura de Petúnia um segredo entre nós.

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— Negócio fechado — disse, e a mulher saiu de trás da registradora para apertar a mão

de Rose.

— Meu nome é Bea Maddox.

— O meu é Rose Feller.

A mulher olhou desconfiada para ela.

— Algum parentesco com Maggie?

Rose sentiu seu sorriso congelar no rosto.

— Maggie é minha irmã, mas eu não sou como ela — esclareceu. Ela podia sentir os

olhos de Bea fixos nela. Rose empertigou-se, ajeitou os ombros e tentou parecer responsável,

dependente, madura — em suma, tudo que Maggie não era.

— Sabe, ela ainda está com as minhas chaves — disse Bea.

— Eu não sei onde ela está agora — disse Rose. — Mas pagarei a você pelas chaves.

A mulher fitou Rose durante alguns segundos, e então deu de ombros.

— Acho que podemos tentar. Ao que parece, não tenho nada a perder. E você achou este

aqui. — Ela deu seu cartão a Rose e lhe disse para ir a loja de fotocópias da esquina para fazer

alguns cartazes com seu nome, seus preços e os serviços que ela oferecia.

Rose foi à loja de fotocópias, deixou um panfleto na Elegant Paw e então seguiu para

casa, onde mudou seu recado na secretaria eletrônica para dizer:

— Aqui é Rose Feller, da Tratamento de Animais da Rose. Por favor, deixe uma

mensagem, incluindo seu nome, telefone, nome do seu animal de estimação e as datas em que

precisará do serviço. Eu ligarei de volta assim que for possível.

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Tirando férias, disse a si mesma, ao ouvir novamente a mensagem. Parecia que sua vida

tinha se transformado num filme, com uma estranha representando seu papel Tirando férias,

repetiu severamente. Ela jamais tirara mais do que uma semana de férias por vez. Ela foi direto

do segundo grau para a faculdade praticamente sem tempo para fazer nada a entre as duas coisas.

Mas era hora de tirar férias, decidiu.

Próxima parada, escritório de advocacia. A primeira coisa que fez na manhã de segunda

foi respirar fundo, sentar-se no sofá e discar, não para Lisa, mas para o próprio Don Dommel. A

secretária de Don passou-a direto para o chefe. Rose não teve certeza se isso era um bom ou um

mau sinal. Ela se preparou para ouvir seu sermão, para as sugestões que ele certamente teria:

"Beba suco de clorofila! Tome vitaminas! Pratique ciclismo!"

— Rose! — disse calorosamente Don. — Como está se sentindo?

— Na verdade, bem melhor — disse ela. Sentou no sofá, empurrando para o lado a pilha

de exemplares de revistas sobre cães e o livro Cães para iniciantes, e percebendo quanto o

apartamento parecia vazio sem Petúnia. — Ouça, tenho pensado... Estou passando por algumas

dificuldades pessoais no momento...

— Você gostaria de tirar uma licença? — perguntou Don, tão calorosamente que Rose

teve certeza de que ele vinha pensando nisso desde o primeiro dia em que Jim aparecera para

trabalhar e ela não. — A firma tem uma política muito flexível... será uma licença não-

remunerada, é claro, mas manterei todos os seus benefícios, e você estará livre para retornar

assim que se sentir preparada. Ou se não... — Sua voz morreu na garganta. Rose conseguiu ler

volumes no curto silêncio que se seguiu. Vá embora, estava pensando Don Dommel, com tanta

força que ela praticamente podia escutar as palavras. Você tem um problema, você é um

escândalo, você é material de fofocas quentes, você ê a mancha em nossa empresa. Vá

embora e não volte.

— Seis meses? — perguntou ela, deduzindo que em seis meses teria recuperado seu

equilíbrio e estaria pronta para continuar de onde parara.

— Excelente! — concordou Don. — Mas, por favor, sinta-se à vontade para entrar em

contato caso precise de referências...

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— É claro — disse Rose. Estava atônita com quanto tinha sido fácil, com quanto tinha

sido fácil depois que havia tomado sua decisão. Todo o trabalho com que estivera obcecada nos

últimos meses ficaria... a cargo de outro jovem e ávido funcionário. Era completamente injusto.

Jim era tão culpado quanto ela. Rose sabia disso. Mas Jim continuaria no escritório de advocacia;

ele teria porcentagem dos lucros, aumentos, bônus de fim de ano, o escritório de canto com vista

para a prefeitura. E ela ficaria sem salário e receberia cartas de recomendação. Tudo bem, pensou.

Não tem problema. Ela ficaria bem. De alguma forma, ela ficaria bem.

— ...acontece — disse Don, que, evidentemente, não havia acabado de conversar com

ela.

— Desculpe, pode repetir? — pediu Rose.

— Esse tipo de coisa acontece — disse Don, e agora, sem a oratória bombástica de suas

reuniões de incentivo, estava falando num tom realmente gentil. — Às vezes você simplesmente

não se adapta a uma empresa.

— Isso é a mais pura verdade — disse, solenemente, Rose.

— Mantenha contato — disse Don.

Rose prometeu que manteria, e desligou o telefone. Então ela se sentou e considerou sua

situação. Nada mais de direito, pensou.

— Pelo menos por enquanto — disse em voz alta, e descobriu que as palavras não

chegaram a lhe causar nem mesmo uma pontada de in-felicidade. — Animais de estimação —

disse, e soltou uma risadinha, porque era estranho pensar em si própria envolvida nesse tipo de

coisa: Rose Feller, uma criatura movida a pura ambição, Rose Feller, a eterna lutadora,

abandonando o ringue para catar cocô de cachorro. — Estou apenas tirando férias — disse a si

mesma. Ferveu água para fazer um chá, sentou no sofá, fechou os olhos e se perguntou que

diabos ela tinha feito.

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—28 28 28 28 —

aggie lembrou-se de uma vez que ouviu a irmã falar ao telefone

quando tinha retornado da universidade para passar o Dia de Ação

de Graças em casa.

— Vivo na biblioteca — declarara melodramática. Bem, Rose devia dar uma olhada em

sua irmãzinha agora.

Durante sua primeira semana em Princeton, Maggie dormira em lugares diferentes —

tirou uma soneca num sofá da área comum de um dormitório, num banco de uma lavanderia de

porão — enquanto explorava cuidadosamente os três andares no subsolo, na extremidade

sudeste, um lugar que Maggie passou a pensar como a Sala dos Livros Feridos. Esses eram livros

com páginas arrancadas e lombadas quebradas, livros cuja encadernação se desfizera e fora

remendada com cola e fita adesiva. Havia uma pilha de exemplares antiqüíssimos da National

Geographic num canto, uma pilha de livros escritos em algum alfabeto com letras que ela nunca

tinha visto e três livro, de química cujas tabelas periódicas pareciam carecer de alguns elementos

descobertos mais recentemente. Durante uma tarde Maggie vigiou cuidadosamente a porta. Até

onde viu, nenhum livro jamais saía da Sala dos Livros Feridos... e nenhum livro jamais entrava.

Melhor ainda, logo na esquina do corredor havia um banheiro feminino que era usado muito

raramente, um banheiro dotado não apenas de privadas e pias, mas de um chuveiro. Os azulejos

de mármore estavam cobertos de sujeira, e depois que Maggie deixou as bicas abertas por um

bom tempo, a água passou a correr limpa.

E assim, em seu sétimo dia no campus da universidade, em sua sala sem janelas e cheia de

livros esquecidos, Maggie estabeleceu sua base. Ficava escondida na cabine para deficientes

físicos até que o último estudante fora afugentado da biblioteca e as portas trancadas. Então ela

entrava sorrateiramente no quarto, estendia seu saco de dormir entre as duas estantes altas cheias

de livros velhos e poeirentos, ligava a lanterna roubada e deitava por cima do saco de dormir.

Pronto. Aconchegada. Segura, também, com a porta trancada, e com todas as suas coisas

M

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escondidas debaixo de uma das estantes. Transeuntes casuais nem mesmo iriam se dar conta de

que havia alguém ali, a não ser que soubessem exatamente onde procurar, e o que procurar. Esse

era exatamente o efeito que Maggie estava procurando para ela própria. Estar ali, mas não

realmente ali, estar presente, mas, ao mesmo tempo, invisível.

Enfiou a mão no bolso da calça jeans que usava desde que chegara a Princeton. Ali estava

o maço de notas, as três carteiras estudantis diferentes que ela adquirira durante seus dias de

procura na biblioteca. Estavam ali os cartões de crédito de Josh, e também um de Rose, uma

chave que encontrara e que guardara, embora provavelmente jamais fosse saber que porta ela

destrancava. E um velho cartão de aniversário. Um dia muito feliz para você, leu Maggie, e

colocou o cartão numa estante, de onde poderia vê-lo.

Cruzou os braços sobre o peito e respirou fundo na escuridão. Era muito silencioso ali

embaixo, três pavimentos abaixo do solo, abaixo do peso de mil livros, silencioso como ela

imaginava que seria uma tumba. Ela podia ouvir cada estalo de sua língua nos dentes, o farfalhar

do saco de dormir cada vez que ela se movia.

Bem, pensou Maggie, pelo menos ela conseguiria dormir. Mas ainda não estava cansada.

Remexeu cm sua mochila até encontrar o livro de bolso que pegara depois que ninguém o deixara

emborcado numa cadeira, marcando a página. Os olhos deles observavam Deus, dizia o título,

mas o desenho na capa, não dava a entender que aquele fosse um livro religioso. Era o desenho

de uma mulher negra (na verdade, parecia meio púrpura na capa, mas Maggie deduziu que ela era

negra), e estava deitada de costas debaixo de uma árvore verde, olhando para cima com uma

expressão feliz e sonhadora. Não é tão bom quanto a People, deduziu, mas certamente melhor

que aquelas revistas de direito que viviam espalhadas pela casa de Rose, ou os livros de medicina

antiquados na prateleira que ficava perto de seu saco de dormir. Maggie abriu o livro e começou a

ler.

—29 29 29 29 —

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lla? Você está bem? — perguntou Lewis.

— Claro — disse, assentindo para enfatizar a

resposta.

— Você anda meio calada — disse ele.

— Estou bem — disse, somado para de. Estavam sentados juntos na varanda de Ella

protegida por tela, ouvindo o canto dos grilos, o coaxado dos sapos e Mavis Gold falando sobre

o episódio da noite passada de Everybody Loves Raymond.

— Então me diga uma coisa: do que você se arrepende? — perguntou Lewis.

— Essa é uma pergunta estranha — disse Ella.

— E essa não é uma resposta — retrucou Lewis.

Ella pensou no assunto. Por onde poderia começar? Não pelos arrependimentos reais,

decidiu.

— Sabe do que me arrependo? Nunca nadei no oceano.

— Mesmo? Nunca?

— Não desde que me mudei para cá. Não desde que eu era pequena. Tentei um dia. Levei

toalha, touca e tudo mais, mas me pareceu tão... — Ela havia levado meia hora apenas para

encontrar uma vaga para estacionar, e a praia estava cheia de garotas com biquínis

escandalosamente exíguos e rapazes em sungas de cores berrantes. Havia uma dúzia de canções

diferentes tocando em uma dúzia de rádios diferentes, o ar estava cheio com vozes altas de

adolescentes, o sol parecia forte demais e o oceano muito vasto. Assim, ela havia dado meia-volta

e retornado para o seu carro antes mesmo de pisar na areia. — Acho que estou velha demais.

Ele se levantou, balançando a cabeça.

— E

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— Ninguém é velho demais. Vamos lá.

— Lewis? Agora? Mas está tão tarde?

— Eu acho que a praia não tem hora de fechar — disse ele.

Ella fitou-o, um milhão de razões para não ir passando por sua mente. Era tarde, ela tinha

um compromisso no começo da manhã seguinte, estava escuro, e quem sabia o que eles

encontrariam lá? Passeios à meia-noite na praia eram coisa para adolescentes ou recém-casados,

não para cidadãos da terceira idade com artrite e aparelhos de surdez.

— Vamos indo — disse ele, puxando-a pelas mãos. — Você vai gostar.

— Eu não acho — disse ela. — Talvez em alguma outra oportunidade. — Mas de algum

modo ela se levantou e, junto com Lewis, caminhou até a porta, passando na ponta dos pés

diante do apartamento silencioso de Mavis Gold, como dois conspiradores, ou jovens

namorados.

A praia ficava a meros dez minutos. Lewis parou numa vaga perto da areia, abriu a porta

para ela e a ajudou a sair do carro.

— Deixe os sapatos — disse ele.

E ali estava: a água que ela vira uma centena de vezes, do carro, das janelas altas, nos

cartões e nas brochuras de papel lustroso que a haviam atraído parcialmente a Golden Acres. Ali

estava, movendo-se incessantemente, com ondas avançando e recuando, espumando na areia,

perto o bastante para fazer cócegas em seus pés descalços.

— Oh! — exprimiu Ella, e deu um pulinho para trás. — Está fria!

Lewis abaixou-se e enrolou a bainha de suas calças e depois as das dela. Ele segurou a

mão dela e os dois caminharam até a água bater acima dos seus calcanhares, e depois quase

chegar aos seus joelhos. Ella ficou parada, sentindo a água puxá-la e sugá-la à medida que as

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ondas moviam a areia. Ouvia o rosnado das ondas e sentia o cheiro de fumaça da fogueira de um

pescador, ao longe na praia. Ela soltou a mão de Lewis.

— Ella? — disse Lewis.

Ela deu mais dois passos, e então três, e a água estava acima de seus joelhos, acima de

suas coxas. A camisa de algodão flutuava em torno dela, ondulando a cada movimento do mar. A

água estava terrivelmente fria, mais fria que s lagos de sua infância, e seus dentes bateram até seu

corpo se ajustar à temperatura.

— Ei, tome cuidado! — exclamou Lewis.

— Vou tomar! — gritou em resposta. De súbito, sentia medo. Será que lembrava como

nadar? Era o tipo de coisa que se pode esquecer? Oh, ela deveria ter esperado até o raiar do dia,

ou pelo menos trazido uma toalha...

Não mais, pensou Ella. Não mais. Sentira medo por vinte anos — mais até, se contasse

com todas aquelas noites terríveis em que Caroline saía de casa e ela não sabia para onde —, mas

não queria sentir medo aqui. Não agora. E nadar tinha sido sua atividade favorita durante os anos

de sua infância e adolescência. Sentira-se invencível na água, e livre, como se pudesse fazer

qualquer coisa, como se pudesse continuar nadando para sempre, nadando até a China. Não mais,

pensou novamente, e empurrou os pés para se propelir para a frente. Uma onda bateu em cheio

em seu rosto. Tossiu, cuspiu água salgada e moveu-se através da onda, mãos se estendendo

através da água escura, pés batendo desigualmente antes de encontrar seu ritmo. E ali estava ela.

A água a mantinha flutuando, e ela estava nadando novamente.

— Ei! — gritou Lewis. Ella quase esperou virar-se e ver sua irmãzinha, Emily, de pé na

praia, pálida e arrepiada, gritando "Ella! Você está indo longe demais! Volte!"

Ella se virou e quase riu ao ver Lewis nadando cachorrinho atrás dela, dentes cerrados e

mantendo a cabeça no alto (para proteger seu aparelho de surdez, deduziu). Boiou de costas,

cabelos fluindo ao sabor das ondas até que Lewis a havia alcançado. Então ela esticou o braço até

ele, roçando os dedos na mão dele e tornando a plantar os pés na areia.

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— Se eu soubesse que íamos nadar — ofegou Lewis —, teria vindo com minha sunga.

— Eu não sabia que ia fazer isso. Foi um impulso!

— Bem, já nadou o bastante?

Ella levantou os pés, puxou as pernas contra o peito, e deixou a água envolvê-la. Sentia-se

como um ovo numa panela de água morna, completamente cercada.

— Sim — disse finalmente, e deu algumas braçadas para dar meia-volta e se colocar ao

lado de Lewis. Então acompanhou-o até a margem.

Mais tarde, sentada no topo de uma mesa de piquenique na praia, enrolada num cobertor

bolorento que Lewis desencavara do bagageiro de seu carro, Ella comentou:

— Antes você me perguntou do que me arrependo.

— Isto foi antes do nosso banho? — perguntou ele, como se a água salgada tivesse

apagado sua memória.

— Sim — respondeu Ella. — Antes. Mas eu quero lhe dizer a verdade agora. — Ela

respirou fundo, recordando a sensação da água ao seu redor, tomando coragem. Lembrou-se de

quando era uma menininha e nadava com o pai para mais longe que qualquer outra criança, para

mais longe que qualquer adulto, para tão longe que Emily depois jurava que ela tinha se tornado

um pontinho na água. — Eu me arrependo por minhas netas estarem perdidas para mim.

— Perdidas para você — repetiu Lewis. — Por quê?

— Quando Caroline morreu, o pai das meninas levou-as para longe. Ele se mudou com

elas para Nova Jersey, e ele não queria que eu mantivesse contato. Ele estava muito zangado...

Comigo, com Ira, com todo mundo. Zangado com Caroline, também, mas ela não estava

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presente para ele se zangar com ela, e nós estávamos. Eu estava. — Ella apertou mais ainda o

cobertor em torno de seu corpo. — Não o culpo por isso. — Baixou os olhos para as suas mãos.

— Havia uma parte de mim que estava... — Mais uma vez, respirou fundo. — Aliviada, acho.

Caroline era uma pessoa muito difícil de se lidar, e Michael estava muito zangado, e simplesmente

parecia mais seguro não precisar lidar com nenhuma delas. Então eu escolhi a saída mais fácil.

Parei de tentar. Agora elas estão perdidas para mim.

— Talvez você devesse tentar de novo disse Lewis. — Talvez elas fiquem felizes em ter

notícias de você. Qual é a idade delas?

Ella não respondeu, ainda que soubesse a resposta. Maggie estaria com vinte e oito anos;

Rose, com trinta. Ambas podiam estar casadas, com maridos, filhos, e sobrenomes diferentes;

elas não precisavam de uma velha, uma estranha, carregando um coração cheio de lembranças

tristes e o nome da filha morta nos lábios.

— Talvez — repetiu Ella, porque Lewis estava olhando-a, sentado de pernas cruzadas no

banco de piquenique com seus cabelos ainda molhados. E Lewis assentiu e sorriu, e Ella

compreendeu que ele não lhe faria mais perguntas naquela noite.

—30 30 30 30 —

rinceton não ia ser um problema. Mas dinheiro ia. Maggie sabia que

suas habilidades matemáticas não eram grandes coisas, mas duzentos

dólares, menos os vinte ou mais que gastara em comida no

supermercado durante os dias em que não conseguira entrar sorrateira num refeitório estudantil

ou num intervalo de estudos oferecendo pizza grátis ou sorvete Thomas Sweet, mais cartões de

crédito roubados que tinha muito medo de usar, não somavam o bastante para custear uma vida

nova. Não seriam nem mesmo suficientes para uma passagem de avião para a Califórnia, quanto

mais para um depósito para o aluguel de um apartamento, e fotos para seu currículo.

P

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Precisa haver mais dinheiro, sussurrou Maggie para seus botões. Era uma frase de um

conto que ela lera em outro livro abandonado, uma história sobre um menininho que podia

cavalgar um cavalo de pau e ver os vencedores de corridas de cavalos de verdade; e quanto mais

forte ele se embalava no cavalo de pau, mais alto o brinquedo sussurrava: Precisa haver mais

dinheiro.

Maggie considerou suas opções enquanto estava sentada no Centro Estudantil, tomando

uma xícara de chá de noventa centavos. Precisava de um trabalho que pagasse em dinheiro vivo,

e a única possibilidade que ela tinha visto estava impressa num cartaz que tirara da parede da

biblioteca. Ela largou sua xícara e desdobrou cuidadosamente a folha de papel amarelado.

"Precisa-se de doméstica", dizia o cartaz. "Limpeza leve, compras e pagamento de contas, uma

vez por semana." E abaixo havia um telefone cujo número começava com 609.

Maggie sacou seu celular — aquele que seu pai lhe dera, aquele cuja conta era enviada

diretamente para o escritório dele — e discou. Sim, informou-lhe uma mulher de voz idosa, a

vaga ainda não fora preenchida. Uma vez por semana, trabalho fácil, mas se Maggie estivesse

interessada, ela teria de cuidar de seu próprio transporte.

— Você pode pegar o ônibus na Nassau Street — sugeriu a mulher.

— A senhora se importaria em me pagar em dinheiro? — perguntou Maggie. — Ainda

não abri uma conta de banco aqui. Só tenho a conta lá da minha cidade...

— Sem problema pagar em dinheiro, desde que você trabalhasse direito — disse a

mulher, sem hesitar.

E assim, na manhã de quinta-feira, Maggie levantou ainda mais cedo que o usual,

certificou-se de que suas coisas estavam bem escondidas, e caminhou na ponta dos pés em meio

ao silêncio da biblioteca antes que qualquer luz fosse acesa. Escondeu-se no banheiro do

primeiro andar e ficou atenta para os sons dos guardas de segurança destrancando as portas da

frente. Dez minutos depois de a biblioteca abrir, Maggie saiu pela porta da frente e seguiu para a

Nassau Street.

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— Oi, você aí!— cumprimentou a mulher na varanda. Era baixa e magra, com cabelos

brancos fluindo para os ombros, e usava o que parecia uma camisa masculina com calças de

moletom por baixo. E usava óculos de sol, embora o tempo estivesse nublado.

— Você deve ser Maggie — disse ela, inclinando a cabeça na direção de Maggie. Ela

colocou uma das mãos no corrimão para se equilibrar e estendeu a outra para que Maggie a

apertasse. Cega, compreendeu Maggie, e apertou cuidadosamente a mão da mulher. — Meu

nome é Corinne. Entre.

Corinne conduziu Maggie para o interior de uma grande casa em estilo vitoriano que já

parecia imaculadamente limpa e precisamente organizada. No saguão de entrada havia, à direita,

um banco comprido de madeira debaixo de uma série de nichos na parede; dentro de cada nicho

havia um par de sapatos. Uma capa de chuva e um casaco pendiam de ganchos adjacentes; um

guarda-chuva, um chapéu e um par de luvas estavam dispostos cuidadosamente numa prateleira

acima deles. E ao lado de um cabideiro vazio havia uma bengala branca.

— Não acho que você achará o trabalho muito difícil — disse Corinne, tomando

golinhos cautelosos de café uma caneca amarelo-limão. — O chão precisa ser varrido e limpo

com o esfregão — começou, enumerando cada tarefa com os dedos das mãos. — Gostaria que

você organizasse a reciclagem, o vidro e o papel em particular. As roupas lavadas devem ser

separadas antes de serem guardadas, a lavadora de pratos precisa ser esvaziada, e...

Maggie esperou.

— E...? — finalmente perguntou.

— Flores — disse Corinne, e empinou petulantemente o queixo. — Preciso que você

compre algumas flores.

— Tudo bem — disse Maggie.

— Tenho certeza de que você está querendo saber por que eu quero flores — disse

Corinne.

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Maggie, que não estava querendo saber de nada, ficou calada.

— Porque eu não posso ver as flores — disse Corinne. — Mas eu sei como as flores são.

E também posso sentir o cheiro delas.

— Ah — disse Maggie. E então, porque, por algum motivo, "ah" pareceu insuficiente: —

Uau.

— A última garota disse que trouxe flores — disse Corinne, comprimindo os lábios. —

Mas não eram flores de verdade. Eram de plástico. Ela achou que não faria diferença.

— Trarei flores de verdade — disse Maggie.

— Eu iria gostar disso — disse Corinne.

Maggie levou menos de quatro horas para fazer tudo que Corinne havia pedido. Ela não

era uma doméstica experiente, porque Sydelle jamais confiara na competência das meninas e

empregara um exército anônimo de domésticas para manter o estado imaculado dos cômodos

cheios de vidro e metal de sua casa. Mas Maggie fez um bom serviço, varrendo cada partícula de

poeira do chão, e então dobrando as roupas lavadas e devolvendo pratos e talheres às suas

prateleiras e gavetas.

— Meus pais me deixaram esta casa — disse Corinne enquanto Maggie trabalhava. — É a

casa na qual cresci.

— É linda — disse Maggie, e era verdade. Mas também era triste. Seis quartos de dormir,

três banheiros, uma imensa escadaria espiral no centro da casa, e tudo isso para uma única

moradora, uma cega que dormia numa cama de solteiro com um só travesseiro, uma mulher que

jamais apreciaria todo o espaço ou como o sol entrava pelas janelas amplas e se espalhava nos

soalhos de madeira.

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— Está pronta para ir ao mercado? — perguntou Corinne.

Maggie fez que sim, e então lembrou que balançar a cabeça não adiantava nada.

— Já acabei tudo — informou.

Corinne usou as pontas de seus dedos para extrair uma única nota de sua carteira.

— São vinte dólares? — perguntou Corinne.

Maggie inspecionou a nota e disse que sim, era de vinte.

— A máquina só dá notas de vinte — disse Corinne. Então por que você me

perguntou?, pensou Maggie, Então compreendeu que possivelmente fora um teste. E, para

variar, ela conseguira passar na primeira tentativa. — Você pode ir ao mercado do Davidson. É

bem perto daqui, subindo a rua.

— Você quer flores com cheiro forte? — perguntou Maggie. — Como lilases ou algo

assim?

Corinne fez que não com a cabeça.

— Não precisa ter cheiro forte. Traga o que achar melhor.

— Precisa de mais alguma coisa enquanto eu estiver lá?

Corinne pareceu refletir sobre isso.

— Sim. Você pode me surpreender.

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Maggie caminhou até o mercado, pensando no que deveria comprar. Margaridas, para

começar, e ela teve sorte de encontrar buquês delas expostos logo na frente do mercado. Vagou

pelos corredores, examinando e rejeitando ameixas, morangos, espinafre, um litro de leite numa

garrafa de vidro pesada. Do que Corinne gostaria? Alguma coisa que tivesse cheiro parecia muito

óbvio, sobretudo porque ela rejeitara tão rapidamente flores com cheiro forte, mas Maggie queria

alguma coisa... Ela caçou a palavra e sorriu quando a achou: sensual. Alguma coisa que tivesse

sentimento, peso, textura, como a garrafa de vidro de leite, ou a textura acetinada de pétalas de

margarida. E, subitamente, ali estava, bem na frente dela, outra garrafa de vidro, só que esta era

âmbar. Mel. "Mel Puro. Fabricação Local", dizia o rótulo. E embora a menor garrafa custasse seis

dólares e noventa e nove centavos, Maggie acrescentou-o à cesta, junto com uma broa de pão

integral de doze grãos. Mais tarde, de volta á casa grande e limpa, quando Corinne sentou de

frente para Maggie á mesa da cozinha, mastigou lentamente uma fatia do pão integral besuntada

com mel, e pronunciou que aquilo estava perfeito, Maggie soube que ela não estava lhe prestando

um elogio vazio. Passara no segundo teste do dia encontrando a coisa certa.

—31 31 31 31 —

stou preocupado com a sua irmã — disse Michael

Feller sem preâmbulos. Rose suspirou e olhou

para sua xícara de café, como se o rosto de Maggie

pudesse aparecer dentro dela. E daí, qual era a novidade?

— Já se passaram oito semanas - prosseguiu o pai, como se Rose, de algum modo, tivesse

perdido a noção do tempo. Seu rosto parecia pálido e vulnerável como um ovo cozido

descascado, comprido, com fronte larga e olhinhos tristes sobre o terno cinzento de bancário e a

gravata marrom discreta. — Não tivemos notícias dela. Você não teve notícias dela — disse ele,

voz subindo no final da frase para torná-la uma pergunta.

— Não, papai, não tive notícias dela — disse Rose.

— E

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O pai suspirou — um suspiro típico de Michael Feller — e pegou um pouco de seu

sorvete quase derretido.

— Bem, o que você acha que devíamos fazer?

O que queria dizer: o que você acha que eu devia fazer, pensou Rose.

— Já tentou falar com todos os ex-namorados dela? Isso levaria uma ou duas semanas —

disse Rose. O pai ficou calado, mas Rose pôde ouvir censura no que ele não estava dizendo. —

Você ligou para o celular dela? — perguntou.

— Claro que liguei — disse Michael. — A caixa de mensagens dela está funcionando.

Deixo recados, mas ela não liga de volta.

Rose revirou os olhos. O pai fingiu não notar.

— Estou realmente preocupado — prosseguiu Michael. — Nunca ficamos tanto tempo

sem notícias dela. — Chego até a pensar...

— Que ela morreu? — completou Maggie. — Acho que não vamos ter essa sorte.

— Rose!

— Desculpa — disse, mas não com sinceridade. Rose não se importava se Maggie estava

viva ou morta. Bem... Rose puxou um punhado de guardanapos. Isso não era verdade. Ela não

queria que sua irmãzinha malvada estivesse morta, mas achava que ficaria perfeitamente feliz se

jamais a visse de novo.

— E, Rose, também estou preocupado com você.

— Não há nada com que se preocupar — disse Rose, e começou a dobrar um dos

guardanapos num leque. — Está tudo bem comigo.

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A voz do pai soou desconfiada quando ele levantou suas sobrancelhas grisalhas.

— Tem certeza? Você está bem? Você não está com....

— Com o quê?

Seu pai fez uma pausa.

— Com o quê? — ela perguntou novamente.

— Algum tipo de problema? Não quer... conversar... com alguém ou alguma coisa?

— Não sou maluca — disse Rose, abruptamente. — Não precisa se preocupar com isso.

O pai levantou as mãos, parecendo transtornado e indefeso.

— Rose, não foi isso que eu quis dizer...

Mas foi obviamente o que você quis dizer, pensou Rose. O pai jamais falara a respeito

disso, mas Rose sabia que ele sempre tivera essa preocupação enquanto observava suas filhas —

particularmente Maggie — entrarem na vida adulta. Você está pirando? Está perdendo a razão?

A sua herança genética está começando a se manifestar? Você está pensando em dirigir a

toda velocidade por uma estrada escorregadia e cheia de curvas?

— Estou bem — garantiu Rose. — Apenas não estava feliz naquele escritório de

advocacia. Assim, estou dando um tempo para descobrir o que quero fazer em seguida. Muita

gente faz isso. É muito comum.

— Bem, se você tem certeza — disse o pai, tornando a voltar sua atenção para o sorvete,

uma iguaria dos deuses, porque desde o começo dos anos 1990 Sydelle não permitia nada mais

calórico que leite desnatado e iogurte em sua casa.

— Estou bem — repetiu Rose. — Não precisa se preocupar comigo. — Com forte

ênfase em comigo, para deixar claro com que o pai devia se preocupar.

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— Pode telefonar para ela? — perguntou Michael.

— E dizer o quê?

— Ela não vai falar comigo — disse com tristeza. — Talvez fale com você.

— Não tenho nada a dizer a ela.

— Rose. Por favor?

— Tudo bem — resmungou Rose.

Naquela noite, ela programou o despertador para uma da manhã, e quando tocasse, ela

pegaria o telefone na escuridão e digitaria o número do celular de Maggie.

Um toque. Dois. E então a voz da irmã, alta e animada.

— Alô?

Caramba! Rose produziu um ruído de desgosto. Ela podia ouvir som de festa ao fundo:

música, outras vozes. — Alôoo! — disse Maggie, pronunciando a palavra com vibração. —

Quem é?

Rose desligou. Sua irmã era como um joão-teimoso, pensou. Ela cambaleava, ameaçava

cair, roubava seus sapatos, seu dinheiro e seu homem, mas sempre voltava a ficar de pé.

Na manhã seguinte, depois de seu primeiro turno de passeios com cachorros, Rose ligou

para o trabalho do pai.

— Ela está viva — reportou.

— Oh, graças a Deus! — exclamou o pai, soando absurdamente aliviado. — Onde ela

está? O que ela disse?

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— Não falei com ela — disse Rose. — Apenas ouvi sua voz. A filha pródiga está viva e

bem, e viveu para festejar outro dia.

Depois de alguns instantes de silêncio, o pai disse:

— Devíamos tentar encontrá-la.

— Fique à vontade — disse Rose. — E mande minhas lembranças para ela quando

encontrá-la. — Ela desligou o telefone. Que seu pai tentasse encontrar sua filha desgarrada. Que

Michael e Sydelle tentassem sugá-la de volta para casa. Que Maggie Feller se tornasse, para variar,

o problema de outras pessoas.

Caminhou até a porta e saiu para um mundo que apenas descobrira depois de largar um

emprego de horário integral e passar seus dias caminhando pelas ruas da cidade, freqüentemente

com um monte de coleiras nas mãos. Das nove da manhã às cinco da tarde, a cidade não era o

mundo fantasma que Rose sempre havia imaginado. Havia uma população completamente

diferente, uma cidade secreta de mães, bebês, trabalhadores de turno, estudantes e entregadores,

os aposentados e os desempregados, movendo-se por ruas e esquinas da cidade que ela jamais

conhecera, apesar de todos os seus anos na faculdade de direito e no escritório de advocacia. Por

que uma advogada solteira e sem filhos conheceria o Three Bears Park, um playground

escondido entre as ruas Spruce e Pine? Por que uma mulher que fazia o mesmo percurso para o

trabalho todos os dias saberia que no quarteirão que começava no número 500 da Delancey uma

bandeira diferente adejava de cada casa? Como ela teria suspeitado de que as lojas e

supermercados fervilhavam à uma da tarde, cheios de pessoas vestidas em jeans e suéteres em vez

de em ternos e pastas? Como ela saberia que poderia preencher facilmente suas horas com as

coisas que costumava apertar em seus poucos minutos de tempo disponível?

Os dias de Rose começavam com os cães. Ela tinha a sua própria chave para a Elegant

Paw, e toda manhã, na hora que normalmente estaria comprando sua caneca grande de café e

seguindo para o escritório, Rose destrancava a porta do canil, prendia três ou quatro cães nas

coleiras, enchia os bolsos com biscoitos e sacolas para excrementos e seguia para a Rittenhouse

Square. Passava 45 minutos lá, no parque, cercada por lojas de roupas, livrarias, restaurantes finos

e edifícios altos, deixando seus protegidos cheirarem arbustos, meios-fios e outros cães. Depois

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passava a manhã fazendo serviços na rua para seus clientes. Fazia compras em farmácias pegava

roupas em lavanderias, corria por calçadas e ruas laterais com os bolsos carregados de chaves,

abrindo portas para decoradores, paisagistas, exterminadores, cozinheiros particulares e até

limpadores de chaminés.

Nas tardes levava mais outro grupo de cães para passear, voltando para a Rittenhouse

Square para seu encontro diário com a menininha, o cachorro malhado e a mulher que morava

com eles.

Durante suas oito semanas como passeadora de cães, Rose ficara fascinada com a

menininha Joy, o cachorro Nifkin, e a mulher que ela deduzia ser a mãe da menina. Elas iam ao

parque entre as quatro e as quatro e meia todas as tardes. Rose passava uma hora arremessando a

bola de tênis para seus cães da tarde e inventando uma vida para a mulher, a menina e o cachorro.

Imaginava um marido, bonito de um jeito normal. Dava-lhes uma casa grande com lareiras e

tapetes de cores berrantes, um baú entupido com cada tipo de brinquedo e bicho de pelúcia para

a menininha. Ela os mandava em viagens familiares à praia e às montanhas de Poconos.

Imaginava-os saltando de um avião — o pai puxando uma mala grande com rodinhas, a mãe

puxando uma pequena, a menininha com uma bolsa adequada ao seu tamanho. Papai Urso,

mamãe Urso, bebê Urso, e o cachorro trotando alegremente atrás deles. Em sua mente, ela dava-

lhes uma vida calma e feliz — bons empregos, dinheiro suficiente, jantares em casa nas noites de

semana, apenas eles três, os pais estimulando a menininha a beber seu leite, a menininha

discretamente passando seus legumes e verduras para o cachorro chamado Nifkin.

Rose já havia progredido de cumprimentar com um meneio de cabeça, um aceno com a

mão para dizer "Oi". Com o tempo, pensou Rose, a situação poderia florescer para uma

conversa. Ela sentava e ficava vendo a menininha correr atrás do cachorro malhado até o

chafariz, e a mãe, que era alta, com ombros largos e quadris generosos, conversar ao celular.

— Não, eu não gosto de salsicha de fígado — Rose escutou a mulher dizer, — Essa é a

Lucy, lembra? A outra filha? — Ela revirou os olhos para Rose e mexeu os lábios dizendo minha

mãe. Rose dirigiu-lhe o que esperava ser um meneio de cabeça que indicasse compreensão, —

Não, acho que Joy também não gosta de salsicha de fígado, mamãe. — Ela fez uma pausa, ficou

escutando e sacudiu a cabeça. — Peter também não gosta de lebevwurst. Na verdade, acho que

ninguém gosta de salsicha de fígado. Nem sei por que ainda fabricam isso. — Rose riu. A mulher

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sorriu para ela, ainda sorrindo. — Nifkin gosta de salsicha de fígado. Nós podemos dar para ele!

— Mais uma pausa. — Bem, eu não sei o que você pode fazer com toda essa salsicha de fígado,

essa foi apenas uma sugestão. Sei lá, sirva com torradas. Diga aos seus colegas do clube de leitura

que é patê. Certo, Claro. A gente se vê lá, Tá. Tchau.

Ela desligou o telefone e o guardou no bolso.

— Minha mãe pensa que estou desempregada — comentou.

— Ah — exprimiu Rose, amaldiçoando suas habilidades de conversação enferrujadas.

— Eu não estou. Mas trabalho em casa. O que, para a minha mãe, significa que eu não

trabalho. Assim, ela pode me ligar quando quiser e me perguntar sobre salsichas de fígado.

Rose riu.

— Meu nome é Rose Feller — apresentou-se.

A mulher estendeu a mão.

— Candace Shapiro. Cannie.

— Mamãe! — A menininha reaparecera subitamente, puxando a coleira de Nifkin.

Cannie riu.

— Desculpe-me — disse ela. — Sou Candace Shapiro, que em breve será

Krushelevansky. — Ela fez uma careta. — Tente fazer isso caber num cartão.

— Então você é casada? — perguntou Rose. Estremeceu, fechou a boca e se perguntou o

que acontecera a ela. Dois meses fora do escritório, dois meses em companhia principalmente de

cães e entregadores, e ela havia se esquecido de como falar com pessoas.

Mas Cannie não agiu como se tivesse notado qualquer coisa estranha.

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— Noiva — disse ela. — Vamos oficializar em junho.

Certo, pensou Rose. Bem, se as estrelas de Hollywood podiam ter filhos antes do

casamento, os mortais da Filadélfia também podiam.

— Vão fazer uma grande festa?

Cannie fez que não com a cabeça.

— Não. Pequena. Na nossa sala de estar. Rabino, família, alguns amigos, minha mãe, o

companheiro dela, e equipe de softball dos dois. Nifkin vai ser o pajem e carregar o anel e Joy vai

ser a madrinha.

— Ah — disse Rose. — Ah... — Aquilo não parecia nenhuma das núpcias que ela vira na

tevê. — Como... — começou Rose, e então parou, insegura, antes de recomeçar com a mais

banal das perguntas. — Como você conheceu seu futuro marido?

Cannie riu e jogou o cabelo para trás dos ombros.

— Nossa, é uma história longa e complicada. Começou com uma dieta.

Rose olhou Cannie dos pés à cabeça e deduziu que não poderia ter sido uma dieta mais

bem-sucedida.

— Conheci Peter quando estava grávida de Joy, mas ainda não sabia disso. Ele estava

conduzindo um estudo sobre perda de peso e eu achei que se perdesse peso, o cara que tinha

rompido comigo ia me querer de volta. — Ela sorriu para Rose. — Mas sabe como é. Você caça

o cara errado durante um templo e de repente descobre que o certo estava parado ali, te

esperando, o tempo inteiro. O amor age de modos misteriosos. Ou é Deus? Nunca lembro.

— É Deus, acho.

— Se você diz... E quanto a você? — perguntou Cannie. — É casada?

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— Não! — respondeu enfaticamente Rose. — Quero dizer, não — disse, num tom mais

modulado. — É apenas que... bem... acabei de terminar um relacionamento. Bem, eu não

terminei exatamente. Minha irmã... deixa para lá. Longa história. — Ela baixou os olhos para suas

mãos, e em seguida olhou para Petúnia, deitada aos seus pés, para Joy e Nifkin, que estavam

brincando de pega-pega com uma luva vermelha, e para meia dúzia de outros cachorros parados

no meio de um triângulo de grama. — Acho que estou tentando decidir o que fazer em seguida.

— Você gosta do que está fazendo agora? — perguntou Cannie.

Rose olhou para Petúnia, os outros cães no parque, a bola de tênis cinza em sua mão e a

pilha de sacos de recolher excrementos ao seu lado.

— Sim — respondeu. Era verdade. Ela gostava de todos os seus cachorros: a desdenhosa

e petulante Petúnia, o golden retriever que sempre ficava tão feliz em vê-la que se punha a correr

em círculos ao ouvir sua chave na porta, os buldogues sérios, schnauzers mal-humorados, o

cocker narcoléptico chamado Sport que ocasionalmente adormecia diante de sinais vermelhos.

— E mais do que você gosta? — perguntou Cannie.

Rose balançou a cabeça, sorrindo melancólica. Sabia o que deixava sua irmã feliz: calças

de couro justas, creme hidratante francês de sessenta dólares, homens que lhe diziam o quanto

ela era bonita. Sabia o que deixava seu pai feliz: bolsa em queda, cheques de lucros distribuídos

aos sócios da empresa, um exemplar novinho em folha do The Wall Street Journal, as raras

ocasiões em que Maggie conseguia manter um trabalho. E o que deixava Amy feliz: discos de Jill

Scott, calças Sean Jean, e a comédia sobre rap Fear of a Black Hat. Ela sabia o que Sydelle Feller

amava: "Minha Márcia", grãos orgânicos, injeções de Botox, e servir à Rose, então com apenas 14

anos, gelatina diet, enquanto todo mundo mais tomava sorvete. Houve um tempo em que Rose

soubera até o que deixava sua mãe feliz, como lençóis limpos e batom vermelho, e os pingentes

de bijuteria que ela e Maggie lhes davam em seu aniversário. Mas do que a própria Rose gostava,

além de sapatos, de Jim, das comidas que lhe faziam mal?

Cannie sorriu para Rose e se levantou.

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— Você vai descobrir — disse alegremente. Chamou Nifkin com um assobio e o cão

chegou correndo, arrastando Joy, que estava com as faces rosadas e o cabelo se soltando do rabo-

de-cavalo. — Nos vemos amanhã?

— Claro — disse Rose. Ela guardou a bola de tênis e começou a reunir seus cães,

segurando cinco coleiras na mão esquerda e a coleira de um único greyhound renegado na

direita. Devolveu os cães até ficar apenas com Petúnia. A pug trotava alguns passos à frente dela

como se fosse um croissant gorducho com pernas. Petúnia deixava-a feliz, mesmo que ela tivesse

de devolver Petúnia à sua dona, Shirley, uma senhora muito séria de 72 anos que morava no

centro da cidade e que, por sorte, consentia em deixar que Rose passeasse todos os dias com a

pug. O que mais deixava-a feliz? Roupas, não. Dinheiro, não, afinal tudo que fizera com seu

exorbitante salário de seis algarismos fora pagar o aluguel e o crédito universitário, poupar uma

porcentagem prudente para sua aposentadoria, e deixar que o restante rendesse juros numa conta

de aplicação, segundo as instruções explícitas de Michael Feller.

E então?

— Olha a frente! — gritou um office-boy de bicicleta. Rose tomou Petúnia nos braços e

pulou para o lado enquanto a bicicleta passava zunindo por eles. Seu piloto estava com uma bolsa

pendurada no ombro e um walkie-talkie, emitindo ruídos de estática, no quadril. Rose o

observou afastar-se pedalando pela rua, lembrando que ela também tivera uma bicicleta quando

menina. Uma bicicleta azul, marca Schwinn, com selim azul e branco, cestinha de palha branca, e

tiras de plástico cor-de-rosa no guidom. Havia uma ciclovia que passava aliás da casa de seus pais

em Connecticut, uma trilha que conduzia a campos de golfe e de futebol. Ele também passava

por um pomar de macieiras, e no outono Rose costumava pedalar por lá, rodas esmagando maçãs

caídas, sussurrando sobre as folhas vermelhas e douradas. De vez em quando a mãe a

acompanhava em sua própria bicicleta, que era uma versão de adulto da de Rose, uma Schwinn

com três marchas e um selim de passageiro sobre a roda traseira, assento que chegou a acomodar

Rose e Maggie.

O que acontecera à sua bicicleta? Rose tentou lembrar. Quando tinham se mudado para

Nova Jersey, eles ficaram num apartamento alugado perto da rodovia, o que significou estradas

sem calçadas ou ciclovias. Rose provavelmente crescera demais para sua bicicleta enquanto eles

estavam nesse lugar e, quando se mudaram para a casa de Sydelle ela não lhe.....comprara uma

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nova. Em vez disso Sydelle fizera-a tirar sua carteira de motorista, três dias depois de completar

seus 16 anos; inicialmente Rose ficara empolgada com a perspectiva de liberdade, até

compreender que a maioria de seus passeios consistiria em pegar sua irmã em festas, conduzi-la a

aulas de dança e fazer compras de supermercado.

Rose deixou Petúnia no apartamento de Shirley e decidiu que durante o fim de semana ia

comprar uma bicicleta — uma usada, para começar, para ver se gostava. Ia comprar uma bicicleta

e talvez colocar uma cesta do tamanho de Petúnia no guidom, e guiá-la... para algum lugar.

Ouvira falar que havia trilhas para bicicletas no Fairmount Park e uma ciclovia que conduzia do

museu de arte até Valley Forge. Ela ia comprar uma bicicleta, pensou, sorrindo e caminhando

saltitante. Ela ia comprar uma bicicleta, arranjar um mapa, encher uma cesta de piquenique com

pão, queijo, uvas, brownies e uma lata de comida de cachorro requintada para Petúnia. Ela ia

viver uma aventura.

—32 32 32 32 —

Sra. Lefkowitz não quisera sair para seu passeio semanal. — Posso

fazer meu exercício aqui — dissera a Ella, brandindo a bengala para o

espaço de cinco por três metros de sua sala de estar, na qual ela

conseguira enfiar um sofá, dois sofás de dois lugares, uma poltrona e um imenso televisor

widescreen.

— Não da forma como você precisa — dissera Ella pacientemente.

— Está passando meu talk show favorito — disse a Sra. Lefkowitz com um gesto para a

tela da tevê, onde as quatro apresentadoras gritavam umas com as outras. — Não gosta de The

View?

A

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— Você quer dizer a vista para o oceano? — perguntou Ella inocente. — Eu adoro a

vista que tem para o oceano. Vamos sair e dar uma olhada.

— Tenho uma proposta para você — disse a Sra. Lefkowitz, recorrendo àquele que era,

claramente, seu recurso. — Tenho pensado em você. Na sua situação.

— Depois — disse Ella com firmeza.

— Agh, desisto — disse a Sra. Lefkowitz. Ela colocou um gigantesco par de óculos de

lentes quadradas, esfregou protetor solar no nariz e amarrou os cadarços de seus Nikes. —

Vamos indo, "Bruce Jenner". Vamos acabar logo com isso.

Elas seguiram uma pista até a quadra de tênis, onde, no mês passado, alguém, pensando

ter engatado a primeira em vez de engatar a marcha a ré, atravessara a cerca, passara através da

rede de tênis e atingira uma infeliz chamada Frieda Mandell, que estava jogando uma partida de

duplas e acabara estatelada no capo de um Cadillac, com sua raquete ainda na mão. Isto,

anunciara com mordacidade a Sra. Lefkowitz, era uma evidência clara de que esportes e

exercícios — em particular, o tênis — poderiam matar os incautos.

Mas a médica da Sra. Lefkowitz insistira que ela caminhasse, e toda terça-feira às dez, Ella

a acompanhava numa caminhada até o clube, onde almoçavam, e dali tomavam o bonde de volta

para casa. Em algum momento ao longo do caminho, Ella até passara a gostar da companhia da

mulher mais velha. A caminhada da Sra. Lefkowitz tinha um ritmo. Ela plantava a bengala,

suspirava, dava um passo adiante com o pé direito e então arrastava o esquerdo.

— E então, quais são as novidades? — perguntou a Sra. Lefkowitz. — Ainda está vendo

aquele moço?

— Lewis.

A Sra. Lefkowitz assentiu positivamente.

— Ele é um bom partido. Me faz lembrar de meu primeiro marido.

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Ella ficou intrigada.

— Seu primeiro marido? A senhora teve dois?

Plantar a bengala, suspirar, dar um passo, arrastar o outro pé.

— Oh, não. Eu só chamo Leonard de meu primeiro marido porque isso faz com que eu

pareça uma mulher mais vivida.

Ella segurou a gargalhada e manteve uma das mãos no cotovelo da Sra. Lefkowitz

enquanto passava sobre uma rachadura na calçada.

— Lewis tem uma boa renda?

— Boa, acho.

— Acha? Você acha? — inquiriu a Sra. Lefkowitz. — Não ache. Descubra! Você pode

ficar sem nenhum tostão! Como aquele Charles Kuralt!

Ella ficou confusa.

— Ele ficou sem nenhum tostão?

— Não, não, não. Não ele. mas ele tinha, eu lembro bem, outra namorada. E ela ficou

sem nenhum tostão.

— Nem mesmo com o Winnebago?

— Claro, ria — disse a Sra. Lefkowitz com um ar severo. — Você não vai rir quando

estiver comendo o queijo que o governo distribui.

— Continue andando — disse Ella.

— E os filhos dele — disse Ella. — Eles sabem sobre você?

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— Acho que sim — disse Ella.

— Certifique-se disso — disse a Sra. Lefkowitz. — Você sabe sobre Florence Goodstein?

Ella fez que sim com a cabeça.

— Bem, ela e Abe Meltzer estavam fazendo companhia um ao outro. Iam ao cinema,

jantavam fora e Flo levava Abe de carro ao médico. Um dia os filhos dele ligaram para ela para

saber sobre o pai deles, como ele estava indo, e Flo calhou de mencionar que estava cansada.

Bem, eles ouviram "cansada" e acharam que ela não queria mais cuidar dele. E naquele mesmo

dia... — A Sra. Lefkowitz fez uma pausa, parando quando a história alcançou seu ápice — ...eles

pegaram o avião para cá, esvaziaram o apartamento de Abe e o mudaram para um asilo em Nova

York.

— Oh, meu Deus — exprimiu Ella.

— Flo ficou arrasada — disse a Sra. Lefkowitz. — Foi como o ataque a Entebbe.

— Sinto muito por ela. Continue andando.

A Sra. Lefkowitz levantou os óculos escuros e olhou para Ella.

— Está pronta para ouvir minha proposta?

— Claro — disse Ella. — É sobre o quê?

— Suas netas — disse a Sra. Lefkowitz, e voltou a caminhar.

Ella resmungou por dentro. Não conseguia acreditar que contara à Sra. Lefkowitz sobre

suas netas perdidas. Há um ano ela não teria sido capaz de contar a história a ninguém. Agora,

aparentemente nem conseguia manter a boca fechada

— Eles têm o Emil? — perguntou a Sra. Lefkowitz.

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— Emil? — repetiu Ella.

— Emil, Emil — disse, impaciente, a Sra. Lefkowitz. — No computador.

— Ah, o e-mail — disse Ella.

— Foi o que eu disse — retrucou a Sra. Lefkowitz, com um suspiro sofrido.

— Eu não sei.

— Bem, poderíamos descobrir. Pela Internet. Poderíamos descobrir tudo sobre elas.

O coração de Ella deu um salto.

— A senhora tem um computador? — perguntou Ella, mal ousando nutrir esperanças.

— Claro, e quem não tem? — retrucou a Sra. Lefkowitz. — Meu filho me deu um iMac

no meu aniversário. Tangerina. Culpa — disse ela, aparentemente em resposta às perguntas não

formuladas De que cor? e Por quê? — Como ele não me visita muito, me mandou o

computador, e agora me passa e-mails com fotos dos meus netinhos. Que tal voltarmos agora lá

para casa e procurar suas netas? — perguntou, torcendo para que Ella concordasse em

interromper a caminhada.

Ella mordeu o lábio. Ouvia a voz dentro dela gritando Procure por elas! Em guerra com

a voz, muito mais familiar, muito mais insistente, que dizia Esqueça-as! E sentia a antecipação e

a esperança frágil vará-la com puro terror.

— Deixe-me pensar no assunto — disse finalmente.

— Não pense — retrucou a Sra. Lefkowitz, arrastando seu pé 27 centímetros e fincando

sua bengala no chão, perdendo por um triz o pé de Ella. — Pensar você não deve, agir você

deve.

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— Hein?

— Yoda — esclareceu a Sra. Lefkowitz, e iniciou o processo laborioso de dar meia-volta.

— Vamos nessa.

—33 33 33 33 —

aia pela porta como um fantasma na névoa —

disse um sujeito vestido com uma camisa de

linho branca amassada, encanto Maggie pagava

pelas portas da biblioteca Firestone à dez da manhã de um dia nem um pouco enevoado.

O sujeito emparelhou com Maggie. Sem diminuir o passo, ela olhou para ele. Também

tinha uma mochila sobre os ombros — que de alguma maneira carregava com estilo —, tinha

rosto pálido, cabelos castanhos cacheados que cobriam suas orelhas, e o que estava usando —

camisa de linho e calças de linho muito bem passadas — era um desvio significativo do uniforme

não-oficial do campus, que consistia em caças jeans e camisa de malha.

— Não tem neblina nenhuma aqui fora — disse ela. — E isso não é de uma canção?

— Não obstante... — Ele apontou para o exemplar de Minha Antonia que Maggie

carregava debaixo do braço. — Mulheres na literatura?

Maggie deu de ombros, num gesto que poderia significar sim ou não, concluindo que

quanto menos falasse, melhor. Nas semanas em que passara no campus, com exceção de sua

primeira noite na festa, ela não dissera muito mais do que "obrigada" ou "com licença" a outros

estudantes. O que não era problema nenhum, porque ela tinha Corinne com quem conversar. Ela

tinha livros. Ela tinha uma poltrona confortável na sala de leitura ensolarada da biblioteca e,

quando tinha vontade de uma mudança de cenário, uma mesinha favorita no Centro Estudantil.

— S

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Ela havia terminado o livro de Zora Neale Hurston, terminado Grandes esperanças, e agora

estava avançando por Um conto de duas cidades, relendo Minha Antonia, e penando com

Romeu e Julieta, que era muito mais difícil de acompanhar do que dera a entender o filme do

Baz Luhrmann. Conversar com estudantes apenas conduziria a perguntas, e perguntas apenas

conduziriam a problemas.

— Eu vou acompanhar você — disse o rapaz.

— Não precisa — disse Maggie, tentando afastar-se.

— Não é problema nenhum — disse animadamente o rapaz. — É na McCosh, certo?

Maggie não tinha a menor idéia onde Mulheres na literatura se encontravam ou onde

McCosh poderia ser localizado, mas assentiu nova-mente, e apertou o passo. O sujeito não teve

dificuldade em acompanhá-la. Pernas compridas, observou Maggie.

— Meu nome é Charles.

— Desculpe, mas não estou interessada, certo? — finalmente disse Maggie.

Charles parou e sorriu para ela. Ele parecia um pouco com um desenho de lorde Byron

que Maggie vira num dos livros que afanara — nariz comprido, lábios petulantes. Sem barriga,

mas também sem bíceps. Não era seu tipo.

— Você ainda não ouviu meu argumento — disse ele.

— E há um argumento? — perguntou, desanimada, Maggie.

— Claro que há — disse Charles. — Eu. Bem... Isto é estranho. Mas acontece que eu

estou necessitando de uma mulher.

— E todos vocês não estão? — perguntou Maggie, reduzindo o passo de modo que agora

seus pés estavam praticamente arrastando, deduzindo que se ela não pudesse fugir dele, talvez

pudesse fazer com ele ficasse pressa e fosse embora para sua aula.

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— Não, não desse jeito — disse Charles, sorrindo e acompanhando novamente o ritmo

dela. — Estou na aula de dramaturgia, e nós precisamos apresentar cenas, e eu preciso de uma

mulher... um tipo ingênuo de mulher... para fazer minha cena para mim.

Maggie olhou para ele.

— Você quer dizer, atuar? — Maggie parou novamente e olhou direto para ele. Ele era

alto, com olhos cinzentos muito bonitos.

Charles fez que sim.

— Exatamente — disse Charles, enquanto ele e Maggie voltaram a caminhar na direção

do McCosh Hall. — Na primavera, eu quero dirigir uma peça de um ato no Teatro Intime. —

Ele pronunciou o nome como "Ô-tim", e por um instante Maggie não tinha certeza do que ele

queria dizer. Ela passara por aquele prédio umas cem vezes e ela sempre deduzira que se falava

seu nome como se escrevia: In Time. O que a assustou: quantas outras coisas ela interpretara

equivocadamente, mesmo que isso só acontecesse na privacidade de sua cabeça? — Assim, se a

cena ficar boa, será um primeiro passo. Então, quer ajudar um irmão?

— Você não é meu irmão — disse Maggie. — E como você sabe que eu sei atuar?

— Você sabe, não sabe? — perguntou Charles.—Você tem aquele jeito.

— Jeito de quê?

— Dramático — disse prontamente. — Mas eu estou me apressando muito. Ainda nem

sei seu nome.

— Maggie — disse Maggie, momentaneamente esquecendo seu desejo de ser conhecida

como M.

— Sou Charles Vilinch. E estou certo, não estou? — perguntou o rapaz. — Você é atriz,

não é?

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Maggie simplesmente fez que sim, torcendo que ele não pedisse detalhes, porque não

achava que seu trabalho como backing vocal da Whiskered Biscuit ou a aparição de sua bunda

no vídeo do Will Smith iriam impressioná-lo muito.

— Olha, eu gostaria de te ajudar, mas... bem, eu não sei se posso — disse Maggie,

lamentando de verdade, porque estrelar numa peça, ainda que fosse uma peça vagabunda de um

só ato dirigida por um estudante, era extremamente sedutor. Poderia ser um começo, pensou.

Princeton não era tão distante assim de Nova York. Talvez alguma notícia sobre a peça, e a

estrela, chegasse à cidade. Talvez um agente ou um diretor viesse até aqui dar uma olhada.

Talvez...

— Por que você não tira o dia para pensar no assunto? — propôs Charles. — Te ligo à

noite.

— Não — disse Maggie, pensando depressa. — Não. Meu telefone não está

funcionando.

Charles não esquentou a cabeça.

— Então se encontre comigo para tomarmos um café.

— Eu não posso...

— Chá descafeinado, então — disse Charles. — Às nove no Centro Estudantil. A gente

se vê lá.

E ele se afastou, deixando Maggie na entrada do salão de palestras, onde estudantes —

em sua maioria mulheres, algumas segurando o mesmíssimo Minha Antonia — fluíam pelas

portas. Maggie ficou parada ali por um minuto, pensando Porque não? à medida que os corpos

vertiam ao redor dela. Seria mais complicado dar meia-volta do que simplesmente seguir a turba

para dentro. Ela se sentaria no fundo, pensou. Além disso, estava curiosa para ver o que o

professor diria sobre o livro. Talvez ela até pudesse aprender alguma coisa.

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—34 34 34 34 —

ocê está se saindo bem? — perguntara certa

manhã Amy a Rose enquanto as duas comiam

panquecas de mirtilo no Morning Glory Diner.

Amy, de calças pretas justas e blusa azul-escura, estava a caminho do aeroporto e de uma viagem

de negócios que iria levá-la à zona rural da Geórgia e às profundezas do Kentucky, onde faria

uma palestra sobre instalações de tratamento de água ("que fedem tanto quanto você imagina",

dissera a Rose). Rose, em suas agora costumeiras calças cáqui folgadas, estava a caminho de levar

dez romances recém-lidos à banca de Troca de Livros, em troca de outros dez, e depois levaria

um shipperke chamado Skip para passear.

Rose mastigou a comida e pensou no assunto.

— Eu sou boa — respondeu lentamente, enquanto os dedos leves de Amy roubavam

uma tira de bacon de seu prato.

— Não sente falta do trabalho?

— Sinto falta da Maggie — murmurou Rose com a boca cheia de panqueca.

Era verdade. O Morning Glory ficava no velho bairro de Maggie, bem na esquina do

apartamento do qual fora chutada antes de se refugiar na casa de Rose. Enquanto Rose estava na

faculdade, Maggie ia passar um fim de semana com ela uma ou duas vezes por semestre. Depois,

quando começara a trabalhar, Rose ia ao sul da Filadélfia e se encontrava com Maggie para

almoçar, ou tomar umas cervejas, ou levar sua irmã a um passeio no shopping King of Prussia.

Rose tinha lembranças boas da série de apartamentos de Maggie. Não importava onde ela

estivesse morando, as paredes sempre acabavam pintadas de cor-de-rosa, e Maggie estacionava

num canto o seu secador de cabelos que era uma peça de antiquário, com um misturador de

martíni comprado em uma loja de artigos de segunda mão perpetuamente preparado para o uso.

— V

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— E então, onde ela está? — perguntou Amy, limpando com um guardanapo uma faca

de manteiga e usando-a para inspecionar seu batom.

Rose balançou a cabeça, sentindo as sensações de raiva, frustração, fúria e simpatia, que

Maggie costumava provocar, subindo por sua garganta.

— Eu não sei. Eu não sei se quero saber.

— Bem, conhecendo a Maggie, cedo ou tarde ela vai aparecer — disse Amy. — Ela vai

precisar de dinheiro, de um carro, ou de um carro cheio de dinheiro. Seu telefone vai tocar e ali

estará ela.

— Eu sei — disse Rose, e suspirou.

Ela realmente sentia falta de sua irmã... exceto que falta não era a palavra certa. Claro, ela

sentia falta de ter uma companhia, de ter alguém com quem compartilhar desjejuns, pedicures e

passeios ao shopping. Ela descobrira que até sentia falta dos ruídos e da bagunça de Maggie, da

forma como ela sempre mantinha o aquecedor no máximo até deixar seu apartamento parecendo

uma ilha tropical. Sentia falta de como, nas mãos de Maggie, até a história mais mundana acabava

virando uma aventura em três atos. Lembrava de Maggie tentando dar descarga num bolo de

lenços de papel empapados em maquiagem pela privada recalcitrante de Rose, gritando "Engole

tudo, piranha!" para a louça; Maggie dando um chilique na seção de produtos de higiene do

supermercado porque sua marca favorita de condicionador para sua cor específica de cabelo

estava em falta; o movimento rápido de "se afasta" que ela fazia com as pontas dos dedos quando

queria que Rose lhe desse mais espaço no sofá; a canção que sua irmã cantava no chuveiro. "It

had to be me... it had to be me..."

Amy tamborilou impacientemente sua faca na ponta do seu prato. "Terra chamando

Rose."

— Estou aqui — disse Rose.

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Mais tarde, naquela mesma manhã, Rose parou sua bicicleta num telefone público, pescou

um punhado de moedas do bolso, e discou novamente para o celular da irmã. Um toque, depois

dois.

— Alô? — perguntou Maggie, voz rouca e arrogante. — Alô, quem é?

Rose desligou, temendo que Maggie visse o código de área 215 e se perguntasse se seria

ela, e se ela se importava.

—35 35 35 35 —

e Maggie Feller tinha aprendido uma coisa em seus 14 anos lidando

com o sexo oposto, era isto: suas relações ruins sempre voltavam para

assombrar você. Pegue um cara que você nunca viu antes na vida, e

tudo que precisa fazer para garantir que continuará a encontrá-lo em toda parte é passar alguns

minutos sozinha com ele num banco traseiro, num quarto, ou atrás de uma porta de banheiro

trancada. Então volta e meia ele vai pipocar no refeitório, nos corredores, do outro lado do

balcão da lanchonete na qual você acaba de começar a trabalhar, ou segurando a mão de outra

garota na festa da sexta-feira seguinte. É a lei de Murphy dos relacionamentos — o cara que você

nunca mais quer ver novamente é o cara que você não conseguirá evitar. E Josh, o cara de sua

primeira noite no campus, infelizmente não era exceção

.

Maggie não tinha certeza se ele a havia reconhecido — Josh estava completamente

bêbado, o encontro fora tarde da noite, e ela acabara de saltar do trem, sem ter tido chance de

aperfeiçoar sua camuflagem de Princenton. Mas Josh estava em toda parte, e parecia prestes a

associar o rosto de Maggie ao dinheiro, ao saco de dormir, à lanterna de acampamento e às

roupas que perdera.

S

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Maggie estava na biblioteca e levantava os olhos do livro que estava lendo para ver de

relance a suéter e o perfil de Josh, Maggie estava se servindo de café na lanchonete e Josh estava

de pé atrás do bufê, analisando-a. Josh chegara até mesmo a conversar com ela na noite de

sábado em que ela arrastara uma fronha de travesseiro roubada cheia de roupa suja até a

lavanderia, julgando, equivocadamente, que ninguém apareceria para lavar roupa numa noite de

sábado.

— Oi — disse ele casualmente enquanto olhava para os sutiãs e calcinhas que ela enfiava

na máquina de lavar.

— Oi — disse Maggie, mantendo a cabeça baixa.

— Como vão as coisas? — perguntou ele.

Maggie respondeu com um leve encolher de ombros, jogando por cima das roupas o

detergente de uma das garrafinhas que comprara na máquina de venda automática.

— Quer um pouco de amaciante. — Ele levantou seu caneco para ela e sorriu. Mas os

olhos de Josh não estavam sorrindo. Seus olhos estavam fazendo um inventário cuidadoso do

rosto, dos cabelos e do corpo de Maggie, comparando o que estava vendo com o que lembrava

daquela noite em sua cama.

— Não, obrigada. Não preciso, não — respondeu.

No exato instante em que Maggie enfiava suas moedas de 25 centavos na ranhura, seu

celular tocou. Devia ser seu par, deduziu. Ele ligara antes e ela não respondera, mas agora ela

agarrou o telefone como se ele fosse a bóia que iria salvá-la de um afogamento.

— Alô! — disse animadamente, afastando seu rosto e seu corpo do exame minucioso de

Josh.

Não houve resposta, apenas respiração.

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— Alô! — repetiu Maggie, subindo correndo as escadas, cruzando com um grupo de

estudantes que estava passando uma garrafa de champanhe de mão e mão e cantando algum tipo

de hino de futebol americano. — Quem é?

Nenhuma resposta. Apenas um clique, e então silêncio. Ela deu de ombros, guardou o

celular no bolso e correu para o ar frio e primaveril. Havia lâmpadas iluminando o caminho a

intervalos regulares, e havia bancos de madeira ao longo do caminho e diante dos prédios.

Maggie escolheu um banco longe da luz, e sentou-se num canto. Hora de partir, estava pensando.

Não é um campus grande, e você está encontrando o cara em toda parte; é apenas uma questão

de tempo até que ele descubra quem você é e o que você fez, se é que já não descobriu. É hora

de juntar suas fichas, pousar suas cartas na mesa; é hora de tomar o próximo ônibus para algum

lugar.

Exceto, e isso era esquisito, que ela não queria partir. Ela estava... estava o quê? Maggie

recolheu as pernas para o peito e levantou os olhos para os galhos das árvores, carregados com

brotos verdes, e o céu estrelado da noite. Estava se divertindo. Bem, não exatamente se

divertindo, não se divertindo como você se diverte numa festa, não se divertindo como você se

diverte se arrumando toda, ficando linda e sentindo olhos invejosos acompanharem seus

movimentos. Era outro tipo de diversão. Um desafio. O tipo de desafio que a série de empregos

de salário mínimo que ela tivera jamais havia lhe oferecido. Era como ser a estrela de seu próprio

seriado policial.

E não era apenas uma questão de não deixar ninguém notar. Esses eram jovens

inteligentes, que tinham tirado notas altíssimas no segundo grau e que estavam se esforçando

para se formar com louvor. Eles eram a nata, e Maggie conseguia se mover invisível no meio

deles. E se Maggie conseguia fazer isso, não estava provando o que a Sra. Fried sempre dissera a

seu respeito? Se Maggie podia sobreviver a Princeton, se podia sentar-se na fileira do fundo de

uma dúzia de classes diferentes e realmente acompanhar o que estava sendo ensinado, isso não

significava que ela também era esperta?

Maggie enxugou o orvalho que caíra em suas calças jeans e se levantou. Além disso, havia

a peça de Charles, sua estréia como diretor, uma peça de um ato de Beckett no Teatro Intime. E

ela ia ser a estrela. Maggie vinha se encontrando com Charles alguns dias por semana para

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ensaiar, passando suas falas no Centro Estudantil, ou numa sala de aula vazia no prédio de artes

na Nassau Street.

— Quando quiser, passa lá em casa. Moro lá no edifício Lockhart — dissera Charles a

Maggie na última vez que eles haviam se encontrado, enquanto a acompanhava na volta

do........número 185 da Nassau. — Fico acordado até tarde. Divido o apartamento com dois

colegas — acrescentou, antes que Maggie tivesse oportunidade de levantar a sobrancelha. —

Garanto que sua virtude estará a salvo comigo.

Bem, agora era bem tarde. Ela se perguntou se ele estaria acordado. Ela se perguntou,

abraçando a si mesma, se ele se importaria de lhe emprestar uma suéter. Ela atravessou o campus

em passos rápidos. O Lockhart, se lembrava bem, ficava ao lado da loja da universidade. O

quarto de Charles ficava no primeiro andar e quando Maggie bateu na janela, ele puxou a cortina

e sorriu, e correu para deixá-la entrar.

O quarto de Charles não era nem de perto o que ela havia imaginado. Maggie teve a

impressão de que estava entrando em outro país. Cada centímetro da parede, e do teto, estava

coberto por tapeçarias indianas e dúzias de espelhos de moldura prateada. Um tapete oriental,

escarlate, dourado e azul, cobria o chão, e em vez de uma mesinha de café no centro, havia uma

arca velha e maltratada — um baú do tesouro ro, pensou Maggie. Charles e seus colegas de

quarto tinham encostado suas mesas nas paredes e cercado o baú com pilhas de almofadas —

vermelhas com franjas douradas, púrpuras com franjas vermelhas, uma verde decorada com

lantejoulas douradas.

— Sente-se onde quiser — disse Charles, indicando as almofadas. — Quer beber alguma

coisa? Tem uma mini-geladeira no canto, com uma máquina de cappuccino em cima.

— Uau — disse Maggie. — Vocês estão dirigindo um harém?

Charles soltou uma gargalhada e balançou a cabeça.

— Não. A gente apenas gosta de brincar um pouco com a decoração. No semestre

passado Jasper foi à África, e nós fizemos uma decoração temática de safári, mas as cabeças de

bichos nas paredes me davam nos nervos. Isto é bem melhor.

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— Muito bom — disse Maggie, caminhando lentamente em círculos pela sala, verificando

cada detalhe. Havia um aparelho de som pequeno, de aparência sofisticada, no canto, com CDs

organizados por gênero — jazz, rock, world, music, clássico — e, dentro de cada gênero,

organizados alfabeticamente. Em outro canto havia uma mesa pequena e alta cheia de livros de

viagem: Tibete, Senegal, Machu Pichu. Quando respirou fundo, Maggie sentiu um cheiro de

incenso perfumado e cigarros. A minigeladeira continha água engarrafada, limões, maçãs e geléia

de damascos. Nem uma garrafa de cerveja ou condimentos.

Gay, decidiu Maggie, fechando a porta da geladeira. Gay, pensou ela, com um certo nível

de alívio. Gay, sem sombra de dúvida. Ela pegou uma fotografia emoldurada na mesa de Charles.

Era ele, com o braço sobre os ombros de uma garota risonha.

— Sua irmã?

— Ex-namorada — respondeu.

Opa, pensou Maggie.

— Não sou gay — disse Charles. E riu, meio envergonhado. — É que todo mundo que

vem aqui pensa isso. E depois eu preciso passar três meses agindo da forma mais heterossexual

possível.

— Ah, você só precisa coçar o saco a cada cinco minutos em vez de a cada vez. Não dá

tanto trabalho assim — disse Maggie, deixando-se cair sobre as almofadas, e pondo-se a folhear

um livro sobre o México. Casas de paredes pintadas a cal contrastando com o céu azul brilhante,

madonas chorosas em átrios azulejados, ondas brancas beijando areia dourada. Maggie estava

desapontada. Ela só conhecera três tipos de homens em toda sua vida: os que eram gays, os que

eram velhos, e os da terceira categoria, cem vezes maior que as duas primeira, os que a

desejavam. Se Charles não era gay, e certamente não era velho, então provavelmente a desejava.

O que deixava Maggie entristecida, e um pouco trapaceada. Jamais conhecera um cara que estava

disposto a ser apenas seu amigo, e passara tempo suficiente com Charles para saber que ele

gostava dela por sua inteligência, raciocínio rápido e versatilidade, em vez de pela coisa que todo

outro homem no mundo geralmente gostava dela.

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— Bem, estou feliz por termos esclarecido isso. E estou feliz por você estar aqui. Tenho

um poema para você.

— Para mim? Você escreveu?

— Não. Nós estudamos ele na semana passada em História da Poesia. — Ele abriu uma

Norton Anthology e começou a ler:

"Margaret, está chorando

Pelas folhas que murcham na alameda?

Agora chora por folhas,

Mas quando seu coração amadurecer,

Endurecer,

Chorará por outras coisas.

Por enquanto, não poupe lágrimas.

Chore pelas folhas que murcham na alameda.

Porque um dia chorará e saberá o motivo.

E descobrirá que,

Ainda que o objeto seja outro,

A dor é igual

O que o seu coração não enxerga agora,

O seu espírito já conhece.

É pela desgraça para a qual o homem nasceu,

Que Margaret chora."

Ele fechou o livro. Maggie respirou fundo. Seus braços estavam arrepiados.

— Uau — disse ela. — Sinistro. Mas meu nome não é Margaret.

— Não?

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— Não — disse ela. — Apenas Maggie. Na verdade, Maggie May. — Ela soltou uma

risada constrangida. — Do famoso poeta, Rod Stewart. Minha mãe gostava da canção.

— Como era sua mãe? — perguntou Charles.

Maggie fitou Charles, e então desviou o olhar. Em geral, neste momento de trocas de

informações sobre o passado com o homem da vez, este seria o ponto em que Maggie inventaria

uma versão da história trágica da morte de sua mãe, e a colocaria no colo do homem como uma

caixa de presente embrulhada luxuosamente. Às vezes ela contava que a mãe morrera de câncer

do seio, e às vezes ficava com a história do acidente de carro, mas sempre embelezava a história

com detalhes e muito drama. A quimioterapia! O policial na porta! O funeral, com as duas

menininhas chorando sobre o caixão! Mas Maggie não sentiu vontade de contar a Charles essa

versão da história. Sentiu vontade de contar a ele alguma coisa mais próxima da verdade, o que

era assustador, porque se ela lhe contasse a verdade a respeito disso, o que mais se sentiria

tentada a pôr para fora?

— Não tenho muito a contar.

— Ora, eu sei que isso não é verdade — disse ele. Maggie sentiu os olhos de Charles nela.

Ela sabia o que estava vindo. Por que você não se aproxima mais?, ou Posso lhe servir uma

bebida? E logo ela sentiria lábios cm seu pescoço ou um braço em torno de seus ombros, com

uma das mãos de Charles encaminhando-se aos seus seios. Era uma dança que ela dançara muitas

vezes.

Exceto que as palavras não soaram, nem os lábios a tocaram. Em vez disso, Charles

permaneceu exatamente onde estava.

— Certo. Então me conte — disse, e sorriu para ela. Um sorriso amistoso, pensou

Maggie, sentindo-se aliviada. Maggie lançou um olhar para o relógio antigo na mesa de Charles.

Passava de uma da manhã.

— Preciso ir — disse ela- — Tenho de pegar minhas roupas na lavanderia.

— Eu te acompanho.

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— Não, está tudo bem.

Mas ele estava balançando a cabeça e pegando a mochila dela.

— Não é seguro andar por aí sozinha.

Maggie quase soltou uma gargalhada. Princeton era o lugar mais seguro em que já

estivera. Era mais seguro que uma piscina infantil, mais seguro que uma cadeirinha de carro para

bebês, A maior catástrofe que ela tinha visto até agora em Princeton era quando alguém deixava

cair sua bandeja no refeitório.

— Não, é verdade. Além disso, estou faminto. Já comeu no P.J's?

Maggie fez que não com a cabeça. Charles fingiu uma expressão horrorizada.

— É uma tradição de Princeton. Panquecas de chocolate maravilhosas. Vamos indo —

disse ele, abrindo a porta para Maggie. — Por minha conta.

—36 36 36 36 —

ose Feller sabia que um dia este dia iria chegar.

Depois de três meses levando cachorros para passear, pegando roupas

em lavanderias, indo a supermercados e locadoras, ela imaginava que acabaria esbarrando com

alguns dos rostos familiares dos seus dias na Lewis, Dommel e Fenick. E assim, num dia

ensolarado de abril, Shirley, a dona de Petúnia, deu a Rose um envelope no qual estava impresso

endereço que ela conhecia tão bem e perguntou: "Pode deixar isto no escritório do meu

advogado?" Rose simplesmente engoliu em seco, enfiou o envelope em sua bolsa, montou em

R

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sua bicicleta e pedalou rumo à Arch Street e a torre alta e reluzente onde um dia ela havia

trabalhado.

Talvez ninguém nem a reconhecesse, raciocinou enquanto pedalava. Ela passara seus dias

na Lewis, Dommel e Fenick usando terninhos e saltos altos (e apaixonada, seu cérebro insistiu

em lembrá-la). Hoje ela estava usando bermudas, um par de meias decoradas com desenhos de

frigideira, ovos estalados e xícaras de café (uma coisinha que Maggie deixara para trás), e sapatos

de sola dura, próprios para ciclismo. Seus cabelos agora desciam até abaixo dos ombros e

estavam amarrados em dois rabos-de-cavalo. Rose aprendera com o método de tentativa e erro

que esse era um dos poucos estilos que funcionavam debaixo de um capacete de ciclismo. E

embora não tivesse perdido peso desde que abandonara o mundo do litígio, seu corpo estava

diferente. Dias pedalando e caminhando haviam concedido músculos aos seus braços e pernas, e

sua palidez típica de escritório fora substituída por um bronzeado. Suas faces reluziam em rosa,

seus cabelos, amarrados no rabo-de-cavalo, estavam lustrosos. Então agora ela tinha isso a seu

favor, pelo menos. Coragem, disse a si mesma, enquanto saía do elevador e caminhava até a

recepção, pernas bronzeadas à mostra, sapatos estalando nos azulejos do chão. Coragem. Não

pode ser tão difícil assim. Tudo que ela tinha a fazer era deixar o documento, pegar uma

assinatura e...

— Rose?

Ela segurou a respiração, torcendo para que aquilo que acabara de ouvir tivesse sido

emitido de sua imaginação e não de um escritório do outro lado do saguão. Virou-se e, parado ali,

estava Simon Stein, praticamente apaixonado de softball, cabelos ruivos reluzindo sob as luzes

do teto, gravata vermelha e dourada ressaltando a curva suave de sua barriga.

— Rose Feller?

Bem, pensou ela, dando a ele um meio sorriso e um leve aceno, poderia ser pior. Poderia

ser Jim. Agora, se ela pudesse entregar o envelope e dar no pé dali...

— Como vai você? — perguntou Simon, que atravessara correndo o saguão e agora

estava bem ao seu lado, olhando-a dos pés à cabeça como se ela tivesse se metarmofoseado numa

espécie até agora desconhecida. Talvez ela tivesse, pensou com amargor. A ex-advogada. Quantas

dessas Simon Stein já vira?

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— Estou bem — respondeu num tom tranqüilo, e entregou o envelope à recepcionista,

que estava olhando para Rose com indisfarçável curiosidade, tentando combinar a garota

bronzeada de bermudas com a mulher sóbria de tailleur.

— Eles nos disseram que você saiu de licença — disse Simon.

— E saí — disse sucintamente, recolhendo o recibo assinado da recepcionista e se

virando para a porta. E embora Rose tenha mentalizado para que Simon fosse embora, o jovem

advogado a seguiu.

— Ei — chamou ele —, você já almoçou?

— Preciso mesmo ir — disse ela quando um dos elevadores abriu, despejando uma

multidão de funcionários no saguão. Rose olhou nessa direção, procurando pelo rosto de Jim, e

não recomeçou a respirar até notar que ele não estava ali.

— Comida de graça — disse Simon Stein com um sorriso encantador. — Vamos. Você

precisa mesmo comer. Vamos encontrar um lugar chique e fingir que somos importantes.

Rose riu.

— Não, comigo vestida deste jeito, não vamos não.

— Ninguém vai dizer nada — garantiu Simon, e seguiu Rose para dentro do elevador

como se fosse um daqueles cães que a seguiam todos os dias. — Vai ser divertido.

Dez minutos depois, estavam sentados a uma mesa para dois no Sansom Street Oyster

House, onde, exatamente como Rose temera, ela era a única mulher que não estava usando meia-

calça e sapatos altos.

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— Dois chás gelados — disse Simon Stein, afrouxando a gravata e dobrando as mangas

sobre seus antebraços sardentos. — Gosta de sopa de mariscos? Come faturas?

— Sim e às vezes — respondeu Rose, que havia soltado o rabo-de-cavalo e estava

tentando ajeitar os cabelos.

— Duas tigelas de sopa de mariscos à moda da Nova Inglaterra e o prato de frutos do

mar sortidos — disse à garçonete, que assentiu em sinal de aprovação.

— Sempre pede para estranhos? — perguntou Rose, que decidira que seus cabelos eram

uma causa perdida e agora estava tentando puxar as pernas da bermuda para cobrir o machucado

em seu joelho direito.

Simon Stein fez que sim com a cabeça e pareceu satisfeito consigo mesmo.

— Sempre que posso — respondeu. — Você já sentiu inveja da comida?

— O que é isso? — perguntou Rose.

— Sabe quando você vai a um restaurante e pede alguma coisa, e quando o garçom traz o

prato de outro cliente ele parece dez vezes melhor do que o pedido que você fez?

Rose assentiu positivamente.

— Claro. Acontece sempre.

Simon fez cara de convencido. Considerando os cabelos ruivos cacheados e o sorriso, ele

lembrava o Ronald McDonald.

— Bem, isso nunca aconteceu comigo.

Rose fitou-o demoradamente antes de dizer:

— Nunca?

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— Bem, quase nunca. Sou especialista em fazer pedidos em restaurantes. Um mestre do

cardápio.

— Um mestre do cardápio — repetiu Rose. — Você devia estar na TV. Pelo menos num

canal a cabo.

— Sei que parece loucura, mas é verdade. Pergunte a qualquer pessoa com quem já fui a

um restaurante. Jamais estou errado.

— Certo — disse Rose, respondendo ao desafio e pensando no melhor restaurante em

que estivera recentemente, com "recentemente" definido como seis meses atrás, quando ela fora

jantar com Jim depois do trabalho, num horário bem tardio, quando ambos teriam certeza de que

não esbarrariam com nenhum conhecido. — London.

— A cidade ou o restaurante?

Rose resistiu a revirar os olhos.

— O restaurante. Fica perto do museu de arte.

— É claro — disse Simon. — Lá você deve pedir a lula com sal e pimenta, o pato assado

com molho doce de gengibre e, para a sobremesa, o cheesecake com cobertura de chocolate

branco.

— Isso é surpreendente — disse Rose num tom não completamente sarcástico.

Simon deu de ombros e levantou suas mãos pequenas para os céus.

— Olhe, moça, não é minha culpa se tudo que você come é peixe grelhado com batatas

assadas.

— Como você sabe disso? — perguntou Rose, que se lembrava bem, pedira salmão

grelhado no London.

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— Apenas um palpite — disse Simon. — Ademais, isso é o que a maioria das mulheres

costuma comer. O que é uma pena. Me testa de novo.

— Brunch no Striped Bass — disse Rose, citando um dos melhores restaurantes da

cidade. Certa vez seu pai levara ela e Maggie lã para comemorarem alguma coisa. Rose pedira

linguado. Maggie, se ela lembrava bem, pedira três Cocas com rum e, no fim das contas, o

telefone do sommelier.

Simon Stein fechou os olhos.

— O cardápio deles tem ovos Benedict com lagosta escaldada?

— Eu não sei. Na verdade nunca estive lá para o brunch.

— Nós devíamos ir — disse Simon.

Nós?, pensou Rose.

— Porque é isso que você deve pedir — prosseguiu ele. — Comece com as ostras, se

você gosta de ostras... Você gosta de ostras, não gosta?

— Claro — respondeu Rose, que jamais comera ostras.

— E depois deve pedir os ovos Benedict com lagosta escaldada. É realmente bom. — Ele

sorriu para ela. — Próximo?

— Penang — disse Rose. O Penang era o novo e recomendado restaurante de culinária

malaia que abrira em Chinatown. Ela apenas lera a respeito dele, mas Simon Stein não sabia disso.

— Arroz com coco, asas de galinha assadas, bife rendang, e rolinhos de camarão fresco.

— Uau — disse Rose, enquanto a garçonete colocava a sopa diante deles. Rose encheu

uma colher de sopa, provou-a e fechou os olhos enquanto sua boca se enchia com a textura do

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creme grosso e o aroma levemente salgado do oceano, de mariscos e batatas se dissolvendo em

sua língua. — Minhas calorias extras da semana — disse, depois de se

recuperar.

— Não conta se outra pessoa está pagando — disse Simon Stein, oferecendo a Rose

biscoitos de ostras. — Prove alguns.

Rose tomou sua meia caneca de sopa antes de lhe ocorrer que deveria falar novamente.

— Isto é delicioso.

Simon fez que sim, como se não esperasse outra coisa além de ouvir Rose elogiar a sopa.

— Então você pode me contar um pouco mais sobre sua licença?

Rose engoliu com força uma massa de marisco e batata.

— É... bem...

Simon Stein fitava-a com um olhar intrigado.

— Você está doente? — perguntou. — Porque esse foi um dos rumores.

— Um dos rumores?

Simon fez que sim e empurrou para o lado sua caneca de sopa.

— Rumor um era uma doença misteriosa. Rumor dois era que você foi escolhida por um

headhunter da Pepper e Hamilton. Rumor três...

Nesse instante a garçonete reapareceu com um prato repleto de lascas e tiras de frutos do

mar variados acompanhado por uma porção de fritas. Simon pôs-se a espremer limão sobre tudo

e aplicar cuidadosamente sal nas batatas.

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— Qual era o rumor três? — inquiriu Rose.

Simon Stein enfiou duas vieiras fritas na boca e olhou para ela com olhos azuis

arregalados sem qualquer culpa sob os cílios louro-avermelhados.

— Huhmmcêhumfntendohumnhnso.

— Hein? — perguntou Rose.

Simon engoliu.

— Que você estava tendo um caso — disse ele. — Com um dos sócios.

Rose ficou de queixo caído.

— Eu...

Simon levantou uma das mãos.

— Você não precisa dizer nada. Eu nem devia ter comentado isso.

— Todo mundo acha isso? — perguntou Rose, tentando não parecer chocada.

Simon serviu-se de molho tártaro e balançou a cabeça.

— Não. A maioria das pessoas está apostando em lúpus ou problema de coluna.

Rose comeu algumas lascas de marisco e tentou parecer indiferente e dar a entender que

não se sentia ridícula. Mas ela se sentia ridícula, claro. Ela havia largado seu trabalho, seu

namorado lhe dera um chute no traseiro, ela estava vestida como uma estudante velha demais, e

agora um homem que era praticamente um estranho estava salgando suas batatas fritas. E o pior

de tudo, todo mundo mais sabia a respeito dela e de Jim. E ela que pensava que isso era um

segredo. Será que idiotice tem limite?

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— Havia um nome de um sócio específico associado a esse rumor? — perguntou,

tentando soar como se isso não importasse, mergulhando um camarão em molho tártaro e

torcendo para que ao menos parte de seu segredo ainda estivesse seguro.

Simon Stein deu de ombros.

— Eu não ouvi — disse ele. — Era apenas fofoca, só isso. Você sabe como são os

advogados. Eles precisam ter resposta para tudo. Quando alguém desaparece, eles querem uma

explicação.

— Eu não desapareci. Estou de licença. Como você sabe — disse, teimosa, e comeu um

pedaço de linguado, que estava, apesar de tudo, delicioso. Ela engoliu e pigarreou. — Então... o

que mais está acontecendo na firma? Como as coisas estão indo para você?

Ele deu de ombros.

— Está tudo como sempre. Agora tenho o meu próprio caso. Infelizmente, é o caso do

Bentley estúpido.

Rose dirigiu-lhe um aceno de cabeça compreensivo. O caso do Bentley estúpido envolvia

um cliente que herdara os milhões, mas, aparentemente, nenhum dos miolos do pai. O cliente

comprara um Bentley usado, e então passara os dois anos subseqüentes à compra tentando reaver

o dinheiro que havia pago. Sua alegação era de que o carro produzira uma nuvem de fumaça

preta e oleosa desde a primeira vez que ele o colocara na estrada. A concessionária acreditava —

e, infelizmente para o cliente, esta recebia o apoio da agora ex-esposa do cliente — que a fumaça

era resultado do fato de que o cliente dirigira o Bentley com seus freios de emergência acionados.

Enquanto Simon contava alguns dos detalhes, Rose percebeu que ele estava tentando parecer

entediado e cínico — irritado com o fato de que o cliente da firma era um imbecil, irritado com

um processo que lhe permitira que o caso seguisse até onde havia seguido —, mas o tédio e o

cinismo formavam uma camada fina e rachavam facilmente para expor o entusiasmo evidente

que Simon Stein sentia por seu trabalho. Claro, era um caso pequeno, e claro, o cliente era um

pamonha, e não — seus olhos reluzentes e mãos animadas diziam —, este caso não iria

estabelecer um precedente legal. Mas ainda assim, Rose podia perceber que ele estava se

divertindo enquanto descrevia os depoimentos, a descoberta, a intimação do mecânico analfabeto

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chamado Vitale. Rose suspirou, ouvindo, querendo ainda nutrir esse sentimento pela advocacia, e

se perguntando se, na verdade, algum dia ela já o havia nutrido.

— Mas chega de falarmos sobre o Bentley — concluiu Simon, enfiando o penúltimo

camarão frito na boca e passando o último para Rose. — A propósito, você está maravilhosa.

Parece muito descansada.

Rose baixou os olhos para si mesma, para sua camisa levemente suada, desceu até as

panturrilhas marcadas com graxa da corrente de sua bicicleta.

— Você é muito gentil.

— Quer jantar comigo na sexta? — perguntou Simon.

Rose fitou-o, sem palavras.

— Eu sei que isso é meio abrupto. É coisa de quem cobra por hora, acho. Você bota para

fora bem depressa o que tem a dizer porque seu taxímetro está correndo.

— Você não tem uma namorada? — perguntou Rose. — E ela não foi para Harvard?

— Isso acabou — disse Simon. — Não estava funcionando.

— Por que não?

Simon pensou no assunto.

— Ela não tinha muito senso de humor, e aquela mania de Harvard... Bem, eu acho que

não consigo ver um futuro com uma mulher que se refere ao seu período menstrual como a maré

vermelha.

Rose soltou uma risadinha. A garçonete pegou seus pratos e colocou cardápios de

sobremesa na frente deles. Ele mal olhou o cardápio.

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— Torta de maçã. Quer dividir?

Simon sorriu para ela, e ela viu que embora fosse baixo, com o corpo vagamente oval e

com uma beleza tão comparável à de Jim quanto a Saks da Quinta Avenida se comparava com a

Kmart, Rose precisava admitir que ele era engraçado. E também dotado de uma certa atração.

Não era seu tipo, claro, apressou-se em pensar, mas ainda assim...

Simon, enquanto isso, fitava-a com expectativa, e cantarolando o refrão da música que

Rose reconheceu como "Lawyers in Love" (advogados apaixonados).

— Então, estamos combinados sobre o jantar?

— Por que não? — disse Rose.

— Eu estava esperando uma resposta mais entusiasmada que essa — disse secamente

Simon Stein.

Rose sorriu para ele.

— Sim, então.

— Ela sorri! — exclamou Simon; e quando a garçonete trouxe a conta, ele disse: —

Vamos colocar um pouco de sorvete em cima disso. Estamos celebrando.

—37 37 37 37 —

lla sentou diante do teclado do computador da Sra. Lefkowitz, respirou

fundo e fitou a tela vazia.

E

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— Não sei se consigo fazer isto.

— O que foi! — gritou, da cozinha, a Sra. Lefkowitz. — Travou de novo? É só religar o

computador que vai dar certo.

Ella balançou a cabeça. Ela não achava que daria certo. Estava no quarto vago da Sra.

Lefkowitz, que servia como uma espécie de escritório e depósito, com o iMac tangerina

empoleirado no topo de uma enorme mesa de nogueira com pés em forma de garras, ao lado de

um sofá de veludo vermelho cujo estofado estava vazando, debaixo de uma cabeça empalhada de

alce, cercada por um suporte de guarda-chuvas em bambu que abrigava a bengala da Sra.

Lefkowitz.

— Não sei se consigo fazer isto — repetiu Ella... mas ninguém a ouviu. Lewis e a Sra.

Lefkowitz estavam na cozinha, fatiando pão e frutas frescas, e o televisor da sala estava ligado no

volume máximo na novela Days of Our Lives.

Ella fechou os olhos, digitou "ROSE FELLER" e apertou "enter" antes que perdesse a

coragem.

Quando abriu os olhos, a Sra. Lefkowitz e Lewis estavam parados ao seu lado, e a tela

estava cheia de palavras.

— Uau — disse Lewis.

— Nome popular — observou a Sra. Lefkowiz.

— Como eu sei qual é o dela? — perguntou Ella.

— Apenas tente um — sugeriu Lewis.

Ella clicou num dos links e descobriu que as palavras "Rose" e "Feller" a tinham levado a

Feller Florais em Tucson, Arizona. Ela suspirou de decepção, retornou para a segunda página e

clicou em outro link. Desta vez um registro de certidão de casamento de Wellville, Nova York,

de uma Rose Feller nascida em 1957. Não era a sua Rose. Ela suspirou, voltou à página de busca,

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clicou mais uma vez, e finalmente o rosto de sua neta, vinte e dois anos mais velha que na última

vez em que Ella a vira, preencheu a tela.

— Oh! — arfou Ella, e leu cada palavra na página o mais depressa que pôde. — Ela é

uma advogada — disse numa voz que não parecia pertencer-lhe.

— Bem, não é a pior coisa que ela podia ser — disse a Sra. Kefkowitz, com uma

risadinha. — Pelo menos não está na cadeia.

Ella fitou atentamente a fotografia na tela. Era Rose. Tinha de ser. Ela possuía os mesmos

olhos, a mesma expressão séria, as mesmas sobrancelhas, que seguiam uma linha reta na fronte,

do jeito que Ella se lembrava de quando Rose era uma menininha. Ella se levantou e se deixou

cair no sofá de dois lugares da Sra. Lefkowitz. Lewis assumiu seu lugar e começou a rolar o texto.

— Universidade de Princeton... Faculdade de Direito da Universidade da Pensilvânia...

Especialização em litígio comercial... Mora na Filadélfia...

— Ela era tão inteligente... — murmurou Ella.

— Você pode passar um e-mail para ela — disse Lewis.

Ella enterrou o rosto nas mãos.

— Eu não posso — disse ela. — Ainda não. Não estou pronta. O que eu diria?

— Você poderia começar com "oi" — disse a Sra. Lefkowitz, e riu de seu próprio humor.

— Onde está a irmã dela? — conseguiu perguntai Ella. — Onde está Maggie?

Lewis lançou-lhe um olhar confortador que parecia com sua mão quente no ombro dela.

— Estou procurando — respondeu ele. — Ainda não achei nada.

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Mas ele acharia, Ella tinha certeza. As meninas estavam lá fora, vivendo vidas que ela não

podia imaginar. E eram adultas agora. Podiam tomar suas próprias decisões a respeito de deixá-la

ou não entrar em suas vidas. Podia escrever para elas. Podia telefonar. Mas o que iria dizer?

A Sra. Lefkowitz sentou ao lado dela.

— Você vai conseguir! — garantiu. — Vamos, Ella. O que você tem a perder?

Nada, pensou Ella. Tudo. Balançou a cabeça e fechou os olhos.

— Hoje não — disse ela. — Ainda não.

—38 38 38 38 —

ara sua surpresa, Maggie Feller descobriu que estava adquirindo uma

estranha forma de educação em Princeton.

Certamente não planejara isso, pensou enquanto caminhava pelo campus com os braços

carregados de livros. Mas a verdade era que a primeira matéria a havia fisgado. E Charles também

a havia fisgado, com seus livros de monólogos e conversas sobre coisas que nenhum homem

jamais quisera discutir com ela: arcos de personagens, máscaras e motivações, histórias de ficção e

da vida real, e como elas eram semelhantes e como eram diferentes. E até mesmo a única mosca

em sua sopa, Josh, aquele encontro infeliz e subitamente ubíquo, parecia uma distração em vez de

um perigo real. Ela gostava de ser estudante, pensou com melancolia. Ela devia ter dado mais

chance a isto dez anos antes.

Tome a poesia como exemplo. Para Maggie, ler qualquer coisa, da mais simples frase para

cima, envolvia uma espécie de trabalho de detetive. Primeiro, ela precisava pronunciar e decifrar

separadamente cada letra de cada palavra. Depois de ter lido as palavras individualmente, ela

P

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precisava juntá-las, substantivos e verbos e aqueles adjetivos complicados, e lê-las de novo e de

novo antes de conseguir extrair o significado, como um pedaço de noz preso teimosamente em

sua casca.

Maggie sabia que não era assim para a maioria das pessoas. Sabia que Rose podia bater os

olhos num parágrafo ou numa página e saber o que ela significava, como se sugasse o

conhecimento dele através da pele, motivo pelo qual ela podia devorar romances grossos,

enquanto Maggie se restringia a revistas. Mas poesia, Maggie descobrira, era o grande equalizador,

porque poesia não era feita para ser óbvia em sua superfície, e todo leitor, fossem os crânios de

Princeton ou aqueles que largavam as faculdades comunitárias, precisavam passar pelo processo

de decifrar as palavras, depois os versos, e em seguida as estrofes, desmontando o poema e

remontando-o para então absorver seu significado.

Três meses e meio depois de montar seu acampamento no campus, Maggie entrou em

"sua" aula de poesia moderna e sentou-se na fileira do fundo, procurando deixar uma cadeira

vazia de cada lado. A maioria dos estudantes se aglomerava lá na frente, grudados em cada

palavra da professora Clapham, praticamente deslocando seus ombros quando lançavam suas

mãos ao ar para oferecer uma resposta, o que significava que Maggie estava segura no fundo.

Sentou-se, abriu o caderno e copiou do quadro-negro o poema do dia, sussurrando cada palavra

para si mesma enquanto a escrevia.

Uma arte

Não é difícil aprender a arte de perder

tantas coisas parecem feitas com o molde

da perda que sua perda não traz desastre.

Perca algo todos os dias. Aceite o susto

de perder chaves, de perder tempo.

Não é difícil aprender a arte de perder.

Depois pratique perder mais rápido mil outras coisas:

lugares, nomes, onde planejou suas férias.

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Nenhuma perda trará desastre.

Perdi o relógio de minha mãe.

A última, ou a penúltima, de minhas casas queridas

Não é difícil aprender a arte de perder.

*

Perdi duas cidades, entes queridos.

Pior, perdi alguns reinos, dois rios, um continente.

Perdê-los trouxe saudade, mas não desastre.

— Até perder você (a voz que ri, os gestos que amo).

Não posso mentir: não é difícil.

Não é difícil aprender a arte de perder

por mais que a perda - anote isto! - pareça desastre.

"Perdi o relógio de minha mãe", sussurrou Maggie enquanto anotava o poema. A arte de

perder. Ela poderia escrever um livro sobre isso As coisas que ela encontrava nas diversas caixas

de achados e perdidos da faculdade continuavam a intrigá-la — e a mantê-la bem equipada. Com

seus livros didáticos e suéteres, chapéus e luvas da J. Crew ou da Gap, ela parecia uma autêntica

garota de Princeton. E estava começando a acreditar em sua própria ficção. O semestre estava

chegando ao fim e Maggie tinha a impressão de que estava perto de se tornar uma estudante

autêntica. Exceto que o verão estava chegando. E o que os estudantes faziam durante o verão?

Iam para casa. E ela não poderia fazer isso. Ainda não.

"Não é difícil aprender a arte de perder", escreveu, enquanto a professora Clapham, loura,

trinta e tantos anos, e imensamente grávida, arrastava-se pela frente da sala.

— Isto é uma villanella — disse ela, pousando seus livros na mesa e ela própria,

rapidamente, numa cadeira, e acendendo sua ponteira laser. — Um dos esquemas rímicos mais

exigentes. Por que vocês acham que Elizabeth Bishop utilizou esta forma específica de rima no

seu material? Por que esta foi uma boa combinação?

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Silêncio. A professora Clapham suspirou.

— Certo — disse ela, com certa delicadeza. — Vamos começar do começo. Quem pode

me dizer qual é o assunto do poema?

Mãos se levantaram.

— Perda? — arriscou ou uma loura magérrima na primeira fileira.

Dããã, pensou Maggie.

— É claro — disse a professora, num tom apenas levemente mais gentil que o dããã

mental de Maggie. — Mas exatamente a perda do quê?

— Do amor — aventurou-se um rapaz com pernas cabeludas expostas por uma bermuda

curta e um suéter com as manchas de alvejante de alguém que ainda não sabia lavar as próprias

roupas.

— O amor de quem? — inquiriu a professora. Ela colocou as mãos na base da coluna e

se alongou como se suas costas doessem, talvez, como se a ignorância de seus alunos estivesse

lhe causando dor física. — E é amor já perdido ou a poeta posiciona essa perda, em separado de

todas as outras, no reino do teórico? Ele está falando da perda como uma possibilidade? Uma

probabilidade.

Olhares vazios e cabeças baixas.

— Uma probabilidade — respondeu Maggie sem perceber, e então sentou-se, ruborizada,

tão constrangida quanto se tivesse peidado.

Mas a professora lançou-lhe um olhar encorajador.

— Por quê?

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As mãos e os joelhos de Maggie tremiam.

— Hummm — disse ela, numa voz fraca e baixa, e então pensou na Sra. Fried, curvando-

se sobre ela, óculos pendendo de uma corrente, sussurrando Simplesmente tente, Maggie. Não

importa se você estiver errada. Apenas tente.

— Bem, no começo do poema ela está falando de coisas reais, coisas que todo mundo

perde — disse Maggie. — Como chaves ou o esquecimento de nomes de pessoas.

— E depois, o que acontece? — incitou a professora. Maggie compreendeu, quase como

se tivesse puxado uma pipa do céu.

— Depois muda do tangível para o intangível — disse ela, as palavras compridas saindo

de seus lábios como se ela as tivesse dito durante toda a sua vida. — E então a poeta começa a

ficar... — Merda, havia uma palavra para isto. Qual era a palavra? — Pomposa — finalmente

conseguiu Maggie. — Como, ela perde uma casa... certo, muita gente se muda, mas então ela diz

que perdeu um continente inteiro...

— O que, podemos considerar, não era dela para ser perdido — disse secamente a

professora Clapham. — Então vemos outra mudança.

— Certo — concordou Maggie, suas palavras saindo mais depressa, emendando umas nas

outras. — E o jeito que ela escreve sobre isso, como se isso nem importasse tanto...

— Você está falando sobre o tom de Bishop — disse a professora. — Você definiria esse

tom como irônico? Distanciado?

Maggie pensou sobre isso enquanto duas garotas da fila da frente levantavam as mãos. A

professora Clapham ignorou-as.

— Eu acho — disse Maggie lentamente, fitando as palavras na folha —, eu acho que ela

quer soar distanciada. Como se não importasse para ela, certo? Como as palavras que ela está

usando. Susto. Um susto não é grande coisa. Ou até mesmo a linha que ela repete, sobre como

não é difícil aprender a arte de perder. É como se ela estivesse se divertindo até pelo fato de

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chamar isso de arte. — Na verdade, o tom do poema lembrava a Maggie o jeito que sua irmã

falava a respeito de si mesma. Ela lembrava-se de ter assistido ao concurso de Miss América com

Rose, e lhe perguntado qual seria o seu talento, e como Rose pensara sobre isso antes de

responder, muito pensativa: "Estacionar em vagas apertadas." Então ela está tentando, meio que

transformar isso numa piada. Mas então, no fim...

— Vamos considerar a estrutura de novo — disse a professora, e embora suas palavras

tenham sido dirigidas a toda a classe, seus olhos ainda estavam nos de Maggie. — A B A. A B A.

Estrofes de três linhas, até chegar ao fim, a última quadra, e o que acontece? — Ela meneou a

cabeça para Maggie.

— Bem, são quatro linhas, e não três, e por isso é diferente. E há a interrupção "anote

isto!". E como se ela quisesse ficar distante, quisesse estar distanciada disso, mas estivesse

pensando no que aconteceria quando ela perdesse...

— Perdesse o quê? — perguntou n professora Clapham. — Ou perdesse quem? Você

acha que este poema é sobre um amante, um namorado? Quem é o "você" deste poema?

Maggie mordeu o lábio.

— Não acho que seja — respondeu — mas não sei por quê. Acho que parece mais um

poema sobre perder... — Uma irmã, ela pensou. Uma mãe. — Um amigo, talvez — respondeu

em voz alta.

— Muito bom — disse a professora, e Maggie enrubesceu novamente, desta vez mais por

prazer que por vergonha. — Muito bom — repetiu a professora Clapham, e então voltou sua

atenção novamente para o quadro, para a classe, para o esquema rímico e as exigências formais

de uma villanella. Maggie mal conseguiu ouvir uma palavra. Ainda estava ruborizada. Ela, que

jamais ficara ruborizada, nem mesmo quando tivera de se vestir de gorila durante um trabalho de

três dias entregando telegramas cantados, ficara vermelha como um tomate.

Naquela noite, enroscada em cima de seu saco de dormir, pensando em sua irmã,

perguntando-se se Rose assistira a essa mesma aula de poesia e lera esse mesmo poema, e se Rose

acreditaria que fora Maggie, Maggie acima de todos os outros alunos, quem melhor entendera o

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poema. Perguntou-se quando poderia contar isso a Rose, e ficou se revirando no escuro,

tentando decidir o que teria de fazer para convencer sua irmã a perdoá-la.

Na manhã seguinte, viajando de ônibus para a casa de Corinne ao sol primaveril, Maggie

começou a se sentir arrependida. Toda esta história de estar em Princenton era uma tentativa de

estar... qual era a palavra? ... intersticial. não era uma palavra que tivesse aprendido no campus,

era uma palavra que pegara de Rose. Ela podia fechar os olhos e ver Rose apontando para os

comerciais apertados em metade da tela da TV enquanto os créditos do programa que havia

terminado corriam ao lado deles. Intersticial significava, basicamente, a coisa entre a coisa —

aquilo que acontecia paralelamente ao evento principal, enquanto você estava prestando atenção

em outra coisa.

E agora ela havia gritado respostas em aula. No que ela estava pensando? Alguém ia notá-

la. Alguém ia se lembrar. Alguém ia começar a se perguntar onde ela morava, que área estava

estudando, em que ano estava e o que exatamente fazia ali.

Passando o esfregão no piso já reluzente de Corinne, ela considerou que talvez quisesse

ser descoberta, talvez estivesse cansada de ser invisível. Ela estava fazendo uma coisa... bem, não

exatamente importante, mas uma coisa que requeria certo nível de ousadia, astúcia e habilidade, e

ela queria reconhecimento por isso. Queria contar a Charles, ou a Rose, ou a alguém, tudo o que

descobrira. Como aprendera a tomar o cuidado de jamais cair em padrões regulares, detectáveis.

Como descobrira que havia nada menos que seis lugares diferentes para tomar banho (ginásio

Dillon, o chuveiro no porão da biblioteca e os quatro dormitórios cujas trancas podiam ser

arrombadas sem dificuldade), como sabia qual era a única máquina de lavar roupas que

funcionava sem moedas e a única máquina de refrigerante que cuspia uma lata grátis de Coca se

você a socasse do jeito certo.

Ela queria contar a eles como descobrira os refeitórios — como, se você entrasse

sorrateiramente na cozinha no começo da manhã, vestida como se trabalhasse ali, com tênis

sujos, calças jeans e suéter, todo mundo considerava que você era uma das funcionárias

estudantes, apenas fazendo uma boquinha antes de assumir seu posto atrás do balcão ou da pia.

Ela queria explicar como era fácil enfiar comida em sua mochila: sanduíches de manteiga de

amendoim, porções de fruta, acomodados entre guardanapos.

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Queria contar a eles sobre os almoços de quinta-feira no International Student Center,

onde por dois dólares ela conseguia um prato gigante cheio de arroz, legumes fritos e frango

embebido em leite de coco — a melhor coisa que ela já havia comido, pensava às vezes —, com

o chá que eles serviam que tinha gostinho de canela, como ela bebia xícaras e mais xícaras com

colheres de mel para tirar o gosto da comida de sua boca, e como ninguém jamais perguntava-lhe

nada porque a maioria dos outros freqüentadores eram estudantes do primeiro período que mal

sabiam falar inglês, de modo que tudo que tinha de fazer era abrir um sorriso tímido, acenar com

a cabeça c receber troco por sua nota de cinco dólares.

Enquanto aplicava limpa-vidro nos armários de Corinne, imaginava-se apresentando Rose

a Charles e vendo sua irmã menear a cabeça em aprovação.

— Estou bem — imaginava-se dizendo à sua irmã. — Você não precisava ter ficado tão

preocupada comigo, porque estou bem.

E em seguida ela diria que sentia muito e... bem, depois disso, quem sabia? Talvez Rose

pudesse achar um modo para Maggie obter crédito pelas classes às quais assistira como ouvinte.

Talvez Maggie até pudesse obter algum diploma algum dia, se continuasse se esforçando, porque

descobrira que com tempo e empenho, até os livros mais grossos não eram tão horríveis assim. E

ela estrelaria todas as peças de Charles, e daria entradas para sua irmã assistir à estréia, e também

alguma coisa fantástica para usar, porque Deus sabia que se ficasse por sua conta Rose

compareceria ao teatro vestida em alguma coisa feia e folgada que a deixava parecendo uma

ursinha, e...

— Olá? — disse Corinne.

Maggie tomou um susto e quase caiu da escadinha na qual estava trepada.

— Oi — disse ela. — Estou aqui em cima. Não ouvi você chegar.

— Eu caminho em pés de gato. Como a neblina.

— Carl Sandburg — disse Maggie.

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— Muito bom! — disse Corinne. Ela correu as pontas dos dedos pelo tampo da bancada

da cozinha, e então se acomodou numa cadeira à mesa da sala de jantar que Maggie limpara. —

Como vai a faculdade?

— Muito bem — disse Maggie.

Ela saltou da escadinha, dobrou-a e guardou-a em seu gancho dentro do armário. E isso

era bom. Exceto pelo fato de que ela realmente não pertencia a este lugar. Exceto pelo fato de

Rose, a coisa terrível que lhe fizera, e a sensação de que nada do que aprendem na faculdade iria

ajudá-la a descobrir uma forma de corrigir seu erro.

—39 39 39 39 —

a semana que se passou desde sua caminhada com a Sra. Lefkowitz, Ella

conseguira aprender muito sobre sua neta Rose e quase nada sobre

Maggie.

— Esta aqui, esta Rose, ela está em toda parte! — dissera a Sra. Lefkowitz.

De fato, o ciberespaço estava entulhado com referências a Rose, desde o diretório da

Sociedade Nacional de Honra de sua escola secundária até um artigo no Daily Princetonian sobre

recrutamento dentro do campus. Ella descobriu onde Rose estudara, que área do direito ela

praticava e até obteve seu número de telefone por meio de uma ferramenta de busca na Internet.

— Ela fez tudo direito sozinha! — disse a Sra. Lefkowitz, enquanto elas caminhavam

diante das quadras de tênis.

— Eu li que ela está de licença por tempo indefinido — comentou Ella, lembrando da

expressão severa de sua neta aparecendo na tela do computador. — Isso não parece nada bom.

N

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— Bobagem — disse a Sra. Lefkowitz. — Ela deve estar de férias.

Já Maggie provara ser muito mais difícil de ser localizada. A Sra. Lefkowitz, Ella e Lewis

haviam tentado cada combinação possível de MAGGIE FELLER e MAGGIE MAY FELLER e

até MARGARET FELLER, ainda que estivesse errado, mas não acharam uma única referência à

neta mais nova, nem mesmo uma menção, nem mesmo um número de telefone.

— É como se ela não existisse — comentara Ella, testa franzida de preocupação. —

Talvez... — Ela deixara sua voz se abafar, não querendo pronunciar o pensamento horrível que

lhe ocorrera.

A Sra. Lefkowitz balançou negativamente a cabeça.

— Se ela estivesse morta, acharíamos um obituário.

— Tem certeza? — perguntou Ella.

— Como você acha que me mantenho informada sobre meus amigos? — perguntou a

Sra. Lefkowitz. Ela enfiou a mão em sua mochila cor-de-rosa e sacou um celular cor de laranja.

— Tome. Ligue para a tal Rose. Rápido, antes que perca a coragem.

Ella balançou a cabeça, pensando no rosto de sua neta.

— Eu não sei — disse ela. — Eu queria, mas.. Preciso pensar no assunto. Preciso fazer

isso da forma certa.

— Pensar, pensar... — disse a Sra. Lefkowitz. — Você está demorando demais. Aja,

mulher! Alguns de nós não estão planejando viver para sempre.

Ella passou a noite inteira acordada, deitada sobre sua manta enquanto sapos coaxavam,

buzinas soavam e o céu finalmente se iluminava. Quando se impulsionou para fora da cama, ela

se obrigou a dizer em voz alta:

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— Hoje — anunciou para seu apartamento vazio. — Vou dar aquele telefonema hoje.

Naquela manhã, no hospital, Ella mandou um bebê adormecido de volta para seu quarto

e seguiu apressada pelo corredor. Havia uma fileira de telefones públicos diante do saguão em

frente à sala de cirurgia. Ella posicionou-se diante do telefone mais distante das portas e procurou

por seu cartão. Enfiou-o no aparelho e digitou o número do telefone da firma de Rose. Correio

de voz, pensou. Ela, que não rezava desde a última noite em que sua filha não voltara para casa,

subitamente tornara-se companheira íntima de Deus. Por favor, meu Deus, que seja correio de

voz.

E era... mas não o que ela esperara ouvir.

— Você ligou para um número desativado na Lewis, Dommel e Fenick — disse a voz

incorpórea do computador. — Por favor, aperte zero para falar com uma de nossas telefonistas.

Ela apertou zero, e depois de um minuto uma recepcionista disse:

— É um dia como nenhum outro na Lewis, Dommel e Fenick!

— Como? — disse Ella.

— Eles nos obrigam a dizer isso em vez de "alô" — explicou a recepcionista num

sussurro. — Em que posso ser útil?

— Estou tentando falar com Rose Feller.

— Vou transferir para a senhora — disse animadamente a recepcionista. O coração de

Ella pulou em seu peito... mas quem atendeu o telefone não foi Rose, apenas uma mulher de voz

entediada que se identificou como Lisa, ex-assistente de Rose.

— Ela está de licença — disse Lisa.

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— Eu sei — disse Ella. — Mas estava pensando, será que poderia deixar um recado para

ela? Aqui é a avó dela — explicou, sentindo-se envaidecer de medo, e de orgulho, no instante em

que pronunciara as palavras a avó dela.

— Desculpe — disse Lisa. — Ela não telefona para pegar seus recados. E faz meses que

não passa aqui.

— Oh — exprimiu Ella. — Bem, eu tenho o telefone da casa dela. Vou ligar para lá.

— Tudo bem — disse Lisa.

— Obrigada — agradeceu Ella.

Desligou o telefone e afundou numa cadeira diante da sala de cirurgia, sentindo-se a um

só tempo exaltada e aterrorizada. Dera o primeiro passo, e qual era a coisa piegas que Ira — logo

ele — costumava dizer? A maior jornada começa com um primeiro passo. E verdade que Ira

dizia isso antes de começar a preparar uma nova marca de iogurte, mas ainda assim ele estava

certo, pensou Ella. Para fazer qualquer coisa, era preciso dar um primeiro passo, e ela dera. Ela

não se acovardara, pensou, enquanto pegava novamente o telefone, louca para ligar para Lewis e

dar-lhe a notícia fantástica. Ela havia pulado para a água. Ela havia começado.

—40 40 40 40 —

ose precisava reconhecer uma coisa em Simon Stein: ele era bastante

persistente.

No dia seguinte ao almoço, uma dúzia de rosas vermelhas chegara ao apartamento de

Rose, com um cartão com as palavras:

R

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"Ansioso por vê-la novamente. PS: Não coma muito no almoço."

Rose revirou os olhos, torcendo para que ele não estivesse nutrindo muitas esperanças,

enquanto colocava as flores num vaso inadequado e as pousava na bancada de sua cozinha, onde

ela prontamente começara a deixar o resto de seu pertences em mau estado e nada românticos

em comparação às rosas. Simon era um cara agradável, com certeza, mas ninguém por quem ela

se sentisse atraída. Além disso, pensou depois, passando uma perna sobre sua bicicleta e

descendo a Pine Street para iniciar seus passeios matutinos, ela estava farta do amor, e para fazê-

la mudar de idéia seria preciso mais do que um homem que se imaginava um Guia Zagat

ambulante.

— Estou no hiato do romance — disse a Petúnia enquanto caminhavam ao sol da

manhã. Rose precisava admitir que embora gostasse de todos os cães dos quais cuidava, sempre

tinha um carinho especial pela pequena pug mal-humorada.

Petúnia acocorou-se, deu uma mijadinha no bueiro, bufou algumas vezes, e começou sua

perseguição às delícias de rua: pedaços de pizza, poças de sorvete, ossos de galinha.

— Acho que é uma boa idéia dar uma parada de vez em quando — disse ela. — Então

estou dando uma pequena parada.

Naquela noite, Rose depilou cuidadosamente as pernas, enxugou-se com a toalha e

analisou as roupas que estendera na cama. Obviamente, nenhuma delas parecia correta. A saia

vermelha que parecera adorável no shopping fazia um volume imenso em torno de seus quadris.

O vestido verde estava terrivelmente amassado, a saia de brim estava sem um botão e a saia preta

e comprida deixava-a parecendo como se tivesse saído direto do escritório ou estivesse de luto,

ou como se estivesse de luto no escritório. Deus, onde estava Maggie quando ela precisava?

— Merda! — praguejou Rose. Ela estava suando, apesar de seu desodorante recém-

aplicado, e já estava cinco minutos atrasada. — Merda, merda, merda! — Vestiu a saia vermelha,

enfiou uma blusa branca sobre a cabeça, e abriu o armário em busca de suas sandálias de couro

de cobra, deduzindo que se a roupa fosse quase um desastre, seus sapatos estariam, como

sempre, impecáveis.

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Ela tateou a prateleira. Botas, botas, tênis, saltos altos, sandálias cor-de-rosa, sandálias

pretas, o par de Tevas que ela comprara na semana em que achou que se tornaria uma daquelas

garotas de faces rosadas que faziam caminhadas pela trilha dos Apalaches... onde diabos estava o

par que ela queria?

— Maggie — gemeu, com as mãos ainda tateando a sucessão de correias e fivelas. —

Maggie, se você pegou meus sapatos, eu juro por Deus...

E então, antes que decidisse o que estava jurando fazer à sua irmã, caso um dia voltasse a

vê-la, os dedos de Rose tocaram a sandália em questão. Tirou as sandálias da prateleira, enfiou

nelas seus pés nus, pegou sua bolsa e caminhou até a porta. Apertou com força o botão do

elevador, e em seguida ficou passando o peso de uma perna para outra, certificando-se de que

suas chaves estavam na bolsa, tentando não ver seu reflexo na porta do elevador, certa de que

não gostaria do que veria. A ex-advogada, pensou, olhando com crueldade para as suas pernas,

recém-depiladas, mas ainda cheias de manchas roxas.

Simon Stein estava esperando diante do prédio, usando uma camisa azul, calças cáqui e

mocassins marrons, o uniforme na Lewis, Dommel e Fenick nos dias em que não se exigia um

colete de time. Infelizmente, ele não crescera 20 centímetros e ficara bonito e de ombros largos

desde a última vez que o vira. Mas estava abrindo-lhe a porta do táxi de maneira muito

cavalheiresca.

— Oi — disse ele, olhando-a com aprovação. — Lindo vestido.

— É uma saia — corrigiu Rose. — Para onde estamos indo?

— Surpresa — disse Simon, dirigindo-lhe um meneio de cabeça confiante. Um meneio

discreto, breve e confiante de que tudo está bem. Um meneio de advogado, que a própria Rose já

usara com perfeitos re-soltados. — Não se preocupe. Não vou seqüestrar você nem nada assim.

— Nem nada assim — repetiu Rose, ainda chocada por ter visto seu meneio de cabeça

executado por Simon Stein.

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O táxi encostou no meio-fio de um quarteirão de aparência suspeita na South Street.

Havia uma cerca de elos de arame contendo um matagal num dos lados da rua, uma casa de

aparência queimada com janelas fechadas com tábuas no outro, e na esquina, uma pequena

fachada de concreto, pintada de verde, com as palavras Jerk Hut em néon sobre a janela.

— Então é dali que todos os meus namorados vieram! — disse Rose. Simon Stein, pata

seu crédito, emitiu um bufar à la Petúnia, e abriu a porta para que Rose saltasse, seus olhos azuis

iluminados com prazer, ou talvez apenas empolgação sobre o jantar, pensou Rose. Rose notou

que ele estava com um saco de papel enfiado debaixo de um dos braços. Ela olhou em torno

preocupada, notando um aglomerado de homens encostados contra o prédio fechado com

tábuas, passando uma garrafa entre eles, e cacos de vidro espalhados na calçada.

— Nada tema — disse Simon, segurando-a pelo braço e conduzindo-a até o Jerk Hut.

Chegaram até uma porta de madeira pintada, no centro da calçada, nada em volta exceto o

matagal. Ele levou a mão até a porta e olhou para Rose. — Gosta de comida jamaicana?

— E eu tenho escolha? — perguntou Rose, olhando sobre os ombros para os homens

enquanto o táxi no qual tinham chegado se afastava.

Se não fosse pelos quadrados de pedra cinzenta, salpicados com mica, que formavam um

caminho através dos refugos urbanos — garrafas vazias, jornais meio apodrecidos, uma coisa que

parecia muito com uma camisinha usada —, Rose teria tido certeza de que eles estavam

caminhando para outro terreno baldio. O mato batia em seus joelhos, parecia descuidado, e ela

podia ouvir ao longe instrumentos que soavam como tambores metálicos.

Eles dobraram uma esquina, e Rose viu que atrás da fachada havia um pátio com piso de

madeira com várias plataformas. O pátio era coberto por uma tenda de tecido cor de laranja

marcado por pontinhos brancos como estrelas. Em cada canto do pátio havia tochas acesas, e

sobre uma das plataformas tocava uma banda de três instrumentos. Rose sentiu cheiro de alho,

pimenta e fumaça de madeira vindo da grelha, e acima de sua cabeça, mesmo neste quarteirão

miserável da South Street, o céu estava estrelado.

Simon conduziu Rose até uma mesa de madeira no pátio e puxou a cadeira para que ela se

sentasse.

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— Não é fantástico? — perguntou, feliz da vida. — Você jamais adivinharia que tem isto

aqui atrás.

— Como você descobriu? — perguntou Rose, ainda embasbacada com o céu.

— Instinto — disse Simon. — Além disso, saiu uma crítica no jornal. — Ele abriu o saco

de papel marrom e retirou uma pacote de seis cervejas. Então começou a bombardeá-la com

perguntas. Ela gostava de comida apimentada? Era alérgica a nozes ou crustáceos? Tinha alguma

objeção filosófica ou gustativa a comer carne de bode? Foi como lhe dar seu histórico médico,

focado exclusivamente em comida, pensou Rose, sorrindo e dizendo-lhe que sim, ela gostava de

pimenta, não, ela não em alérgica, e que ela supunha que ria capaz de provar a carne de bode.

— Bom — disse Simon, fechando o cardápio. Rose sentiu-se aliviada, como se tivesse

passado em algum tipo de teste. O que era ridículo, pensou. Quem era Simon Stein para aplicar-

lhe testes, e qual era a importância de que ela passasse neles?

Depois do bode com curry e do camarão apimentado, depois das tiras de carne, asas de

galinha, arroz com coco, depois que Rose tomara um número sem precedentes de três cervejas,

mais o gole de uma quarta, Simon lhe fez uma pergunta.

— Diga-me uma coisa de que você gosta.

Rose soltou um soluço.

— Uma pessoa? — perguntou envergonhada. — Ou uma coisa? — Ela estava pensando

que ele diria "uma pessoa", e ela diria "você", momento no qual, deduzia, Simon decidiria que

não havia problema em beijá-la. Em algum momento lá pela terceira cerveja, Rose encenara

mentalmente como seria beijar Simon, e decidira que não haveria problema se a noite acabasse

com ela sendo beijada por Simon Stein. Havia coisas piores, raciocinou, que ficar sentada sob as

estrelas numa noite cálida de sábado, sendo beijada por um homem, ainda que esse homem fosse

uns bons sete centímetros e meio mais baixo que ela, e obcecado com comida e com a equipe de

softball do escritório de advocacia. Simon era bacana. Bacana mesmo. Assim, ela iria beijá-lo.

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Mas Simon Stein a surpreendeu.

— Uma coisa. Uma coisa de que você goste.

Rose considerou suas opções. O sorriso dele? Este lugar? A cerveja? Em vez dessas coisas

abriu sua bolsa e pescou seu chaveiro, seu chaveiro novo que comprara numa lojinha na Chestnut

Street depois de começar a receber a guarda de chaves de clientes.

— Eu gosto disto — respondeu, mostrando-lhe que na extremidade do chaveiro havia

uma lanterninha, não muito maior que uma rolha de vinho. Precisou tentar algumas vezes,

porque seus dedos estavam meio entorpecidos pela cerveja, mas conseguiu acendê-la e mirá-la no

rosto dele. — Isto custou um dólar.

— Uma pechincha — avaliou Simon Stein. Rose olhou-o de soslaio. Ele estava caçoando

dela? Ela tomou outro gole de cerveja e jogou os cabelos para trás.

— Às vezes — disse ela — penso em subir na minha bicicleta e viajar pelo país.

— Sozinha?

Rose fez que sim. Ela também podia visualizar isso: colocar um par de alforjes sobre a

roda traseira, e um daqueles trailerzinhos que os ciclistas que percorrem longas distâncias puxam

atrás de suas bicicletas, armazenar uma tenda para uma pessoa ou um saco de dormir, enfiar

Petúnia no trailer e então... ir. Pedalar durante a manhã, parar para almoçar num restaurante ou

lanchonete, pedalar mais algumas horas, depois montar sua tenda ao lado de um córrego, anotar

os acontecimentos em seu diário (em sua fantasia, Rose mantinha um diário, embora não o

fizesse na vida real), ler um dos seus romances, e adormecer sob as estrelas.

Era como a fantasia que ela nutrira nos anos após a morte da mãe. A fantasia de comprar

uma casa motorizada, um daqueles Winnebagos largos e compridos com todas as conveniências

modernas embutidas. Ela devia ter visto uma foto em algum lugar, ou talvez até estivera dentro

de um desses veículos. Lembrava como eles eram pequenos universos que continham tudo

dentro, com camas que se desdobravam das paredes, fogõezinhos com duas bocas, cabines de

chuveiro que mal cabiam uma pessoa, televisores escondidos nos tetos. Seu sonho tinha sido

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pegar o pai e Maggie e simplesmente sair dirigindo. Eles deixariam sua casa em Nova Jersey e

iriam para algum lugar mais quente, algum lugar onde jamais haveria estradas molhadas, lápide

cinza ou patrulheiro rodoviário na porta. Phoenix, Arizona; San Diego, Califórnia; Albuquerque,

Novo México. Algum lugar ensolarado, onde sempre seria verão, onde um perfume de laranjas

pairaria no ar, imaginando Maggie deitada na cama inferior do beliche, imaginando a si mesma

corajosa o bastante para dormir em cima, e o pai ao volante, rosto bonito e feliz banhado pela luz

do painel. Eles pegariam seu cachorro, Pão de Mel, de volta, e o pai deixaria de ser alérgico, e Pão

de Mel dormiria num travesseiro no banco do passageiro, e seu pai não choraria mais. Eles

dirigiriam e dirigiriam até chegar a um lugar muito, muito longe, até terem superado a memória

da mãe, e as crianças que haviam atormentado Rose no playground e as professoras que

balançavam as cabeças com tristeza para Maggie E então descobririam algum lugar perto do

oceano para fica, Ela e Maggie seriam as melhores amigas uma da outra. Elas nadariam todos os

dias e fariam sua comida numa fogueira de acampamento, e dormiriam abraçadinhas na casa

móvel toda noite.

— "Obrigado", diria o pai a Rose. — "Essa foi uma grande idéia. Você salvou nossas

vidas." — Rose iria sentir a verdade dessas palavras, como a luz do sol, com a sensação de sua

própria pele, o peso de seus próprios ossos. Ela salvaria todos eles, e finalmente dormiria,

sonhando com camas de beliche, com o oceano que jamais vira.

— Você não iria se sentir solitária? — perguntou Simon.

— Solitária? — repetiu Rose. Por um momento, ela não teve certeza sobre o que ele

estava falando. Ela ainda estava perdida na fantasia da casa móvel, que aperfeiçoara e aumentara

com o passar dos anos, mesmo depois de compreender que aquilo jamais viria a se concretizar.

Certa vez vira um anúncio de um Winnebago usado no quadro de avisos dos shopping do bairro

e hesitante, apontara-o para o pai. O pai fitara Rose como se ela estivesse falando uma língua de

outro planeta, e então comentara, com gentileza: "Acho que não, querida."

— Você não acha que sentiria saudade das pessoas? — perguntou Simon.

Rose balançou a cabeça instantaneamente.

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— Eu não preciso... — Ela respirou fundo, detendo-se antes de dizer aquilo. Subitamente

ela sentia calor, um calor insuportável, desconfortável. A música estava alta demais, seu rosto

estava corado, e a comida apimentada estava formando um nó excruciante em seu estômago Ela

tomou um grande gole de água e recomeçou. — Eu sou muito independente. Gosto de estar

sozinha.

— O que há de errado? Você está bem? Você quer um pouco de refrigerante de

gengibre? O que servem aqui é de fabricação própria. É ótimo para mal-estar estomacal.

Rose fez um gesto para que ele se calasse, e enterrou o rosto nas mãos. De olhos

fechados ela ainda podia ver o Winnebago do jeito como o imaginara, os três deles debaixo do

toldo que seria estendido da parede, assando salsichões numa fogueira na praia, sentados em seus

sacos de dormir, seguros e aconchegados em sua casinha perfeita como lagartas em casulos. Ela

queria tanto que isso fosse verdade, mas em vez disso perdera o pai para Sydelle e para um

mundo no qual os únicos assuntos que ela podia conversar com tranqüilidade com o pai eram

ações da bolsa de valores e fundos de investimentos, onde os únicos sentimentos que ele se

permitia eram empolgação por uma vitória dos Eagles e decepção quando perdia seus

investimentos. E Maggie...

— Oh — gemeu Rose, ciente de que provavelmente estava assustando Simon Stein, mas

incapaz de se conter. Maggie. Antes ela achava que seria capaz de salvar Maggie. E veja só que

rumo as coisas tomaram. Ela nem sabia onde sua irmã, sua própria irmã, estava morando.

— Oh — repetiu novamente, mais baixo, e agora o braço de Simon Stein estava

envolvendo seu ombro.

— O que é? — perguntou ele. — Acha que é intoxicação alimentar? — Ele parecia tão

solícito que Rose começou a rir. — Consegue beber um pouco de água? — Enfiou a mão no

bolso. — Tenho comigo Pepcid, Alka-Seltzer...

Rose levantou a cabeça.

— Isso acontece muito em seus encontros?

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Simon Stein comprimiu os lábios.

— Eu não diria que isso acontece com freqüência, mas talvez de vez em quando —

finalmente admitiu. Ele fitou-a, preocupado. — Você está se sentindo bem?

— Considerando que eu não tenha sofrido intoxicação alimentar, estou bem.

— Então, o que é?

— Eu apenas... apenas estava pensando em alguém.

— Quem?

E Rose pronunciou o primeiro nome que lhe veio à cabeça.

— Petúnia. Aquela cadela da qual eu cuido. — E Simon Stein, para seu eterno crédito,

não riu nem a olhou como se ela fosse maluca. Simplesmente ficou de pé, dobrou seu lenço,

deixou uma gorjeta de dez dólares na mesa, e disse:

— Então, vamos pegar a Petúnia.

— Isto é loucura — sussurrou Rose.

— Silêncio — disse Simon Stein.

— A gente pode arrumar problemas — insistiu Rose.

— Por quê? — retrucou Simon. — Você ficou de levar a cachorra para passear no

sábado. Bem, é sábado.

— É noite de sexta.

— Na verdade, é meia-noite e cinco — disse Simon, consultando seu relógio.

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Rose revirou os olhos. Estavam, no elevador do edifício de Petúnia, onde não havia

ninguém além deles.

— Você sempre precisa estar certo?

— Eu prefiro assim — disse Simon, e Rose considerou isso histericamente engraçado.

Ela começou a rir. Simon tampou sua boca.

— Silêncio — sussurrou. Rose remexeu em seu chaveiro com lanterninha, encontrou a

chave que estava marcada por uma fita crepe na qual estava escrito "Petúnia" e a deu a Simon.

— Muito bem — disse Simon —, vamos agir da seguinte maneira: eu vou destrancar a

porta. Você vai desativar o alarme. Eu vou pegar a cachorra. Onde você acha que ela vai estar?

Rose pensou no assunto. Seu cérebro parecia anuviado. Depois de todas as cervejas no

Jerk Hut, eles tinham ido a um bar para aperfeiçoar a Operação Petúnia; durante o planejamento

tinham bebido um pouco de vodca.

— Eu não sei — respondeu Rose finalmente. — Quando eu a pego, ela costuma estar no

sofá, mas não sei aonde ela dorme quando os donos estão em casa.

— Bem, deixe isso comigo — disse ele. Rose estava inclinada a fazer exatamente isso. Ela

não havia contado, mas tinha quase certeza de que ele não tomara tanta vodca quanto ela.

— Coleira? — perguntou Simon, e Rose enfiou a mão no bolso e sacou dois cadarços

que haviam tirado dos sapatos de Simon e os amarrado no bar. — Petisco? — Rose abriu sua

bolsa e retirou um pedaço de carne embrulhado num guardanapo que a esta altura já estava

besuntado de gordura. — Bilhete? — Rose pegou outro guardanapo. Depois de três tratamentos,

eles haviam decidido que "Querida Shirley, eu estava na vizinhança e achei que poderia levar

Petúnia para passear mais cedo", era o que soava mais plausível.

— Preparada? — perguntou Simon, segurando Rose pelos ombros e fitando

profundamente seus olhos, sorrindo para ela. — Preparada? — repetiu, e Rose fez que sim com a

cabeça. Simon inclinou-se para a frente e deu um beijo em seus lábios. —Vamos agir — disse ele,

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só que Rose estava tão chocada pela intensidade do beijo que ficou parada ali, congelada,

enquanto Simon destrancava a porta e o alarme começava a uivar para a noite.

— Rose! — sibilou Simon. Ela entrou correndo no apartamento e digitou o código no

painel do alarme, enquanto Petúnia chegava à sala de estar, latindo freneticamente antes de parar

e começar a abanar o rabo.

Shirley apareceu atrás da cachorra, telefone portátil na mão.

— Oh — disse ela ao ver os dois. — Simon. Você não bate mais na porta?

Rose engoliu em seco, olhando de Simon para Shirley e de Shirley para Petúnia, que no

momento estava tentando se jogar para os braços de Simon. E Simon estava sorrindo para ela.

— Rose, esta é a minha avó. Vó, a senhora conhece Rose, não é?

— Mas é claro que conheço Rose — disse Shirley com impaciência. — Petúnia, sossegue!

— Uma frustrada Petúnia parou de pular e sentou no chão, seu toco de rabo movendo-se em

círculos frenéticos, sua língua rosa entrando e saindo da boca. Rose ficou parada como se tivesse

sido congelada, olhando para eles e tentando extrair o sentido de tudo aquilo, mas seus sentidos

não a estavam ajudando.

— Então... você conhece Petúnia? — perguntou finalmente.

Simon assentiu.

— Conheço Petúnia desde que ela era deste tamanhinho — disse, indicando com as mãos

um espaço do tamanho de uma xícara de chá.

— E você conhece Simon — disse Shirley.

— Nós trabalhávamos juntos — disse Rose.

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— Ótimo — disse Shirley. — Agora que todo mundo conhece todo mundo, posso ir

dormir?

Simon caminhou até Shirley e beijou a testada avó.

— Obrigado, Vó — disse carinhosamente. — Desculpe por ter acordado a senhora.

Shirley meneou a cabeça positivamente, disse alguma coisa que Rose não conseguiu ouvir

direito e saiu, deixando-os sozinhos no corredor. Petúnia, ainda sentada, continuava com o rabo

abanando alegremente, olhando do rosto de Simon para o de Rose e de volta para Simon

novamente.

— O que ela disse? — perguntou Rose, quase não encontrando sua voz.

Simon sorriu para ela.

— Acho que disse "você demorou muito".

— O que... como...?

Simon pegou a coleira de Petúnia na gaveta onde Shirley a guardava e sorriu para Rose.

— Vamos caminhar — disse ele. Ele segurou a correia de Petúnia numa das mãos, e a

mão de Rose na outra, e conduziu-as até seu apartamento, onde Petúnia enrodilhou-se no pé da

cama, e Rose e Simon deitaram-se sobre a manta de lã azul dele, sussurrando, beijando, e às vezes

rindo tão alto que Petúnia acordava e rosnava para eles. Fizeram isso até o nascer do sol.

—41 41 41 41 —

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aggie saiu do chuveiro, secou-se depressa e vestiu roupas limpas tão

rápido quanto pôde. Amarrou o cabelo num rabo-de-cavalo, deu

uma última olhada para trás e fechou a porta, movendo-se

depressa, antes que perdesse a coragem. Ela ia contar sua história a Charles. Narraria como se

fosse uma peça que estava pensando escrever. Era uma vez uma menina que fugiu para a

escola. Ela ouviria o que ele diria, prestaria atenção em seu rosto enquanto lhe contasse e, se

parecesse receptivo, revelaria que era tudo verdade. Maggie empurrou a porta e se deparou com

um homem. Josh. Josh, de sua primeira noite em Princeton, que estava parado ali na escuridão,

olhando para ela, segurando a mochila de Maggie.

A respiração de Maggie congelou em sua garganta enquanto ela recuava para uma parede.

Josh agora não parecia bêbado, atordoado ou sedutor. Parecia querer matá-la, ou no máximo,

machucá-la bastante. Encontros ruins sempre retornam, pensou Maggie, e recuou um

centímetro para trás, tentando adivinhar o que ele queria, tentando adivinhar como ele entrara ali,

porque a biblioteca estava fechada. Ele devia ter esperado por ela, o que significava que ambos

estavam sozinhos no porão...

Meu Deus, pensou Maggie, recuando para trás, tentando misturar-se à parede. Isto vai ser

ruim. Isto vai ser muito ruim.

— Bem, olá — disse uma voz macia, e usou o polegar para esfregar a tatuagem dela, a

que dizia "Mãe", a que finalmente o fizera lembrar daquela noite em sua cama. — Pequena M.

Você me deve alguma coisa, acho.

— Vou te devolver o dinheiro — sussurrou Maggie, enquanto ele se aproximava tanto

dela que seus narizes se tocaram. — Está na minha bolsa; nunca gastei; vou te pagar tudo de

volta agora... — Maggie sentiu um arrepio quando ele a abraçou, e conteve um grito. Desastre,

pensou. Exatamente como diria o poema. Parece um desastre. Ela se contorceu, pensando que

poderia sair correndo, que talvez tivesse uma chance, mas ele a estava segurando com muita

força, e sussurrando coisas horríveis para ela.

— O que você está fazendo aqui? — perguntou. — Você não pertence a este lugar. Não

devia estar aqui. Qual é a sua história?

M

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— Eu vou lhe dar o dinheiro. Apenas me deixe ir embora — disse Maggie, e tentou se

soltar, mas ele a havia encurralado, empurrando-a contra o granito gélido da parede da biblioteca.

Ele não parava de falar com ela, na verdade, falar para ela, empurrando palavras no rosto de

Maggie enquanto ela se debatia. Sua voz era constante, mas enquanto falava, seu tom mudou de

intimidador e acusatório para uma adulação grudenta.

— Talvez eu devesse deixar você me pagar de outra forma — disse ele, correndo os

olhos pelo corpo de Maggie de um modo que a fez sentir como se ele tivesse derrama ácido em

sua blusa. — Não lembro exatamente do que aconteceu naquela noite, mas acho que não

acabamos o que começamos. E agora estamos sozinhos aqui. Podemos terminar agora.

Maggie gemeu e se contorceu desesperadamente.

— Me deixa ir — implorou.

— Por que deveria? — perguntou Josh. Seu rosto pálido estava enrubescido. Seus cabelos

louros pendiam sobre sua fronte, e ele cuspia nela enquanto falava. — Você está com problemas.

Muitos problemas. Eu revistei a sua mochila. Três identidades. Muito bacana. Meus cartões de

crédito, claro, e muito dinheiro. De onde veio esse dinheiro? De mais quantos homens? E você

está vivendo aqui embaixo? Você tem alguma idéia do que aconteceria se eu contasse à segurança

do campus? Ou à polícia?

Maggie abaixou o rosto e começou a chorar silenciosamente. Ela não podia evitar. De

certo modo, essa conversa, as mãos dele apertando seus pulsos, estava sendo uma experiência tão

ruim quanto aquela que sofrera com os caras que a haviam agarrado no estacionamento de

veículos apreendidos... e ela estava tão assustada quanto estivera lá. Era a vergonha da situação, as

palavras dele caindo sobre ela como uma tempestade de granizo, escaldando sua pele. E era tão

injusto! Qual tinha sido seu crime? Do que ela se apoderara? Alguma comida, quando havia tanta

abundância. Alguns livros, cujos proprietários eram burros, preguiçosos ou ricos o bastante para

largar por aí. Algumas roupas de cestas de achados e perdidos, alguns lugares vagos em salas de

aula onde os professores iriam falar de qualquer jeito.

Maggie ergueu o queixo e arregalou os olhos.

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— Certo — disse ela. — Basta. — Forçou um sorriso, forçou-se a soltar seus cabelos do

rabo-de-cavalo e derramá-los em seus ombros. — Você me pegou — murmurou. — Você me

pegou onde me quer. — Ela fez um apelo a cada grama de encanto que tinha, todo o sex appeal

que mantivera enterrado sob suéteres durante aquele semestre, e dirigiu-lhe um sorriso tão

convidativo quanto uma calda de caramelo numa casquinha de sorvete de baunilha. — Quer

explorar? — perguntou ela, rezando para que ele não percebesse o tremor em sua voz. Rezando

para que seu corpo fosse uma distração suficiente.

Josh enxugou as mãos em suas calças jeans. Aquele era todo o espaço de que Maggie

precisava. Ela segurou a mochila por uma tira e a arremeteu contra ele, atingindo a lateral de seu

rosto. Josh cambaleou para trás. Ela chutou a canela dele com todas as suas forças. Josh arfou e

se dobrou em dois, e Maggie se desvencilhou dele.

Maggie subiu correndo três lances de escada, empurrando portas de vidro pesadas,

escutando alarmes berrando às suas costas, enquanto atravessara correndo o pátio, segurando sua

mochila pela tira que arrebentara quando ele a agarrara, sem conseguir pensar em nada, pés

voando, sangue fervendo com adrenalina. Era uma linda noite de primavera. Estudantes de

shorts e camisetas caminhavam pelas calçadas, deitavam-se sob os salgueiros, chamavam os

nomes uns dos outros pelas janelas abertas. Maggie tinha a impressão de estar nua, de usar uma

placa que dizia "NÃO PERTENÇO A ESTE LUGAR". Correu cada vez mais rápido, uma

cãibra apunhalando-a na caixa torácica, saiu do campus, alcançou a calçada, seguiu até a estação

rodoviária, na Nassau ainda trovejava em seu peito.

Vá até a casa de Corinne, pensou. Vá até a casa de Corinne e pense em alguma coisa que

faça ela te deixar entrar, mesmo sendo o meio da noite enquanto eu só deveria chegar lá de

manhã. Recostou na cadeira e cerrou os olhos, pensando que ela estava numa caixa, em outra

caixa, a mesma de quando começara aqui, e precisava pensar numa forma de sair dela, como

fizera antes. Pegou seu celular, engoliu em seco, e discou o número da irmã. Era tarde; Rose

estaria em casa. Ela saberia o que fazer.

Mas Rose não estava em casa.

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— Aqui é Rose Feller da Tratamento de Animais da Rose — disse a máquina. O quê? —

Por favor, deixe-me uma mensagem, incluindo seu nome, telefone, o nome do seu animal de

estimação e as datas em que precisará do serviço. Eu ligarei de volta para você assim que for

possível.

Número errado, pensou Maggie. Só podia ser. Ela discou de novo e ouviu a mesma coisa,

só que desta vez esperou o bipe e abriu a boca.

— Rose — grasnou. — Estou... — Estou o quê? Numa enrascada... de novo? Eu

preciso que você me salve de meus problemas... de novo? Maggie fechou os olhos e o telefone.

Ela teria de se virar sozinha.

— Maggie? — perguntou Corinne, parecendo sem equilíbrio de pé diante de sua porta.

— Que horas são? O que você está fazendo aqui?

— É tarde — disse Maggie. — Aconteceu... Eu queria... — Ela respirou fundo. —

Queria saber se não poderia passar alguns dias com você. Eu vou te pagar aluguel, ou limpar para

você de graça...

Com o quadril, Corinne manteve a porta aberta.

— O que aconteceu?

Maggie pensou em todas as possibilidades. Podia dizer a Corinne que havia brigado com

uma colega de quarto? Ela dissera a Corinne que tinha colegas de quarto? Não conseguia lembrar.

E se aquele maldito garoto a tivesse seguido até aqui? Se ele sabia que ela estava abrigada na

biblioteca, talvez também soubesse que ela estava trabalhando aqui.

— Maggie? — A testa de Corinne estava enrugada. Ela não estava usando seus óculos

escuros, e Maggie viu seus olhos azuis virando de um lado para o outro como peixes perdidos.

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— Aconteceu uma coisa — disse Maggie.

— Acho que já percebi isso — disse Corinne, deixando Maggie entrar e caminhando até a

cozinha com as pontas dos dedos roçando a parede. Maggie sentou à mesa enquanto Corinne

enchia a panela, acendia o gás, tirava duas canecas e dois saquinhos de chá da prateleira ao lado

do fogão. — Pode me dizer o quê?

Maggie abaixou a cabeça.

— Na verdade, não — sussurrou.

— São drogas? — perguntou incisiva Corinne, e Maggie ficou tão surpresa que riu.

— Não — disse ela. — Não são drogas. Eu apenas preciso me esconder por algum

tempo. — O que, ela percebeu, fazia com que parecesse uma completa criminosa, mas foi tudo

que conseguiu pensar. — Estou apenas um pouco estressada — acrescentou. — E aqui é tão

tranqüilo...

Ela claramente disse as palavras mágicas. Corinne abriu um sorriso de orelha a orelha.

Colocou açúcar no chá e levou as xícaras até a mesa.

— Exames finais são muito difíceis, não são? — perguntou Corinne. — Lembro de

tentar estudar para os meus. Os dormitórios eram tão barulhentos, e a biblioteca ficava tão cheia

de gente! Não se preocupe! — disse a Maggie. — Você pode ficar em qualquer um dos quartos

do terceiro andar. Eles estão limpos, não estão?

— Estão sim — disse Maggie. Ela mesma os limpara. Ela bebericou seu chá e tentou

fazer seu coração parar de correr. Plano. Plano. Ela precisava de outro plano. Ela ficaria aqui

durante alguns dias. Teria de comprar algumas coisas novas; tinha uma muda de roupas e algumas

peças íntimas na mochila, mas o resto de suas coisas estava na biblioteca e ela não iria até lá

pegar. E então iria para onde? Poderia voltar para seu pai, para Rose? Eles iriam aceitá-la de

volta? E ela iria querer voltar?

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Maggie fechou os olhos e viu a si mesma sentada na última fileira da aula de poesia,

dizendo à professora o que "Uma arte" significava. Ela viu o rosto de Charles, cabelos caindo

sobre a fronte enquanto falava de Shakespeare e Strindberg e como fora sua experiência de ver

John Malkovich no palco certa vez. Ninguém em Princeton soubera que ela era diferente deles.

Até o rapaz na biblioteca. Até agora.

Ela piscou com força. Ela não ia chorar. Ela ia resolver esta situação. Fique escondida,

pensou. Depois saia. Não podia ficar aqui enquanto aquele cara ainda estava no campus, e depois

dos estudantes irem para suas casas, ela não poderia ficar, porque não haveria mais ninguém com

quem ela se misturar. E então, o que faria?

— Maggie? — chamou Corinne. Maggie olhou para ela. — Você tem família? Alguém

para quem eu devesse ligar?

Maggie fungou e mordeu o lábio. Sentia vontade de chorar, mas de que adiantaria isso?

— Não — respondeu, voz trêmula. — Não tenho ninguém.

Corinne inclinou a cabeça.

— Tem certeza?

Maggie pensou em sua mochila, no dinheiro que mantinha preso por um elástico,

guardado num dos bolsos internos com zíper. Ela escutou a voz de Josh. Revistei sua mochila.

Pegou a mochila e abriu. O dinheiro havia sumido. Suas carteiras de identidade e cartões de

crédito haviam sumido. Não havia nada exceto roupas, e livros, e... Seus dedos roçaram no papel

acetinado do cartão de aniversário. Ela tirou o cartão, abriu-o, leu-o pela centésima vez, os votos

de aniversário, e a assinatura, e o número de telefone.

— Uma avó — disse ela numa voz trêmula. — Tenho uma avó.

Corinne meneou com a cabeça como quem diz então tudo está resolvido.

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— Vá dormir — disse Corinne. — Pegue qualquer quarto que quiser. Amanhã de manhã,

ligue para ela.

E assim, na manhã seguinte, Maggie parou no centro da cozinha ensolarada, celular na

mão, e discou o número que sua avó escrevera no cartão quase vinte anos antes. O telefone

tocou e tocou. Maggie cruzou os dedos de ambas mãos. Por favor, pensou, sem saber ao certo o

que estava querendo, exceto que alguém atendesse.

E alguém atendeu.

Rose Feller acordou às cinco da manhã numa cama estranha com o coração acelerado.

Maggie, pensou. Ela havia sonhado com Maggie.

— Maggie — disse alto, mas, mesmo no instante em que disse, mesmo enquanto nadava

para cima através do sono em direção ao estado desperto, ela não tinha certeza de que fora

Maggie a quem vira. Uma mulher correndo por uma floresta. Tinha sido apenas isso. Uma

mulher com olhos aterrorizados, boca aberta num grito, correndo em meio a galhos verdes que

se estendiam como braços para aprisioná-la.

— Maggie — repetiu. Petúnia olhou para Rose antes de decidir que aquilo não significava

nem emergência nem comida, e fechou os olhos de novo. Rose jogou as pernas para fora da

cama. Simon colocou uma das mãos no quadril de Rose.

— Shh... — disse, puxando-a de volta para ele, enroscando seu corpo em torno do dela e

beijando sua nuca. — O que está errado? — perguntou, e ela sentiu os cachos dos cabelos de

Simon roçarem seu pescoço. — Teve um sonho ruim?

— Sonhei com minha mãe — disse Rose, numa voz baixa, mais lenta e grave que a sua,

uma voz adormecida. Mas isso estava certo? Sua mãe. Maggie. Ou talvez ela própria, correndo era

meio às árvores, tropeçando em raízes, caindo com as mãos e os joelhos no chão, e então se

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levantando para correr mais. Mas correr do quê? E em direção a quê? — Minha mãe está morta,

você sabe. Eu te contei isso? Não consigo lembrar. Ela morreu quando eu era bem pequena.

— Eu volto logo — sussurrou Simon, e se levantou da cama. Ela o ouviu caminhar pela

cozinha, retornando um minuto depois com seu pijama listrado e segurando um copo d'água.

Rose aceitou com gratidão o copo e bebeu a água enquanto ele voltava para a cama e apagava as

luzes. Então ele se enroscou em torno dela novamente, uma das mãos sobre a fronte de Rose, a

outra aninhando a base de sua cabeça como se ela fosse uma coisa delicada e rara.

— Sinto muito sobre sua mãe — disse ele. — Quer falar sobre isso?

Rose fez que não com a cabeça.

— Você pode me contar tudo — disse Simon. — Eu vou cuidar de você. Prometo. —

Mas Rose não lhe disse nada naquela noite. Apenas fechou os olhos, deixou-se apoiar nele e

adormeceu.

Ella estava sentada à sua mesa, olhando seu caderno, trabalhando na compilação de uma

lista de exames de saúde gratuitos para o exemplar da semana seguinte da Golden Acres Gazette

quando o telefone tocou.

— Alô? — disse ela.

Nenhuma resposta... apenas respiração.

— Alô? — repetiu. — Sra. Lefkowitz, é você? Está tudo bem?

Uma voz de mulher jovem respondeu à pergunta.

— Você é Ella Hirsch?

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Telemarketing, pensou Ella.

— Sim, sou eu.

A voz fez uma pausa. Então:

— Você teve uma filha chamada Caroline?

Ella respirou fundo e respondeu, sem pensar:

— Eu tenho. Quero dizer, tive.

— Bem... — disse a jovem. — Você não me conhece. Meu nome é Maggie Feller.

— Maggie — disse Ella instantaneamente, sentindo a familiar mistura de esperança, alívio

e terror correr através dela ao dizer novamente o nome de sua neta. — Maggie. Eu telefonei. Ou

melhor, telefonei para a sua irmã... Ela pegou meu recado? Ela lhe contou?

— Não — disse Maggie, e fez uma pausa. Ela recomeçou: — Olha, você não me

conhece, não tem qualquer motivo para me ajudar, mas estou com problemas. Estou com um

monte de problemas...

— Eu vou ajudar você — respondeu imediatamente, e com o coração carregado de

esperança, apertou os olhos e escutou Maggie dizer-lhe como.

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PARTE TRÊS

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Eu carrego o seu coração

—42 42 42 42 —

ose Feller jamais quis tanto uma mãe quanto quis durante seu noivado

com Simon Stein. O primeiro encontro deles tinha sido em abril. Em

maio já estavam se vendo quatro a cinco vezes por semana. Em Julho

Simon tinha praticamente se mudado para o apartamento de Rose. E em setembro ele a levou de

volta ao Jerk Hut, agachou-se debaixo da mesa — uma alegada tentativa de recuperar um

guardanapo caído — e reapareceu com uma caixa de veludo preta na mão.

— É muito cedo — dissera Rose, ainda não acreditando que tudo aquilo estava

acontecendo.

R

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E Simon olhara fundo nos olhos dela e dissera:

— Eu tenho certeza absoluta sobre você.

O casamento foi marcado para maio, e já era outubro, o que significava, como as

atendentes da loja tinham frisado naquela tarde, que Rose tinha deixado para escolher seu vestido

de casamento muito tarde.

— Você tem noção de quanto tempo leva para os vestidos chegarem? — perguntara a

mulher na primeira loja. Rose pensara em retorquir "Você tem noção de quanto tempo levei para

achar um homem para casar?", mas decidiu ficar de bico fechado.

— Isto é tortura — disse Rose, esforçando-se para puxar a meia-calça corpo acima.

— Devo chamar a Anistia Internacional? — perguntou Amy. Rose balançou a cabeça e

jogou seu tênis para a sala de provas cor de pêssego e decorada com rendas de uma loja de

noivas, onde o ar cheirava a lavanda e o sistema de som tocava música instrumental melosa

ininterruptamente. Estava espremida num bustiê que levantava seus peitos quase até o queixo (e,

como descobriria mais tarde, deixava temporariamente marcas horrorosas nas laterais), mais um

espartilho que a vendedora definira como um "delineador de silhueta", só que Rose conhecia um

espartilho quando via um — e quando sentia um cortando seu suprimento de ar. Mas a

vendedora insistira. "Peças de sustentação apropriadas são cruciais", dissera, olhando para Rose

como se dissesse, como todas as minhas outras clientes sabem.

— Você não sabe o que estou passando — gemeu Rose. A vendedora tomou um vestido

nos braços e o abriu para Rose.

— Mergulhe — ordenou a vendedora.

Rose apertou os braços contra as laterais, curvou a cintura, estremecendo ao sentir a

pinicada de seu espartilho de dupla pressão, e enfiou a cabeça pela abertura. A saia inteira do

vestido desceu até seus calcanhares enquanto Rose enfiava os braços pelas mangas e a vendedora

começava a tentar fechar o zíper nas suas costas.

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— Pelo que você está passando? — perguntou Amy. Rose fechou os olhos e pronunciou

o nome da assombração que a vinha atormentando durante os dois meses do noivado, e que iria,

tinha certeza, continuar a puxar seu pé até a data do matrimônio.

— Sydelle.

— Oh — disse Amy.

— Oh não é nem a metade — disse Rose. — Minha madrasta má agora decidiu que quer

ser a minha melhor amiga.

E isso era verdade. Quando ela e Simon haviam dirigido até Nova Jersey para contar as

boas-novas a Michael Feller e sua esposa, Michael abraçara sua filha e dera um tapinha nas costas

de Simon, enquanto Sydelle ficara sentada no sofá com uma expressão embasbacada.

— Que maravilhoso — finalmente conseguira dizer Sydelle, as palavras espremendo-se

através de seus lábios finos e pintados à perfeição enquanto suas narinas imensas inflavam como

se tentassem inalar a mesinha de centro. — Que maravilhoso para vocês dois! — E no dia

seguinte ela chamou Rose em sua casa e insistiu que elas tomassem chá para celebrar, e para lhe

oferecer os serviços de planejadora de casamento. — Não quero me gabar, querida, mas as

pessoas ainda falam do casamento de "Minha Márcia" — dissera. Rose pensou que isso era

compreensível, dada a tendência de Sydelle a mencionar o casamento de Márcia em cada

conversa, mas ela foi pega tão completamente de surpresa por Sydelle querer fazer uma coisa que

não envolvesse crítica às suas roupas, cabelo ou dieta, que concordou. Com sua aliança novinha

em folha ainda parecendo estranha em seu dedo, ela fora ao Ritz-Carlton encontrar Sydelle para

tomarem chá.

— Foi um tormento — lembrou enquanto Amy assentia e alisava as luvas de renda que

iam até a altura dos cotovelos que estava experimentando.

Rose localizara instantaneamente sua madrasta. Sydelle estava sentada sozinha a uma

mesa posta com um bule de chá e duas xícaras com frisos dourados. Ela parecia tão formidável

quanto sempre. Seus cabelos tinham sido secados até a imobilidade, e sua pele parecia reluzente e

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repuxada como plástico retrátil. Usava maquiagem imaculada, acessórios dourados imponentes, e

a jaqueta de couro marrom pela qual Rose babara ao vê-la na vitrine da Joan Shepp enquanto

vinha até o hotel.

— Rose! — cantarolou. —Você está maravilhosa. — O olhar que lançou à saia cáqui de

Rose e seu rabo-de-cavalo sugeriam outra coisa. — Agora — disse ela, depois que elas haviam

conversado durante alguns minutos —, vamos cuidar dos detalhes. Você tem um esquema de

cores em mente?

— Hummm... — disse Rose. Que era toda a abertura da qual Sydelle Feller precisava.

— Azul-marinho — decretou. — Azul-marinho está na moda. Muito, muito chique.

Muito atual. Estou vendo... — E fechou os olhos, permitindo a Rose um momento para admirar

os tons de marrom, castanho e caramelo pintados com precisão em suas pálpebras. — ... damas

de honra em vestidos simples azul-marinho...

— Não vou ter damas de honra, Apenas Amy. Ela vai ser minha dama de honra — disse

Rose, Sydelle ergueu uma sobrancelha perfeitamente depilada.

— E quanto a Maggie?

Rose fitou o tecido de linho cor-de-rosa. Meses antes, ela recebera uma mensagem muito

estranha de Maggie. Uma mensagem de uma palavra, consistindo apenas do nome de Rose, e da

palavra estou. Depois disso não tivera nenhuma notícia dela, embora ocasionalmente Rose ligasse

para o celular de Maggie e desligasse depois que sua irmã dizia "Alô".

— Não tenho certeza — respondeu.

Sydelle suspirou.

— Vamos falar das mesas — decretou. — Estou vendo panos de mesa azul-marinho

com guardanapos brancos, muito náuticos, muito bem dobrados. E vamos querer vasos com

delfínios e arranjos daquela belíssima margarida-do-transval... ou, não. Não — disse Sydelle,

balançando a cabeça uma vez, como se Rose a tivesse contradito. — Rosas cor-de-rosa.

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Consegue ver? Massas e massas de rosas cor-de-rosa, transbordando de vasos de prata! — Ela

sorriu, parecendo muito orgulhosa de seus talentos. — Rosas para Rose! É claro!

— Parece lindo! — disse Rose. E era, presumiu. — Mas bem, quanto às damas de

honra...

— E, é claro — prosseguiu Sydelle, como se Rose não tivesse falado —, você também vai

querer "Minha Márcia".

Rose engoliu em seco. Ela não queria "Minha Márcia". Nem um pouco.

— Eu sei que ela vai ficar honrada — disse Sydelle com doçura.

Rose mordeu o lábio.

— Bem... Eu realmente... Eu acho... — Vamos!, urgiu a si mesma. — Apenas Amy. É

tudo que eu quero.

Sydelle comprimiu os lábios, inflou as narinas.

— Talvez Márcia possa fazer uma leitura — disse Rose procurando desesperadamente

por uma migalha para atirar para sua madrasta.

— Como quiser, querida— disse Sydelle, gélida — O casamento é seu, é claro.

Que foi a frase que Rose repetira para Simon naquela mesma noite.

— O casamento é nosso, é claro — disse ela, e enterrou a cabeça nas mãos. — Eu apenas

tenho a sensação horrível de que vou acabar com "Minha Márcia" e as cinco melhores amigas

dela em vestidos azul-marinho me acompanhando até o altar.

— Você não quer "Minha Márcia"? — perguntou Simon inocentemente. — Mas ela é tão

classuda! Você sabe, ouvi dizer que quando ela casou, comprou um vestido Vera Wang tamanho

extra pequeno e coube nele.

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— Também ouvi isso — murmurou Rose. Simon segurou ambas as mãos de Rose.

— Minha amada, é o nosso casamento. Ele vai ser exatamente como você quiser que seja.

Com quantas damas de honra você quiser. Ou com nenhuma.

Naquela noite, Rose e Simon escreveram a lista curta do que queriam (excelente comida,

uma banda de arrebentar) e o que eles não queriam (canções bregas, arremesso de buquê, "Minha

Márcia").

— E nada de "dança da galinha"! - disse Simon na manhã seguinte.

— Vamos ter rosas! — berrou Rose para as costas do terno azul de Simon enquanto ele

se retirava. — Vasos de prata transbordando rosas! Não é lindo?

Simon gritou para trás uma palavra que soou alarmantemente como "alérgico" e correu

para o ônibus. Rose suspirou, e entrou para telefonar para Sydelle. Ao fim da conversa, ela

concordara em usar o azul-marinho em sua festa de casamento, colocar panos brancos nas mesas,

permitir que "Minha Márcia" lesse um poema de sua escolha, e se encontrar com a florista

indicada Por Sydelle na semana seguinte.

— Que tipo de mulher chama sua florista de "minha florista"? — perguntou Rose a Amy,

enquanto Amy examinava um mostruário cheio de enfeites de cabeça, finalmente escolhendo um

cravejado de pérolas e experimentando-o.

— Uma mulher pretensiosa — respondeu Amy, afixando na cabeça de Rose um véu

salpicado de cristaizinhos que descia até a altura dos tornozelos. — Ficou linda! — Ela encontrou

um véu igual e colocou em sua própria cabeça. — Vem comigo — disse, e puxou Rose até um

espelho.

Rose olhou para si mesma no sétimo e último vestido que ela havia selecionado. Metros

de renda enrodilhavam suas pernas. Um espartilho reluzente, salpicado com cristais brilhantes,

envolvia aproximadamente dois terços de seu diafragma e se abria nas costas. Mangas rígidas

adornadas com bordados esganavam seus braços. Rose olhou arrasada para si mesma.

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— Ai, meu Deus. Pareço fantasiada para sair num bloco de carnaval!

Amy soltou uma gargalhada. A vendedora olhou preocupada para as duas.

— Será que sapatos ajudariam! — perguntou a vendedora.

— Acho que um carro alegórico ajudaria mais — murmurou Amy.

— Eu acho... — começou Rose. Deus, ela precisava de uma mãe. Uma mãe seria capaz

de lidar com a situação, olhar o vestido e dispensá-lo comum meneio de cabeça curto mas

definitivo. Uma mãe diria "Minha filha gosta de coisas simples", ou "ela sempre ficou muito bem

com..." e diria o tipo de vestido. Mesmo depois de semanas de estudo Rose não conseguira

discernir as diferenças entre os diversos cortes de vestido quanto mais decidir qual ficaria melhor

nela. Uma mãe iria retirá-la deste vestido que mais parecia um furacão de pano, libertá-la deste

espartilho que parecia de ferro, anistiá-la dos chás de noiva, jantares de confraternização e ensaios

de cerimônia que Rose teria de enfrentar. E decerto uma mãe saberia como dizer educadamente a

Sydelle Feller para pegar suas duas dúzias de sugestões e enfiá-las na sua bunda minúscula.

— É horroroso — finalmente definiu Rose.

— Bem, sinto muito — disse a vendedora, cujos sentimentos Rose obviamente ferira.

— Talvez alguma coisa menos aparatosa? — sugeriu Amy. A vendedora comprimiu os

lábios e desapareceu no depósito dos fundos. Rose afundou numa cadeira, enquanto o vestido

desinflava ao seu redor com um suspiro melancólico.

— Devíamos fugir para casar escondidos — disse Rose.

— Bem, eu sempre te amei, mas não dessa maneira — disse Amy — E nem em sonho

vou te deixar casar escondida. Você ia me privar do meu laçarote na altura do bumbum.

Um dia depois de Rose contar à sua melhor amiga que ia se casar — antes de Sydelle

decretar que a cor seria azul-marinho —, Amy fizera uma peregrinação às melhores lojas de

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pontas de estoque da Filadélfia em busca de um vestido vaporoso cor de salmão com camadas

múltiplas de filó, mangas bufantes cravejadas de bijuterias e um laçarote grande como um ônibus

para decorar as costas do vestido. Além disso, comprara, como presente de noivado, uma vela de

15 centímetros de espessura cromada com pérolas falsas e as palavras Hoje Vou Casar com o

Meu Melhor Amigo em letras douradas.

— Você só pode estar de brincadeira — dissera Rose, e Amy dera de ombros e dissera

que, em sua opinião, seu papel como dama de honra era de fazer a noiva brilhar, e que se

comprasse este vestido (com sapatos cor de salmão para combinar), ganharia fácil o Concurso

Anual de Damas de Honra da Filadélfia, onde as mulheres competiam por quem usava o pior

vestido.

— Além disso, acontece que eu fico gostosona com um laçarote na bunda.

Agora Amy abraçou os ombros de Rose.

— Não se preocupe — disse ela. — Nós vamos encontrar. Estamos apenas começando!

Se isto fosse fácil, você acha que eles publicariam trinta milhões de revistas sobre como encontrar

o vestido certo?

Rose suspirou e se levantou. Com o canto do olho viu a vendedora se aproximando, seda

e cetim transbordando de seus braços.

— Talvez esse vestido não seja tão ruim — murmurou a vendedora.

— Não — disse Amy, olhando-se dos pés à cabeça. — Não é ruim, é horroroso.

— Entre aqui, por favor — disse secamente a vendedora, e Rose levantou sua saia e

arrastou sua cauda até o provador.

—43 43 43 43 —

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lla Hirsh suportara praticamente um verão inteiro de silêncio da parte

de sua neta antes de decidir que não agüentaria nem mais um segundo.

Maggie chegara em maio, um dia depois daquela primeira conversa telefônica tensa e por

várias vezes interrompida, durante a qual Ella tivera de lhe pedir que repetisse várias vezes o que

dizia para ter certeza de que entendia o que sua neta redescoberta estava dizendo, que ela era

Maggie, não Rose, e que estivera em Princeton, mas não realmente lá. Sim, disse Maggie, Rose e o

pai delas estavam bem, mas ela não podia telefonar para eles. Não, ela não estava ferida, nem

doente, precisava de um lugar para ficar. No momento estava desempregada, mas não tinha

medo de trabalho pesado, e encontraria alguma coisa. Ella não teria de se preocupar com

sustentá-la. Havia mil coisas mais que Ella queria lhe perguntar, mas Maggie atinha-se ao básico,

quem o quê e onde, e a mecânica de como foi transportada do estacionamento do supermercado

em Nova Jersey até a Flórida.

— Você consegue chegar ao Newark? — perguntara Ella, de algum modo extraindo de

sua cabeça o nome do principal aeroporto de Nova Jersey. — Ligue para mim quando estiver lá.

Vou telefonar para as linhas aéreas, descobrir quem tem um vôo direto e então haverá uma

passagem para você no portão.

Oito horas depois, Lewis levara Ella até o aeroporto de Fort Lauderdale, e lá, segurando

uma mochila e parecendo exausta, desmazelada e assustada, estava sua filha, Caroline.

Ella arfara e fechara os olhos, e quando os abriu, viu que estava errada. Esta menina não

era Caroline, não na verdade. Ella reconheceu isso assim que piscou... mas a semelhança era

muito forte. Os olhos castanhos, a forma como os cabelos caíam sobre a fronte, as faces e as

mãos, e até, de algum modo, suas clavículas, eram todas de Caroline. Mas a expressão

determinada do rosto, a qualidade obstinada do queixo, o jeito como seus olhos tinham se

movido rapidamente para eles, avaliando-os, contavam uma história diferente, e previam para ela

um fim diferente do que vitimara sua mãe. Esta garota não sucumbiria à atração de uma estrada

molhada. Esta garota manteria as mãos bem firmes no volante.

Logo no começo elas passaram por uma situação embaraçosa — iriam se abraçar? —, até

que Maggie solucionara isso passando a mochila para seus braços e segurando-a como um bebê,

E

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enquanto Ella gaguejava as apresentações. Maggie não dissera muito no caminho até o

estacionamento de curto período. Ela havia recusado a oferta de Ella de ficar no banco da frente,

e sentara-se reta no banco traseiro enquanto Lewis dirigia e Ella tentava sufocá-la com muitas

perguntas. Ainda assim, ela precisava saber, ao menos que fosse para sua própria segurança, sua

própria paz de espírito.

— Se você me disser em que tipo de problema está envolvida, tenho certeza de que

poderemos resolvê-lo — dissera Ella.

Maggie suspirara.

— Eu estava... — Ela fez uma pausa. Ella olhou-a pelo retrovisor enquanto Maggie

buscava o nome de sua transgressão. — Eu estava vivendo com Rose, e não deu certo, e depois

disso eu passei alguns meses morando no campus...

— Ficou com amigos? — presumiu Lewis.

— Fiquei na biblioteca — disse Maggie. — Morando lá. Eu era... — Maggie olhou pela

janela. — Como uma clandestina. Clandestina — repetiu, o que dava a entender que ela vivera

uma grande aventura em alto-mar. — Só que havia uma pessoa me vigiando, e ele ia me causar

muitos problemas. Então eu tive de partir.

— Você quer voltar para a Filadélfia? Quer voltar para Rose?

— Não! — disse Maggie, com tanta veemência que Ella deu um pulinho na poltrona, e

Lewis acidentalmente apertou a buzina. — Não — repetiu. — Eu não sei para onde quero ir. Eu

não tenho um lugar para ficar na Filadélfia. Eu tinha um apartamento, mas fui despejada. E não

posso voltar para a casa do meu pai, porque a mulher dele me detesta, e eu não posso voltar para

a casa de Rose... — E ela exalou um suspiro melancólico e abraçou os joelhos, acrescentando um

pequeno arrepio para efeito dramático. — Acho que eu devia ir para Nova York. Vou arrumar

um trabalho e economizar dinheiro, e vou para Nova York. Vou encontrar uma colega de quarto

ou... alguma coisa — concluiu.

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— Você pode ficar comigo enquanto precisar — disse Ella. As palavras saíram de sua

boca antes que ela refletisse sobre o que estava dizendo, antes que se perguntasse se era uma boa

idéia ou não. A julgar pela expressão no rosto de Lewis, a resposta provavelmente era "não".

Maggie tinha sido despejada. Depois tinha morado com a irmã, o que por algum motivo, não

dera certo. Ela não se sentia bem-vinda na casa de seu pai. Ela tinha sido clandestina — fosse lá o

que quisesse dizer com isso — numa faculdade na qual não estava matriculada, vivendo na

biblioteca. Como isso tudo poderia se somar em qualquer outra coisa que não fosse problema?

Enquanto Lewis as conduzia pelo tráfego do aeroporto, de volta a Golden Acres, Maggie

suspirara, apoiara o queixo na palma da mão e olhara pela janela para as palmeiras passando lá

fora.

— Flórida — disse ela. — Nunca estive aqui antes.

— Como está... — começou Ella. — Pode me falar sobre sua irmã? Maggie ficou calada.

Ella pressionou-a.

— Pesquisei Rose na Internet, no escritório de advocacia em que ela trabalha...

Maggie balançou a cabeça, olhando pela janela, como se estivesse vendo o rosto da irmã

refletido no espelho.

Aquela foto dela não é horrível? Eu vivia dizendo a ela para mandar eles trocarem por

outra, e ela falava: "Isso não importa Maggie. Não seja superficial" E eu dizia: "Essa foto está aí

para o mundo inteiro ver, e não é superficial que você queira parecer o melhor possível" Mas é

claro que ela não me ouvia. Ela nunca me ouve — disse Maggie, e fechou a boca como se

estivesse com medo de já ter falado muito. — Para onde vamos exatamente? Onde você mora?

— Nós moramos num lugar chamado Golden Acres. É...

— "Uma comunidade para cidadãos ativos da terceira idade" — ela e Lewis recitaram

juntos.

No espelho retrovisor, os olhos de Maggie se arregalaram alarmados.

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— Um asilo?

— Não, não — disse Lewis. — Não se preocupe. É apenas um lugar para pessoas mais

velhas.

— Um condomínio — acrescentou Ella. — Lá tem lojas, um clube e um bonde para as

pessoas que não dirigem mais...

— Parece fantástico — obviamente sem uma gota de sinceridade. — E então, o que

vocês fazem o dia todo?

— Sou voluntária.

— Onde?

— Bem, em toda parte. No hospital, no abrigo de animais, na loja de produtos de

Segunda mão, no programa de Refeições sobre rodas. Também ajudo uma senhora que teve um

derrame no ano passado... Eu me mantenho ocupada.

— Você acha que eu consigo arrumar um emprego aqui?

— Que tipo de trabalho?

— Já fiz de tudo — disse Maggie. — Trabalhei como garçonete, tratadora de animais,

hotess...

Hotess? Ella se perguntou o que isso significava.

— Barwoman, babá... — prosseguiu Maggie.— Já trabalhei numa sorveteria, numa

barraquinha de donuts...

— Uau — disse Ella. Mas Maggie ainda não tinha acabado.

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— Cantei numa banda durante algum tempo — Maggie considerou que era melhor não

dizer à sua avó o nome da banda, na remota possibilidade de ela saber o que era um Whiskere

Biscuit. — Telemarketing, borrifar pessoas com perfume, na TJ. Maxx, Gap, Limited... —

Maggie se calou e abriu um bocejo imenso. — E em Princeton eu ajudei uma senhora cega. Eu

limpava a casa dela. Fazia compras.

— Isso... — Novamente, Ella ficou sem palavras.

— Então, acho que vai dar tudo certinho — disse Maggie. Ela bocejou, refez o rabo-de-

cavalo, e então se enrodilhou no banco traseiro e adormeceu instantaneamente. E no próximo

sinal vermelho, Lewis olhou para Ella.

— Certinho? — disse ele.

Ella deu de ombros, e então sorriu. Maggie estava aqui, e a despeito de qual fosse a

verdade, isso já era alguma coisa.

Quando Lewis parou no estacionamento Maggie ainda estava dormindo no banco de trás.

Com um cacho de cabelos marrons agarrado em sua bochecha suada. Suas unhas mordidas

lembravam tanto as de Caroline que Ella sentiu o coração bater contra sua caixa torácica. Maggie

abriu os olhos, espreguiçou-se, pegou sua mochila, e saltou do carro, piscando. Ella acompanhou

seu olhar. Ali estava Irene Siegel empurrando seu andador pelo estacionamento, e Albert Grantz

lentamente descarregando um tanque de oxigênio de seu porta-malas.

— A desgraça para a qual o homem nasceu — disse Maggie num tom baixo, resignado.

— O que você disse, querida? — perguntou Lewis.

— Nada — disse Maggie. Ela jogou sua mochila no ombro e acompanhou Ella para

dentro da casa.

Cumprindo sua palavra, Maggie arrumou emprego numa lanchonete de rosquinhas a

menos de um quilômetro de Goldcn Acres. Ela trabalhava no primeiro turno, saindo do

apartamento às cinco da manhã e trabalhando durante a hora do café e do almoço. E depois o

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quê?, perguntara Ella, porque Maggie raramente reaparecia no apartamento antes das oito ou

nove da noite.

— Vou à praia — respondia. Ou ao cinema. Ou à biblioteca. Durante semanas, Ella

oferecera-lhe jantar, Cada vez Maggie recusara.

— Já comi — dizia, embora fosse pele e osso.

Ella às vezes se perguntava se Maggie comia alguma coisa. Maggie declinava das ofertas

de Ella de assistir a TV, ir ao cinema, ir a uma noite de bingo no clube. A única coisa que Ella

oferecera que acendera uma centelha de interesse de Maggie fora um cartão da biblioteca. Maggie

acompanhara sua avó à biblioteca pequena, de apenas um pavimento, preenchera a ficha com o

endereço de Ella, e então desaparecera em meio às estantes de ficção e literatura, emergindo uma

hora depois com os braços carregados de livros de poesia.

E foi assim. Durante maio. Durante junho. Durante julho e agosto À noite, Maggie

chegava em casa, cumprimentava-a com um aceno de cabeça e desaparecia. Emergia para tomar

banho e depois retirava-se silenciosamente para o quarto dos fundos, fechando a porta às suas

costas, carregando sua toalha, xampu, escova e pasta de dentes como se fosse uma convidada

para uma noite, ainda que Ella tivesse lhe dito que era bem-vinda a deixar suas coisas onde bem

entendesse. Havia um pequeno televisor no quarto de Maggie, mas Ella jamais o ouvira ligado.

Havia um telefone, também, mas Maggie jamais ligava para ninguém. Ela lia, disso Ella sabia — a

cada três ou quatro dias notava um novo volume da biblioteca na bolsa de Maggie: romances

grossos, biografias, e livros de poesia com o tipo de poemas estranhos, fragmentados e sem rima

que não faziam qualquer sentido para Ella. Mas Maggie jamais parecia falar com ninguém, e Ella

estava começando a achar que ela jamais viria a fazê-lo.

— Eu não sei o que vou fazer — disse ela. Eram oito da manhã, a temperatura estava a

quase 30 graus, e ela fugira para o apartamento de Lewis depois que Maggie mais uma vez passara

como uma aparição por ela e saíra pela porta.

— A respeito do tempo? Espere. Não pode ficar assim para sempre. — A respeito dela

— disse Ella. — Maggie. Ela não fala comigo! Ela nem olha para mim. Ela anda pela casa

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descalça... nunca a ouço. Ela passa o tempo todo fora de casa. Quando eu acordo, ela já saiu. —

Ella fez uma pausa, respirou fundo e balançou a cabeça.

— Bem normalmente eu diria para dar tempo a ela...

— Lewis, já se passaram meses, e eu nem sei nada sobre o problema dela com a irmã, ou

com o pai. Eu nem sei o que ela gosta de comer no jantar! Você tem netos...

— Sim, mas são todos meninos — disse Lewis. — Mas acho que você tem razão. Isto

exige medidas drásticas. — Ele se levantou. — Nós precisamos recorrer à artilharia pesada.

Por sorte a Sra. Lefkowitz estava em casa.

— Vamos começar com algumas perguntas — disse ela, caminhando de um lado para o

outro de sua sala de estar entulhada de coisas em seu jeito habitual de se apoiar com firmeza,

suspirar, dar um passo, arrastar o outro pé. — Você tem ameixas na geladeira.

Ella olhou para a Sra. Lefkowitz.

— Ameixas — repetiu a Sra. Lefkowitz.

— Sim — disse ela.

A Sra. Lefkowitz fez que sim.

— Você tem Metamucil no armário de remédios?

Ella fez que sim. E que idoso não tomava essas cápsulas de fibras?

— Que revistas você assina?

Ella pensou.

— Prevention, aquela que a Associação Norte-americana de Aposentados manda...

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— Você assiste a HBO ou a MTV?

Ella fez que não com a cabeça.

— Não tenho TV a cabo.

A Sra. Lefkowitz revirou os olhos e se deixou cair numa poltrona sobre uma almofada

cuja capa de crochê anunciava "Sou a Princesa".

— Jovens têm suas próprias coisas. Sua própria música, seus próprios programas de tevê,

sua própria...

— Cultura? — sugeriu Lewis.

A Srta. Lefkowitz assentiu.

— Não há nada aqui para ela. Nada próprio para a idade dela. Como você se sentiria se

tivesse 28 anos e estivesse presa num lugar como este?

— Ela não tem mais nenhum lugar para ir — disse ela.

— Nenhum prisioneiro tem — disse a Sra. Lefkowitz. — Mas isso não significa que eles

gostem de estar na prisão.

— E então, o que devemos fazer? — perguntou Ella. A Sra. Lefkowitz se esforçou para

ficar de pé.

— Você tem dinheiro? — inquiriu. Ella assentiu positivamente.

— Então vamos — disse a Sra. Lefkowitz. E apontando para o queixo de Lewis: — Você

dirige. Nós vamos fazer compras.

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Atrair Maggie para fora do seu quarto provou ser um projeto muito oneroso. Primeiro,

foram as revistas, que custaram quase cinqüenta dólares, cada uma mais grossa, lustrosa e

entulhada com amostras de perfume que a anterior.

— Como você sabe sobre tudo isto? — perguntou Ella, enquanto a Sra. Lefkowitz jogava

um exemplar da Movieline em cima do último número da Vanity Fair.

— E o que tem mais para se saber? — retrucou a amiga mais velha de Ella.

Sua parada seguinte foi uma gigantesca loja de eletrodomésticos.

— Tela plana, tela plana — recitava a Sra. Lefkowitz enquanto sumia pelos corredores na

cadeira de rodas motorizada que usava em suas expedições de compras. Duas horas e muitos

milhares de dólares depois, o carro de Lewis estava abarrotado com um televisor de tela plana,

um aparelho de DVD e uma dúzia de DVDs, incluindo a primeira temporada de Sex and the

City, que a Sra. Lefkowitz garantiu que agradava a todas as mulheres jovens.

— Li sobre o seriado na Time — vangloriou-se enquanto se acomodava no banco do

carona. — Vire a esquerda aqui — disse a Lewis. — Vamos ao supermercado e à loja de bebidas

— disse ela, e sorriu para si mesma. — Vamos dar uma festança.

Na loja de bebidas, a Sra. Lefkowitz abordou o atendente de rosto espinhento.

— Você sabe como se faz um cosmopolitan? — perguntou.

— Cointreau... — arriscou-se o atendente.

A Sra. Lefkowitz apontou para Lewis.

— Você ouviu o homem! — disse ela.

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Mais tarde, os braços deles estavam carregados de garrafas de Cointreau e vodca,

salgadinhos de queijo e sacos de batata frita, minicachorros-quentes e rolinhos primavera

congelados, mais dois vidros de esmalte de unha (um vermelho, um rosa), e caixas de papelão

cheias de eletrodomésticos. Ella, Lewis e a Sra. Lefkowitz abarrotaram o elevador e subiram ao

apartamento de Ella.

— A senhora realmente acha que isto vai funcionar? — perguntou Ella, enquanto Lewis

guardava os alimentos congelados no freezer.

A Sra. Lefkowitz puxou uma cadeira à mesa da cozinha e balançou a cabeça.

— Não posso garantir nada — disse ela, tirando um pedaço de papel rosa-shocking da

bolsa. "Você está convidado!", estava escrito no papel em letras prateadas.

— De onde veio isso? — perguntou Ella, olhando sobre o ombro da senhora mais velha.

— Do meu computador — disse a Sra. Lefkowitz, inclinando o convite para que Ella

pudesse ler que a Srta. Maggie Feller estava convida para uma festa Sex and the City a ser

celebrada na noite de sexta-feira na casa de Ella. — Eu posso fazer tudo. Convites, calendários,

autorização de estacionamento...

— O que é isso? — perguntou Lewis, que estava guardando os belisquetes.

A Sra. Lefkowitz subitamente ficou muito interessada no conteúdo de sua bolsa.

— Oh, nada. Esqueça. Lewis olhou para ela.

— Sabe, um dos meus repórteres me disse que tem gente imprimindo autorizações de

estacionamento falsas. Ele quer fazer uma série investigativa.

A Sra. Lefkowitz enipinou o queixo, desafiante.

— Você não vai me entregar, vai?

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— Não. Se isto aqui funcionar, não vou não — prometeu.

A Sra. Lefkowitz fez que sim com a cabeça, e então passou o convite para Ella.

— Enfie debaixo da porta do quarto da menina quando ela não estiver em casa.

— Mas se é uma festa... quem vai vir?

A Sra. Lefkowitz olhou diretamente para Ella.

— Ora, os seus amigos, é claro.

Ella olhou desesperada para Lewis.

— Você tem amigos aqui, não tem? — perguntou a Sra. Lefkowitz a Ella.

— Eu... — começou Ella. — Tenho colegas de trabalho

— Colegas de trabalho! — disse a Sra. Lefkowitz, olhando para o teto. — Bem, não se

preocupe. Seremos só nós três, então. — Ela se levantou. — A gente se vê na sexta! — disse ela,

e caminhou com sua bengala até aporta.

— Eu me sinto como a bruxa de João e Maria — disse Ella, colocando uma bandeja de

mini-rolinhos primavera no forno. Era noite de sexta, depois das nove, o que significava que

Maggie poderia aparecer a qualquer momento... se ela viesse realmente para casa.

"Você recebeu o seu convite?", perguntara Ella para a porta se fechando enquanto

Maggie saía para trabalhar de manhã. A garota respondera com um grunhido vagamente

afirmativo enquanto a porta se fechava às suas costas.

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— Por quê? — perguntou Lewis. Ella apontou para as iscas: pilhas de revistas, bacias de

batatas fritas e molhos, pratos de ovos de codorna, asas de galinha e meia dúzia de outras

guloseimas que ela sabia que lhe causariam uma azia devastadora caso arriscasse mais do que uma

mordida.

A Sra. Lefkowitz puxou a manga de Ella.

— Tem mais uma coisa — disse. — A arma secreta.

— O quê? — perguntou Ella, olhando para o relógio.

— A sua filha — disse a Sra. Lefkowitz.

Ella fitou-a de olhos arregalados.

— O quê?

— A sua filha. Caroline, certo? — disse a Sra. Lefkowitz. — Tudo isto — ela correu a

mão para a sala de estar de Ella, onde Lewis estava mexendo no aparelho de DVD e comendo

animadamente um prato de pãezinhos com espinafre — provavelmente vai funcionar. Mas se

não funcionar, qual é a coisa que você tem que Maggie quer?

— Dinheiro? — presumiu Ella.

— Bem, isso talvez — disse a Sra. Lefkowitz. — Mas tem muitos lugares onde ela pode

conseguir dinheiro. Em quantos lugares ela pode conseguir a história da mãe dela?

A história da mãe dela, pensou Ella, lamentando profundamente que não tivesse sido

uma história mais longa e feliz.

— Informação — disse a Sra. Lefkowitz. — É a coisa que nós temos que os jovens

querem. Informação. — Ela pensou um pouco, e então acrescentou: — E, no meu caso, minhas

ações da Microsoft. Mas com você, informação deve bastar. — Ela acenou com a cabeça quando

a chave de Maggie girou na fechadura. — Hora do show! — sussurrou.

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Ella prendeu a respiração. Maggie entrou no apartamento como se usasse viseiras, sem

olhar para a esquerda, e para a cozinha estocada com guloseimas tentadoras, nem para a direita

com o novo televisor no qual uma mulher estava falando sobre... não. Ela devia ter ouvido

errado. Ella pensou, enquanto a atriz dizia: "Eu não quero ser a garota que dá a bunda!", e a Sra.

Lefkowitz riu enquanto bebericava seu cosmopolitan. Maggie já estava na metade do corredor

quando parou.

— Maggie! — chamou Ella. Ela quase podia sentir o quanto a sua neta estava dividida...

sem saber se ia ou ficava. Senhor não deixe eu estragar isto. Maggie virou-se. — Você quer... —

O quê? O que ela podia oferecer a esta garota arredia com seus olhos castanhos vigilantes, a um

só tempo tão parecidos e diferentes dos de sua própria filha perdida? Ela estendeu a mão, e a

bebida que estava segurando. — É um cosmopolitan. É vodca, suco de amora...

— Eu sei do que é feito um cosmopolitan — disse Maggie com desdém. — Foi uma das

frases mais compridas que Ella extraíra de sua neta. Maggie aceitou o drinque e engoliu metade

dele num gole. — Não está ruim não — disse ela, e então virou-se de costas e seguiu para a sala

de estar. A Sra. Lefkowitz estendeu-lhe uma tigela de salgadinhos de milho. Maggie deixou-se cair

no sofá, engoliu a metade que restava de seu drinque e pegou um exemplar da Entertainment

Weekly.

— Já vi esse episódio — disse Maggie.

— Oh— disse Ella, decepcionada. Por um lado, eram más notícias. IW outro, era a

segunda sentença não solicitada de sua neta. E Maggie estava ali, não estava? Isso era alguma

coisa, certo?

— Mas é um episódio muito bom — acrescentou Maggie. Maggie jogou a revista de volta

para a mesa de centro e olhou em torno. Ella olhou desesperadamente para Lewis, que chegou

correndo da cozinha com uma jarra cheia de bebida. Ele encheu o copo de Maggie. Maggie

escolheu cuidadosamente uma asa de galinha do prato e recostou-se com os olhos na tela. Ella

sentiu-se relaxar um pouco. Não era uma vitória, disse a si mesma enquanto assistia a quatro

episódios, um atrás do outro, de mulheres dizendo coisas que, se ela tivesse falado sessenta anos

atrás, teriam lavado sua boca com sabão. Mas era um começo. Ella olhou para sua neta. Os olhos

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de Maggie tinham se fechado. Havia farelos de Cheetos em seu queixo. E seus lábios estavam

comprimidos, como se estivesse esperando um beijo que a acordasse.

Depois de quatro cosmopolitans, três asinhas de galinha e um punhado salgadinhos de

milho, Maggie desejara boa-noite a Ella e companhia. Ela deitou no colchão fino do sofá-cama e

fechou os olhos, pensando que talvez devesse reconsiderar seu golpe da Flórida.

Inicialmente, decidira simplesmente assistir, esperar, ficar fora do caminho, até obter

todas as informações necessárias. Ela reconhecera que isso poderia levar algum tempo. Tudo que

sabia a respeito de gente velha aprendera na tevê, de comerciais, principalmente, que lhe diziam

que eles tinham taxa alta de açúcar no sangue e bexigas superativas, e precisavam de botões de

pânico para apertar quando caíam e não conseguiam levantar. Ela tinha cruzado os braços e

observado sua avó, que claramente tinha dinheiro. E culpa. Fosse lá o que Ella Hirsh tinha feito

ou deixado de fazer, deixara-a terrivelmente arrependida. O que significava que, se Maggie fosse

paciente, seria capaz de converter essa culpa em dinheiro vivo — dinheiro que somaria à pilha

que crescia lentamente na caixa debaixo de sua cama. Estava ganhando apenas um salário mínimo

na Bagel Bay, mas Maggie calculava que com umas cenas dramáticas, umas histórias tristes sobre

como sentia saudades de sua mãe e como sempre fora carente do amor de uma avó, sairia

bailando da sala de espera da morte — também conhecida como Golden Acres — com dinheiro

suficiente para comprar o que bem entendesse.

O problema era que tomar coisas de Ella seria quase fácil demais. Não seria um desafio

realmente grande, depois de todos os desafios que Maggie havia enfrentado. Parecia, de certo

modo... decepcionante. Como juntar força para socar um tijolo e acabar enfiando o punho e,

marshmallow. A avó era tão absolutamente patética que Maggie, que raramente era atormentada

por sua consciência, sentia-se um tantinho mal de planejar separá-la de seu dinheiro. Ela devorava

sofregamente cada migalha da companhia e da atenção de Maggie, como se tivesse estado faminta

no deserto e Maggie fosse uma tigela de sorvete. Agora havia uma televisão nova, um aparelho de

DVD e a festinha desta noite, em adição às ofertas constantes de Ella de jantares, filmes, passeios

a Miami ou à praia. Ella estava tentando com tanto ardor que revirava o estômago de Maggie. E a

única coisa que Ella pedira a Maggie fora que telefonasse para seu pai e lhe dissesse que estava

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bem. Não mencionara nada a respeito de aluguel, ou de pagar pela gasolina ou seguro do carro,

ou ajudar nas despesas de supermercado, ou qualquer outra coisa. Então, por que ela teria pressa

de partir?

Observe e espere, pensou, afundando o rosto no travesseiro. Talvez ela fizesse Ella levá-

la à Disney World. Andar nas xícaras. E então mandaria um cartão-postal para casa. Gostaria que

vocês estivessem aqui.

—44 44 44 44 —

iga novamente: por que estamos fazendo isto? —

sussurrou Rose.

— Porque, geralmente, quando duas pessoas decidem se casar, é tradicional que seus pais

se conheçam — sussurrou Simon em resposta.

— E vai dar tudo certo. Meus pais te adoram e tenho certeza de que eles vão gostar do

seu pai. E quanto a Sydelle... qual é o pior que pode acontecer?

Na cozinha, Elizabeth, a mãe de Simon, estava debruçada sobre um livro de receitas. Era

uma mulher baixa e gordinha com cabelos louros prateados e a mesma tonalidade leitosa da pele

de seu filho. Vestia saia comprida de padrão floral, blusa branca e um avental amarelo cujos

bolsos largos eram decorados por rosas recortadas em tecido; parecia uma típica dona-de-casa

judia. Em seus caso, porém, a aparência enganava. Ensinava filosofia na Bryn Mawr, com as

mesmas saias floridas e cardigãs de caxemira que usava em casa.

Era uma mulher simpática, engraçada e muito desembaraçada... mas uma coisa era certa:

Simon não herdara dela seus talentos para culinária e apreciação de comida.

— D

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— Chalota — murmurou Elizabeth. — Acho que não tenho. Na verdade... — disse ela

com um sorriso enquanto seu filho entrava e beijava seu rosto — ... acho que nem sei o que é

isso.

— É uma espécie de cruzamento entre cebola e alho — disse Simon. — Por quê? Estava

nas suas palavras cruzadas?

— Simon, estou cozinhando — disse com firmeza. — Você sabe que eu consigo —

acrescentou, levemente ofendida. — Sou uma ótima cozinheira, quando preciso. O caso é que eu

geralmente não preciso.

— E a senhora decidiu arriscar esta noite?

— É o mínimo que posso fazer para receber os mishpochah — disse, sorrindo para

Rose, que retribuiu com um sorriso relaxado. Mas Simon estava cheirando o ar com uma cara

desconfiada.

— O que você está cozinhando?

Ela inclinou o livro de receitas para que ele pudesse ler.

— Galinha assada com arroz integral e recheio de damasco — disse Simon, parecendo

impressionado. — A senhora lembrou de limpar as galinhas?

— Elas vieram do mercado de comida orgânica — explicou. — Tenho certeza de que

estão limpas.

— Sim, mas a senhora tirou as vísceras? O pescoço, o fígado e todo o resto? E o recheio

que eles colocam dentro da cavidade? Aquele que vem embrulhado em plástico?

Agora Rose também cheirou o ar... e notou que a cozinha cheirava a plástico queimado. A

Sra. Stein pareceu preocupada.

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— Bem que achei as galinhas meio apertadas quando as recheei — disse, inclinando-se

para abrir o forno.

— Não há nada com que se preocupar — disse Simon, extraindo com destreza a travessa

de galinhas esfumaçadas e de aparência crua.

— O pano de prato está pegando fogo — comentou o pai de Simon, entrando na

cozinha.

— O quê? — perguntou Simon, cuja atenção estava focada nas galinhas.

Alto e magro, com tufos do mesmo cabelo cor de gengibre de Simon, o Sr. Stein

continuou mastigando calmamente um dos biscoitos com queijo que vinha beliscando e apontou

para um pano de prato em cima do fogão que realmente estava em chamas.

— Pano — disse ele. — Fogo. — Ele caminhou até o fogão, pegou calmamente o pano

de prato em chamas na pia, onde abafou e esfumaçou. Então ele abraçou sua mulher. — Mulher

Calamidade. — disse com afeto. Ela grunhiu para ele e voltou a estudar seu livro de receitas.

— Você não vai comer todos esses biscoitos com queijo, vai?

— Não todos — respondeu o Sr. Stein. — Já comecei a atacar as castanhas de caju. —

Virou-se para Rose, oferecendo o prato de biscoitos com queijo. — Meu conselho — disse ele,

voz baixa, tom conspiratório. — Encha a pança com isto.

Rose sorriu para ele.

— Obrigada.

A mãe de Simon revirou os olhos e limpou as mãos.

— Então a sua... Sydelle é uma boa cozinheira?

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— Ela geralmente mantém meu pai mais em algum tipo de dieta maluca. Rica em

carboidratos, baixa em gorduras, alta em proteínas, vegetariana...

— Oh — exprimiu Elizabeth, preocupada. — Você acha que isto vai agradar? Eu devia

ter perguntado...

— Vai ser ótimo — disse Rose, sabendo que assim que Sydelle chegasse, comida seria a

última coisa em sua mente. Os Stein, Rose acabou descobrindo, moravam numa mansão grande,

espaçosa, e um tanto bagunçada, uma propriedade de dois acres de gramado verdejante numa rua

cheia de domicílios similarmente impressionantes. O Sr. Stein era um engenheiro que inventava

peças para aviões. Ele patenteara duas há alguns anos e era dessas invenções que a maior parte de

seu dinheiro provinha. Agora ele estava beirando os setenta, semi-aposentado, e passava a maior

parte do tempo em casa procurando por seus óculos, o telefone sem fio, o controle remoto e as

chaves do carro. Motivo pelo qual a Sra. Stein parecia passar boa parte do tempo em casa

movendo coisas de uma pilha para outra. Isso, e cuidar de sua horta e ler o tipo de livros

românticos que Rose sempre consumira em segredo, livros que sempre tinham três palavras em

seus títulos. Seu desejo proibido estava pousado sobre o microondas, e Rose também

vislumbrara Amor em chamas emborcado no sofá da sala de estar. Simon contou a Rose que

quando estava na escola dera à sua mãe um falso-vale presente para um livro inexistente que ele

intitulara Calcinhas molhadas de amor.

— Ela ficou zangada? — perguntou Rose.

Depois de refletir um pouco sobre o assunto, Simon comentou:

— Acho que na verdade ela ficou desapontada quando descobriu que o livro não existia.

Agora Simon cheirou o ar novamente, parecendo preocupado.

— Mãe, as nozes.

— Elas estão ótimas — disse Elizabeth Stein serenamente, e tirou rolinhos-primavera de

uma bolsa de papel para uma cesta forrada com guardanapos que parecia ter levado um chute

num dos lados. — Oh, Deus — murmurou. — Está torta.

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Isto também era típico. Os pais de Simon tendiam a não dar a mínima para formalidade

no que dizia respeito a utensílios de mesa. Rose não ficou surpresa em ver a mesa coberta por um

pano de linho feito em casa, posta com pratos que não faziam parte do mesmo jogo. Contou três

pratos da porcelana boa dos Stein, com frisos de ouro, e três de seu jogo de uso cotidiano,

comprados em algum supermercado. Havia quatro copos de vidro e duas canecas para água, e

três taças de vinho, dois copinhos de conhaque, e uma única taça de champanhe, e um

guardanapo de papel diferente para cada prato, entre eles um no qual se lia: "FELIZ

ANIVERSÁRIO". Sydelle vai pirar, decidiu Rose, e sorriu para si mesma, decidindo que por ela

aquilo estava ótimo.

Simon apareceu atrás dela, carregando uma jarra cheia de água gelada e duas garrafas de

vinho. Ele lhe deu uma taça e disse:

— Ouça meu conselho: encha a cara.

Um carro entrou no caminho de acesso à garagem. Rose vislumbrou o rosto, a fronte alta

e calva do pai, e Sydelle sentada ao lado dele, resplandecente em batom e pérolas. Ela segurou a

mão de seu noivo.

— Eu te amo — sussurrou.

Simon fitou-a, intrigado.

— Eu sei — disse ele.

As portas do carro bateram. Rose esperou para ouvir os sons de "olás" educados e os

saltos de Sydelle martelando no soalho de madeira dos Stein, "Família", pensou, e engoliu em

seco, desejando uma coisa que ela não podia definir, por calma e segurança, por uma piada

rápida e modos joviais, pela roupa absolutamente certa. Em outras palavras, por Maggie. Ser

Maggie por uma noite, ou pelo menos gozar dos benefícios e da presença da irmã. Isto era sua

família, velha e nova, e Maggie devia estar aqui.

Simon fitou-a, intrigado. — Você está bem?

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Rose serviu-se de meia taça de vinho tinto e bebeu-a depressa.

— Estou ótima — disse a ele, e seguiu-o para a cozinha. — Ótima mesmo.

—45 45 45 45 —

osenfarb! — gritou Maggie para o segurança. Ele

meneou lentamente a cabeça (isso não era

surpresa, porque todo mundo em Golden Acres

fazia tudo lentamente), e ela pisou fundo no acelerador enquanto o portão do estacionamento

subia. Nesses meses em que estivera em Golden Acres, Maggie realizara um experimento secreto

para ver se simplesmente gritar qualquer sobrenome com sonoridade judaica para os seguranças

seria suficiente para fazer que eles a deixassem entrar. Até aqui dera certo com Rosen,

Rosenstein, Rosenblum, Rosenfeld, Rosenbluth, e uma vez, uma madrugada, Rosenpenis, em sua

homenagem pessoal ao filme Assassinato por encomenda. Os seguranças (se era possível

chamar aquelas antiguidades vestindo velhos uniformes de poliéster de seguranças) não tinham

hesitado em deixá-la passar.

Maggie guiou o Lincoln de Lewis, que era grande como um ônibus escolar, até o edifício

de sua avó, estacionou-o na vaga designada, subiu as escadas e seguiu até seu quarto, um cômodo

com paredes vazias e um sofá bege que poderia ser o caçula daquele que Maggie lembrava haver

num dos apartamentos de Rose. O cômodo era tão espartano e limpo que Maggie se perguntava

se Ella já o havia usado antes, se alguma vez ela recebera algum hóspede para passar a noite.

Eram três da tarde. Maggie planejava subir para o andar de cima pegar a roupa de banho

que encontrara no armário de Ella, ir à praia, matar algum tempo antes do jantar. Talvez ela

comesse com Ella. Talvez elas assistissem a mais um dos DVDs que Ella trouxera para casa na

— R

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semana anterior. Porém, quando abriu a porta, Maggie surpreendeu-se ao ver a avó sentada à

mesa da cozinha, dedos das mãos entrelaçados, como se tivesse estado à espera.

— Oi — disse Maggie. — Você não deveria estar no hospital? Ou no asilo? Ou em algum

lugar do gênero?

Ella meneou a cabeça com um leve sorriso. Com calças pretas e blusa branca, seus

cabelos torcidos em torno da cabeça como de costume, sua avó parecia desmazelada e pequena,

um ratinho monocromático espremido num canto.

— Precisamos conversar.

Xi... pensou Maggie. Lá vem. Ela já ouvira este discurso, ou uma versão dele, de colegas

de quarto e namorados — e, obviamente, de Sydelle. Maggie, você está se aproveitando de mim.

Maggie, você precisa contribuir. Maggie, o seu pai não vai poder cuidar de você a vida toda.

Mas Ella tinha um discurso diferente na cabeça.

— Eu te devo uma explicação. Há muito tempo quero ter esta conversa com você, mas...

— Sua voz descarrilou. — Acho que deve querer saber onde eu estive durante todos aqueles

anos.

Ah, pensou Maggie. Então era aí que Ella queria chegar. Não queria falar sobre a

dependência de Maggie, mas sobre sua própria culpa.

— Você mandou cartões — disse Maggie.

— É isso mesmo — confirmou Ella. — E também telefonei. Vocês nunca souberam? —

Ela fez a pergunta, mesmo sabendo a resposta. — O seu pai estava muito zangado conosco.

Comigo e com o meu marido. E então, depois que Ira morreu, apenas comigo.

Maggie puxou uma cadeira e se sentou à mesa. — Estava zangado por quê?

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— Ele achava que eu tinha feito uma coisa terrível a ele — disse a avó. — Ele achava que

eu... bem, meu marido e eu... deveríamos ter lhe avisado mais a respeito de Caroline. A sua mãe.

— Eu sei qual era o nome da minha mãe — disse Maggie, irritada. O assunto de sua mãe,

o nome de sua mãe na boca dessa velha, inflamou-se como um antigo ferimento. Ela não estava

preparada para isto. Não queria ouvir a respeito da mãe; não queria pensar na mãe; não queria

saber a verdade, ou a versão de sua avó para a verdade. A mãe estava morta, fora a primeira perda

de sua vida, e isso era mais verdade do que qualquer filha deveria suportar.

Ella continuou falando:

— Eu deveria ter contado ao seu pai que ela era... — Ella hesitou antes de dizer as

palavras — ...mentalmente doente.

— Você está mentindo — acusou Maggie. — Ela não era maluca, ela era normal, eu

lembro.

— Mas ela nem sempre era normal, não é mesmo? — perguntou Ella.

Maggie fechou os olhos, ouvindo apenas fragmentos do que a avó estava dizendo:

episódios maníacos e depressão clínica, medicamentos, e tratamento de choque.

— Mas então, se ela era maluca assim, por que vocês deixaram que ela se casasse? —

inquiriu Maggie. — Por que deixaram que tivesse filhas?

Ella suspirou.

— Não pudemos impedi-la. Apesar dos seus problemas, Caroline era uma mulher adulta.

Ela tomava suas próprias decisões.

— Você deve ter ficado feliz quando se livrou dela — murmurou Maggie, exprimindo um

dos seus maiores medos, porque era fácil para ela imaginar o quanto seu pai, Sydelle e Rose

ficariam felizes em se livrar dela, em entregá-la a algum idiota apaixonado para que Maggie se

tornasse problema dele.

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Ella pareceu chocada.

— É claro que não! Nunca fiquei feliz em me livrar dela! E quando a perdi... — Ela

engoliu em seco. — Foi a pior coisa que me aconteceu. Porque eu a perdi, e perdi também você e

Rose. — Baixou os olhos para as próprias mãos, entrelaçadas sobre a mesa. — Perdi tudo —

acrescentou, levantando olhos lacrimosos para Maggie. — Mas agora você está aqui. E eu

espero...

Ella baixou a mão para pegar alguma coisa ao lado da mesa.

— Tome — disse ela, empurrando uma caixa sobre o tampo da mesa. — Estavam num

depósito lá em Michigan, mas eu mandei pegá-las. Achei que você talvez gostasse de vê-las.

Maggie abriu a caixa. Estava cheia de álbuns de fotografias muito velhos. Ela abriu o

álbum que estava em cima, e ali estava ela: Caroline. Caroline como adolescente, num suéter

preto apertado e muito rímel nos olhos. Caroline em seu casamento, num vestido de renda com

um véu comprido. Caroline na praia num maiô azul, olhos espremidos ao sol, com Rose abraçada

à sua perna e a bebê Maggie nos braços.

Maggie folheou as páginas cada vez mais rápido, assistindo sua mãe envelhecer, assistindo

a si mesma crescer, ciente de que as fotos iriam parar, que sua mãe jamais ficaria com mais de

trinta anos, que neste mundo ela e Rose ficariam eternamente congeladas como menininhas. Não

é difícil aprender a arte de perder. A avó estava fitando Maggie, olhos cheios de esperança.

Não, pensou Maggie. Não isto. Ela não podia suportar isto. Ela não queria ser a esperança de

ninguém, Ela não queria tomar o lugar da filha morta de ninguém. Ela não queria nada, disse

severamente a si própria, nada exceto dinheiro e uma passagem de avião para longe deste lugar.

Ela não queria ver a avó como nada além de um meio para um fim, um livro de bolso e uma

história triste. Ela não queria que lhe fosse estendida simpatia, e com toda certeza não queria

sentir simpatia por ninguém.

Maggie fechou o livro ruidosamente, e esfregou as palmas nas calças como se estivessem

sujas.

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— Vou caminhar um pouco — disse ela, passando pela cadeira de Ella seguindo para o

quarto, pegando o maiô da velha que encontrara no armário do quarto dos fundos, a toalha e o

protetor solar, e correu para a porta.

— Maggie, espere! — gritou Ella. Mas Maggie não reduziu o passo. — Maggie, por favor!

— gritou Ella, mas Maggie já tinha ido.

Andando, Maggie saiu de Golden Acres, passou por Crestwood, Farmington e Lawndale,

passou por todas as ruas com nomes de estilo britânico e pelos prédios que pareciam idênticos

uns aos outros. Faça ela pagar, sussurrou a si mesma.

As pessoas lhe deviam — cada pessoa que caçoara dela na escola, cada pessoa que a

diminuíra, que conspirara para mantê-la invisível, não descoberta. Maggie estava com quase trinta

anos e ainda não havia conquistado a fama que lhe era tão merecida, e o mais próximo que

chegara de senados como Barrados no baile fora quando passaram reprises na TV.

Faça ela pagar, disse a si mesma. Maggie foi até a piscina, que estava deserta com

exceção de umas poucas pessoas velhas tomando sol, lendo, jogando cartas. Maggie entrou no

banheiro e vestiu o maiô da velha, e arrastou uma das cadeiras até o melhor local para se

bronzear. Estendeu sua toalha na cadeira e olhou seu caderno. De quanto dinheiro precisaria para

sair daqui? Quinhentos dólares para a passagem de avião, escreveu. Mais dois mil para o depósito

do seguro, primeiro e último mês de aluguel. Isso era mais do que ela economizara aqui. Maggie

grunhiu para si mesma, arrancou a página, amassou-a e largou-a ao lado da cadeira.

— Ei! — gritou um velho com uma camisa desabotoada exibindo um peito cheio de

pêlos brancos. — Não jogue lixo no chão!

Maggie olhou com raiva para ele, mas então pegou a bola de papel e a enfiou em seu

short. Voltou a escrever.

"Fotos para o book", escreveu Quanto custaria isso?

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— Moça! — chamou a voz de uma estranha. — Oh, moça! Maggie olhou para cima.

Desta vez era uma velha usando uma touca de natação cor-de-rosa.

— Sinto incomodá-la — disse, aproximando-se de Maggie. A carne flácida de suas coxas

e antebraços balançava a cada passo. — Mas o sol vai fazer muito mal à sua pele se não passar

protetor.

Maggie silenciosamente brandiu seu tubo de protetor solar para a velha, que não pareceu

nem um pouco dissuadida. E teria sido sua imaginação ou havia outras pessoas idosas movendo-

se até ela, aproximando suas cadeiras alguns centímetros cada vez que Maggie fechava os olhos,

como um tipo de versão de cidadãos da terceira idade para Despertar dos mortos?

— Ah, estou vendo, estou vendo — disse a velha. Fator 15, não é. Muito bom. É claro

que seria melhor se fosse fator 30, ou até 45, e que na verdade fosse a prova d'água... — Ela fez

uma pausa, esperando por uma resposta. Maggie ignorou-a. A mulher continuou falando. — E

notei que você não passou protetor nas costas. Precisa de alguma ajuda? — indagou, inclinando-

se para Maggie.

O pensamento de ter alguma criatura velha e encarquilhada tocando-a fez Maggie

estremecer, balançar a cabeça e dizer:

— Não, obrigada, vou ficar bem.

— Bem, se você precisar de mim, estarei ali — disse a velha alegremente, retornando para

sua cadeira. — Meu nome é Dora — disse em resposta à pergunta que Maggie não fizera. — E o

seu nome, querida, qual é?

Maggie suspirou.

— Maggie — respondeu depois de concluir que um nome falso seria muito trabalhoso de

lembrar. "De volta a Maggie", pensou melancolicamente, e de volta ao seu caderno, sublinhando

as palavras "fotos para o book'". Ela explicaria à sua avó o que eram fotos para um book e porque

precisava de fotos para ele, quanto desejava ser uma atriz, de como sempre quisera ser uma atriz,

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e de como, sem uma mãe que a amasse para ajudá-la a concretizar esses sonhos, ela fora forçada a

confiar em sua esperteza e sorte...

— Com licença!

Ai, caralho, pensou Maggie, e franziu a vista para ver através da luz do sol um par de

velhos de shorts. Com sandálias. E meias.

— Será que você pode resolver uma aposta da gente? — perguntou o líder da dupla. Era

um homem careca, alto e magro, bronzeado até a cor de um salmão.

— Estou meio ocupada — disse Maggie, apontando para seu caderno, na esperança de

que a deixassem em paz.

— Não incomode a menina, Jack — disse o outro velho. Ele era baixo com um corpo em

forma de barril, com uma franja de cabelos brancos horrorosos shorts de padrão xadrez

vermelho e preto.

— É apenas uma questão rápida — disse o homem que provavelmente era Jack. —

Estava pensando... bem, estávamos discutindo...— Maggie fitou-o impacientemente. — Você

parece tão familiar! — disse ele. — É atriz?

Maggie jogou os cabelos sobre os olhos e dirigiu aos velhos o seu sorriso mais

deslumbrante.

— Participei de um videoclipe. Do Will Smith. O homem alto fitou-a de olhos

arregalados.

— Verdade? Você o conheceu?

— Bem, não exatamente — respondeu Maggie, usando seus cotovelos para se levantar

mais. — Mas eu o vi durante o almoço. No bufê. — disse, esbaldando terminologia e balançando

seus cachos castanhos. E de repente havia quatro velhos ao redor dela, Jack e seu amigo, a tal

Dora, e o sujeito que gritara com ela por causa do lixo. Maggie viu manchas de idade, protetor

solar, shorts fedendo a naftalina, rugas e cabelos brancos.

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— Uma atriz. Meu Deus! — exclamou Jack.

— Uau — ecoou o cara em forma de barril.

— A quem você pertence? — perguntou Dora. — Os seus avós devem sentir tanto

orgulho de você!

— Você mora em Hollywood?

— Tem um agente?

— Quando fez essa tatuagem, doeu? — perguntou o amigo em forma de barril de Jack.

Dora lançou-lhe um olhar severo.

— Herman, quem se importa?

— Eu me importo — disse Herman, parecendo truculento.

Jack balançou impacientemente a beira da cadeira de Maggie e disse o que, para Maggie,

eram as palavras mágicas.

— Fale sobre você. A gente quer ouvir tudo.

—46 46 46 46 —

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imon pousou sua maleta no chão do apartamento de Rose e abriu os

braços.

— Minha prometida! — chamou. Simon lera o termo no jornal de uma cidadezinha

quando tivera de dirigir até o interior da Pensilvânia para um depoimento, e desde então vinha

empregando-o em Rose.

— Só um minutinho! — gritou Rose da cozinha, onde estava sentada à mesa lendo os

folhetos de três serviços de bufê diferentes que tinham chegado pelo correio naquele dia. Simon

envolveu-a em seus braços. — Você realmente faz questão de costeletas de porco? murmurou no

pescoço dele. — Porque eu preciso lhe dizer: elas são caras.

— Dinheiro não é o problema — declarou grandiosamente. — Nosso amor deve ser

celebrado com pompa e circunstância. E costeletas de porco.

Rose colocou diante dele uma caixa embrulhada em papel de presente.

— Isto chegou hoje e não consigo descobrir o que é.

— Um presente de noivado! — disse Simon, esfregando as mãos e lendo o endereço do

remetente. — De tia Melissa e tio Steve! — Abriu a caixa, e juntos olharam para o presente em

seu interior. Depois de um minuto, Simon olhou para Rose e pigarreou. — Acho que é um

castiçal.

Rose tirou o bloco de vidro de seu ninho de papel-manteiga e segurou contra a luz.

— Não tem vela.

— Sim, mas tem lugar para uma vela — disse Simon, apontando para a reentrância rasa

num dos lados.

— Não acho que seja fundo o bastante para uma vela — disse Rose. E se era um castiçal,

por que não mandaram-no com uma vela?

S

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Rose examinou o bloco de vidro por mais algum tempo.

— Estava pensando... será que é uma peça de servir?

— Para refeições realmente pequenas? — perguntou Simon.

— Não, não, para coisas como nozes ou balas.

— O buraco não é grande o bastante para nozes ou balas.

— Ah, mas é grande o bastante para uma vela?

Eles se entreolharam durante um minuto. Então Simon pegou um cartão de

agradecimento e começou a escrever. "Queridos tia Melissa e tio Steve. Obrigado pelo presente

adorável. Ele vai ficar..." — Fez uma pausa, olhando para o teto. — Adorável?

— Você acabou de dizer adorável — observou Rose.

— Maravilhoso! — emendou Simon. — "Ele vai ficar maravilhoso em nossa casa e nos

proverá horas de entretenimento por anos a fio enquanto tentarmos descobrir o quê, em nome

de Deus, ele é. Obrigado por lembrarem da gente e estamos ansiosos por vê-los em breve." —

Simon assinou seus nomes, fechou a caneta e se virou para Rose, todo sorridente. — Pronto!

— Você não escreveu realmente isso — disse Rose.

— Não — admitiu Simon.— Não escrevi. Faltam quantos?

Rose consultou a lista.

— Cinqüenta e um.

— Está brincando?

— A culpa é sua — disse Rose. — Eu culpo você.

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— Só porque minha família não comprou presentes para a gente...

— Só porque a minha família é ridiculamente enorme... Simon se levantou, segurou Rose

pela cintura e deu um soprão no pescoço dela.

— Retire o que disse — falou ele.

— Ridiculamente enorme!

— Retire o que disse — sussurrou na orelha dela — ou forçarei você a satisfazer cada

desejo meu.

Rose contorceu-se para olhá-lo nos olhos.

— Não vou escrever todos aqueles bilhetes de agradecimento! — disse ela, ofegante.

Simon puxou-a para mais perto e a beijou, correndo as mãos por seu cabelo.

— Os bilhetes podem esperar — disse ele.

Mais tarde, deitada na cama, quente e nua debaixo da manta, Rose rolou para o lado e

finalmente começou a falar sobre o assunto que estivera evitando desde o momento em que ele

chegara em casa.

— Tem mais uma coisa — disse ela. — Papai telefonou hoje para falar sobre Maggie.

A expressão de Simon foi neutra.

— É?

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Deitando-se novamente de costas, Rose olhou para o teto.

— Ela reapareceu — disse Rose. — Tudo que meu pai me disse pelo telefone foi que ela

está bem. Ele quer me ver. Disse que é para me contar o resto.

— Certo — disse Simon. Rose fechou os olhos e balançou a cabeça.

— Não tenho certeza se que quero saber o resto. Seja lá o que for o resto. Eu apenas

não... — Sua voz foi sumindo aos poucos. — A verdade sobre Maggie é que ela é terrível.

— Como assim? — indagou Simon.

— Ela é... Quero dizer... — Rose franziu a testa. Como explicar sua irmã ao homem que

ela amava? Sua irmã, que lhe roubara dinheiro, sapatos e até namorados, e então sumia por meses

a fio? — Apenas aceite minha palavra. Ela não presta. Ela sofre de dificuldades de aprendizado...

— Rose calou-se. As dificuldades de aprendizado, na verdade, eram apenas a ponta do iceberg

Maggie. E era típico de Maggie reaparecer logo depois que Rose havia noivado, quando ela, para

variar, era o centro da atenções. — Ela vai arruinar o nosso casamento — resumiu Rose.

— Pensei que Sydelle fosse arruinar o nosso casamento — disse Simon.

Mesmo transtornada, Rose sorriu.

— Bem, Maggie vai arruinar ainda mais. — As coisas tinham estado tão calmas enquanto

Maggie estivera sabe lá Deus onde. Sem cobradores perturbando o silêncio matutino com seus

telefonemas, sem ex-namorados ou pretendentes importunando o sono de Rose e Simon. As

coisas permaneciam onde Rose as guardava. Ela não dava por falta de sapatos, roupas nem

dinheiro. O carro permanecia onde ela o estacionava. — Vou te dizer uma coisa — prosseguiu

Rose.— Ela não vai ser dama de honra. Ela vai ter sorte se receber um convite para a cerimônia.

— Certo — disse Simon.

— Ela vai ter sorte se eu deixar que entre na festa — disse Rose.

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— Mais comida para mim — disse Simon. Rose fitou o teto durante mais algum tempo.

— Acho que aquela coisa de vidro era algum tipo de prato se servir.

— Eu já lambi o envelope — disse Simon. — Deixa pra lá

— Argh! — grunhiu Rose.

Ela fechou os olhos e desejou uma família normal, como a de Simon. Sem mãe morta.

Sem irmã caçula desaparecida. Sem pai que reservava a maior parte de sua paixão para os

indicadores financeiros matutinos, e certamente sem Sydelle. Ela repousou o rosto no algodão

macio do travesseiro durante um minuto, e então se levantou e foi até a sala de estar pegar um

bilhete de agradecimento — um cartão de papel creme com seus nomes, Rose e Simon, escritos a

cada lado de um gigantesco S, para indicar Stein, que não ia ser o sobrenome de Rose. Mas

embora ela tivesse frisado isso para sua madrasta má, Sydelle tomara a liberdade de encomendar

aqueles cartões de agradecimento que sugeriam que Rose ia ser Rose Stein, gostasse ou não.

Querida Maggie, pensou Rose. Como você pôde fazer aquilo comigo? E quando você

vem para casa?

—47 47 47 47 —

lla caminhou até a cerca da piscina e pressionou o rosto contra ela.

— Ali — disse ela, carregando nessa única palavra toda a tristeza e

decepção que sentia. — Ali está ela.

E

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Lewis parou ao lado dela, e a Sra. Lefkowitz chegou em sua nova cadeira de rodas

motorizada. Juntos, os três pararam diante da cerca, olhando através dos buracos em forma de

losango. Olhando Maggie.

A neta de Ella estava deitava numa cadeira de madeira reclinável próximo ao fundo da

piscina, resplandecente num biquíni cor-de-rosa novinho em folha, com uma corrente de prata,

fina como um filamento de cabelo envolvendo sua barriga. Sua pele reluzia com óleo de

bronzear. Seus cabelos estavam presos num coque encaracolado no topo de sua cabeça e seus

olhos escondidos atrás de pequenos óculos de sol redondos. E ao redor dela havia quatro pessoas

— uma senhora idosa com uma touca de natação cor-de-rosa e três senhores de shorts.

Enquanto Ella assistia à cena, um dos velhos inclinou-se para a frente, para Maggie, como se

estivesse lhe fazendo uma pergunta. Sua neta apoiou-se sobre um dos cotovelos, parecendo

pensativa. Quando seus lábios de moveram, sua platéia caiu na gargalhada.

— Parece que ela fez novos amigos — disse Lewis.

Ella sentou um aperto no coração enquanto Maggie continuava a divertir seus novos

conhecidos. Ella nunca vira Maggie tão relaxada e à vontade quanto naquele momento, enquanto

a turma de hidroginástica mexia-se ritmicamente ao som de uma gravação de "Runaround Sue".

A cada dia da semana passada — desde o dia em que Ella tentara conversar com Maggie sobre

sua mãe —, esta tinha sido a rotina de sua neta. Maggie voltava para casa do trabalho, corria para

o quarto dos fundos trocava seu uniforme da Bagel Bay por roupas de banho e shorts, e vinha

para cá.

— Estou indo nadar — dizia Maggie.

Ella jamais era convidada. E Ella podia ver para onde isto estava indo. Maggie iria se

mudar — para um apartamento só seu, ou talvez para a casa de um de seus novos amigos,

alguma velhinha agradável que ofereceria todos os benefícios de uma avô sem nenhuma das

complicações de uma história dolorosa. Isso não era justo! Ela esperara por tanto tempo, desejara

tanto, e agora Maggie escapulia por entre seus dedos deste jeito!

— O que eu devo fazer? — sussurrou.

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A Sra. Lefkowitz manobrou sua cadeira de rodas motorizada e guiou, a toda velocidade,

até a piscina.

— Espere! — gritou Ella. — Aonde está indo?

A Sra Lefkowitz não deu meia-volta, não parou, não respondeu. Ella lançou um olhar

desamparado para Lewis.

— Eu vou... — começou ela.

— É melhor que a gente... — disse ele.

A pulsação martelou a garganta de Ella enquanto corria atrás da Sra. Lefkowitz, que

estava passando a toda velocidade pelos portões em direção a Maggie, e não mostrava qualquer

sinal de que iria parar.

— Ei! — um dos velhos gritou quando a Sra. Lefkowitz passou zunindo por ele,

esbarrando na mesa na qual ele pousara uma mão de cartas.

Ignorando-o, a Sra. Lefkowitz conduziu seu pequeno veículo até a cadeira reclinável de

Maggie. Maggie abaixou os óculos e a fitou. Ofegando, Ella e Lewis correram atrás da Sra.

Lefkowitz, e por um momento inusitado Ella lembrou-se de uma dúzia de faroestes de produção

barata e da cena de cada um deles em que os mocinhos assumiam suas posições contra o inimigo

numa rua convenientemente deserta ou no meio de um curral vazio. Tudo de que a cena

precisava, pensou Ella, era de um arbusto seco e desgarrado passar rolando entre as duas. Até os

alunos da hidroginástica tinham parado e aguardavam em silêncio no lado raso da piscina, água

gotejando de seus braços bronzeados e enrugados, esperando para ver o que aconteceria em

seguida.

Maggie fitou a Sra. Lefkowitz, e os novos amigos de Maggie olharam Ella e Lewis dos pés

à cabeça enquanto Ella examinava cuidadosamente o concreto rachado aos seus pés, esperando

por um chapéu de caubói e, ainda mais desesperadamente, por um roteiro. Ela era o mocinho ou

o bandido aqui? Era o herói, vindo resgatar a donzela em perigo, ou o vilão, vindo amarrá-la aos

trilhos do trem?

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Herói, decidiu Ella, no exato instante em que a Sra. Lefkowitz moveu sua cadeira

motorizada mais 15 centímetros até cutucar a cadeira reclinável de Maggie. Aquilo fez Ella pensar

num cachorrinho empurrando com o focinho uma porta fechada.

— Maggie, meu bem, tem uma coisa com a qual você talvez possa me ajudar — disse a

Sra. Lefkowitz.

Maggie levantou as sobrancelhas enquanto um dos homens idosos olhou para a Sra.

Lefkowitz com cara de poucos amigos.

— Ela está cansada — disse, num tom ríspido, empunhando a bengala com ambas as

mãos. — Teve um dia muito difícil. E estava se preparando para nos contar como quase

conseguiu um trabalho na MTV.

A Sra. Lefkowitz não se moveu um centímetro.

— Então continue. Conte.

Maggie olhou sobre a cabeça da Sra. Lefkowitz e se dirigiu à sua avó.

— O que você quer?

As palavras subiram, espontâneas, até a boca de Ella e ameaçaram sair. Eu quero que

você me ame. Eu quero que você goste de mim. Eu quero que você pare de fugir. Mas tudo

que ela conseguiu dizer foi: — Eu...

— Ela está ocupada — disse o homem baixo, roliço, em forma de barril, colocando-se ao

lado da cadeira de Maggie, como se a protegesse.

— Você é a avó de Maggie? — perguntou a mulher da touca de natação cor-de-rosa. —

Deve se orgulhar tanto dela! Uma garota tão linda e bem-sucedida!

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Maggie mordeu o lábio, e o velho da bengala produziu um ruído desagradável enquanto

Lewis puxava duas cadeiras até o círculo de Maggie e fazia um gesto para convidar Ella a se

sentar.

— MTV? — perguntou a Sra. Lefkowitz, assentindo com a segurança de quem havia

inventado a estação. — Você ia participar de um dos game shows deles?

— VJ — murmurou Maggie.

— Como o Carson Daly — disse a Sra. Lefkowitz, cruzando as mãos sobre a cintura e

virando os óculos escuros quadrados para o sol. — Um bonitão!

Os dois grupos dispuseram-se num semicírculo em torno da cadeira reclinável de Maggie.

Ella, Lewis e a Sra. Lefkowitz estavam a um lado, os novos amigos de Maggie ao outro. Maggie

fitou um grupo, e em seguida o outro. Então ela deu de ombros, abriu sua mochila e tirou um

caderno. Ella sentiu-se relaxar um pouquinho. Não era exatamente progresso, mas pelo menos

Maggie não havia fugido ou pedido que eles fossem embora.

— É Jack, não é? — perguntou Lewis ao homem que estivera segurando a bengala. O

homem, Jack, emitiu um grunhido afirmativo, Lewis ofereceu-lhe a mão. A mulher tagarela

começou a questionar a Sra. Lefkowitz a respeito de sua cadeira motorizada. Os dois outros

homens voltaram ao seu jogo de cartas. Ella fechou os olhos, respirou fundo e torceu pelo

melhor.

Em sua cadeira reclinável, Maggie também estava com os olhos fechados, pensando no

que fazer e em como endireitar as coisas, embora parte dela protestasse que não era seu trabalho

consertar nada. Exceto que ninguém na Flórida sabia qual era seu trabalho e qual não era.

Ninguém aqui sabia que ela havia arruinado sua vida. Ninguém aqui conhecia Rose e como era

ela quem tomava conta de tudo, da mesma forma como não sabiam que era sempre Maggie quem

precisava que endireitassem as coisas para ela ou de ajuda. Ela tinha um emprego, um lugar para

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morar, pessoas que se importavam com ela. Agora era hora de começar a consertar os danos,

começando com a pessoa que ela magoara mais... começando com Rose.

Maggie espremeu os olhos, sentindo medo, parte dela querendo levantar-se, sair correndo

peto portão, e dirigir até um lugar onde ninguém a conhecia, onde ninguém sabia quem ela era,

ou o que fizera, ou de onde viera. Mas ela já fugira para Princeton e depois fugira para cá. Não

queria fugir mais.

Na parte rasa da piscina, a turma de hidroginástica iniciou os exercícios de alongamento.

Na cadeira ao lado dela, sua avó pigarreou.

— Aposto que sente falta de gente da sua idade — disse ela. — Deve ser difícil para você

ser a única pessoa aqui.

— Estou bem — disse Maggie.

— Ela está bem — grunhiu Jack. Maggie abriu os olhos, e então abriu o caderno.

"Querida Rose", escreveu. Ella olhou para a página, e então muito rapidamente olhou para outra

direção. Dora, a mulher com a touca cor-de-rosa, não sentira essa compulsão.

— Quem é Rose? — perguntou Dora. — Minha irmã — disse Maggie.

— Você tem uma irmã? Como ela é? — Jack pousou suas cartas e Herman largou seu

Mother Jones. — Ela tem uma irmã!

— Ela é advogada e mora na Filadélfia — disse Ella, e fechou a boca e olhou Maggie

pedindo ajuda. Maggie ignorou-a, fechando o caderno, levantando e caminhando em meio ao

aglomerado de cidadãos idosos até a beira da piscina, onde sentou-se para molhar os pés.

— Ela é casada? — perguntou Dora.

— Que tipo de advogada ela é? — inquiriu Jack. — Por acaso ela faz testamentos?

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— Ela vem visitar você? — perguntou Herman. — Ela parece com você? Ela tem

tatuagens?

— Ela não é casada — disse Maggie. — Ela tem um namorado... — Ou pelo menos

tinha até eu estragar o relacionamento dos dois. Maggie olhou com tristeza para as

profundezas cloradas da piscina.

— Conta mais! — urgiu Dora.

— Ela botou piercing em algum lugar? — indagou Herman.

Maggie sorriu e balançou a cabeça.

— Ela não se parece comigo. Bem, talvez um pouquinho. Temos a mesma cor dos olhos

e dos cabelos, mas ela é mais gorda que eu. E não tem tatuagens. Ela é muito conservador, Ela

usa o cabelo preso o tempo todo.

— Como você!— disse Ella.

Maggie começou a protestar, mas tocou seu rabo-de-cavalo e compreendeu que era

verdade. Ela pulou para a água, deitou-se de costas e boiou.

— Rose pode ser engraçada — disse Maggie. Ella correu até a beira da piscina para ouvir.

O restante dos amigos que Maggie encontrava na piscina também se aproximou, acotovelando-se

pelas melhores posições ao longo da beira da parte funda da piscina. — E mal-humorada,

também. Quando éramos meninas, a gente dividia o quarto. Tínhamos camas separadas, e havia

um espaço entre elas. Rose ficava deitada lá, lendo, e eu ficava pulando de uma cama para a outra.

— Maggie sorriu ao lembrar. — Ela ficava deitada e eu ficava pulando de uma cama para a outra,

dizendo: "A raposa marrom pulava sobre o cachorro preguiçoso!"

— Então você era a raposa marrom veloz — disse Ella.

Maggie lançou-lhe um olhar de "adivinhona" que rapidamente repetiu para Jack, Dora e

Herman.

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— Eu fazia isso até ela me morder.

— Ela te mordia? — perguntou Ella.

— Eu ficava pulando de uma cama para a outra, vendo Rose ficar mais e mais irritada,

mas não parava até ela levantar o braço e me derrubar enquanto eu estava pulando. — Maggie

meneou a cabeça e saiu da água, parecendo estranhamente feliz com a memória de ser batida por

sua irmã no meio de um salto.

— Conta mais sobre a Rose — disse Dora, enquanto Jack oferecia a Maggie uma toalha

e seu tubo de protetor solar.

— Ela não se importa muito com a aparência. Nem com estilo — disse Maggie,

esparramando-se novamente na cadeira reclinável enquanto lembrava-se de Rose forçando os

olhos para se ver no espelho ou de Rose aplicando rímel nas pálpebras, e depois saindo para a rua

com meias-luas pretas nas faces.

— Puxa, como eu gostaria de conhecer a sua irmã! — exclamou Dora.

— Convide ela para uma visita — disse Jack, olhando para Ella. — Tenho certeza de que

a sua avó adoraria ter vocês duas por perto.

Maggie sabia que ele tinha razão. Ella adoraria conhecer Rose. Que avó não gostaria?

Uma neta inteligente e bem-sucedida, com um diploma de direito debaixo do braço. Mas Maggie

não tinha certeza de que estava preparada para ver Rose de novo, mesmo se Rose estivesse

disposta a perdoá-la. As coisas nunca tinham estado tão boas para ela desde que deixara a

Filadélfia naquela noite fatídica. Pelo menos uma vez em sua vida, ela não estava à sombra de

Rose, ela não era a segunda irmã, aquela que não era tão inteligente nem tão bem-sucedida, aquela

que era apenas bonitinha numa época em que a beleza parecia importar cada vez menos. Corinne

e Charles não sabiam sobre sua história, suas lutas, suas turmas para alunos problemáticos, todos

os trabalhos dos quais se demitira ou fora demitida, todas as garotas que tinham deixado de ser

suas amigas. Dora, Jack e Herman não achavam que ela era burra ou vagabunda. Eles gostavam

dela. Eles a admiravam. Eles ouviam o que ela tinha a dizer. E se Rose aparecesse, estragaria

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tudo. "Uma lanchonete de bagels", perguntaria Rose, num tom sugerindo que uma lanchonete de

bagels, era o máximo a que Maggie podia ambicionar — uma lanchonete de bagels, um quarto

vazio, um carro emprestado, a gentileza de estranhos.

Maggie abriu novamente seu caderno. "Querida Rose", tornou a escrever, e então parou.

Ela não conseguia pensar em como fazer isto, no que iria dizerem seguida.

"Aqui é Maggie, caso você não tenha reconhecido a caligrafia", escreveu, "Estou na

Flórida com a nossa avó. O nome dela é Ella Hirsh, e ela esteve..." Estava muito difícil. Havia

uma palavra para o que ela queria dizer aqui. Maggie quase podia tocar a palavra, quase podia

sentir seu sabor na língua, e o sentimento acelerou seu coração, da forma como costumava fazer

durante as aulas em Princeton, quando ficava sentada no fundo da turma com as respostas certas

esperando sair de sua boca.

— Qual é a palavra que significa que alguém quer estar com outro alguém, mas eles não

estão, por causa de uma briga ou algo assim? — perguntou.

— A palavra em iídiche? — perguntou Jack.

— Quem vai querer escrever em iídiche? — perguntou Herman, retornando sua atenção

para Mother Janes.

— Em iídiche não — disse Maggie. — A palavra para quando as pessoas são parentes, ou

algo assim, mas outras pessoas na família estão zangadas umas com as outras por causa de alguma

coisa, de modo que os parentes jamais se encontram.

— Afastados — disse Lewis. Jack olhou de cara feia para ele. Maggie pareceu não notar.

— Obrigada — disse Maggie.

— Fico feliz por ser útil em meus anos dourados — disso Lewis.

"O nome dela é Ella Hirsh, e ela esteve afastada de nós", escreveu Maggie, e fitou a

página. Esta era a parte difícil... mas ela havia praticado em Princeton, trabalhando com palavras,

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escolhendo as melhores do jeito como uma cozinheira escolhe as melhores maçãs da cesta, a

galinha mais gorda na gaiola do aviário.

"Sinto muito pelo que aconteceu no inverno", escreveu, decidindo que esta era

provavelmente a melhor maneira de lidar com o assunto direta e sem rodeios. "Sinto muito por

ter magoado você. Eu quero..." E fez outra pausa, ciente de que todo mundo a estava

observando, como se fosse alguma rara criatura aquática recém-trazida para o cativeiro, um

animal no zoológico ao qual acabara de ser ensinado um truque novo e divertido.

— Qual é a palavra para quando você quer terminar uma briga?

— Reconciliação — disse Ella baixinho, e soletrou, e Maggie escreveu duas vezes,

apenas para ter certeza de que cada letra estava em seu devido lugar.

—48 48 48 48 —

erto — disse Rose enquanto sentava-se no banco

do passageiro de seu carro. — Certo, então você

jura e afirma sob pena de perjúrio conforme

definida pela lei do Estado da Pensilvânia que não haverá absolutamente ninguém mais da Lewis,

Dommel e Fenick neste casamento? — Esta era uma informação importante. De todas as coisas

que revelara a Simon — mãe morta, irmã desaparecida, madrasta indescritível —, eles jamais

tinham tocado no mérito do Sr. Jim Danvers. E Rose estava determinada a não fazê-lo nas

núpcias dos colegas de faculdade de Simon, poucos meses antes de seu próprio casamento.

— Até onde eu sei — disse Simon, ajustando sua gravata e ligando o carro.

— Até onde você sabe — repetiu Rose. Ela abaixou o espelho, olhou para sua

maquiagem e começou a esfregar um pedaço de base não misturada debaixo de seu olho direito.

— Então terei de ficar de olho aberto para skatistas.

— C

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— Não te contei? — perguntou Simon, inocentemente. — Don Dommel caiu de seu

skate, bateu com a cabeça na grade e viu Deus. Nada mais de esportes radicais para Don. Agora

ele quer apenas meditar. Toda tarde, na hora do almoço, há sessões de ioga. A firma inteira está

fedendo a incenso, e as secretárias precisam dizer Namaste quando atendem ao telefone.

— Rá, rá — riu Rose.

— Rose, é um casamento, não um arrastão — disse Simon. — Fique calma.

Rose começou a procurar um batom em sua bolsa, pensando que para Simon era fácil

dizer isso. Não era ele quem tinha de se explicar. Ela estava começando a entender por que

Maggie tinha sido tão defensiva. Caminhar pelo mundo com um título — doutor, advogado,

estudante — munia você de uma armadura. Precisar continuamente explicar às pessoas quem

você era — o que na verdade significava dizer a eles o que você fazia — era difícil quando você

não se encaixava num dos nichos perfeitos do mundo. Bem, eu sou uma aspirante a atriz, mas

neste momento estou trabalhando como garçonete; ou, eu era advogada, mas nos últimos dez

meses tenho trabalhado como passeadora de cachorros.

— Você vai se sair bem, Rose — assegurou-lhe Simon. — Precisa apenas se divertir com

meus amigos, e beber champanhe, e dançar comigo...

— Você não mencionou nada sobre dançar — disse Rose, e olhou desanimada para os

pés, neste momento apertados no primeiro par de sapatos de salto alto que ela usava desde que

abandonara a vida de executiva. Coragem, disse a si mesma. — Tenho certeza de que isto vai ser

fantástico! — Ela engoliu em seco. Tinha certeza de que ia ser horroroso. Jamais saíra-se bem em

grandes festas, que era um dos motivos pelos quais estava arrastando os preparativos de suas

próprias núpcias. Tinha muitas lembranças ruins de bar e bar mitzvahs. Tardes como esta em

sinagogas e salões de baile em clubes de campo, onde sentia-se sempre a garota mais alta e mais

feia, e como se posicionava num canto perto do picadinho de fígado e dos cachorros-quentes,

calculando que se ninguém a visse, não iria se sentir magoada por ninguém convidá-la a dançar, e

passaria horas sentada sozinha, comendo, e vendo Maggie participar da competição de dança.

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Avance 18 anos, acrescente um noivo, e aqui estava ela novamente, pensou enquanto

seguia Simon pelas portas da igreja decorada com guirlandas de lírios e laços de seda. Exceto que

em vez de picadinho de fígado e sanduíches, haveria legumes crus e champanhe, e ela não teria

uma irmã dançando para distraída. Rose pegou um folheto.

— O nome da noiva é Penélope?

— Na verdade, a gente chama ela de Lopey — disse Simon

— Lopey, certo.

— Vou apresentar você a algumas pessoas — disse Simon e rapidamente Rose conheceu

James, e Aidan, e Leslie, e Heather. James e Aidan tinham sido colegas de faculdade de Simon.

Leslie trabalhava em publicidade, Heather era gerente de compras da Macy's. Ambas eram

coisinhas magras usando vestidos de linho (o de Heather era creme, o de Leslie era amarelo) e

mantas de casimira que pendiam folgadas de seus ombros. Rose olhou a sala ao seu redor,

desespero crescendo em seu peito enquanto compreendia que todas as outras mulheres — cada

uma delas! — estava usando um vestido curto e uam encharpe, e sandálias delicadas, e aqui estava

ela, no vestido errado, na cor errada, com saltos altos e não sandálias, e um colar com contas

enormes, e não pérolas, e seu cabelo provavelmente já tinha saído do penteado no qual tentara

contê-lo há uma hora. Merda. Maggie saberia o que ela devia usar, pensou Rose. Onde estava sua

irmã quando precisava dela?

— E o que você faz? — perguntou Heather. Ou taIvez fosse Leslie. Ambas eram louras;

só que uma delas tinha cabelos lisos com coleios nas pontas e a outra alfinetara os seus num

chinó gracioso; e ambas possuíam o tipo de pele translúcida que se obtém com combinações

perfeitas de genes e exposição regular ao ar dos provadores da Talbot.

Rose remexeu nas contas de seu colar, perguntando-se se alguém notaria se ela os

escondesse dentro da bolsa durante a missa.

— Sou advogada.

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— Oh! — exclamou Leslie. Ou possivelmente Heather. — Então você trabalha com

Simon?

— Eu estou... Na verdade.... — Rose lançou a Simon um olhar desesperado, mas ele

estava imerso numa conversa com os rapazes. Ela enxugou a fronte, e provavelmente acabara de

remover sua base. — Eu trabalhava da Lewis, Dommel e Fenick, mas agora estou meio que de

licença.

— Oh — exprimiu Leslie.

— Isso é bom — disse Hcather. — E vocês vão se casar, certo?

— Certo! — concordou Rose, alto demais, e envolveu o antebraço de Simon com seus

dedos, tomando o cuidado de garantir que seu anel de noivado ficasse na frente e no centro, para

o caso de pensarem que ela estava mentindo.

— Tirei uma licença de três meses para planejar o meu casamento — disse Heather. —

Lembro como se tivesse sido ontem. Todas aquelas reuniões... os cardápios, as flores...

— Eu trabalhava apenas meio expediente — informou Leslie. É claro que a Júnior

League me ocupava muito, mas a maior parte do meu tempo era para o casamento.

— Vocês podem me dar licença? — murmurou Rose, sabendo que a qualquer minuto

elas iam começar a falar sobre vestidos, e ela seria forçada a revelar a verdade, que não procurava

nenhum desde aquela tarde calamitosa com Amy. Sem vestido, sem trabalho, diriam seus olhos,

e sem afiliação à Júnior League. Que tipo de noiva sou eu?

Rose saiu apressada da nave da igreja, retornou ao saguão e olhou para o caminho calçado

com paralelepípedos, onde um homem de terno estava parado de pé, como se a esperasse. Rose

parou e olhou a camisa branca bem engomada, a gravata vermelha e dourada, o queixo quadrado,

a pele bronzeada, os olhos azuis reluzentes. Jim Danvers.

— Olá, Rose.

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Ele parecia exatamente igual. Mas o que ela esperara? Que ele tivesse murchado e

morrido? Que estaria careca, que teria desenvolvido acne depois de adulto, que pêlos teriam

brotado de suas orelhas?

Rose cumprimentou-o com um aceno, torcendo para que ele não percebesse que seus

joelhos, pernas e até pescoço tremiam. Pensando melhor, ele tinha pêlos saindo das orelhas. Não

muito, na verdade, não o tipo de pêlos grossos que ela notara sair das orelhas de muitos homens,

mas mesmo assim... ali eslava. Pêlos de orelha. A evidência incontestável de que Jim Danvers não

era perfeito. Contudo, ter dormido com a irmã de Rose também poderia ser interpretado como

evidência de sua falta de perfeição, mas mesmo assim ela considerava seus pêlos de orelha

bastante consoladores.

— O que te traz aqui? — perguntou Jim. Sua voz soava mais aguda do que ela lembrava.

Seria indício de que Jim Danvers estava nervoso?

Rose jogou seu cabelo.

— Oh, Lopey e eu nos conhecemos há muito tempo. Praticávamos equitação juntas, e

depois participamos de um coral da capela na faculdade. Fomos irmãs de fraternidade, saíamos

em encontros duplos...

Jim balançou a cabeça.

— Lopey é vegetariana, e acho que ela acredita que montar cavalos é um desrespeito ao

animal. Além disso, nos tempos de faculdade ela era uma lésbica convicta, de modo que todos os

encontros duplos que fossem seriam da variedade exclusivamente feminina.

— Ah — disse Rose. — Então eu devia estar pensando no noivo.

Jim soltou uma risadinha curta e desconfortável.

— Rose, já tem um bom tempo que estou tentando falar com você — começou ele.

— Sorte minha.

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— Sinto saudades de você.

— Por que não haveria de sentir? Venha conhecer o meu noivo.

Os olhos dele arregalaram-se de forma quase imperceptível.

— Primeiro venha dar uma volta comigo.

— Acho que não.

— Vamos. O dia está lindo.

Ela fez que não com a cabeça.

— Você está linda — murmurou.

Rose bufou e olhou furiosa para ele.

— Olha aqui, Jim. Você já teve sua diversão comigo, então por que não me esquece? Tem

muita mulher aqui que ficaria impressionada com os seus talentos.

Agora Jim estava parecendo realmente constrangido.

— Rose eu sinto muito. Sinto muito por ter ofendido você.

— Você dormiu com a minha irmã — disse ela. — Estou um tantinho mais que

ofendida.

Ele segurou o braço de Rose e a puxou até um banco de madeira, sentou-se ao lado dela e

olhou intensamente para seus olhos.

— Já faz tempo que quero falar com você. A forma como terminou... O que eu fiz... —

Ele cerrou os punhos. — Eu queria ter sido bom para você — disse numa voz sufocada, — Fui

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fraco. Fui idiota. Joguei fora tudo que nós podíamos ter tido e me senti terrivelmente mal comigo

mesmo durante meses...

— Me poupe! — disse Rose. — Eu me senti terrivelmente mal sobre mim mesma

praticamente a vida toda. Você acha que vou sentir pena de você?

— Quero me redimir — disse ele. — Quero endireitar as coisas.

— Esqueça — respondeu ela. — Acabou. Eu segui com minha vida. Agora estou noiva...

— Parabéns — disse com tristeza.

— Ah, pára com isso — disse Rose. — Não me diga que você pensou um único

momento que você e eu... que nós iríamos...

Ele piscou. E aquilo brilhante em seus olhos eram lágrimas? Surpreendente, pensou

Rose, que tinha a impressão de estar observando um espécime numa lâmina através de um

microscópio. Será que ele consegue chorar sempre que quer?

Agora ele estava segurando as mãos de Rose, e ela podia prever cada um dos movimentos

de Jim, cada palavra que ele diria.

— Rose, eu sinto muito — começou, e ela assentiu com a cabeça, porque achou que essa

era a deixa de que ele precisava. — O que eu fiz foi imperdoável. E se houver qualquer coisa que

eu possa fazer para compensar...

Ela balançou a cabeça e se levantou.

— Não tem. Você sente pelo que aconteceu. Eu também sinto. Não apenas porque você

é o tipo de homem que se revelou ser, mas... — E subitamente sua garganta ficou seca, como se

ela estivesse tentando engolir uma meia suada. — Porque você arruinou... — Minha vida!,

pensou ela. Não, isso não era verdade. Sua vida estava boa, ou provavelmente ficaria boa, depois

que ela colocasse sua carreira de volta nos trilhos, e ela agora estava com Simon, Simon que era

tão gentil, que tinha apenas bondade em seu coração, que a fazia rir. O romance curto e

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espetacularmente fracassado que ela tivera com Jim agora não parecia mais nada além de um

pesadelo esquecido. Ele não havia arruinado a vida de Rose, mas havia arruinado outra coisa,

ferindo essa coisa a um ponto em que não havia mais cura. — Por que você arruinou meu

relacionamento com Maggie — disse finalmente.

E agora ele a estava puxando de volta para o banco, e ele estava falando sobre o futuro

dela, como sentira-se mal quando ela saíra da Lewis, Dommel e Fenick, e como isso tinha sido

desnecessário — ele era um calhorda, sim, tinha de admitir, mas pelo menos era discreto, e nada

teria acontecido a ela no trabalho. E o que ela estava fazendo agora? Precisava de ajuda? Porque

se ele pudesse ajudá-la, seria o mínimo que poderia fazer à luz de tudo que acontecera, e...

— Pare! Por favor! — disse Rose. Ela podia ouvir a música de um quarteto de cordas

vagando pelo jardim, e as portas da igreja se fechando com um rangido. — Precisamos entrar na

igreja.

— Sinto muito — disse ele.

— Eu aceito suas desculpas — disse Rose, formalmente. E então porque ela parecia tão

triste (e porque, a despeito de sua irmã ausente, sua madrasta malvada e a falta de uma carreira

em advocacia, ela estava muito feliz), Rose inclinou-se perto dele e beijou de leve sua face. —

Está tudo bem — disse ela. — Espero que você seja feliz.

— Oh, Rose — gemeu ele, abraçando-a.

E subitamente, ali estava Simon, olhos arregalados e chocados.

— Eles estão começando — disse baixo. — Devemos entrar Rose olhou para ele. Seu

rosto pálido estava ainda mais sem cor do que costumava estar.

— Simon — disse ela. — Ai, Deus.

— Vamos — disse Simon, numa voz baixa e desprovida de tom Ele conduziu Rose até a

cerimônia, onde as daminhas de honra já tinham começado seu percurso pelo corredor, jogando

pétalas de rosa no chão à medida que andavam.

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Simon assistiu à missa em silêncio. Ele ficou calado durante o jantar. Quando a banda

começou a tocar, ele seguiu direto para o bar e ficou lá, tomando cerveja, até Rose finalmente

convencê-lo de que deviam conversar, e em particular. Ele abriu a porta do carro para ela —

gesto que sempre parecera gentil, mas que agora parecia irônico, até cruel.

— Bem... — começou ele. — Tarde interessante. — Ele estava olhando diretamente para

a frente, e suas faces estavam ruborizadas.

— Simon, sinto muito por você ter visto aquilo — disse Rose.

— Você sente por ter acontecido ou por eu ter visto? — indagou Simon.

— Deixe-me explicar. Eu estava querendo mesmo lhe contar sobre isto...

— Você o beijou — disse Simon.

— Foi um beijo de despedida.

— Despedida do quê? — perguntou Simon. — O que estava acontecendo entre vocês

dois?

Rose suspirou.

— Nós namoramos.

— Um sócio namorando uma funcionária? Quanta ousadia! — disse Simon.

Rose fechou os olhos.

— Eu sei. Foi realmente estúpido. Um grande erro para nós dois.

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— Quando sua associação começou?

— Nossa associação? — repetiu Rose. — Simon, não foi uma fusão empresarial!

— Empresarial, evidentemente, não foi — disse ele. — Porque não funcionou?

— Infidelidade — respondeu Rose, baixo.

— Sua ou dele? — retorquiu Simon.

— Dele! Claro que foi dele! Ora, vamos, Simon! Você sabe que eu não seria capaz de uma

coisa dessas. — Rose fitou-o, aguardando uma resposta. Não veio nenhuma. — Não sabe?

Simon não disse nada. Rose olhou pela janela, para o borrão de árvores, prédios e outros

carros. Quantos casais nesses carros estavam brigando agora? E quantas das mulheres estavam

fazendo um trabalho melhor do que ela para se explicarem?

— Olha, o importante é que acabou — disse ela, enquanto ele estacionava o carro diante

do apartamento deles. — Acabou completamente. E eu sinto muito por você ter visto o que viu,

mas não significou nada. Acredite em mim, Jim Danvers é a última coisa que eu quero na minha

vida. E era isso que eu estava dizendo a ele quando você chegou.

Simon exalou.

— Eu acredito em você, mas quero saber o que aconteceu. Eu quero entender.

— Por quê? Eu não quero saber sobre as suas antigas namoradas.

— Isto é diferente.

— Por quê? — Rose acompanhou-o até o quarto, finalmente tirando seu colar de contas.

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— Porque o que aconteceu entre vocês dois, seja lá o que aconteceu, foi ruim o bastante

para fazer você não querer ver o interior de outro escritório de advocacia nunca mais na vida.

— Não de todo escritório de advocacia. Na verdade, meu problema é com aquele cm

particular.

— Não mude de assunto. Você tem esse... passado. E eu não sei nada sobre ele.

— Todo mundo tem um passado! Você é amigo de gente que se chame Lopey, e não me

falou nada sobre ela antes...

— Mas eu não sei nada do seu passado!

— O que você quer saber? — ela perguntou. — Por que é tão importante?

— Porque eu quero saber quem você é!

Rose balançou a cabeça.

— Simon, não é como se fosse algum grande mistério. Eu tive um... — Procurou pela

palavra menos ofensiva — ...um relacionamento com esse homem. Não acabou bem. E só. É só

isso!

— Como acabou? — insistiu Simon.

— Ele fez uma coisa — começou Rose. — Uma coisa com alguém... — Ela engoliu em

seco.

— Quando você estiver pronta para me dizer, eu estarei pronto para ouvir — disse

Simon com frieza.

Ele entrou no banheiro. Rose escutou-o batendo a porta e abrindo o chuveiro. Ela voltou

para a sala de estar, curvando-se para pegar a pilha de cartas na qual ambos tinham pisado ao

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entrar na casa. Conta, conta, oferta de cartão de crédito, cartão de crédito já com o seu nome

nele, seu nome escrito numa caligrafia muito conhecida: letras grandes, redondas.

Rose afundou no sofá. Suas mãos tremiam enquanto ela abria o envelope e desdobrava a

folha de papel de caderno que ele continha.

Querida Rose, leu, as palavras pulando sobre ela. Avó. Sinto muito. Flórida. Ella.

Reconciliação.

— Oh, meu Deus — arfou Rose. Ela se forçou a ler a carta inteira duas vezes, e então

correu para o banheiro. Simon estava de pé na frente da cama com uma toalha enrolada em torno

da cintura e uma expressão séria no rosto. Sem dizer uma única palavra, Rose deu-lhe a carta.

— Minha... avó — disse ela. A palavra parecia estranha em sua boca. — É da Maggie. Ela

está com a minha avó.

Agora Simon parecia ainda mais irritado.

— Você tem uma avó? Vê, é isso que eu digo! Eu nem sabia que você tinha uma avó!

— Eu também não sabia — disse Rose. — Quero dizer, acho que sabia que tinha uma

avó, mas não sei nada a respeito dela. — Ela se sentiu como se subitamente tivesse mergulhado

na água, como se tudo fosse lento e estranho. — Eu preciso... Eu preciso ligar para elas. — Rose

afundou na cama, sentindo-se tonta. Uma avó. A mãe de sua que evidentemente, não estava

morando num lar para idosos, do jeito que Rose sempre acreditara, a não ser que agora também

estivessem recebendo nômades de vinte e tantos anos nesses lugares. — Eu devia ligar para elas.

Devia...

Simon estava olhando embasbacado para ela.

— Você realmente não sabia que tinha uma avó?

— Bem, quero dizer, eu sabia que minha mãe tinha vindo de algum lugar. Mas eu achei

que ela... sei lá. Que ela estava muito velha, ou doente. Num lar para idosos. Meu pai sempre

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disse que ela estava num lar. — Rose olhou para a carta, sentindo o estômago revirar. O pai

mentira para ela. Por que seu pai mentira sobre uma coisa tão importante?

— Onde está o telefone? — perguntou ela, levantando-se.

— Ei, espere um pouco. Para quem você vai ligar? O que vai dizer?

Rose desligou o telefone e pegou as chaves do carro.

— Preciso ir.

— Para onde?

Rose ignorou-o, correndo para a porta, correndo para o elevador, coração martelando no

peito enquanto corria pela rua até seu carro.

Vinte minutos depois, Rose viu-se no mesmo lugar onde ela e sua irmã tinham estado há

quase um ano: na porta da casa de Sydelle, esperando que a deixassem entrar. Ela apertou a

campainha e não largou. O cachorro uivou. Finalmente, as luzes acenderam.

— Rose? — Sydelle estava parada na porta da frente, piscando para ela. — O que você

está fazendo aqui? — A expressão no rosto da madrasta parecia de certo modo estranha sob a luz

forte. Rose olhou cuidadosamente antes de decidir que isto era apenas o normal: mais uma

plástica de olho. Ela empurrou a carta de Maggie para a madrasta.

— Me diga — disse Rose.

— Estou sem meus óculos — disse Sydelle, puxando seu roupão de banho de seda em

torno do corpo e comprimindo os lábios, no local vazio da entrada de sua casa onde Maggie

arrancara o arbusto em novembro último.

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— Então deixe-me explicar a você — disse Rose. — Esta carta é de Maggie. Ela se

mudou para a casa da minha avó. A minha avó que eu não sabia que ainda estava lúcida.

— Oh. — exprimiu Sydelle. — Bem...

Rose fitou-a. Não lembrava a última vez em que vira sua madrasta sem palavras. Mas ali

estava ela, desconcertada e contorcendo-se desconfortavelmente sob seu creme facial e pontos

cirúrgicos.

— Deixe-me entrar — disse Rose.

— Mas é claro! — disse Sydelle numa voz estranha e cantarolante, e deu um passo para o

lado.

Rose passou por ela e se posicionou no sopé das escadas.

— Papai! — berrou.

Sydelle colocou a mão no ombro de Rose. Rose afastou-a.

— Isto foi idéia sua, não foi? — disse ela, olhando furiosa para a madrasta. — "Oh,

Michael, elas não precisam de uma avó. Elas têm a mim!"

Sydelle recuou como se Rose a tivesse esbofeteado.

— Não foi assim que aconteceu — disse numa voz trêmula. — Eu nunca achei que

poderia ser substituta... para qualquer coisa que vocês tivessem perdido!

— É? E então, como foi que aconteceu? — inquiriu Rose. Ela tinha a impressão de que

cada célula de seu corpo inchara de raiva a ponto de explodir. — Me conta!

Michael Feller desceu as escadas, vestido com calças de moletom e camisa de malha

branca, limpando os óculos com seu lenço. Seus cabelos finos flutuavam como uma névoa sobre

sua cabeça calva.

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— Rose? O que está acontecendo?

— Bem, o que está acontecendo é que eu tenho uma avó, ela não está num lar, Maggie

está morando com ela e ninguém julgou adequado mencionar nada disso para mim.

— Rose — disse Sydelle, estendendo o braço até ela.

Rose se esquivou.

— Não me toque! — gritou. Sydelle estremeceu.

— Já basta! — disse Michael.

— Não — disse Rose. Suas mãos tremiam, seu rosto estava em chamas. — Não, não

basta. Não é nem um bom começo. Como você pôde? — gritou ela, enquanto Sydelle se encolhia

num canto de seu vestíbulo coberto por papel de parede amarelo. — Eu sei que você nunca

gostou de nós. Mas esconder uma avó? Até para você, Sydelle, isso é desumano!

— Não foi ela — disse Michael Feller, segurando Rose pelo ombro — Não foi idéia dela.

Foi minha.

Rose ficou boquiaberta.

— Mentira — disse ela. — Você não iria... — Ela olhou para o pai de olhos cinza-claros e

testa alta, o pai com coração bondoso e cara de cachorrinho perdido. — Você não iria...

— Vamos sentar — convidou Michael Feller.

Sydelle olhou para Rose.

— Não fui eu — disse ela, num tom seco. — E eu sinto muito... — Sua voz sumiu na

garganta. Rose olhou para sua madrasta, que nunca parecera menos má, nunca parecera mais

patética. Seu rosto parecia pequeno e vulnerável, a despeito do batom tatuado e da pele tesa.

Rose olhou atentamente para ela, tentando lembrar se já ouvira aquelas palavras antes, se Sydelle

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já tinha dito que sentia muito por qualquer coisa. Ela decidiu que se sua madrasta algum dia já

havia se desculpado a ela por qualquer coisa, ela não podia lembrar.

— Você não sabe... — Sydelle ofegou. — Você não sabe como era viver nesta casa. Você

não sabe como era passar anos jamais sendo boa o bastante. Jamais sendo a melhor escolha,

jamais sendo aquela que as pessoas realmente queriam. Jamais sendo capaz de fazer qualquer

coisa que agradasse.

— Puxa, eu sinto tanto! — disse Rose, numa voz sarcástica que poderia ter tomado

emprestada de sua irmã caçula.

Sydelle levantou os olhos e fitou Rose. — Nada do que eu fazia era o que vocês queriam

— disse ela, e piscou as pálpebras recém-costuradas. — Nunca tive qualquer chance com você ou

Maggie. Com nenhum de vocês.

— Sydelle... — disse Michael com gentileza.

— Vamos — disse Sydelle. — Conte a ela. Conte tudo a ela. E hora de ela saber.

Rose contemplou sua madrasta, vendo, pela primeira vez, a vulnerabilidade que jazia sob

a maquiagem, o Botox, as dicas de dieta, a condescendência. Ela olhou e viu uma mulher que

passara dos sessenta cujo corpo fino estava enrugado e cada vez menos atraente, uma mulher

cujo rosto parecia uma caricatura cruel, uma garatuja de uma mulher em vez de uma mulher de

fato. Ela olhou e viu a tristeza com que Sydelle vivera cada dia: um marido ainda apaixonado pela

primeira mulher falecida, um ex-marido que a abandonara, uma filha que crescera e partira.

— Rose — disse o pai. Rose seguiu-o até a sala de estar de Sydelle. O couro do sofá fora

coberto por uma capa de tecido, mas esta ainda era de um branco cegante. Rose sentou-se numa

ponta do sofá; o pai na outra.

— Sinto muito por Sydelle — começou, e olhou para o vestíbulo. Ele estava esperando

por ela, pensou Rose. Esperando para que ela viesse e cuidasse do trabalho sujo.

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— Ela está passando por uma situação muito difícil agora — disse o pai. — A Márcia está

dando muita dor de cabeça para a mãe.

Rose deu de ombros, não sentindo muita simpatia nem por Sydelle nem por "Minha

Márcia", que jamais tivera muito tempo ou interesse pelas irmãs adotivas, fora sua preocupação

com que não mexessem em suas coisas enquanto ela estava na faculdade.

— Ela se juntou à seita Judeus por Jesus — disse Michael, e desviou o olhar.

— Você está de brincadeira.

— Bem, foi isso que eu pensei no começo, que ela estivesse brincando.

— Ai, meu Deus — disse Rose, pensando que aquilo, para Sydelle, que tinha mezuzás em

cada porta da casa, incluindo nos banheiros, e fazia cara feia sempre que via um Papai Noel num

shopping, devia estar sendo uma agonia. — Então ela agora é cristã?

O pai balançou a cabeça.

— No fim de semana passado fomos de carro até a casa dela e tinha uma guirlanda

enorme pendurada na porta.

— Rô, rô, rô — disse Rose, na verdade sem achar a menos graça.

— Rose — disse o pai dela, um tom de alerta na voz. Rose ergueu a cabeça e olhou para

ele.

— Agora, passando a tópicos mais pertinentes. Minha avó.

Michael Feller engoliu em seco.

— Ela ligou para você? Ella?

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— Maggie escreveu para mim. Ela disse que estava morando com esta... Ella. E então,

qual é a história?

O pai não disse nada.

— Papai?

— Estou com vergonha de mim mesmo — disse finalmente Michael. — Devia ter

contado a você sobre isto... sobre Ella... há muito tempo. — Ele entrelaçou os dedos em torno

dos joelhos e começou a se embalar para a frente e para trás, claramente desejando por um

relatório anual ou pelo menos por um Wall Street Journal para livrá-lo disto.

— A mãe da sua mãe — começou. — Ella Hirsch. Ela se mudou para a Flórida ha muito

tempo. Depois... — Uma pausa. — Depois da morte da sua mãe.

— Você disse que ela estava num lar de idosos — lembrou-lhe Rose.

Michael Feller cerrou as mãos em punhos e colocou-as sobre as coxas.

— Ela estava. Mas não o tipo de lar de idosos que você provavelmente pensou.

Rose fitou o pai.

— Como assim?

— Bem, ela estava num lar. O lar dela. — Ele engoliu em seco. — Com Ira. Os dois eram

idosos.

— Você mentiu para a gente — disse Rose, seca.

— Foi uma mentira de omissão — defendeu-se Michael. Claramente, esta era uma fala

que ele pensara há muito tempo, uma fala que havia ensaiado em sua mente durante anos.

Michael respirou fundo. — Depois que a sua mãe... sua mãe...

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— Morreu — completou Rose.

— Morreu — disse Michael. — Depois que sua mãe morreu, eu fiquei zangado. Eu

achava... — Ele fez uma pausa e fitou a mesinha de centro de vidro e metal que fora escolhida

por Sydelle.

— Zangado com os pais da mamãe? Zangado com Ella?

— Eles tentaram me contar sobre Caroline, mas eu não queria ouvir. Eu estava tão

apaixonado por ela... — Rose estremeceu ao sentir a dor na voz do pai. — Eu estava tão

apaixonado por ela. E estava muito zangado com eles. A sua mãe fazia tratamento com lítio

quando a conheci. Ela estava estável. Mas ela odiava o jeito como o remédio fazia com que se

sentisse. E eu tentava fazer com que ela tomasse, e Ella, a mãe dela, tentava também, e durante

algum tempo ela esteve bem, mas então... — Ele soltou a respiração e tirou os óculos, como se

não suportasse seu peso em seu rosto. — Ela amava você. Ela amava todos nós. Mas ela não

podia... — A voz de Michael ficou presa na garganta. — E isso não importava. Isso não mudava

a forma como eu me sentia em relação a ela.

— E como era? — perguntou Rose.

O pai pareceu surpreso.

— Você não lembra?

— Não posso dizer que você montou um santuário para ela em nossa casa, ou algo assim.

— Ela fez um gesto com as mãos pela sala de estar impecável de Sydelle, as paredes brancas, o

tapete branco, as estantes de livros que jamais tinham abrigado livros, apenas objetos de vidro e

porta-retratos com fotos do casamento de "Minha Márcia". — Não havia nenhuma foto dela na

casa. E você jamais falava sobre ela.

— Porque dói — disse Michael. — Dói lembrar. Dói ver o rosto dela. Eu achei que isso

machucaria você e Maggie também.

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— Eu não sei — disse Rose. — Eu queria... — Ela baixou os olhos para seus pés no

tapete branco. — Eu queria que ela não tivesse sido um segredo.

Michael ficou calado.

— Lembro-me da primeira vez que a vi. Ela estava caminhando pelo campus da

Universidade de Michigan, empurrando sua bicicleta, e estava rindo, e era como um sino soando

em minha cabeça. Ela era a coisa mais linda que eu já tinha visto. Ela usava um lenço cor-de-rosa

no cabelo... — A voz do pai sumiu.

Rose podia lembrar-se de lampejos de situações, imagens, pedaços de histórias, uma voz

doce e melodiosa, uma face macia pressionada contra a sua. Doces sonhos, menina dos sonhos.

Durma bem favo de mel. E todo mundo tinha mentido ou mantido coisas em segredo. Ella

mentira a seu pai sobre Caroline — ou melhor, dissera-lhe a verdade, mas seu pai não quisera

ouvir. E seu pai mentira às meninas sobre Ella — ou contara a elas um pedacinho da verdade e

deixara o resto no ar.

Ela se levantou, mãos cerradas em punhos. Mentiras, mentiras, mentiras, e onde estava a

verdade em tudo isto? A mãe tinha sido louca e depois morrera. O pai tinha se enganchado com

uma bruxa má e entregado suas filhas para que ela cuidasse. Sua avó desaparecera numa toca de

coelho e Maggie tinha ido procurar por ela. E Rose não sabia de nada, absolutamente nada.

Vocês simplesmente se livraram dela. Não me lembro de você ter nos mostrado uma

única foto dela, ou qualquer coisa que tivesse lhe pertencido...

— Dói muito — disse Michael com simplicidade. —Já era muito ruim ter de cuidar de

vocês duas.

— Puxa, obrigada.

— Não, eu não quis dizer... — Ele segurou a mão de Rose, um movimento que a deixou

sem palavras. Desde aquele dia calamitoso de seus doze anos, quando saíra do banheiro e

sussurrara para o pai que sua menstruação chegara, Rose não se lembrava de seu pai tê-la tocado

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alguma vez, exceto por um beijinho ocasional na face. — Era só que vocês duas me lembravam

demais ela. Tudo que vocês faziam me levava a lembrar Caroline.

— E então você casou com ela — disse Rose, apontando com a cabeça para o vestíbulo

onde, presumivelmente, a madrasta ainda estava.

O pai suspirou.

— Sydelle queria o melhor para vocês.

Rose soltou uma risada curta.

— Ah, claro. Ela é maravilhosa. Ela apenas odiava a mim e a Maggie.

— Ela sentia ciúmes — disse Michael.

Rose ficou pasma.

— Ciúmes do quê? Ciúmes de mim? Você deve estar brincando. Afinal "Minha Márcia" é

superior em cada aspei to. E mesmo se o motivo fosse ciúmes, ela ainda assim era cruel com a

gente. E você deixava!

— Rose... — disse o pai.

— Rose, o quê?

— Tem uma coisa que eu preciso dar a você. Pode ser tarde, mas mesmo assim...

Ele subiu correndo as escadas. Dali a pouco desceu segurando uma caixa de sapatos.

— São dela. Da sua avó. Ela está na Flórida. Ela tentou entrar em contato comigo... com

você e Maggie... durante anos. Mas eu não deixava. — Ele enfiou a mão na caixa e tirou um

envelope amassado e esmaecido com "Srta. Rose Feller" escrito do lado de fora. — Este foi o

último cartão que ela mandou.

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Rose correu o dedão sob a aba, que soltou facilmente da cola de 15 anos de idade. Dentro

havia um cartão com um buquê de flores na frente. As flores eram cor-de-rosa e púrpura,

cobertas com pó de ouro que caíram sobre os dedos de Rose. "FELICIDADES EM SEUS

DEZESSEIS ANOS", diziam as palavras em prata sobre as flores. E dentro... Rose abriu o

cartão. Uma nota de vinte dólares e uma fotografia caíram em seu colo. "PARA A MINHA

NETA", estava escrito numa letra inclinada. "EU DESEJO A VOCÊ TODO O AMOR E

FELICIDADE DO MNDO NO SEU DIA ESPECIAL." Seguido por uma assinatura. Seguido

por um endereço. E um número de telefone. E um PS. que dizia: "Rose, eu adoraria receber

notícias suas. Por favor, ligue para mim a qualquer hora!!!" Foram os três pontos de exclamação

que mais fizeram o coração de Rose doer. Ela olhou a fotografia. Era a foto de uma menininha

— rosto redondo, olhos castanhos, com laços vermelhos amarrando suas tranças de cabelo,

sentada no colo de uma mulher. A mulher estava rindo. A menina não. Rose virou a fotografia.

Rose e Vovó, 1975, dizia a fotografia, na mesma tinta azul, na mesma letra inclinada. Mil

novecentos e setenta e cinco. Ela tinha seis anos.

Rose se levantou.

— Preciso ir agora — disse ela.

— Rose! — gritou o pai quando a filha já dera as costas. Rose ignorou-o, saiu da casa.

Sentou-se diante do volante do carro com o cartão ainda nas mãos, e fechou os olhos,

lembrando-se da voz da mãe, de seu sorriso adornado em batom cor-de-rosa, de um braço

bronzeado estendendo-se de trás de uma câmera. Sorria, querida! Por que está com essa cara de

quem chupou limão? Sorria para mim, Rosie. Um sorriso bem bonito, bonequinha.

—49 49 49 49 —

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eia mais! — disse Maggie.

— Não posso — insistiu Lewis, e dirigiu-lhe uma

expressão extremamente digna sobre a mesa de jantar de Ella. — Isso seria uma brecha na ética

jornalística.

— Ora, vamos — implorou Ella. — Apenas as primeiras frases. Por favor?

— Seria muito, muito errado — disse ele, e balançou tristemente a cabeça. — Ella, estou

surpreso por você querer que eu faça uma coisa dessas.

— Sou uma má influência — disse Maggie com orgulho. — Pelo menos diz para gente o

que o Irving pediu.

Lewis jogou as mãos para o alto fingindo resignação.

— Tudo bem, mas vocês precisam jurar segredo. — Pigarreou. — "Irving e eu não

gostamos de comida francesa", começava o mais recente texto da Sra. Sobel. "Os pratos são

muito temperados para nós. Nós também descobrimos que muitos restaurantes franceses são

barulhentos e mal iluminados, com o objetivo de parecerem românticos, mas isso dificulta ler o

cardápio, e ainda mais a comida."

— Pobre Sra. Sobel — murmurou Ella.

Lewis balançou a cabeça para ela, e continuou lendo:

— "A maioria dos cozinheiros não sabe como uma omelete deve ser feita. Uma omelete

deve ser macia e leve, com o queijo apenas derretido.

E sinto reportar que o Bistro Bleu não é exceção. Minha omelete estava cozida demais, e

emborrachada. As batatas não estavam tão quentes quanto deveriam, e eram feitas com alecrim,

com que Irving não se dá.

— De novo o Irving — disse Ella.

— L

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— Qual é o problema do Irving? — perguntou Maggie.

— O Irving é alérgico. A tudo — explicou Lewis. — Ele é alérgico a coisas que eu nem

sabia que davam alergia. Farinha branca, caranguejo, sementes de todo tipo, todos os frutos

oleaginosos... metade das resenhas dessa mulher é devotada a quanto ela demora para achar

alguma coisa que o Irving possa comer, e depois mais um quarto da resenha é dedicada a relatar

se o que Irving comeu acabou lhe fazendo bem ou não...

— Estão falando do Irving Sobel? — perguntou a Sra. Lefkowitz, caminhando com a

ajuda de sua bengala até a mesa. — Uma vez ele veio a uma festa que eu dei e não comeu nada!

Maggie revirou os olhos. A Sra. Lefkowitz, sua convidada para o jantar, estava de péssimo

humor. Viera com uma suéter cor-de-rosa (explicara que assim, caso se sujasse com borch, ele

iria se misturar com a cor do tecido) e calças de poliéster cor de castanha. Ela não explicara as

calças, mas Maggie deduziu que se ela derramasse qualquer coisa nelas, seria apenas uma

melhoria.

A Sra. Lefkowitz sentou-se com um leve gemido, pegou um picles kosher e começou a

palestrar sobre o estado do shopping da vizinhança.

— Vândalos! — disse ela, com a boca cheia de picles.

Maggie retirou da mesa seus livros do curso de "Maquiagem para teatro" no qual se

matriculara na escola técnica local e colocou pratos e talheres em seu lugar.

— Vândalos! — prosseguiu a Sra. Lefkowitz. — Malfeitores! Bandidos! Adolescentes!

Em toda parte! O shopping está cheio deles, e todos eles usam roupas com coisinhas penduradas

e mangas largas. Minissaias! Dá para ver através daquelas saias! Calças — prosseguiu, olhando

diretamente para Maggie — que são feitas de couro. Já ouviu alguma vez falar de uma coisa

dessas?

— Na verdade... — começou Maggie. Ella conteve um sorriso. Ela sabia que Maggie

possuía um par de calças de couro, e também uma minissaia de couro.

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— Qual é a ocasião? — preferiu perguntar Ella. — O que a senhora foi fazer no

shopping?

— Meu filho — disse a Sra. Lefkowitz, a voz carregada de desprezo. — Lembra-se dele?

O atuário? O Sr. Empolgação? Bem, ele me telefonou e disse: "Mamãe, vou casar." E eu disse,

"Na sua idade? Você precisa tanto de esposa quanto eu preciso de sapatos de dança." Ele me

disse que já decidiu, e que ela é uma garota maravilhosa. Eu disse a ele que um homem de 53 não

deve correr atrás de garotas, mas ele me disse que eu não tenho nada com que me preocupar,

porque ela tem 36 anos, mas 36 anos bem maduros. — A Sra. Lefkowitz olhou para Ella e

Maggie como se elas fossem as responsáveis por fazer seu filho se apaixonar por uma mulher de

36 anos muito madura. — Isto eu vivi para ver — concluiu, e se serviu de uma fatia de pão de

centeio. — Então, agora preciso de uma roupa. Mas é claro que não consigo achar.

— O que você está procurando? — perguntou Maggie.

A Sra. Lefkowitz levantou uma de suas sobrancelhas cinzentas.

— A princesa fala!

— Eu falo! — gritou Maggie, afrontada. — E por acaso também sou uma compradora

experiente.

— Bem, então o que você sugere que eu use no terceiro casamento do meu filho?

Maggie analisou cuidadosamente a Sra. Lefkowitz — seus cabelos cinzentos cacheados,

seus olhos azuis brilhantes e inquisidores, o batom cor-de-rosa que ela aplicava até nos cantos

dos lábios. Ela não era exatamente gorda, mas também não tinha muita forma. Sua cintura tinha

engrossado, seus seios estavam caídos.

— Hum... — disse Maggie em voz alta, considerando as possibilidades.

— Ela me olha como se eu fosse um projeto de ciências.

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— Shh — disse Ella, que já vira Maggie com essa cara antes, enrodilhada em seu sofá à

noite, lendo poesia com uma concentração que quase fazia parecer que ela havia se hipnotizado.

— Qual é sua coisa favorita? — perguntou subitamente Maggie.

— Sundaes com calda quente de chocolate — disse prontamente a Sra. Lefkowitz. —

Mas não tenho mais permissão para tomar isso. Apenas sorvete de iogurte com baixo teor

calórico — disse ela, torcendo o rosto para demonstrar seus sentimentos sobre sorvete de iogurte

com baixo teor calórico. — E aquela calda sem gordura, que não tem gosto de nada —

acrescentou, e balançou a cabeça, claramente preparada para fazer um discurso sobre quanto

odiava alimentos dietéticos. Mas Maggie a deteve.

— Sua coisa favorita de vestir.

— De vestir? — A Sra. Lefkowitz baixou os olhos para si mesma como se estivesse

surpresa por estar vestindo alguma coisa. — Bem, eu acho que gosto de coisas confortáveis.

— A coisa que mais gostou de usar na vida — disse Maggie, amarrando seu cabelo num

rabo-de-cavalo. Ella empoleirou-se na beira da cadeira da sala de jantar, ansiosa para ver aonde

isto estava indo.

A Sra. Lefkowitz abriu a boca. Maggie levantou a mão.

— Pense primeiro — disse ela. — Pense cuidadosamente. Pense em todas as roupas que

você já usou e me diga de qual gostava mais.

A Sra. Lefkowitz fechou os olhos.

— Meu traje de saída de cerimônia — disse ela.

— O que é isso?

— Meu traje de saída de cerimônia — repetiu, como se Maggie não a tivesse ouvido.

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— O que uma noiva veste quando sai do seu casamento e vai até o aeroporto para sua

lua-de-mel — explicou Ella.

— Certo, certo — disse a Sra. Lefkowitz, balançando a cabeça. — Era um traje com

estampa xadrez preto-e-branco, e a saia era bem justa aqui — disse ela, alisando os quadris. —

Eu tinha sapatos pretos... — fechou os olhos, lembrando.

— Como era o casaco? — perguntou Maggie.

— Curto, acho — disse a Sra. Lefkowitz, soando quase sonhadora. — Com botões

pretos lustrosos na frente. Era tão bonito! Queria saber o que aconteceu com ele.

— E se... — disse Maggie.—E se fôssemos fazer compras juntas?

A Sra. Lefkowitz fez uma careta.

— Ir ao shopping de novo? Acho que não consigo suportar.

Maggie não tinha certeza se ela também suportaria andar de loja em loja na velocidade de

lesma da Sra. Lefkowitz.

— Que tal isto? Você me diz o seu tamanho...

— E agora ela quer ficar íntima!

— ...e me dá o seu cartão de crédito...

Ella viu que a Sra. Lefkowitz estava se preparando para balançar a cabeça. Prendeu a

respiração e aguardou.

— ...e eu lhe encontro uma roupa.Talvez até algumas roupas. Vou lhe trazer opções de

escolha. Faremos um show de moda aqui, você vai experimentar as roupas para nós. Você

escolherá o que lhe cai melhor e eu devolverei o resto das roupas.

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Agora a Sra. Lefkowitz estava olhando com curiosidade para Maggie.

— Como uma compradora pessoal?

— Exatamente — disse Maggie, caminhando num círculo lento em torno da Sra.

Lefkowitz. — É só me dar um orçamento.

A Sra. Lefkowitz suspirou.

— Duzentos dólares, talvez?

Maggie estremeceu e disse:

— Está bem. Vou tentar.

—50 50 50 50 —

aggie passou dois dias inteiros procurando pela roupa que a Sra.

Lefkowitz usaria no casamento do filho. O que era bom, pensou

ela. Isso não a deixava ficar sentada ao lado do telefone,

perguntando-se se Rose já teria recebido sua carta, e se Rose iria telefonar.

A Sra. Lefkowitz era um desafio — sem a menor dúvida, pensou Maggie. Não havia

como colocá-la no tipo de traje justo que ela descrevera, mas Maggie poderia encontrar alguma

coisa que fizesse a Sra. Lefkowitz reviver a sensação que teve ao usar aquela roupa. Um conjunto

de terninho e saia funcionaria, e a saia poderia até ser um pouco curta — Pelo que vira, as pernas

da Sra. Lefkowitz não eram ruins — mas um casaco curto estava fora de cogitação. Alguma coisa

longa, talvez na altura do quadril, com um enfeite para deixá-lo classudo, alguma coisa que

sugerisse aqueles botões pretos lustrosos. Alguma coisa que Maggie já tinha visto. Na Macy's? Na

M

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Saks? Finalmente lembrou que não fora em nenhum desses lugares, mas no armário de Rose.

Rose tinha um casaco exatamente assim.

Maggie engoliu em seco e continuou sua expedição de compras, visitando lojas de

departamento, lojas de consignação, lojas de ponta de estoque, brechós, e o departamento de

figurinos da faculdade local, depois de ter prometido ao chefe do departamento que ajudaria com

a maquiagem de uma futura montagem de Hedda Gabler. No fim das contas, ficou com três

opções. A primeira era uma roupa que ela encontrara à venda na ponta de estoque da Nordstrom:

uma saia que ia até a altura dos joelhos, justa mas não apertada demais, em linho rosa-claro, com

enfeites em rosa-shocking e em vermelho, combinada com uma blusinha sem manga da mesma

cor que seria usada por baixo de um cardigã com bordados. A Sra. Lefkowitz correu os dedos

pelo tecido com uma expressão desconfiada.

— Isto não parece com meu traje de saída — disse ela. — E uma saia e um suéter? Não

sei. Eu estava pensando, talvez, num vestido.

— Não estamos procurando pela aparência — disse Maggie. — Estamos procurando

pela sensação.

— Sensação?

— A sensação que você teve ao usar o seu traje de saída de cerimônia — disse ela. —

Você não pode usar aquele traje de novo, pode?

A Sra. Lefkowitz fez que não.

— Então vamos procurar por uma roupa que lhe proporcione... — Ela caçou as palavras.

— ...o mesmo senso de si mesma que o traje proporcionava. — Ela passou a roupa para a Sra.

Lefkowitz, ainda em seu cabide, mais um chapéu cor-de-rosa de aba larga que pegara do

departamento de figurinos da escola técnica. — Apenas experimente, sim? — disse Maggie, e

conduziu a Sra. Lefkowitz de volta ao quarto, onde ela montara um espelho de corpo.

— Eu me sinto ridícula! — gritou a Sra. Lefkowitz, enquanto Ella e Lewis sentavam-se

no sofá, esperando que o desfile de modas começasse.

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— Apenas me deixe ver — pediu Maggie.

— Realmente tenho de botar o chapéu? — foi a réplica.

— Saia daí! — exclamou Ella.

Lentamente, a Sra. Lefkowitz emergiu do quarto. A saia estava comprida demais. Maggie

percebeu isso logo de cara. As mangas do cardigã passavam das pontas dos dedos da Sra.

Lefkowitz, e a blusa estava folgada demais na gola.

— Hoje em dia só se fazem roupas para gigantes — queixou-se a velha senhora, e

brandiu para Maggie um punho coberto de tecido. — Olha só isto!

Maggie recuou alguns passos para avaliar o visual. Em seguida caminhou até a Sra.

Lefkowitz e enrolou a bainha da cintura, de modo a fazer a saia subir para cima dos joelhos.

Dobrou as mangas do cardigã, puxou e enrolou a blusa sem manga para conferir-lhe a impressão

de estar bem ajustada, e enfiou o chapéu na cabeça da Sra. Lefkowitz. — Pronto — anunciou, e

virou-a para o espelho. — Dê uma olhada.

A Sra. Lefkowitz abriu a boca para objetar, para dizer que a roupa era horrorosa e que

fazer isto tinha sido uma péssima idéia. Então fechou a boca.

— Oh! — exclamou a Sra. Lefkowitz.

— Está vendo? — perguntou Maggie.

Lentamente, a Sra. Lefkowitz fez que sim com a cabeça.

— A cor — disse ela.

— Certo, certo! — disse Maggie, a quem Ella jamais vira tão empolgada, animada e feliz.

— Não está bem ajustada em você, mas acho que a cor combina com os seus olhos, e eu sei que

gosta de rosa.

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— Nada mal, nada mal — disse a Sra. Lefkowitz, e ela não estava soando ranzinza nem

mal-humorada; estava simplesmente encantada com esta visão de si mesma, com seus olhos azuis

faiscando em contraste com o rosa pálido. O que ela estava vendo?, perguntou-se Maggie. Talvez

a si mesma quando jovem, recém-casada, descendo os degraus da sinagoga, segurando a mão de

seu marido.

— Então essa é a escolha um — disse Maggie, puxando gentilmente a Sra. Lefkowitz para

longe do espelho.

— Fico com ela! — exclamou a velha senhora.

— Não, não — disse Maggie, rindo. — Você precisa ver as outras coisas que encontrei.

— Mas eu quero isto! — disse ela, segurando o chapéu com força em sua cabeça. — Não

quero experimentar mais nada, quero isto! — Olhou para os pés descalços. — De que sapatos eu

preciso? Pode encontrar sapatos paia mim também? E talvez um colar. — Ela correu a mão por

suas clavículas. — Meu primeiro marido uma vez me deu um colar de pérolas...

— Próximo traje — disse Maggie, empurrando a Sra. Lefkowitz de volta para o quarto. O

segundo traje era um vestido tubinho comprido e sem mangas, feito de algum tipo de tecido

sintético preto, pesado o bastante para dobrar-se graciosamente. Ela o encontrara na Marshalls e

o combinara com um xale preto e prateado com uma franja preta nas extremidades.

— U-la-Iá! — exclamou a Sra. Lefkowtiz, enfiando o vestido por cima da cabeça e

pavoneando para fora do quarto, balançando as extremidades do xale como se fosse uma modelo

de outrora. — Que bom gosto! Eu me sinto como uma melindrosa!

— Que lindo! — disse Ella.

— É bonito — comentou Maggie, analisando-a cuidadosamente. O vestido caía numa

única coluna, sugerindo os contornos da cintura e do quadril mais do que grudando-se a eles, e

conferia à Sra. Lefkowitz a aparência de uma silhueta. Com certeza precisaria de saltos altos para

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esse vestido, e Maggie não tinha certeza se fazer uma mulher de oitenta anos usar saltos altos

seria uma boa idéia. Sapatilhas?, pensou.

— O que temos a seguir? — perguntou Ella, batendo palmas.

O terceiro traje era o favorito de Maggie, provavelmente porque fora o mais difícil de

achar. Ela encontrara o terninho na arara do fundo de uma loja de consignações numa rua

"chique demais para seu próprio bem" em South Beach.

— Costurado à mão — assegurara-lhe a vendedora, o que supunha Maggie, significava

justificar a etiqueta de 160 dólares, A primeira vista parecia um terninho preto comum, que descia

até a altura do quadril, nada especial. Mas as mangas eram decoradas com bordados pretos, e os

bolsos, também bordados, estavam dispostos no terninho num ângulo interessante, que servia

para criar a ilusão de uma cintura quando não havia nem mesmo uma cintura de verdade ali. E o

melhor de tudo, o terninho possuía um forro violeta fabuloso, de modo que Maggie combinara-o

com uma saia violeta comprida e uma blusa preta.

— Tome — disse ela, apresentando as três peças juntas num cabide, para que a Sra.

Lefkowitz pudesse ter uma idéia de como vesti-las.

Mas a Sra. Lefkowitz mal olhou para as peças; simplesmente tomou-as dos braços de

Maggie e correu de volta para o quarto... e seria imaginação de Ella ou a Sra. Lefkowitz estava

cantarolando?

Quando saiu do quarto, a Sra. Lefkowitz estava praticamente dando pulinhos — ou o

máximo que uma pessoa que sofrerá um derrame recentemente podia dar pulinhos.

— Você conseguiu! — exclamou, e beijou Maggie carinhosamente numa face, o que fez

Ella sorrir de orelha a orelha.

Maggie olhou para a Sra. Lefkowitz. A saia não estava fantástica — não pendia da forma

certa e não era exatamente do mesmo tom de violeta que o forro do terninho — e a blusa não

tinha nada de mais. Contudo, o terninho era belíssimo. Fazia a Sra. Lefkowitz parecer mais alta,

mais curvilínea, e...

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— Eu pareço maravilhosa! — disse a Sra. Lefkowitz, estudando a si mesma no espelho,

parecendo não notar a forma como o canto esquerdo de sua boca estava caído, ou o fato de que

sua mão esquerda ainda se curvava em torno de seu corpo num ângulo estranho. Olhou seu

reflexo durante um momento, e então pegou o chapéu rosa do primeiro traje e enfiou-o

novamente na cabeça.

— Não, não — disse Maggie, rindo.

— Mas fica bem em mim! — disse a Sra. Lefkowitz. — Eu quero. — Posso ficar com

ele?

— É da faculdade — disse Maggie.

— Ah, da faculdade... — disse a Sra. Lefkowitz, com uma cara tão triste que Ella desatou

a rir.

— E então, qual? — perguntou Maggie. E a Sra. Lefkowitz, ainda em seu terninho

bordado à mão, olhou para Maggie como se ela estivesse maluca.

— Ora, todas elas, é claro! — disse a velha senhora. — Usarei a cor-de-rosa para ir à

missa, e depois o vestido preto longo para ir à recepção, e isto — disse ela, olhando para si

mesma —, usarei no meu próximo encontro com o Dr. Parese.

Ella desatou na gargalhada.

— Por quê? — inquiriu. — Por quê?

— Porque ele é adorável! — respondeu a Sra. Lefkowitz.

— Ele é solteiro? — perguntou Maggie.

— Oh, ele deve ter uns doze aninhos — disse a Sra. Lefkowitz com um meneio de mão,

e então parou no meio do gesto para apreciar o bordado em sua manga. — Muito obrigada,

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Maggie. Você fez um trabalho maravilhoso. — Ela caminhou de volta até o quarto para se trocar.

Maggie começou a devolver as roupas para seus cabides.

Ella contemplou sua neta por um minuto antes de dizer:

— Tive uma idéia. Acho que você deveria fazer a mesma coisa por outras pessoas.

Maggie parou enquanto estava reposicionando o cardigã cor-de-rosa.

— Como assim?

— Bem, nós conhecemos muitas outras senhoras que encontram dificuldades ao fazer

compras e quase nunca conseguem encontrar nada que lhes caia bem. Mas todas elas precisam

fazer essas compras. Porque têm compromissos: casamentos, formaturas, festas de aniversário...

— Bem, isto foi apenas um favor — disse Maggie. — Ando meio ocupada com o curso

na faculdade e a lanchonete de bagels e...

— Tenho certeza de que as pessoas pagariam — afirmou Ella.

Maggie parou de dobrar uma roupa para olhar boquiaberta para a avó.

— E mesmo?

— Claro que sim — disse Ella. — Porquê? Quer trabalhar de graça?

— Quanto você achaque eu deveria cobrar por isto?

Ella colocou um dedo no lábio superior e olhou para o teto.

— Talvez uma percentagem do custo.

Maggie franziu a testa.

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— Não sou boa em porcentagens — disse.

— Ou então uma tarifa única — disse Ella. — O que pode ser melhor, porque se você

cobrar uma percentagem do custo das roupas, as unhas-de-fome daqui vão pensar que você está

tentando obrigá-las a comprar coisas caras. Quanto tempo você levou para conseguir todas essas

coisas?

Maggie mordeu o lábio, parecendo pensativa.

— Umas dez horas, talvez.

— Então você podia cobrar, digamos, uns quinze dólares por hora.

— Mesmo? Isso é muito mais do que ganho cozinhando bagels...

— Isto é um pouco mais difícil do que fatiar e assar, não acha? — perguntou Ella.

— E, acredite em mim, as mulheres daqui podem pagar — disse a Sra. Lefkowitz, que

estava de volta em seu suéter cor-de-rosa, parecendo corada e feliz. — Por mais que elas

reclamem de suas aposentadorias e pensões, por uma roupa linda como esta, elas vão pagar.

E agora Ella viu os olhos de sua neta acenderem, e viu que Maggie estava estourando de

felicidade.

— Você acha que eu consigo? Acha que daria certo? Eu teria de fazer propaganda... e

precisaria ter meu próprio carro...

— Comece aos poucos — aconselhou Ella. — Não pule com ambos os pés. Mergulhe

um pé na água primeiro, veja como é.

— Eu já sei como é! — disse Maggie. — E adoro fazer compras, eu adoro escolher

roupas para outras pessoas... Eu apenas não consigo acreditar... você acha mesmo que as pessoas

me pagariam para fazer isto?

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A Sra. Lefkowitz sorriu, abriu sua bolsa do tamanho de uma valise, sacou seu talão de

cheques e, em sua caligrafia trêmula, escreveu para Maggie Feller um cheque no valor de 150

dólares.

— Pois eu acho que elas pagariam — disse a Sra. Lefkowitz.

—51 51 51 51 —

m retrospecto, pensou Rose, os drinques de champanhe com suco de

laranja tinham sido um erro. Ela tentou dizer isso a Amy, mas as

palavras "os drinques de champanhe com suco de laranja foram um

erro" saíram como um murmúrio encharcado de champanhe.

— Os drinques de champanhe com xuco de naranja foxam um erro — disse ela.

Amy, que evidentemente entendera-a com perfeição, balançou a | cabeça com vigor e

chamou o garçom.

— Mais dois drinques destes — disse Amy.

— Imediatamente, senhoras — disse o garçom. Em que momento as coisas tinham saído

do controle?, perguntou-se Rose. Provavelmente quando recebera o convite para o chá de panela

que Sydelle Feller decidira promover semanas antes da carta de Maggie, a revelação da avó, o

convite impresso em letras douradas sobre papel grosso e cor-de-creme, numa caligrafia tão

desenhada que era praticamente ilegível.

— Quem está promovendo esta coisa? — perguntara Amy Lorde e lady "Estraga

Prazeres"?

E

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— Eu nem quero ir — disse Rose. — Quero ir já para a Flórida conhecer essa avó.

— Você ligou para ela? — perguntou Amy

— Ainda não — disse Rose. — Ainda estou pensando no que vou dizer.

— Bem, se a avó atender, você diz "alô" — disse Amy. — E se Maggie atender, você diz

a ela que se um dia ela dormir de novo com o seu namorado, você vai chutar a bunda tamanho

zero dela daqui até Elizabeth, Nova Jersey. Só não vai inverter os discursos, tá?

— Primeiro o chá-de-panela, depois a avó — disse Rose.

E no dia marcado, Rose reuniu toda a sua coragem, raspou as pernas e seguiu para o

restaurante designado na hora marcada, onde precisamente uma de suas amigas e três dúzias das

amigas de Sydelle esperavam para brindar à futura noiva.

— Rose! — saudou pomposamente Sydelle, levantando-se. Qualquer traço da

vulnerabilidade que Rose vislumbrara no rosto de sua madrasta havia sumido, enterrado sob

camadas de maquiagem, desdém e senso de moda.

— Venha dizer olá às minhas amigas — disse Sydelle, conduzindo Rose até suas

parceiras, todas elas, aparentemente, com os mesmos cabelos pintados e pálpebras levantadas.

Devem ser clientes do mesmo cirurgião e do mesmo cabeleireiro, pensou Rose, enquanto Sydelle

fazia as apresentações. — E aqui está a "Minha Márcia" — anunciou, conduzindo Rose até sua

irmã adotiva, que estava de cara emburrada, com os cabelos presos numa rede, e usando uma

imensa cruz de ouro e diamante, Márcia cumprimentou Rose com um aceno flácido e continuou

perguntando à garçonete se as panquecas continham açúcar refinado, enquanto seus gêmeos de

quatro anos, Jason e Alexander, digladiavam-se debaixo da mesa.

— Como vai você? — perguntou educadamente Rose.

— Abençoada — disse "Minha Márcia". Sydelle estremeceu. Rose tomou seu drinque de

champanhe com suco de laranja num só gole, aceitou um novo, e correu até onde Amy estava

sentada.

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— Salve-me — sussurrou, enquanto Sydelle continuava tagarelando ("Eu devia ter

convidado mais amigas de Rose", ouviu sua madrasta dizer, "mas acho que ela não tem

nenhuma!")

Amy deu-lhe outra bebida.

— Sorria — sussurrou.

Rose abriu um sorriso amarelo. Sydelle puxou seus netos briguentos para seu busto

minúsculo, levantou-se e proclamou:

— Aquelas de nós que conhecem Rose estão muito animadas por este dia finalmente ter

chegado! — E, para o horror de Rose, dois garçons entraram empurrando um carrinho com um

televisor.

— O que está acontecendo? — sussurrou Amy para Rose, que deu de ombros.

Sydelle dirigiu-lhe um sorriso brilhante e apontou o controle remoto para a tela. E ali

estava Rose na sexta série, olhando de cara emburrada para a câmera, cabelos sujos e aparelho

dental reluzente. Risos desconfortáveis ecoaram pela sala. Rose fechou os olhos.

— Nós tínhamos nossas dúvidas — continuou Sydelle, ainda com seu sorriso brilhante.

— Nós a observamos passar pela escola secundária e pela faculdade com os cabelos caindo sobre

os olhos e o nariz enfiado num livro. — Sydelle apertou o controle remoto de novo e ali estava

Rose em suas primeiras férias da faculdade, usando calças jeans apertadas demais.

— Mas é claro, Rose teve romances... — Sydelle apertou o controle remoto, e ali estava

Rose em sua formatura do segundo grau, num vestido de seda cor-de-rosa que lhe caía muito

mal, e um acompanhante há muito esquecido mascando chiclete enquanto a segurava pela

cintura. — Mas por motivos que não conseguíamos entender, nenhum deles jamais dava certo.

— Outro clique. Ali estava Rose no bar mitsvah de alguém, enfiando uma pequena bomba de

chocolate na boca. Rose com o molho de um hambúrguer escorrendo por seus braços. Rose de

perfil, com ombreiras características do fim dos anos 1980, parecendo aproximadamente do

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tamanho de um jogador de futebol americano. Rose num Halloween, vestida de vulcano, dedos

posicionados numa saudação de Sr. Spock.

— Ai, meu Deus — sussurrou Rose. — Minhas fotos de "antes".

— O quê? — sussurrou de volta Amy.

Rose sentiu uma gargalhada histérica formar-se em seu peito.

— Acho que Sydelle passou anos colecionando fotos de "antes", para caso algum dia eu

entrasse numa dieta e ficasse realmente magra, ela teria muitas fotos para comparar as diferenças.

— Eu não consigo acreditar que ela está fazendo isto! — exclamou Amy, enquanto

Sydelle passava uma série de fotografias de Rose emburrada, Rose irritada, Rose com uma

espinha particularmente esplêndida na ponta do nariz.

— Mamãe, o que tem de errado com essa moça? — perguntou Jason ou Alexander, e

Márcia fez sinal para que se calasse.

— Me mata agora — implorou Rose à sua melhor amiga.

— Que tal apenas te deixar inconsciente durante algumas horas? — sussurrou Amy de

volta.

— Assim, vamos todas levantar nossos copos e brindar ao milagre do amor! — concluiu

Sydelle.

Mais risos desconfortáveis, seguidos de aplausos mornos. Rose olhou para a pilha de

presentes, torcendo desesperadamente para que um deles contivesse o faqueiro que Simon

incluíra na lista, para que ela pudesse se matar no banheiro feminino.

— Rose? — perguntou Sydelle, sorriso ainda no lugar. Rose levantou e se posicionou na

frente da pilha de presentes, onde passou a hora seguinte tentando parecer empolgada com

saladeiras e misturadores de massa, louças e taças de vinho, uma moderníssima balança digital de

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alimentos da parte de Sydelle, com um bilhete dizendo: "Esperamos que você ache isto útil", com

a palavra útil sublinhada duas vezes.

— Tupperware! — exclamou Rose, num tom que sugeria que ela esperara a vida inteira

que alguém lhe desse quinze peças de caixas de plástico com tampas. — Que maravilhoso!

— Tão conveniente! — disse Sydelle, sorrindo e passando outra caixa para Rose.

— Saladeira! — exclamou Rose, sorrindo com tanta força que seu rosto doeu. Eu não

vou sobreviver a isto, pensou.

— Saladeira — repeliu Amy, escrevendo o nome da pessoa que dera o presente num

guardanapo para então alfinetá-lo num chapéu de papel que Rose teria de usar no fim da festa.

— Que adorável! — disse Sydelle. Mais um olhar ríspido, mais uma caixa embrulhada em

papel de presente. Rose engoliu em seco e continuou desembrulhando, cerca de meia hora depois

ela havia desembrulhado três fôrmas de bolo, uma tábua de carne, cinco bandejas de servir, dois

vasos de cristal, e tinha dito a seis mulheres diferentes em seis ocasiões distintas que ela e Simon

não estavam planejando ter bebês em nenhum momento do futuro imediato.

Finalmente o último presente foi aberto, o último guardanapo foi alfinetado no chapéu, e

o chapéu enfiado na cabeça de Rose.

Amy deu uma escapada para o banheiro. Instantes depois voltou para a mesa com cara de

quem tinha visto um fantasma.

— Que foi? — indagou Rose, tirando o chapéu de papel da cabeça.

Amy agarrou a manga de Rose e dois drinques de champanhe com suco de laranja e

arrastou a amiga até um canto.

— Aquela mulher está amamentando — disse Amy.

— Que mulher?

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— Márcia!

Rose olhou para Márcia, que acabara de retornar do banheiro trazendo Jason e Alexander.

— Você está brincando? Eles já estão com quatro anos!

— Eu sei o que eu vi — disse Amy.

— Como foi? Ela estava esguichando leite nos cereais açucarados deles?

— Em primeiro lugar, não acredito que aqueles meninos já tenham visto de perto cereais

açucarados — disse Amy. — Jesus não aprovaria. Em segundo lugar, eu sei o que é

amamentação. Peito. Criança. Boca.

Rose tomou outro gole de suco de laranja com champanhe.

— Bem, pelo menos ela sabe que é orgânico.

E foi precisamente nesse momento que Sydelle Feller apareceu diante delas.

— Obrigada por ter organizado isto — disse Rose. Sydelle a havia envolvido com os

braços, puxando para si.

— Você devia tentar ser grata para variar — sibilou.

Rose recuou.

— Hein?

— Espero que você tenha exatamente o casamento que merece — disse Sydelle, virando-

se e seguindo para a porta.

Rose sentou em sua cadeira, sentindo-se derrotada, e um pouquinho assustada.

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— Meu Deus — sussurrou para Amy. — Ela deve ter ouvido a gente falar daquela vaca

leiteira da Márcia.

— Ah, não! — disse Amy. — Sinto tanto. Rose cobriu os olhos com as mãos.

— Caramba, esse não é o tipo de coisa que O novo casamento judaico diz que alguém

deve falar no seu chá-de-panela.

— Apenas ignore ela — disse Amy, pegando a balança de alimentos. — Ei, você sabia

que o meu dedão pesa 113 gramas?

As duas encheram um táxi com os presentes de Rose, empilharam-nos em sua sala de

estar e depois seguiram para um bar próximo, onde afogaram sua agonia em mais drinques de

champanhe com suco de laranja e especularam durante quanto tempo Sydelle estivera guardando

todas aquelas fotos atrozes de sua enteada, e se ela tinha um show de slides semelhante já

preparado para o dia cm que Maggie se casasse, caso esse dia chegasse. Rose voltou para casa e

encontrou seu apartamento vazio. Simon deixara um bilhete dizendo que saíra para levar Petúnia

pura passear e comprar o jantar. Rose ficou parada de pé no centro da cozinha e fechou os olhos.

— Sinto falta da minha mãe — sussurrou.

E era verdade, de uma forma não específica. Não que ela sentisse falta de sua mãe; ela

sentia falta de qualquer mãe. Com uma mãe por perto, aquele chá-de-panela fracassado não teria

sido tão ruim. Uma mãe teria abraçado Rose e mandado Sydelle de volta para as profundezas

sulfurosas das quais viera. Uma mãe teria tocado a cabeça de Rose uma vez com sua varinha

mágica e transformado as roupas de Rose num vestido de casamento perfeito. Uma mãe teria

sabido como lidar com tudo aquilo.

— Sinto falta da minha mãe — repetiu. Mas ao dizer isso em voz alta, Rose percebeu que

sentia ainda mais falta de Maggie. Mesmo se Maggie não tivesse uma varinha mágica para criar

um vestido casamento ou mandar Sydelle para longe, ao menos teria feito Rose rir. Rose sorriu

um pouco, imaginando Maggie fazendo um brinde à base de champanhe com suco de laranja, ou

perguntando à "Minha Márcia" se ela podia pingar um pouco de leite de peito em seu café.

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Maggie saberia como lidar com aquela situação. E por mais que fosse duro admitir Maggie era

tudo que ela tinha.

— Tenho de sair daqui — sussurrou.

Rose tirou sua mala do armário e encheu-a com coisas que achava que iria precisar na

Flórida: shorts e sandálias, maiô e boné de beisebol, e um exemplar de A viagem de Virgínia,

que pegara emprestado com a mãe de Simon. Dez minutos na Internet renderam-lhe uma

passagem de duzentos dólares para Fort Lauderdale. Em seguida ela pegou o telefone e digitou os

números que tinham vindo na carta de Maggie, os números que ela nem percebera que decorara.

Quando sua irmã atendeu o telefone, Rose esqueceu o discurso que Amy ditara-lhe e disse

simplesmente:

— Maggie? Sou eu.

—52 52 52 52 —

uito bem — disse Maggie, — Todo mundo

em seus lugares! A Sra. Lefkowitz ficou

parada à esquerda do portão de embarque.

Lewis no centro. Ella estava ao lado dele. Maggie ficou andando de um lado para o outro na

cadeira de rodas motorizada da Sra. Lefkowitz, olhando atentamente para eles.

— Cartazes! — ordenou. Os três levantaram ao ar seus cartazes improvisados de boas-

vindas. O da Sra. Lefkowitz dizia "Bem-vinda", em cor-de-rosa. O de Lewis dizia "à Flórida", e o

de Ella, que a própria Maggie supervisionara, dizia "Rose". Quanto à própria Maggie, ela

carregava um cartaz com uma colagem de rosas feita de fotos que cortara das revistas de

jardinagem da Sra. Lefkowitz.

— M

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— Chegando agora, vôo 520 da Filadélfia — disse a voz no sistema de alto-falantes.

Maggie apertou o freio com tanta força que quase caiu da cadeira motorizada.

— Sabe o que mais? — disse ela. — Acho que seria melhor se vocês esperassem ao lado

da esteira de bagagens. — O quê? — perguntou Ella. — O que ela disse? —- perguntou a Sra.

Lefkowitz. Abaixando seu cartaz, Maggie falou depressa:

— É apenas que... antes de eu vir para cá... Rose e eu tivemos uma espécie de briga. E

talvez fosse melhor se eu conversasse com ela primeiro. Sozinha.

— Certo — disse Ella, conduzindo Lewis e a Sra. Lefkowitz até a esteira de bagagens.

Maggie respirou fundo, empertigou os ombros e levantou seu cartaz, perscrutando os

passageiros que desciam do avião.

Velha... velha... Mãe com neném. de colo, caminhando em passos de tartaruga... Onde

estava Rose? Maggie abaixou seu cartaz, enxugou as mãos nos shorts. Quando ela olhou de novo,

Rose estava passando pela porta, parecendo mais alta do que Maggie lembrava, e bronzeada, com

os cabelos soltos caídos nos ombros, afastados do rosto por dois prendedores. Estava com uma

camisa de malha cor-de-rosa e shorts cáqui, e Maggie pôde ver músculos movendo-se nas pernas

de sua irmã enquanto ela caminhava pelo saguão.

— Ei — disse Rose. — Belo cartaz. — Olhou sobre a cabeça da irmã. — E aí, onde está

a avó misteriosa?

Maggie sentiu uma pontada de mágoa. Rose não queria saber como ela estava? Ela não se

importava?

— Ella está próximo à esteira de bagagens. Deixe-me pegar sua mochila — disse ela.—

Foi só isso que trouxe? Você está com uma aparência realmente boa. Tem feito exercícios?

— Tenho andado de bicicleta — disse Rose. Ela caminhou pelo saguão, tão depressa que

Maggie teve de quase correr para acompanhá-la.

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— Ei, mais devagar!

— Quero ver a avó — disse Rose sem olhar para a irmã.

— Ela não vai para parte alguma — disse Maggie. Ela baixou os olhos para examinar os

sapatos de Rose e viu uma coisa brilhante na mão esquerda de sua irmã: uma aliança de platina

com um diamante.

— Meu Deus! Isso aí é um anel de noivado?

— É sim — disse Rose, ainda olhando direto para a frente. Maggie sentiu o coração

parar. Tanta coisa acontecera desde que ela partira, e ela não sabia nem a metade!

— É o...

— Cara diferente — disse Rose.

As irmãs chegaram ao terminal de bagagens. Ella, Lewis e a Sra. Lefkowitz olharam

incertos para Maggie. Lewis levantou seu cartaz.

— Lá está ela! — gritou Ella, e correu até suas netas, com Lewis e a Sra. Lefkowitz

correndo atrás dela.

Rose deu um passo para a frente e cumprimentou Ella com um meneio de cabeça,

enquanto examinava cuidadosamente o rosto da avó.

— Oi — disse Rose.

— Faz tanto tempo. Tanto tempo — disse Ella. Ela deu um passo para a frente e Rose,

constrangida, se deixou ser abraçada, ficando dura em meio ao abraço ardoroso de Ella. — Bem-

vinda, querida. Estou tão feliz que esteja aqui!

Rose concordou com a cabeça.

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— Obrigada. Isto é tudo meio estranho...

Ella observou cuidadosamente sua neta. Maggie, enquanto isso, retornara à sua posição

na cadeira motorizada da Sra. Lefkowitz, e estava dirigindo-a em pequenos círculos, parecendo a

menor Hell Angel do mundo enquanto bombardeava a irmã com perguntas e comentários.

— Com quem você vai casar? Onde comprou esses prendedores maneiros? Gostei do seu

cabelo! — Ela parou diante de Rose e baixou os olhos para os tênis que sua irmã estava usando.

— Ei, esses tênis não são meus?

Rose olhou para ela e abriu um leve sorriso.

— Você deixou eles no apartamento. Achei que você não estava precisando deles. E não

sabia para onde mandá-los. E eles cabiam em mim.

— Vamos — disse Maggie, acionando novamente a cadeira e conduzindo a irmã para

fora do aeroporto. — E me conte as novidades. Quem é o felizardo?

— O nome dele é Simon Stein — disse Rose. Ela se aproximou mais de Ella, inclinou sua

cabeça, deixando Maggie, Lewis e a Sra. Lefkowitz segui-las, tentando escutar fragmentos de sua

conversa.

Rose estava tão diferente! Ela não estava pálida; ela não parecia toda formal; não estava

com cara de alguém que estava com prisão de ventre e louca para achar um banheiro onde

pudesse tentar se aliviar. Suas roupas eram peças que Maggie' poderia ter escolhido, e seu passo

era rápido mas relaxado. Rose não parecia mais magra, mas parecia mais firme, como se a massa

tivesse sido redistribuída e rearranjada. Parecia totalmente à vontade com seu corpo, talvez pela

primeira vez em sua vida, e Maggie se perguntou o que teria causado uma transformação tão

extraordinária. Simon Stein, talvez? O nome parecia-lhe familiar. Maggie forçou o cérebro até

encontrar uma imagem da noite na casa de Dave e Buster, uma imagem de um sujeito de cabelos

desgrenhados vestido de terno e gravata, tentando convencer sua irmã a entrar no time de

softball da firma.

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— Ei, Rose! — chamou ela, alcançando as duas. As cabeças de Rose e Ella estavam bem

juntas, e elas falavam baixinho. Maggie sentiu uma pontada de ciúme. Ela engoliu em seco e

disse: — então, esse cara com quem você está casando. Ele trabalha no escritório de advocacia

também, né?

— Ele trabalha. Eu não — disse Rose.

— O quê? Você mudou de firma?

— Oh, eu mudei mais do que isso — disse Rose, e então deu as costas para a irmã e

continuou andando, com Ella ao lado.

Maggie observou-as, sentindo-se triste e frustrada... e sentindo que isto não era mais do

que ela merecia. Depois do que fizera a Rose, ela realmente achava que sua irmã correria para os

seus braços, preparada para perdoar e esquecer? Ela suspirou, segurou a mochila da irmã e

continuou a seguir as duas.

—53 53 53 53 —

ose Feller sentia-se como uma astronauta que havia feito uma

aterrissagem forçada num planeta novo e inexplorado. "Planeta Vovó",

pensou, enxugando a testa. Devia estar fazendo uns 32 graus aqui.

Como alguém podia agüentar?

Ela suspirou, reajustou a viseira que Ella emprestara-lhe e seguiu Maggie pela porta da

rua.

— Não esqueceremos! — gritou Ella. — Não vamos! — gritou Maggie em resposta, e

enfiou a mão no bolso para mostrar a Rose o tubo que estava carregando.

R

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Era estranho, pensou Rose, enquanto elas começavam a seguir a calçada escaldante que

corria ao longo dos gramados perfeitamente aparados (ainda que um pouco pequenos) de Golden

Acres. Mas nos meses que tinham se passado desde que a vira pela última vez, sua irmãzinha de

alguma forma transformara-se numa razoável cópia de um adulto responsável. E, ainda mais

intrigante, ela fizera amizade com pessoas idosas. Rose não entendia isso nem um pouco. Sua

própria experiência com pessoas acima dos 65 era limitada a reprises ocasionais de Supergatas, e

sua recém-descoberta avó fazia com que ela se sentisse um pouco desconfortável, do jeito que ela

a fitava, a cheirava, e parecia constantemente à beiradas lágrimas quando não estava

bombardeando Rose com um milhão de perguntas sobre sua vida. Como era seu apartamento?

Como ela e Simon haviam se conhecido? Quais eram suas comidas favoritas? Ela gostava de cães

ou gatos, ou nenhum dos dois? De que filmes gostara recentemente? Que livros havia lido? Era

como estar num encontro às cegas sem nenhuma promessa de romance, pensou Rose. Era

empolgante e também exaustivo.

Uma velhinha num triciclo enorme pedalou até elas.

— Maggie! — exclamou a velhinha.

— Oi, Sra. Norton — disse sua irmã. — Como está o seu quadril?

— Oh, bem, bem — disse a velha senhora.

Rose piscou contra o sol e tentou extrair sentido do que via e ouvia, mas a melhor

explicação à qual conseguiu chegar era que sua irmã tinha sofrido lavagem cerebral, ou que seu

corpo tinha sido invadido por alienígenas. E como ela conseguira sobreviver aqui sem um

suprimento contínuo de homens que não tivessem marca-passos ou bisnetos? Quem estava

flertando com ela? Quem estava lhe pagando drinques e lhe dando dinheiro para o cabeleireiro e

a manicure? Quem estava confirmando a opinião de Maggie sobre seu valor e beleza? Rose

balançou a cabeça, não acreditando em tudo aquilo. Cumprimentou a Sra. Norton e seu quadril, e

seguiu sua irmã até a piscina. Ela planejara ficar furiosa com Maggie, mas agora apenas sentia-se

confusa, como se a garota que ela estivera disposta a matar não existisse mais.

— Certo, pode me explicar isso de novo? — pediu Rose

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— Essa é a minha turma de amigos da piscina — disse Maggie. Dora é fácil, porque é a

única mulher, e ela fala pelos cotovelos.

— Dora — repetiu Rose.

— Ela foi uma das minhas primeiras clientes — prosseguiu Maggie.

— Clientes? — perguntou Rose. — O que você está fazendo, massagem?

— Não, não — disse Maggie. Compras particulares. — Ela enfiou a mão no bolso e tirou

um dos cartões de visita que a Sra. Lefkowitz fizera com seu computador. "Maggie Feller,

Compradora Particular, Suas Coisas Favoritas", estava escrito. — Com meus clientes a primeira

coisa que faço é perguntar qual foi sua peça de vestuário favorita, e então, quando faço compras

para eles, tento reproduzir o sentimento que essa peça gerava. Por exemplo, a sua peça favorita

era um vestido de linho azul, mas eu não necessariamente compro para você um vestido de linho

azul, mas tento achar alguma coisa que faça você se sentir como quando o vestiu.

— Fantástico — disse Rose. E ela precisava admitir que parecia realmente bom. Se havia

uma coisa em que Maggie sempre fora boa, era escolher roupas. — Então, quem mais vamos

ver?

— Bem, tem o Jack, que eu acho que arrasta uma asa pela Dora, porque insulta ela o

tempo todo. E ele que é o contador aposentado que vai me ajudar com o Suas Coisas Favoritas.

E também tem o Herman — prosseguiu Maggie. — Ele não é de falar muito, mas é muito

gentil... e obcecado por tatuagens.

— Ele tem alguma?

— Acho que não — respondeu Maggie. — Não fiz exatamente um estudo. Mas eles

sabem tudo sobre você.

Rose tentou adivinhar o que isso significava exatamente. O que Maggie havia dito sobre

ela?

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— O que eles sabem sobre mim?

— Coisas normais. Onde você mora, o que faz. Teria contado que você está noiva, mas

isso também foi novidade para mim. Quando vai ser o casório?

— Maio.

— E como está indo o planejamento? Tudo sob controle? — Rose sentiu-se enrijecer.

— Está indo bem — respondeu sucinta. Maggie pareceu magoada, mas em vez de fazer

um comentário malcriado ou dar as costas para ela e ir embora, simplesmente deu de ombros.

— Bem, se você precisar de ajuda, sou uma profissional.

— Vou considerai isso — disse Rose.

E então elas chegaram à piscina. Jack, que era alto e bem queimado de sol, franziu os

olhos para vê-las. Dora, que era baixa e roliça e falava depressa, acenou freneticamente. E

Herman pôs-se a examinar cuidadosamente os braços e pernas nuas de Rose, indubitavelmente

procurando por modificações corporais. Maggie acenou e seguiu na direção deles. Rose balançou

a cabeça, incrédula, e estendeu uma toalha sobre uma das cadeiras de metal reclináveis. "Relaxe",

disse severamente a si mesma, ajustando o rosto num sorriso e cruzando o concreto quente para

encontrar-se com os novos amigos de Maggie.

— Vocês duas vão ficar bem aqui? — perguntou Ella. O sofá-cama, que fora suficiente

para Maggie, subitamente pareceu pequeno demais, agora que as duas mulheres iriam

compartilhá-lo.

— Ficaremos bem — garantiu Rose, estendendo um lençol limpo sobre a cama. Ela ainda

estava se sentindo entorpecida e grogue (e ligeiramente queimada) devido ao seu primeiro dia na

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Flórida. Ela e Maggie tinham ficado de papo para o ar na piscina, e então saído para jantar cedo

com Lewis, que era muito gentil, e Ella, que continuava olhando para Rose de uma forma muito

desconcertante. Depois do jantar eles tinham assistido a uma hora de televisão, e estavam agora

no pequeno quarto dos fundos. Rose viu que Maggie se apoderara do local, do mesmo jeito que

invadira o apartamento de Rose, transformando tanto o quarto quanto a varanda num misto de

escritório com boudoir. Havia um manequim de costureira que Maggie comprara num brechó e

cobria com trapos de tecidos diversos: um pedaço de seda cor de marfim, outro de gaze cor de

ameixa. E às pilhas de roupas e cosméticos que Rose conhecia tão bem juntara-se outra

completamente desconhecida: de livros. Rose pegou um Viagens, por W. S. Merwin. Ela lembrava

de tê-lo lido na faculdade, e folheou páginas marcadas nas bordas, muitas delas decoradas com a

caligrafia descuidada de Maggie.

— Você anda lendo poesia? — perguntou Rose. Maggie assentiu orgulhosamente.

— Eu gosto— respondeu. Ela pegou um livro na pilha. — Este é de Rilki.

— Rilke — corrigiu Rose.

— Ou isso — disse Maggie. Ela pigarreou. — "Um poema de boa-noite" — disse ela, e

começou a recitar:

"Quero alguém para acalentar,

Para sentar ao lado, imóvel.

Quero embalar-te, murmurar uma canção.

Conduzir-te à fronteira do sono.

Ser o único acordado na casa.

Que sabe que a noite é fria.

Quero ouvir por dentro e por fora

De você, do mundo, das florestas.

O carrilhão do relógio canta.

E você vê o fundo do tempo.

Na rua lá embaixo passa um estranho.

E importuna um cão vadio.

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Por trás vem o silêncio.

Pouso meus olhos em você

Como uma mão aberta,

E eles te seguram com carinho no colo

E te deixam partir,

Quando uma coisa se move no escuro."

Maggie meneou a cabeça, satisfeita comigo mesma, enquanto Rose fitava-a, boquiaberta.

— Como você... Onde você.,. — Ela piscou enquanto olhava sua irmã. Quando você

teve seu corpo invadido por uma alienígena, pensou de novo. De algum modo, a alma

gananciosa, obsessiva, cleptomaníaca e sedenta por fama de Maggie fora sugada e substituída por

Rilke.

— Gosto particularmente da frase sobre o cão vadio — disse Maggie. — Me faz lembrar

de Pão de Mel.

— Me faz lembrar de Petúnia — disse Rose. — A pug que você deixou no apartamento.

— É mesmo! — exclamou Maggie. — Como ela está?

— Ela está bem — disse Rose sucintamente, lembrando-se de como Maggie deixara-a

com a responsabilidade pela cachorra, e a bagunça, e a inapagável imagem mental dela na cama

com Jim Danvers. Ela escovou os dentes, lavou o rosto, deitou-se na cama de costas para a irmã

e segurou com força a borda da manta.

— Vê se não me chuta — alertou Maggie. — Ou melhor, tente não fazer nenhum

contato físico comigo.

— Sem problema — disse Rose. — Boa noite.

— Boa noite — disse Maggie.

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Silêncio, exceto o coaxar dos sapos. Rose fechou os olhos.

— E então! — disse Maggie animadamente. — Vai se casar com Simon Stein!

Rose gemeu. Ela esquecera este detalhe sobre Maggie, como ela dizia que ia dormir,

deitava-se na cama, apagava as luzes, bocejava, espreguiçava-se, e quando você achava que ela

havia adormecido, iniciava uma conversa.

— Já não cobrimos esse assunto no jantar? Maggie ignorou-a.

— Me lembro dele naquela festa — disse ela. — Ele era bonitinho! Baixo, mas bonitinho.

Me conta que tipo de casamento vocês vão ter.

— Pequeno — disse Rose, que decidira que quanto mais fosse econômica nas respostas,

melhor ficaria. — Sydelle está ajudando.

— Oh, não. Desastre esperando para acontecer. Lembra-se do casamento de "Minha

Márcia"?

— Vagamente — respondeu Rose. — Eu só compareci à cerimônia. — Sydelle, com sua

consideração habitual, programara o casamento de "Minha Márcia" para o fim de semana das

provas finais da faculdade de direito. Rose assistira aos votos, e então saíra discretamente e

voltara para casa, para estudar.

— Meu Deus! — exclamou Maggie. — Poderia ter sido um especial da Fox, Os piores

casamentos dos Estados Unidos.

— Vi fotografias. Pareceu lindo. — Mas Rose estava começando a ter a incômoda

impressão de que acontecera alguma coisa nas núpcias de "Minha Márcia", alguma coisa sobre a

qual seu pai e Sydelle não haviam falado.

— Você notou que nenhuma das fotos mostrava os pés das pessoas? Rose não conseguia

lembrar.

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— Vou te dizer por quê — disse Maggie. — O casamento foi no jardim atrás daquele

clube de campo chiquérrimo, lembra?

— O Silver Glen.

— Silver Glen, Silver Lake, Silver qualquer coisa — disse Maggie com impaciência. — E

era realmente bonito: jardins, gramados... exceto que os sprinklers automáticos deram defeito, e o

piso da tenda não era coberto. Assim, o chão ficou todo cheio de lama. As mesas começaram a

afundar, e estava fazendo um frio danado...

— Você esta brincando — disse Rose.

— Não estou não! — disse Maggie alegremente. — "Minha Márcia" estava se derretendo

em lágrimas no banheiro. — Maggie levantou a voz para um lamúrio histérico. — "Meu dia

especial arruinado! Arruinado"!

— Meu Deus! —exclamou Rose, que estava começando a se sentir enjoada... e a nutrir

um certo grau de simpatia por "Minha Márcia".

— E há mais — disse Maggie. — Sydelle esqueceu-se de contratar manobristas para o

estacionamento e o tempo todo os convidados precisavam sair correndo para mover seus carros.

E então os sprinklers dispararam de novo, no meio da primeira dança dos noivos, e todo mundo

saiu correndo. E ainda por cima eles se esqueceram de marcar um lugar para mim, de modo que

tive de sentar com a banda. Em vez de ser servida pelos garçons, passei a noite comendo

salgadinhos numa quentinha.

Rose decidiu que a ausência de Maggie do mapa de lugares provavelmente não fora

acidental, mas preferiu ficar calada.

— Foi um show de horrores — concluiu alegremente Maggie. — Mas a bebida era livre,

e isso foi a única coisa boa. Enchi a cara.

— Tenho certeza — disse Rose. — Aliás, nessa época você já tinha feito 21 anos?

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— Nem estava perto — disse Maggie. — E então, o que mais você conta?

— Não muito — disse lentamente Rose. Ela sabia que não era verdade, mas por que

informar a Maggie a respeito de seu chá-de-panela desastroso, sua briga com o pai delas, o

encontro tumultuado com Jim Danvers? Ainda não era hora. Ela ainda precisava descobrir o que

ocasionara a transformação milagrosa de sua irmã numa mulher adulta responsável, sem sede por

atenção, firme no emprego, e amiga dos cidadãos idosos de Golden Acres.

— Conte mais sobre o seu casamento. Você vai ter damas de honra? Houve um silêncio

curto e tenso.

— Só a Amy, acho — disse Rose. — E você também, acho. Se você quiser.

— Você quer que eu seja dama de honra?

— Eu não me importo muito com essas coisas. Se você quiser ser, será.

— Bem, o casamento é seu — disse Maggie. — Você devia se importar.

— É isso que todo mundo fica me dizendo — disse Rose. — Bem, boa noite então —

disse Maggie.

— Boa noite — disse Rose.

— Boa noite — disse Maggie.

Silêncio.

— Rose? — disse Maggie. — Ei, Rose, pode me arranjar um copo d'água com um cubo

de gelo, por favor?

— Vá pegar sua própria água — disse Rose. Mas mesmo enquanto dizia isso, ela jogou as

pernas para fora da cama, percebendo que esquecera este fato, também; ela sempre pegava a água

de Maggie. Ela levava-lhe água desde que elas eram bem pequenas. Ela suprira Maggie com sua

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bebida noturna quase todas as noites durante a temporada de Maggie em seu apartamento. E,

provavelmente quando elas estivessem com oitenta anos, depois que tivessem enterrado seus

maridos, largado seus empregos e se mudado para a versão de 2060 de Golden Acres, ela ainda

estaria levando para a irmã seu copinho de água com um cubo de gelo.

Quando Rose voltou para a cama, havia uma coisa reluzindo em seu travesseiro. Ela

olhou cuidadosamente para a coisa, temendo que fosse algum tipo de inseto. Mas não era um

inseto. Era um quadrado embrulhado em papel-alumínio.

— Como nos melhores hotéis — disse Maggie.

— Vá dormir — disse Rose.

— Tá bem, tá bem — disse Maggie. Mas antes de finalmente fechar os olhos, ela pousou

o chocolate na mesinha de cabeceira, para que fosse a primeira coisa que sua irmã visse pela

manhã.

Em seu quarto, Ella liberou a respiração que estivera prendendo, sem perceber, e afundou

em sua cama. Seu cérebro girava com perguntas. Quem era essa tal Sydelle? E "Minha Márcia"?

Por que Rose não conversava direito com Maggie? Por que Maggie parecia tão desesperada por

agradar à irmã mais velha? Será que Rose realmente não incluiria Maggie em sua cerimônia de

casamento? E a própria Ella, seria ao menos convidada?

Ela mordeu o lábio e fechou os olhos. Havia uma história aqui. Ella tinha certeza. Havia

um motivo para Maggie ter deixado o apartamento de Rose e partido para Princeton, um motivo

para ela não ter falado com sua única irmã em dez meses. "Dê-lhes tempo", dissera-lhe Lewis.

— Vou tentar — sussurrou Ella para si mesma, e soprou dois beijos para a parede do

quarto de suas netas.

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—54 54 54 54 —

ose enfiou uma das mãos, cobertas por luvas, numa panela cheia de

coxas de peru cozidas, extraiu uma delas e começou a puxar a carne

dos ossos.

— Muito obrigada por ter vindo ajudar — disse Ella, que estava ao lado de Rose,

descascando cenouras, na sala de recreação da sinagoga onde todas as sextas-feiras servia-se

almoço para moradores de rua. Tem certeza de que não se importa de fazer isso aí?

— Tudo bem. É melhor do que descascar cebolas.

— Oh, e como! —disse Ella, arrependendo-se imediatamente de seu tom excessivamente

entusiasmado. Ela voltou a se concentrar nas cenouras, esforçando-se ao máximo para não fitar

sua neta.

Rose passara três dias na Flórida e ainda era um mistério para Ella. Rose respondera a

todas as perguntas de Ella completa e educadamente, e também fizera muitas perguntas próprias,

em sua maioria tão bem formuladas que era possível ver que fazer perguntas era parte da

profissão de Rose. Ou parte de sua ocupação anterior considerando que Rose dissera que estava

dando um tempo da vida jurídica.

— Como assim, dando um tempo? — perguntara Maggie.

— Exatamente o que eu disse. Dando um tempo — dissera Rose, sem olhar para a irmã.

Ella sabia que alguma coisa acontecera entre as duas irmãs, mas não conseguia descobrir o quê, e

Maggie nem tocava no assunto enquanto arrastava sua irmã por Golden Acres como uma

cachorrinha perdida.

R

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Rose tirou as luvas, colocou as mãos nos quadris e se espreguiçou, virando o pescoço de

um lado para o outro. Mesmo com uma rede de cabelo, sua neta era linda, decidiu Ella. Rose

tinha a aparência que Ella imaginava para uma heroína bíblica: alta, forte e um tanto severa, com

ombros poderosos e mãos capazes.

— Você está bem? — perguntou Ella. Rose suspirou.

— Bem, acabei o peru.

— Vamos fazer uma pausa — disse Ella.

As duas caminharam até uma mesa de carteado no canto, à qual estava sentada a Sra.

Lefkowitz, lendo o último número de Hello! (porque, como ela dizia, as fofocas da Inglaterra

eram sempre mais interessantes).

— A noiva! — exclamou em saudação a Rose. Rose abriu um leve sorriso e sentou-se

numa cadeira dobrável.

— E então, fale sobre o casamento — disse a Sra. Lefkowitz. — Já comprou o vestido?

Rose estremeceu.

— O casamento. Bem... Sydelle está ajudando.

— O que é uma Sydelle?

— Minha madrasta — disse Rose. — A Cruella de Vil de Cherry Hill. — Olhou para

Ella. — Como foi o casamento da minha mãe?

— Pequeno — disse Ella. — Os dois planejaram tudo sozinhos. Eles se casaram no

gabinete do rabino, numa tarde de quinta-feira. Eu quis ajudar... quis fazer o casamento para ela...

mas Caroline não queria muita coisa, e seu pai não queria nada que Caroline não quisesse.

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— Essa história me parece familiar — comentou Rose. — Meu pai é um... — Sua voz

sumiu na garganta. — Ele não é uma pessoa de vontade muito forte.

Exceto quando me cortou da sua vida, pensou Ella. Mas em vez disso ela preferiu dizer:

— Ele amava a sua mãe. Qualquer um que visse os dois juntos percebia isso. Ele tentava

cuidar dela, deixá-la feliz.

— Quero falar sobre o seu casamento! — disse a senhora Lefkowitz deixando de lado o

relato da última briga de Fergie. — Conte-me tudo!

Rose suspirou.

— Não tem muito para contar. Na verdade, está sendo preparado por um monstro, que

me ignorou completamente quando eu disse que Simon e eu queríamos, e insiste em empurrar

suas idéias pelas nossas gargantas.

— Um limão — disse a Sra. Lefkowitz.

— Hein?

— Pense numa fruta — continuou. — Quando você espreme uma laranja, o que você

obtém?

Rose sorriu.

— Problemas?

— Não, não, Srta. Esperta. Você obtém suco de laranja. Você não obtém suco de toranja

ou suco de maçã. Você não obtém leite. Você obtém suco de laranja. Todas as vezes. As pessoas

são assim. Elas só podem lhe dar o que elas têm dentro. Então, se essa tal Sydelle está arrumando

tantos problemas para você, é porque ela só tem problemas dentro ela. Ela está apenas dando

para o Universo o que existe dentro do coração dela. — E a Sra. Lefkowitz se recostou, satisfeita

com sua preleção.

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— Onde a senhora aprendeu isso? — perguntou Ella.

— Dr. Phil — respondeu a Sra. Lefkowitz.

Ella anotou mentalmente que precisava descobrir quem era o Dr. Phil.

— E então, que tipo de fruta é Maggie? — perguntou Rose.

— Uma fruta doce — disse a Sra. Lefkowitz. Rose riu.

— Se é isso que a senhora acha, então não conhece muito bem a minha irmã.

— Ela não é doce? — perguntou Ella. Rose se levantou.

— Ela rouba coisas — disse Rose.

Finalmente, pensou Ella, enquanto Rose punha-se a caminhar de um lado para outro.

Finalmente vamos chegar à raiz do problema e descobrir o que aconteceu de errado.

— Ela rouba tudo — prosseguiu Rose, voz arranhando na garganta. — Vocês não

notaram? Minha irmã se acha no direito de ficar com as coisas dos outros. Roupas, sapatos,

dinheiro, carros... outras coisas.

Outras coisas, pensou Ella.

— Não me diga que esse tempo todo que ela esteve aqui você não notou pela falta de

nada.

— Eu acho que não — disse Ella,

— Não temos nada que ela queira — disse a Sra. Lefkowitz. Rose balançou a cabeça.

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— Vá entender — disse ela. — Talvez depois de sair da minha casa Maggie tenha entrado

nos eixos.

Outras coisas, pensou novamente Ella, e tentou adivinhar o que seria isso.

— O que Maggie tomou de você? Abruptamente, Rose virou a cabeça para a sua avó.

— Hein?

Ella repetiu a pergunta.

— Acho que ela tomou alguma coisa que significava muito para você. O que foi?

— Nada — disse Rose. E agora ela não apenas parecia zangada, mas furiosa. Com

Maggie, pensou Ella. E talvez também com ela. — Nada que importe muito.

— Querida — disse Ella, tocando a mão da neta. Rose ignorou-a.

— Eu acho que Maggie está bem — prosseguiu Ella, aproximando-se desesperadamente

da neta. — Ela está economizando dinheiro, e acho que a idéia do negócio dela é boa. Ela tem

encontrado roupas para muitas pessoas que nós conhecemos. Dora, Mavis Gold...

— Mas é melhor tomar cuidado — aconselhou Rose, — Se ela ainda não tomou nada

seu, isso não significa que não fará. Ela pode parecer um doce, mas não é. Nem sempre.

E Ella sentou-se, boquiaberta, sem ação, enquanto Rose caminhava até a porta.

—55 55 55 55 —

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ois dias depois, Maggie observava Rose dormir na cadeira reclinável ao

seu lado.

— Ela está cansada — observou Dora.

— Sua percepção é extraordinária — disse Jack.

— Ela parece uma boa pessoa — disse Herman, num dos seus raros comentários sobre

qualquer coisa que não fosse tatuagem.

— Ela é uma boa pessoa — disse Ella. Maggie suspirou.

— Acho que ela vai para casa — disse Maggie. Naquela manhã, enquanto saía do

chuveiro, Maggie ouvira Rose falar ao telefone com alguém que devia ser Simon. Rose

desculpara-se e pedira-lhe que lhe reservasse um vôo de volta para a Filadélfia.

Mas Rose não podia partir. Não deste jeito. Não sem que Maggie a convencesse de que

realmente mudara, de que realmente estava melhorando como pessoa e de que realmente estava

arrependida das coisas que fizera.

Maggie rolou para o lado, pensando. Rose precisava de paz e tranqüilidade, e Maggie

obrigara-a a cochilar todos os dias, descansar à piscina, caminhar à noite depois do jantar, Maggie

providenciara para que Ella tivesse em estoque os alimentos favoritos de Rose, incluindo os

salgadinhos de queijo e o sorvete que Rose consumia em segredo. Ela sempre deixava que sua

irmã ficasse com o controle remoto quando assistiam à TV e não se queixava quando Rose

folheava seus livros da biblioteca em busca de poemas dos quais lembrava dos tempos de

faculdade. Mas nada disso parecia estar funcionando. Rose permanecia perto de Ella, fazendo-lhe

perguntas sobre sua mãe, olhando fotos, acompanhando-a em seus passeios. As duas pareciam

grudadas uma na outra. E Rose não estava inclinada a abrir espaço para Maggie. Maggie,

evidentemente, ainda não fora perdoada. E Maggie não tinha a menor idéia de como ser

perdoada, exceto dizendo a Rose que ela sentia muito. O que ela fizera repetidas vezes, em vão.

Devia haver alguma coisa que pudesse dar a Rose, alguma ação que pudesse realizar para

convencer sua irmã de que ela estava arrependida e de que seria uma pessoa melhor dali por

diante.

D

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Bem, pensou, deitando de bruços, pelo menos Rose tinha arrumado outro namorado. Um

futuro marido. Um casamento que ela provavelmente estava planejando com toda a eficiência

implacável que antes dedicara à sua carreira. Maggie imaginou a lista de convidados numa

planilha. Uma tabela gerada por computador. Um florista cultivando as rosas perfeitas para seu

buquê. Mas e quanto ao vestido de casamento? Maggie sentou-se tão depressa que derramou sua

água, fazendo Dora soltar um gritinho, Jack xingar e Ella passar-lhe uma toalha.

— Ei, Rose! — gritou Maggie. Rose acordou de sopetão e olhou sonolenta para Maggie.

— Já tem vestido de casamento?

A irmã fechou os olhos novamente.

— Estou procurando — disse Rose.

— Volte a dormir — disse Maggie. Era perfeito! Se ela pudesse encontrar para Rose o

vestido de casamento certo... bem, isso não consertaria tudo, mas seria um começo. Mais que um

começo... seria um sinal, um sinal de que Maggie era sincera, de que Maggie queria o melhor para

sua irmã.

Além disso, quanto mais pensava no assunto, encontrar o vestido perfeito para sua irmã

seria simbólico. Ela lembrou de sua aula intitulada "A fabricação do mito", quando o professor

falara sobre buscas sagradas, de como o herói tivera de sair para o mundo e retornar com alguma

coisa: uma espada, um cálice, um sapato de vidro, feijões encantados. Sir Gawain e o cavaleiro

verde, dissera o professor. "João e o pé de feijão". O senhor dos anéis. "E o que esses objetos

simbolizavam?", perguntara o professor. "Conhecimento". Depois que adquire este

conhecimento, o herói pode viver feliz no mundo. Bem, Maggie não era uma heroína, e

certamente não entendia toda aquela conversa sobre conhecimento pessoal e simbolismo, mas

era uma compradora fabulosa. Conhecia estilo, e mais, conhecia sua irmã. Ela podia encontrar

um vestido para Rose.

Maggie abriu sua agenda de compromissos. Estava muito ocupada com a festa de

aniversário dos Lieberman se aproximando e a partida da Sra. Gantz em seu cruzeiro, mas ela

poderia reajustar seu cronograma. Por onde começaria? A seção de noivas da Saks, primeiro, para

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inspirar-se. Eles provavelmente não teriam nada do tamanho de Rose, mas pelo menos ela

poderia ver o que eles estavam exibindo. Depois que tivesse uma noção do que estava

procurando, visitaria suas três lojas de consignação favoritas. Ela vira vestidos de casamento em

todas elas, olhara-os casualmente enquanto buscava outros ítens, mas tinha certeza de que os vira

e...

— Ei! — exclamou Maggie, tentando soar casual. — Ei, Rose, por quanto tempo você

acha que ainda vai ficar?

— Até segunda — disse Rose.

Rose se levantou da cadeira, caminhou lentamente até a piscina e mergulhou. Isso dava

quatro dias a Maggie. Ela poderia encontrar um vestido de casamento — o vestido certo de

casamento — em quantos dias? Não tinha certeza. Teria de começar imediatamente.

— Qual foi a sua coisa favorita? — perguntou Maggie à irmã. — A sua coisa de vestir

favorita.

Rose nadou até a beira da piscina e enganchou os braços no peitoril.

— Gostava daquele meu suéter azul com capuz. Lembra dele?

Maggie fez que sim, seu coração afundando. Ela lembrava muito bem do suéter com

capuz, porque Rose usara-o praticamente sem parar durante todo o último ano do primeiro grau.

"Eu gosto dele" repetia Rose, teimosa, quando o pai tentava obrigá-la a tirá-lo para lavar.

— Você usou aquilo até ele se desmanchar — disse Maggie.

Rose fez que sim com a cabeça.

— O velho azulão — disse ela, carinhosamente, como se estivesse falando de um

cachorro ou de uma pessoa em vez de um suéter.

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Maggie sentiu seu coração afundar ainda mais. Como poderia encontrar um vestido de

casamento a partir de um suéter azul com um zíper na frente?

Ela teria de começar do básico. E, se tinha apenas quatro dias, precisaria de ajuda.

Enquanto Rose nadava, Maggie chamou com um gesto Dora, Ella e Lewis.

— Preciso que vocês me ajudem com um projeto — sussurrou.

Olhos reluzindo, Dora arrastou sua cadeira para mais perto de Maggie.

— Ora, que notícia maravilhosa! — disse ela.

— Vocês nem querem saber o que é? — perguntou Maggie. Dora olhou para Lewis.

Lewis olhou para Ella. Os três olharam para Maggie e solenemente balançaram suas cabeças.

— Estamos entediados — disse Dora. — Dê alguma coisa para a gente fazer.

— Deixe-nos ajudar — disse Ella.

— Ótimo — disse Maggie, virando para uma folha em branco de seu caderno e

mentalmente mapeando seu curso de ação. — Vamos precisar agir da seguinte forma...

—56 56 56 56 —

ocê está pronto? — perguntou Ella, remexendo em

sua pasta de cartolina cheia de páginas

datilografadas. — Você vai querer se sentar?

—V

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— Estou velho — disse Lewis. — Eu sempre quero me sentar. Ele puxou uma cadeira

atrás de sua escrivaninha no escritório da Golden Acres Gazette e olhou ansioso para Ella. Ella

pigarreou e olhou para Maggie. Maggie dirigiu-lhe um sorriso encorajador, e Ella começou a ler o

poema que ela e Maggie tinham escrito em parceria, intitulado "O uivo para o cidadão da terceira

idade".

"Vi os expoentes de minha geração destruídos

pela terceira idade, dispépticos, esquecidos, poliesterizados,

arrastando-se às quatro da tarde para vagas de deficientes,

procurando o restaurante que abra mais cedo para o jantar."

— Oh, não — disse Lewis, tentando não rir. — Vejo que vocês descobriram Allen

Ginsberg.

— Descobrimos sim — disse Maggie com orgulho. — Mesmo assim, é uma obra original

e eu tenho direito de assiná-la — disse Maggie.

— E eu também — acrescentou Ella.

— Certo, certo. Como quiser

— Como está indo a missão super-secreta? — perguntou Lewis.

O rosto de Maggie desmoronou.

—Está sendo mais difícil do que eu pensava — reconheceu. — Mas acho que vamos

conseguir. Você ainda quer nos ajudar, certo?

— Mas é claro — disse Lewis.

Maggie fez que sim com a cabeça, caminhou até a mesa e pegou sua bolsa.

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— Preciso ir — disse ela. — A Sra. Gantz está esperando suas roupas de banho. Vejo

vocês de volta no apartamento às quatro.

Com um sorriso, Ella observou sua neta se afastar.

— E então, minha querida — disse Lewis —, como está a vida de avó?

— Boa — disse ela. — Bem, de certa forma, melhor. Maggie está se saindo muito bem.

Os negócios dela estão decolando. Ela passa a maior parte do tempo ocupada.

— E Rose?

— Bem, acho que os preparativos para o casamento a estão enlouquecendo. E acho que

Maggie também a tira dos eixos. As duas gostam uma da outra, se gostam muito. Bem, pelo

menos eu sei disso.

Ella lembrou-se da forma como, nos meses antes da chegada de Rose, ela aparecia em

momentos inesperados da conversa de Maggie — e jamais era citada pelo nome. Ella notara que

Maggie chamava-a de "minha irmã". Como em "Minha irmã e eu costumávamos ir a jogos de

futebol com o meu pai". Ou "Minha irmã e eu costumávamos dividir o quarto, porque quando

redecorou a casa, Sydelle, a Terrível, me fez sair do meu quarto e ir para o de Rose". Ella

conservava na memória cada pequena menção, cada fragmento de conversa, cada lampejo que

obtinha das duas enquanto menininhas, especialmente nos primeiros dias de Maggie na Flórida,

quando Maggie quase não abria a boca para falar, Ella praticamente podia vê-las às vezes, no

quarto com duas camas gêmeas, Rose deitada de barriga no chão, debruçada sobre — o quê? Um

livro da Nancy Drew, decidiu Ella. Aquilo lhe pareceu possível. E Maggie, uma coisinha fofa

usando — o que? Um macacão, pensou Ella.

Maggie pulando de uma cama para a outra, até suas pernas vermelhas e seus cabelos

castanhos virarem um borrão, gritando: "A raposa! Marom! E veloz! Pulou! Sobre o cachorro

preguiçoso!"

— Eu queria... — disse Ella, e então fechou a boca. O que ela queria? O que ela queria?

— Eu queria poder acertar tudo entre as duas. Eu queria poder dar a Maggie a vida que ela quer e

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ensinar a Rose como lidar com sua madrasta, e simplesmente... — Ella levantou a mão esquerda,

brandiu-a como se fosse uma varinha mágica. — Consertar as coisas. Consertar tudo para elas.

— Bem, não é isso que os avós fazem — comentou Lewis.

— Não é? — perguntou taciturnamente. Lewis fez que não com a cabeça.

— E o que os avós fazem? — perguntou Ella, lamentando por todos os anos que passara

achando ter descoberto a resposta.

Lewis olhou pensativo para o teto.

— Acho que eles lhe dão amor incondicional, e ocasionalmente ajuda financeira. Eles

oferecem aos netos um lugar onde ficar quando precisam e tentam não dizer a eles o que devem

fazer, porque isso já ouvem demais dos pais. Eles deixam seus netos descobrirem as respostas

sozinhos.

Ella fechou os olhos.

— Será que Rose me odeia? — disse tão baixinho que Lewis quase não a ouviu. Ella não

dissera a ele, nem a Maggie, ou a qualquer um como ficara a um só tempo jubilosa e aterrorizada

na primeira vez em que vira Rose; como parte dela ainda estava esperando que Rose lhe fizesse as

perguntas que ela não podia responder.

— Como alguém poderia odiar você? — perguntou gentilmente Lewis. —Você está se

preocupando demais. Elas são mocinhas muito inteligentes. Elas não vão culpar você por não

estar lá porque isso não era culpa sua. E elas não podem esperar que você conserte tudo para

elas. Ninguém poderia fazer isso.

— E eu estarei errada se tentar? — indagou Ella. Lewis sorriu para a namorada e segurou

sua mão.

— Não — disse ele. — Isso apenas me fará amar você ainda mais.

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—57 57 57 57 —

primeiro problema era tentar achar um vestido de casamento que

pudesse ser comprado pronto. Maggie descobriu na manhã seguinte que

eles eram vendidos em apenas dois números, nenhum dos quais do

tamanho que ela achava que sua irmã vestia.

— Tamanhos de amostra — explicou a atendente entediada, quando Maggie pediu para

ver alguma coisa que não fosse tamanho M. — Você vai ter de experimentar eles, descobrir qual

gosta e nós faremos um pedido do seu tamanho.

— Mas e se não usar tamanho M? — perguntou.

— Se o vestido for grande demais, a gente aperta com alfinete — disse a atendente.

— Mas e se for pequeno demais? — perguntou Maggie, tateando os vestidos e

percebendo que não havia como eles caberem em sua irmã.

A atendente deu de ombros e rabiscou um nome e um endereço num pedaço de papel.

— Eles vêm em tamanhos maiores.

E a loja seguinte — uma filial de uma grande cadeia de vestidos de noiva — realmente

tinha tamanhos maiores, pendurados em sua seção apropriadamente denominada "Divas".

— Elas vêm com sua própria trupe? — perguntara Ella. Maggie não tinha certeza sobre

trupes. Mas tinha certeza de que os vestidos eram horrorosos.

— Que tal este? — disse Ella, mostrando a Maggie o centésimo vestido com corte em

"A" que elas encontravam. Este vinha com ramalhetes de flores de seda no busto.

O

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— Não é ruim — disse Maggie. — É adequado. Mas eu queria achar um que fosse

perfeito, e não estou com muita fé neste lugar. — Ela suspirou, apoiando-se numa vitrine de ligas

em promoção nem tenho certeza do que é a coisa certa. Acho que vou saber quando vir, mas não

tenho certeza se vou ver!

— Bem, do que a Rose gosta? — perguntou Ella.

— Rose não sabe do que gosta — disse Maggie. —A peça de roupa favorita dela era um

suéter azul com capuz com um zíper na frente! — Ela suspirou de novo. — Acho que devia

começar a falar com costureiras. — Ela balançou a cabeça. — Bem, talvez ela dê sorte. — Ela

olhou para a loja ao seu redor. — Mas não aqui. Onde está o Lewis?

Acabaram descobrindo Lewis no provador dos fundos, oferecendo críticas prestativas a

noivas.

— Eu não sei — disse uma ruivinha num vestido bufante. — Você acha que ele está

grande demais para mim?

Lewis olhou cuidadosamente para ela.

— Vista de novo o terceiro, aquele com costas baixas. — Aconselhou. — Ainda é o meu

favorito.

Uma garota negra com conchinhas e contas nas trancas cutucou o ombro de Lewis, que

se virou.

— Definitivamente é este — disse Lewis, meneando a cabeça em aprovação.

— Lewis! — chamou Maggie. — Estamos indo!

Um coro de queixas se elevou de meia dúzia de provadores.

— Não! Ainda não! Só mais um vestido! Lewis sorriu.

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— Parece que descobri que tenho talento para isso. Maggie talvez você possa me

contratar.

— Negócio fechado — disse Maggie. — Mas temos dois dias até Rose ir embora e nada

de vestido ainda. Assim, precisamos, continuar procurando. Vamos nessa.

Mais tarde Maggie e Ella voltavam para Golden Acres em meio ao ar noturno carregado

de orvalho, o canto das cigarras, e decepção. O vestido que eles tinham ido longe para ver

revelara-se um desastre: a mistura de poliéster com seda reluzente demais, o decote fundo

demais, as contas em torno da bainha tão mal costuradas que algumas caíram no linóleo falso do

chão da cozinha da pretensa vendedora. Quando Maggie disse que o vestido não era o que elas

procuravam, a mulher dissera que elas estariam lhe fazendo um favor se simplesmente levassem o

vestido.

— Foi seu? — perguntara Maggie.

— Devia ter sido — respondera a mulher.

Agora elas estavam voltando para casa com o vestido pendurado de seu cabide sobre o

banco traseiro como um fantasma, e Maggie estava emputecida e apavorada.

— O que eu vou fazer? — perguntou. E ficou surpresa quando Ella respondeu:

— Sabe o que eu acho? Que este é realmente um caso em que o que conta é a intenção.

— Como ela vai usar uma intenção na sinagoga? — perguntou Maggie.

— Bem, ela não pode usar, mas apenas o fato de que você está fazendo isto, e tentando

com tanto afinco, vai mostrar quanto você a ama.

— Só que ela não sabe que estou fazendo isso — disse Maggie. — E eu realmente quero

encontrar alguma coisa para ela. É importante. É muito importante.

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— Bem, você não precisa encontrar um vestido antes da Rose ir embora. Você tem cinco

meses. Sempre pode encontrar alguma coisa de que goste, ou então encomendar Ou pode

costurar alguma coisa para ela.

— Não sei costurar — disse Maggie, morosa.

— Não, mas eu sei — disse Ella. — Ou melhor, acho que sei. Faz muito tempo que não

costuro, mas já fui boa nisso. Fazia todo tipo de coisas. Panos de mesa, cortinas, vestidos para a

sua mãe quando ela era pequena...

— Mas um vestido de casamento... bem, isso não seria difícil?

— Muito — confirmou Ella, — Mas poderíamos fazê-lo juntas, depois que você

descobrir o que quer.

— Eu acho que sei o que quero — disse Maggie. De fato, depois de olhar mais de uma

centena de vestidos diferentes, e fotos de talvez mais quinhentos, ela estava começando a obter

uma noção do que seria perfeito para Rose. Ela apenas não tinha visto o vestido fora de sua

imaginação. Estava pensando num vestido de baile, porque Rose tinha uma forma

suficientemente boa, e cintura suficiente para que esse tipo de roupa lhe caísse bem. Um vestido

de baile com talvez um decote baixo mas não indecente, talvez com uma borda de contas ou

pérolas, nada muito chamativo, e certamente nem um pouco incômodo. Ela sabia que teria de ter

mangas compridas para esconder a gordura de seus braços, uma saia que fizesse Rose se lembrar

um pouco de Glinda, a bruxa boa de O mágico de Oz, só que não tão volumosa, e,

definitivamente uma cauda, só que não muito longa, — E acho que Rose confiaria em mim —

disse Maggie, embora devesse admitir que não era completamente verdade. Ela tinha esperança

de que Rose confiasse nela.

Maggie continuou dirigindo, e pensando, visualizando o vestido.

— Quando costura, você precisa encontrar um molde daquilo que exatamente quer fazer?

— Bem, é assim que em geral é feito.

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— E se você quiser costurar uma coisa que seja diferente de qualquer molde que você

encontre?

— Hummm.. — disse Ella, tocando o lábio inferior com a ponta de um dos dedos. —

Bem, eu acho que eu tentaria fazer partes de moldes e juntar todos eles. Isso seria complicado.

Caro, também, porque você teria de juntar muito tecido.

— Quanto sairia? Algumas centenas de dólares? — perguntou Maggie numa voz

apertada.

— Mais do que isso, acho — disse Ella, — Mas eu lenho algum dinheiro.

— Não — disse Maggie. — Não, eu quero pagar. Eu quero que venha de mim. — Ela

dirigiu pela escuridão densa, escutando o ronco distante de trovão enquanto os céus preparavam-

se para entregar a chuva noturna da Flórida. Todas as antigas inseguranças, provocações dos

tempos de escola, chefes que a haviam demitido, proprietários que a haviam despejado, homens

que a haviam chamado de burra, subiram numa onda dentro dela. Você não consegue, disseram

eles. Você é estúpida. Você jamais vai descobrir esse vestido.

As mãos de Maggie apertaram o volante. Mas eu vou conseguir!, pensou. Lembrou-se das

tardes que passara espalhando folhetos por toda Golden Acres, um desenho de um vestido num

cabide e as palavras SUAS COISAS FAVORITAS, e MAGGIE FELLER, COMPRADORA

PARTICULAR, escritas nelas. Lembrou-se de como o telefone tocara tão constantemente nas

duas semanas seguintes que ela finalmente instalara sua própria linha. Lembrou-se de como

discutira seu orçamento com Jack, como ele explicara para ela repetidas vezes, jamais perdendo

sua paciência, dizendo que para economizar para sua própria loja, ela teria de fingir que seu

dinheiro era uma torta, e que precisaria comer a maior parte da torta para sobreviver — isso era

seu dinheiro para aluguel, supermercado, gasolina e coisas assim. Mas se ela pudesse guardar uma

fatiazinha, por menor que fosse, a cada mês, um dia ("não logo", frisara, "mas um dia") ela teria o

suficiente para as coisas grandes que quisesse. Maggie teria de analisar novamente suas contas e

retirar uma fatia para o vestido de Rose.

E ela pensou na lojinha vazia que vira, perto da esquina da lanchonete de bagel, vazia há

três meses, com um toldo listrado verde e branco protegendo uma grande vitrine. Pensou nas

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vezes que passara diante da lojinha e se imaginava limpando o vidro, pintando as paredes num

tom branco cremoso, e dividindo o quarto dos fundos em cubículos, pendurando tecidos de

algodão branco e gaze. Ela colocaria cadeiras estofadas em cada provador para que os clientes

pudessem se sentar, e prateleiras para que eles enfiassem suas bolsas, e encontraria espelhos

antigos em brechós, e cada preço seria em números redondos, com os Impostos incluídos. Não

seria Hollywood, mas seria aquilo no que ela era boa. Aquilo no que ela era melhor. Sua coisa

favorita. E ela seria bem-sucedida, o que significava que não havia motivo para também não ser

bem-sucedida nisto. Ela não cairia de fuças no chão e gritaria por socorro. Desta vez iria ser ela

quem iria socorrer.

— Que tal tentarmos? — perguntou finalmente. O vestido no banco traseiro ondulou

gentilmente, para a frente e para trás, como se estivesse dançando.

— Sim — disse Ella. — Sim, querida. É claro que podemos.

—58 58 58 58 —

esidência dos Stein, Simon falando. — Eles sabem que você atende o

telefone assim? — perguntou Rose, rolando na cama. Eram dez da

manha. Ella estava cuidando de bebês na maternidade e Maggie estava

numa de suas missões super-secretas, o que significava que Rose tinha todos os quatro cômodos

do apartamento só para ela.

— Eu sabia que era você. Identificador de chamadas — disse Simon. — Como estão as

coisas? — Está relaxando?

— Um pouco — disse Rose.

— Sol e diversão, coquetéis de frutas, e um nativo de vez em quando?

R

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Rose suspirou. Simon estava brincando com ela, como sempre, e estava sendo engraçado,

como sempre, mas ele ainda não estava soando como ele próprio. O episódio envolvendo Jim,

pensou. E a coisa toda da avó secreta, e a partida súbita de Rose para a Flórida. Ela precisava

voltar logo para casa para botar as coisas nos eixos.

— Os nativos daqui são octogenários com marca-passos.

— Cuidado com eles — disse Simon. — São sempre os mais velhos que surpreendem a

gente. Você está bem?

— Estou. Ella é muito legal. E Maggie... — Rose franziu a testa. Maggie havia mudado,

mas Rose não tinha certeza se confiava nessa mudança. Levantou-se da cama carregando o

telefone enquanto caminhava até o quarto de Ella. — Maggie se transformou numa mulher de

negócios — informou. — Ela é uma compradora particular, o que realmente faz muito sentido.

Ela tem muito bom gosto. Ela sempre sabe o que vestir, e o que fica melhor nas outras pessoas.

E os moradores daqui, a maioria deles não dirige mais, e mesmo os que dirigem às vezes têm

muita dificuldade de transitar em shoppings...

— Eu tenho muita dificuldade de transitar em shoppings — disse Simon. — É genético,

Da última vez que minha mãe esteve em Franklin Mills, ela ligou para a polícia porque achou que

seu carro tinha sido roubado, quando na verdade tinha apenas esquecido onde o havia

estacionado.

— Puxa — disse Rose, — Então é por isso que ela coloca vinte bichinhos de pelúcia no

banco traseiro, e amarra todos aqueles laços na antena?

— Não — disse Simon. — Ela apenas gosta dos laços. e dos bichinhos de pelúcia. —

Houve uma pausa. — Sabe, eu estava meio com raiva de você quando foi embora.

— Por causa do Jim Danvers? — Rose engoliu um seco, embora estivesse esperando por

isto.

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— Sim — disse Simon. — Por causa disso. Não estou chateado com o que aconteceu. Só

gostaria que você me contasse as coisas. Você pode me contar qualquer coisa. Eu vou ser o seu

marido. Quero que você confie em mim. Quero que me diga tchau antes de ir a algum lugar. —

Do outro lado da linha, Rose ouviu-o engolir cm seco. — Quando cheguei em casa, e você não

está lá...

Rose fechou os olhos. Ela se lembrava bem dessa sensação, do que era entrar numa casa

vazia e descobrir que a pessoa que você ama desapareceu sem uma palavra.

— Sinto muito — disse Rose. —Vou tentar. — Rose ofegou e caminhou até a frente da

estante cheia de fotos dela, e de Maggie, e de sua mãe em seu vestido de núpcias, com um sorriso

que dizia que tinha uma vida inteira pela frente e que essa vida seria cheia de felicidade. — Sinto

muito por ter te deixado daquele jeito. Sinto muito por não ter falado a respeito de Jim. Você não

devia ter descoberto daquela maneira.

— Provavelmente não — disse Simon. — Mas eu fui duro demais com você a respeito

daquilo. Eu sei quanto você tem andado estressada com os preparativos do casamento.

— Bem, de nós dois, sou eu quem está com tempo para isso.

— Ah, falando nisso, um headhunter ligou para você ontem.

A pulsação de Rose acelerou, Quando trabalhava na Lewis, Dommel e Fenick, Rose

recebia telefonemas de headhunters algumas vezes por semana, pessoas que tinham esbarrado

com seu nome e currículo em algum guia de advogados e que queriam convencê-la a passar para

outra firma, onde indubitavelmente acabaria trabalhando ainda mais horas por dia.

— Alguém da Associação Feminina de Alternativas para as Mulheres.

— Mesmo? — Rose estava tentando lembrar onde ouvira falar desse grupo, e o que ele

fazia. — Como conseguiram meu nome?

— Eles precisavam de um advogado empresarial — disse Simon, contornando a

pergunta, o que deu a resposta a Rose: Simon ligara. — Eles prestam serviços de advocacia para

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mulheres de baixa renda. Custódia, pensão, visitação, coisas assim. Aposto que o advogado que

pegar o serviço terá de passar muito tempo no tribunal. Além disso, o pagamento não deve ser

grande porque no começo seria apenas um cargo de meio-expediente, mas acho que pode ser

interessante. — Fez uma pausa. — É claro, se você ainda não está preparada...

— Não! Não — disse Rose, tentando não gritar. — Parece... quero dizer, estou muito...

Deixaram um número de telefone?

— Deixaram sim — respondeu Simon. — Mas eu disse a eles que você estava viajando.

Assim, não precisa se apressar. Vá se divertir! Vista seu biquíni, provoque uma coronária em

algum velho.

— Primeiro preciso ligar para Amy. Ela tem me deixado recados durante todos os dias

em que estive aqui e a gente não consegue encontrar uma a outra.

— Ah! — disse Simon. — A Amy X.

Rose sorriu.

— Você sabe que ela só se autodenominou assim durante três semanas na faculdade.

— Achei que ela chamava a si mesma de Ashante na faculdade.

— Não, Ashante foi no segundo grau — corrigiu Rose, lembrando quando sua melhor

amiga renunciara ao seu "nome de escrava" em algum momento durante as aulas de história dos

Estados Unidos do Sr. Halleck.

— Mande um beijão para ela — disse Simon. — Embora eu não ache que ela vá muito

com a minha cara.

— Amy acha você bacana.

— Amy não acha ninguém bacana o suficiente para você — disse Simon. — E ela é gente

boa, e eu não sou mau, falando em termos gerais. E sabe de uma coisa?

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— O quê?

Simon baixou sua voz para um sussurro.

— Eu te amo muito, minha esposa.

— Eu te amo também — disse Rose. Ela desligou o telefone, enquanto o imaginava

diante de sua mesa abarrotada de papéis, e então telefonou para sua melhor amiga.

— Irmã! — gritou Amy — Me conta tudo. Como é a vovó? Gosta dela?

— Gosto — disse Rose, surpreendendo a si mesma. — Ela é inteligente, simpática e...

feliz. Acho que ela esteve triste durante muito tempo, e que está feliz agora que Maggie e eu

estamos aqui. O único problema a é que ela fica me encarando.

— Por quê?

— Bem, você pode imaginar — disse Rose, sentindo-se desconfortável. — Por não ter

visto eu e Maggie crescermos, Eu disse a ela que não perdeu muita coisa.

— Au contraire, irmã. Ela perdeu você ganhando todas aquelas feiras de ciência. Ela

perdeu você fantasiada de vulcano durante três Halloweens...

Rose estremeceu só de lembrar.

— Ela perdeu a gente indo à faculdade de roupas folgadas e esfarrapadas... Certo, eu

também gostaria de ter perdido isso.

— A gente estava na moda! — protestou Rose.

— A gente estava ridícula! — corrigiu Amy. — Me deixa falar com a vovó! Eu tenho

histórias para contar a ela!

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— Nem vem que não tem! — disse Rose, rindo.

— Então me diga só uma coisa: a Maggie vem para o casamento?

— Acho que sim.

— Ela vai me substituir? — inquiriu Amy.

— Mas é claro que não! — garantiu Rose. — O seu laçarote de bunda está seguro.

— Ainda bem — disse Rose. — Vá tomar uma piña colada por mim.

— E você continue mantendo nossa água potável limpa — disse Rose.

Ela desligou o telefone e considerou suas atividades para aquele dia. Nenhum cachorro

para levar para passear, nenhuma crise de casamento para resolver. Ela caminhou até a sala de

estar de sua avó e pegou um álbum de família do topo de uma pilha na mesinha de centro.

"Caroline e Rose" dizia o rótulo colado na frente. Rose abriu o livro e ali estava ela, um dia de

idade, olhos fechados, com sua mãe olhando para a câmera, sorrindo timidamente. Deus, pensou

Rose, como sua mãe era jovem! Ela folheou as páginas. Era um bebê de colo, depois já

engatinhava, e então estava andando numa bicicleta de rodinhas, com sua mãe atrás, empurrando

um carrinho no qual Maggie estava sentada, altiva como Cleópatra em sua barca. Rose sorriu

enquanto virava lentamente as páginas, vendo a si própria e à sua irmã crescerem.

—59 59 59 59 —

aggie recostou-se na cadeira, torceu seu rabo-de-cavalo com perícia

profissional e anunciou:

M

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— Muito bem, acho que é isto. — Chamou Ella e Dora até sua mesa nos fundos da loja

de tecidos. — Esta é a saia — disse ela, mostrando-lhes o molde. — Esta é a parte de cima —

disse ela, sobrepondo cuidadosamente um segundo molde por cima do primeiro. — E estas

mangas — acrescentou, mostrando um terceiro molde. — Não mangas compridas, mas apenas

de três quartos.

— Vamos fazer primeiro com musselina — disse Ella. — Não vamos nos apressar. Dará

tudo certo. — Ela reuniu os moldes. — Vamos começar amanhã de manhã bem cedo, e veremos

o que devemos ver.

Maggie recostou-se e sorriu orgulhosa.

— Vai ficar maravilhoso — disse ela.

Naquela noite, Maggie voltou para casa depois de seu turno na Bagel Bay e de uma parada

rápida numa loja para devolver três dos maiôs rejeitados pela Sra. Gantz, e encontrou as malas da

irmã dispostas de modo ordenado ao lado da porta. O coração de Maggie afundou no peito. Ela

havia fracassado. Rose estava de partida e nem sabia o duro que Maggie vinha dando para achar

um vestido para ela. Não sabia quanto Maggie estava arrependida. Rose mal falava com ela, mal

olhava para ela. Nada disto havia funcionado.

Maggie seguiu até o quarto dos fundos e escutou as vozes de Rose e Ella vindo da

varanda.

— No começo você acha que os cachorros pequenos vão ser os mais fáceis — estava

dizendo Rose. — Na verdade, eles são os mais teimosos. E os que latem mais alto, também.

— Vocês já tiveram um cachorro, meninas?

— Durante um dia — disse Rose. — Uma vez.

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Maggie seguiu para a cozinha, pensando que poderia fazer o jantar para sua irmã, e que

isso pelo menos seria alguma coisa, um gesto pequeno mas significativo, um ato que mostraria a

Rose que ela se importava. Maggie tirou peixe-espada da geladeira, fatiou cebolas roxas abacate e

tomates-cereja para a salada, e colocou uma cesta de pãezinhos ao lado do prato de sua irmã.

Rose sorriu quando os viu.

— Carboidratos! — exclamou.

— Apenas para você — disse Maggie, e passou a manteiga para a irmã.

Ella olhou com curiosidade para elas.

— A minha madrasta má — disse Rose de boca cheia. Ela engoliu — Sydelle. Sydelle

odeia carboidratos.

— Exceto quando entrava naquela dieta de batatas-doces — comentou Maggie.

— Isso mesmo — disse Rose, assentindo para a irmã. — Além disso, ela odeia carne

vermelha. Mas qualquer que seja a dieta que estivesse fazendo, ela jamais me deixava comer pão.

Maggie puxou a cesta de pães e inflou as narinas o máximo que conseguiu.

— Rose, você vai estragar o seu apetite! Rose balançou a cabeça.

— Como se isso pudesse acontecer — disse ela. Maggie puxou sua cadeira e começou a

comer sua salada.

— Lembra do peru viajante?

Rose fechou os olhos e fez que sim com a cabeça.

— Como eu poderia esquecer?

— O que é o peru viajante? — indagou Ella.

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— Bem... — disse Rose.

— Foi um dos... — começou Maggie. As duas sorriram uma para a outra.

— Você conta — disse Rose. Maggie concordou com a cabeça.

— Tá — disse ela. — Nós duas fomos passar as férias de primavera em casa, e Sydelle

estava de dieta.

— Uma das muitas — acrescentou Rose.

— Ei, quem está contando a história? — perguntou Maggie. — Então, quando chegamos

em casa, o que tinha para jantar? Peru.

— Peru sem pele, nenhuma pele — acrescentou Rose.

— Apenas peru — disse Maggie. —Sem batatas, sem recheio, sem molho...

— Deus me livre! — exclamou Rose.

— Apenas peru. Comemos ovos cozidos no café da manhã, e então quando chega o

almoço, chega o peru. O mesmo peru.

— Era um peru bem grande — disse Rose.

— Jantamos peru naquela noite também. E almoçamos peru no dia seguinte. E naquela

noite em que fomos jantar na casa de uma das amigas de Sydelle, estávamos empolgadíssimas

porque achávamos que íamos comer alguma coisa que não fosse peru. Só que, quando chegamos

lá, descobrimos que Sydelle...

— ... tinha levado o peru! — concluíram em uníssono Rose e Maggie.

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— Descobrimos que ela e a amiga estavam fazendo a mesma dieta — acrescentou Rose,

passando manteiga num pãozinho.

— Nós todas comemos peru — disse Maggie.

— Peru viajante — disse Rose. E Ella se recostou, sentindo-se profundamente aliviada

quando ela e as netas desataram a rir.

Naquela noite, pela última vez, Maggie e Rose ficaram deitadas lado a lado no sofá-cama,

ouvindo o coaxar dos sapos, o vento farfalhando nas palmeiras e um ocasional chiado de freio

quando outro morador de Golden Acres voltava para casa.

— Estou cheia! — gemeu Rose. — Onde você aprendeu a cozinhar desse jeito?

— Com Ella — respondeu Maggie. — Eu presto atenção quando ela cozinha. Estava

bom, não estava?

— Delicioso — disse Rose, e bocejou. — E você? Acha que vai ficar aqui?

— Sim — disse Maggie. — Quero dizer, gostei da Filadélfia. E ainda penso na Califórnia

de vez em quando. Mas realmente gosto daqui. Tenho meu emprego. Estou criando a minha

empresa. E Ella precisa de mim.

— Para quê?

— Bem, talvez ela não precise de mim — reconheceu Maggie. — Mas acho que ela gosta

de me ter por perto. E eu sinto como se pertencesse a este lugar. Quero dizer, não a este lugar —

disse ela, fazendo um gesto para indicar o quarto, o condomínio, a comunidade de Golden Acres

em geral —, mas à Flórida. Todo mundo aqui vem de outro lugar, já notou isso?

— Acho que sim.

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— Mas isso é bom, acho. Aqui você não vive esbarrando em alguém com quem

freqüentou o colégio ou a faculdade. Portanto, você pode ser diferente aqui, se quiser.

— Você pode ser diferente em qualquer lugar — disse Rose. — Olhe para mim.

Maggie apoiou-se no cotovelo e olhou para a irmã, o rosto familiar, o cabelo se

derramando sobre o travesseiro, e viu Rose não como uma ameaça, ou como alguém que sempre

lhe dizia que estava fazendo as coisas do jeito errado, mas como uma aliada. Uma amiga.

Houve silêncio por um momento enquanto as irmãs continuavam deitadas lado a lado.

Em seu quarto, Ella inclinou a cabeça e segurou a respiração para ouvir.

— Eu vou conseguir, sabia? — disse Maggie. — Suas Coisas Favoritas. Vou abrir uma

loja algum dia. Já até sei onde.

— E eu vou vir para a grande inauguração — disse Rose.

— E eu quero lhe dizer...

— Que você está arrependida — recitou Rose. — Que mudou.

— Não! Bem, sim. Quero dizer, é verdade.

— Eu sei — disse Rose. — Eu sei que você mudou.

— Mas não era isso que eu queria de dizer. O que eu quero é: não compre um vestido.

— O quê?

— Não compre um vestido. Esse vai ser o meu presente de casamento para você.

— Oh, Maggie, eu não sei...

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— Confie em mim — pediu Maggie.

— Você quer que eu me case num vestido que nunca vi? — Rose soltou uma risada

nervosa, enquanto imaginava o tipo de vestido que Maggie iria lhe dar: saia curta, decote baixo,

sem manga, sem costas, cheio de franjas.

— Confie em mim — repetiu Maggie. — Eu sei do que você gosta. Vou lhe mostrar

fotografias. Vou deixar que experimente primeiro. Irei para casa. Poderemos fazer os ajustes.

— Vamos ver — disse Rose.

— Mas pelo menos vai me deixar tentar? — perguntou Maggie. Rose suspirou.

— Vou — disse ela. — Vai nessa. Vai com tudo. Silêncio de novo.

— Eu te amo — disse uma das meninas, e Ella não teve certeza de qual. Rose? Maggie?

— Pare com isso — disse a outra. — Não seja piegas.

Ella esperou em seu quarto, prendendo a respiração, esperando por mais. Mas não houve

nada. Horas depois, caminhando cuidadosamente, ela empurrou a porta e entrou no quarto. As

duas irmãs estavam dormindo, ambas enrodilhadas para seus lados esquerdos com as mãos

enfiadas debaixo das bochechas. Ela se curvou, mal ousando respirar, e beijou cada uma delas na

testa. Sorte, pensou. Amor. O coração de Ella era todo felicidade. E, o mais cuidadosamente que

conseguiu, Ella pousou dois copos de água, cada um com uma única pedra de gelo, na mesa de

cabeceira. E então caminhou na ponta dos pés até a porta.

—60 60 60 60 —

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calme-se — disse Maggie pela décima oitava vez,

e inclinou-se para perto de Rose, que estremeceu.

— Se não relaxar, não terei como fazer isto.

— Eu não posso relaxar — disse Rose. Ela estava usando um roupão de banho cor de

tijolo. Seus cabelos, graças a uma hora de cuidados do Michael da Pileggi, formavam um

penteado decorado com florezinhas brancas. Ela estava usando base e os lábios estavam

delineados. Amy, resplandecente num vestido azul simples que ela ornamentara com um laçarote

do tamanho de um travesseiro, estava ocupada procurando pelos garçons e o prato de sanduíches

que eles haviam prometido. Quanto a Maggie, neste momento ela estava tentando, sem sucesso,

curvar os cílios da irmã.

— Olá! — Michael Feller, resplandecente em seu smoking novo, com os cabelos ralos

perfeitamente dispostos sobre a área calva, enfiou a cabeça pela fresta da porta. — Está tudo

certinho aqui? — Ele recuou ao ver Maggie manusear o curvex, — O que é isso? — perguntou

ele com uma voz assustada.

— Curvex — explicou Maggie. — Rose, eu não vou te machucar, prometo. Agora,

apenas olhe para a minha direita... não mexa a cabeça... pronto! Eu os peguei!

— Argh! exprimiu Rose, remexendo-se o máximo que pôde com os cílios presos às

pinças de metal do curvex. — Ai... dói...

— Não machuque a sua irmã! — asseverou Michael Feller.

— Isto... não... machuca — disse Maggie, passando o curvex ao longo dos cílios de Rose.

— Pronto! Perfeito! Agora só preciso fazer a mesma coisa com o outro!

— Deus me proteja — disse Rose, e olhou para os pés. Eles estavam muito bonitos,

precisava admitir; ela tinha hesitado muito antes de entregá-los aos cuidados de uma pedicure.

— Não sou o tipo de pessoa que vai a pedicures — dissera ela. Mas Maggie, que se

tornara tremendamente mandona nos meses desde que Suas Coisas Favoritas fora resenhada no

Fort Lawderdale Sun Sentinel, não estava disposta a ouvir um não como resposta.

— A

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— Ninguém nem vai ver meus pés — protestara Rose, mas Maggie retrucara que Simon

ia ver os pés dela, não ia? E assim Rose cedera.

Maggie manuseou o curvex em direção aos cílios do outro olho, curvou-os com cuidado e

deu um passo para trás para examinar o efeito.

— Viu quem é o meu acompanhante? — perguntou Maggie. — Quero dizer, sei que hoje

é o seu dia especial e tudo mais... — E ela parou, olhando para sua irmã.

— Maggie! — exclamou Rose. — Não acredito que você está corando!

— Não estou — disse Maggie. —É só que eu sei que é muita pressão convidar um cara

para um casamento.

— Charles parece estar muito à vontade — disse Rose. Na verdade, Charles parecia

simplesmente perfeito, o tipo de cara que ela sempre torcera para Maggie encontrar depois que

tivesse superado seu vício em bateristas garçons parcialmente empregados. Ele era mais jovem do

que ela, alguém que ela conhecera em Princeton, embota Maggie tivesse sido evasiva quanto aos

detalhes. — E ele é doido por você.

— Você acha mesmo? — perguntou Maggie.

— Está na cara — disse Rose.

Enquanto Maggie caminhava até a porta, Amy chegou brandindo um prato de sanduíches

sobre a cabeça.

— Achei a comida! — anunciou.

— Onde? — perguntou Rose, acenando para seu pai enquanto ele saía.

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— Com Sydelle, onde mais? — perguntou Amy, embrulhando cuidadosamente meio

sanduíche de peru num guardanapo antes de dá-lo a Rose. — Ela estava passando maionese no

pão. E "Minha Márcia" estava perguntando ao rabino se podia fazer a prece do Senhor.

— Você está brincando, não está?

Amy assentiu. Rose deu uma só mordida e largou o sanduíche.

— Não consigo comer. Estou nervosa — declarou, enquanto Maggie voltava para o

quarto, carregando um embrulho grande, vagamente no formato de um vestido, embrulhado em

plástico branco.

— Preparada para seu vestido, Cinderela? — perguntou Maggie.

Rose engoliu em seco e fez que sim. Por dentro, ela estava morrendo. E se o vestido não

estivesse bom? Ela se imaginou caminhando em direção ao altar com costuras desfiadas e mangas

desiguais. Oh, Deus, pensou. Como ela tinha sido estúpida ao deixar que Maggie assumisse isto!

— Feche os olhos — disse Maggie.

— Não — disse Rose.

— Por favor?

Rose suspirou e fechou gentilmente os olhos. Maggie pegou a sacola de plástico fechada a

zíper. Correu o zíper suavemente e retirou o vestido de Rose do cabide.

— Tchan-tchan-tchan-tchan! — disse Maggie, e girou o vestido no ar. No começo tudo

que Rose viu foi a saia — camadas e camadas de tule. E então, enquanto Maggie mantinha o

vestido no ar, ela conseguiu ver como era bonito: o corpete de cetim cor de creme pontuado com

pequenas pérolas, as mangas bem ajustadas, o decote que — ela percebeu com alívio — era

apenas fundo o bastante. Fiel à sua palavra, Maggie enviara-lhe fotografias e voara até Filadélfia

para fazer um ajuste. Mas o produto pronto era mais bonito do que Rose havia imaginado.

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— Quanto tempo isto tomou de você e de Ella? — perguntou Rose, aproximando-se

para tocar a saia.

— Não pense nisso — disse Maggie, fechando as dúzias de botões que costurara à mão

ao longo das costas.

— Quanto isto custou? — perguntou Rose.

— Não se preocupe com isso. E o nosso presente para você — disse Maggie, ajustando o

decote e virando irmã em direção ao espelho.

— Oh! — arfou Rose, olhando para si mesma. — Oh, Maggie! Então Amy aproximou-se

caminhando delas, segurando o buquê de rosas cor-se-rosa e lírios brancos, e o rabino enfiou a

cabeça pela brecha da porta, sorrindo para Rose e dizendo que a hora chegara. Ella chegou

apressada atrás dele, uma caixa de sapatos nas mãos.

— Você está linda — disseram Ella e Maggie precisamente ao mesmo tempo.

Rose olhou para si mesma, sabendo que o vestido era a coisa certa que devia usar,

sabendo que nunca parecera mais bonita, ou mais feliz, do que neste momento, com sua irmã a

seu lado direito e sua avó ao esquerdo.

— Tome — disse ela, abrindo a caixa de sapatos. —São para você.

— Oh, mas eu já tenho sapatos... — Rose olhou para dentro da caixa e viu o mais

perfeito par de sapatos: de cetim branco-marfim, saltos baixos, com os mesmos bordados de seu

vestido. — Oh, meu Deus. Eles são tão bonitos. Onde você os encontrou? — Rose fitou Ella e

adivinhou. — Eram da minha mãe?

Maggie olhou para Ella e segurou a respiração.

— Não — disse Ella. — Eles eram meus. — Ela enxugou os olhos com um lenço. — Eu

sei que provavelmente deveria lhe emprestar um par de brincos, um colar ou qualquer coisa

assim, se ainda estiver precisando de alguma coisa emprestada, mas...

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— Eles são perfeitos — disse Rose, enfiando os pés nos sapatos. — E cabem!

Ella balançou a cabeça, olhos cheios de lágrimas.

— Eu sei — sussurrou em resposta.

— Não comece a chorar já — disse Lewis, enfiando a cabeça pela brecha da porta. —

Ainda nem começamos. — Ele sorriu para Rose. — Você está linda. E eu acho que eles estão

prontos quando você estiver.

Rose abraçou Ella, e em seguida puxou sua irmã.

— Obrigada pelo meu vestido. Ele é inacreditável. A coisa mais linda que já vi!

— De nada — disse Ella.

— Oh, não foi nada — disse Maggie.

— Vocês estão prontas? — perguntou Rose, e Maggie e Ella fizeram que sim com as

cabeças.

O chefe do serviço de bufê abriu as portas e os convidados olharam para Rose e sorriram.

Flashes relampejaram. A Sra. Lefkowitz fungou. Michael Feller levantou o véu de Rose.

— Você está tão bonita! — sussurrou em seu ouvido. — Estou tão orgulhoso de você!

— Eu te amo — disse Rose.

Ela se virou. E no altar viu Simon sorrindo para ela, seus olhos azuis cálidos brilhando, o

solidéu empoleirado sobre seus cachos cuidadosamente aparados, os pais sorrindo ao lado dele.

Ella segurou a mão de Maggie e a apertou.

Page 463: Em Seu LUGAR - leandromarshall.files.wordpress.com · Na cabine ao lado, alguém deu a descarga. Maggie vacilou em seus calcanhares enquanto Ted/Tad mirava e errava e mirava de novo,

— Você conseguiu — sussurrou Ella, e Maggie balançou a cabeça alegremente. As duas

olharam para Rose, que retribuiu o olhar. Nós te amamos, pensou Ella, e sorriu, mandando todos

os seus bons pensamentos através do ar... e, naquele instante, Rose olhou para elas através de seu

véu e sorriu de volta.

— E agora — entoou o rabino —, Maggie Feller, irmã da noiva, lerá um poema.

Maggie pôde sentir a tensão enquanto caminhava para a frente e alisava seu vestido

(verde-claro, sem mangas e sem a fenda na saia ou o decote fundo que ela sabia que sua irmã

mais velha estava temendo) e caminhou para a frente. Ela tinha certeza, pensou, enquanto

pigarreava, que Sydelle e seu pai estariam esperando que ela proferisse alguma coisa que

começasse com "Era uma vez uma garota de Nantucket". Bem, eles iam ter uma surpresa.

— Estou muito feliz por minha irmã neste momento — disse Maggie. — Quando nós

estávamos crescendo, Rose sempre cuidava de mim. Ela sempre ficava do meu lado e sempre

queria o melhor para mim. E estou muito feliz porque sei que Simon fará as mesmas coisas para

ela, e que sempre seremos parte das vidas uma da outra. Sempre amaremos uma à outra, porque é

isso que as irmãs fazem. É isso que as irmãs são. — Ela brindou Rose com um sorriso. — Então,

Rose, isto é para você; Maggie respirou fundo e, embora tivesse ensaiado o poema uma dúzia de

vezes no avião, e há muito o decorado, sentiu um arrepio correr por toda a sua espinha. Ella

levantou o queixo na expressão exata que Rose e Maggie usavam ocasionalmente, e Charles

sorriu com orgulho de sua cadeira no fundo. Maggie soltou a respiração e dirigiu um meneio de

cabeça à sua avó. Então fixou os olhos em Rose, que estava usando o lindo vestido que as duas

haviam feito juntas, e começou:

— "Carrego seu coração comigo

(eu o carrego no meu coração)

nunca estou sem ele

(onde quer que eu vá, você vai, minha querida;

e o que quer que seja feito por mim

é feito por você, minha querida)

não temo o destino

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(pois você é o meu destino, minha vida)

não quero o mundo

(pois você é o meu mundo, minha adorada)

e você é o que a lua sempre significou,

o que sol sempre cantou"

A garganta de Maggie fechou como um punho. Na fileira da frente, Lewis balançou a

cabeça para ela, e Ella estava sorrindo em meio às lágrimas, e seu pai estava empurrando os

óculos para cima e enxugando rapidamente os olhos. E todos os convidados fitavam-na com

expectativa. Sob o chuppah, os olhos de Rose estavam arregalados e seus lábios tremiam. E

Maggie podia imaginar também sua mãe, um fantasma na fileira do fundo, com seu batom

vermelho e seus brincos de ouro, observando suas filhas, sabendo que apesar de tudo elas tinham

crescido corajosas, inteligentes e bonitas, e que sempre seriam irmãs uma para a outra, e amigas

também, e que Rose sempre iria querer o que era melhor para Maggie, e Maggie sempre iria

querer o que era melhor para Rose. Respire, pensou Maggie, e continuou:

— "aqui está o segredo mais profundo que ninguém sabe

(aqui está a raiz da raiz, o broto do broto

e o céu do céu de uma árvore chamada vida;

que cresce mais alta do que a alma pode ansiar

ou a mente pode esconder)

e aqui está o fenômeno que mantém as estrelas separadas."

"carrego seu coração (eu o carrego no meu coração)"

Maggie sorriu para as pessoas reunidas e sorriu para sua irmã. E foi como se pudesse ver

o futuro — a casa e os bebês que Rose e Simon teriam, as visitas que fariam a Maggie e Ella na

Flórida, quando nadariam todos juntos, Rose, Maggie, Ella e os bebês de Rose, numa piscina

grande e azul sob o sol, e depois ficariam abraçados na cama de Ella, lado a lado, até

adormecerem.

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— E.E. Cummings — disse ela, sabendo que conseguira, que os olhos de todos ficaram

grudados nela, e que pronunciara cada palavra com perfeição; ela, Maggie Feller, saíra-se muito

bem.

AGRADECIMENTOS

ste livro não existiria sem a ajuda e o trabalho árduo de três mulheres

incríveis. Minha agente, a divina e caridosa Joanna Pulcini, é uma

defensora incansável e uma leitora brilhante. A paixão e o

compromisso de Liza Nelligan (junto com suas próprias histórias da "Zona da irmã") ajudaram-

me mais do que eu poderia dizer. Greer Kessel Hendricks não apenas me colocou debaixo de

suas asas e concordou em me publicar, como também se autonomeou rainha não-oficial do meu

fã-clube e agente publicitária pessoal. Nenhuma escritora poderia desejar leitoras mais cuidadosas

e campeãs mais vigorosas, e sou abençoada e feliz de tê-las como minhas colegas e amigas.

Teresa Cavanaugh e Linda Michaels ajudaram Rose e Maggie a verem o mundo. A

assistente de Joanna, Anna deVries, e a assistente de Greer, Suzanne O'Neill, lidaram habilmente

com meus telefonemas. Laura Mullen, da Atria, realiza milagres e é uma grande incentivadora.

Meus agradecimentos a todas elas.

Meus agradecimentos a todos os escritores que me inspiraram, me encorajaram e que

foram incrivelmente generosos e poderiam ocupar um livro inteiro; assim, não irei me abster de

mencionar Susan Isaacs, Anna Maxted, Jennifer Cruise, John Searles, Suzanne Finnamore e J.D.

McClatchy.

Também sou muito agradecida a todos os membros da minha família que me dão amor,

apoio e recursos materiais. Agradeço especialmente à minha irmã, Molly Weiner, a raposa

marrom veloz, por sua graça e bom humor.

E

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Agradeço a todos os meus amigos, que me apoiaram, encorajaram, riram quando ouviram

cenas deste livro, tiveram a boa educação de não mencionar o estado desastroso de minha casa e

minha higiene pessoal quando eu estava apertada com o prazo de entregar as revisões, e

emprestaram-me pedaços de suas vidas, especialmente Susan Abrams, Lisa Maslankowski, Ginny

Durham e Sharon Fenick.

Quero que o mundo saiba que Wendell, rei de todos os cães, ainda é meu "muso"; e que

meu esposo, Adam, ainda é meu companheiro de viagens, primeiro leitor e um cara fabuloso sob

todos os aspectos.

Finalmente, e mais importante, estou mais grata do que posso dizer a todos os leitores

que compareceram às minhas leituras ou me escreveram para dizer que gostaram de Bom de cama,

e que me apressaram a terminar este aqui! Quero agradecer-lhes por sua gentileza, apoio generoso

e por dedicar seu tempo a me dizer que se identificaram com o meu trabalho. Espero poder

contar-lhes ainda muitas histórias no futuro. Minha página na Internet é

www.jenniferweiner.com, e todos vocês estão convidados a darem uma passadinha lá e dizerem

oi!

Obrigada por lerem,

Jen

FIM

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Esta obra é distribuída Gratuitamente pela Equipe Digital Source e Viciados em Livros para proporcionar o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente. Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras. Se quiser outros títulos nos procure : http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.

http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros

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&

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