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LUIZ ANTONIO CABRINI DE CASTRO EM CENA: O ESTADO DE ESPONTANEIDADE E O ESTADO INTERIOR DE CRIA˙ˆO PONTIF˝CIA UNIVERSIDADE CATLICA SˆO PAULO 2007

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LUIZ ANTONIO CABRINI DE CASTRO

EM CENA: O ESTADO DE ESPONTANEIDADE E O ESTADO INTERIOR DE CRIAÇÃO

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO

2007

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LUIZ ANTONIO CABRINI DE CASTRO

EM CENA: O ESTADO DE ESPONTANEIDADE E O ESTADO INTERIOR DE CRIAÇÃO

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO COMO EXIGÊNCIA PARCIAL PARA GRADUAÇÃO NO CURSO DE PSICOLOGIA, SOB ORIENTAÇÃO DA PROFª

TALITHA FERRAZ DE SOUZA

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO

2007

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7.07 .02 .04-7 Luiz Antonio Cabrini de Castro: Em Cena: O Estado de Espontaneidade e O Estado Interior de Criação, 2007. Orientadora: Talitha Ferraz de Souza Palavras chave: psicodrama; sistema stanislavskiano; criação. Resumo Este trabalho teve como objetivo aprofundar e relacionar o conceito de estado de espontaneidade e o conceito de estado interior de criação, desenvolvido respectivamente por Jacob Levy Moreno e Constantin Stanislavski. Nessa relação tece-se o encontro entre as artes cênicas e a psicologia, que apesar de terem objetivos e ações diferentes, no que se refere a suas demandas, levam para a sociedade novas possibilidades para o ser humano entender o mundo em que vive. De início foi feita uma pesquisa sobre a historia do teatro e o surgimento do psicodrama, após esta etapa o trabalho foi feito, principalmente, em cima de obras dos dois diretores em que há o desenvolvimento destes dois conceitos e de outros que tenham alguma relação. Observou-se que, apesar de terem propósitos diferentes, o estado interior de criação e o estado de espontaneidade exercem �papeis� semelhantes dentro das teorias as quais estão inseridas. Caracterizam-se como uma condição em que o ator procura chegar, que faz emergir a fonte propiciadora de criação para novas possibilidades de atuação.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................pág. 01

METODOLOGIA...............................................................................................pág. 06

CAP. I �O ESTADO DE ESPONTANEIDADE

1. MORENO E O PSICODRAMA...........................................................pág. 08

2. ESPONTANEIDADE/CRIATIVIDADE................................................pág. 10

3. TEORIA DOS PAPÉIS.......................................................................pág. 11

4. TREINAMENTO DE ESPONTANEIDADE.........................................pág. 12

5. ESTADO DE ESPONTANEIDADE....................................................pág. 13

6. CONSERVA CULTURAL...................................................................pág. 15

CAP. II � O ESTADO INTERIOR DE CRIAÇÃO

1. O NATURALISMO............................................................................pág. 17

2. STANISLAVSKI E O TEATRO DE ARTE DE MOSCOU � 1897......pág. 19

3. O SISTEMA DE STANISLAVSKI......................................................pág. 20

4. ATENÇÃO.........................................................................................pág. 21

5. SUPEROBJETIVO............................................................................pág. 24

6. ESTADO INTERIOR DE CRIAÇÃO..................................................pág. 25

DISCUSSÃO.....................................................................................................pág. 28

CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................pág. 32

REFERÊNCIAS.................................................................................................pág. 34

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AGRADECIMENTOS

Dedico este trabalho a todos os professores, que ao longo da minha vida �quebraram as minha pernas� para que com elas eu pudesse a aprender andar sozinho. À Márcia Batista, que ao longo deste ano me mostrou novos caminhos para o trabalho em psicodrama, além de ter me emprestado seus livros. À Talitha, que pode me compreender e me ajudar a ser mais objetivo no meio da minha confusão. À Tom Will, por estar sempre descobrindo em nossas discussões possibilidades de entender a arte. À Thais, com quem compartilhei as angustias do trabalho. À minha mãe pois graças a ela estou aqui e quero chegar em outros lugares. À todos os meus amigos, irmãos da vida, que me dão segurança para viver. Ao Naldo e seus �ilustres mestres� que proporcionaram muitas vezes um canto para o estudo. À Iolanda, Moustafá, Luiza, Inácio, Bia, Sula, Wata que são também meus pais. Aos meus avós que já faleceram, e em especial à meu avô Antonio por ser meu herói e referencia de ser humano. Em especial à Julia, que transformou um ano que poderia ser bem ruim ao mais doce de todos eles.

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INTRODUÇÃO

O Teatro acontece no presente, é um evento único. Inicia e termina diante

dos olhos da platéia para se tornar parte do passado. Para que ele aconteça é

preciso de pelo menos alguém que o apresente e alguém que o assista, ele

precisa do público para conversar, provocar, promover o debate, é um lugar de

troca e alimentação para o diálogo com o mundo.

Embora o teatro esteja intimamente ligado ao presente, não há nenhuma

proposta teatral que não tenha analogia a uma forma concebida no passado.

Autores reformulam temas que são intrinsecamente pertencentes aos seres

humanos em todas as épocas; Diretores e atores oferecem-nos criações e

recriações ao gosto contemporâneo a partir de encenações e métodos de direção,

que foram desenvolvidos em outras épocas.

Berthold (2004) apresenta, em seu estudo sobre a historia do teatro, o seu

nascimento juntamente com a humanidade, já que a transformação em outra

pessoa é uma das formas arquetípicas1 da expressão humana. O teatro tem seu

início já nos povos primitivos, porém a forma que nós conhecemos hoje surge na

antiguidade, tanto no Oriente quanto no Ocidente, através de danças e cantos

oferecidos aos deuses.

Constantin Stanislavski (1863-1938) foi pioneiro em descrever toda uma

técnica de interpretação, experienciada ao longo dos anos em que dirigiu o Teatro

de Arte de Moscou. Foi juntamente com Nemirovitch-Dantchenko (1858-1943)

1 �O arquétipo é, na realidade, uma tendência instintiva, tão marcada como o impulso das aves para fazer seu ninho ou o

das formigas para se organizarem em colônias. (...) Chamamos instinto aos impulsos fisiológicos percebidos pelos sentidos.

Mas, ao mesmo tempo, estes instintos podem também manifestar-se como fantasias e revelar, muitas vezes, a sua

presença através de imagens simbólicas. São a estas manifestações que chamo arquétipos. A sua origem não é conhecida;

e eles se repetem em qualquer época e em qualquer lugar do mundo � mesmo onde não é possível explicar sua

transmissão por descendência direta ou por �fecundações cruzadas� resultante da migração.� (Jung, O homem e seus

símbolos, p. 69)

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responsável pela fundação desse teatro em 1897, época em que as artes eram

influenciadas pela estética naturalista.

O Drama naturalista se desenvolve a partir do final do século XIX, tem

como característica o detalhamento quase que fotográfico nos designs de cenários

e figurinos. Nas técnicas de interpretação, busca abolir qualquer artificialidade que

nos períodos do início do século XIX eram adotados no teatro. A organização de

metodologias e técnicas de interpretação, como a de Stanislavski, passam a ser

melhor difundidas a partir dessa época.

A figura do diretor ganha uma importância maior, tendo como função

organizar todos os elementos que envolvem uma peça, direcionando-a de acordo

com suas concepções. A partir de Stanislavski começa a era dos grandes

diretores, que buscavam novos caminhos para o teatro: Meierhold, Moreno,

Artaud, Brecht, Grotóvski entre outros trouxeram inovações, tanto na preparação

dos atores quanto na concepção de sua arte.

Stanislavski desenvolveu todo o seu trabalho na procura de uma

interpretação que pudesse ser tão real quanto a própria realidade. O ator deveria

buscar inspiração na vida real, utilizando seus próprios sentimentos nos

personagens, para que estes tivessem vida própria. Ele queria interagir com a

platéia, fazer com que ela se envolvesse. Para que isso acontecesse, dizia que

era necessário haver um entrosamento entre todos os elementos que constituíam

a peça teatral. Assim, as pessoas da platéia ficariam tão envolvidas e se

identificariam tanto com as personagens que teriam a ilusão de que a peça era

vida real.

�O seu trabalho transferiu, do artifício convencional e da cópia mecânica para a vivência natural e a criação orgânica, o centro nevrálgico da arte cênica. Sob o impacto de suas idéias e experiências, não só estilo e práticas se transformaram, como a própria visão do teatro, na sua dimensão estética e ética. Stanislavski pôs no

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palco da persona, a pessoa. Pois, para ele, poder-se-ia dizer, como para o filósofo grego, o homem é a mediada de todas as coisas, na vida e na arte.� (Guinsburg, 2001, p.3-4)

O encantamento do teatro vem das infinitas possibilidades de apresentação

para o público sem que o artista revele seu segredo pessoal. É como se o ator

emprestasse seu corpo para a personagem que vai interpretar, colocando em

cena uma realidade diferente, guiada pela composição entre dramaturgo, diretor e

atores.

Jacob Levy Moreno (1889-1974) buscava uma nova estética para o teatro,

diferente da proposta Realista/Naturalista a qual permeava o Teatro de Arte de

Moscou. Indagava por um teatro que saísse da estrutura dramaturgia, direção e

atuação. Em seus experimentos com o Teatro Vienense da Espontaneidade

(Stegreinftheater), Moreno leva o foco para uma dramaturgia construída no

presente, a encenação e a dramaturgia fundem-se em um só momento.

Ao longo da história, os temas psicológicos vinham se aproximando de

produções teatrais. Autores como Shakespeare (1564-1616), Tchekhov (1860-

1904) e Pirandello (1867-1936) traziam em seus textos a insatisfação e a procura

de uma compreensão do homem ao mundo no qual estavam inseridos, porém é

com Moreno que esta ligação acontece de forma mais direta.

Em seu teatro dedicava-se à pesquisa dos conceitos de espontaneidade e

de criatividade vistas nas dramatizações dos atores. Esta experiência foi

caracterizando um teatro terapêutico que se transformaria no psicodrama

terapêutico.

Encontrou no teatro um caminho para o desenvolvimento daquilo que

entendia como recursos inatos do homem: a espontaneidade, a criatividade e a

sensibilidade. Assim como aponta Gonçalves (1988), Moreno entendia que o

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homem é constituído por fatores favoráveis a seu desenvolvimento que lhe

permitem a vida e a criação:

�O homem nasce espontâneo e deixa de sê-lo

devido a fatores adversos do meio ambiente. Os obstáculos ao desenvolvimento da espontaneidade encontram-se tanto no ambiente afetivo-emocional (...) quanto no sistema social (...). A Revolução Criadora moreniana é a proposta de recuperação da espontaneidade e da criatividade, através do rompimento com padrões de comportamento estereotipados, com valores e formas de participação na vida social que acarretam a automatização do ser humano (conservas culturais).� (p. 46).

Sendo assim, Moreno instituiu uma preparação em que seus atores

ficassem dispostos a atuar, de forma que não houvessem barreiras para que o

desempenho acontecesse de forma espontânea e criativa, compondo as cenas

através de conteúdos internos revelados na ação.

Apesar de terem objetivos diferentes, Moreno e Stanislavski estavam em

busca por uma encenação verdadeiramente humana. Stanislavski (2001a)

exercitava seus atores para trazerem sentimentos reais na construção das

personagens. Verificou que a movimentação corporal era um caminho para que

pudessem trabalhar seus próprios sentimentos na dramatização deixando-a mais

perto da realidade. Guiado pela corrente Naturalista no teatro, havia a

preocupação com a forma estética apresentada ao público.

Por outro lado, a preocupação de Moreno não estava na forma estética de

apresentação ao público, seu foco era a pesquisa do fator e (espontaneidade),

mostrada na dramatização através de ações espontâneas na construção da cena,

das quais o público também participava.

Desse modo, um ponto em comum pode ser estabelecido entre os dois

diretores: a necessidade de uma preparação prévia para que os atores pudessem

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trazer seus próprios sentimentos para desenvolver o trabalho. A intenção desta

preparação era que os atores atingissem um estado em que estivessem livres das

amarras sociais para a criação de uma cena, de modo que seus conteúdos

internos viriam à tona não dando chance para ações estereotipadas na

dramatização.

O presente trabalho procura estabelecer o diálogo entre, o que Stanislavski

chama de estado interior de criação e o estado de espontaneidade, apontado por

Moreno, promovendo uma aproximação maior entre o teatro e a psicologia.

Como estudante destas duas áreas, psicologia e artes cênicas, procurei

fazer uma pesquisa que levasse a um aprofundamento maior no estudo destes

dois conceitos. A escolha por uma pesquisa pontual se deve por uma semelhança

a priori na teorização dos conceitos de estado de espontaneidade e estado interior

de criação. Esta pesquisa visa um melhor entendimento da prática em ambas as

áreas de atuação.

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METODOLOGIA:

Distinguiram-se dois momentos dentro do processo de pesquisa para a

realização deste trabalho, a primeira etapa iníciou-se antes mesmo do

estabelecimento de um foco de pesquisa. Meu desejo sempre foi de um maior

aprofundamento nos estudos do psicodrama e nas artes cênicas, portanto

procurava estabelecer uma relação entre as duas áreas que despertasse a minha

curiosidade.

Na busca por este foco, iniciei a pesquisa através de duas obras de

Moreno, Psicodrama e O teatro da espontaneidade, e através de alguns autores

de teatro como Antonin Artaud, O teatro e seu duplo e Augusto Boal, Arco-íris do

desejo. Mas foi na releitura das obras A preparação do ator, A construção da

personagem e A criação de um papel de Constantin Stanislavski que encontrei o

ponto de interesse: o conceito de estado interior de criação, que na minha visão se

relacionava com o conceito formulado por Moreno de estado de espontaneidade.

A partir desse momento iniciou-se a segunda etapa da pesquisa, um

aprofundamento maior destes dois conceitos. Para isso utilizei dois livros que me

serviram como guia para a investigação. Através do vocabulário de conceitos

moreniano, Palavras de Jacob Levy Moreno escrito por Rosa Cukier, pude

localizar com maior facilidade a conceituação do estado de espontaneidade e de

outros conceitos que se ligavam a ele dentro da obra de Moreno.

O Manual do ator de Stanislavski apresenta uma estrutura semelhante ao

trabalho de Cukier e da mesma forma pude fazer o trabalho de pesquisa sobre as

obras de Stanislavski.

É importante salientar que na apresentação teórica sobre ambos os autores

houve uma escolha por conceitos que mais se aproximavam do objetivo do

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trabalho de aprofundar-se nos conceitos de estado de espontaneidade e estado

interior de criação.

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CAP. I O ESTADO DE ESPONTANEIDADE

1. MORENO E O PSICODRAMA

A segunda década do século XX foi marcada pela Primeira Guerra Mundial

(1914-1918), após seu término a Europa vivia um momento de reconstrução;

nesse período surgiram movimentos artísticos de vanguarda que foram

influenciados e refletiam os sentimentos de incerteza da população deixados pelas

atrocidades da guerra: o Futurismo (1909), o Dadaísmo (1916) e o Surrealismo

(1924).

Moreno, que sempre teve uma ligação forte com o teatro propõe uma nova

concepção desta arte fundamentada em suas experiências nos jogos de

improvisos com as crianças nos jardins de Viena e em suas experiências como

médico. Porem é a uma experiência marcante em sua infância que Moreno atribui

o início da pesquisa em que pretende compreender a espontaneidade, que é base

de toda a fundamentação do teatro da espontaneidade e do psicodrama. Julga

Moreno, que o teatro traz condição para tanto.

Aos quatro anos, Moreno brincava com seus amigos de �ser Deus�.

Empilharam alguns cadeiras sobre uma mesa, onde no topo seria o trono de

Deus. Seus amigos lhe pediram para que voasse, ele como Deus procurou fazer a

vontade de seus anjos, causando um tombo que quebrou o braço. Esta vivência

marcou toda a sua vida.

Em 1921 foi fundado o Teatro Vienense da Espontaneidade (Das

Stegreiftheater) que modificou toda a estrutura do teatro. Entre 1921 e 1923, tinha

como objetivo produzir uma revolução no teatro, alterar completamente a estrutura

teatral. A tentativa desta mudança concretizou-se de quatro formas segundo

Moreno:

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1. �Eliminação do dramaturgo e do texto teatral por escrito. 2. Participação da audiência, ser na verdade um �teatro sem espectadores�. Todos são participantes, cada um é um ator. 3. Atores e platéia são agora os únicos criadores. Tudo é improvisado: a peça, a ação, o motivo, as palavras, o encontro e a resolução dos conflitos. 4. O antigo palco desaparece; em seu lugar desponta o palco-espaço, o espaço aberto, o espaço da vida, a vida mesma.�. (Moreno, 1984, p. 9)

Das experiências com o Teatro de Espontaneidade, Moreno descobre a

ação terapêutica da dramatização. Através do famoso caso �Bárbara - Jorge� ele

nos relata este efeito terapêutico produzido pela �ação psíquica�.

Bárbara era uma atriz do teatro da espontaneidade que normalmente

desempenhava papeis doces e românticos. Ao assistir suas apresentações, Jorge,

que era autor de teatro, apaixona-se e depois casa-se com ela. Após um tempo

casados, Jorge relata a Moreno que Bárbara em casa é uma pessoa agressiva e

violenta e que não havia mais condições de manter o casamento desse jeito.

Moreno começa a pedir que Bárbara interprete papeis vulgares e violentos, após

essas experiências, Jorge conta que em casa Bárbara está muito mais tranqüila e

quando começa a exaltar-se pára e lembra dos papéis que vivenciou, provocando

algumas risadas.

Neste momento evidencia-se a passagem de um teatro de espontaneidade

para um teatro terapêutico, que vem a fundar o psicodrama.

Em 1925 Moreno migra para os Estados Unidos e a partir de 1929

apresenta-se no Carnegie Hall e no Civic Repertory Theatre. Já em 1936 constrói

o Beacon Hill Sanatorium, o primeiro teatro de psicodrama, uma comunidade

terapêutica que até hoje realiza sessões psicodramáticas e funciona com um

centro de formação de profissionais da área.

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2. ESPONTANEIDADE/CRIATIVIDADE

A espontaneidade é a capacidade de agir de forma inovadora e �adequada�

diante de uma nova situação. É uma resposta inédita, podendo ser transformadora

de situações pré-estabelecidas. Ela propicia ao indivíduo encontrar novas

soluções para seus conflitos, sem ela pode se tornar repetitivo e estereotipado,

sem nenhuma flexibilidade.

O termo �adequação� pode parecer contraditório com a conceituação

moreniana de espontaneidade, porém, o entendimento de �adequação� não tem a

haver com algo a ser seguido, uma ação estabelecida anteriormente pela

sociedade em uma determinada situação (conserva cultural).

É preciso entender que o ser humano para Moreno é sempre em relação a

outro, ao social. A adequação da espontaneidade está configurada pelas relações

que os homens exercem entre si, afetivas e sociais, sempre procurando

transformar seus aspectos insatisfatórios.

�Dificilmente alguém pode promover mudanças no ambiente se age sozinho. Sempre pensamos e agimos em função de relações afetivas (relações cuja experiência tem ressonância emocional), mesmo que não o façamos conscientemente. Ainda que afastado do convívio de fato com outras pessoas, o homem age em função da imagem que tem de si mesmo, de seus semelhantes e de suas relações com estes.� (Gonçalves, 1998, p.47).

A transformação ou a constituição de uma nova situação está imbricada em

criar, ou seja produzir algo novo a partir do que já foi dado. Moreno (1994) afirma

que a espontaneidade e a criatividade não são necessariamente processos

similares ou idênticos, são categorias distintas, a espontaneidade pode ser oposta

à criatividade. Um indivíduo pode apresentar um alto grau de espontaneidade,

mas ser carente de criatividade. É o que ele chama de idiota espontâneo. Por

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outro lado, pode-se encontrar um indivíduo com alto grau de criatividade que não

apresente nenhuma espontaneidade. Este é o que ele considera um criador sem

braços, ou um desarmado.

A espontaneidade é considerada um catalisador da criatividade. Sobre isso

Moreno (1994) argumenta que �a criatividade sem espontaneidade não tem vida.

Sua intensidade vital aumenta e diminui em razão direta da espontaneidade da

qual partilha. A espontaneidade sem criatividade é vazia e abortiva� (p.147).

3. TEORIA DOS PAPÉIS

Para Moreno o ser humano está sempre em relação com outros seres

humanos, e nela cada um atua conforme o papel estabelecido. Assim, este

homem moreniano exerce diferentes papeis. Se um indivíduo trabalha em uma

empresa ele pode exercer o papel de chefe em relação aos empregados

subordinados à ele, ao mesmo tempo que ele exerce o papel de empregado a seu

chefe a quem ele é subordinado. Também este mesmo indivíduo pode exercer o

papel de pai, de filho, de marido, de amigo e assim por diante. Papel é definido

como a função que a pessoa tem em dada uma relação. No entanto, cada

indivíduo atua de uma forma diferente, exercendo o papel cada um de sua

maneira.

�O papel é a forma de funcionamento que o indivíduo assume no momento

específico em que reage a uma situação específica, na qual outras pessoas ou

objetos estão envolvidos� (Moreno, apud Cukier, 2002, p. 201)

Em um primeiro momento em que a pessoa experimenta um papel,

dificilmente ela se sentirá a vontade na atuação, pois está ainda conhecendo esta

nova função. É necessário experimentar mais vezes para desenvolver e para

poder agir dentro desse papel com mais liberdade. Nesta situação é necessário

que os fatores liberdade e espontaneidade estejam acessíveis ao indivíduo.

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Portanto, um período de aquecimento é importante para que o indivíduo consiga

se preparar para a nova atuação.

4. TREINAMENTO DA ESPONTANEIDADE

Numa espécie de laboratório de testes de espontaneidade o Teatro da

Espontaneidade, dirigido por Moreno executou centenas de exercícios. Muitos

foram apresentados com a colaboração do próprio público. Seus resultados foram

analisados dia a dia, o que proporcionou um acúmulo de conhecimentos que

sistematizados fundamentavam a teoria da espontaneidade e da criatividade. A

partir desses experimentos práticos foi possível desenvolver métodos e técnicas

que conseguissem estimular a habilidade do indivíduo. Moreno dá o nome desse

processo de treinamento da espontaneidade.

Moreno (1984) então propõe um treino de espontaneidade:

�(...) O sistema do treino em espontaneidade tem um objetivo que difere do objetivo do ensaio dramático legítimo. A memória do ator deve estar tão treinada que ele disponha de um reservatório de �liberdade�, de um tão grande número de movimentos variáveis, de prontidão, quanto seja possível, de tal modo que disponha de muitas alternativas de resposta, ficando assim capacitado a uma escolha de resposta mais própria, dentre todas, à situação que defronta.� (p.82)

Este treinamento tem o objetivo de fazer com que os atores aprendam a

traduzir através do corpo suas inspirações interiores, de maneira que elas se

tornem convidativas à comunicação com o outro, atores ou espectadores. O

exercício força o ator a criar um repertório imenso de movimentos que sejam

passiveis de serem acionados por uma inspiração a partir da situação que se

apresenta no momento.

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O treinamento é exercitado inúmeras vezes, para que o ator descubra,

experimentando movimentos espontaneamente novos na medida em que vai se

desvencilhando dos clichês.

Moreno retoma o treinamento da espontaneidade da época do teatro da

espontaneidade em sessão terapêutica. Este exercício é feito, colocando o

paciente frente a várias situações postas em série, para que ele as viva dentro de

vários pontos de vistas, papéis.

Porém, como terapeuta reforça o cuidado existente dentro dessa prática:

�Esta série não é elaborada de forma arbitrária, mas sim, organizadas com bases nos resultados do teste sociométrico e de espontaneidade, em relação ao indivíduo específico que queremos reeducar. Elaboramos, cuidadosamente e gradualmente, cada uma das situações padrão, de acordo com a necessidade do sujeito, de modo que passem por fases sucessivas: começam com as formas mais simples, indo até as mais complexas, passando, em seguida, para as mais altamente diferenciada.� (Moreno, 1994, p.100)

5. ESTADO DE ESPONTANEIDADE

O estado de espontaneidade é gerado por um aquecimento prévio, coloca-

se o corpo e a mente em ação através das movimentações corporais e da

imaginação, para chegar nele. Moreno nomeou este aquecimento de processo de

aquecimento preparatório (Warming up process), através dele é possível que

aflorem vários papéis que raramente, ou nunca, foram vivenciados pelo indivíduo.

O processo de aquecimento permite ao indivíduo sair de sua rotina diária,

que pode estar limitado a um pequeno número de papéis e situações. A

potencialidade de sua personalidade para viver os papéis é praticamente infinita,

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vivemos apenas uma pequena parte de sua extensão e para desenvolvê-la é

necessário um treino.

Através de experimentos, Moreno notou que os estados espontâneos são

momentos curtos de baixa duração de tempo, mas com uma intensidade muito

grande de eventos. Um tempo que ele distingue como �(...)bits de tempo, as

menores unidades de tempo(...)� (Moreno, 1997, p.283) e que é entendido

somente na vivência do individuo em estado de espontaneidade, não é apenas

percebido ou construído.

O tempo espontâneo, assim distinguido por Moreno, é a estrutura primária a

todos os outros conceitos de tempo �como os de tempo astronômico, tempo

biológico (...), tempo psicológico (por exemplo a história de um indivíduo).� E por

nele haver uma alta freqüência de eventos, por uma �saturação com atos e

intenções�, pode haver uma sensação de que ele vem de uma �fonte

metapsicológica, de um inconsciente.� (Moreno, 1997, p.119)

Ou ainda:

�(...) Para um criador continuamente equilibrado, não seria necessários conceitos como a vontade, o inconsciente. Para ele, a vontade e as percepções, os fenômenos inconscientes, estão fundidos num só curso de experiência. (...) Para o criador absoluto, a dicotomia inconsciente-consciente não tem sentido nenhum. Para ele, inconsciente e consciente converteram-se em valores idênticos. Está sempre ao nível da criatividade. O conceito de inconsciente é, assim, um subproduto, uma projeção patológica de um sujeito empenhado no aquecimento preparatório de um ato que ele não pode dominar inteiramente.� (Moreno, apud Cukier, 2002, p. 154).

O estado da espontaneidade como diz Moreno é um entidade psicológica

independente, pois não só motiva o estado interno do indivíduo, mas também

atinge o social, ele entra em comunhão com o estado de um outro individuo. Os

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�estados� de duas pessoas criadoras correlacionam-se para a construção de uma

cena. Assim Moreno (1997) definiu o estado de espontaneidade: �(...) Esse estado

é uma distinta condição psicofisiológica; pode ser descrito, por exemplo, como a

condição de um poeta quando sente o impulso para escrever ou a de um homem

de negócios quando sente que uma grande idéia o dominou; é o momento de

Amor, de Invenção, de Imaginação, de Adoração, de Criação.� (193-194).

Este estado não surge automaticamente, ele é fruto de um ato de vontade

do indivíduo de superar barreiras enraizadas pela conserva cultural. Moreno

(1984) conclui que o ator espontâneo deverá suplantar quatro formas de

resistência pára alcançar o estado de espontaneidade: (a) resistências que são

próprias de suas ações corporais; (b) de sua personalidade para a produção de

idéias; (c) resistências que venham de ações corporais, das idéias e das emoções

de outros atores no trabalho com ele, (d) e as resistências que enfrenta sob o

julgamento próprio e de quem o assiste. Nesse estado a produção do ator não se

da conscientemente, mas por uma libertação da espontaneidade dessas

�vontades conscientes�, que impedem de exercer atos espontâneos para dar

continuidade a uma conserva cultural.

6. CONSERVA CULTURAL

A conserva cultural caracteriza-se por atos ou produções humanas que se

mantém em uma determinada cultura, com o objetivo de dar segurança para

atuarmos em papéis aos quais não estamos acostumados.

Ela tem um papel fundamental na preservação da identidade cultural de

uma sociedade, além de garantir a sobrevivência frente a situações ameaçadoras.

�Assim, a conserva cultural é uma categoria tranqüilizadora(...) Aos nossos ancestrais deve ter parecido muito mais útil e valioso empregarem todas as suas energias na promoção de conservas culturais e não confiar nas improvisações momentâneas, no caso de

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emergências individuais e sociais. As conservas culturais serviram para dois fins: eram prestimosas em situações ameaçadoras e asseguravam a continuidade de uma herança cultural.� (Moreno, apud Cukier, 2002, p. 58).

As conservas culturais podem ser conservas tecnológicas ou conservas

humanas. A primeira consiste nas produções humanas como livros, músicas,

filmes, construções arquitetônicas e etc. Já a segunda se caracteriza como

aquelas que utilizam o organismo humano como veículo.

De inicio uma conserva cultural foi um ato ou uma produção humana

espontânea que obteve êxito em sua realização em determinada situação,

portanto, conservou-se como um hábito para a obtenção de sucesso para aquele

tipo de situação.

No entanto, por terem esta característica inflexível ela pode nos prender

sempre nas mesmas condutas, não abrindo possibilidades para uma ação

espontânea e criadora. Sendo assim, ela forma um impedimento da

espontaneidade.

Se por um lado ela traz um benefício quando nos sentimos inseguros para

desempenhar um papel desconhecido, por outro ela pode se tornar um mal, por

nos manter reproduzindo comportamentos estereotipados que muitas vezes

podem não ser adequados.

Sendo assim, as conservas culturais podem se tornar grandes barreiras

para a criatividade e para a espontaneidade se elas forem além de um ponto de

partida para o desempenho de uma ação.

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CAP. II - O ESTADO INTERIOR DE CRIAÇÃO 1. O NATURALISMO

O Naturalismo foi movimento estilístico em diversas vertentes artísticas por

volta de 1880-1890. Considera que apenas as leis da natureza podem explicar o

mundo. O homem está fadado a um condicionamento e ao determinismo,

biológico, hereditário e social, o que acaba imprimindo em qualquer obra

naturalista um tom extremamente pessimista das relações humanas.

Como movimento que retrata a realidade com extrema objetividade e

fidelidade, o naturalismo foi influenciado pelo Positivismo de Auguste Comte

(1798-1857) e pela Teoria Determinista da Evolução das Espécies de Charles

Darwin (1809-1882). Considerava necessário que o artista observasse e

experimentasse a realidade da vida como um cientista, de forma imparcial, e a sua

obra deveria ser um �retrato� fiel de quanto a realidade pode ser detestável, dura e

feia.

O Naturalismo segue o Realismo, que também tem como princípio

fundamental que a arte deve observar e retratar com fidelidade a realidade. Pode-

se dizer que o Naturalismo vem a ser a exacerbação do Realismo assim como o

Naturalismo tem maior comprometimento, através de seu caráter experimental, em

observar e retratar de forma crítica os problemas sociais criados pela burguesia e

a Revolução industrial.

A arte no naturalismo é engajada, de denúncia, com preocupações políticas

e sociais, retrata os aspectos mais degradantes. Seus personagens na maioria

são das camadas sociais inferiores, o proletariado.

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Pavis (1999), em Dicionário de Teatro, diz que a encenação na estética

naturalista se dá como sendo a realidade, e não como uma adaptação artística no

palco. Sendo assim, três características se tornam imprescindíveis para analisar o

teatro naturalista:

- O meio

A produção do cenário procura torná-lo tão verdadeiro quanto a natureza,

frequentemente compondo-o com objetos reais. Porém, o que mais interessa aqui

é o conceito de meio ambiente � um conjunto de condições exteriores nas quais

vive o homem, que, para os naturalistas, não podia ser separado de seu ambiente.

No teatro, o meio ambiente passa a ser o local de observação do homem.

Segundo Antoine �o meio que determina o movimento das personagens e não os

movimentos das personagens que determinam o meio� (Antoine, apud Berthold, p.

454, 2004).

A dramaturgia centra-se na lenta desintegração do homem. A cena torna-se

uma substância bem trabalhada, impregnada da atmosfera muitas vezes mórbida

de uma família, de uma empresa, de uma classe social ou de uma humanidade

perdida.

- A língua

O uso da língua deve reproduzir os diferentes estilos, dialetos e modo de

falar, próprios das diversas camadas sociais. Nega-se o lirismo poético, o que vale

é a sugestão de que as palavras e a estrutura do texto são próprias da

personagem.

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- A interpretação do ator

O objetivo do ator é criar a ilusão de uma realidade mimética, idêntica,

tornando necessária uma total identificação com a personagem e a produção da

quarta parede2, que separa a platéia do público.

2. STANISLAVSKI E O TEATRO DE ARTE DE MOSCOU - 1897

Segundo Berthold (2004), o planejamento de todos os detalhes artísticos e

organizacionais permaneceram características do Teatro de Arte de Moscou

durante todo seu desenvolvimento: nenhum outro teatro manteve tão inalterado

seu senso de missão durante tantas décadas. O Teatro de Arte de Moscou nasceu

de um encontro, em um restaurante de Moscou, entre Stanislavski e Nemirovitch-

Dantchenko � o primeiro assumiu a responsabilidade das questões artístico-

cênicas, e o segundo, a direção literária.

Quando os Meiningers foram a Moscou em 1885, Stanislavski, assistiu a

todas as apresentações. Admirava a disciplina da companhia, mas o modo

ditatorial de dirigir de Ludwing Chronegk (1837-1891), então diretor, levaram-no à

ponderação dos prós e contras do poder do diretor e seus possíveis efeitos

tirânicos. Stanislavski, por sua vez, viria sempre a apelar pela compreensão de

seus atores, sintonizando-os com as exigências de seus papéis � o que seria a

base de trabalho que construiria seu método. Em 14 de outubro de 1898, fizeram

sua primeira apresentação.

2 �Parede imaginária que separa o palco da platéia. No teatro ilusionista (ou naturalista), o

espectador assiste a uma ação que se supõe rolar independentemente dele, atrás de uma divisória

translúcida. Na qualidade de voyeur, o público é instado a observar as personagens, que agem

sem levar em conta a platéia, como que protegidas por uma quarta parede. (...) O realismo e o

naturalismo levam ao extremo essa exigência de separação entre o palco e platéia (...). (Pavis,

p.316. 1999).

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Com A Gaivota, a segunda de suas montagens, o teatro ligou-se ao nome

de Anton Tchekhov. O esforço, agora, concentrava-se na interpretação, na

projeção de estados de ânimo, matizes de sentimentos. A interpretação enveredou

pela nova estrada da intuição e do sentimento.

O Teatro de Arte de Moscou havia encontrado seu autor e seu estilo.

Tornou-se a �casa de Tchekhov� e, daí em diante, uma gaivota com as asas

abertas seria seu emblema. Com as obras de Maxim Gorki (1868-1936),

Stanislavski ganhou um novo componente, o drama de acusação e crítica social.

Durante os ensaios de No Fundo, de Gorki, Stanislavski levou seus atores

ao mercado Khitrov, num subúrbio de Moscou onde vivia uma população

marginalizada. Eles comeram com essa gente e Olga Knipper (1868-1959), atriz e

esposa de Tchekhov, dividiu um quarto com uma prostituta, a fim de conhecer que

tipo de vida poderia levar a personagem Natasha.

3. O SISTEMA DE STANISLAVSKI

O Sistema de Stanislavski consiste em uma técnica para desenvolver a

interpretação do ator de forma que esta seja uma criação orgânica e inteira.

Contudo, Stanislavski (2001b) defendia que seu sistema não equivalia a um estilo

de representação e nem consistia numa receita, onde basta seguir seus passos

para obter um resultado satisfatório. �Ninguém garante que se você seguir a

notação você será um bailarino; os passos estarão todos anotados, mas ainda

terão de ser dançados� (Lewis, 1962, p. 33).

Seu sistema funciona como um eliciador do processo criativo. Stanislavski

(2001a) lembra que despertar a vontade criadora é difícil, porém, matá-la é

facílimo. Por isso, deve-se observar e desenvolver todos os aspectos

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contemplados no sistema, lembrando que se trata de um sistema cujas partes

levam ao processo de criação, ou seja, deve-se manter visão sistêmica do

processo. �A criatividade é, antes de tudo, a completa concentração de toda a

natureza do ator.� (Stanislavski, 2001a, p. 17)

O Sistema Stanislavski trata de um trabalho profundo que mexe

principalmente com a natureza das pessoas envolvidas, pois, trata-se de um

método para desenvolver o ser humano. Para ele o trabalho criador, em parte, é

realizado sob controle do nosso consciente, mas em proporção maior é

inconsciente e involuntário.

Stanislavski entende que todo o invento da imaginação do ator deve ser

minuciosamente elaborado e erguido sobre uma base de fatos, isso porque a

imaginação deve permitir uma realização/execução dos fatos.

4. ATENÇÃO

O conceito de atenção envolve os quatro seguintes aspectos:

- Concentração

O elemento concentração ou concentração da atenção refere-se à

capacidade de, por escolha, e a qualquer momento que o ator queira, centralizar a

atenção em alguma coisa. Ele ajuda a �determinar a importância do que está

acontecendo numa cena� (Lewis, 1962, p. 43). Stanislavski (2001a) sugere que

para se colocar a criatividade em prática temos que ter alguma coisa que nos

interesse no objeto de nossa atenção. A �(...) inspiração criadora está sempre

estreitamente ligada à concentração de sua atenção (...)�(p.19), a profunda

observação sobre o objeto aumenta a vontade de utilizá-lo, por sua vez, o seu uso

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aumenta ainda mais a concentração da atenção sobre ele. Estabelece assim uma

relação cada vez mais intensa, provocando o ator à uma atitude criadora.

Para o ator, o objeto de sua atenção é o palco onde desenrola a cena. Um

ator disciplinado pode formar um círculo imaginário onde concentra todo o esforço

de sua atenção, ao mesmo tempo em que é capaz de ouvir tudo o que se passa

além do limite dele, sem perder o foco de seu objetivo. Pode ainda, restringir o

círculo criando um estado que Stanislavski nomeia de solidão em público:

�Num círculo de luz em cena, em meio ao escuro, vocês tem a sensação de estarem inteiramente sós. (...) A isto chamamos de solidão em público. (...) Durante uma representação, diante de um público de milhares de pessoas, vocês sempre poderão encerrar-se neste círculo, como um caracol em sua casca. (...) Onde quer que forem, poderão levá-lo consigo.� (Stanislavski, 2001a, p.171)

Este círculo de atenção é flexível, podendo ser ampliado ou diminuído.

Tudo o que for colocado ou retirado, deve estar em conformidade com o os

objetivos da ação no palco, há sempre um objeto central de atenção imediato

dentro dos limites do círculo.

- Concentração da Atenção Sensorial

�Para manterem a atenção fixa em seu objeto enquanto estão

representando, vocês precisam de um outro tipo de atenção, que provoca uma

reação emocional. Devem ter algo que estimule seu interesse no objeto de sua

atenção, e que sirva para acionar todo o seu mecanismo criador.� (Stanislavski,

2001a, p. 19)

O objeto deve se transfigurar em algo realmente significativo para o ator,

sua relação com ele ultrapassa o campo da intelectualidade e do racional para

trazer um sentido �espiritual� humano nesta afinidade. O ator tem que ser sensível

à influencia que o objeto possa exercer sobre ele, o uso da imaginação ou a

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atribuição de uma vida imaginária ao objeto podem aguçar os sentimentos nesta

relação.

- Objetos Imaginários de Atenção

Os nossos sentidos acostumados a explorar o mundo em que vivemos nos

servem para a construção de imagens interiores. Elas são fontes permanentes da

concentração interior da atenção, por onde buscamos a criação.

Os objetos imaginários, segundo Stanislavski (2001a), solicitam do ator

uma capacidade de atenção muito mais disciplinada do que os objetos que se

apresentam materialmente a sua frente, e, portanto requerem exercícios

constantes de imaginação na preparação do ator. O que seve para treino de

concentração de atenção.

- Atenção Física

A arte do ator está o tempo todo implicada em alguma ação no palco. O

corpo é seu instrumento que está o tempo todo em movimento, mesmo que este

seja somente um movimento interno.

Os gestos feitos pelo ator ao interpretar uma personagem provocam

sentimentos nele, que por sua vez voltam-se novamente para o corpo do ator em

cena. Nessa dialética, onde o corpo estimula o aparecimento de sentimentos e os

sentimentos incitam todo o gestual do ator, há uma fluência de energia pelo corpo

todo. �(...) A criatividade em cena, durante a preparação de um papel ou ao longo

de todas as suas representações, exige a completa concentração de toda a

natureza física e interior [do ator], e a participação de todas as suas faculdades

físicas e interiores.� (Stanislavski, 2001a, p.19)

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Segundo Stanislavski (2001b), é importante para o ator voltar sua atenção

para onde esta energia encontra-se bloqueada, para que consiga libera-la de

pontos onde há pressão. Este exercício fará com que todos os músculos do corpo

estejam disponíveis para a criação da personagem.

5. SUPEROBJETIVO

O superobjetivo é o tema, a idéia norteadora da peça. Tudo na peça

(pensamentos, sentimentos e ações do ator), até mesmo os detalhes mais

insignificantes, deve estar relacionado a ele, ao seu cumprimento. �Se não tiver

relação com o superobjetivo, salientar-se-á, como supérfluo ou errado�

(Stanislavski, 2001a, p. 285). É necessário um superobjetivo que �se harmonize

com as intenções do autor e ao mesmo tempo desperte repercussão na alma dos

atores. Isso significa que temos de procurá-lo não só na peça, mas, também, nos

próprios atores�. (Stanislavski, 2001a, p. 313).

A ação, intenção ou objetivo é o principal elemento de uma interpretação,

ela é �a razão de ser em cena� (Lewis, 1962, p. 37). O que quer que aconteça no

palco deve ter um propósito determinado, um objetivo, e este, por sua vez, deve

estar estritamente ligado ao superobjetivo:

�[...] não pode haver, em circunstância alguma, qualquer ação cujo objetivo imediato seja o de despertar um sentimento qualquer por ele mesmo. [...] Nunca procuram ficar ciumentos, amar ou sofrer, apenas por ter ciúme, amar ou sofrer. Todos esses sentimentos resultam de alguma coisa que se passou primeiro. Nesta coisa, que se passou antes, vocês devem pensar com toda a força. Quanto ao resultado, virá por si só (...).� (Stanislavski, 2001b, p. 90).

Assim, a ação está ligada a um objetivo e às circunstâncias que a

antecedem e a envolvem. Portanto, deve-se evitar realizar uma ação pelo simples

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fato de fazê-la, para que esta não se torne supérflua. Para o teatro na concepção

naturalista a ação deve ter justificativa, ser lógica e coerente.

6. ESTADO INTERIOR DE CRIAÇÃO

O Teatro de Arte de Moscou, dirigido por Stanislavski, concebia sua arte

através da estética naturalista, procurando trazer ao palco cenas profundamente

condizentes com a realidade do ser humano, tanto psicológicas quanto sociais.

Houve, portanto, a necessidade de descobrir um estado em que o ator

encontrasse um caminho para representar sentimentos verdadeiramente humanos

sem torná-los falsos, o que seria uma das grandes dificuldades dentro desta

concepção estética. A personagem vive em uma circunstância anormal para o

ator, pois esta situação não necessariamente aconteceu com ele. E como

transforma-la em uma verdade? Como ser criador dentro desta circunstância?

Segundo Stanislavski (2001c) o ator é obrigado a evocar sua inspiração, o

que faz de uma forma consciente:

�(...) Um tal gênio não existe. (...) Portanto, nossa arte nos ensina, antes de qualquer outra coisa, a criar de uma forma consciente, (...) pois esta é a melhor maneira de preparar o caminho para (...) a inspiração. O realismo, e até mesmo o naturalismo, são essenciais na preparação interior de um papel, pois ativam o subconsciente (...) criativo, e o lugar onde procura-lo encontra-se, sobretudo, num objetivo estimulante.�(p. 114)

O ator ao se entregar completamente na realização desta criação atinge

este estado de criação. O caminho proposto por Stanislavski, parte de ações

físicas, de estabelecer uma linha de ações que esta personagem faria, podendo

ele captar todos os recursos técnicos e emocionais produzidos por elas, até que

se transforme em sua segunda natureza. Adotando todas as circunstâncias dadas

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pelo papel até se tornarem pertencentes a ele, assumindo assim o controle de sua

ação criadora.

�Quanto ao estado criador de um ator, é extremamente importante que ele sinta o que chamo �Eu sou�. Existo aqui e agora, como parte componente da vida de uma peça, em cena. (...) A forma de ajudar um ator a descobrir-se em seu papel e a descobrir o papel em si próprio (...) é deixá-lo decidir, com sinceridade, como responder a pergunta: O que eu faria aqui e agora se, na vida real, tivesse que agir em circunstancias análogas àquelas determinadas pelo meu papel?� (Stanislavski, 2001c, p.13)

O ator na cena de uma peça, diante do público, pode perder o domínio de si

mesmo. Ele pode entrar no que Stanislavski chama de estado de espírito

mecânico e teatral, suas ações acabam tornando-se falsas. Por uma necessidade

de agradar ao público e ocultar este estado em que se encontra fala, ouve, pensa,

sente e até move-se em cena de forma anormal para a situação colocada em

cena.

Em suas observações, procurou um novo caminho para levar o ator a um

outro estado, a um estado criador. Nele primeiramente não deve existir qualquer

tensão física e seu corpo deve estar completamente subordinado à vontade do

ator, a criatividade está condicionada à concentração de toda a sua natureza,

assim como coloca Stanislavski (2001a): �Um ator, portanto, volta-se para seu

instrumento criador, tanto espiritual quanto físico. Sua mente, vontade e

sentimentos combinam-se para mobilizar todos os seus �elementos� interiores. (...)

Desta fusão de elementos surge um importante estado interior, (...) o estado

interior de criação. O hábito de estar diariamente em cena e no estado criado

apropriado é o que produz os atores que têm um domínio pleno de sua arte.�. (p.

71).

Stanislavski (2001a) defendia a realidade da cena, onde o autor deveria

buscar inspiração na vida real, utilizando seus próprios sentimentos nos

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personagens, para que estes tivessem vida própria. Esse realismo era chamado

por ele próprio de realismo espiritual:

�A abordagem pela qual optamos � a arte de viver um papel � [afirma] que o principal fator em qualquer forma de criatividade é a vida de um espírito humano, a do ator e seu papel, seus sentimentos comuns e sua criação subconsciente3. (...)O que temos em mais alta conta são as impressões formadas sobre nossas emoções, que deixam uma marca permanente no espectador e transformam os atores em seres vivos e reais (...) Atuem sempre com sua própria pessoa. (...)Vocês nunca poderão fugir de si mesmos. A partir do momento em que se perderem no palco, terão deixado de viver com verdade o seu papel, e passarão a atuar de forma exagerada e falsa. O realismo espiritual e a autenticidade dos sentimentos artísticos (...) constituem a mais difícil [realização] de nossa arte, exigindo, ambos, uma árdua e longa preparação interior.� (Stanislavski, 2001b, p.235)

3 �A função de nossa técnica (...) é colocar nosso subconsciente em operação [para criar a verdade artística]. (...) Vemos, ouvimos, entendemos e pensamos de forma diferente, antes e depois de havermos cruzado o limiar do subconsciente. (...) Nossa liberdade deste lado (...) é limitada pela razão e pelas convenções; além dele, nossa liberdade torna-se arrojada, voluntariosa, ativa, num constante movimento de avanço. (...) Algumas vezes, o fluxo do subconsciente toca de leve um ator, e logo a seguir desaparece. Em outras ocasiões, envolve todo o seu ser e o leva para as suas profundezas, até que, finalmente, volta a lançá-lo nos domínios da consciência.� (Stanislavski, 2001c, p. 173)

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DISCUSSÃO No livro Arco-íris do desejo (1996), Augusto Boal elege o teatro como a

primeira invenção humana, possibilitadora de todas as outras descobertas. Em

sua essência o teatro seria a �capacidade ou a propriedade� humana de observar-

se a si mesmo, permitindo-lhe ser dois sujeitos ao mesmo tempo, um que age e o

outro que observa. Nessa dicotomia, o ser humano acaba por enxergar os outros

indivíduos,aquilo que ele não é.

�O ser torna-se humano quando inventa o Teatro. No início, Ator e espectador coexistem na mesma

pessoa; quando se separam, quando algumas pessoas se especializam em atores e outras em espectadores, aí nascem as formas teatrais tais como as conhecemos hoje. Nascem também os teatros, arquiteturas destinadas a sacralizar essa divisão, essa especialização. Nasce a profissão do ator.

A profissão teatral, que pertence a poucos, não deve jamais esconder a existência e permanência da vocação teatral, que pertence a todos. O teatro é uma atividade vocacional a todos os seres humanos.� (Boal, 1996, p. 28)

O principal objetivo das pesquisas de Stanislavski é a de �(...) estabelecer a

total intimidade entre o ator e a personagem, para que haja a identificação entre

ambos.� (Magaldi, 2000, p. 31) Stanislavski busca uma interpretação que não

parecesse falsa aos olhos dos espectadores, pretendia trazer a vida real ao

palco, tanto no âmbito social quanto no psicológico. Pôs-se a observar nos

espetáculos e nos ensaios os atores e a si mesmo, ao mesmo tempo em que

submetia os companheiros do Teatro de Arte de Moscou a contínuas experiências

dramáticas.

Uma de suas mais importantes conclusões �(...)ligava-se ao papel da

liberdade corporal e da sua função essencial no suscitamento da emoção interna

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na atuação interpretante.� (Guinsburg, 2001, p. 312) Notou que através dos

exercícios físicos e da imaginação o ator chegava a um estado de criação onde

não haveria barreiras para que o subconsciente viesse a tona na criação da

personagem.

�Pensa-se, com esse procedimento, alcançar a fusão do intérprete com o papel, fornecendo ao espectador a ilusória possibilidade de escutar e ver agir a própria personagem e não quem representa. Esse pressuposto condicionaria o ator a embriagar-se no propósito de abdicar do próprio eu em função do eu absoluto da personagem. Stanislavski guarda-nos do erro, afirmando que �o ator não pode experimentar senão seu próprio sentimento, não pode agir senão em seu próprio nome. Ele não saberia tomar de empréstimo outra personalidade. No palco, o ator continuará ele mesmo, sentirá o que representa, medindo-se sua arte pela faculdade de reviver a vida da personagem�.� (Magaldi, 2000, p. 30)

Moreno partindo de sua idéia da �espontaneidade como natureza

primordial, que é imortal e reaparece em cada nova geração� (Moreno, apud

Gonçalves, 1988, p. 13) fundou o Stegreiftheater como uma forma de ir contra as

instituições sociais e a �robotização� do ser humano. Encontrou no teatro a

possibilidade de fazer sua revolução. Investiga a espontaneidade e a partir da

experimentação dramática busca um rompimento de comportamentos

padronizados, possuidores de valores que moldam a vida social que acarretam na

automatização do ser humano.

Moreno (1984) observou que os atores do teatro da espontaneidade só

conseguiam comportar-se espontaneamente se estivessem em um estado em que

não houvesse impedimentos para a manifestação da sua espontaneidade e da

sua criatividade. Segundo ele, o estado de espontaneidade é gerado por um

aquecimento prévio em que o ator coloca o seu corpo e a sua imaginação em

movimento.

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Apesar de terem objetivos diferentes, Moreno e Stanislavski buscavam em

suas experimentações uma dramatização que fosse verdadeiramente humana.

Stanislavski no Teatro de Arte de Moscou experimentava, a partir de uma

concepção naturalista no teatro, a construção das personagens das obras de

Gorki, Tcheckov entre outros. Havia uma importância estética guiada pela

concepção naturalista de arte que preocupava-se em trazer aos palcos o retrato

da realidade para aqueles que o assistiam.

Para a criação das personagens, chegava-se ao estado interior de criação

onde o ator com seus próprios sentimentos pudesse criar as características e as

ações destas no ambiente em que se desenrolava a história. Porém, antes desta

criação através deste estado, o �trabalho de mesa� deve ser feito minuciosamente.

No sistema de Stanislavski o ator antes de começar a criar a personagem, deve

se debruçar sobre o texto e analisá-lo de forma que no final entenda

conscientemente todas as histórias vividas, todos os sofrimentos, alegrias e todo o

ambiente em que se desenvolve a peça.

Por outro lado, os investimentos de Moreno não estavam fundamentados

sobre uma corrente artística. Entendia que o teatro, tanto como arte quanto como

terapia, era um caminho para encontrar novas possibilidades de observar e agir

sobre o mundo. O teatro da espontaneidade se transforma em um teatro

terapêutico, que se converte em psicodrama quando se verifica que a

dramatização proporcionava aos atores a fazerem teatro no sentido que aponta

Boal: o de ser alguém que age, que se observa agindo e que observa o que não é

si próprio.

É importante apontar que o teatro naturalista de Stanislavski também

entendia a arte como possibilitadora de novos meios para entender o mundo. No

teatro naturalista há uma preocupação com o mundo no qual o ser humano está

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inserido e, portanto caracteriza-se muitas vezes por um tom de denúncia à

sociedade atual.

No teatro da espontaneidade e no psicodrama, a dramaturgia acontece

paralelamente a ação que se desenrola, o ator é o próprio dramaturgo, que trazia

elementos de sua vida na construção da cena e da história. Para Moreno a forma

com que o sistema de Stanislavski trabalha a criação está enraizada nas

conservas culturais e não na espontaneidade da forma como ele entendia:

�O teatro da espontaneidade não tem relação alguma com o assim chamado método de Stanislavski. A improvisação, neste método, suplementa o objetivo de representar um grande Romeu ou um grande Rei Lear. O elemento de espontaneidade, aqui deve servir à conserva cultural, deve revitalizá-la. (...) Sua mais elevada ambição era a de reproduzir o trabalho do dramaturgo tão dinâmica e perfeitamente quanto possível.� (Moreno, 1984, p. 119)

No inicio da primeira década do século XX Stanislavski investigava, de uma

forma enraizada na concepção de teatro vinda do século anterior, a melhor forma

de interpretar as personagens, de forma não estereotipada, de uma peça escrita

anteriormente por um dramaturgo. Stanislavski, que nessa época já havia entrado

em contato com A interpretação dos sonhos (1900) de Sigmund Freud, observou

que era necessário o ator trazer a tona seus próprios sentimentos, fazer emergir o

subconsciente para a construção da personagem.

Moreno, por outro lado investigava no teatro uma forma de quebrar os

moldes sociais impostos pelas conservas culturais. Experimentava uma nova

forma de teatro, um teatro do momento em que a dramaturgia era feita no

presente pelos próprios atores, mas que como Stanislavski, procurou quebrar os

comportamentos estereotipados na interpretação das personagens.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por mais que as investigações de Moreno e de Stanislavski tenham

propósitos diferentes, estabelece-se uma relação entre o estado interior de criação

e o estado da espontaneidade. Ambos os autores entendiam que para a

interpretação não ficasse estereotipada era necessário entrar em um estado onde

pudesse haver um caminho sem obstáculo para a emersão de uma �fonte�

criadora, e que ela deveria ser da própria pessoa que se propõe a criar. Seria o

subconsciente, para Stanislavski e a espontaneidade para Moreno a alimentação

destes pequenos �bits� de tempos de �inspiração�.

Alem disso, outra semelhança destaca-se entre os dois conceitos. O ator só

chegaria nesse estado se por vontade própria fizesse um aquecimento prévio ou

exercícios físicos e de imaginação, já que em suas investigações os dois diretores

não deixam de destacar a ligação que existe entre o psíquico e o corpo, um sendo

o caminho para se chegar ao outro.

Portanto, o estado interior de criação e o estado de espontaneidade

caracterizam-se em ambas as teorias como uma situação interna em que o ator

procura chegar, através da movimentação de seu corpo e de sua imaginação,

para que as �fontes� que proporcionam o ato de criar apareçam. Sendo elas,

própria do individuo, que busca novas possibilidades para a dramatização na vida

e no palco.

É possível estender a relação entre as teorias de Moreno e de Stanislavski

no aprofundamento de conceitos que ficaram de fora da pesquisa como a tele e

matriz de identidade¸ teorizada por Moreno, e memória emotiva e linha direta de

ação, conceituada por Stanislavski.

Porém, é importante destacar que durante o processo optou-se pela

apresentação e discussão de conceitos, que no meu ver, estavam mais próximo

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do objetivo deste trabalho: aprofundar e relacionar os conceitos de estado de

espontaneidade e de estado interior de criação, proporcionando uma aproximação

entre a psicologia e a arte.

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REFERÊNCIAS BERTHOLD, Margot, História mundial do teatro. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.

BOAL, Augusto, O arco-íris de desejo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. CUKIER, Rosa, Palavras de Jacob Levy Moreno. São Paulo: Agora, 2002. GONÇALVES, Camila Salles; WOLFF, José Roberto; ALMEIDA, Wilson Castello de, Lições de psicodrama. 5 ed. São Paulo: Agora, 1988.

GUINSBURG, J, Stanislavski, Meirhold & cia. São Paulo: Perspectiva, 2001.

JUNG, Carl G., O homem e seus símbolos. 18 ed. Rio de Janeiro: Editora Nova

Fronteira,

LEWIS, Robert, Método ou loucura. Rio de Janeiro: Editora Letras e Artes, 1962. MAGALDI, Sábato, Iniciação ao teatro. 7 ed. São Paulo: Ática, 2000.

MORENO, Jacob Levy, O teatro da espontaneidade. São Paulo: Summus, 1984. ___________________, Psicodrama. 12 ed. São Paulo: Cultrix, 1997. ___________________, Quem sobreviverá?: fundamentos da sociometria, psicoterapia de grupo e sociodrama. Goiânia, 1994. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.

STANISLAVSKI, Constantin. A preparação do ator. 17. ed. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2001a.

_____________, Constantin. A Construção da Personagem. 6. ed. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2001b.

_____________, Constantin, Manual do ator. São Paulo: Martins Fontes, 2001c.

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BIBLIOGRAFIA CONSULTADA MORENO, Jacob Levy, Fundamentos do psicodrama. 2 ed. São Paulo: Summus, 1983. SATANISLAVSKI, Constantin, A criação de um papel, 9 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003 _______________________, Minha vida na arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.