criaçao de um papel - stanislavski

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  • 5/11/2018 Criaao de um papel - Stanislavski

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    ColecaoTEATRO HOJEDLRE

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    " 'raduzido do original norte-americano:CREATING A ROLE .Copyright 1961 by Elizabeth Reynolds HapgoodTraduzido e publicado mediante acordo com aTHEATRE ARTS BOOKS, New York.

    Sumario

    Traduzido do original russo para 0 ingles por ELIZABETHREYNOLDS HAPGOOD.

    Prefacio - Robert LewisNota da tradutora norte-americana

    913

    Coordenacao editorial de ROBERT LEWIS PRIMEIRA PARTE - "A DESGRA RJque se reserva a propriedade desta traducao.

    1984 o superconsciente

    58596S70769094

    II- 0 periodo de experiencia ernocionalImpulsos interiores e acao interiorObjetivos criadoresA partitura de ur n papel0 tom interior0 superobjetivo e a a

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    VVIVII

    A criacao da vida fisica de urn papelAnaliseAtericao do trabalho executado e resumo

    TERCElRA PARTE - "0 INSPETOR GERAL", DE GOGOL

    VIII - Das acoes fisicas a imagem vivaAPENDICES

    A. Suplemento para A criaciio de urn. papelUr n plano de trabalho

    B. Improvisacoes sabre "Otelo"

    14516520 6

    225 PrelacioRO.ijERT LEWIS

    26 326 326 7

    AQUI, quase urn quarto de seculo apos a sua morte \estao mais algumas pepitas da vasta mina de ouro que foi acontinua busca de Stanislavski, na perseguicao de urn metodoverdadeiro e artistico de treinar atores e elaborar papeis, Asubstancia de A criaciio de um papel e tao rica, tao provocante,que nos faz sentir a possibilidade de tomar muitas das ideiasaqui apresentadas e expand i- las em ensaios ou livros.

    A primeira das tres partes deste volume decompoe, demodo particularmente brilhante, a processo pelo qual se deveelaborar urn papel. Confirmara ou esclarecera muitos pontos,para atores e diretores que ja trabalham de acordo com estaorientacao. Para os que nao 0 fazem, D estudo de como Sta-nislavsk abordou a seu papel de Chatski em A desgraca de

    1 Constantin Stanislavski morreu em 1938. Robert Lewis escreveueste prefacio em 1960. (N. do T.)

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    fisica do papel e melhor, para nutrir sua verdade interior, doque [orcar as sentimentos. E1e persegue a personagem utili-zando a justif icacao das acoes fisicas do papel, colocando.sen as c ir cu nsta nc ia s d e p er so na ge m por meio do famoso Se-Ma-gico, e decompondo a linha interior do papel em objetivos 10-gicos. Em outras palavras, uma analise interior e exterior deleproprio, como ser humano, nas circunstancias da vida do senpapel, sendn os seus proprios scntimentos escolhidos semprede modo que sejam analogos aos sentimentos contidos no papel.Isto promove a "representacao verdadeira da vida do papelna peca" .

    Particularmente interessante para os diretores e, no apendi-ce, uma sumula de vinte itens de urn plano de ensaio, desde aprimeira lei tura ate a caracterizacao final, Certas sugestOes (comopor exemplo, a de perguntar aos atores em que ponto do palcoeles gostariam de estar em dados mementos) sao privilegio dediretores que possam dispor de teatros permanentes. No show-business, isto e, com producoes isoladas, uma de cada vez,reunindo sernpre novos gmpos de atores, todos eles com ante-cedentes diversos, dispondo apenas de tempo limitado para osensaios, e bem possivel que 0 diretor queira abrir mao dessaIacilidade . Atraves das tres partes deste livro, obtemos 0re-trato de urn verdadeiro artista em seu trabalho, fracassando a svezes, mas sem desespero, e sempre em busca de respostas ver-dadeiras, (Ele reforrnulou seu papel de Satin em Rale, de Gor-ki, depois de te-lo representado durante dezoito anos!) asadmiradores de A preparaciio do ator e de A construciio dapersonagem apreciarao muitissimo A criaciio de urn papel.Aqueles para quem a leitura deste livro constitui seu prirneirocontato com os escritos de Stanislavski desejarao examinaros outros dois, Urn estudo minucioso des tres livros revelara 0importantissimo ponto de como aplicar na preparacao dos pa-peis a tecnica estudada em aula.

    Ternes aqui, portanto, mais as palavras do mestre que asde sells discipulos. E um livro para todos os profissionais doteatro, bern como para seus estudantes. Quer concordando,quer discord'ando, do todo ou de algumas partes, e impossivelnao nos seutirmos estimulados e enriquecidos por ele.

    Nota da tradutoraN orte- Americana

    A CRIAt;:AO DE UM PAPEL e 0 terceiro volume da trilo-gia planejada por Stanislavski sobre 0 treinarnento do ator.Os dois primeiros, A preparaciio do ator e A construcdo dapersonagem, embora publicados com urn intervale de trezeanos, visavam descrever 0 regime do ator jovem, mais ou me-'ODS em urn periodo -do seu desenvolvimento: enquanto treina-va suas qualidades interiores, de memoria afetiva, imaginacaoe concentracao, ele ia desenvolvendo tam bern seus recurs osfisicos, com urn rigoroso trabalho em sua voz e seu corp 0,justamente os instrumentos capazes de dar forma vivida econvincentemente concreta aquilo que a vida interior pudessedesenvolver, Agora, passados doze anos, podemos publicar 0projetado terceiro volume. Esta Iase do ensino de Stanislavskique ele achava devia ser at ingido pelo ator apos 0 dominio dasduas outras, e a preparacao de papeis especificos, a partir daprimeira leitura da peca e do desenvolvimento da prirneira

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    do para atores na~ russos, Fizemos algumas leves mudancasna ordeI?- das. sc~?es .em cada versao, quando nos pareceuque Stanislavsk] terIa f~l to 0 mesmo, se lhe fosse dado 0tempode rever seus. ~anuscntos. ~crescentaram-se notas do organi-zador ,d~ edicao norte-amencana fornecendo as Intormacoesnecessanas, extraidas de A preparactio do ator e A construcsoda personagem, e proporcionando uma base que, como a Sra.Popper e eu esperamos, tornara mais compensadora para tadosa leitura de A criaciio de um papel, _

    Elizabeth Reynolds Hapgood

    New York City1Q de junho de 1961.

    : i

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    PRIMEIRA PARTE

    A Desgraca de Ter Espirito?de

    Griboyedov

    o estudo que se segue sobre a preparacao de urn papel,focalizando a comedia classica de Griboyedov, A desgraca defer espirito Ioi escrito entre 1916 e 1920. Constitui, portanto,a mais antiga das exploracoes de Stanislavski, de um tema que,em seus divers Os aspectos, deveria preocupa-Io por todo 0res-to de sua vida. Embora ele nao tivesse optado ainda pela for-ma semificticia de A preparaciio do ator e A construciio dapersonagem, 0 estudioso destas obras posteriores encontraraaqui a exposicao original de muitas ideias ique ja The sao fa-miliares, Em alguns casos, essas ideias pennaneceram estaveisnos anos subseqiientes. Em outros casas, sofreram uma sutiltransmutacao a medida que Stanislavski prosseguia Iancandosobre 0 problema do ator a Iuz de sua imaginacao criadora,inquieta e livre.

    o Coordenador Editorial (norte-americano).17

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    Io Periodo de Estudo

    o TRABALHO preparat6rio sobre urn papel pode ser di-vidido em tres grandes periodos: estuda-lo; estabeleoer a vidado papel; e dar-The forma.

    PRIMEIRO CONTATO COM 0 PAPEL

    A familiarizacao com 0 papel constitui, por si s6, urnperiodo preparat6rio. Comeca com as primeirfssimas impres-sOes da primeira Ieitura da peca. Esse memento importantis-simo pode ser comparado com 0 primeiro encontro entre urnhomem e uma mulher, 0contato inicial entre dois seres que sedestinam a ser namorados, amantesou companheiros,

    As primeiras impressoes tem urn frescor virginal. Sao osmelhores estimulos possiveis para 0entusiasmoe 0 fervor ar-19

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    t09, que ocorrem espontaneamente , Nao podem ficar quietosno lugar, vao-se aproximando cad a vez mais do Ieitor da peca.Quanto ao Ieitor que apresenta a ~a pela primeira vez,e possivel Iazer-se algumas sugestoes prat icas.Em primeiro lugar, nao deve assumir at itude excessiva-mente ilustrativa, pois isso poderia impor aos atores sua pro-

    pria interpretacao pessoal dos papeis e das imagens. Deve-secontentar com uma clara exposicao da ideia basica da peQa,_da linha-mestra de desenvolvimento da acao interior, comOauxi lio dos recursos tecnicos inerentes a peca._ Na primeira leitura, a peca deve ser apresentada comsimplicidade, clareza e compreensao de seus elementos funda-mentais, de sua essencia, da Iinha-mestra de seu desenvolvi-mento e do seu merito literario , 0 lei tor deve sugerir 0pontode partida do escr itor, 0pensamento, os sentimentos ou expe-riencias que 0 fizeram escrever a peca , Nesta primeira apre-sentacao, 0leitor deve impelir ou conduzir cada ator ao longoda Iinha-mestra do desenvolvimento progressivo da vida de umespirito humano na peca,o leitor deve aprender com pessoas de experiencia litera-ria a ir dire-to ao cerne da obra, a linha fundamental das emo-~5es. Uma pessoa ' treinada em literatura, que estudou as qua-Iidades basicas das obras literarias, e capaz de apreender instan-taneamente a estrutura que levaram 0 dramaturgo a escrever.Esta capacidade ISmuito util ao ator, desde que nao interfiracom sua propria capacidade de penetrar na alma da peQa comsua propr ia visao,-f>E mesmo muita sorte quando 0 ator pode captar instan-taneamente a peca com todo 0 seu ser, com seu cerebro eseus sentirnentos. Em tais circunstancias, felizes mas muito

    raras, ISmelhor esquecer todas as regras e metodos e entregar-se totaImente ao poder da natureza criadora. Mas essas oca-sides sao tao raras, que nao se pode contar com elas. Sao taoraras como os mementos em que 0 ator capta logo uma linhadiretriz importante , uma secao basica da peQa, ou elemen-tos irnportantes com os quais lie tece au amolda a seu alicerce,E muito mais comum que uma primeira leitura apenas deixefixados nas emocoes do ator certos mementos individuals en-quanto todo 0 resto parece vago, turvo e estranho. Os Iarra-pos de impressoes, os pedacinhos de sentimentos qu~ realmen-

    te f icam sao como oasis num deserto, ou pontos luminososna escuridao geral.Por que algumas partes de uma peca se tornam vivas esao envolvidas pelos nossos sentimentos, enquanto outras se Ii-xam apenas em nossa mem6ria intelectual? Por que, ao evo-carmos as primeiras, sentimos excitacao, alegria, ternura, eu-foria, arnor, enquanto a lembranca das outras nos deixa insen-siveis, frios e inexpressivos? .. \

    Isto se da porque os trechos que logo sao inundados de '\'\ )vida tern afinidade conosco, sa_? familiares ~ nossas emocoes, J lenquanto os trechos escuros sao estranhos . a nossa natureza. ,/

    Mais tarde, quando formos nos familiarizando enos sen-t indo caeTa vez mais chegados it pe'ra, que a principio aoeita-vamos apenas em determinadas partes, veremos que os pon-tos luminosos crescem e se arnpliam, fundindo-se nus com osoutros, ate preencherem finalmente, todo 0 nosso pape1. Saocomo os raios do sol que, penetrando por uma estreita fresta daveaeziana, projetam na escuridao apenas umas poucas man-chas brilhantes. Mas quando se abrem as janelas, todo 0apo-sento banha-se em luz, banindo a escuridao.~ Raramente chegamos a conhecer uma peca com urna soleitura. Freqiientemente e preciso aborda-la de diferentes mo-dos, Ha pecas cuja essencia espir itual esta tao profundamenteimplantada, que e preciso um. esforco enorme para desenter-

    r a - l a . T~z 0 seu p e i ) . . ' S _ a m . ~ J } ! 9 es~mi

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    __ JiiD1O< i.d-'ip.\c au naquele papel importante. Em;:\::'; '."t "!lsUuv-., perdemos uma valiosa ocasiao criadora -pcrda irreparjivel, porque as leituras subseqiientes nao tem 0elemento de surpresa, tao essencial a nossa intuicao criadora.Apagar uma primeira impressao estragada e tao impossivel co-me recuperar a virgindade perdida,

    2. a procura de material espiritual au de outre tipo, pa-ra utilizacao DO trabalho criador, 0 que quer que haja 00peca ou em nosso papel dentro dela;3>Fa

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    meiro recurso uti lizado na analise. 0 ardor pOOepenetrar ateno que nao e acessivel a vista, ao som, a consciencia ou mes-mo a mais requintada percepcao artistica , Uma analise feita;').;.por meio do entusiasmoe .do..~dQc.artfsti.~Q._~gC- ..CQID.O_Q..W~-Ihor dOG meios para trazer a . tona..oseslfmulos criadores.uie

    uma p~a,e estes, por sua 'vez, provocam a criatividade doator, A medida que 0 ator se entusiasma, vai entendendo 0papel, e a medida que 0 vai entendendo, fica ainda mais en-tusiasrnado. Uma coisa puxa e reforca a outra.o ardor artistico tern sua maxima expansao no momen-to em que se trava conhecimento com a peca pela primeiravez. Por isso 6 que 0 ator deve repetidamente apreciar e deli-ciar-se com os trechos do seu papel que lhe despertaram 0entusiasmo na primeira leitura, as coisas que lhe chamaram aatencao, e a s quais ele sentiu que suas emocoes reagiram des-de 0 inicio. A natureza do ator reage a tudo que tem belezaartistica, elevacao, emocao, interesse, alegria. Instantaneamente,ele se deixa transportar pelos Iampejos de talento do 'escritor,espalhados na superficie ou nas profundezas da peca. TOOosesses trechos tern a qualidade explosiva que desperta 0 fervorartistico.Mas que Iara 0 ator com os trechos da peca que nao evo-caram 0 milagre da compreensao intuitiva instanti!Q~~? To-dos eles terao de ser-esnl"dados7para- reverarerii ~s miteria is,neles contidos, capazes de incita-lo ao ardor, Ora, como nos-sas emocces sao silenciosas, 0 unico recurso enos voltarmospara a auxiliar e conselheira mais proxima das emocoes: amente. Que seja uma desbravadora, sondando a peca em to-:-das as direcoes, Que seja uma pioneira, abrindo novas picadaspara as nossas principals Iorcas criadoras, intuicoes e senti-mentos. Que, por sua vez, nossos sentirnentos procurern novosestimulantes do entusiasmo, que instiguem a intui~ao a bus-car e encontrar urn mimero cada vez maior de novos mater iaisvivos, partes da vida espiritual do papel, coisas que nao saoalcancadas por meios conscientes.

    Quanto mais 0 ator tornar detalhada, variada e profun-da esta analise pela mente, maiores serao suas possibilidadesde encontrar estlrnulos para seu entusiasmo, e materia espiri-tual para a criat iv idade inconsciente,Quando procuramos um objeto perdido, 0 mais Ireqiien-

    te e encontra-lo nurn lugar inesperado. 0 mesmo se aplica acriatividade. Temos de buscar por toda parte os impulsos cria-dares, deixando que nossos sentimentos, com SUa intuicao, es-colham 0 que for mais adequado ao seu empreendimento.

    No processo da analise, fazern-se pesquisas, por assirn di-\zer, em toda a amplitude, extensao e profundidade da peca \e de seus papeis, suas porcoes individuals, as carnadas que a \ /cornpoem, todos seus pIanos, a comecar pelos exteriores, mais Ievidentes, e terrninando nos niveis espirituais mais profundos,rna is Intimos. Para isto, e precise dissecar a peca e os seuspapeis. E preciso sondar suas profundidades, carnada por c(\-mad a, descer a sua essencia, desmembra-la, examinar separa-damente cada porcao, rever todas as partes que antes nao fo-ram cuidadosamente estudadas, encontrar os estimulos ao fer-vor criativo, plantar, por assim dizer, a sernente no coracao doator.

    Uma peca e seus papeis tern muitoy_Wan.os pelos quaisvai fluindo a sua vida. Primeiro, temos o-piano externo dosfatos, acontecimentos, enredo, forma. Contigiiamente, hti 0

    @Jlan? da si!ua_r~osoci~l, s,~jividi~o e~ classe,nacio~la}.idade eambiente, historico. Ha urr 'i) :2pLart

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    ). . . . ,.', '; .. , ', .. i "/' . i"de uma forma exterior, uma configuracao espiritual interiordo papel e da peca, contendo tudo que e acessivel e tambeminacessivel a nossa abordagem consciente,

    Os niveis conscientes de uma pecra ou papel sao como osniveis e camadas de terra, areia, argila, rochas, etc ... , quecompoem a crosta terrestre, A medida que as camadas vanse aprofundando em nossa alma, van se tornando cada vezmais inconscientes, e hi nas profundidades Iinais, no amago daterra, onde se acham a lava fundida e 0fogo, hi se desenca-deiam paixoes e instintos humanos invisiveis. Esse IS 0 rei-no do superconsciente, 0centro vita lizante , e 0 sacrossanto Eudo ator, 0 humano DO artista, a Ionte secreta da inspiracao. Des-sas coisas, nao temos consciencia porem as sentimos com to-do 0 nosso ser.

    ! : _l

    o ESTUDO DAS CmcuNsTANcrAs EXTERNAS .: .

    todn .Iato, era importante. Cada urn deles, era um e1 0 necessa-rio na cadeia ininterrupta da vida da ~a. Mas estamos Ion-ge de apreender todos os Iatos de ~m~ vez..Os !atos que real-mente compreendemos, em sua ' essencI~ .e imediatamente , g r : -vam-se intuitivamente em nossa memoria. Outros, que naosentimos logo, que nao sao descobertos ~em ~o~ados pornossos sent imentos, continuam despercebidos, inapreciados, es-quecidos, ou ficam no ar, cada um separadamente, ~obrecarre-gando a' pecra; Deixam-nos confusos,e .nao c01lSe~~s acbar'neles nenhuma verdade da realidade VIva. Tudo lSSO interferecom a recepcao e absorcao das nossas primeiras impressoes da L.-'p~a; . s: ) j ! f : ~ ; J ' ! ' : . , . .J '

    . QUe se .deve fazer em' semelhantes casos? Como encon-trar nosso rumo por entre os fatores extern os de uma pe~a?Nemirovi tch-Daritchenko propos um ,recmsoextremamente sun-' p i e s e inteligente. Consiste emrecapitillar oconteudo da peC;a.O-ator-4ev~mem.orizare escrem_QU~tos1 sua ordeE!Qe ....e-,qiiencia;e~a-'felafiae::-fisica., ..:~_~? 'C) ! .e uns .com os o~tros. Nafaseem que travamos conhecImen~o com. a peC;a, ainda naowinos capazes de narrar sen conteiido mUl!o me~or que nm.amincios 'ou nos libretos res

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    Molchalin, If muito mais servil que a do independence Chatski.Estimula as atencoes de Molchalin, Quando ole inicia a peca,eles acabam de passar a nolle juntos, tocando duetos e reci-tando poemas . Lim If a criada-coniidente de Sofia, camponesae serva,dom~stica. Famusov a persegue com suas atencoes, masela esta apaixonada pelo lacaio Petruchka, Molchalin, um"cap(lcha", um homem. servil, apaixonado par Sofia, bajula to-dos que estiio acima dele 1U 1 escala socia l. Embora ansioso [ 7 O Tse conservar nas boas gracas de Fomusov, eventulmente in-sulta Sofia e e despedido pelo patriio, JJ ; urn [raco e serve derealce para Chatski, homem brilhante, simptuico, educado, queantes de partir para a exterior [oi quase urn irmiio para Sojia.Logo que regressa, vai procura-la, descobre que ela agoraere sceu e oleapaixona par ela. Sofia recebe-o friamente e Chats-ki fica revoltado ao ver que ela prejere (I. ele 0 insignijicanceMolchalin, Fica ainda mais indignado ao constatar aj superji-cialidade do cultura que encontra em Moscou. Sente que So-fia [oi cotrompida por tudo ism. Sua mordaz denuncia dasociedade de Moscou faz com que Sofia espalhe a boato deque ele enlouqueceu. No Jim da peca Chatski torna a deixar 0J ! ' l ~ . A Princes~ Maria Alexeyevna, decana da familia, e 0arbitro das manetras e do espirito tradicional da conservadorasc:ciedade moscovi ta , A [rase final de A desgraca de ter espi -rtto : "Que dira Maria Alexeyevna?" jicou proverbial na Russia.Skatozub e um militar que Famusov favorece como futuro gen-ro. E : muito rica, de boa familia, e provavelmente olcancard amais a lta patente no exercito, Mas seus modos s a o a s p eros emilitates, sua inteligencia e limitada, e Sof ia a despreza.

    Eis OS fatos do primeiro ato:1. Urn encontro entre Sofia e Molchalin prolongou-sepor toda a noite.2. E madrugada, Eles tocarn urn dueto para piano e

    flauta no salao ao lado.3 . Liza, a criada, dorme. Devia estar de vigia.4. Liza desperta, ve que 0 dia esta raiando, suplica aosnamorados que se separem logo.5. Liza adianta 0relogio a fim de assustar os namora-30

    dos e chamar-lhes a atencao p~ra 0 perigo,6. Quando 0relogio bate, 0pai de Sofia, Famusov, en-tra. 7. Ele ve Liza, flerta com ela.8. Liza, habilmente, escapa-lhe a s atencoes e convence-oa ir-se embora. .9. Com 0 ruido, Sofia entra. Ve a aurora e espanta-seda rapidez com que sua noite de amor passou.10. Os amantes nao tiveram tempo de se separar antesde Famusov encontra-los.11. Espanto, perguntas, furor.12. Com esperteza, Sofia livra-se do embaraco e doperigo.13 . Seu pai deixa-a livre e sai com Molchalin para as-sinar uns papeis.14. Liza censura Sofia, e Sofia fica deprimida com 0prosaico do dia, depois da poesia do seu encontro noturno.15 . Liza tenta lembrar Sofia do seu amigo de infan-cia, Chatski, que, ao que parece, esta enamorado de Sofia.16. Isso irrita Sofia e faz com que ela pense ainda rnaisem Molchalin,17. A chegada inesperada de Chatski, seu entusiasmo,o encontro. 0 embaraco de Sofia, urn beijo, A perplexidadede Chatski, que a acusa de frieza. Falam dos velhos tempos.

    Chatski e espirituoso em sua palestra amistosa. Faz a Sofiauma declaracao de amor. Sofia e caustica.18. Volta .Famusov. Fica atonito. Seu encontro comChatski.19. Sofia sai. Faz uma observacao astuciosa a proposi-to de estar "longe do olhar paterno".20. Famusov interroga Chatski, Suas desconfiancas quan-to a s intencoes de Chatski para com Sofia.

    21 . Chatski louva Sofia com Iirismo. Sai abruptamente.22. A perplexidade e as suspeitas do pai.Al tem uma Iista dos Iatos do primeiro ato, Usando-a co--mo modelo para anotar OS fat os dos atos subseqiientes, ter-se-a

    urn catalogo da vida exterior no lar dos Famusov num dia de-tenninado.

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    Todos esses fates, tornados em conjunto, fornecem 0 tem-po presente da peca.

    Mas nao pode haver presente sem passado, 0 presente de-cor re naturalmente do passado. 0 passado ea raiz da qualnasceu 0presente, 0 presente sem passado murcha como um.aplanta cujas raizes Ioram cortadas. 0 ator deve sempre sentirque tem por tras dele 0passado de seu papel, como a cauda deum traje que levasse .

    . Tampouco existe qualquer presente sem uma perspectlvade futuro, SOMOS, conjeturas indicios.o presente, privado do passado e do futuro, e como urnmeio sem comeco ou fun, UIll capitulo de livre, acidentalmentearrancado e lido. 0 passado e os sonhos do futuro perfazem 0presente. 0 ator deve ter sempre a conduzi-lo pensamentos so-bre 0 futuro, que excitern 0 seu ardor e sejarn, ao mesmo tem-po, compativeis com os sonhos da personagem que ele esta in-terpretando. Essessonhos do futuro devem acenar ao ator, de-vern leva-lo avante em todas as suas ac;6es. no palco. Ele deveselecionar na pe

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    usados na encenacao e pode-se participar da tarefa de coligiresses materiais, acompanhando 0 diretor e 0 een6grafo em Yi-sitas a museus, galerias de pintura, velhas residencias particula-'resdaquele periodo. E, finalmente, podemos percorrer os jor-nais e as gravuras da epoca. Em outras palavras, a gente mesmopode estudar a peca em relacao aos seus fatores artisticos, pI a s -ticos, arquitetonicos e outros.

    TOGas as anotacoes que tiverem sido feitas sobre as cir-cunstancias externas constituem um grande volume de mate-rial, que alimentara nosso trabalho criador subseqiiente.

    DAR VIDA AS ORCUNSTANCIAS EXTERN AS

    Por enquanto, apenas estabelecernos a existencia de certos.fatos. Agora, e precise descobrir 0 que jaz sob eles, 0 quelhes deu origem, 0 que se esc o n de atras deles. Acumulamosmaterialsobre as circunstancias externas da peca, por meiode uma analise intelectual bern ampla. Ate 0 momento, elaconsistiu quase sornente da anotacao dos fatos - passados,presentes e futuros --'- trechos do texto da peca, comentarios;em surna, apenas um. registro das circunstdncias determina-das da vida, na peca e em suas partes. Em qualquer estudo in-telectual desse, os .acontecimentos de uma pe

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    .ios. ; 1(,:(; ."gens, 0 mundo material dos objetos, ce-,1:;li,;\, C J ~ Slr :j p Ol' diante . Com 0 nosso ouvido interior, po -demos ouvir toda sorte de melodias, vozes, entonacoes, etc.Podemos sentir as coisas na imaginacao, impelidos por nossamemor ia de sensacoes e emocoes,

    Hei atores de coisas vistas e atores de coisas ouvidas. Ospr trneiros saodotados de uma visao interior especialmente boa,e os segundos de urua sensivel audicao interior. Para 0 pri-meiro tipo;' ao qual eu mesmo perten

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    vi uma vez zarpando do porto de Novorossiisk. Como ele en-trou aqui, na casa de Famusov? Extraordinariot Havera poracaso outros acontecimentos assim espantosos na imaginacaodo ator?

    Outras personagens ainda carecem de personalidade, carac-terfsticas e qualidades individuals. Sua posi9ao social e seu Iu-gar na vida apenas estao refletidos vagamente, em termos ge-rais: urn pai, uma mae, a dona da casa, filha, filho, govern an-ta, criado lacaio, criada, e assim por diante. Apesar disso,essas sombras de genre preenchem a imagem da casa, ajudama transmitir Urn estado de espirito geral, Iornecern urn clima,. ernbora par enquanto sejam simples acess6rios.

    Para olhar mais de perto a vida da casa, preciso entrea-brir ligeiramente a porta de urn ou outro aposento. Tenho deentrar numa das metades da casa , penetrando, por exemplo, nasala de jantar e suas dependencias, andar pelo corredor, pas-sando pela copa, entrando na cozinha, subindo a escada. Porvolta da hora do jantar, vejo as criadas, que tiraram os sapatospara nao estragar 0 assoalho do patrao, correndo pra todo ladocom travessas e pratos. Vejo 0 traje do mordomo, embora elenao tenba rosto, quando, todo importante, recebe de urn su-balterno os pratos, provando-os com toda a pose de urn gour-met ontes de leva-los e servi-los ao patrao, Vejo os trajes doslacaios e dos ajudantes de cozinha, chispando pelo corredor,pclas escadas , Um deles, s6 de brincadeira, pode furtar urnabraco de uma das criadas que pass am.

    Depois vejo os trajes vivos dos convidados, dos parentespobres, dosiafilhados em visita. Sao levados ao escritorio deFamusov para Ihe Iazerem reverencia, para beijar as maos doseu benfeitor , As criancas recitam versos que aprenderam es-pecia lmente, e 0 seu padrinho-benfeitor distribui doces e pre-sentes , Depois, todo mundo se reune outra vez para tomar chana saleta ou na sala de estar. Mais tarde ainda, quando todosse foram e a casa voltou a ficar tranqiiila, vejo levarern as Hl.m-padas a todos os aposentos, numa grande bandeja. Ouco osruidos raspantes quando elas sao preparadas para acender, oucob s criados que trazem escadas para subir e colocar Iampadas aoleo nos candelabros,

    Agora cai 0 silencio noturno, Ouco, no sagiiao, pes emchinelas. Alguern passa fur tivamente e tudo esta escuro e silen-

    cioso , S6 na distancia, urna vez ou outra, ouve-se 0 pregao dovigia noturno, 0 rumor triturante de uma chegada tardia emcarruagem ....

    Ate agora, a vida na casa de Famusov s6. se desenvolveuno. que se refere aos seus habitos e mOdo~ ext.enores. , Para dara vida da casa urn espirito e pensamento interior precisamos deseres humanos e no entanto, a nao ser eu mesmo e 0 surpre-endente fenom'eno de Petruchka, nao ha viv'alma em toda acasa. Num esforco combinado para dar vida aos trajes, en-quanto as pessoas os vao movendo pela ~asa afora, tento _meimaginar dentro deles. Esse recurso Iunciona bern para num.Vejo-me, com 0 penteado e 0 traje da epoca, andar pela ~a~a,no vestibule no salao de baile, na sala de estar, no escntorio.Vejo-me sentado a mesa de jantar, ao lado, do traje vivificadoda dona da casa, e sinto-me feliz por ter sido post~ em l~gartao honroso. au, quando vejo que me col~car~m la embaixo,no pe da mesa, ao lado do traje de Molchalin, fico preocupadopor me haverem rebaixado desse jeito, . .

    E assim, adquiro urn sentimento de slI?patla p~ra com aspessoas de minha imaginacao. E urn born sinal. Esta ~lar~ quesimpatia nao e sentimento. Mas j a e . urn passo ~essa, d treya?Estimulado por minha experiencia, tento unaginar minhacabeca sobre os ombros dos trajes de Fa~usov e de ?utro~.Tento evocar-me quando jovem e ponho minha .cabe~a luvemlnos ombros do traje de Chatski, do d~. Molchalin, e ate certoponto sou bern sucedido. Ponho m~quilagem, mentalmente, eadapto essa maquilagem a uma van~dade de persona gens dapeca, tentando visualiza-Ios como habitantes dessa cas a que mesao apresentados pelo autor da ~e

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    ao meuIado. Nao sao a vista e 0 som, mas a sensacao deproximidade de urn objeto, que nos ajudam a sentir a realidadeexistenter'Mais ainda, percebo que nao posso alcancar esse sen-timento de proximidade, senti-Io de fato, se ficar escavando 0texto da peca sentado a minha mesa. B preciso formar umaimagem mental da relacao pessoal de Famusov com os mem-bros de sua familia.Como poderei Iazer a transferencia? Tambem ela se fazcom 0 auxilio da imaginacao, Mas, desta vez, a imaginacaorepresent a urn papel mais ativo do que passivo.Podemos ser observadores de nosso sonho, mas tambernpodemos participar ativamente dele, isto e , podemos nos acharrnentalmente no centro de circunstancias e condicoes, de urnmodo de vida, de urn mobiliario, de objetos, etc., que a gentemesmo imaginou. J a nao nos vemos como urn espectador defora, mas vemos o que nos rodeia , Com 0 tempo, quando essasensacao de "ser" e reforcada, podemos nos tornar a princi-pal personalidade atuante, nas circunstancias ambientes do nossosonho. Podemos comecar, mentalmente, a agir, a ter vontades,fazer esforcos, atingir uma meta.Esse e 0aspecto ativo da imaginacao,

    ginacao tern de ser ativa, e nao passiva como antes. Esse eurn momenta psicologico dificil e importante no periodo totalde preparacao, Exige uma atencan excepcional, Esse momentoe a que nos atores, em nosso jargao, chamamos de estado do"eu sou", e a -ponto em que eu comeco a me sentir dentro dosacontecimentos, comeco a mesclar-me com todas as circuns-tancias sugeridas pelo dramaiurgo e pelo ator, comeco a ter 0direito de fazer parte delas, Esse direito nao se adquire logode uma vez. obtido gradativamente,A essa altura da preparacao de A desgraca de fer espir ito,por exemplo, procuro me transferir do posto de observador paraode participante ativo, membra da familia Famusov. Nao pos-So ter pretensoes a efetua-lo de uma vez. 0 que posso tazer, edeslocar minha atencao de mim mesmo para 0 que me cerca.Recomeco a percorrer a casa . Agora, passo pela porta, suboa escadaria, abro a porta que da para a fileira de salas de estar.Entro agora na sala de recepcoes, empurro a porta de umaantecamara , Alguem bloqueou a porta com uma pol t rona pe-sada, que eu afasto para entrar no salao de baile.Mas chegal Por que me iludir? 0 que estou sentindo, en-quanta faco este percurso, njio e resultado da imaginacao ativaou de urn verdadeiro sentimento de estar dentro da situacao.Ndo passa de urn engano imposto a mim mesmo. Estou apenasme forcando a ter emocoes, me forcando a sentir que estouvivendo uma coisa ou outra. A maioria dos atores cometeesse erro. Apenas imaginam que estao vivos numa situacao;nao a sentem defato. Ternes de ser extraordinariamente seve-ros com nos mesmos nessa questao de sentir 0 "eu sou" nopalco. Reiuma enorme diferenca entre 0verdadeiro sentimentoda vida do papel e algumas emocoes acidentalmente imagina-das. E perigoso cair nas malhas dessas falsas ilusoes. Elas ten-dem a desviar 0ator para uma atuacao forcada e mecanica.Ainda assim, durante a minha perambulacao infrutiferapela casa de Famusov, houve um instante em que eu sentirealmente que estava al i, e acreditei em meus proprios senti-mentes. Foi quando abri a porta da antecamara e afastei umagrande poltrona. Senti realmente 0 esforco ffsico que esta a

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    ce. Em seus olhos, ha vestigios de lagrimas , Levo uma ca-deira para urn lado do quarto. 0 velho Mia se encabula nadacom seu estado seminu e continua a can tar. Ouco-o com omeu ouvido interior, e pareco sentir sua proximidade ffsica.Entre tanto, a percepcao fisica nao basta, devo ten t ar sentir suaalma.

    Como isso nao pode ser feito de modo fisico tenho deusar. outras vias de aproximacao , Afinal, as pessoas se co-mU111Camumas. c~m as outras nao so por meio de palavras egestos, mas principalrnente atraves das radiacoes invisiveis davontade, v~bra

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    maier, comparecerao ao casamento. Terao de sentar- se de acor-d~ com a bler~rqUIa, para ,que ninguem fique of en dido parna? estar 0 mars perto possivel do lugar de honra, perto dos~OlvOS. a mesmo problema quanto aos parentes. Podem me-hnjr~r-se com a maxima facilidade. Tendo reunido tantosconvld~d?s de honra, estou num dilema, pois nao tenbo Iuga-res suficientes para eles. Que tal colocar 0 casal de noivosno centro,. e ~azer 'com 9-,!e as outras mesas partam dai emtodas as direcoes? Isso vma aumentar automaticamente a nu-mere de lugares de bonra._ . E quanto mais lugares houver, mais Iacil sera a coloca-cao das pessoas segundo sua importancia . Preocupo-me du-rante mU1~o t empo com esse problema, e quando ele comecaa perder interesse, alguma outra coisa vern logo ocupar seulugc:rr: a_prep~rac;ao da comida - agora para 0casamento deSofia, nao mars corn Skalozub, e sim com Mo1cbalin.00 Isso alte~a t~do! Casar-se com 0 secretario de seu pal" 'v r~a urn.a mes~llrance, urn casamento desigual a cerimoniasena muito ~als discreta, 56 viriam OS membr~ mais proxi-mos da. familia e _nem to~os estariam dispostos a prestigiar 0acontecimento .. N~o hav~na nenhum coronel, visto que 0 che-fe de Molchalin e 0 proprio Famusov._ Novas combin~~5:s fermentam dentro de mim, e eu janao p~nso_ na- proximidade dos objetivos, nem em estar emcomunicacao ~om meu ?bjeto. Estou em aciiol Minba cabe-c;a, meus s_entlllentos, minha vontade, a imaginacao, tudo issase ocupa tao .atarefadamente como se as coisas estivessem aeon,tecendo na vld~ real. An~ma.do pela experiencia, resolvo fazero.utra, agora nao com objetos inanimados, e sim com objetosVIVOS.. Para, isso,. volta mais uma vez a casa cfe Famusov , Elea~nda esta ensinando 0 menino a cantar 0 hino religiose eainda rege a ~~ica trajaodo apenas sua camisola de dor~r.Resolvo rrritar esse velho excentrico. Entro, sento-me dooutro lade do quarto, e por assim d~zer aponto a espingardapara ele, buscando urn pretexto de dlSCUSSaOpara provocar 0velho senhor,- Que e isso que esta cantando? - pergunto.Mas Fa~usov nao se digna responder, talvez por nao terchegado ao Iim da oracao , Finalmente, acaba.

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    Muito bonita essa melodia - declaro calmamente._ Nao era uma melodia, mas uma oracao sacra - res-ponde com enfase. ".'-'- Oh, perdao, e~~,tinha esquecidol . .. Quando e que ecantada? 't~ Se freqiientasse .~ igreja, saberia,a velho ja esta amolado, mas isso so serve para me di-vertir, e me anima a provoca-lo ainda mais._ Eu iria, So que nao posso- ficar tanto tempo de pe -digo snavemente. - E depois, Hi faz tanto calor!_ Calor? - retruca 0 velho gentilhomem. - E queme diz da Gehena. Nao faz calor, Ia?Isso IS outra coisa - responde, ainda com mats sua-vidade. Como assim? - pergunta Famusov, dando urn passopara mim._ Porque na Gehena a gente pode andar sem roupa,como Deus nos fez - digo com pretensa burrice - e pode-mos nos deitar e tomar banho de vapor, como nos banhosrussos. Mas na igreja, Iorcam-nos a ficar suando, de pe, den-tro de nOSSO c apotao de peles,

    _ Oh, voce. .. voce e urn pecador terrivel, - E 0 ve-lho senhor retira-se depressa, para "nao abalar seus alicerces",cern alguma risada.Essa nova tarefa me parece tao importante, que resolveconfioma-la. Saio outra vez para fazer visitas, mas agora te-nho em mente 0 proposito definido de anunciar aos parenteseamigos de Famusov 0 proximo casamento de Sofia e Skala-zub, A experiencia da certo, embora nem sempre com 0 rnes-mo gran de sucesso. Ainda assim, percebo a alma viva d09objetos com os quais estive me comunicando. E cada novoteste relorca a minha sensacao de Iazer parte dos aconteci-mentos.A medida que meu trabalho se vai desenvolvendo, rneuproposito final e as circunstancias subseqi.ik:ntes vao-se tor-nando mais diffceis e complexos. Acontecimentos completesocorrem , Por exemplo, em minha imaginac;ao, Sofia e mao-dada para fora, para bern longe no campo. Que tara Mol-chalin, seu noivo secrete? Buscando uma solucao, chego ate!In~smOa planejar 0 rapto da moca, Em outra ocasiao, as-

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    sumo .a defesa de Sofia na reuniao de familia, depois queela fOl, descoberta com Molchalin . 0 juiz da familia nesset:anse e aquele baluarte do convencionalisrno,a Princesa Ma-na Alexeyevna. Nao e facil discutir com. essa Iormidavel re-presentante das tradicoes da familia. Numa terceira ocasiaoacho-l~e presente quando se anuncia, de surpresa, 0 noivad~de Sofia com Skalozub .. _ e atiro nelel"Fazendo .essas experiencias para atingir o estado de "ensou , ~onyencl-me de que a simples ac;ao nao basta. Tern dehaver incidentes , Desse modo, nao so comecamos a existire~ nossa vida imaginada, como tambem percebemos maisnitidamente os sentimentos das outras pessoas, nossas relacoescom elas e as delas conosco. Passamos a eonhecer as pessoasquando esta.o _felizes.ou infelizes , Conhecendn gente, dia adia, no. turbilhao da vida, avancando juntos para enfrentar osacontecimentos enfrentando-nos uns aos outros, esforcando-nos, lutando, alcancando a meta ou desistindo dela nos naote;nos apenas consciencia de nossa propria existencia, ' mas tam-bern de nossas relacoes com esses outros e com as propriosfatos e r a vida.~ua~do ?1 ~ .vi capaz d.e tornar-me plenamente envolvido

    ~a. acaormagmana e em minhas lu tas com os acontecimentosnnmentes, senti que uma especie de milagrcsa metamorfoseocorrera em mim.A A ~ssa altura, podemos apreciar plenamente as circuns-tancias .mtern'as. Sao compostas de atitudes pessoais para comacontecimentos da vida exterior e interior, e de relacoes rmi-tuas com outras pessoas , Quando 0 ator tern a tecnica doestado cri~dor interno, esse estado de "eu sou", quando terna verdadeira sensacao de urn objeto de atencao animado, po-den~o mover-se entre os fautasmas da sua imaginacao e co-murucar.ss com eles, sera capaz de dar vida a s circunstanclasexternas e internas, de insuflar num papel urn espirito vivo.Em o_utr~spalavras, pode realizar a tarefa que nos propomosna primeira fase de estudo de uma nova peca. Os fatos e aspessoas podem mudar. Em vez daqueles que ele criou com asua propria imaginacao, pode ser que propoaham ao ator ou-tros, novos. Mesmo assim sua capacidade de lhes dar vidae urn fator importante em seu trabalho subseqtiente.Com esse momento de metarnorfose miraculosa conclui-48

    se provisoriamente a nossa primeira fase de trabalho, Essaelaboracao, esse lavrar da alma do ator, preparou 0 terrenopara produzir emoc;6es&eexperiencias cr iadoras. A analise dapec;a pelo ator fez viva:~;para ele as circunstfincias, propostaspelo dramaturgo, nas qtiJais a "sinceridade de emoc;5es" podeagora desenvolver-se de modo natural. Isto nao significa quea ator pode deixar de rever, mais tarde, 0 que ja foi Iei to ,Tcdo este trabalho continuara, sera desenvolvido e ampliadoincessantemente, ate que e1e esteja em contato total com 0 senpapel ,

    AVALIA!;AO DOSFATOSA avaliacao dos fatos de uma peca e realmente a conti-DUaC;aO,e ate mesmo a repeticao, daquiIo que ainda agoraacabamos de fazer, e cujo resultado foi uma transformacaointerior. Avdiferenca e que 0 trabalho precedente se fez numabase ad libitum, sob a forma de variacoes em torno da pe~a,ao passo que desta vez teremos de lidar com a propria pe~a,na forma em que 0escritor a eriou.Existe urn elo direto entre as circunstanias internas e ex-ternas de uma peca, De fato, a vida interior das personagensesta escondida nas circunstancias exteriores da vida delas, istoe , nos fatos da peca. E dificil avalia-los separadamente , Sepenetramos nos fatos externos de uma peca e seu enredo, echegamos ate sua essencia interior, indo da peri feria para 0centro, da forma para a substancia, inevitavelmente entrare-

    rnos na vida interior da peca.Temos, portanto, de voItar aos fatos externos de A des-graca de ter espirito, nao propriamente por eles, mas pelo quepossam ocuItar. Temos de considera-los sob urn novo prisma,uma nova luz. Temos de ver urn novo estado na casa Fa-musov, devido ao nosso proprio novo estado criador de "eusou". Mas voltamos aos fatos com urn prepare e uma experien-cia pratica consideravelmente maiores do que tinhamos aocomecar.Embora eu v a interpretar Chatski, abordo gradualmentea avaliacao dos fatos de meu papel , Pois preciso conheoer(sentir) toda a vida da casa Famusov, e nao apenas aquela

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    parte que se refere diretamente ao meu papel.Primeiro, temos 0 encontro dos namorados, Sofia e MoI-chalin , Para pesar este Iato na balanca de minhas propriasemocoes, de minha propria experiencia de vida, procuro, men-talmente, me por no lugar da atriz que interpretara Sofia, eem nome dela tento existir nesse papel. Como parte do meuestado de "eu sou", pergunto-me: "Quais sao as circunstanciasde minha vida interior, quais as minhas capacidades, os meusdesejos e pensamentos vivos, pessoais, se sou uma mulher etenho com Molchalin a relacao que tem Sofia?".Mas tudo dentro de mim protesta: "Ele e apenas umamante Ialso; um oportunista, um inferior!" Ele me revolta.Se eu fosse uma mulher, nenhuma circunstancia possivel seriacapaz de Iorcar-me a ter para com Molchalin a atitude queSofia tern. E claro que, se eu fosse mulher, seria incapaz deconjurar emocoes, lembrancas ou qualquer material afetivopara dar vida ao papel de Sofia. Eu teria de deixar meu pa-pel em A desgrafa de ter espirito,Mas enquanto minha razao trabalha, minha imaginacaonao vesta dormindo. Imperceptivelmente, ela me envolve noclima familiar da vida em casa de Famusov , Faz-me viver nascircunstancias da vida de Sofia; impele-me para 0amago dosfates, de modo que, estando no centro das coisas, os impulsesda minha propria vontade, meus proprios sentimentos, minhapr6pria razao e experiencia me obrigam a avaliar a importfln-cia e a significacfio desses Iatores, E, sob este novo angulo,minha imaginacao procura uma nova justificacao, nova expli-cacao interior e nova atitude de sentimento em relacao aosfatos dados pelo dramaturgo.~ E se Sofia - sugere minha imaginacac - estiver taocorrompida par sua educacao, pelos romances franceses, quejustamente 0 tipo de amor preferido por eia e 0 de uma cria-tura insigni ficante como esse inferior Molchal in?- Como i880 e revoltautel Como isso e patoI6gico! -dizem meus sentimentos, indignados. - Onde ir a voce buscarinspiracao para emocoes desse tipo?- Na propria repulsa queeles provocam - vern 0 friocomentario de minha razao.- E Chatski? - protestam meus sentimentos, - Serapossivel que ele possa amar uma Sofia tao perversa? Nao quero

    acreditar. Isso arruina a imagem de Chatski e de toda a peca,Vendo que nao encontro nenhuma via de acesso para meussentimentos sob esse pri a, a irnaginacao busca novos motivos,outras circunstancias, ca es de evocar r-ea

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    vel. Creio na veracidade de sua existencia, Minha analiseemocional cumpriu sua prime ira missao, criou circunstanciasinternas importantes para a pec;:ae para 0meu papel de Cha-tski . Alem disso, 0 fato da sincera afeiciio entre Sofia e Mol-chalin escIarece logo muitas outras cenas, Explica toda a li-nha do amor entre Sofia e Molchalin, e as circunstancias queinterferem com esse amor. E tambem atua como um circuitoeletrico, emitindo correntes para todas as outras partes da pec;:aque tenham com ele qualquer relacao,Agora, de repente, Famusov entra e encontra os namo-rados em seu tete-a-tete. A situacao de Sofia torna-se muitomais diffcil, e eu nao posso deixar de sentir uma vibracao emo-cional a ideia de estar em seu lugar.Dar assim de cara com urn tipo despotico como Famusov,quando se esta em circunstancias tao comprometedoras, faza genre pensar na necessidade de algoma saida surpreendente.e ousada, para abalar 0 equilibrio de nosso adversario. Numahora dessas, temos de conhecer bem 0 adversario, temos deconhecer suas peculiaridades individuais. Mas eu nao conhecoFamusov senao por algumas insinuacoes a seu respeito, queainda recordo da primeira Iei tura da peca, Nem 0 diretornemo ator ..que interpretara Famusov podem me dar qualquer aju-da, pois ambos sabem tao pouco como eu a seu respeito.' Meuunico recurso e defini r seu carater para mim, suas pecul iari -dades individuals, a forma interior dessa velha e voluntariosacriatura. Quem e ele?- E um burocrata, urn proprietario de servos - infer-rna rapido meu cerebro, que se Iembra das minhas aulas deleitura no colegio.- Bsplendido! - Minha imaginacao ja pegou fogo. -Isso quer dizer que Sofia ISuma herofnal

    - E por que isso? - indaga minha mente, perplexa,- Porque 86 uma heroina pode levar urn ti rano assimpelo beico com tanta calma e firmeza - diz minha excitadaImaginacao. - Eis aqui urn cheque entre os costumes antigose os novos! A liberdade de amarl E urn tema moderno!- Mas e se Famusov s6 for prepotente na aparencia,para preservar os costumes da familia, a s tradicoes de suaclasse, visando favorecer-se aos olhos da Princesa Maria Ale-xeyevna? - Esta e uma nova fantasia. - E se Famusov for

    urn velhote bonachso, hospita{gli~j">rascivel mag facilmenteaplacavel? Se for 0 tipo de pai que a filha Iaz de gato e sa-pato?- Nesse caso. .. as coisas seriam muito diferentes! En-tao, ficaria perfeitamente clara a saida da situacao criada. Nao edificil Iidar com urn pai assim, sobretudo quando Sofia e as-tuta, como sua falecida mae - e 0 que me informa .o meucerebro.

    Uma vez sabendo como lidar com Famusov, pode-se en-contrar vias de acesso interiorespara formar a base de muitasoutras cenas relacionadas com de, bern como de muitas con-versacoes com ele.o mesmo tipo de avaliacao deve ser feito quanta ao re- .gresso de Chatski, que e quase urn irmao para Sofia, .quaseurn noivo; que ja foi, outrora, 0bern-amado; que b sempreousado, tempestuoso, livre e enamorado, Seu regresso do ex-terior, ap6s anos de ausencia, estava Ionge de ser uma coisacomum, naqueles tempos em que nao havia estradas de ferro,em que as pessoas viajavam em pesadas carruagens, e umavia gem podia levar meses para se concluir , Par rn a sorte,Chatski chega inesperadamente, e logo no memento errado,Isso torna ainda mais compreensfvel 0 embaraco de Sofia, berncomo 0 seu s.entimento de que deve erguer uma Iachada qual-quer para ocultar seu enleio, a ferroada em sua consciencia.Explica, finalmente, as investidas de Sofia contra Chatski, Seconsiderarmos a situacao de Chatski, sua amizade com Sofiadesde a infancia, e se a compararmos com a frieza da atitudeque ela agora assume para com 0 seu amigo de antes, pode-remos compreender qual foi a mudanca e avaliar a extensaodo espanto de Chatski. Por outro lado, vendo as coisas peloprisma de Sofia, tendemos a desculpar sua atitude irritavel, ecompreendemos que a infeliz impressao que the causaram asacusacoes e 0 espirito ferino de ~hatski lie deve ao encontroamoroso daquela noite, seguido pela cena prosaica com sellpai, e tambem porque a conduta de Chatski faz tamanho con-traste com a gentileza complacente de Molchalin.Se nos pusermos no lugar de outras personagens, paren-tes de Sofia, tambem poderemos c omp re en de -la s , Poderiamtais pessoas tolerar jamais ~ linguagem e os modes livres doocidentalizado Chatski? Vivendo num pals em que ainda exis-

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    tia a servidao, naa se sentiriarn antes alannadas com seusdiscursos, que visam a solapar os alicerces da sociedade? S6urn lou co ousaria falar e agir como Chatski , Portanto, comesse pano de fundo, a vinganca de Sofia e ainda mais astutae sem remorsos, quando fa~ com que os outros creiam queo s_eu ex-amigo e nOlVO e sta louco . E tambem, no lugar de~ofia , compreendemos .quanta pesa 0 golpe que a duplicidadeInsul~os.a de M~lchallfr desfere contra 0 seu amor proprioexcesslVamente. ~~ad'o. E preciso ter vivido, imaginariamente,entre os propnetanos de servos, conhecendo seus habitos COs-tumes, modo de vida, para compreender, e portanto sentir aforca da infinita indignacao CIa filha de Famusov e seu ~o-frimento ante a vergonhosa demissao de Molchalin como seele Iosse urn lacaio de alugue1. E tambem temos {i'e n os parno Ingar de Famusov, para compreender a extensao de suara~va, .sua animosidade, 0 senso de represalia e horror que secristaliza em sua frase final: "Oh Santo Deus que did. aPrincesa Maria Alexeyevna!'" ,o resultado e que, depois de testar todos os Iatos isola-da~:n~, t~as. as circunstancias externas e internas, par ex-penencia proprra, podemos compreender (e, portanto, sentir)como 6 emocionante, como esta cheio de acontecimentos ines-pe~ados esse dia na vida da familia Famusov, escolhido porGnboyedov para a sua comedia. S6 entao nos daremos con-ta de uma qualidade especial dessa comedia, urn aspecto queas cncenadores de A desgraca de ter esplrito muitas vezes es-quecem: 0 movirnento, 0 temperamentn, 0 ritmo. De fatopara incluir e justificar a abundancia de fat o s - profundamen-te significativos - que se desenrolam nos quatro atos da peca,o que repres~n~a varias horas de atuacao, 6 preciso marcar urnandamento rapido , Os atores tern de manter uma atitude aler-t~ para com tudo.o que ac~ntece no palco. Mais ainda, e pre-CISO calcular 0 f Itm? lllt~nor. do ,espfr ito humano subjacenteno lar Famusov ~ isto e obngatorio para todos os persona-gens da pe!ta.Quanto mais coisas 0 ator tiver observado e conhecidoquanto maior for sua experiencia, sua acumulacao de impres-sees ~ lembrancas vivas,. mais sutil sera seu modo depensare sentir, mars ampla, variada e substancial sera a vida de suaimaginacao, mais profunda sua cornpreensao dos fatos e aeon-

    tecimentos, mais clara sua percepcao das circunstancias inter-nas e extern as da vida na pec;:a e no seu papel , Com 0 exer-cicio diario, sistematico, da imaginacao sobre urn mesmo eunico tema, tudo 0que se refere ascircunstancias propostasna peca tornar-se habitual em sua vida imaginaria , Por suavez, esses habitos se transformarao numa segunda natureza.De fato, qual e a diferenca entre 0 arido catalogo de fa-tos, como me foi lido ao travar conhecimento com a peca, ea presente avaliacao desses mesmos fates? Aprincipio, todoseles pareciam teatrais, exteriores, meros acessorios do enredoe da estrutura da pec;:a. Mas agora sao acontecirnentos vivos,nurn dia infinitamente emocionante, irnpregnados de vida, real-mente meus.

    A principio, a rubrica simples e seca dizia: "Entra Fa-musov". Agora, essas mesmas palavras encerram uma graveameaca aos amantes descobertos: Sofia corre 0 risco de sermandada "para os confins da roca", e Molchalin esta amea-cado de ser despedido ,o que era, de inicio, uma simples deixa para entradaem cena - "Entra Chatski" - torna-se, agora, a volta dofilho prodigo 200 seio de sua familia e a reuniao - por eleesperada ha anos - com a sua bem-arnada. Ouanta Jmagi-nacao, quantas circunstancias interiores e exteriores, quantospedacinhos individuals de vida inter ior, suposicoes, imagens,anseios, acoes, estao agora incluidos naquela seca instrucaode cena, e em cada palavra que 0 dramaturgo escreveulAgora que submeti os fates da peca it minha propria eX-periencia pessoal, toda a vida e as circunstancias externase in-ternas do meu papel ja nao parecem estranhas como antes,mas presentes, verdadeiras , Todas as circunstancias da vidana casa de Famusov ganharam importancia e sentido, Aceito-asnao uma a urna, porem como parte indivisivel de toda a com-plicada concatenacao de circunstancias da peca. Minha ati-tude para com elas torna-se realidade,

    Transmitindo as fatos e 0 enredo de uma peca, 0 atorinvoluntariamente transmite 0 seu conteudn interior, tudo quenela S6 inelui. Transmite aquele espfrito vivo, que corre sobos Iatos exteriores como urn rio subterraneo . No palco, soprecisamos de fatos de contetidn interno, taros que representemo resultado final de sentimentos internes, ou fatos que atuem

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    I Se 0 periodo preparatorio produziu as circunstflncias de-terminadas, esse segundo periodo criara a sinceridade das e1110-~6es, 0 coracao do papel, sua imagem interior, sua vida espi-ritual. Essa experiencia emocionai do papel e a [ase funda-mental, a [ase mais import ante de 110sm criatividaiie-;, , , , , , ~ . , .o processo criador de viver e experimeutar 0papel e urnprocesso orgiinico, baseado nas leis ffsicas e espirituais quegovernam a natureza do homem, na veracidade de suas emo-~6es e na be1eza natural. Como surge e se desenvolve esseprocesso organico, em que consiste 0 trabalho criador do atornesse ponto? 'II ' .o Periodo de Esperiencia

    EmocionaI IMPULSOS IlILTERlORES E A

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    enquanto a acao propriamente dita e uma satisfacao, interiorOU exterior, do desejo. 0 impulso pede a acao interior, e aacao interior exige, eventualmente, a a

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    Iizesse urn papel Ieio diante de todos os parentes, tocando malo due to. 0 senhor nao ia se aborrecer?- Born. .. s~ria aborre~ido - concord a 0 ve lho, qua-se com culp-a, sentindo que ja estao passando 0 sapato para

    o outro pe, - Mas por que aqui? - explode de repente, co-mo se tentasse se libertar.- Evonde mai~? - pergunta Sofia ao velho senhor com

    sua expressao angelical. - 0senhor me proibiu de entrar nosalao de recep~6es, ~nde esta 0 piano. 0 senhor disse que naoe~tava, belD: frca~ sozinha com urn rapaz, hi longe, Alem disso,la esta muito fno, porque aqueles saloes nao foram aquecidosontem. Onde poderiamos praticar nosso dueto, senao aqui emmeu quarto, no crave, Nao ha outro instrumental Esta claroqu~ mandei Liza ficar aqui 0 tempo todo, para nao me deixarsozinha com urn rapaz. E por isso, papai, 0 senhor . .. E claro,eu nao tenho uma mae para me apoiar! Nao tenho ninguemque me aconselhe, Sou uma orfii. .. Pobre de mimI Ai, meuDeus! Se ao menos a morte me levasse! - Se Sofia tiver sor-te e as lagrimas vierem aos olhos, a questao ficara totalmenteresolvida quando ela ganhar de presents urn chapeu novo.

    ~I1t~!Ii

    . E assim, por rneio .de d~sejos, inclinacdes, impulses paraa~r, .sou . naturalmente impelido a essa coisa importante: aacao interior.A ~ida ~ acao, Por isso e que a nossa arte vivaz, que bro-ta da VIda, e preponderantemente ativa,Nao e sem motivo que nossa palavra "drama" e derivada

    da pa1~vr~ grega, ~ue significa "e~ fa~o'.'. Em grego, isto serefere a literatura, a dramaturgia, a poesia, e nao ao ator ousua art~" Ainda assim, temos muito direito a nos apropriardela, Alias, costumavam chamar nossa arte de "aciio de atores"ou "acao facial", is to e , mimica. Na maioria dos teatros iU Jcorretamente,. toma-se a a!;ao no palco como sendo a~ad ex-terna. Acredita-se, em geral, que as pecas tern muita a~ao,quando as pessoas chegam e partem constantemente, casam-se, separam-se, matam-se ou salvam.se umas das outras. Emsuma, que uma peca e rica em a~ao quando tern urn enredoexterior interessante e habilmente tecido, Mas isto e urn erro.

    iII!I,~I2

    Acao cenica nao quer dizer andar, mover-se para todos oslados, gesticular em cena. A questao nao est a no movirnentodos braces, das pernas ou do corpo, mas nos movimentos eimpulses interiores. Vamos, portanto, aprender de uma vezpor todas que a palavra "acao" nao e a mesma coisa que "fa-zer mimica", nao e qualquer coisa que 0 ator esteja fingindoapresentar, nao e uma coisa exterior; e, antes, uma coisa in-tern a, nao fisica, uma atividade espiritual. Decorre de umasucessao ininterrupta de processes independentes, E cada urndesses processos se compoe, por sua vez, de desejos au impul-sOs que visam a realizacao de algum objetivo.A a

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    acao. A acao indolente, lerda, ainda assim e acao, tipica deum estudo passivo ...A vida real, como a vida em cena, b feita de urn constan-te surgir de desejos, aspiracoes, provocacoes interiores a acao,e sua consumacao em acoes internas e externas. Exatamentecomo as explosoes isoladas de urn motor, constantemente repe-tidas, resultam no movimento macio do automovel, assim tam-bern essa serie ininterrupta de surtos de desejos humanos de-senvolve 0 movimento continuo de nossa vontade criadora, es-tabelece 0 fluxo da vida interior, ajuda 0 ator a experimentar 0organismo vivo de seu papel.Para evocar em cena essa experiencia criadora, 0 atorprecisa manter um continuo tiroteio de desejos artisticos atravesde todo 0 seu papel, de modo a que eles, por sua vez, desper-tern aspiracoes interiores correspondentes, que entao engendra-rao as correspondentes provocacoes interiores it a

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    II

    o ator realiza seu objetivo unicamente por meio do cerebro,nao pode sentir ou viver seu papel, mas apenas dar um rela-torio sobre ele. Sera, portanto, nao urn criador, mas urn repor-ter do seu papel. Urn objetivo consciente s6 podera ser bome cenicamente eficaz, quando for atraente para a vontade e ossentirnentos vivos do ator e os nuser em acao.o melhor objet ivo criador 6 0 objet ivo inconsciente, quelogo se apodera dos sentiment os do ator e 0 conduz, par in-tuicao, ao alvo basico da pe~a. 0 poder desse tipo de objeti-vo esta em seu carater imediato (os hindus. cham am a essesobjetivos a mais alta especie de superconscieucia), que agecomo urn Ima sobre a vontade criadora e desperta aspiracoesirresistiveis. Em tais casos, a unica coisa que faz 0 cerebro e,apenas, notar e avaliar os resultados. Muitas vezes, esses ob-jetivos estao destinados a permanecer, senao completamente,pelo menos cinqiienta por cento no reino do inconsciente. Po-demos apenas aprender a nao interferir na criatividade da na-tureza ou preparar 0 terreno, procurando motivos e meios quenos permitam, ainda que obliquamente, captar esses objeti-vos emocionais , supra conscientes.Os objetivos inconscientes sao engendrados pela ernocaoe a vontade dos proprios atores. Nascem intuitivamente. Emseguida sao pesados e determinados conscientemente. E, as-sirn, as emocoes, a vontade e 0 cerebro do ator participam, to-dos eles, da criatividade.A capacidade de achar ou criar objetivos que despertema atividade do ator, e a capacidade de manejar esses objeti-vos, constituem as preocupacoes cruciais de toda a nossa tee-nica interior. Hi varies caminhos, Entre eles, precisamos en-contrar aquele que tenha mais afinidade com a natureza doator de urn papel, 0 meio de leva-lo ao maximo da acao cria-dora. Como se consegue isto? Eis urn exemplo:Suponhamos que Chatski esta ansioso por convencer So-fia de que nern Mo1chalin nem Skalozub sao bons partidospara ela. A rneuos que essa conviccao se ap6ie no calor dossentimentos, ela permanecera exterior, meramente verbal, se-ca e insatisfatoria. 0 ator nao se convenceria, executaria ape-nas os movimentos Iisicos exteriores, que de modo algum po-dem faze-In crer na sinceridade e veracidade dos seus senti-mentos. Mas, sem essa fe, 0 ator nan pode sentir seu pape1, e

    sem sent ir verdadeiramente seu papel, nao pode ter f tS emsuas emocoes.

    Que sera que, no papel de Chatski, me dara tanta f6 emmeu objetivo, a ponto de fazer-me sentir um forte desejo deagir? Sera a imagem da encantadora, desamparada e inexpe-riente Sofia ao lado cia lastimavel nulidade que e Molchalinou do grosseiro Skalozub? Mas essas pessoas ainda nao exis-tem, pelo rnenos eu ainda nao as vejo, quer na realidade, querem rninha imaginacao, Nao as conheco. Conheco, entretanto,par minha propria experiencia, 0sentimento de piedade, hu-milhacao, indignacao estetica a ideia de qualquer jovern fina(seja ela quem for) sacrificando.se Dum casamento com umrude imbecil como Skalozub ou urn oportunista superficial co-mo Molchalin. A perspectiva de uma uniao tao desnaturada eantiestetica despertaria nossos instintos. 0 desejo de impedirque uma jovem inexperiente de urn pass a em falso eslaria aler-ta em qualquer urn de nos. Em funcao de urn desejo desses,nunca seria dificil mover nossos impulsos, que por sua vezacenderiam 0 desejo autentico e a propria acao.Em que consistem esses impulses? Sentimos 'a necessi-dade de afetar os sentimentos de uma pessoa com 0 nossoproprio sentimento de of ens a, porque uma bela vida jovemesta sendo destruida. Algo nos impele a ir ate Sofia ou qual-quer jovern igual a eIa e ten tar abrir seus olhos para a vida,convence-Ia a nao se destruir com um casamento inadequado,que inevi tavelmente lhe trara desgosto. Buscamos meios deconvence.la da sinceridade do nosso bondoso interesse porela. Em nome dessa sinceridade, a gente quer pedir-Ihe per-missao para Ialar de coisas intimas, assuntos que se referemao sell coracao,Antes de mais nada, eu tentaria convencer Sofia de mensproprios bons sentimentos para com .ela, a fim de adquirirpreliminarmente sua confianca em mim. Em seguida, tentariapintar 0 quadro mais vivido possivel da diferenca entre ela ea natureza rude de Skalozub, entre ela e a almazinha superfi-cial e mediocre de Molchalin. 0 que eu dissesse a respeito deMolchalin exigiria muitissirno tato, pois Sofia decidiu-se a to-do custo a ve-lo at raves de lentes cor-de-rosas. E preciso rnaisque nunca fazer com que Sofia compreenda vivamente comoo meu coracao se contrai a ideia do que Ihe esta reservado,

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    A. PARTlTURA DE UM PAPEL

    A. Desejo apressar 0 instante de meu encontro COm Sojia,com 0 qual venho sonhando lui tanto tempo.Mas nada posso fazer para isto, e portanto fico sentado,

    desamparadamente , na carruagem, a espera de que se abramos portoes. A impaciencia Iaz com que eu fique puxando, dis-t~aldo, a corda da janela, que me incomodou durante toda avJagem.Agora 0 criado chegou, reconheceu-me e est a se apres-sando. Os gonzos dos portoes rangem,estao abertos, a car-ruagem pode entrar, Mas 0 criado a detem, chega ate a jane-la e me sauda com Iagrimas de alegria nos olhos.a. Tenho de [alar com ele , ser agraddvel, t rocar saudacoes.Pacientemente, executo todas essas .acoes, para nao of en-der 0 velho, que me conhece desde que eu era menino. Te-nho ate mesmo de ouvi-lo desfiar as recordacoes familiares deminha propria infancia,

    Agora, finalmente, a grande diligencia, rangendo e tritu-rando a neve, entra no patio e se detem na porte-cochere.SaIto? da carruagem.Qual e a primeira coisa que devo fazer?b. Devo despertar logo a porteirn sonolento.Agora seguro a corda da campainha, dou-lhe urn puxao,espero, torno a toear. Enquanto isto, um vira-lata de estima-

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    Chego ao primeiro patamar, Aqui, dou com 0 despenseiro ea governanta. Ficam mud os com a surpresa desse eneontroinesperado.e. Tenho de sauda-los tambem. De perguntar-lhes porSofia: Onde esta ela? Estd bem? Estd acordada?Chego agora a profusao de saloes de recepcao.o despenseiro vai trotando it minba frente.

    Espero no corredor. Agora Liza vern correndo, com urngntinho, Agora me agarra pela manga do casaco,Que quero neste memento?

    f. Quero chegar depressa a minha meta principal , verSofia, a Querida amiga de minha injdncia, quase umairma.

    E agora, finalmente, ponbo os olhos nela.Aqui, 0 meu primeiro objetivo - A - foi realizado,com 0 auxilio de toda uma serie de pequenos objetivos, qua-se exclusivamente iisicos (sair da car ruagem, tocar a campainha,correr escada acima, etc.).

    Urn novo e grande objetivo surge agora, naturalmente demirn:B, Quem saudar a Querida amiga de minha iniiincia al-guem que e para mim quase COmO'uma irmd. Quero ~bra-ca-la e trocar com ela semimentos reprimidos.Isso, entretanto, nao pode ser feito de uma s6 vez com

    un~ ,s6 ge,sto interior, Deve b~ver toda uma serie de pequenO'.;objetivos mteriores que, reunidos, terao por soma a grandeobjetivo principal.a. Antes de tudo quero olhar cuidadosamente para Sofia,ver seus traces [amiliares e queridos, avaiiar as mu-dancas que ocorreram durante minhai ausencia.Entre as idades de quatorze e dezessete anos, uma jovern

    podernudar a ponto de mal a reconhecermos, E essa maravi-lhosa mudanca ocorreu nela. Eu esperava encontrar uma me-nina e agora a vejo transformada numa jovern mulher.., P~r minhas proprias lembrancas do passado, e minha ex-~eneocJa pessoal, conheco a sensacao de perplexidade que nos~n~ade numa hora dessas. Recordo 0 embaraco, a falta dejeito, ao defrontar com 0 inesperado, Se ao menos eu pudes-se captar uma feicao familiar, 0 brilho dos olhos 0 movimen-to dos labios ou das sobrancelhas, dos ombros ~u dos dedos,

    urn sorriso familiar, eu reconheceria logo a minha Sofia que-rida. 0 acanhamento transitorio desaparece, A antiga relacaoIacil e fraternal se restabelece e urn novo objetivo se forma.b. Quero transmitir meus sentimentos com um beiio tieirmiio.Precipito-me para abracar minha amiga e irma. Aperto-a,e tanto que a magoo urn poueo, de prop6sito, para Iaze-la sen-tir a forca de minha amizade.Mas isso nao e 0 bastante. Tenho de achar outros meiosde manifestar-lhe os sentiment os que reprimi.c. Tenho de acariciar Sofia com 0olhar e a palavra.

    E mais urna vez, como quem faz pontaria, enquanto pro-curo palavras carinhosas, amigas, concentro sobre ela a irra-diacao dos meus proprios sentiment os calorosos.Mas que vejo? Uma expressao Iria, acanhamento, umasombra de desprazer, Que e isso? Sera minha imaginacao? Se-ra result ado da intempestividade de rninhas saudacoes?

    Disso decorre, naturalmente, urn novo objetivo,C. Preciso entender 0 motivo dessa [ria recepci io,Por sua vez, esse objetivo se comp6e, durante sua execu-C;ao, de muitos objetivos independentes.a. Preciso [azer com que Sofia cOn-fesse 0 que estd aconte-cendo,b. Tenho de sacudi-la com interrogatorio, censuras, per-guntas habilmerue [ormuladas.

    c. Tenho de chamar sua atenciio para mim, e assim pordiante.Mas Sofia e esperta, Sabe esconder-se por tras de umaexpresao angelical. Sinto que nao the seria dificil persuadir-

    me. ainda que temporariamente, de que se alegra par me ver.E isso ainda se torna mais facil para eta porque e 0 que euquero acreditar, para poder passar mais depressa a urn ob-jetivo novo, maior e rnais interessante.E esse grande objetivo, D, Inquirir SOfia sobre eia mes-ma, seus parentes, conhecidos, e tudo que se reiira ii vida nes-ta casa e em Moscou, e entao executado POf rneio de umaserie de pequenos objetivos,Mas agora entra Famusov em pessoa, e interrompe 0 nos-so tete-a-tete. Aqui aparece 0 objetivo E, com os pequenosobjetivos concornitantes, ate 0ponto, no fim da peca, em que

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    ol e eg'v. >

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    seu papel senao seguindo 0 fio dos passos que estao fixados napartitura. 0habito representa urn. grande papel na criativida-de: estabelece de modo firme as realizacoes da criatividade,Segundo as Iamiliares palavras de Volkonski, ele torna 0 quee dificil habitual, 0 que e habitual f a c i l , e 0 que e facil , belo. 0habito cria a segunda natureza, que e uma segunda realidade.A partitura, automaticamente, impele 0 ator para a a~aofisica,

    i~mas nao pode despertar a verdadeira criatividade. Nao produzvida, e em pouco tempo se desgasta.Sao necessarias emocoes profundamente passionais paratransportar os sentimentos, a vontade, a mente e todo 0 serdo ator, Essas emocoes s6 podem ser despertadas por objeti-vos de conteiido interior mais profundo. 0 -segredo e a essen-cia da tecnica interior neles se ocultam. Portanto, a preocupa-;ao seguinte do ator deve set a de achar objetivos que mo-yam constantemente os seus sentimentos, -e assim deem vida asua partitura ffsica. Essa partitura criadora deve excitar 0ator nao so par sua veracidade fisica extern a, mas acima detudo por sua beleza, sua euforia interior, Os objetivos criado-res devem evocar nao apenas 0 simples _interesse, e sim umaardorosa -excitacao, ardentes desejos, aspiracoes, acao, Todoobjetivo que nao river essas qualidades magneticas nao cstaracumprindo sua missao. E clarn que nao se pode afirmar quetodo objetivo emocionante e adequado e bom para a partitu-ra criadora de um papel, mas se pode afirmar com toda segu-rancaque urn. objetivo seeo nao serve para- nada,- - 0 fato da chegada de Chatski, demonstrado pelos objeti-vos de maiore menor importancia que a acompanham, s6 einteressante por causa do seu conteudo interior, as emocoes,os motivos psicologicos, Saoesses os fatores que afetam 0 seuser interior.' Sem. eles, 0 papel nao teriacoracao. Sem eles, os-objetivos seriam substanciais, vazios. - __ Vamos agora acrescentar profundidade it partitura dopapel de Chatski, levando-o ao longo do que se poderia cha-mar de _sua corrente submarina, mais perto da fonte de suavida interior, sua propria natureza deator, mais perto daquelecentro misterioso e Intimo que e 0 "Eu" num papel. Que te-mos de fazer para conseguir isto? Devemos acaso mudar osobjetivos e toda a partitura ffsica e psicologica simples quefornecem a vida exterior do papel? Mas nao sao elas indispen-saveis? E deixariam, acaso, de existir , se acrescentassemos aprofundidade? Naol Continuam a existir, mas ganham emsubstfincia. A diferenca estara na vida interior, no estado ge-ral do ator, nos estados de espirito em que cada objetivo seraexecutado, - Seu novo estado interior renovara 0vico e daracolorido aDS seus objetivos, acrescentara a eles uma profun-didade de significacao, uma nova base e motivacao interior.

    o TOM INTERroRA partitura fisica e psicologica simples agora esta pron-ta. Sera que corresponde a todas as necessidades da naturezacriadora do ator? A primeira condicao e que a partitura te-nha 0 poder de atrair, porque 0 entusiasmo criador, urn obje-tivo estimulante, e 0iinico meio de afetar a caprichosa vontadee as emocoes caprichosas do aror.t claro que, por enquanto, a partitura nao tem todas asqualificacoes necessarias pam aquecer 0 entusiasmo de urnator e despertar suas emocoes todas as vezes e sempre que

    ele a criar. Mesmo quando. eu estava procurando e selecionan-do meus objetivos como Chatski, eles nilo me excitavam mui-to. E isto nao e de surpreender. Todos os objetivos escolhidoseram externos, S6 afetavam a periferia do meu corpo, so toea-vam" superficialmente os meus sentimentos e a vida do meupapel. Nem poderia ser de outre modo, pois a linha de meuesforco criativo consistia de fates e acontecimentos externos,no plano da vida fisica e da vida psicologica simples do meupapel, e s6 ocasionalmente atingia os niveis mais fundos daminha vida interior.Esse tipo de partitura, e as experiencias que Ihe corres-pondem, nao refletem os aspectos mais importantes de uruespirito humano vivo, nos quais encontramos a essencia deuma criacao teatral, a individualidade interior da vida do pa-pel. Qualquer pessoa teria feito 0 que a partitura de objetivospropunha. Os objetivos sao tfpicos de qualquer pessoa, e por-tanto nao caracterizam 0 papel particular em sua propria epeculiar individualidade. A partitura pode mostrar 0caminho,

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    ~:I~i

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    A esse estado interior ou disposican modifieada, chamarei dea tom interior. Na linguagem dos atores, chama-se a sementedo sentimento.

    Quando se acrescenta profundidade a partitura de urnpapel, os Iatos e as objetivos so sao modificados no sentidode que Ioram acrescentados impulsos intern os, intuicoes psico-l6gicas, urn ponto de partida interior - todas as coisas queconstituern 0 tom interior da partitura e lhe dao uma basefirme de justificacao.o rnesmo se da com a musica. As rnelodias e as sinlo-nias podem ser executadas em tons diferentes, tom maior outom menor, podern ser tocadas em diferentes tempos e amelodia propriamente dita nao se modifica, mas apenas 0 tomem que e tocada. Num tom maior e num ritmo vivo, a melo-dia tera urn can iter triunfal, de bravura; em tom menor e emtempo lento, adquire urn carater Iirico, melancolico. E assimn6s, atores, podemos experimentar emocoes variaveis quandointerpretamos uma partitura com os mesmos objetivos, masem diferentes tons. E possivel viver todas as emocoes de urnregresso ao lar, executar todos os objetivos Iisicos e psicolo-gicos simples relacionados com ele, numa clave serena ou ale-gre; nurna clave triste, ou perturbada, ou excitada. Ou no ternde urn amoroso que diz de si mesmo:

    ',)t

    se ilumina ate 0 mais fundo, assume urn colorido totalmenteoutro urn conteudo interior maior. Essas mudancas tern deser adaptadas ao papel de Chatski. Com este fim, .deve intro-duzir novas circunstancias. Suponhamos que Chatski voltou doestrangeiro nao so como amigo de Sofia, mas como urn ami-go que a idolatra, um noivo perdidarneute apaixonado. Quemuda na partitura, e 0 que permanece 0 mesmo?

    Qualquer que seja 0 estado de paixao em que esteja lIlll.homem ao regressar a patria, as circunstancias Iisicas 0 obriga-rao a esperar ate que 0 ~elador do patio a~ra os port6es~ ~Ietera de despertar 0 porteiro sonolento, tera de saudar vanesmembros da criadagem, e assim pOJ; diante. Em suma, Chatskitera, sob todos os pontos de vista, de executar qu~se os mes-mas objetivos Iisicos e psicologicos simples da parhtura_, ;omoantes. A diferenca essencial apresentada pela sua cOlldlc;ao. ~eestar violentamente apaixonado nao se situa tanto nos objeti-vos propriamente, mas no modo de executa-los. ~e es.tiver cal-mo, sern que 0 perturbern profundus emocoes mteriores, eleexecutara seus objetivos paciente e escrupulosamente. Se, Cl1-tretanto, estiver pegando fogo, se se entregar a Iorca dos sc.ussentimentos sua atitude para com seus objetivos sera murtodiferente. Alguns deles se esfumarao, fundindo-se e amalga-rnando-se uns com os outros, sendo tragados pelo unico obje-tivo predominante; outros se definirao mais certamente, parcausa do nervosismo e impaciencia doenamorado.Quando urn homem est a in te iramente sob 0 dorninio dapaixao, envolvido nela com todo 0 seu ser, esq.uece seus ob-jetivos Iisicos, executa-os automaticamente, alheio a eles. Navida real, rnuitas vezes ficamos alheios ao que estamos == :do: andando, tocar uma campainha, abrir uma porta, curnprt-mentar fulano ou sicrano. Tudo i5S0 e feito, em grande parte,de modo inconsciente. 0 corpo vive a sua propria existenciahabitual motora, e a alma vive sua vida psicologica, maisprofunda, Mas essa divisao aparente nao destroi 0 elo entrea alma e 0 corpo. A aparencia se deve ao fato de que 0 cen-tro da atencao se transfere da nossa vida exterior para a 1105-sa vida in terior.Assim, a partitura Iisica, que 0 ator aperfeicoou a pon-to de tamar automatica a sua execucao, agora vai mais fun-do arredonda-se com urn novo sentimento e, pode-se dizer,,

    " ... fora de mim,Doisdias e noites a fio, sun pregar os olhos,Viajei velozmente par muitas cenienas de milhasNos vendavais e tempestades; agitado, ,Muitas vezes cal. .. "Portanto, vamos agora estabelecer urn novo objetivo: pe-gar a partitura como esta constituida ate agora e aumentar-lhea profundidade.Antes de .~ais nada, tenho de me perguntar: que seria

    mudado na partitura S~ eu regressasse do exterior como 0fez Chatski, dadas as circunstancias da sua vida na~ no esta-do de urn amigo que retorna, mas, antes, inflamado de urn ar-dcnte amor. por Sofia? Em outras palavras, tentarei sentir amesma partitura mas numa clave diferente,

    Nesta nova clave de uma paixao de arnante, a partitura78 79

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    ,It

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    t(contradit6rias, cuja soma total e 0amor. E com efeito, que fazChatski durante toda a peca? De que acoes se compoe seu pa-pel? De que modo manifesta ele 0 seu amor por Sofia? An-tes de mais nada, logo que chega, ele se apressa a ver Sofia.Estuda-a cuidadosamente quando se encontram e tenta desco-bri r a razao da fria acolhida que ela Thedispensa, Censure-a,depois faz piada, zomba de parentes e conhecidos. Ao mesmotempo, faz observacoes ferinas a Sofia. Pensa muito nela, ator-rnentam-se e fica perplexo, Espiona, surpreende-a num en-contro, preparando-se para trai-lo, escuta-a, e finalmente Iogede sua amada. Dentre todas essas variadas acoes e objetivos,s6 umas poucas linhas do texto sao palavras e confissoes deamor. Mesmo assim, 0 total dos momentos e objetivos isola-dos, somados todos, estabelece a paixao, 0 amor de Chatskipor Sofia.~ossa paleta emocional, nossa par titura, que deve retra-tar paixoes humanas, precisa ser colorida, variada, rica. Retra-tando qualquer uma das paixoes humanas, 0ator nao devepensar nessa paixao mesma, mas nos sentimentos que entrainelD:s~a composicao, e quanta maior for 0impeto que queiraatribuir a ela, mais variegadas e contraditorias serao as emocoesque tent de buscar, Os extremos estendem a gama das paixoeshum~nas, e ampliam a paleta do ator. Portanto, quando esti-ver interpretando 0 papel de um homem bom, ele deve son-dar 0 que esse hornern pode ter de mau; se estiver interpre-tando urn personagem inteligente, deve encontrar 0 seu pon-to Iraco mental; se interpreta uma pessoa alegre, encontre 0lado serio dessa pessoa, Esta e uma das formas de ampliarum~ paixao hum ana. Se nao achamos logo de uma vez 0colorido que queremos, temos de procura-lo.Habitualmente, aspaix6es humanas nao se concebem,~esenvolvem e atingem 0 climax de uma vez, mas sim grada-tivamente, num longo periodo de tempo. Sentimentos sombriostransformam-se, imperceptfvel e lentamente, em sentimentosmais alegres, e vice-versa. Assim, por exemplo, 0 coracao deOtelo esta radiosamente pleno de todas as emocoes alegres,claras, amorosas, como 0 metal poJido que reflete os raiosdo sol. Depois, aqui e ali, pode-se, de subito, discernir mall-chas escuras. Sao os primeiros momentos de diivida. 0 nurne-ro das manchas sombrias aumenta e 0 coracao radiante do82

    amoroso Otelo cobre-se com as malhas de emocoes malignas.Estas sombras se alongam, crescem e afinal seu coracao bri-lhante torna-se escurecido, quase negro. No inicio, haviabre-yes insinuacoes de urn ciume crescente, Agora, apenas alguns.POllCOS instantes record am seu terno e confiante amor, E aofim de tudo, vao-se iesses mementos, e a sua alma inteira secobre de escuridao itotal,f: certo que ha casos em que um-homem e avassaladosubita e totalrnente por uma paixao: Romeu foi ferido de su-bito pelo seu amor a Julieta, Quem sabe, entretanto, se Ro-meu, havendo sobrevivido, nao teria provado 0 destino geraldos homens, passando por todas as' horas dificeis, todas asemccoes sombrias que sao 0 apanagio inevitavel do amor?Demasiadas vezes, no palco, tudo acontece em gritantecontraste com a natureza das paixoes humanas: os atores seapaixonam de cara, sentem ciumes na primeira oportunidadepossivel. Muitos deles, sao inocentes a ponto de acreditar. queas paixoes humanas - quer se trate de amor, chime, avareza- sao como cartuchos ou bombas que 0 ator pode implantarno coracao, Chega a haver atores que se especializam, de mo-do muito primitivo, nesta ou naquela das paixoes humanas.Procurern Iembrar-se do tenor de opera, todo embonecado, efe,minado, com 0 cabelo cacheado para parecer urn anjo. Suaespecialidade e 0 amor, s6 0 arnor, isto e, Iazer pose em cena,fingir que esta pensativo, sonhador, por, continuarnente amao no coracao, _correr de urn lado para 0 outro para repre-.sentar paixao, abra

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    s6: 0 arnor e representado pelo amor, a ciume pelo cilime,oodio pelo 6dio, a dar pela dar, a alegria pela alegria, Nao hacontrastes, relacoes mutuas entre as nuancas interiores, tudo6 plano e monotone. Tudo 6 feito numa s6 cor. Os viloes saointeiramente em negro, os benfeitores em puro branco. Paracada paixao, 0 ator tern sua cor especial, como os pintorespintando cercas e criancas colorindo seus desenhos. 0 resul-tado e a atuacao "em geral", Tais atores amam "em geral" ,enciumam-se "em geral", odeiam "em geral". Retratam oscomplexes componentes da paixao humana por meio de si-nais elementares, e em sua maioria, exteriores. Demasiadasvezes urn. ator pergunta a outre:- Em que vai voce basear esta ou aquela cena?- Em Iagrimas - au - Em gargalhadas - Em ale-grias - ou - Em inquietacao _;_ responde 0 outro, sem se-quer desconfiar de' que nao estao falando de a9ao interior, masde seus resultados exteriores.o ator tern de conhecer a natureza de uma paixao, ternde conhecer 0 tracado que 0 devera orientar. Ouantornais 0ator conheca a psicologia da alma e da natureza, quanto maisas estude em suas horas vagas, melhor podera penetrar na es-sencia espiritual da paixao human a e, assim, a partitura dequalquer papel que interprete sera mais rica de detalhes, maiscomplexa, mais variada.,Queremos observar mais de perto 0 desenvolvimento deuma paixao, e por is to eu volta ao trabalho que interrompe-mos, com a partitura do papel de Chatski, quando a recompu-semos na clave do seu amor por Sofia.Utilizando 0 esquema que tracamos, tentarei achar neletodas as graduacoes necessaries para 0 desenvolvimento dapaixao do amor, de acordo com a epoca, como atinge Chatskiao voltar do exterior.

    Evoce 0estado de urn homem enamorado, e ponho-me nocentro das circunstancias, isto e, na situacao de Chatski. Destavez, meu trabalho i r a ret rocedendo, dos objetivos maiores a t eas de menor i rnportancia .Aqui estou eu, recem-chegado de fora, nem sequer fui aminha casa, mas rumei logo para os portoes da mansao Fa-musov.Men desejo de ver Sofia e tao forte, que eu realmente de-

    vo revisar 0 meu primeiro grande objetivo, alterando-o para:2A. Ver minha ardentemente amada Sofia 0 mais depressapossivel,Que devo fazer para isso?Agora minha carruagem parou. 0 cocheiro esta charnan-do 0 zelador do patio, para que abra os portoes. .Nao consigo sen t ar-me tranqiiilamente na carruagem. Te-nho de Iazer alguma coisa, Minha energia transbordante me

    faz agir com mais vigor, minha euforia aumentou dez vezessou impelido. par ela., '2a. Quero apressar 0 instante do nosso encontro, com 0 qualsonhei tiio ardentemente quando estava [ora,

    Agora salto da carruagem, corro ao .portao, bato com' acorrente que 0 mantem fechado, Espero que 0 criado 0 abra,e, e nquanto isso bato com os pes para baixo e para cima, vigo-rosamente, por excesso de energia. Os portoes rangem nosgonzos. Assim que se entreabrem urn pouquinho, enfio-mepara dentro. Mas criado me barra caminho, quer demons-trar sua alegria por me ver.2b. Tenho de trocar saudacoes, ser tlmavel com ele.

    Fa-Io-la com satisfacao, principalmente quando ele e cria-~o dela. Mas uma forca interior me impele para diante, e poristo souquase automatico em minha saudacao; saio correndo,antes mesmo que as palavras acabem de deixar minha boca.

    Assim, a necessidade de apressar 0 encontro com Sofiafunde meu pequeno objetivo 2b com 0 anter ior,' 2a, e torna-se uma a~ao mecanica.Agora, a travesso correndo 0 grande patio, ate it portada frente.2c. Preciso acordar logo 0 porteiro sonolento.Pego, agora, a alca da campainha e puxo com todas asminhas forcas, Espero, Puxo outra vez..Nao consigo impedir minhas maos de puxar, embora sai-ba que arrisco romper 0 cordao da campainha,Agora 0vira-lata da familia esta ganindo e fazendo fes-

    ta aos meus pes. E0caozinho dela.2d. Quero aiagar 0 ciiozinho, que e meu velho amigo, etambem porque pertence a ELA. .Mas nao tenho tempo. Preciso tocar a campainha. Por-tao to, este objetivo se mescla com 0 2c.

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    Finalmente, abrem a porta, e eu me precipito para 0 ves-tibula. 0 ambiente familiar me envolve e me estonteia, Umaforca interior me impele, mais forte que nunc a, nao me deixasequer deter-me para olhar em torno. Mas surge nova demo-:ra. 0 porteiro me sauda com sua voz relinchante.2e. Preciso sauda-lo, ser amdvel, trocar algumas palavrascom ele.

    Mas este objetivo se funde no meu objetivo maior, total,e meu desejo de apressar meu encontro com Sofia torna su-perficiais meus cumprimentos.

    Corro adiante , resmungando a s press as qualquer coisa.Subo a escada de quatro em quatro degraus. E entao, no meiodo caminho, no patamar, dou com 0 despenseiro e a gover-nanta. Assustam-se com a minha precipitacao veloz e ficamparalisados com a inesperada surpresa de me verem.2f: Preciso trocar saudacoes com eles, tenho de perguntar

    por Sofia: onde esta ela? Esui bern? fa acordou?Quante ..mais me aproximo do fim de meu esforco, maisforte e 0empuxo que me atrai para ela. Primeiro, quase meesqueco de cumprimenta-los, mas imediatamente exclamo:- Mademoiselle ja se Ievantou? Posso entrar?

    E sem esperar resposta, corro pelo corredor, passando pelosaposentos familiares. Alguem grita por mim, alguem correarras de mim.Entao, paro e comeco a me recuperar,- Nao posso entrar? Ela esta se vestindo?Recorro a toda minha Iorca de vontade para center rnr-nha excitacao, e comecar a tomar folego.Para extravasar minha dolorosa impaciencia, bato com

    os pes. Alguem se aproxima de mim, correndo, com urn gri-tinho.

    - Oh! LizalAgora, eIa me toma pela manga do paleto e eu a aeOID-panho.Agora, aeontece uma coisa. Perco a cabeca, nao sei, nao

    me Iembro de nada. Sera urn sonho? Minha infiincia de volta?Vma visao? Ou sera uma alegria que outrora conheci, nestaou em alguma outra vida? Deve ser ela! Entretanco, nao pos-so dizer nada sobre ela. So sei que Sofia esta diante de mim,L a esta ela. Nao. E melhor ainda, E uma outra Sofia.

    E entao, espontaneamente, urn novo objetivo se forma.2B. Quero saudar, [alar com esta visiiolMas como? Para uma jovem assim desabrochada, preciso

    encontrar novas palavras, novo relacionamento.A fim de encontra-los:2a. Tenho de examinar Soiia cuidadosamente, filar seus tracos[amiliares e queridos, avaliar a mudanca ocorrida des-de que IWS separamos.Fixo nela os meus olhos, nao quero apenas ve-la, queroenxergar sua propria alma.Neste instante, em meu sonho, vejo urna encantadora mo-cinha, vestida na moda da decada de 1820. Quem sera ela?o Tosto me e familiar! De onde tera vindo? De alguma gra-vura? Seria de algum retrato, ou uma lembranca qualquer, queeu, mentalmente, transportei e vesti COm os trajes da epoca?Fito essa Sofia imaginaria, sinto a verdade do meu olhar,

    Provavelmente, 0 pr6prio Chatski olhou para Sofia com estamesma impressao de atencao concentrada. Depois, vern acres-centar-se a isto uma sensacao familiar, talvez de perplexidade,talvez de mal-estar. .

    Que sentimento e este? Do que recorda? De onde surgiu?Tento adivinhar. Remonta a muito tempo. Quando eu eraainda quase crianca, conheci uma menininha. As pessoas em

    torno brincavam conosco, diziam que eramos urn casal, urnparzinho de noivos. Eu Iicava embaracado, e depois penseimuito nela. Escrevemo-nos urn ao outro. Passararn-se muitosanos. Cresci, mas em minha imaginacao ela era sempre umamenininha . Afinal, nOS encontramos, e ambos nos sentimos en-cabulados, pais nao tinhamos esperado parecer urn ao outrocomo parecemos. En nao podia imaginar 0 que dizer a umamoca feita, como ela se tornara , Precisava falar-Ihe de ummodo diferente, nao sabia exatamente como, mas nao poderiaser do mesmo jeito que The falava antes ...Todo 0 mal-estar, a perplexidade, a procura de urn novorelacionamento, saem agora de minha memoria por analogiacom 0 presente. Uma lembranca viva acrescenta 0 calor do. sentimento vivo ao meu sonho presente, faz pulsar meu cora-c;:ao, sinto a real veracidade de minha situacao. Sin to dentrode mim alguma coisa que esta visando, buscando, uma via deacesso , tentando estabeleeer novos relacionarnentos reciprocos

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    l' No manuscr ito orig in al, Stanislavski indicava, mas n fio Ievou avan-te, sua intencao de desenvolver ainda mais as camadas do papel deChatski , Ele 0 teria explorado njio s6 nas claves do amigo e do ena- . ,

    com alguem que e Urn obje to novo, porem familiar. Essas tell-tativa, trazern 0 selo da verdade, aquecem minhas emocoes,dao vida a esse momento de encontro que imaginei,Nesse instante, U