em busca da sanfona perdida: uma experiÊncia teatral ... · em busca da sanfona perdida: uma...
TRANSCRIPT
ISSN 2176-1396
EM BUSCA DA SANFONA PERDIDA: UMA EXPERIÊNCIA TEATRAL
INTERATIVA NA EDUCAÇÃO INFANTIL EM ZONA DE CONFLITO
Clara Rohem1 – UFRRJ
Grupo de Trabalho – Educação, Arte e Movimento
Agência financiadora: não contou com financiamento
Resumo
Para comemorar o Dia das Crianças, nós, funcionários do CEMEI Margarida da Silva Duarte,
localizado na comunidade da Chatuba, município de Mesquita-RJ, resolvemos continuar
seguindo o curso dos trabalhos realizados durante o ano dentro da temática proposta pela
Secretaria Municipal de Educação (SEMED) e organizamos uma festa-teatro interativa.
Aproveitando todos os conhecimentos obtidos anteriormente através de pesquisas – como os
principais instrumentos utilizados no forró, os tipos de paisagens predominantes no nordeste e
no sertão nordestino, as músicas de Luiz Gonzaga e as influências nordestinas no cotidiano do
sudeste – propusemos uma história de aventura e fantasia pela Fazenda de Zefinha. O CEMEI
Margarida da Silva Duarte é uma creche relativamente pequena, inaugurada pelo Programa
Nova Baixada da prefeitura municipal, em 2002. No momento em que as atividades aqui
narradas foram realizadas a creche passava por uma reforma e exatamente no mês de outubro,
o do Dia das Crianças, as obras foram iniciadas. Para trabalhar a vida e a obra de Luiz
Gonzaga e também a origem do povo mesquitense com as crianças do CEMEI Margarida da
Silva Duarte como o proposto pela SEMED, uma das professoras, também atriz, criou a
personagem Zefinha. Esta personagem esteve presente em vários momentos do ano letivo,
não só para as crianças e funcionários, como também para os responsáveis pelas crianças. Nos
dias que antecederam a festa, a equipe trabalhou arduamente para escrever o roteiro da
história, transformar o ambiente escolar num cenário que dialogasse com o roteiro criado e
confeccionar bornais como o de Zefinha para as crianças levarem consigo na aventura pela
Fazenda.
Palavras-chave: Educação infantil. Creche. Cultura popular. Violência urbana.
Introdução: Zefinha entra em cena
Zefinha é uma nordestina bem-humorada e tipicamente “amarela”: pés em sandália de
couro de bode, saia longa de tecido, lenço na cabeça e bornal atravessado no ombro. Come e
1Licenciada em Pedagogia pela UFRRJ. Professora da rede municipal de educação do Rio de Janeiro e ex-
professora da rede municipal de educação de Mesquita-RJ. Mestranda no Programa de Pós-graduação em
Educação da UFRRJ. E-mail: [email protected].
23663
oferece rapadura; não desperdiça água; fica avexada quando lhe fazem um elogio e arretada se
lhe tomam liberdades. Conta causos do sertão da época de seus avós e morre de medo de
visagem. Zefinha é simpática e carinhosa com “os minino”. Zefinha se tornou parte da creche.
Sua história foi primeiramente narrada para as crianças participantes do evento como se segue
abaixo.
Aconteceu que Zefinha havia chegado há meses de Pau da Fome, interior da Bahia.
Disse-nos que fora antes a São Paulo, procurando por seu marido José Raimundo que, por sua
vez, havia saído de Pau da Fome sozinho, dizendo que viria pra cidade grande melhorar a vida
pra dar mais conforto pra mulher e pros “minino”. Mas meses se passaram e nenhuma notícia
chagava: ônibus saíam e voltavam de Pau da Fome e nada de Zé Raimundo voltar. Sei dizer
que Zefinha cansou. Vendeu a pequena casa pro dono da venda, passou a mão na fileira de
“mininos” e rumou pra São Paulo. A surpresa foi que, já em São Paulo, soube que Zé
Raimundo havia partido pro Rio de Janeiro. Mais uma vez, passou a mão nos meninos e
partiu. Já no Rio de Janeiro, soube através de Edson que Seu Zé morava num quartinho ali
mesmo pelas redondezas.
Na hora do encontro foi aquela choradeira! Diz que apertou o “homi”, amassou, deu-
lhe cheiro e depois terminou com um sopapo pra ele pagar os meses de angústia e aflição pela
falta de notícia. Os “minino” - Jovenir, Joverson, Jovemar, Jovercyr, Joverlina, Juracyr,
Jucyara, Jucymar e Jó - quase definharam a pão, água e saudade do pai. Mas o quiproquó não
demorou muito a se acabar: Zefinha ficou orgulhosa do marido que já tinha quase enricado na
cidade grande. Imaginem que até comprou um chevete! E era um chevete lindo! Verde! Um
pouco descascado, mas quase nada. Um vidro até baixava pra correr um pouco de vento...
coisa linda de se ver! E os minino? Afe Maria! Que felicidade de Jovenir, Joverson, Jovemar,
Jovercyr, Joverlina, Juracyr, Jucyara, Jucymar e Jó quando andavam com o pai no carro novo!
Mas o destino é traiçoeiro e logo foi ter com Zefinha. E não é que a morte lhe roubou
o marido? (pausa dramática). Como foi não sei dizer, que isso ela também não disse. Sei que
o “homi” morreu e ela foi ter com a “dona do culégio” pra ver se arrumava umas vaguinhas
prus minino fazerem uma merendinha, estudarem e lá pra frente, serem gente, né mesmo? Ela
chegou no culégio com a cartinha de um vereador que era pra não ter erro. Mas não careceu: a
Dona do culégio era legal, deu a vaga pros minino pequeno e ainda arrumou vaga pros minino
grande em outro culégio! Eita que agora dava até pra Zefinha faxinar – porque medo de
trabalho ela não tinha não, viu? E também não passava aperto: tinha sempre na bolsa uma
23664
sacolinha dessas de feira pra modo de guardar umas merendinhas que iam lhe oferecendo aqui
e ali.
Sei dizer que Zefinha não se arrependeu de chegar na cidade grande. Depois de
organizar a vida, fez foi um arrasta-pé no quintal e convidou as crianças e as tias todas do
culégio. Foi festa de anunciar no jornalzinho da cidade. E a vida vai seguindo bem pra Dona
Zefinha, que agora anda considerando um namoro sério com Valdisley, porteiro do prédio
onde faz faxina toda terça. Êta Zefinha. Êta mulher porreta!
O caminho de Zefinha pela cultura popular
Daqui por diante, roteiro, história e descrição seguem juntos. Vejamos.
Zefinha recebe as crianças em sua casa e as convida para um arrasta-pé:
Figura 1 - Zefinha recebe as crianças
Fonte: arquivo pessoal.
Zefinha então recebeu seus convidados no pátio externo do CEMEI e os acolheu em
sua sala:
Figura 2 - Sala da casa de Zefinha
Fonte: arquivo pessoal.
23665
Reproduzida nos mínimos detalhes a partir das vontades e manias de Zefinha:
Figura 3 - Quadro na sala de Zefinha
Fonte: arquivo pessoal.
Zefinha conversa com as crianças e as convida para um forró...mas...para haver forró é
necessário música. Sanfoneiro! Mas seu amigo sanfoneiro João está muito triste mesmo! É
que ele anda comendo pouco peixe. Não tem conseguido pescar e por isso mesmo anda
esquecido! E não sabe onde deixou a sanfona... Zefinha então convida as crianças a ajudarem
a encontrar a Sanfona Perdida.
Figura 4 - Zefinha e o sanfoneiro
Fonte: arquivo pessoal.
23666
Mas antes, é preciso pegar um bornal para guardar as pistas do caminho. É necessário
cuidado, pois algumas surpresas podem acontecer... Assim cada criança ganhou um bornal e
foi instruída a não soltá-lo e ir apanhando o máximo de pistas possíveis...
Figura 5 - Zefinha e sua bolsa
Fonte: arquivo pessoal.
Então é preciso começar a procurar a sanfona... Vamos começar pelo último lugar
aonde João esteve. Vamos até o Açude Azul! E assim as crianças (e também os adultos)
mergulharam fundo no açude azul em busca da Sanfona. As crianças procuraram, procuraram,
procuraram e não acharam. A sanfona porque doce...tinha até demais!!! A cada uma delas foi
guardando quanto quis no bornalzinho. O açude foi confeccionado com os colchonetes que as
crianças utilizam para dormir todos os dias e com algumas toalhas de banho azuis. Por cima
de tudo isso, foram espalhados pirulitos e balas e peixes feitos com parte de caixa de leite.
Figura 6 - O açude no caminho
Fonte: arquivo pessoal.
23667
Como a sanfona não foi encontrada, as crianças acompanharam Zefinha por dentro de
uma mina que saía direto na casa da Galinha Gorete... A galinha Gorete foi interpretada pela
auxiliar Dulce. A equipe montou um galinheiro num banheiro que está sendo reformado. A
diretora Andreia do Prado fez a arte: pintou a galinha e criou com redes de vôlei um grande
ninho; as merendeiras cozinharam ovos para espalhar pelo galinheiro; os vigias conseguiram
pó de serragem para colocar no chão e as crianças...bem...estas fizeram a festa catando ovos e
bombos, ambos colocados pela Galinha Gorete (que aliás, está fazendo mais sucesso na
creche que a Galinha Pintadinha). A roupa de Gorete foi confeccionada com TNT e papel.
Figura 7 - A galinha Gorete
Fonte: arquivo pessoal.
Mas a sanfona também não estava lá! Então...é hora de procurar no pomar! E nesse
pomar tem pé de que? E assim as crianças foram descobrir o que nascia naquele pomar. Tinha
pé de bombom, pé de geladinho, pé de bala, pé de Bis, pé de pipoca, pirulito...hummm...o
bornalzinho só foi enchendo, enchendo, enchendo...
Figura 8 - O pé de bala
Fonte: arquivo pessoal.
23668
Como a sanfona não estava, a busca continuou, mas antes, pedimos informação a
Dona Cachorreira, uma cachorrinha que, gentilmente, servia seus cachorros-quentes...essa
cachorrinha foi interpretada pela auxiliar de creche Miriam. Ela servia cachorro-quente
diretamente da casinha de bonecas que fora transformada em casinha de cachorro. Seu
figurino consistia basicamente de uma maquiagem feita com tinta própria para pintar rosto
branca e preta, e duas orelhinhas de tecido coladas num arco de cabelo... Dona Cachorreira
fez muito sucesso! Depois de abastecidos com cachorro-quente e refrigerante, a procura
continuou:
Figura 9 - Dona Cachorreira
Fonte: arquivo pessoal.
E a sanfona? Nada? Então só resta procurar num lugar...na casa da Mula-sem-cabeça!
E as crianças chamaram a Mula...mas, para surpresa deles, a mula não estava e quem
respondeu? - Oi... A Mula taí? - Não... Só o Boitatá! -Ah... O Boitatá tá? - Tá... O Boitatá tá e
ele tá que tá, tá? E o Boitatá saiu correndo atrás das crianças e foi aquela correria! O Boitatá
foi produzido com TNT e isopor e sua estrutura lembrava a de um dragão chinês. Foram
necessárias três pessoas para conduzi-lo: eu, que agora conto um pouco dessa experiência, a
professora Ana Cristina e a auxiliar de creche Rosane. A casa da Mula-sem-cabeça, que na
verdade abrigava o Boitatá, foi construída a partir da estrutura do balanço que fica no centro
da creche. Toda a estrutura foi coberta com TNT preto e na porta, colocaram-se placas
avisando sobre o perigo que habitava aquela casa.
23669
Figura 10 - Casa do Boitatá
Fonte: arquivo pessoal.
Figura 11 - O Boitatá
Fonte: arquivo pessoal.
Depois de fazer todo esse caminho...será que a sanfona não será mais encontrada?
Todos voltam para casa de Zefinha que se lembra que fez uma faxina daquelas antes da festa.
Será que a Sanfona esteve o tempo todo ali, pertinho? E não é que era isso? A danada estava
atrás do sofá de Zefinha! Eita que o sanfoneiro já pode começar o baile! Solta o Luiz
Gonzaga!!! “Luiz respeita Januário...lálá lálá.../eu quero um ovo de codorna pra comer tralá lá
iaiá.../quando olhei a terra ardendo...”
23670
Figura 12 - O sanfoneiro
Fonte: arquivo pessoal.
Conclusão
O trabalho desenvolvido naquela ocasião pela equipe do CEMEI Margarida da Silva
Duarte proporcionou a toda comunidade escolar uma maneira diferente de perceber e
vivenciar alguns elementos da cultura nordestina no cotidiano de cidades como o Rio de
Janeiro. Além disso, a realização da comemoração do Dia das Crianças longe daquele molde
tradicional das festas infantis (que tendem cada vez para a mercantilização da infância)
possibilitou que as crianças dessem as mãos para nós, adultos, e nos convidassem a fazer o
que sabem de melhor: imaginar.
Buscando atender as poucas exigências do imaginário infantil – para que as crianças
pudessem explorar novas sensações, diferentes mundos e muitas maneiras de interagir com o
espaço e com o outro, o espaço do CEMEI Margarida foi transformado. No entanto, sem a
menor sombra de dúvidas, a real transformação ocorreu longe do espaço físico e das
maquiagens de cada professor-profissional-ator; a maior e mais profunda transformação
talvez jamais possa ser capitada pelas lentes de nenhum fotógrafo; a transformação mais
significativa ocorreu em cada um de nós, participantes daquela aventura inventada,
comandada por Zefinha: no encontro com a certeza de que é possível uma Educação Infantil
que aconteça, prioritariamente, a partir da feliz necessidade das crianças de subverter a ordem
das coisas.