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Elites Militares e a Guerra de frica (captulo III) Manuel Godinho Rebocho - Um Pra-Quedista Operacional da CCP123 do BCP12 (in blogue CoisasdoMR)

Manuel Godinho Rebocho2 Sargento Pra-Quedista da CCP123/BCP12 (Companhia de Caadores Pra-quedistas 123 do Batalho Caadores Pra-quedistas 12)

Bissalanca/Guin8 de Maio de 1972 a Julho de 1974 Manuel Godinho Rebocho hoje Sargento-Mor na reserva e foi 2 Sargento Pra-Quedista da CCP123/BCP12, Bissalanca, 1972/74, escreveu um excelente livro AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS DFRICA, sobre as suas guerras em frica (uma comisso em Angola e outra na Guin combatendo por Portugal) e a sua anlise ao longo dos anos. Foi com muita satisfao pessoal e desde j com os meus melhores agradecimentos amigos, que este nosso camarada-dearmas da guerra do Ultramar, acedeu amvel e incondicionalmente publicao das partes operacionais do seu bem delineado livro, a que daremos incio no presente poste, com seu o currculo pessoal, os agradecimentos, a constituio do livro, nota do autor e prefcio.Textos, fotos e legendas: Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados

Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados

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Elites Militares e a Guerra de frica (captulo III)

Currculo Manuel Godinho Rebocho nasceu a 4 de Dezembro de 1949, numa aldeia prxima de vora. Ingressou como voluntrio nas Tropas Pra-Quedistas aos 18 anos. Efectuou o antigo 5. ano dos Liceus durante a sua comisso de servio na Guin, entre 1972 e 1974. Preparou-se para os exames do antigo 7. ano dos Liceus durante a sua priso, resultante dos acontecimentos de 25 de Novembro de 1975, de cujos actos foi judicialmente ilibado. Por ordem do ento Chefe do EstadoMaior da Fora Area permaneceu em residncia fixa at 1982, o que o impediu de ingressar na Academia Militar, em 1976. Como alternativa Academia, e com a devida autorizao judicial, ingressou na Universidade de vora, em 1976. Eng. Agrnomo, Mestre em Economia Agrcola e Doutorado em Sociologia (ramo Sociologia da Paz e dos Conflitos). Sargento-Mor Pra-Quedista, na reserva, qual passou por limite de tempo no posto (oito anos). AGRADECIMENTOS A investigao desenvolvida e necessria para redigir a presente obra nunca seria possvel sem que um elevado nmero de pessoas e instituies me tivessem concedido o seu apoio. Os dados esto dispersos, uns disponveis em suporte de papel, outros constando apenas da memria de quem os viveu, deles ainda se recorda e se disponibilizou para os relatar. A todas estas pessoas e instituies, sem qualquer excepo, expresso o meu mais profundo agradecimento. Quero agradecer particularmente minha mulher, Maria Jacinta, e aos meus filhos Cludia Leonor e Nuno Miguel, o apoio e incentivo que me expressaram. Professora Doutora Maria Jos Stock, agradeo todo o apoio que me concedeu na estruturao e leitura do texto. Creio mesmo que, sem o seu apoio, no teria alcanado o meu objectivo, nem a qualidade da obra atingiria o patamar que julgo ter conseguido. Instituio Militar, particularmente ao Exrcito, agradeo a permisso para consultar os mltiplos arquivos militares, onde obtive a informao que sustenta a obra; sem essa consulta seria absolutamente impossvel efectuar a investigao com a objectividade conseguida.

ELITES MILITARES E A GUERRA DE FRICAAos que, na Guerra de frica, Deram parte de si Ptria E a Ptria nada lhe deuO livro tem a seguinte estrutura e sequncia de anexos: Ttulo Dedicatria ndice Prefcio (pginas 1 a 6) I Captulo (pginas 7 a 82) II Captulo (pginas 83 a 240) III Captulo - desdobrado em 4 anexos - (pginas 241 a 428) III I (pginas 241 a 341) III II (pginas 342 a 369) III III (pginas 370 a 400) III IV (pginas 400 a 428) IV Captulo (pginas 429 a 506) V Captulo (pginas 507 a 532) VI Posfcio (pginas 533 a 548) VII Bibliografia (pginas 549 a 596) Currculo Pessoal NOTA DO AUTOR O trabalho de investigao que desenvolvi, ao longo de vrios anos, cujo resultado final constitui a presente obra, teve como fontes de informao fundamentais a anlise que efectuei sobre diversos documentos militares, a minha prpria experincia e um vasto nmero de entrevistas a Oficiais do Quadro Permanente. A investigao cientfica que realizei provou que, no decurso da Guerra de frica, os Oficiais do Quadro Permanente foram-se progressivamente afastando do Comando Operacional, para se instalarem nas posies de gesto militar. Desta situao, inusitada, resultaria terem sido os Milicianos quem, de facto, comandou as Unidades de Combate, nos ltimos e mais gravosos anos da Guerra. Reconhecendo esta situao e dado no ter ouvido, na dimenso adequada, os graduados milicianos, nem lhes ter dado o destaque que justamente merecem, entendi, para corrigir este lapso, convidar um miliciano para prefaciar a presente obra, para alm de ter igualmente convidado um miliciano de cada uma das suas classes: Capites, Alferes e Furriis, para escreverem livremente um depoimento sob a forma de posfcio, enfatizando particularmente a sua experincia enquanto combatentes. Presto, assim, o meu total reconhecimento pelo trabalho desenvolvido pelos Milicianos no seu todo, ao longo da Guerra de frica. Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados 2/86

Elites Militares e a Guerra de frica (captulo III)

PREFCIO O dado fulcral, que faz da obra de Manuel Rebocho um caso singular, escorado basicamente em procedimentos metodolgicos da nova sociologia, a observao-aco, ou melhor a observao empenhada, como dela disse Adriano Moreira durante a discusso acadmica, o ponto de partida do investigador: foi a sua participao e envolvimento directo na guerra que, anos depois, viria a despoletar o seu interesse sociolgico no tema, a ponto de a estudar e de apresentar a escrutnio doutoral os resultados a que chegou. No espanta, por isso, que, uma vez e muitas, se pressinta alguma dificuldade de afastamento e iseno do autor face ao real que analisa. Mas isso no menoriza ou empobrece a qualidade cientfica do trabalho, antes o valoriza: afinal foi feito por quem, com instrumentos da cincia social, se debrua sobre o que viveu e sofreu. Este trabalho, no essencial da obra, deve ser, por isso, entendido como portador de uma parcela autobiogrfica, como uma histria de vida, como sublinhou Maria Jos Stock, orientadora do novel Doutor. Se verdade que a Guerra Colonial demorou alguns anos a tornar-se tema ficcional, j hoje h obras bastantes, particularmente testemunhos pessoais mais ou menos ficcionados, que permitem uma viso global sobre a vida no teatro de operaes. O mesmo no pode dizer-se quanto a estudos acadmicos sobre o interior da instituio que fez a guerra, as Foras Armadas. Este trabalho de Manuel Rebocho vem iluminar zonas das nossas ltimas Campanhas em frica que at agora se mantinham na sombra. A radical mudana poltica operada em Portugal em 1974, protagonizada, alis, pelas Foras Armadas que triunfando sobre a ditadura abriram, ipso facto, caminho sua derrota na Guerra Colonial, no propiciou, por isso, condies facilitadoras do estudo do processo Guerra Colonial. Ao rastrear os curricula e a formao dos oficiais, particularmente aps 1959 ano da criao da Academia Militar , quando se tornara imparvel e acelerado o movimento independentista dos territrios africanos administrados por potncias coloniais e, face intransigente poltica ultramarina de Salazar, a guerra era inevitvel. Manuel Rebocho concluiu que a Academia Militar passou ento a preparar a elite no para o comando operacional, mas sim para funes tcnicas e administrativas. Em vez de comandantes operacionais, os militares do quadro permanente, na sua esmagadora maioria e nos mais diversos escales, tornaram-se, progressivamente, ao longo dos treze anos que a guerra durou, administradores da logstica e gestores da estratgia dos trs teatros de operaes. A guerra no terreno, na frente de combate, assente numa quadrcula base da companhia e realizada quotidianamente a nvel de meia companhia ou, mesmo, de peloto, essa, passou a ser feita quase exclusivamente, por capites e alferes milicianos que enquadravam furriis milicianos e praas do servio militar obrigatrio essa foi, de facto, a guerra em que eu combati, no norte de Moambique, e foi a concluso generalizada a que chegou Manuel Rebocho. Chamou-lhe, ele, a milicianizao da guerra. Sem a triagem quantitativa que este estudo nos aporta, j outros, antes, tinham chamado ateno para este aspecto da gesto cirrgica do pessoal; Diniz de Almeida refere que acentuadas diferenas de colocao dos oficiais, quer do Q. P. (Quadro Permanente) quer do Q. C. (Quadro de Complemento), determinavam ainda a vida particular e profissional dos militares originando, assim, um novo quadro de injustia a corrigir. Deste modo, em funo das mais diversas motivaes, eram normalmente colocados em funes burocrticas ou em quartis de cidade, os oficiais afectos ao regime. Quanto aos restantes, menos identificados com o regime, aguardavam-nos, regra geral, os postos longnquos e incmodos do mato. Aps dez anos de guerra, no dia-a-dia, os pouqussimos militares profissionais (Quadro Permanente e Servio Geral) que estavam na frente de combate nunca saam para o mato, ficando no arame farpado em funes de comando, colheita e coordenao de informaes, planeamento de operaes e apoio logstico; na picada e no mato andavam os capites, alferes e furriis milicianos e os cabos e soldados do servio militar obrigatrio. A estes juntavam-se, no mato, mais ou menos regularmente segundo as dificuldades do teatro de operaes, companhias de comandos, de fuzileiros e de pra-quedistas, nas quais, a sim, os soldados eram enquadrados por sargentos e oficiais do quadro permanente. Foi essa realidade vivida na frente que Manuel Rebocho veio, agora, com nmeros arrasadores, constatar: no Leste de Angola, de 1971 a 1974, das 68 companhias s 3 tinham capites oriundos da Academia Militar; em Moambique, em 1973, das 101 companhias apenas 1 era comandada por um capito do Quadro Especial de Oficiais, e esse estava l por castigo! Reflexos dessa forma de administrar sabiamente os riscos, colhem-se, ainda hoje, quando se analisam as listagens de scios da Associao dos Deficientes das Foras Armadas: o padro mdio indica-nos que cerca de 92% eram militares do Servio Militar Obrigatrio. A gesto do pessoal afecto guerra, feita pelas chefias militares, em seu benefcio e salvaguarda, foi possvel, sem escrutnio do poder poltico, porque o regime no permitia que, sequer, se questionasse a sua existncia, nem mesmo na campanha eleitoral da primavera marcelista. O Ministro do Ultramar, Silva Cunha, era muito claro quanto a isso, dizendo que o Governo no ia dizer (...) s Foras Armadas como combater porque a questo militar estava parte do Governo, e a responsabilidade cabia ao Chefe do Estado-Maior General das Foras Armadas. Ao considerar a Guerra do Ultramar como desgnio patritico, inevitvel e inegocivel, porque culpa do outro e dos ventos da histria, a ditadura remetia, implicitamente o seu xito ou inxito para a esfera militar, tanto mais que garantia na Metrpole, na retaguarda, as condies ideais para o xito das nossas tropas, ao no permitir que a opinio pblica a contestasse, a condenasse. Tal situao at dispensou, em ltima anlise, o poder poltico de apetrechar as frentes com condies logsticas e de material de combate capazes de potenciar as hipteses de xito militar. At ao fim da Guerra, uma vara ou uma cana de bambu a que se atava uma ponteira de ao afiada, era o nosso detector de minas o que explica o nmero indecoroso de amputados e de cegos que a guerra produziu. Por isso, s vezes, ainda acordo a meio da noite, quando no devia, no estertor de um pesadelo. Manuel Joaquim Calhau Branco Licenciado e Mestre em Histria Ex-Alferes Miliciano; deficiente das Foras Armadas. Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados 3/86

Elites Militares e a Guerra de frica (captulo III)

III A GUERRA DE FRICA E O DESEMPENHO DAS ELITES MILITARES O presente captulo descreve, articula, analisa e explica a qualidade do desempenho das elites militares e o sistema de foras que Portugal instalou nos trs teatros de operaes em frica, ao longo dos treze anos de durao da Guerra. No pretendo abordar o conjunto das tropas em presena, mas o sistema de foras em aco. Portugal instalou e fez operar um sistema de foras estruturado, segundo as imagens que progressivamente se iam constituindo sobre a realidade de cada um dos trs teatros de operaes, respectivamente em Angola, em Moambique e na Guin. A descrio e anlise, objectiva e cuidada, da forma como as elites militares portuguesas conduziram e executaram a Guerra de frica, impe que se proceda a uma leitura do que sobre a matria escreveram diversos especialistas no assunto, bem como sobre o que fizeram e como o levaram a efeito outros pases em situaes semelhantes. Ao pretender investigar a formao das elites militares, tenho que a objectivar em funo de um fim, o qual, no caso vertente, era a conduo e execuo da Guerra de frica. A qualidade e o valor dessa formao s pode ser aferido atravs da qualidade do desempenho que as elites militares tiveram nessa mesma Guerra. No me preocupa apreciar os currculos dos vrios cursos, em termos abstractos, nem das diversas reformas que foram postas em curso ao longo dos vrios anos em que foram formadas as elites que dirigiram ou executaram a Guerra. Preocupa-me sim, saber se as elites estavam ou no devidamente capacitadas para a execuo das tarefas que lhe foram ento cometidas. Neste sentido, analiso a formao das elites face ao respectivo desempenho, para depois se procurarem encontrar os fundamentos dos xitos ou dos erros, os quais podem ter os seus fundamentos na formao tcnico-tctica que as elites possuam e, ento, se analisam as reformas e os currculos que funcionaro como variveis explicativas. Estimo a formao a trs nveis, que correspondem s minhas trs hipteses de trabalho, j atrs delimitadas, as quais ho-de confirmar se as elites estavam ou no dotadas das capacidades de comando, direco ou combate, consoante o nvel da estrutura hierrquica em que actuavam. Para aferir as capacidades das elites militares segui duas linhas de investigao: na primeira comparei a Guerra de frica, com guerras semelhantes nas quais estiveram envolvidos outros pases, para concluir se os militares portugueses foram mais ou menos eficazes que os seus congneres estrangeiros; na segunda compararei os militares portugueses entre si, no sentido de apreciar ou encontrar relevncias que esclaream, no contexto global do seu desempenho, o impacto da respectiva formao tcnico-tctica, das caractersticas psicofisiolgicas do combatente e da sua experincia. 1 A GUERRA PORTUGUESA E AS OUTRAS GUERRAS procura de semelhanas ou diferenas entre a Guerra de frica e as Guerras dos outros pases, abordei obras de diversos autores que se dedicaram a esse estudo. Bernard Trainor, General americano, defendeu o seguinte sobre a Guerra de frica: enquanto outros estados europeus garantiam a independncia s suas possesses africanas, Portugal decidia ficar e lutar, apesar das poucas probabilidades de vir a ser bem sucedido. Constitui um feito notvel que o tenha conseguido com xito durante treze anos nas trs frentes de Angola, Guin e Moambique, em especial para uma nao de recursos to modestos. Conquanto o exrcito tenha um importante papel na contra-guerrilha, no fundo continua a tratar-se de uma luta poltica. Como consequncia, o papel das foras armadas no se cinge necessariamente a conseguir uma vitria militar imediata, mas a conter a violncia, a proteger as pessoas de ameaas, a impedir o acesso de guerrilheiros s populaes locais, s suas reservas de alimentos e de recrutamento, a ganhar a confiana com iniciativas sociais, e, atravs de tais actividades, a conseguir incutir nas chefias rebeldes o respeito suficiente para induzir negociaes polticas. O exrcito portugus cumpria todos estes requisitos. A sua rota para o sucesso no foi sempre linear; no entanto, aprendeu com os seus erros e continuou flexvel nas suas opinies. Teve a capacidade de aprender enquanto actuava. No final, infelizmente, os polticos portugueses malbarataram as vitrias militares ganhas a tanto custo, recusando chegar a acordo com os revoltosos (Cann, 1998: Prlogo). Trainor, figura de relevo nestas matrias, considera que o Exrcito portugus desenvolveu os actos que estavam ao seu alcance, chegando mesmo a classific-los de feito notvel. No entanto, no deixa de considerar que o Exrcito aprendeu com os seus erros, considerando assim que os houve, esclarecendo, contudo, que a experincia um factor a considerar, que ningum possua, no incio do conflito. E continua este General, professor universitrio e investigador: o exrcito portugus aperfeioou a sua filosofia e pla em prtica de modo a competir com a estratgia das guerras prolongadas de guerrilha, e, ao faz-lo, seguiu as lies colhidas das experincias britnicas e francesas em guerras de pequena escala. Portugal definiu e analisou o problema da insurreio luz destes conhecimentos acumulados em contra-insurreio, desenvolveu neste contexto as suas polticas militares e aplicou-as ao ambiente colonial africano. O modo como os portugueses abordaram o conflito foi diferente, ao procurarem combinar o pau de dois bicos que era a estratgia nacional de conter os custos da guerra e de estender os encargos s colnias, com a soluo no campo de batalha (Cann, 1998: Prlogo). Trainor, em mais este pargrafo, manifesta o seu apreo sobre a forma como as elites militares estruturaram a Guerra, salientando, uma vez mais, a habilidade como se utilizou a experincia alheia e se evoluiu na prpria. Para John Cann, outro Oficial americano relevante: existem invariavelmente dois lados na histria de cada guerra, e estas campanhas no foram excepo. O exrcito portugus foi confrontado com a difcil tarefa de ganhar uma guerra de libertao nacional numa poca em que no era prudente conservar um imprio colonial. Numa guerra de tal cariz, a vitria pode ser conquistada militarmente, mas o mais provvel ser conseguida atravs de um compasso de espera, durante o qual o governo ganha credibilidade atravs do exrcito e de iniciativas sociais, e leva por esse meio os guerrilheiros a negociar. Conseguir faz-lo no proeza pequena, numa guerra em que os guerrilheiros procuram minar totalmente qualquer autoridade. (...) Infelizmente, os lderes polticos portugueses no tiveram viso e mantiveram-se afastados da realidade, tendo os sucessos militares e sociais sido desperdiados pela intransigncia poltica (Cann, 1998: 9) (1). Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados 4/86

Elites Militares e a Guerra de frica (captulo III)

Numa outra passagem da sua obra Cann acrescenta: entre 1961 e 1974, Portugal enfrentou a tarefa extremamente ambiciosa de dirigir trs campanhas de contra-insurreio simultaneamente: na Guin, em Angola e em Moambique. Nessa altura, Portugal no era um pas rico nem desenvolvido. De facto, pela maioria dos padres de avaliao econmica, era o menos rico dos pases da Europa Ocidental. Deste modo, constitui um feito notvel que Portugal, em 1961, conseguisse mobilizar um exrcito, o transportasse para as suas colnias em frica, a muitos quilmetros, a estabelecesse numerosas bases logsticas em locais-chaves, de maneira a fornecer-lhe apoio, o preparasse com armas e equipamento especial e o treinasse para um tipo de guerra muito especfico. O que se torna ainda mais digno de nota pelo facto de estas tarefas terem sido cumpridas sem qualquer experincia anterior, nem competncia provada em campo, em matria de projeco de poder ou de guerra de contra-insurreio, e, por conseguinte, sem beneficiar de instrutores competentes nessas especialidades. Para que se constate melhor este ltimo ponto, e com excepo de algum episdio de pacificao colonial, Portugal no disparava um tiro desde a Primeira Guerra Mundial, quando a Alemanha invadiu o Norte de Moambique e o Sul de Angola (Cann, 1998: 19). Tal como Trainor, tambm Cann no poupa elogios ao mtodo desenvolvido por Portugal para conduzir a Guerra de frica e, tambm ele, acentua a questo da experincia. Importa, contudo, tecer uma considerao: no se est, aqui, a apreciar a razo da Guerra, mas to s a capacidade das elites para a sua conduo. Quando defendo que fizeram bem, no estou a dizer que fizeram bem em fazer a guerra mas, to s, que fizeram bem a Guerra. O objectivo principal numa guerra subversiva, como era o caso, consiste na conquista da populao. Pode-se mesmo dizer que a populao o meio (no sentido de ambiente ou de campo de aco) no qual a subverso se processa, sendo tambm o objectivo a conquistar e ainda, uma das armas utilizadas para atingir esse objectivo. Nenhuma aco subversiva ter quaisquer probabilidades de xito sem primeiro conseguir o apoio, voluntrio ou forado, consciente ou inconsciente, de uma parte numerosa da populao; e, reciprocamente, uma vez conseguido esse apoio, as suas probabilidades de vitria so muito grandes. Como afirmou Mao-Ts-Tung, a populao para o insurrecto o mesmo que a gua para o peixe (EME, Vol. I, 1963: Cap. I, 19). A partir deste conhecimento as autoridades estabelecidas sabiam que, para combater a subverso, era necessrio que fossem tomadas medidas que contrariassem as suas caractersticas. Desde logo, e porque sem populao no h subverso, tinham que ser tomadas todas as medidas que impedissem a propaganda subversiva, no sentido de trazer a populao para o lado das autoridades estabelecidas. Tanto mais que o que separa a populao do Guerrilheiro apenas o momento. Neste sentido, era por demais evidente que a luta contra a subverso no podia ser levada a efeito exclusivamente pelas foras militares atravs do combate guerrilha. Mas, complementarmente, as foras militares podiam tambm ser utilizadas no apoio e assistncia populao com os seus mdicos e capeles, administrando justia e instruo, fornecendo alimentao e medicamentos, aumentando-lhe o moral com a sua presena, bem como, quando necessrio, assegurar o funcionamento de certos servios essenciais desorganizados e auxiliar as autoridades e as suas foras policiais nas actividades que a estas competiam. Importa conhecer a populao que constitua o meio onde as foras portuguesas actuaram (2). Este caracterizavase, quase sempre, por uma pequenssima densidade de habitantes civilizados (3) e por habitantes nativos, em muito maior nmero, que tinham um nvel de instruo muito baixo e costumes e crenas completamente diferentes dos europeus. Desta situao derivavam, para a luta contra a subverso, certas dificuldades que foram incidir em especial na organizao, equipamento, instruo, instalao, modo de vida e combate das foras da ordem. Se o mosaico populacional apresentava srias dificuldades de actuao, as condies econmicas portuguesas no eram melhores. Pelos padres europeus, Portugal no possua um aparelho econmico poderoso com que pudesse suportar facilmente uma aventura militar distante e de grande envergadura. Basta comparar a situao portuguesa com a dos outros pases, que enfrentaram guerras semelhantes que, todos eles, as perderam, para se concluir que assim era. A Gr-Bretanha, que combateu na Malsia entre 1948 e 1960, e no Qunia entre 1952 e 1956; a Frana, que combateu na Arglia entre 1956 e 1962; e os EUA que combateram no Vietname entre 1965 e 1973. Ao lado destes veteranos em contra-insurreio, a economia de Portugal encontrava-se verdadeiramente anmica e levantava srias dvidas acerca da sua capacidade para sustentar um tal empreendimento militar. O PIB de Portugal nas vsperas da Guerra, em 1960, era de 2,5 bilies de dlares. O PIB da Gr-Bretanha era de 71 bilies de dlares, 28 vezes o de Portugal. O PIB da Frana era de 61 bilies de dlares, 24 vezes o de Portugal. O PIB dos EUA, era de 509 bilies de dlares, 203 vezes o de Portugal. Quando estes nmeros se reduzem ao PIB per capita, que o indicador da capacidade da riqueza produzida e tributada para apoiar uma Guerra, a relativa fraqueza econmica de Portugal to evidente que suscita imediatamente a dvida sobre a sua capacidade para sustentar e gerir qualquer Guerra (4). Perante estes dados John Cann considera que Portugal teria de adoptar estratgias diferentes das da Gr-Bretanha, Frana e Estados Unidos. Teria de superar estas srias limitaes planeando formas de as contornar e de evitar o seu impacto directo na capacidade para gerir a guerra. Existiam dois elementos-chave que escoravam o esforo de Portugal neste campo. O primeiro era disseminar o mais possvel o fardo da guerra; o segundo, manter o ritmo do conflito suficientemente lento para que os recursos fossem suficientes. s prticas de contra-insurreio adoptadas por Portugal e que reflectiram estas duas polticas nacionais na conduo das campanhas, pode dar-se o nome de modo portugus de fazer a guerra (Cann, 1998: 29). A interpretao deste autor quanto forma como Portugal conduziu a Guerra de frica, merece um amplo consenso. A situao no apresentava alternativa, pois a capacidade de Portugal manter uma campanha militar distncia teria de incluir, forosamente, as vastas e dinmicas economias de Angola e de Moambique. No incio do conflito, em 1962, o PIB de Portugal continental era de 2,88 bilies de dlares. A estes nmeros devem acrescentar-se os 803,7 milhes do PIB de Angola, a importncia semelhante de 835,5 milhes do PIB de Moambique, e os 85,1 milhes da Guin (Ministrio dos Negcios Estrangeiros, 1973: 76). Este quadro completo revela uma nao com um PIB de 4,6 bilies de dlares e modifica consideravelmente a equao da riqueza. Segundo Cann, Portugal orientou o conflito disseminando os custos da Guerra e mantendo-a num ritmo lento, mas falta acrescentar que os militares portugueses, particularmente as Praas, prestaram o seu servio militar praticamente sem qualquer vencimento (5). A alimentao fornecida a todos os militares era de m qualidade e de Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados 5/86

Elites Militares e a Guerra de frica (captulo III)

pouca quantidade: s a fome no escasseava. Os fardamentos apuravam-se at ao seu limite, passando de homem para homem: termo que uso intencionalmente, pois a distribuio de fardamento, j usado por outros militares, era extensiva a Sargentos e a Oficiais. As instalaes, excepo das existentes nas maiores cidades, no existiam: os militares viviam em tendas, quando as havia. Temos, ento, que os custos com o pessoal foram extremamente reduzidos relativamente s outras guerras citadas. Em resumo, os baixos custos da Guerra ficaram a dever-se s seguintes questes: baixa tecnologia da guerra, o que implicava baixos custos com material; baixa intensidade da guerra, o que implicava baixos consumos de material; baixos custos com pessoal, reflectindo-se nos baixos salrios aos graduados; nos baixos (quase nulos) salrios (pr) s praas; no fardamento muitas vezes j usado; na m alimentao, em quantidade e qualidade, e na inexistncia de instalaes. No obstante a situao descrita, em 1965, com quatro anos de Guerra, o oramento da defesa representava 48 por cento do oramento nacional de Portugal Continental. No fim do conflito, as trs Colnias tinham contribudo aproximadamente com 16 por cento do oramento da defesa (Cunha, Joaquim, 1977: 58). Esta contribuio, juntamente com a incluso das economias coloniais, significava que Portugal estava a gastar em mdia, com a defesa, apenas cerca de 28 por cento do seu oramento nacional, tendo alcanado um ponto culminante de 34 por cento em 1968 (Cunha, Joaquim, 1977: 61). As Colnias no contriburam para a guerra apenas em meios financeiros, visto o recrutamento local ter sido tambm significativo. Este teve incio em 1961, com ndices modestos, quando representava 14,9 por cento das foras em Angola, 26,8 por cento em Moambique e 21,1 por cento na Guin. Em 1974, por alturas do fim da guerra, e com a expanso das foras de segurana s milcias e outras organizaes para-militares, os africanos representavam no total 50 por cento das foras em Angola, 50 por cento na Guin e 54 por cento em Moambique (Cunha, Joaquim, 1977: 130 e 159; e, EME, B, Vol. I, 1988: 259 e 260) para um total de 149 000 homens.Notas: (1) John P. Cann, Oficial-Aviador da Marinha Norte-Americana na reserva, fez parte do Gabinete do Secretrio Auxiliar da Defesa para Operaes Especiais e Conflitos de Baixa Intensidade e, mais tarde, do Gabinete do Subsecretrio de Estado da Defesa. Doutorado em Estudos de Guerra pelo Kings College, da Universidade de Londres, tem publicado artigos sobre o tema da contra-insurreio. Prestou tambm servio no Pentgono e no Comando Ibrico da NATO, em Oeiras. (2) Sobre o tema populao desenvolvi um estudo aprofundado, particularmente, no campo dos hbitos e da religio, porm, por economia de pginas da obra, resumi esse trabalho em apenas algumas linhas. (3) Termo utilizado nos documentos oficiais das FA. (4) Para melhor aprofundamento sobre esta matria ver Cann, 1998, o qual desenvolve este tema com grande profundidade. (5) Os vencimentos das Praas nem chegavam para os pequenos vcios pessoais: tabaco, caf e algumas bebidas. Eram os pais e outros familiares que, da Metrpole, enviavam alguns reforos monetrios, como forma de complemento, situao que eu prprio vivi enquanto Praa em Angola, em 1969 e 1970.

2 A AFRICANIZAO PORTUGUESA Portugal virou-se, continuamente e cada vez mais, para as Colnias, a fim de preencher a sua necessidade de efectivos militares, tal como fizera no passado, embora nunca com a dimenso destas Campanhas. As tropas africanas representavam uma tradio de servio ou colaborao com Portugal em tempos de necessidade, desde os primrdios das Colnias. Em quase todos os anos, entre 1575 e 1930, houve uma campanha colonial algures na frica portuguesa e as foras auxiliares e irregulares africanas provaram ser indispensveis. Desde a chamada guerra preta das campanhas de 1681 at ao Sculo XX estas detinham um passado de lealdade e podiam ser reunidas num curto perodo de tempo (Boxer, 1963: 32). Esta flexibilidade significava que Portugal no tinha de mobilizar um grande nmero das suas tropas continentais e de transport-las para frica, em tempos de crise colonial. Embora as campanhas anteriores tivessem sido operaes de pacificao e no do mesmo gnero das insurreies modernas, com a sua temtica poltica tinham, no entanto, criado um precedente para a extensa africanizao das Campanhas por Portugal. Allen Isaacman fez uma valiosa apreciao do uso de tropas recrutadas localmente na campanha de 1870-1902 pelo controlo do vale do Zambeze, quando afirma: A capacidade de Lisboa de recrutar uma grande fora africana proporcionou um apoio crucial para o seu sucesso. S menos de trs por cento do total do exrcito de vinte mil homens eram de ascendncia portuguesa (Isaacman, 1976: 65). Esta informao histrica contribuiu de forma muito significativa, para se compreender a evoluo do nosso Exrcito e a formao dos Oficiais de carreira. Como abundantemente se provou ao longo de toda a investigao, os Oficiais de carreira nunca comandaram tropas nativas, o que significa, muito claramente, que estas campanhas de ocupao foram comandadas pelos chamados oficiais tarimbeiros ou seja, aqueles que efectuavam o seu percurso com origem em Soldado. No Sculo XX, a guerra preta continuou a ser utilizada, tanto em operaes de pacificao, at ao seu final em 1930, como na Primeira Guerra Mundial, e resistiu como uma fora considervel na defesa das Colnias (Dias, 1932: 611 a 619). O General Norton de Matos tinha recomendado, em 1924, que fossem mantidos em Angola nveis de tropas indgenas de 15000 regulares apoiados por um sistema que pudesse mobilizar mais 45000 reservistas em tempo de guerra (Norton, 1924: 85). A dependncia continuada das tropas coloniais como fonte de efectivos, era uma poltica de defesa estabelecida, e em 1924 foi calculado que, de todas as fontes, 460 000 homens, em 28 divises, podiam ser utilizadas numa crise nacional (Villas, 1924: 72). Neste clculo, Angola e Moambique deveriam fornecer 71 por cento, ou 20 divises, totalizando 325 000 homens. Moambique fora tambm base frtil de recrutamento para necessidades de tropas noutras Colnias desde o princpio do Sculo XX. Eram formadas uma ou duas companhias por ano e utilizadas em turnos de dois anos entre 1906 e 1932 (Martins, 1936: 34). Estas utilizaes incluam quase todas as Colnias: Angola, Guin, Timor, Macau, So Tom e ndia. Consequentemente, a reputao das tropas moambicanas estava bem estabelecida em 1961. Durante a Primeira Guerra Mundial, Portugal lutou em Frana, no Sul de Angola e no Norte de Moambique. A maior campanha levada a cabo foi a defesa de Moambique contra as incurses alems. Portugal enviou 32 000 homens Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados 6/86

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da Metrpole e recrutou rapidamente outros 25 000 localmente (Cunha, Joaquim, 1977: 73; e, Selvagem, 1919: 410 a 416) (6). Muitas companhias de pessoal indgena foram formadas e treinadas sob as mais difceis condies, e tiveram um desempenho admirvel nesta campanha. No final das hostilidades, um Major portugus que a dirigira as tropas, reconheceu o seu papel vital neste conflito, afirmando: Durante os quatro anos de luta, a nossa infantaria africana nativa lutou sempre com uma determinao corajosa, quando bem apoiada e dirigida... A maioria dos portugueses desconheceu esta valiosa colaborao pela causa por que lutvamos (Arago, 1926: 22 e 23). Antes das campanhas de frica (1961-1974), a histria e os feitos das tropas africanas recrutadas localmente no foram muito apreciados, particularmente na Metrpole. A razo por que a sua contribuio permaneceu to obscura um mistrio, apesar do facto ter sido o mais venervel de entre todos os poderes coloniais africanos (Cann, 1998: 133). John Cann considera esta falta de conhecimento pblico um mistrio, todavia, a situao percebe-se claramente: os Oficiais de carreira, com mais cultura, foram os nicos a escrever as crnicas dos feitos africanos; como eles no comandavam, como nunca comandaram estas tropas, no lhes interessava elevar o seu desempenho, porque, ao faz-lo, elevavam os feitos dos Oficiais tarimbeiros, que as comandavam. Afinal, as disputas entre os Oficiais dos vrios quadros so to antigas quanto o prprio Exrcito. Na campanha da frica Oriental foram-nos muito dedicados os carregadores indgenas. Dos factos mais notveis que testemunham essa dedicao podemos apontar, durante o cerco de Nevala, o feito de exemplar dedicao de uns 30 carregadores que foram buscar gua a uns quilmetros de distncia regressando uns 29, com a gua colhida atravs das maiores dificuldades da marcha de noite, quando podiam facilmente ter fugido (Martins, 1936: 80). As Companhias de Carregadores, Auxiliares ou tropas de 3. linha tinham cerca de 150 homens e eram comandadas por Sargentos do Exrcito europeu (7), os quais, para o efeito, eram graduados em Capites e passados alguns anos de bom desempenho, promovidos ao posto. Estes Oficiais eram conhecidos como Oficiais da Mandioca (8). A longa experincia de africanizao das nossas foras em frica foi seguida no plano desenvolvido em 1968, no sentido de nivelar os esforos de recrutamento na Metrpole e expandir a fora aos nveis desejados atravs do recrutamento cada vez maior no Ultramar. Os africanos que serviam nas unidades da frente representavam 30 por cento da fora em 1966, e em 1971 tinham aumentado para 40 por cento. Esta expanso representou um aumento das tropas locais, em todos os teatros, de cerca de 30 000 para 54 500. No entanto, havia mais do que esta primeira camada de tropas no processo de africanizao. Antes das campanhas e deste aumento, as tropas locais foram reunidas no s pelas FA, mas tambm pelas autoridades civis e utilizadas como unidades de segunda linha, com as funes de guias, milcia civil, foras auxiliares, grupos de autodefesa para aldeias e outras funes especializadas (EME, B, Vol. I, 1988: 242). As unidades de autodefesa eram apenas civis armados que foram organizados e treinados para agir em defesa da sua aldeia, se esta fosse surpreendida pelos Guerrilheiros. A organizao assim formada deu um certo grau de confiana s comunidades locais devido capacidade, ainda que rudimentar, de defenderem os seus membros. Em 1968 surgiram vrios Grupos Especiais (GE) no Leste de Angola. Estes eram formados por rebeldes capturados ou por aqueles que se entregavam. Com o decorrer do tempo, foram utilizados em toda a Angola, especialmente no sector oriental. Havia noventa e nove grupos de GE e tambm estes foram incorporados nas foras regulares em 1972. Em 1974, estes noventa e nove grupos com a composio mdia de trinta e um homens totalizavam 3069 tropas. Em Moambique, os GE tambm foram organizados em 1970 e a sua estrutura, treino e funes eram semelhantes aos de Angola. A primeira organizao consistia em seis grupos de 550 homens. Originalmente foram constitudos como pequenas unidades baseadas nos moldes de um tpico peloto ou grupo de combate ligeiro, e acabaram por atingir cerca de 7 700 homens em oitenta e quatro desses grupos. No princpio, eram liderados por Oficiais e Sargentos idos da Metrpole; no entanto, medida que os quadros locais iam ganhando experincia, foram ocupando os lugares de comando e chefia. Mais tarde, em 1971, os treinos dos GE foram alargados para incluir uma iniciao na qualificao de PraQuedistas. Foram estabelecidas doze unidades deste programa como Grupos Especiais Pra-Quedistas (GEP) e agregados Fora Area como um adicional das Tropas Pra-Quedistas normais. Cada uma das doze unidades tinha um Tenente como comandante, um Sargento especialista em operaes psicolgicas, quatro Sargentos como comandantes de subgrupo, dezasseis Cabos e quarenta e oito Praas, num total de setenta homens. Na totalidade, os GEP eram cerca de 840. Para alm dos saltos de preparao, estas unidades raramente foram utilizadas nesta modalidade e eram posicionadas de helicptero, semelhana das unidades normais de Pra-Quedistas. Pode-se concluir que o seu treino especial era uma manifestao do interesse e apadrinhamento dos Pra-Quedistas portugueses pelo General Kalza de Arriaga, o qual, foi, enquanto Secretrio de Estado da Aeronutica, o criador das Tropas Pra-Quedistas. Na Guin, em 1964, foram criadas unidades semelhantes aos GE como foras para-militares, chamadas Milcias. Passaram a chamar-se Milcias Normais e Milcias Especiais, dependendo das funes de cada uma. As Milcias Normais tinham um papel defensivo, protegendo a populao de ataques, viviam nas aldeias ou perto delas e estavam sob o controlo operacional do comandante militar local. A Milcia Especial conduzia operaes de contrainsurreio ofensivas longe das defesas locais. Em 1971, foi formado um Corpo de Milcias para integrar todas as Milcias e Tropas de 2. linha no Exrcito regular. O corpo foi organizado por companhias e juntou cerca de quarenta com mais de 8 000 homens, principalmente armados com espingarda G-3 e bazucas. Havia igualmente um Comando-Geral de Milcias que geria a sua administrao e formao. A sua formao era conduzida em trs centros e o respectivo curso durava trs meses. As Milcias eram bastante eficazes na proteco das aldeias e na consequente libertao de tropas regulares para outras operaes. J nas ltimas etapas das campanhas, as Milcias eram responsveis por 50 por cento dos contactos com os rebeldes. No final das campanhas, estas Milcias totalizavam quarenta e cinco companhias de Milcia Normal (cerca de 9 000 homens) e vinte e trs grupos de Milcia Especial (cerca de 713 homens) (EME, B, Vol. III, 1988: 110). Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados 7/86

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Ainda na Guin, os Comandos recrutados localmente eram conhecidos por Comandos Africanos (Cavalheiro, 1979: 1 e 2), cujas Praas eram integralmente constitudas por negros nativos. Acerca destas tropas diria Spnola, Comandante-Chefe das Foras Armadas na Guin, ao formar a 1. Companhia de Comandos Africanos, a 11 de Fevereiro de 1969, referindo-se s bases da sua formao e uso, conforme os princpios da africanizao estabelecida em Lisboa em 1968: A nossa Fora Militar Africana tem-se afirmado gradualmente e inclui agora uma unidade de elite, a 1. Companhia de Comandos Africanos, formada exclusivamente pelos filhos nativos da Guin... A vossa ascenso posio de Comandos do Exrcito Portugus marca uma etapa significativa no progresso de todos os guineenses (Cavalheiro, 1979: 1). Ao transferir os seus esforos de recrutamento para o Ultramar para apoiar a Guerra de frica, Portugal alcanou uma srie de vantagens importantes. Em primeiro lugar, a presso do recrutamento na Metrpole foi aliviada, com os consequentes benefcios na opinio pblica. Nesta mudana, Portugal no s estava a seguir a tradio de utilizar tropas africanas para combater as guerras africanas, como tambm a aliviar os obstculos domsticos continuao da Guerra. Com esta mudana de atitude, diminuiu a presso da mobilizao na Metrpole, passando as necessidades de efectivos e as baixas a ser assumidas de forma crescente pelos recrutamentos locais nos trs teatros de Guerra. Por conseguinte, havia menos testemunhos emocionais a regressar de frica e a insatisfao pblica domstica manter-se-ia atenuada e at mesmo passiva por algum tempo. Em segundo lugar, os africanos portugueses, que tinham o maior interesse nos resultados das Guerras e, por isso, a maior motivao para um final bem sucedido, iriam agora contribuir de forma visvel para a luta. O envolvimento dos africanos na sua prpria defesa era tambm visto como uma das melhores formas de mobilizao poltica. A partir do que fica analisado e desenvolvido, foroso concluir que os Altos Comandos Militares, funo ao nvel de Generalato, orientaram estrategicamente a Guerra, segundo as melhores perspectivas, face s aos recursos financeiros e humanos de que Portugal dispunha e do enquadramento internacional, que nos era totalmente desfavorvel. O mesmo dizer que este nvel hierrquico possua a formao adequada s funes que lhe foram atribudas. Os erros e a falta de estratgia que influenciaram os resultados da Guerra de frica so fundamentalmente da responsabilidade dos polticos. Isto no significa que se isentem os militares dos erros polticos que, nessas funes, possam ter cometido, mas to s que se isola a estratgia militar da poltica, ainda que esta possa ser da responsabilidade da mesma pessoa singular. Se, com a informao disponvel se pode ajuizar da formao deste nvel de elites, no se pode, contudo, definir a sua origem segundo as hipteses que partida formulei.Notas: (6) Carlos Selvagem o pseudnimo do Oficial de Cavalaria Carlos Tavares de Andrade Afonso dos Santos. (7) Termo utilizado nos documentos oficiais das FA e na prpria Lei. (8) Informao colhida junto do Capito Mendona, Sub-Director da BE, no dia 12/09/2002. O Capito Mendona vem, h anos, estudando este tema. Segundo este entrevistado, a promoo de Sargentos a Capito, para comandarem este tipo de tropas, ter existido at 1930.

3 O SISTEMA DE FORAS: AS FORAS DE QUADRCULA E AS FORAS DE ELITE; TROPAS DE REFORO E TROPAS NATIVAS Os efectivos militares combatentes podem ser considerados segundo o tipo de actuao: de quadrcula e de interveno ou de elite, e segundo a sua origem: de reforo, designao atribuda s tropas metropolitanas e nativas. Ambos os tipos de actuao integravam foras de reforo e nativas. Vejamos as caractersticas principais de cada um desses efectivos militares. 3.1 A Quadrcula Militar Aps o estalar do conflito armado, com a ocupao de determinadas localidades por parte dos revoltosos, Portugal procurou reocupar essas posies, tendo-o conseguido. Um vez feita a ocupao das zonas, isto , a instalao das foras nos respectivos sectores, a primeira preocupao foi a de manter ou restabelecer a ordem e montar uma defesa adequada das povoaes, das instalaes importantes de carcter econmico ou outro e de certos pontos vitais das vias de comunicao, no sentido de assegurar a salvaguarda das pessoas e dos bens, o funcionamento das instituies e dos servios essenciais e o livre exerccio de funes pelas autoridades. No incio, a segurana das povoaes compreendia apenas as maiores. No entanto, com o decorrer dos tempos, a quadrcula desceu at ao limite do possvel, chegando a existir foras ao nvel de Seco (1 Furriel miliciano com 10 Soldados), junto de pequenos povoados ou tabancas perdidas no meio da mata. Surgiu, assim, a necessidade de um primeiro conjunto de foras dispersas por todo o territrio a controlar, destinadas a guarnecer esse territrio e a manter o contacto com a populao eram essas as chamadas foras de quadrcula, designadas tambm por foras de ocupao. As pequenas unidades dispersaram-se por um vastssimo espao. De incio, nas ordens e directivas que lhes eram dadas, no se descia a grandes pormenores. Cada comandante, levado pelo pouco que sabia e pela sua muita intuio, ia experimentando solues... Passados uns anos, no muitos, a doutrina comeou a articular-se... No final da dcada de 60, pode afirmar-se que ela estava consolidada, tanto no vector tctico como na sua envolvente estratgica (Barata, 1990: 12). O General Barata admite que os Comandantes sabiam pouco, mas que tinham muita intuio, o que sobreleva a componente psicofisiolgicas formao tcnico-tctica. Admitindo, ainda, que foi a experincia que aferiu a doutrina. Os efectivos de cada unidade elementar de quadrcula eram adaptados importncia do local que guarneciam, podendo ser, portanto, da ordem da Seco, do Peloto, da Companhia, ou de unidade superior. A unidade bsica, porm, era a Companhia. As Companhias de quadrcula foram, normalmente, integradas em Batalhes e estes em Agrupamentos (dois ou mais Batalhes). A cada um destes escales de comando correspondia um sector que integrava os sectores das unidades subordinadas. Contudo, existiram Companhias de quadrcula directamente dependentes de um Comando Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados 8/86

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de Agrupamento e Batalhes de quadrcula directamente dependentes de um Comando de Zona. Noutros casos, no foi necessrio constituir Agrupamentos, sendo o Batalho o escalo mais elevado subordinado Regio Militar, Comando Territorial Independente, Comando Territorial ou Zona de Interveno. Apesar da sua misso ser essencialmente defensiva, as unidades de quadrcula no eram totalmente estticas; pelo contrrio, a preocupao de manter a iniciativa, a liberdade de aco e o esprito ofensivo verificou-se em mltiplas situaes, em funo da agressividade do inimigo e da capacidade do Comando. Uma parte dos seus elementos tinha, contudo, que ser mantida, em quaisquer circunstncias, no local ou locais que lhes serviam de estacionamento, de forma a assegurar permanentemente a sua defesa. Mas os restantes executavam patrulhas e outras aces ofensivas ou serviam de escolta a colunas que se deslocavam em itinerrios pouco seguros. Uma quadrcula suficientemente densa em territrios de to grande extenso, como os que Portugal controlava em frica, requeria enormes efectivos e, por isso, no foi possvel a montagem de uma quadrcula perfeitamente eficaz. O que imps que a cada unidade fosse, normalmente, confiado um sector de dimenses tais, que a defesa de algumas povoaes e instalaes menos importantes e o contacto com a totalidade da populao s poderiam ser conseguidos por elementos mveis, em constante actividade, e no por guarnies fixas, como era previamente suposto e desejvel. Uma Companhia de quadrcula podia, por exemplo, com os elementos dos seus quatro Pelotes, dispor num dado momento de quatro agrupamentos de comando de subalterno: um para garantir a defesa do local que lhes servia de estacionamento; outro permanentemente destacado na defesa de um ponto secundrio; outro empenhado temporariamente numa pequena aco ofensiva; um quarto em reserva, pronto a acorrer a qualquer local. Esta situao, que se verificava muitas vezes, impunha um ritmo de trabalho extenuante que, sobreposto com a deficiente alimentao e as condies locais, clima e ms condies do terreno, desesperaram a vida e a sade de muitos militares. Dadas as razes apontadas, as unidades de quadrcula no eram, suficientes para se conduzir eficazmente a luta contra as guerrilhas. Apesar do esprito ofensivo que as pudesse animar, elas no podiam assegurar, por toda a parte, a procura sistemtica dos elementos rebeldes e a sua destruio nas zonas de refgio, em especial nas regies onde, pela menor densidade dos aglomerados populacionais e das vias de comunicao, a quadrcula fosse mais limitada ou at inexistente. Tornou-se, portanto, indispensvel, um outro conjunto de foras destinado a levar a efeito uma pertinaz aco ofensiva de procura e aniquilamento das guerrilhas, fosse onde fosse que estas actuassem ou se refugiassem eram as foras de interveno, tambm designadas por foras de reserva. Estas foras eram, de um modo geral, constitudas pelas tropas especiais ou tropas de elite. Entende-se por funo de quadrcula a que se traduz no desempenho de um conjunto de misses com as seguintes finalidades: assegurar a defesa de determinados pontos sensveis; garantir a possibilidade de utilizao de determinadas vias de comunicao; pesquisar constantemente notcias sobre o inimigo e obter elementos que permitissem conhecer cada vez melhor o terreno e a populao; manter um contacto constante com a populao, exercendo sobre ela, em conformidade com directrizes superiores, uma aco psicossocial e, quando necessrio, estabelecendo medidas de controlo dessa mesma populao; exercer sobre os rebeldes, igualmente em conformidade com directrizes superiores, uma aco psicolgica; e hostilizar o inimigo, na medida em que os meios disponveis o permitam. A pesquisa de notcias sobre o inimigo e a obteno de elementos sobre o terreno e a populao exigia um trabalho constante e meticuloso das unidades de quadrcula, visto que, sem um conhecimento pormenorizado dos trs factores citados inimigo, terreno e populao , no se poderia obter, das unidades de interveno, o rendimento necessrio. A referida misso obrigou a um contacto estreito das foras militares com a populao e tornou extremamente importante a permanncia dos comandos e das unidades nos sectores que lhes foram atribudos. A primeira condio para uma aco eficaz e duradoura das foras militares sobre a populao foi a sua presena, que permitiu inspirar confiana, garantir uma proteco efectiva, exercer a indispensvel aco psicossocial e, quando necessrio, assegurar o seu controlo. Os comandos e as tropas necessitavam de tempo para se familiarizar com a topografia local, com a populao e mesmo com a organizao e os hbitos dos rebeldes. Em consequncia, era vantajoso no efectuar as rendies por unidades completas, mas sim homem por homem ou por pequenas fraces, de molde a que o contacto com a populao e, em especial, a confiana mtua que desse contacto resultava e o conhecimento do meio e do inimigo se no perdessem repentinamente obrigando a ser de novo adquiridos por uma outra unidade, sempre morosamente. Mas ou isto no foi possvel, ou no se tentou, nem as unidades eram mantidas em sobreposio durante tempo suficiente. Pelo contrrio, a substituio era imediata e assim se perdiam continuamente os conhecimentos adquiridos, voltando tudo ao princpio, sempre que havia rendio de unidades. O contacto e o bom relacionamento das foras militares com a populao era o factor mais importante para o controlo da situao, o que exigia passagem de testemunho. A aco psicossocial e as medidas de controlo da populao tinham como objectivo o isolamento dos rebeldes relativamente populao, princpio fundamental da luta contra as guerrilhas. Para este isolamento contribuam tambm, e de uma forma no menos acentuada, os xitos obtidos pelas foras militares no combate contra as guerrilhas e, principalmente, o seu comportamento perante a populao civil na execuo das citadas medidas de controlo e em todas as suas outras aces. Como consequncia, os objectivos da ocupao militar, conjuntamente com as finalidades das medidas de ordem poltica, econmica e social, superiormente determinadas, eram dados a conhecer populao, salientando-se que a sua cooperao com as foras militares e a aceitao das referidas medidas determinava o grau de assistncia e de liberdade de aco que lhes seria dado. Havia sempre pessoas que desejavam paz e sossego. Estas e os elementos abertamente colaboradores com as foras militares ou que se mostravam mais resistentes s aces coercivas dos rebeldes eram especialmente incentivados e protegidos. Todavia, procurava-se que a justia, a correco e a disciplina fossem, perante todos, apangio das referidas foras. Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados 9/86

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As notcias sobre o bom comportamento destas espalhavam-se rapidamente e constituram um factor importante para o estabelecimento de relaes de confiana com a populao civil. A lei era rigorosamente cumprida e procurava-se manter o respeito pelas crenas e costumes nativos. Quando necessrio, as foras militares garantiam o reabastecimento de vveres e vesturio, condies mnimas de habitao e assistncia sanitria adequada populao. No entanto, as pessoas eram encorajadas a retomar as suas ocupaes, visto que a ociosidade constituiria um factor desfavorvel aos propsitos pretendidos. As medidas de controlo, quando aplicadas, tinham sempre em ateno os prejuzos que, normalmente, poderiam causar populao. Esta tinha conhecimento das razes que levavam a pr em execuo tais medidas, que eram aplicadas com ponderao, e sem maior rigor do que aquele que a situao impunha e eram abrandadas logo que possvel. A experincia demonstrava, porm que os Batalhes, dispersos por numerosos locais de guarnio, praticamente se limitavam a sobreviver, sendo a sua actividade, na sua essncia, absorvida por preocupaes de ordem logstica que raramente lhes permitiam mais do que uma aco de presena local, em cada ponto ocupado e o patrulhamento dos itinerrios de reabastecimento. Tudo o resto, na imensido das zonas de aco, era terreno desconhecido ou, na melhor das hipteses, percorrido uma, ou duas vezes, no perodo da comisso (EME, B, Vol. VI, Tomo I, 1988: 497). A ttulo de exemplo do comportamento deste tipo de foras no territrio escolhi o Batalho de Artilharia n. 2865, o qual no foi escolhido de forma aleatria, pois tal metodologia era impossvel de seguir e de interesse cientfico duvidoso. No me preocupa a actuao do Batalho em combate, por no ser essa a sua principal funo, mas a forma como se instalou no terreno, se relacionou com as populaes e, de certa forma, controlou o meio. Tratando-se de um Batalho de tropas de quadrcula, s a capacidade do seu prprio Comandante e dos Comandantes de Companhia constituem objecto do estudo, por serem os nicos com comando de tropas e com responsabilidade para o cumprimento dos objectivos traados. O conhecimento e a anlise da forma de actuao da unidade em estudo efectuou-se com recurso sua histria, disponvel no AHM, complementado com entrevistas a uma das elites que integrou o respectivo Batalho. Os arquivos sobre a unidade constituem fonte importante, mas manifestamente insuficiente para que se possa explicar a qualidade do desempenho. A dificuldade na informao documental torna a pessoa do entrevistado no elemento principal da recolha de informao, o que desaconselha a sua designao de forma aleatria, at pela dificuldade que tal tcnica constituiria e pouco interesse cientfico na medida em que a escolha poderia recair numa pessoa pouco qualificada. A escolha teria, necessariamente, que recair sobre um Oficial que tivesse desempenhado as suas funes com elevao, impedindo, assim, o enviesamento dos dados por necessidade de no exposio do entrevistado. Este tinha que deter estima na rea militar, para credibilizar a informao junto daquela instituio, pois no faria o menor sentido apresentar-se uma concluso, sobre a formao das elites militares, se a instituio militar considerasse os dados de base menos credveis. O Batalho em estudo tinha que ter estado numa localizao difcil para impedir a simplificao do desempenho. Por ltimo, o entrevistado tinha que possuir elementos histricos suficientes reconstituio do que se passou, h j vrios anos, e estar disponvel para colaborar numa entrevista, que necessariamente se teria que prolongar por vrias sesses. Neste sentido, analisei o comportamento do Batalho segundo aqueles trs vectores: instalao no terreno, relacionamento com a populao e controlo do meio, assumindo que a maior ou menor satisfao destes objectivos dependia das capacidades dos Comandantes, materializadas na qualidade do seu desempenho, a qual dependia em linha recta das suas formaes que, por sua vez, pretendo explicar atravs das minhas trs hipteses. No era fcil o preenchimento de todos os requisitos que me propus exigir e de todo impossvel se seguisse um mtodo aleatrio. Solicitei assim, a colaborao de diversas entidades militares, no sentido de me ser sugerido o Oficial que reunisse as condies que acima expus. Aps vrias consultas sobre o tema, o Tenente-General Silvestre Antnio Salgueiro Porto, Comandante da Academia Militar, sugeriu-me, sugesto que aceitei, o Major-General Fernando Nunes Canha da Silva, o qual foi informado, antecipadamente, da solicitao que lhe iria formular, pelo prprio Tenente-General Silvestre Porto. Investiguei assim, o Batalho de Artilharia n. 2865, cuja mobilizao foi determinada pelo EME, atravs de notacircular de 23 de Junho de 1968 e teve como Unidade Mobilizadora o Regimento de Artilharia Pesada n. 2 (RAP 2), aquartelado em Vila Nova de Gaia. O Batalho tinha o seguinte quadro superior: Comandante, Tenente-Coronel de Artilharia Mrio Belo de Carvalho; Segundo Comandante, Major de Artilharia Antnio Jos de Mello Machado; e como Oficial de Operaes, o Major de Artilharia Manuel Rodrigues Machado. Os quadros do Batalho frequentaram a seguinte formao complementar: o Comandante e o Oficial de Operaes o estgio de Observao e Posto de Comando Areo; o Comandante e os Comandantes de Companhia, o estgio de contra-insurreio, no CIOE, enquanto o Segundo Comandante no frequentou este estgio, porque j o havia realizado em 1963. No captulo anterior descrevi este curso do CIOE, que considerei importante e se assemelha muito formao seguida pelas Tropas Pra-Quedistas, tanto mais que a origem dos conhecimentos era a mesma: as tropas francesas que actuavam na Arglia. Ter-se-, assim, que afirmar e concluir que os comandos at ao nvel de Companhia beneficiavam de uma boa preparao tcnico-tctica, no momento da partida para os teatros de Guerra. O Batalho constituiu-se no RAP 2 e a foi ministrada a Escola Preparatria de Quadros e a instruo da especialidade de atiradores. Aps esta fase de instruo, o Batalho concentrou-se em Viana do Castelo, onde frequentou a Instruo de Aproveitamento Operacional (IAO). Os locais da instruo situaram-se nas zonas montanhosas a Norte de Viana, nomeadamente nos Montes de Santa Luzia e de Perre. Foi alcanado um bom nvel de instruo, diz-se no documento oficial que Canha da Silva me exibe (1). Onde tambm se afirma que o Batalho tem nos seus efectivos elementos provenientes de todas as provncias metropolitanas e dos arquiplagos adjacentes. Chegou o Batalho ao porto de Bissau em 11 de Fevereiro de 1969, confiado ao 2. Comandante, que a bordo do Paquete Uge assumira o Comando das Foras Embarcadas. O Comandante, acompanhado do Oficial de Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados 10/86

Elites Militares e a Guerra de frica (captulo III)

Operaes, de um Subalterno e um Sargento de cada Subunidade, antecipara a sua partida em cerca de 20 dias, encontrando-se em Bissau aguardando a chegada do Batalho. O Oficial de Operaes j se encontrava no Sector que tinha sido atribudo ao Batalho, tomando contacto directo com a unidade a render, o Batalho de Artilharia n. 1913, e inteirando-se da situao. Iniciado o desembarque das tropas, s primeiras horas da manh, foi-lhe destinado o aquartelamento de Br, nos arredores de Bissau, onde se instalaram. No dia seguinte foram efectuadas as apresentaes militares ao Comandante-chefe, que foi visitar as tropas. No Comando Territorial Independente da Guin (CTIG), foi atribudo ao Batalho o sector de Cati, cedendo ento a Companhia de Artilharia (CArt) 2478, e recebendo a Companhia de Caadores (CCa) 6, j em sector (Bedanda). Na tarde do dia 16 de Fevereiro, o Batalho embarcou numa Lancha de Desembarque Grande (LDG), sendo o transporte efectuado durante a noite, tendo a lancha fundeado ao largo da foz do rio Tombali, aguardando o nascer do dia 17. s primeiras horas deste dia foi feito o transbordo da fora para as Lanchas de Desembarque Mdia (LDM) que as transportaram at aos locais do ltimo destino. As unidades rendidas, servindo-se do mesmo transporte, recolheram a Bissau, apenas se cruzando nesse render da guarda. O sector de Cati, onde o Batalho esteve colocado em quadrcula, merece uma referncia particular, porquanto se pretendia investigar uma unidade que tivesse estado numa localizao difcil, encontrei uma que esteve no ponto mais difcil de toda a Guerra de frica o extremo sul da Guin . Por sua vez, o aquartelamento da Companhia, que estudei com maior detalhe, ficava encostado terrvel mata do Cantanhez. Conheo bem esta zona, visto ter a prestado servio no centro das operaes, o que muito facilitou o dilogo ao longo da entrevista. Verifiquei, assim, que tinha reunido todas as condies para desenvolver um trabalho com autenticidade indiscutvel, para o que a instituio militar me deu um contributo inestimvel, por me ter indicado o Major-General Canha da Silva, como principal interlocutor para o estudo desta situao particular. A zona atribuda ao Batalho estava infiltrada por um inimigo que obtinha da Repblica da Guin considervel apoio, nomeadamente, permitia-lhe dispor naquele territrio de importantes bases logsticas, onde concentrava abundante material fornecido pelos pases do bloco comunista, com frequncia desembarcados no porto de Conakry. Essas bases eram simultaneamente locais de instruo e de reunio de combatentes. As que afectavam directamente a zona de aco do Batalho localizavam-se em Boke, Kandiafara e Simbeli. Este Batalho, que embora de Artilharia, tinha uma formao e actividade igual s dos Batalhes de Infantaria, esteve colocado no extremo Sul da Provncia, entre Fevereiro de1969 e Dezembro de 1970. Durante este perodo, o Batalho constituiu-se segundo dois dispositivos de quadrcula. No primeiro perodo, compreendido entre o dia 17 de Fevereiro de 1969 e o dia 1 de Outubro do mesmo ano, o Batalho formou a quatro Companhias: a Companhia de Comandos e Servios (CCS), duas CArt com os nmeros 2476 e 2477, isto porque, a sua terceira Companhia, com o nmero 2478, foi deslocada para o Norte da Provncia, em reforo a outros batalhes, mas recebeu uma CCa. No entanto, e como a quadrcula era constituda por unidades de todas as Armas Combatentes do Exrcito, reforadas por tropas nativas, o Batalho tinha ainda responsabilidades de comando sobre os seguintes efectivos: cinco Pelotes de Canho Sem Recuo (PCS/R), trs Pelotes de Artilharia (PArt), estes sim, actuando efectivamente como artilharia, duas Companhias de Milcias (CM), uma da etnia fula e outra da etnia balanta, a primeira formando a quatro Pelotes (PM) e a segunda a trs, um Peloto de morteiros (Pm) e um Peloto de Cavalaria de auto-metralhadoras Daimler (PAM). O Batalho com este efectivo assumiu um dispositivo de quadrcula formado por trs Aquartelamentos e um Destacamento: Aquartelamento de Cati Neste Aquartelamento estavam estacionados o Comando do Batalho, a CCS, o Comando da CArt 2476 e dois dos seus quatro Pelotes, o Pm, o PAM, um PCS/R, um PArt de 10,5 cm (2), o Comando da CM fula com um Peloto estacionado em Priame e dois no Ilhu de Infanda e um PM da etnia balanta. a1) Destacamento de Cabed Neste Destacamento, estavam estacionados os outros dois pelotes da CArt 2476, um PArt de 8,8 cm e um PM da etnia balanta. Aquartelamento de Cufar Neste Aquartelamento estavam estacionados a CArt) 2477, trs PCS/R, o Comando da CM da etnia balanta e um dos seus Pelotes. Aquartelamento de Bedanda Neste Aquartelamento estavam estacionados a CCa, um PCS/R, um PArt de 14 cm e um PM da etnia fula. Em 1 de Outubro de 1969 o sector sob a responsabilidade operacional do Batalho n. 2865 foi alargado at ao limite Sul da Provncia, sendo-lhe atribudas competncias administrativas e operacionais ou, como mais comum dizerse, logsticas e tcticas, sobre trs outros aquartelamentos e dois novos destacamentos: d) Aquartelamento de Guileje Neste Aquartelamento estavam estacionados a CArt 2410, at a independente, dois Pelotes de Caadores Nativos e um PArt de 11,4 cm. e) Aquartelamento de Gadamael Porto Neste Aquartelamento estavam estacionados o Comando da CArt 2478, entretanto regressada dependncia do seu Batalho, com dois dos seus Pelotes, um PAM reduzido de uma das suas Seces, dois PCS/R e o Comando da Companhia de Milcias n. 12 e um dos seus Pelotes. e1) Destacamento de Gantur Neste Destacamento, que funcionava como dependncia do Aquartelamento de Gadamael Porto estavam estacionados os outros dois Pelotes da CArt 2478, uma Seco do PAM que estava estacionado em Gadamael Porto e um Peloto da CM que estava, tambm, em Gadamael Porto. Neste Destacamento encontravam-se fraces das unidades cujos Comandos estavam no Aquartelamento base, Gadamael Porto. Aquartelamento de Cacine Neste Aquartelamento estavam estacionados o Comando da CCa 2445 e dois dos seus Pelotes, um PAM e o Comando da CMi n. 21 e dois dos seus Pelotes. Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados 11/86

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f1) Destacamento de Cameconde Neste Destacamento, que funcionava como dependncia do Aquartelamento de Cacine estavam estacionados os outros dois Pelotes da CCa 2445, um PArt de 14 cm e um PM da CMi n. 21. Aps este aumento da rea sob a sua responsabilidade, o Batalho 2865 passou a integrar seis Aquartelamentos e trs Destacamentos, ou sejam, nove unidades fisicamente separadas, s quais havia ainda que acrescentar os trs Pelotes de Milcias estacionados em tabancas localizadas em locais estratgicos. Este Batalho ou estas unidades, no seu conjunto, eram constitudas por uma Companhia de Comandos e Servios, quatro Companhias de Artilharia, duas Companhias de Caadores, quatro Companhias de Milcias, com um total de doze Pelotes, dois Pelotes de Caadores Nativos, sete Pelotes de Canho S/R, um Peloto de morteiros, trs Pelotes de auto-metralhadoras, cinco Pelotes de Artilharia: um de 10,5 cm; um de 11,4 cm; e trs de 14 cm. No total, o Batalho era constitudo por onze Companhias e mais dezoito Pelotes no integrados directamente em Companhias. Esta verificao, real, conduz directamente concluso de que as tropas de quadrcula viveram numa estrutura organizativa ou numa formao, cujo enquadramento hierrquico era extremamente dbil. Basta observar que o efectivo em presena corresponde ao efectivo normal de quatro Batalhes, mas que, numa situao de conflito, como era o caso, tinha apenas um comando. Sem estar a analisar todas as unidades, porque a situao era semelhante em todas elas, veja-se o caso de Gantur, que ficando numa zona de extrema actividade inimiga, junto fronteira com a Repblica da Guin e num local de passagem, de homens e material, em trnsito de e para aquela Repblica, era comandado por um Alferes miliciano, quando se justificava e exigia que fosse comandado por um Capito experiente. Nestas unidades, cujo comando era exercido, quase sempre, por oficiais de patente muito inferior que seria normal, sem experincia e baixa formao, com armamento de baixa tecnologia e eficincia, com equipamento as mais das vezes artesanal, sem instalaes que protegessem o pessoal dos enormes calores e chuvas, com alimentao de baixa qualidade e insuficiente quantidade, com gua que s a boa vontade podia considerar potvel, com pouco fardamento e nem sempre recebido novo, os militares passaram ali dois anos da sua juventude, ali deixaram o seu futuro que no tiveram tempo de construir noutro lado e ali adquiriram doenas, por vezes irreversveis. Tudo isto, para alm das consequncias dos actos prprios da guerra. Contudo, o nmero de baixas foi reduzido e os actos de indisciplina escassos, o que revela evidncia e faz sobressair a existncia de um outro factor que suportou esta guerra: o valor do Soldado Portugus, expresso que no utilizo referindo-me s Praas, mas ao Homem Militar: Praas, Sargentos e Oficiais, vistos globalmente, porque numa anlise individual tem que se concluir que os homens no so todos iguais, em nenhuma profisso e a militar, com o elevado grau de risco incorporado, no diferente, e se o for, pela maior amplitude das diferenas. No Mapa n. 1 apresenta-se a localizao geogrfica das nove unidades que integravam e dependiam do Batalho 2865 e a localizao das tabancas de Priame e do Ilhu de Infanda, onde estavam estacionados os PM. Assinalamse, ainda, as tabancas de Cadique, Caboxanque e Jemberm onde, por aco de unidades de interveno, tiveram lugar as outras aces da guerra: os combates violentos, travados entre grupos de guerrilhas experientes e motivados, e tropas altamente treinadas e de recrutamento especial, que no sofreram como as tropas de quadrcula, mas combateram com invulgar coragem e eficincia, devido capacidade dos homens que as integravam. O modo como se efectuou a rendio, com a substituio total das unidades em sector no curto espao de poucas horas, as somente necessrias para as operaes de desembarque da nova unidade e embarque da unidade rendida, apresentava numerosos inconvenientes e nenhumas razes que tornassem o procedimento recomendvel. As novas unidades tinham que dar cumprimento imediato a toda uma actividade operacional de segurana que se lhes deparava de imediato e da qual no avaliavam a situao, desconhecendo os condicionalismos do meio e do terreno, no se encontravam familiarizados com a populao e seus costumes, vendo-se obrigados a improvisar solues de recurso incompatveis a um ambiente de guerra, que se no compadece com improvisaes e fragilidades. Com esta metodologia de rendio, no se aproveitava o acumular do conhecimento, impunha-se assim recomear tudo de novo. Sobre este tema afirmou-me, em entrevista, o Tenente-Coronel Pra-Quedista ngelo Mendes da Silva e Sousa: no houve uma contnua sedimentao do conhecimento, atravs da experincia do terreno, do inimigo e dos combates (3). Se certo que para contrariar estas circunstncias houve o cuidado de antecipar a presena no Teatro de Operaes (TO), do Comandante e do seu Oficial de Operaes, a permanncia do primeiro em Bissau, onde ficou em contacto com o Quartel General (QG) e a ida para o sector apenas do Oficial de Operaes, s ilusoriamente contrariava os inconvenientes apontados para este tipo de rendio. As consideraes apontadas levam-me a considerar que s uma rendio processada progressivamente por fraces, que fossem sendo integradas na situao local e na actividade operacional e igualmente se fossem adaptando ao ambiente e familiarizando com os problemas locais, poderia apresentar condies de eficincia, segurana e continuidade aceitveis. Estamos necessariamente a falar da experincia, materializada no conhecimento sobre a situao real do terreno, da comunidade que ali vivia e das particularidades especficas da guerrilha com que se iriam defrontar.Mapa 1: Quadrcula do Batalho de Artilharia n. 2865 e Estacionamentos dos Pra-Quedistas, no primeiro semestre de 1973.

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Fonte: Conhecimentos pessoais apoiados por Canha da Silva e com recurso ao mapa da Guin existente na Seco de vora da Associao dos Deficientes das Foras Armadas.

Silva e Sousa considera que o Exrcito no teve nenhuma justificao para manter durante os treze anos de guerra, este tipo de rendies, mudando os Batalhes em vez de mudar as pessoas. Em jeito de concluso sobre esta componente da guerra, e no final da longa entrevista que me proporcionou, afirmou este grande especialista de formao militar: o EME privilegiou as suas cadeiras doutrina da guerra, sendo incapaz de a perceber. A constituio da CCS carecia de interesse e proveito para o tipo de actuao no gnero de guerra que enfrentvamos, porque era mobilizado e empenhado um numeroso efectivo sem proporo com a sua utilidade e quando, o que fazia falta, eram foras combatentes. Custa a aceitar a ocupao de capites com alguma experincia de combate em funes que pouco vo alm da burocracia e administrao, enquanto que guarnies isoladas e exigindo capites desembaraados e experientes, so confiadas a comandos improvisados pela mobilizao de oficiais do Q. C. (milicianos) sem vocao, ou experincia, que os recomende (4). Estvamos no incio de 1969 e j se observava a inutilidade de funes, ditas de organizao e administrao, onde os Oficiais se agrupavam, naquilo a que venho designando como funes de convenincia, nas quais se no encontram outras justificaes que no fossem as de se retirarem da Guerra, estando, aparentemente, nela. Estas situaes foram-se adicionando progressivamente, at que, no limiar do ano de 1974, havia funes de convenincia para quase todos, seno mesmo todos, os Capites de carreira, ficando a Guerra entregue aos Capites milicianos.NOTAS (1) Este e vrios outros documentos constituem peas produzidas ao longo da vida da unidade, como despachos, notas, normas, instrues e outras directrizes que foram ocorrendo. Compreensivelmente, os Oficiais mais responsveis foram guardando cpias destes documentos, que me foram disponibilizados, e servindo agora de testemunho e prova da autenticidade do que me foi afirmado. No se trata de documentos publicados, mas de peas de arquivo pessoal, embora sejam documentos oficiais. (2) Corresponde ao dimetro do cano (calibre) da pea de Artilharia, o mesmo dizer, da granada que disparava. Neste sentido, o Peloto constitua a guarnio que manipulava estas armas. (3) Em entrevista, no dia 08/09/2002, no mbito da presente investigao. (4) Afirmao contida num documento interno do Batalho, datado de Maro de 1969, que me foi apresentado ao longo da entrevista.

3.1.1 A Companhia 2477 estacionada em Cufar, como Exemplo Paradigmtico O estacionamento da Companhia ficava localizado a cerca de 500 m, em linha recta, do porto de Cufar, no rio Cumbij, e estava protegido por rede dupla de arame farpado, com um permetro de cerca de 3 km. No centro do estacionamento estavam localizadas as instalaes do pessoal da formao e dos elementos da milcia e seus familiares. Os Pelotes de atiradores estavam distribudos na periferia, ocupando cada um, trs pequenas edificaes, feitas de blocos de barro, seco ao sol, e cobertas de capim. Os militares tinham acesso fcil organizao de terreno (1). Por razes de segurana no havia espaos para grandes concentraes de pessoal, pelo que no havia refeitrio, nem bar. A comida era distribuda na cozinha e consumida junto de cada pequena caserna, num alpendre que todas tinham. Este era tambm um ponto de reunio e de convvio. Era ali que o pessoal cavaqueava, fazia os seus jogos (damas, domin e cartas), como forma de ocupar o tempo que a apertada defesa deixava disponvel, e tambm aqueles trabalhos indispensveis a uma ateno permanente, da posio e estado da arma que utilizava, para que esta estivesse em condies sempre que houvesse necessidade de fazer fogo, o que poderia ocorrer tambm de noite e no prprio aquartelamento. Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados 13/86

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A Companhia dispunha de um gerador, tratado com o maior cuidado e poupado ao mximo. O seu funcionamento era fundamental para a segurana nocturna, permitindo a iluminao exterior do permetro do estacionamento. Assim, durante o dia, no havia nem ventoinhas, nem qualquer outro meio de gerar frio. Os refrigerantes eram bebidos ao natural, quentes, naturalmente. No havia, na altura, frigorficos a petrleo. At que algum, mais experimentado nestas situaes, como faz questo de vincar o Major-General (2), lhes referiu que uma arca frigorfica carregada ao incio da noite, quando se ligava o gerador, iria permitir que durante a manh do dia seguinte e pelo menos at depois do almoo, houvesse bebidas razoavelmente frescas. Seguindo este experimentado conselho, os homens da Companhia cotizaram-se e compraram, em Bissau, a sua primeira arca frigorfica elctrica. E resultou, como jovialmente refere, 33 anos depois, o ento Comandante de Companhia. Relembro aqui, que no captulo anterior defendi que o pr dos Soldados nem chegava para as suas pequenas necessidades, o que significa que a sua pequena contribuio para a compra da arca resultou dos generosos envios que, da Metrpole, lhes faziam os familiares mais prximos. Foi assim que viveram e passaram parte da sua juventude, cerca de 800.000 portugueses. este passado e este perodo, que parte da sociedade portuguesa parece querer esquecer, e que a presente investigao obriga a recordar, j que a histria da nossa Ptria, mesmo nos perodos mais crticos, no produto descartvel. A Companhia era servida por um comboio fluvial, com uma periodicidade mensal, constitudo por embarcaes civis que, para o efeito, eram alugadas, combio esse que, partindo de Bissau, era escoltado por uma lancha da Marinha. O combio movimentando-se durante o dia, com cobertura area, por avies T-6, transportava os gneros necessrios para a alimentao, artigos de cantina e todo o restante material e equipamento, excepo dos combustveis e dos lubrificantes. No itinerrio final, no rio Cumbij, efectuava duas separaes, nos portos de Cabed e de Cufar, onde ficavam as embarcaes que traziam os produtos para as unidades ali estacionadas. O destino ltimo era Bedanda, onde estacionava durante cinco dias, aps o que iniciava o seu regresso a Bissau, incorporando de novo as embarcaes que deixara e que, entretanto, tinham sido descarregadas. A ligao entre o destacamento de Cufar e a sede do Batalho em Cati era complexa, revelando as dificuldades que a guerra, as condies do terreno e a falta de meios impunham. A ligao mais fcil, relativamente segura e normalmente utilizada por elementos isolados, era atravs do rio Cantone. A ligao iniciava-se de viatura, em Cufar, passando por Mato Farroba e Cantone, num percurso de cerca de 6 km. De Cantone seguia-se o percurso do rio at ao Ilhu de Infanda, contudo, desde o rio at povoao, atravessava-se um arrozal, a p, num percurso de quase dois km. Da povoao at Cati o percurso era feito de viatura, com relativa segurana. A ligao rodoviria, com a sede de Batalho, efectuava-se pelo cruzamento de Camaiupa, com uma periodicidade mensal para reabastecimento de combustveis e lubrificantes, que ali eram fornecidos pela Sociedade Comercial Ultramarina. A coluna de reabastecimento era escoltada por um Peloto de Reconhecimento DAIMLER e implicava a picagem de todo o itinerrio e a montagem de segurana contnua. A partir de Cati a picagem era efectuada pela Companhia que ali estava estacionada, o mesmo fazendo a partir de Cufar a respectiva Companhia. A juno das duas foras verificava-se nas proximidades do cruzamento de Camaiupa, sensivelmente a meio do caminho. Quando digo que se montava uma segurana contnua, pretendo indicar que, ao longo de todo o percurso onde se havia efectuado a picagem, ficavam militares de vigia estrada, para evitar nova picagem, quando as tropas viessem de regresso. Se assim se no fizesse, os Guerrilheiros colocariam minas entre a primeira e a segunda passagem da coluna, minas que obviamente rebentariam. Os principais gneros disponveis eram os cereais, leguminosas, massas, farinhas, vinho, que raramente faltava, batata, que por vezes rareava, conservas de peixe (sardinha, atum e cavala), conservas de carne (fiambre, salsichas, chourio e outros enchidos), vegetais liofilizados ou desidratados. A fruta em conserva (calda) apenas permitia a sua incluso na ementa duas a trs vezes por semana. A principal dificuldade na alimentao era a ausncia de vegetais frescos e a rigidez das ementas. No havia possibilidades de fazer uso dos recursos locais, quer em fruta, vegetais, peixe ou carne. A caa era quase inexistente, limitando-se a pequenas gazelas e porcos do mato. O reabastecimento de frescos, da responsabilidade da Intendncia, apresentava, na altura, grandes deficincias. Este reabastecimento era efectuado pela Fora Area, em avies DO-27, pequeno monomotor com capacidade de carga na ordem dos 350 kg, com uma periodicidade teoricamente mensal, o que esteve longe de ser cumprido, sobretudo devido s condies da pista na poca das chuvas. Nestes fornecimentos eram normalmente includos gneros para trs refeies, constitudos por peixe, frango, ovos e legumes: repolho e cenoura. As refeies com estes produtos tinham que ser preparadas de rajada, por inexistncia de meios de frio para conservao, pois s assim seria possvel espaar no tempo o seu consumo. O meu interlocutor, certo de que as estrelas que distinguem a sua posio militar lhe no foram oferecidas e, com orgulho nos verdes anos que deixou em frica, comenta ainda entre dois sorrisos amargos e cmplices: para fugir monotonia das ementas o engenho levava a grelhar sardinhas de conserva e a fritar nacos de fiambre que se cortava faca, por falta de mquina. A situao e as ementas eram encaradas com certo sentido de humor, por exemplo, o prato de esparguete guisado com rodelas de chourio, era designado por capim com damas. Os registos sobre a actividade operacional da Companhia de Artilharia n. 2477, comandada pelo Capito de Artilharia Fernando Nunes Canha da Silva afirmam: Para garantir a segurana dos centros populacionais que lhes estavam confiados, foi adoptado um sistema de emboscadas nocturnas e patrulhamentos dirios ao longo de toda a comisso, obrigando permanente actividade das tropas e simultaneamente feitas numerosas aces, em reas sob o controlo inimigo. Indicam-se as seguintes: Emboscadas nocturnas: 2850 Patrulhas ofensivas: 1242 Aces: 18 Numa nota (3) do CTIG, sobre a actuao da Companhia 2477 afirma-se: A Companhia levou a cabo a construo e concluso do ordenamento de Mato Farroba.... E sobre a actividade operacional afirma: Defesa do reordenamento de Mato Farroba em frequentes e prolongadas aces levadas a cabo pelo inimigo com efectivos elevados e grande potencial de fogo. Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados 14/86

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Aces de presena no seu subsector com patrulhamentos ofensivos cada vez mais distanciados, ampliando a rea de actuao e empurrando o inimigo para zonas cada vez mais afastadas, pelo que passou a desencadear as suas flagelaes a distncias tais que o impossibilitam de aproveitar as caractersticas do seu armamento. Em cooperao com foras de Cati tomou parte em diversas aces. A actividade operacional intensa, com actuao permanente de grupos de combate em patrulhamentos e emboscadas e um servio de informaes progressivamente melhorado permitiram um eficaz conhecimento da situao no sector, levando a uma melhor avaliao dos problemas que o afectavam. Estreitaram-se contactos e intensificaram-se auxlios e assistncia s populaes, no se alheando o Comando dos problemas locais. As populaes das reas submetidas ao controlo da Companhia, beneficiando da proteco que lhe era conferida e da tranquilidade que lhe era assegurada, dedicavam-se s suas actividades tradicionais, manifestando satisfao pela presena das tropas, que lhes conferiam, ainda, ajudas vrias e assistncia sanitria. A presena militar contribuiu, de forma acelerada, para a aquisio de novos hbitos e elevao do nvel de vida das populaes. O contacto permanente com as tropas, os auxlios e assistncia prestados, o convvio habitual, a adopo de hbitos presenciados e a aquisio de novos conhecimentos, constituram-se enquanto factores de elevao e integrao, facilitados pela melhoria do nvel econmico, nascida das necessidades de servios remunerados e da aquisio de produtos. Deste modo, o convvio com as foras militares foi um factor importante de aculturao, contribuindo de modo evidente, para o clima de confiana. Em toda a rea controlada pela Companhia multiplicaram-se contactos com as populaes; repetiram-se visitas e patrulhamentos; dispensaram-se auxlios e assistncia. A confiana e cooperao das populaes foi evidente, procurando com frequncia, no Comando Militar, soluo ou ajuda para os seus problemas e necessidades. A aco persistente do Comando Militar, o sentido dado conduta das tropas e a preocupao constante de que a presena militar fosse um expoente real de segurana e elevao conduziram a que, progressivamente, aumentasse a adeso das populaes sob o controlo da Companhia, aproximando aquelas que se encontravam sujeitas ao inimigo. Em resumo, torna-se evidente afirmar, e no ser demais faz-lo, que a Companhia de Artilharia 2477, teve, na Guin, um comportamento a todos os ttulos louvvel e isto, porque conseguiu duas situaes, qualquer delas muito difceis, conseguindo, se isso no bastasse, conjug-las: controlar a guerra com um inimigo aguerrido e desenvolver e melhorar as condies de vida da populao, para alm, o que sempre de realar, de ter conseguido condies de vida razoveis para os seus homens. O comportamento e o desempenho das tropas em quadrcula, enquanto unidades de ocupao do espao e controlo das populaes, sobretudo retirando o apoio destas guerrilha era de uma extrema importncia. A atitude destas Companhias para a execuo do seu objectivo conquistar as populaes pelo controlo e afecto estava totalmente dependente do Comandante, que at podia saber pouco de tctica militar. Se o controlo da populao era uma tarefa que exigia tino, a de manter disciplina e rigor no desempenho dos seus homens que, com 20 anos permaneciam isolados do mundo civilizado por perodos prximos de 2 anos, no era menos exigente. Canha da Silva constitui, inquestionavelmente, um exemplo do que deveria ter sido, mas no foi, o Comandante de quadrcula. Com toda a garantia, o sistema estratgico estava bem articulado, prova de que a situao africana era conhecida ao mais nfimo pormenor, mas foi um verdadeiro desastre o recrutamento de Oficiais para estes lugares chave na Guerra de frica. Seguramente, a capacidade no estava no quadro ao qual o homem pertencia, mas no valor que este possua. Estvamos assim e, to s, perante os valores de um quadro e no perante um quadro de valores. Sobre esta afirmao e para testemunhar que no estou s neste raciocnio, transcrevo uma nota dirigida ao Brigadeiro Comandante Militar da Guin, a qual se encontra na pasta da histria do Batalho, a que Canha da Silva pertencia: Informao sobre a conduta do Sr. Capt. Art. Canha da Silva, comandante da CArt 2477/Bart 2965. Oficial muito dedicado, infatigvel e enrgico. Incutiu nos seus subordinados um dinamismo de actuao muito notvel. Marcando a sua actuao por grande probidade, procurando corresponder fielmente aos encargos que lhe so atribudos sem se poupar a esforos e sacrifcios, sempre pronto a levar avante as intenes do Comando, manifesta a sua seriedade de actuao. Infatigvel, deu execuo a um reordenamento que lhe foi confiado, com notvel entusiasmo e brio, ocupando-se nos trabalhos como qualquer dos seus soldados, tornando-se seu exemplo e alvo de admirao dos nativos para quem se destinava tal benefcio. Esmerado na organizao da sua Companhia, e dando um cunho de manifesta honestidade a todos os seus actos, soube administr-la com grande ponderao e simplicidade, apesar de dificuldades deparadas resultantes de destruies por aco do inimigo. Operacionalmente mostrou-se muito enrgico, transmitindo confiana aos seus subordinados pelo seu temperamento destemido, no se furtando, a tomar parte na maioria das aces que levou a cabo, e prontificando sempre o seu concurso ao Comando. Na fase inicial da comisso, em que a sua guarnio foi muito frequentemente visada pelo inimigo, a sua presena enrgica mas serena incutiu confiana nos subordinados e nas populaes disso resultando as caractersticas da sua Companhia em que domina um abnegado esprito de dever e uma enrgica capacidade de sacrifcio. Este Oficial alia s qualidades referidas um excelente esprito de camaradagem, franqueza simples, sinceridade e lealdade de temperamento, alm duma esforada conduta e esprito de misso (4). A adjectivao contida na nota, enquanto termos caracterizadores duma personalidade e de um tipo de comando, em que se destacam as designaes de dedicado, infatigvel, enrgico, probidade, seriedade de actuao, entusiasmo, brio, exemplo, temperamento destemido e capacidade de sacrifcio, revela-nos que as autoridades militares da poca conheciam as caractersticas diferenciadoras dos nveis de capacidade de comando e de combate. Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados 15/86

Elites Militares e a Guerra de frica (captulo III)

E sabiam que a qualidade do desempenho de uma Companhia em Quadrcula estava no valor do seu Comandante o Capito. Importa ento saber onde adquiriu este homem estas qualidades. Elas eram inatas ou foram adquiridas? Ou eram um pouco fruto das duas situaes? Sabendo que o principal objectivo da investigao precisamente procurar a resposta para esta questo, procurei esclarecer a origem das caractersticas referenciadas na nota oficial. Comecei por colocar a questo ao prprio o qual, visivelmente incomodado por ter de se referir a si mesmo e sobre uma to superior adjectivao, afirmou: um pouco de tudo: h caractersticas inatas, outras que se melhoram e se desenvolvem e outras mesmo que se aprendem, mas todas elas se conjugam na formao duma qualidade a que podemos chamar capacidade de liderana. Ao fim da longa entrevista, o Major-General manifestou o desejo em escrever com algum tempo, o seu entendimento sobre liderana, entendimento este, que tinha constitudo o seu padro de conduta em frica. Aceitei e, uma semana depois, voltmos a encontrar-nos em sua casa. Na sequncia de mais uma longa entrevista, Canha da Silva fez-me entrega de trs folhas manuscritas, de um s lado e a lpis, onde desenvolvia o seu conceito de liderana o qual, pela sua pertinncia se transcreve: Considero que a capacidade de liderana: a capacidade de levar os outros a, voluntariamente, fazerem o que queremos; fornecer motivao, viso, organizao e aco;