elites militares, trajetÓrias e redefiniÇÕes polÍtico ... · e adaptação de esquemas...

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199 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 16, n. 30, p. 199-220, jun. 2008 Ernesto Seidl ELITES MILITARES, TRAJETÓRIAS E REDEFINIÇÕES POLÍTICO-INSTITUCIONAIS (1850-1930) 1 Recebido em 8 de janeiro de 2008. Aprovado em 23 de abril de 2008. I. INTRODUÇÃO A literatura acadêmica dedicada à história do Exército brasileiro é consensual em tomar o ano de 1850 como o principal ponto de ruptura com o padrão, até então vigente, de “baixa profissionalização” da carreira de oficial. Segun- do essa visão, a partir daquele momento, a pro- gressiva adoção de critérios formais de ascensão hierárquica pontuaria o atrelamento do avanço na carreira militar à obtenção obrigatória de forma- ção escolar nos cursos preparatórios ao oficialato que eram criados. No entanto, diferentemente do que poderia ser tomado como uma evolução ine- quívoca em direção a moldes burocratizados do modelo militar, a sobreposição de esquemas téc- nico-organizacionais e de um sistema de ensino importados da Europa à estrutura até então fraca- mente institucionalizada do Exército brasileiro teve como efeito a constituição de uma organização militar híbrida. No interior dela, conviviam uma estrutura formal regulamentada por regras escri- tas – e igualmente objetivada em estabelecimen- tos de ensino – e mecanismos de regulação pauta- dos por lógicas extrameritocráticas baseadas em recursos como a posse de um capital simbólico associado a atividades militares, uma extensa rede de relações pessoais, a proximidade às esferas burocrática e política etc., passíveis todos eles de reconversão no interior da instituição. Vale dizer, a adoção formal do princípio do mérito – também parte de uma ideologia importada 2 – como crité- rio universal e impessoal de ingresso e ascensão 1 Uma versão inicial deste trabalho foi apresentada no seminário temático “Elites e Instituições Políticas”, do 31º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), em outubro de 2007. A presente versão beneficiou-se tanto das críticas e comentários surgidos na ocasião quanto daqueles aponta- dos pelo parecerista da Revista de Sociologia e Política, pelos quais sou muito grato. 2 Para maiores detalhes quanto ao processo de importação e adaptação de esquemas escolares e de regulação da carrei- ra do Exército no período, consultar Seidl (2005); sobre a formação escolar militar, ver Motta (1976). O estudo aborda as condições sociais e culturais de formação da elite do Exército brasileiro entre o Império e a Primeira República. Em um contexto de baixa autonomia do domínio militar frente a outras esferas sociais, os resultados apontam para o funcionamento de mecanismos híbridos de recrutamento e seleção regulados por lógicas contraditórias que fundem princípios meritocráticos (títulos escolares, tempo de serviço, bravura) e extra-meritocráticos (relações personalísticas, notoriedade política) para a ascensão na carreira. Sem desconhecer os efeitos da expansão do sistema escolar militar e a adoção de critérios formais de regulação, o estudo procurou explorar os impactos objetivos de tais inovações sobre aquela esfera profissional dando espaço para a análise das variadas combinações de recursos e estratégias acio- nados pelos agentes sociais, em especial o uso de relações baseadas na reciprocidade pessoal e as tomadas de posição política. A reconstituição do espaço militar brasileiro a partir do exame das trajetórias de altos oficiais procura contribuir para a compreensão das concepções que os agentes apresentam como legítimo ou ilegítimo, as condutas sendo lidas de modo variável segundo o ponto de vista adotado e a posição ocupada no espaço social. Por meio da apresentação em profundidade de duas trajetórias, aponta-se como se articulam as relações entre práticas sociais, concepções e significados associados a determinados agen- tes e grupos e os processos de redefinição institucional em que estão inseridos, buscando trazer nova luz sobre as transformações do espaço político e os processos de inovação institucional em curso no Brasil do período. PALAVRAS-CHAVE: elites militares; Exército; meritocracia; clientelismo; trajetórias sociais.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 16, Nº 30: 199-220 JUN. 2008

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 16, n. 30, p. 199-220, jun. 2008

Ernesto Seidl

ELITES MILITARES, TRAJETÓRIAS E REDEFINIÇÕESPOLÍTICO-INSTITUCIONAIS (1850-1930)1

Recebido em 8 de janeiro de 2008.Aprovado em 23 de abril de 2008.

I. INTRODUÇÃO

A literatura acadêmica dedicada à história doExército brasileiro é consensual em tomar o anode 1850 como o principal ponto de ruptura com opadrão, até então vigente, de “baixaprofissionalização” da carreira de oficial. Segun-do essa visão, a partir daquele momento, a pro-gressiva adoção de critérios formais de ascensãohierárquica pontuaria o atrelamento do avanço nacarreira militar à obtenção obrigatória de forma-ção escolar nos cursos preparatórios ao oficialatoque eram criados. No entanto, diferentemente doque poderia ser tomado como uma evolução ine-quívoca em direção a moldes burocratizados do

modelo militar, a sobreposição de esquemas téc-nico-organizacionais e de um sistema de ensinoimportados da Europa à estrutura até então fraca-mente institucionalizada do Exército brasileiro tevecomo efeito a constituição de uma organizaçãomilitar híbrida. No interior dela, conviviam umaestrutura formal regulamentada por regras escri-tas – e igualmente objetivada em estabelecimen-tos de ensino – e mecanismos de regulação pauta-dos por lógicas extrameritocráticas baseadas emrecursos como a posse de um capital simbólicoassociado a atividades militares, uma extensa redede relações pessoais, a proximidade às esferasburocrática e política etc., passíveis todos eles dereconversão no interior da instituição. Vale dizer,a adoção formal do princípio do mérito – tambémparte de uma ideologia importada2 – como crité-rio universal e impessoal de ingresso e ascensão

1 Uma versão inicial deste trabalho foi apresentada noseminário temático “Elites e Instituições Políticas”, do 31ºEncontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduaçãoe Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), em outubro de2007. A presente versão beneficiou-se tanto das críticas ecomentários surgidos na ocasião quanto daqueles aponta-dos pelo parecerista da Revista de Sociologia e Política,pelos quais sou muito grato.

2 Para maiores detalhes quanto ao processo de importaçãoe adaptação de esquemas escolares e de regulação da carrei-ra do Exército no período, consultar Seidl (2005); sobre aformação escolar militar, ver Motta (1976).

O estudo aborda as condições sociais e culturais de formação da elite do Exército brasileiro entre o Impérioe a Primeira República. Em um contexto de baixa autonomia do domínio militar frente a outras esferassociais, os resultados apontam para o funcionamento de mecanismos híbridos de recrutamento e seleçãoregulados por lógicas contraditórias que fundem princípios meritocráticos (títulos escolares, tempo deserviço, bravura) e extra-meritocráticos (relações personalísticas, notoriedade política) para a ascensãona carreira. Sem desconhecer os efeitos da expansão do sistema escolar militar e a adoção de critériosformais de regulação, o estudo procurou explorar os impactos objetivos de tais inovações sobre aquelaesfera profissional dando espaço para a análise das variadas combinações de recursos e estratégias acio-nados pelos agentes sociais, em especial o uso de relações baseadas na reciprocidade pessoal e as tomadasde posição política. A reconstituição do espaço militar brasileiro a partir do exame das trajetórias de altosoficiais procura contribuir para a compreensão das concepções que os agentes apresentam como legítimoou ilegítimo, as condutas sendo lidas de modo variável segundo o ponto de vista adotado e a posiçãoocupada no espaço social. Por meio da apresentação em profundidade de duas trajetórias, aponta-se comose articulam as relações entre práticas sociais, concepções e significados associados a determinados agen-tes e grupos e os processos de redefinição institucional em que estão inseridos, buscando trazer nova luzsobre as transformações do espaço político e os processos de inovação institucional em curso no Brasil doperíodo.

PALAVRAS-CHAVE: elites militares; Exército; meritocracia; clientelismo; trajetórias sociais.

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no oficialato, relacionado à aquisição de uma com-petência técnica fornecida pela escola, não repre-sentou, na prática, o estabelecimento de um pa-drão de recrutamento que excluísse outros prin-cípios de hierarquização social.

Como lembra Garcia Jr. (1993, p. 89), “oclientelismo é freqüentemente descrito como umasobrevivência de práticas políticas tradicionais,destinadas a desaparecer quando o Estado nacio-nal é instalado”. Nessa linha de raciocínio binário,a coexistência entre instituições públicas raciona-lizadas de caráter universal (representação políti-ca e burocracias administrativas), situadas no topodo Estado, e o particularismo das clientelas locaisé interpretada como um momento de transição.Além de partilhar de pressupostos desenvolvi-mentistas3, a aplicação de tal esquema implicariarecusar, aponta o autor, o exame detalhado “dosagentes que estão na origem das inovações insti-tuições e os efeitos concretos que estas exerce-ram sobre as modalidades do trabalho político”.Para o que está em questão neste trabalho – oestudo dos mecanismos de recrutamento e sele-ção de uma elite institucional, ao longo de um pe-ríodo histórico de institucionalização precária – oalerta é mais do que oportuno.

Afastando-se de inúteis discussões acerca dograu de “sucesso” ou “insucesso” das tentativasde profissionalização da carreira militar – nosmoldes chamados “modernos” ou“meritocráticos” –, o objetivo deste artigo con-siste em expor com algum grau de detalhe osmecanismos objetivos de formação da elite doExército durante um período relativamente exten-so de tempo: da segunda metade do século XIXàs três primeiras décadas do século XX, períodoque abarca a transição para o regime republicanoe um momento de intensas disputas por defini-ções relativas à “política”, ao Estado e às institui-ções nacionais. De forma concisa, osquestionamentos centrais aos quais se quer darresposta aqui são: qual a natureza dos recursossociais e culturais acumulados e de que formaforam empregados pelos oficiais na composiçãode carreiras militares de sucesso; em que condi-ções históricas realizaram-se as trajetórias dosgenerais em questão e quais suas intersecções com

a lógica das disputas da política; por fim, comoarticularam-se as relações entre práticas sociais,concepções e significados, associados a determi-nados agentes e grupos, e as instituições burocrá-ticas em que estes estavam inseridos – questãovinculada ao processo de construção do aparatoestatal brasileiro.

Embora a investigação também tenha centradofoco no peso do componente escolar e no examedas inovações oficiais introduzidas na regulaçãoda carreira militar, a exploração de materialempírico menos institucional (arquivos pessoais,memórias, biografias e autobiografias, genealogiasetc.) apontou para indicações às quais a bibliogra-fia especializada normalmente apenas se refere depassagem: o emprego de relações pessoais comomecanismo importante para a ascensão profissio-nal. Tomando em conta um conjunto de níveis deanálise empregados especialmente por Charle(1987), Cailleteau e Bonnardot (1995) e Pinto(1996) no estudo de elites militares na Europa, aolado de outros recursos analíticos postos em rele-vo por Miceli (1979), Pécaut (1990) e Coradini(1996; 1998) para o estudo de elites no contextobrasileiro, pretende-se expor, num primeiro mo-mento, parte dos resultados do exame dos itinerá-rios sociais e profissionais de generais gaúchosdentro do período em foco. Das 56 trajetórias queinteressavam diretamente à proposta do presentetrabalho – ou seja, as dos generais cujo ingressona carreira ocorreu a partir de 1850 (ou anos an-teriores próximos) –, dispôs-se de informaçõessubstantivas, em grau variado, para cerca de 30.Num segundo momento, passa-se à exposição doscasos de dois generais cujas trajetórias ilustram comriqueza os elementos anteriormente esboçados.

II. COMPOSIÇÕES DE CARREIRA MILITAR:RELAÇÕES PESSOAIS E ENVOLVIMENTOPOLÍTICO

Considerando os recursos sociais com quecontavam, desde o início de suas carreiras noExército, os indivíduos estudados, a saber, umaextração social privilegiada e, em muitos casos,possuidora de um montante considerável de capi-tal de notoriedade ligado ao grupo familiar4, partedo interesse analítico aqui esboçado reside na cap-

3 Para uma crítica a esses pressupostos embutidos emdiversas correntes de estudos de construção nacional, con-sultar Bendix (1977).

4 Conforme exposto em outros momentos (SEIDL, 1999;2002), a análise detida das origens sociais dos generais gaú-chos demonstra a manutenção de um recrutamento realiza-do predominantemente em meio a filhos de oficiais superi-

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tura das modalidades e das estratégias de empre-go desses e de outros trunfos. O exame dos itine-rários sociais e profissionais dos generais gaúchosem pauta revela, à primeira vista, leque bastantevariado em suas composições, fato que não im-pede que se identifiquem claramente alguns tra-ços comuns. Dentre esses, destaca-se, em pri-meiro lugar, a forte proximidade daqueles ofici-ais, já nos primeiros postos da hierarquia, em re-lação às instâncias de decisão e de comando, oque significava, em geral, a ocupação de cargosburocráticos que lhes permitiam contato direto ouindireto com oficiais de altas patentes, ou comseus círculos de relações. Em conseqüência, oestabelecimento de contatos e de relações no inte-rior das altas esferas invariavelmente implicavaacúmulo de prestígio militar e possibilidades deutilização futura dessas relações ao longo da car-

reira, sendo tanto maior o valor deste prestígioquanto melhor fosse a posição daqueles a quemse estava próximo.

Deste modo, como boa parte dos generais es-tudados, além de terem iniciado jovens suas car-reiras, ocuparam posições com acesso às esferasmais altas de comando – Ajudante de Ordens oude Campo de generais, membro de comissão ousecretariado no Estado-Maior etc. –, suas chancesobjetivas de progressão hierárquica eram multi-plicadas5. É preciso ressaltar, ainda, que diversossão os casos de futuros generais que – ainda ofi-ciais em início de carreira e, eles mesmos, filhosde generais –, serviram como “ajudantes”, “se-cretários” ou “assistentes” de seus próprios pais,aproveitando-se dos critérios essencialmente pes-soais que regiam o preenchimento de cargos des-sa natureza.

QUADRO 1 – GENERAIS BRASILEIROS: PROFISSÃO DO PAI

FONTE: Silva (1940); Lago (1942); Arquivo Histórico do Exército, Fés-de-Ofício; Processos de reconhecimento decadetes; material diverso reunido pelo autor.NOTA: * Informação fornecida pela patente de cadete apresentada pelo filho, sem maior especificação de sua qualidade.

5 De fato, ter servido sob as ordens diretas de Caxias,Osório, ou de algum outro “grande chefe”– serviço regis-trado em caráter oficial (fé-de-ofício) e invariavelmenteadjetivado por uma série de elogios que ressaltavam as

“qualidades” do comandado – podia fornecer rendimentosimportantes no futuro, tais como promoções por “bravu-ra” (previstas no regulamento) e indicações para cargos deconfiança.

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QUADRO 2 – GENERAIS GAÚCHOS: PROFISSÃO DO PAI

FONTE: Silva (1940); Lago (1942); Arquivo Histórico do Exército, Fés-de-Ofício; Processos de reconhecimentode cadetes; material diverso reunido pelo autor.

Esse fato põe em relevo outra dimensão fun-damental que pautava as dinâmicas de carreira dosoficiais em foco, ou seja, a constante utilização derelações pessoais baseadas na reciprocidade e oconseqüente acúmulo de capital simbólico perso-nificado como recurso para a progressão na hie-rarquia. Em outras palavras, apesar da crescenteaquisição de uma “competência técnica” pelooficialato – por meio dos cursos das armas e daproclamação oficial do “mérito” como critério pri-mordial para obtenção de altas patentes –, é evi-dente o peso muito forte de outros critérios, es-sencialmente pessoais, definidores dos mecanis-mos de ascensão. Por outro lado, ao contrário doque constata Coradini (1996), com respeito às eli-tes médicas brasileiras, no caso da instituição mi-litar, essas relações baseadas na reciprocidade nãosão “oficial e solenemente admitidas e até procla-madas”, restringindo-se muito mais a regras táci-tas e de conhecimento generalizado, mas oficial-mente negadas em nome dos princípios“meritocrático” e de antigüidade.

Dessa situação, decorrem sérios problemasquanto à explicitação daquelas relações, uma vezque na documentação de caráter oficial da insti-tuição podem ser encontradas somente indicaçõesmuito gerais, sendo necessário, por isso, proce-der ao exame detido de material diverso, comobiografias e autobiografias, memórias, documen-tos pessoais e outros, a fim de apreendê-las commaior precisão6. Mesmo assim, à exceção dos

documentos pessoais, tal material revela um graubastante alto da eufemização a que são submeti-das as respectivas “histórias” – devido em grandemedida ao próprio emprego de uma linguagempermeada de expressões de uso militar, portanto,revestida de uma ideologia fundada nos princípi-os de respeito à disciplina, à hierarquia e ao “me-recimento”7.

Deste modo, na maior parte dos casos, as re-ferências à utilização de relações pessoais ou àaplicação de critérios externos ao “mérito militar”para as indicações aos cargos, a preferência ou apreterição nas promoções, a concessão de “favo-res” a civis e a outros, aparecem apenas de formamarginal nos textos e geralmente em tom de con-denação quando dizem respeito a “outros”, isto é,em casos de “injustiça”, ou mesmo de “traição”sofrida. Ao falarem de sua “carreira” militar, fun-dada sobre um conjunto muito particular, explíci-to e constantemente reafirmado de ideais a seremrespeitados (“ser oficial militar implica obedecera uma ordem hierárquica imutável, formalizada empatentes, assim como a uma determinada discipli-na e normas de conduta universais” etc.), essesindivíduos não poderiam mencionar a existênciade outros princípios também concretamente váli-dos no “jogo” sem colocar em xeque, de algumaforma, sua própria constituição como agentesdefinidos em relação àqueles princípios.

6 Ver, por exemplo, os procedimentos realizados por SaintMartin (1980) com a documentação relativa aos descen-

dentes da antiga nobreza na França.7 Miceli (1988) aponta para questões muito semelhantesem pesquisa sobre a elite eclesiástica na I República.

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Um terceiro traço marcante das trajetórias empauta, em estreita conexão com os acima expos-tos, é o elevado nível de envolvimento dos agen-tes estudados com a “política”. Mas isso não so-mente por meio da ocupação de cargos formais(eletivos ou não) e da filiação partidária, o que élargamente apontado pela bibliografia brasileiracomo fenômeno generalizado (CARVALHO, 1977;1996; SCHULZ, 1994; CASTRO, 1995; COSTA,1996), mas também por suas relações diretas ouindiretas com o Imperador/Presidente e com agen-tes de distintas esferas do poder. Além disso, res-salta-se as tomadas de posição dos agentes frenteao universo do “político” (inclusive pela sua ne-gação) como recursos passíveis de reconversãoem dividendos tanto de caráter propriamente mili-tar – como a ascensão na carreira ou o acúmulode prestígio militar, por exemplo – quanto de na-tureza mais diversa, como “títulos” (“nobreza”,maçonaria, clubes restritos), cargos políticos for-mais ou outros (polícias, brigadas, comissões,administração) e ainda uma quantidade extrema-mente variada de “benefícios” pessoais para ter-ceiros (“amigos”).

Em suma, o que se pretende propor é a exis-tência, no contexto analisado, de uma situação decomplexa inter-relação e interdependência entreas esferas do “político” e do “militar”, em que ainexistência de esferas sociais relativamente inde-pendentes, com regras institucionalizadas e explí-citas, não permite a estruturação de uma carreiramilitar fundada sobre mecanismos próprios à ins-tituição do Exército. Em outras palavras, tal con-dição, típica de sociedades “periféricas” e impor-tadoras de modelos, propicia a intersecção de ló-gicas pertencentes originalmente a esferas distin-tas (política, militar, econômica, artística), resul-tando na realização de trajetórias que mesclam autilização de regras e de recursos válidos(reconversíveis) em diversos espaços sociais.

III. AS INTERSECÇÕES NA ESFERA MILITAR

Como mencionado, o envolvimento dos agen-tes estudados com a “política” e a utilização derelações pessoais baseadas na reciprocidade cons-tituem traços estruturantes da carreira militar noperíodo focalizado. Com efeito, para além dasvagas referências contidas na literatura brasileirade natureza mais acadêmica – incluindo-se os jámencionados trabalhos de José Murilo de Carva-lho (1977; 1996) e o de John Schulz (1994) – , aanálise de um conjunto de documentações pesso-

ais (correspondência ativa e passiva, diários, me-mórias, biografias e autobiografias) disponíveissobre certos oficiais diretamente implicados nes-te estudo, e também para outros, revela umamultiplicidade muito grande de mecanismosextrameritocráticos interagindo com a lógicainstitucional do Exército.

Por detrás dessa multiplicidade de mecanis-mos, o mais importante a destacar-se, inicialmen-te, é o caráter eminentemente pessoal dos víncu-los estabelecidos entre oficiais militares e outrosagentes inseridos em diferentes atividades – emuito especialmente na “política” –, concretiza-dos por meio da manutenção de relações que im-plicavam troca recíproca, tais como o clientelismopolítico, a patronagem, o compadrio, o parentes-co, a amizade instrumental, além de outras. Aindaque a complexidade das formas de que se reves-tem essas relações represente dificuldade consi-derável tanto a uma aplicação conceitual precisa eintegrada ao seu estudo quanto à sua descrição,algumas características centrais são identificadasnos casos analisados.

Embora trate-se basicamente de relações pes-soais de troca mútua entre agentes detentores derecursos desiguais, e estando subjacente a noçãode reciprocidade8, há, no entanto, diferentes ní-veis em que aquelas se desenrolam. Em um pri-meiro nível, mais interno à instituição militar, po-rém obedecendo a uma lógica não exclusivamen-te “militar”, tem-se as trocas de favores que en-volvem unicamente militares – geralmente relati-vas a nomeações, promoções, transferências oupunições de outros militares. Na maior parte des-ses casos, a demanda passa por um agenteintermediador que permite a ligação de umdemandante, cuja posição impede o contato dire-to, com aquele agente capaz de dispensar-lhe osrecursos necessitados, mas não sem extrair be-nefícios próprios. Via de regra, a necessidade deintermediação (ou mesmo de várias intermediações)na troca é tanto maior quanto mais distante hie-rarquicamente estiverem os agentes envolvidos,como, por exemplo, no caso de um Tenente que

8 Dentre os conceitos desenvolvidos pela antropologiapara o estudo de relações de reciprocidade em sociedadescomplexas, destaca-se o de aliança diádica, entendida como“acordo voluntário entre dois indivíduos que visa à trocade favores e à ajuda mútua quando necessário” (LANDÉ,1977b, p. XIV).

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planteia promoção “por merecimento” – decisãoque compete às altas instâncias do Exército – eque terá, portanto, de acionar suas relações comoficiais de postos intermediários que disponhamde canais para o acesso desejado entre os agen-tes9. Em contrapartida a essa dispensa de “favo-res”, o bem mais comum fornecido pelos agentesem posições inferiores é a lealdade e o compro-misso de aumentar o prestígio e a notoriedadedaqueles que os “beneficiam”, cabendo aos inter-mediários tirar proveito do melhor gerenciamentopossível dos recursos em jogo, o que significasaber utilizar as dívidas que ambos os lados con-traem nas trocas realizadas10.

Um caso explicativo do que foi brevementeexposto pode ser observado em “pedido” do ge-neral José Bernardino Bormann ao também gene-ral Bibiano Costallat, feito por carta e cujo con-teúdo transcrevemos aqui. Sendo ambos gaúchose “velhos amigos”, Bormann inicia sua carta so-licitando, ao seu superior, “recrutas, uma lancha avapor, arreiamentos e remonta”. Em seguida, pede-lhe que promova “o nosso Joaquim Ignácio”, que“deseja o cargo de ajudante do 13º”, e que Bormanncrê seja uma pretensão justa. Além disso, lembraao “amigo” que não se esqueça do citado Joaquimna “próxima promoção por merecimento, pois bemsabes que ele foi um dos que mais trabalhou peloadvento da República e serviu com lealdade aoMarechal Floriano”. E aproveita ainda o momentopara pedir a promoção de outro oficial, Major Luz,“pelos seus bons serviços”, dizendo que se trata deseus dois “afilhados” (IHGB, Fundo BibianoCostallat, lata 298, doc. 65).

Esse caso, não escolhido fortuitamente, remetea pelo menos três aspectos importantes das rela-ções que se pretende enfocar. Em primeiro lugar,há a invocação explícita de uma “antiga amizade”entre os dois generais, os quais foram contempo-râneos na Escola de Porto Alegre e tiveram umaascensão sincronizada na carreira. Mas ao mes-mo tempo em que a expectativa de realização dademanda baseia-se nessa “amizade de anos”, são

também expostas duas outras razões: os “bonsserviços” prestados pelos oficiais (“trabalho peloadvento da República” e “dedicação e lealdade”ao Marechal Floriano, no caso de um deles) e acondição de “afilhados” do demandante. Portan-to, não somente a adesão a um determinado con-junto de valores morais e políticos, mas igualmenteo pertencimento a um grupo unido por relaçõesde compadrio, aparecem como recursos legítimosa serem postos em ação dentro da esfera militar.

Com respeito à intervenção do parentesco emsituações extrafamiliares, Eric Wolf (1980, p. 27-28) observa a possibilidade de transformação derelações privadas, baseadas na confiança, em re-lações de cooperação no setor público, mencio-nando, por exemplo, o nepotismo. No caso doExército brasileiro, e, em particular, no contextodo Rio Grande do Sul, em que se verifica a repro-dução de “grandes famílias” de militares ao longode muitas décadas (SEIDL, 2002), a prática do“favoritismo” entre parentes adquire peso muitogrande.

Uma exemplificação disso pode ser encontra-da na intervenção do Marechal José Luiz MennaBarreto, membro do maior grupo familiar de mili-tares do país, junto ao Barão de São Borja, Mare-chal Vitorino José Carneiro Monteiro, pai do futu-ro Marechal Bento Manoel Ribeiro CarneiroMonteiro e um dos principais chefes do PartidoConservador no Rio Grande do Sul. Diz MennaBarreto que, tendo ele sabido de “intolerância,abuso e perseguições” por parte do BrigadeiroAugusto Pacheco com alguns oficiais, e “entran-do nesse número o meu cunhado Alferes AntônioAdolfo da Fontoura Menna Barreto, a quem maisque todos procura o comandante sacrificar o seufuturo”, pede ao Barão que transfira seu cunhadocomo adido a algum outro corpo militar (IHGB,Fundo Vitorino José Carneiro Monteiro, lata 450,doc. 44).

Cabe aqui também recorrer à diferenciaçãoestabelecida por Wolf (1980, p. 28-31) quanto aduas classes de amizade – a “emocional” e a “ins-trumental” – para explicar relações sociais de in-tercâmbio de favores. Segundo o autor, enquantoa primeira classe implica “uma relação entre umego e um alter na qual cada um satisfaz algumanecessidade emocional do outro”, a segunda temcomo elemento consubstancial a busca por re-cursos (naturais ou sociais), ainda que este nãoseja seu objetivo principal. Além disso, a “amiza-

9 Como afirma Landé (1977b, p. XVI), “na verdade, aconstrução da aliança diádica é uma estratégia óbvia deprimeira escolha e, às vezes, como último recurso – para oindivíduo sozinho enquanto persegue uma variedade deinteresses privados”.10 A esse respeito, consultar Landé (1977a; 1977b) eWeingrod (1985).

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de instrumental”, não se limitando à díade envol-vida, permite que cada um dos componentes damesma atue como elo potencial com outras pes-soas do exterior, extrapolando os limites dos gru-pos já existentes e possibilitando o estabelecimen-to de relações com novos grupos. Ainda seguindoas observações propostas pelo pesquisador (idem,p. 32-33), as próprias condições de isolamentosocial das grandes organizações burocráticas,como as empresas industriais e o exército, ten-dem a fazer com que a “amizade instrumental”venha a confundir-se paulatinamente com a for-mação de “claques” ou de “grupos informais” si-milares, o que parece ser bastante plausível, con-siderando-se o sistema organizacional militar, ba-seado na concentração geográfica e na formaçãode um “espírito de corpo”11.

Retornando aos vínculos da carreira militar coma “política”, e enfocando o momento de altaimbricação entre essas duas esferas que é o perí-odo em torno da Proclamação da República, em1889, parece esclarecedor trazer um caso que ilus-tra bem as conexões mencionadas. Trata-se decarta dirigida por três oficiais subalternos ao en-tão Tenente-Coronel e futuro General FredericoSólon de Sampaio Ribeiro, um dos principais ofi-ciais articuladores do movimento republicano de1889, “abolicionista” e militar muito próximo deDeodoro. Por reunir em um pequeno espaço gran-de quantidade de referências interessantes à análi-se, também encontradas em vários outros docu-mentos, faz-se uma transcrição mais extensa dotexto, preservando-se seus termos originais.

Iniciam os oficiais falando de sua “profundafrustração com a República”: “Quando fizemos aRepública tivemos a veleidade de julgar estavaacabado para sempre o vício do filhotismoimérito, do patronato escandaloso; [...] estamosconvictos que foi um sonho inocente que tivemosno calor e entusiasmo das nossas intenções e idéi-as de justiça. Temos passado pela decepção amargade sermos preteridos e deixados de parte, peloshomens que então necessitavam de nós. [...] Es-perávamos que nos contemplassem em uma dasúltimas promoções; mas qual não foi a nossa de-cepção quando vimos promovidas todas as crian-ças da Escola Militar, que nada fizeram, que fo-

ram nossos recrutas, [...], e que nos aconteci-mentos de 15 de novembro só faziam o que nóslhe ditávamos, porque éramos os seus guias, osseus diretores reconhecidos. Em vista de tudo istovemos que hoje predomina mais do que nunca oabuso, o filhotismo, o patronato sem limites e to-mamos a resolução de nos afastarmos da nossanorma de proceder para não sermos ludibriados,pois esquecidos já o somos, e como conhecemosbastante o vosso caráter e sentimento de justiça esabemos que vós pensais como nós outros, resol-vemos fazer um apelo ao vosso caráter [...], epedir-vos, sem mais preâmbulos, para que nosdispenseis uma pequena parcela do vosso prestí-gio, da vossa proteção que não sabe negar-se eque não tem limites para os oprimidos, para osque são desprotegidos; pedimos a vossa excelên-cia para sermos promovidos; certos de que patro-cinando a nossa causa vós estareis baseado najustiça, antecipamos o nosso reconhecimento evos oferecemos [...] os nossos préstimos de ci-dadãos” (IHGB, Fundo Frederico Solon deSampaio Ribeiro, lata 558, pasta 71; sublinhadono original; sem itálicos no original).

O aspecto central a que se quer chamar a aten-ção aqui é a intersecção da dinâmica da carreiramilitar com aquela do universo político, isto é, arelação entre tomadas de posição frente à “políti-ca” e a possibilidade de reconversão dos lucrosdaí originados em vantagens dentro da instituiçãomilitar, tudo isso com base em relações de cunhopessoal. No caso em pauta, como também ocor-rerá em torno da Revolução de 1930, a adesão aum conjunto de valores (“o movimento republi-cano”), por mais difusas que fossem as percep-ções aí implicadas, trazia consigo a perspectivade ascensão na carreira, facilitada pela troca dosserviços prestados em “nome da causa”, como alealdade pessoal aos chefes e a contribuição paraseu prestígio político e militar, a propaganda polí-tica, entre outros. Daí o sentimento de “traição”que alegam sentir os oficiais que escrevem a Solon– os quais se julgam “merecedores de promoção”–, mas que se vêem obrigados a continuar jogan-do o jogo, mesmo que suas regras não tenhammudado (“permanecem os vícios do patronato edo filhotismo”).

Mas ainda além desse nível, mais interno aoExército, de relação com a “política”, é possívelque se identifiquem, para o período enfocado, pelomenos dois outros importantes níveis de desen-volvimento dessas relações. O primeiro deles pode

11 Sobre as condições de socialização dos agentes milita-res, o ambiente escolar e os processos de constituição deuma “identidade militar”, ver Castro (1990) e Pinto (1996).

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ser resumido nas estreitas ligações de oficiais mi-litares com políticos detentores de altos cargos,como Presidente, governadores, interventores,senadores e deputados. O segundo é quase idênti-co ao anterior, diferindo unicamente pelo fato deaqueles ocupantes de altos cargos políticos se-rem ao mesmo tempo oficiais militares de altapatente, configurando situação um tanto ambígua,porém, nada extraordinária, na qual se tem maiorvisibilidade da sobreposição das lógicas política emilitar.

De acordo com a documentação examinada, odesenvolvimento dessas relações seguia, de modogeral, quatro formas: uma primeira envolvendodiretamente oficiais militares e políticos civis; ou-tra também entrelaçando militares e políticos, masnesse caso os serviços trocados eram mediadospor outros oficiais detentores de maior capitalsocial; uma terceira implicando agentes civis queigualmente tinham suas demandas mediadas poroficiais militares bem-posicionados; e, por último,oficiais militares no exercício de cargos políticosintercambiando favores com agentes civis e mili-tares. Apesar de os mecanismos de troca serembasicamente os mesmos em todos os casos, nota-se que no terceiro há uma formação específica,ou seja, tem-se agentes “não-militares” negocian-do bens “não-militares”, mas com a mediaçãocabendo a militares.

Dentre as dezenas de casos que poderiam seraqui expostos a fim de tornar mais claro o que seprocura descrever, por motivos de espaço e tam-bém para evitar a repetição de casos semelhantes,apresentam-se somente alguns cujas situaçõessejam representativas do conjunto.

Situação bastante comum a revelar as inge-rências do poder político dentro da esfera do Exér-cito – vale dizer, a falta de autonomia interna des-ta instituição frente à esfera da “política” –, era autilização da influência de políticos de prestígioem decisões concernentes a nomeações, promo-ções e transferências de oficiais, além da presta-ção de muitos outros serviços. Ao examinar o ar-quivo pessoal de Borges de Medeiros, herdeiropolítico do líder republicano Júlio de Castilhos efigura central da política rio-grandense durante aRepública Velha, diversos são os documentos quepermitem a afirmação acima. Exemplificação des-ses mecanismos é a intervenção de Borges deMedeiros, Governador do estado, e do SenadorPinheiro Machado, com vistas à permanência do

General gaúcho Manoel J. Menna BarretoGodolfim no Distrito Militar de Porto Alegre, efe-tivamente concretizada, e pela qual o general agra-dece a Borges numa carta em que destaca o “inte-resse” que o Governador tem tomado pela sua“humilde individualidade, recebendo sempre doilustre amigo provas da bondade característica quemuito o dignifica” (NÚCLEO DE PESQUISA EDOCUMENTAÇÃO DA POLÍTICA RIO-GRANDENSE. Arquivo Borges de Medeiros, doc.4967).

Outro caso interessante é fornecido pela de-manda do Tenente Francisco Costa e Silva, “pró-ximo” de Getúlio Vargas, que após ter sua matrí-cula na Escola Militar do Rio negada por três ve-zes, pede ao “amigo”, Governador do estado, queeste obtenha junto ao General Nestor Sezefredodos Passos, Ministro da Guerra, o necessário de-simpedimento para efetuar seu ingresso. Vargas,por sua vez, remete o pedido ao deputadocastilhista Flores da Cunha, que assim como Pi-nheiro Machado havia recebido a patentehonorífica de “General”, dizendo que, se possí-vel, seja ele cumprido (NÚCLEO DE PESQUISAE DOCUMENTAÇÃO DA POLÍTICA RIO-GRANDENSE, Arquivo Flores da Cunha, doc.327).

Esse conjunto de relações e de mecanismosde favorecimento movidos por meio doacionamento de redes de agentes dispondo de altocapital político e social, mencionado nos casosacima, põe em relevo dimensão fundamental dacondição de entrelaçamento das lógicas da “polí-tica” e do Exército no Brasil da I República. Nocaso específico do Rio Grande do Sul, não hácomo separar a influência da “política castilhista”no interior da instituição militar – sobretudo aoconsiderar as ligações do “General” Pinheiro Ma-chado com o alto oficialato - do sistema políticovigente no período, isto é, de um contexto de altacentralização e autoritarismo político em que a le-aldade incondicional e a submissão aos chefes dafacção no poder funcionavam como principal ga-rantia de acesso aos recursos disponíveis12. Al-gumas características da estruturação do PartidoRepublicano Rio-Grandense (PRR) apontadas porGrijó (1998, p. 48), em estudo sobre as trajetóri-

12 Sobre o sistema político gaúcho na República Velha e asbases de funcionamento da “máquina castilhista”, ver par-ticularmente Baretta (1985), Love (1975) e Grijó (1998).

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as dos políticos gaúchos membros da chamada“geração de 1907”, parecem esclarecedoras: “[...]Um partido deste tipo – constituído em forma pi-ramidal em cujo ápice se encontrava o líder dopartido e do governo composto por uma conste-lação de estrelas de primeira grandeza que con-trolavam teias clientelísticas formadas por patronosmenores, por parcelas da população urbana e porpeões nas estâncias – é uma estrutura eminente-mente segmentada. O PRR, pois, neste plano seestruturou em função de nichos de autoridadespessoais, de grandes patrões que controlavamsegmentos do território e/ou da população do Es-tado ou certos órgãos burocráticos. Os primeirosmais independentes do chefe do governo e dopartido – pois sua autoridade advinha em grandeparte devido a recursos próprios – e os segundosabsolutamente dependentes do mesmo – pois de-viam-lhe diretamente suas posições atreladas àocupação de cargos remunerados”.

Ao estar ligada por uma série de laços – dire-tos ou não – aos principais agentes políticos doestado, parte do alto oficialato dispunha de trun-fos importantes amplamente mobilizados em rela-ções de troca, muitas delas mobilizando agentesexternos ao meio militar. Assim, uma vez capazesde acionar redes de relações sociais dessa nature-za (e isso especialmente no interior do estado)esses oficiais tornavam-se ao mesmo tempo im-portantes elementos de ligação entre indivíduoscarentes de determinados bens e os círculos regi-onais do poder, mesclando-se desta forma aosesquemas do clientelismo político, como atestamos “pequenos pedidos” mediados por oficiais doExército junto a algumas autoridades políticas dealto cargo, como encontrado em grande númeroem documentos dos arquivos pessoais examina-dos.

Indo além das situações em que estão em jogonas trocas bens relativos à instituição militar –como cargos, direito à matrícula em escolas etc.–, também são encontradas boas indicações deque a ocupação de uma determinada posição nahierarquia militar, associada ao volume e à estru-tura do capital social detido – como rede durávelde relações passíveis de serem acionadas –, eracapaz de proporcionar o estabelecimento de umasérie de outras relações sociais externas à esferamilitar. Com efeito, tais indicações dizem respeitoà possibilidade de uso do prestígio social de agen-tes militares, acumulado em grande medida den-tro do Exército e respaldado por uma patente

corporativa socialmente conhecida e reconheci-da, em espaços situados fora da órbita da institui-ção. Os tipos de uso desse capital simbólico e derelações são os mais variados e vão de nomea-ções para cargos públicos até o apoio para algu-ma candidatura política, embora não difiram emsua forma personalizada e restritiva.

Assim, parece esclarecedor apresentar umasituação que invoca alguns dos traços enfocados,um caso em que o então Coronel Frederico Solonde Sampaio Ribeiro, membro havia muitos anosda Maçonaria, após intervir decisivamente emquestão judicial envolvendo uma pessoa com for-tes ligações dentro daquela sociedade, consegueque seja obtida a libertação. Como forma de “agra-decimento”, é oferecido ao oficial o título de “mem-bro honorário” de uma loja maçônica argentina13.Porém, ao mesmo tempo em que lhe são feitos“agradecimentos” e “homenagens”, surge novademanda, em nome de uma terceira pessoa(Frederico Schmidt), que foi feita portadora dacorrespondência entregue a Solon e a quem osdemandantes “devem muitos favores prestadosdurante a adversidade”. Aquela demanda consis-tia, basicamente, na “ajuda” de Solon a fim de queFrederico Schmidt – proprietário de uma cerveja-ria no Rio Grande do Sul e desejoso por iniciarprodução de cerveja com base em “métodos maismodernos” –, obtivesse o crédito necessário parainiciar o empreendimento. Posto que haveria séri-os obstáculos colocados pelas empresas importa-doras do ramo, as quais “teriam seus interessesameaçados”, dificultando “pela surdina” a conces-são de empréstimo bancário à Schmidt, pede-seao Coronel que, se possível, intervenha (IHGB,Fundo Frederico Solon de Sampaio Ribeiro, lata557, pasta 7; lata 558, pastas 84, 168).

Casos semelhantes de busca de recursos parafins pessoais, por civis junto a oficiais militaresbem-posicionados, também foram encontradosem grande profusão na análise do arquivo pessoaldo Marechal Setembrino de Carvalho. No entan-to, há que se ressaltar a maior intensidade daque-las relações ao longo do período no qual o oficialacumulou funções formalmente políticas comoInterventor Federal nomeado para o Ceará, du-

13 Juntamente com a carta que enviam a Solon, o benefici-ado e sua esposa agradecem pelo envio de um retrato da-quele (Solon), o qual passaria a ocupar “lugar de honra” emcasa deles.

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rante crise política regional, em 1914. Ocupandocargo que lhe punha à disposição o acesso facili-tado a recursos de natureza diversa, em contextode conflito político e social (violência, saques,perseguições), Setembrino rapidamente passou aencontrar-se no centro de uma instância capaz deprover bens a interesses privados. Novamente,tinha-se aí variedade bastante grande de bens emjogo, com predomínio de cargos públicos – napolícia e em secretarias notadamente -, mas so-bremodo “proteção e garantia de condições de vidaa famílias ou a indivíduos perseguidos politica-mente” no estado14.

Ao lado de indicações e nomeações para car-gos e, também, de promoções no Exército, mui-tas vezes com envolvimento do Senador PinheiroMachado, chama a atenção, no material observa-do, a quantidade e o conteúdo das correspondên-cias trocadas entre o oficial interventor15 e o pa-dre de Juazeiro, Cícero Romão Batista. Sabendo-se do grande prestígio de que gozava aquele pa-dre em todo o estado do Ceará, não parece difícilcompreender o interesse de Setembrino em man-ter com ele relações estreitas e “amistosas”, comofaz ver a documentação.

Em meio a vários casos encontrados ao seexaminar a documentação de caráter pessoal dis-posta para Setembrino, pode-se mencionar umacarta do padre Cícero enviada ao oficial com osseguintes termos: “Confiando nas inequívocasprovas de consideração com [sic] V. Excª. me temhonrado, animo-me a escrever-lhe esta, esperan-do merecer-lhe um obséquio que me penhorariagrandemente. O meu amigo Dr. Carlos Livínio deCarvalho, Juiz de Direito do Crato, tem atualmen-te precisado de fazer tratamento em sua saúde,bastantemente arruinada aqui no Cariri, onde oclima lhe tem feito grande mal. Ora, atendendo aoseu passado, à maneira pela qual ele atravessou operíodo sombrio do Governo, ao qual V. Excª. tãohonrosa, digna e competentemente sucedeu, aten-

dendo ao muito que ele sofreu por causa dos nos-sos, tendo mesmo em grave perigo sua vida e pormais de uma vez; considerando tudo isso, lem-brei-me de pedir-lhe, como já o fiz ao Dr. Flo-ro16, ao Dr. Hermínio e ao Cel. ThomazCavalcanti, a nomeação do referido Dr. Livíniopara o lugar de Juiz de Direito dos Casamentos aíde Fortaleza [...]” (CENTRO DE PESQUISA EDOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEM-PORÂNEA DO BRASIL, Fundo Setembrino deCarvalho, doc. 140424/1; sem grifos no origi-nal).

A partir dessas referências mais gerais queservem como balizamento para o que se desejademonstrar ao longo do estudo, passa-se em se-guida à apresentação mais detalhada de dois ca-sos exemplares de trajetórias bem-sucedidas.

IV. DUAS TRAJETÓRIAS PROFISSIONAIS DE“SUCESSO”

IV.1. Setembrino de Carvalho: da caserna localao cenário nacional

O material de maior conteúdo disposto para oestudo da trajetória de Fernando Setembrino deCarvalho foi seu livro de memórias, editado em1950. De forma complementar, também foramlocalizadas informações de boa qualidade em seuarquivo pessoal no Centro de Pesquisa e Docu-mentação de História Contemporânea do Brasil(Cpdoc), da Fundação Getúlio Vargas (FGV), es-pecialmente em uma “caderneta de notas” que lheservira de base para diversos apontamentos sobrea “carreira”.

Muitas são as semelhanças entre a trajetóriade Setembrino e as dos demais oficiais compre-endidos no período examinado, sobretudo quantoà utilização do capital de relações sociais da famí-lia como recurso para a ascensão na “carreira”.No entanto, há que sublinhar-se a condição maisregional em que estava inserido inicialmente oconjunto das relações dispostas pela família da-quele militar, sem contatos importantes com ocentro do poder nacional – o que, em certa medi-da, foi compensado por intensas ligações com a14 Com respeito a esse tipo de situação, Landé (1977a.)

demonstra ser possível associar a busca de estabelecimen-to de relações baseadas na reciprocidade ao contexto socialem que as instituições não conseguem suprir satisfatoria-mente as necessidades da população, sendo postos em ação,assim, mecanismos alternativos que funcionam comoaddendas àquelas.15 Setembrino foi promovido a General, aos 52 anos,durante sua missão no Ceará.

16 Floro Bartolomeu da Costa, médico baiano e “Coronel-cliente” da família Acióli, uma das facções na disputa pelasupremacia política no Ceará, havia-se tornado o líder se-cular do movimento de padre Cícero e soubera utilizar ospropósitos deste para fins políticos. Ver mais a respeitoem Love (1975).

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“política” partidária no Rio Grande do Sul. Nessesentido, chama a atenção o envolvimento precocede Setembrino com a “política” – quando aindaocupava patente militar subalterna –, efeito daherança política legada a ele pelo pai.

Nascido em Uruguaiana, em 1861,Setembrino era filho de Fernando Vilela de Car-valho e de Felicidade Ferreira. À modéstia dascondições financeiras da família, Setembrinodestaca a “honradez” e o “alto conceito” de quesempre gozaram na sociedade local. Seu pai ini-ciara a vida, ainda muito jovem, como professorde colégios particulares em Porto Alegre, tendoem seguida uma experiência fracassada comocomerciante em Pelotas, antes de voltar ao ma-gistério em Uruguaiana. Mais tarde, obteve anomeação para funcionário da Alfândega, vindoainda a ocupar o cargo de escrivão da Mesa deRendas da cidade, no qual aposentou-se, comoAdministrador.

Sua mãe era natural de Santa Maria e “perten-cia a um dos ramos da grande e conhecida famíliaCarneiro da Fontoura, cujo tronco principal foi oantigo Marechal Carneiro da Fontoura, do Brasil“Colônia”, “avô” de Setembrino. Mulher de “vir-tudes peregrinas”, teve a vida devotada às causasbeneficentes, sendo dama benemérita da SantaCasa de Caridade de Uruguaiana, o que semprerendeu-lhe “excepcional relevo na sociedadeuruguaianense” (CARVALHO, 1950, p. 13).

A preocupação com os investimentos escola-res do filho é bem lembrada por Setembrino. Ape-sar da “pobreza” do pai, este sempre dispenderaas sobras do ordenado com a educação do filho, epor isso nunca faltaram-lhe recursos para estu-dar. Iniciou os estudos com o pai, primeiro emcasa e depois em um colégio por este fundado:“Aos 12 anos de idade, terminava o curso primá-rio e iniciava rudimentos de francês”. Dois anosmais tarde, foi para Pelotas e matriculou-se noColégio Reis, cujo diretor havia sido companheirode seu pai, e com quem mantinha “estreitas rela-ções de amizade”. Sua vida naquela cidade erasustentada por dois médicos amigos do pai, o qualqueria fazer do filho “orador e político”, pois eraele próprio “político”. No ano seguinte, uma vezterminados os “preparatórios”, Setembrino foi comum colega – José Barbosa Gonçalves, futuro Mi-nistro da Viação no governo Hermes da Fonseca– para a capital do estado a fim de prestar examena Instrução Pública, sendo plenamente aprova-

do. Matriculou-se, então, no Colégio Sousa Lobo,vindo a ser em regime de internato “condiscípulode Ernesto Alves, Borges de Medeiros e de outrosrapazes, que mais tarde representaram papel dedestaque na propaganda republicana, tornando-se figuras de relevo na política nacional” (idem,p. 20-22; sem grifos no original).

Nessa época, descontente com o internato eatraído pelos “dourados” dos oficiais da EscolaMilitar – ainda que não tivesse “pendores naturaispara a carreira das armas” – Setembrino decideoptar pelo Exército, mas não sem ter de conven-cer o pai, que “lhe havia destinado à medicina”, ea mãe, “que o queria ver advogado”. Finalmente,teve seu desejo satisfeito e pôde ingressar na Es-cola Militar, porém, “à condição de estudar enge-nharia militar”. De fato, a carreira de oficial doExército representava via importante de ascensãosocial àqueles agentes relativamente desprovidosde capital econômico (“o título de Alferes-alunotornara-se a grande atração dos moços que, semgrandes recursos financeiros, sonhavam com ri-sonho futuro”), dispostos a pagar por meio doesforço e do empenho sua posição social menosprivilegiada, mas, por outro lado, também capa-zes de mobilizar relações de base pessoal. Compoucas chances de realizar estudos superiores forado estado, a engenharia militar parecia-lhe “cami-nho de certo futuro” (idem, p. 23).

Seu ingresso no Exército ocorreu em 1877,aos 16 anos de idade. No ano seguinte, matricu-lou-se na Escola Militar, e em pouco tempo de-frontou-se com os mecanismos “pouco claros”de regulação da “carreira militar”, sendo-lhe ne-cessário acionar pessoas do relacionamento de seupai para obter uma promoção de rotina. Como opróprio oficial comenta, em suas anotações: “Era-me, nessa época, de relativa facilidade obter a pro-moção de Alferes ou 2º Tenente [...], uma vezsatisfeitas as exigências legais: meu pai era políti-co. Tinha bons amigos. Dentre eles o preclaroBarão de Ijuí, General Bento Martins Menezes,um valente da campanha do Paraguai. Ofereceu-se espontaneamente a meu pai, declarando queconseguiria facilmente com seu grande amigo,General Osório, Marquês do Herval, então Minis-tro da Guerra, minha promoção. Mandou dizeralgo nesse sentido” (idem, p. 24).

Tal situação referia-se à nomeação deSetembrino como sargenteante, condição neces-sária para chegar ao primeiro posto da hierarquia.

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Sendo-lhe exigido o título de Cadete, ao qual nãotinha direito, para preencher tal condição, e vendoaí a possibilidade de um bloqueio em sua carreira,Setembrino “não hesitou em socorrer-se, em tãodura conjuntura, do auxílio do Presidente da Pro-víncia”17.

Assim é descrito seu contato pessoal com ochefe do governo: “Ao anunciar-me em Palácio,declarando ser aluno da Escola Militar e filho deFernando Vilela de Carvalho, de Uruguaiana, tivea imediata e carinhosa acolhida da parte do Presi-dente. Interessou-se vivamente pelo meu caso:‘Vou nomear já seu pai Coronel da Guarda Nacio-nal18, por ser este o posto que compete pelos seusserviços ao partido, além de outros títulos quemuito o recomendam” (idem, p. 25).

Com o êxito de sua demanda, prosseguiu seusestudos em Porto Alegre até 1882, obtendo o cur-so das três armas, e deu continuidade na Escolada Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, de onde saiucom o curso de engenheiro militar e o grau de“Bacharel em Ciências Físicas e Matemáticas”.

Em 1887, casou-se, na cidade onde nasceu,com Leontina Damasceno Vilela, tendo oito filhos,dos quais cinco casaram-se com oficiais milita-res19 – quatro generais e um coronel – dois fo-ram engenheiros e um, Bacharel em Direito e Pro-curador da Justiça no estado da Guanabara. Esteúltimo, Fernando Vilela de Carvalho, o“Carvalhinho”, constantemente mencionado nosdocumentos examinados, foi interlocutor impor-tante de seu pai, com quem Setembrino “comen-tava”, por meio de longa correspondência, a situ-ação política do país. Pela posição ocupada pelopai, Carvalhinho obteve grandes benefícios em sua

“carreira profissional” e igualmente ajudou “ami-gos”, valendo-se das “influências” de que aqueledispunha.

À semelhança do constatado nos itinerários“profissionais” da grande maioria dos oficiais es-tudados, Setembrino teve um início de “carreira”pautado pelo serviço junto a oficiais bem-posicionados, postos normalmente ocupados combase em “indicações” e “convites”. Assim, em1888, é nomeado Secretário do Regimento de SãoGabriel junto ao Tenente-Coronel BernardoVasquez, futuro Ministro de Prudente de Moraes,como Tenente de Estado-Maior de 1ª Classe, eem seguida é convidado pelo Comando da Guar-nição e Fronteiras de Uruguaiana a servir comoSecretário. Mesmo que não seja possível deter-minar com certeza em que medida estas nomea-ções deviam-se às ligações de Setembrino – e so-bretudo de seu pai, homem da região – com oPartido Republicano de Júlio de Castilhos, há al-gumas indicações explicitadas pelo próprio oficialem questão e que revelam os vínculos políticos aísubjacentes.

Um caso esclarecedor refere-se ao “convite”por ele recebido, em 1890, a assumir a Secretariado Comando da Guarnição e Fronteiras de SãoBorja. Sendo esse tipo de Comando, à época, ge-ralmente exercido por generais honorários e ofi-ciais da Guarda Nacional, tratava-se de cargo re-vestido de caráter político20. Tendo aderido aoPartido Republicano, o General-honorário Fran-cisco Rodrigues de Lima, uma vez nomeado Co-mandante, “solicitou dos amigos políticos a indi-cação do nome de um oficial do Exército, paraseu secretário, cujas convicções republicanas fos-sem penhor seguro de alta confiança”. Dadas asligações de Setembrino com aquele partido, inici-adas com maior intensidade quando servira emSão Borja e aderira a um clube de propaganda re-publicana, foi ele recomendado ao citado Generalpor dois “amigos seus da época propagandista”:“Júlio de Castilhos, em telegrama, pediu-me aten-der ao convite, não regateando meus serviços àRepública”, anotou Setembrino em suas “memó-rias” (idem, p. 32).

17 “O Senador do Império Henrique D’Ávila ocupava acadeira de Presidente da província do Rio Grande do Sul. Asituação era liberal. Meu pai era correligionário. Tinhamrelações. Conheceram-se quando foi ele – Henrique D’Ávila– então deputado geral, à Uruguaiana defender o Barão deIjuí, chefe do partido local [...]” (CARVALHO, 1950, p.25).18 Não havendo vaga para o posto de Coronel na Comarcade Uruguaiana, foi-lhe concedida a patente de Capitão.19 A filha primogênita, Zaida, casou-se com FranciscoRamos de Andrade Neves, chefe do Estado-Maior do Exér-cito de 1930 a 1931, militar gaúcho pertencente a um grupofamiliar de “grande tradição” no Exército. Sobre o alto graude entrelaçamento de grupos familiares ligados ao universomilitar, ver Seidl (2002).

20 “Com a ascenção ao poder de um dos partidos militan-tes – liberal e conservador – aqueles comandos passavamaos generais honorários da facção que subia. Eles, em geral,eram chefes de partidos nas localidades em que residiam,sede dos Comandos da fronteira” (CARVALHO, 1950, p.31).

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A intensificação do envolvimento deSetembrino com o Partido Republicano ocorreu apartir daí. Ao voltar para sua cidade natal, já entãodeclarando-se “republicano histórico”, tomou parteativa na reorganização do partido ao lado do Co-ronel Antônio Azambuja Cidade que, “por sua atu-ação relevante na fase da propaganda e recursosfinanceiros, empunhava o bastão de mando emUruguaiana”. Deste modo, pela “confiança e em-penho” demonstrados, tornou-se seu “assessor nadireção da política local”, dirigindo a primeira cam-panha eleitoral do período republicano (Idem, p.32-33). Incluído na chapa liderada por Castilhos,obteve uma cadeira na Assembléia Constituinte de1891, permanecendo após isso na Assembléia dosRepresentantes.

Suas “atividades políticas” não duraram mui-to, pois romperia em pouco tempo – mesmo que“não publicamente”, como o diz -, com as “atitu-des discricionárias” do líder republicano, “a quemtodos deviam submissão absoluta”. O oficial con-siderava finda sua breve “carreira política” e eraagora “um desiludido da sinceridade política doshomens”; “desencantado com a política” e con-vencido da “incompatibilidade do exercício simul-tâneo da profissão militar e da atividade política”,retoma suas atividades como engenheiro militar(idem, p. 44). Ainda que aparentemente mal-su-cedida, a reconversão operada por Setembrino nointerior do espaço político, traduzida no acúmulode um capital político dentro de uma facção polí-tica ascendente, trar-lhe-ia ainda uma série de di-videndos em sua carreira militar.

Ao eclodir a Revolução Federalista, em 1893,assume o Comando do Batalhão “Defensores daRepública” e é em seguida convidado a incorpo-rar-se à Divisão comandada pelo General HipólitoAntônio Ribeiro, que o comissiona Tenente-Co-ronel. Promovido a Major de engenheiros, em1900, serve em Batalhão de engenharia criado emRio Pardo. “Interessado em desenvolver” seu Ba-talhão, Setembrino planeja empregá-lo na cons-trução da estrada de ferro Porto Alegre-Uruguaiana, e, para tanto, lança mão de algumasde suas “amizades” desenvolvidas ao longo dosanos.

Neste caso, vale-se das “relações” que manti-nha com o então Tenente-Coronel Bento ManoelRibeiro Carneiro Monteiro e seu irmão o BacharelJosé Vitorino21. Sabedor das ligações daquelesconterrâneos com o Marechal Mallet, Ministro da

Guerra, solicitou-lhes “interferência” na questão,sendo atendido e recebendo Bento Manoel o co-mando das obras a serem realizadas. A propósitode sua “amizade” com os Carneiro Monteiro, emum trecho bastante revelador do caráter das rela-ções pessoais que haviam longamente mantido,Setembrino presta-lhes uma espécie de tributo emsuas memórias, começando por lembrar do con-tato que iniciaram na Escola Militar e em seguidafalando em tom de homenagem:

“Deixo aqui consignada imortal saudade de tãograndes amigos, à [sic] cuja influência devo umaparte dos progressos realizados na carreira mili-tar. Servi-os igualmente, especialmente ao queri-do Marechal Bento Ribeiro, pela comunidade pro-fissional, com dedicação, amizade e desinteresse.Constata-se seu reconhecimento aos serviços quelhe prestei no documento já transcrito [elogio aoentão Major Setembrino, publicado no Aviso doMinistério da Guerra, n. 273, em 1914], e emoutros constantes de minha fé de ofício” (idem,p. 23; sem grifos no original).

Situação muito semelhante à precedente ocor-reria alguns anos mais tarde, novamente tratan-do-se do interesse de Setembrino em construiruma estrada de ferro, desta vez ligando Cruz Altaao rio Uruguai. Elaborados os estudos, o oficialfez o projeto chegar ao conhecimento do Gover-nador pelo “intermédio do grande patriota sena-dor Pinheiro Machado”, a quem em uma cartaeram demonstradas suas “conveniências, apelan-do para o seu alto prestígio junto ao poder públi-co” (idem, p. 72). Mais uma vez teve sucesso emseu intento o Tenente-Coronel e futuro GeneralSetembrino, que também fora nomeado para che-fiar as obras, acumulando assim os cargos deComandante e de Engenheiro Chefe.

A essa altura de sua carreira – até então umasucessão de êxitos que muito pouco devia ao aca-so –, passa a desfrutar de certo “prestígio” em

21 Eram filhos do General Vitorino José Carneiro Monteiro(Barão de São Borja), militar de “grande prestígio e poder”.Bento Manoel chegou ao generalato e era “ligado por laçosde sangue, de amizade e relações pessoais a grandes vultosda política republicana brasileira” (PORTO ALEGRE, 1922,p. 139). José Vitorino, Bacharel em Direito, teve uma “bri-lhante” carreira política como republicano e chegou a serDeputado Estadual e Federal, duas vezes Senador, Presi-dente do Rio Grande do Sul e ainda Ministro do Brasil noUruguai.

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seu meio. A “reputação de bom soldado”, que,segundo ele próprio, formara-se “naturalmente”em torno de sua “obscura individualidade” (Idem,p. 78), e que revelava a posse de cabedal significa-tivo de relações pessoais – com agentes de altocapital político e social, militares e civis –, chegavaassim ao ponto de permitir-lhe encetar carreira na-cional, próxima às altas esferas do poder. De fato,a probabilidade de se galgar os mais altos postos nahierarquia era muito superior uma vez que se dis-pusesse do acesso e de contatos dentro dos níveiscentrais da instituição, isto é, daqueles círculos maisdiretamente imbricados com a lógica da “política”.Assim, em passagem muito elucidativa, as própri-as palavras de Setembrino traem-no ao comentaros mecanismos reais de funcionamento da “carrei-ra” de oficial – suas “injustiças e favoritismos” –,que, aliás, sempre beneficiaram-no:

“Fora do Rio de Janeiro os esforços e abnega-ção dos servidores do país não são aquilatadosdevidamente pelos poderes públicos. Militares ecivis que servem em longínquas paragens, arre-dados, portanto, do ambiente governamental, afas-tados dos círculos da grande metrópole, em quetêm proeminência as reverências cobiçosas e ges-tos lisonjeiros, criadores de méritos, embora fic-tícios, são sempre esquecidos quando se trata degalardoar serviços. O devotamento, o sacrifício ea inteligência dos ausentes não experimentam deordinário os estímulos da justiça. O acesso aospostos elevados não é um incentivo ao fortaleci-mento de energias. O interesse de ordem geral,que deveria sempre primar, é obscurecido pelo deorigem privada, sentimental. Em uma palavra, ofilhotismo é o princípio dominante” (idem, p. 87-88; sem grifos no original).

Convidado pelo Marechal e, então, candidatoà Presidência da República, Hermes da Fonseca,a assumir a chefia do Gabinete do Ministro daGuerra, General Antônio Adolfo da FontouraMenna Barreto, após as eleições Setembrino échamado ao Rio pelos Ministros da Guerra e daViação22, junto aos quais havia “providenciado” o“seu grande amigo” General Bento Ribeiro, nessaépoca Chefe da Casa Militar do Presidente NiloPeçanha” (Idem, p. 89). Alguns meses depois, eranomeado por Hermes para o posto de Coronel noCorpo de Engenheiros e, em seguida, indicado pelo

Presidente para o Gabinete do conterrâneo MennaBarreto23. A esse respeito, diz Setembrino que haviauma circunstância a mais para o General MennaBarreto ter aceitado sua indicação como Chefe,pois “na qualidade de riograndense, seu patrício,portanto, bem que não partidário, mantinha euexcelentes relações com os próceres da situaçãopolítica dominante em nosso Estado natal. Ele es-tava ligado a esta política. Era íntimo amigo dosenador Pinheiro Machado [...]” (idem, p. 91).

Quatro anos após chegar ao centro do país econsolidada sua lealdade aos principais líderes dafacção do poder nacional e local, começaria a tero oficial gaúcho confiadas a si importantes “mis-sões político-militares”. Em 1914, com o apoiode Pinheiro Machado, é nomeado Interventor Fe-deral com “plenos poderes” para pacificar o esta-do do Ceará, imerso em crise política. Exitoso nocumprimento da tarefa e promovido ao generalato,convoca eleições em que vence o candidato porele apoiado, Coronel de Engenharia BenjaminLiberato Barroso. Esse sucesso como Interventorrendeu-lhe vários convites para cargos e comis-sões, inclusive a oferta de uma cadeira de Sena-dor da República pelo estado do Ceará, entretan-to, recusada. No mesmo ano, é também nomeadopara o comando das operações na Campanha doContestado. O resultado é o mesmo e novamenterecebe vastas ofertas políticas.

Em 1916, é eleito pela primeira vez Presidentedo Clube Militar e, em 1923, depois de nomeadoChefe do Estado-Maior do Exército – primeiroposto inferior ao de Ministro – e, finalmente, Mi-nistro da Guerra de Artur Bernardes24, recebe umsegundo mandato para a presidência daquela ins-tituição. Ainda em 1923, atua como intermediadornas negociações de paz nos conflitos do Rio Grandedo Sul, cujo resultado foi a garantia da legitimida-de do poder de Borges de Medeiros, eleito pelaquinta vez consecutiva. Exercendo o cargo deMinistro até 1926, e mesmo cogitado para con-correr à Presidência da República, Setembrino deCarvalho afasta-se da “vida pública”, graduadoMarechal do Exército.

22 Era, então, Ministro da Viação o seu “amigo e colega dejuventude” José Barbosa Gonçalves.

23 Possuíam um parentesco distante, sendo a mãe deSetembrino parente dos Carneiro da Fontoura.24 Quando servira na 4ª Região Militar, em Minas Gerais,Setembrino mostrara-se “simpático” à candidatura deBernardes, com quem travou diversos contatos e cujo nomeapoiou no episódio das “cartas falsas”.

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IV.2. Bertoldo Klinger: a “ética da farda”

O estudo da trajetória de Bertoldo Klinger re-vela condições sociais de realização “profissional”que diferem, em certa medida, daquelas apresen-tadas pelo restante dos agentes estudados, o quetorna sua exposição analiticamente interessante.Os principais recursos utilizados para a ascensãoà elite do Exército continuaram basicamente osmesmos aos até agora vistos, ou seja, relaçõespersonificadas com componentes dos altos cír-culos militares e com agentes ligados às esferasmais elevadas do poder político. No entanto, oque há a ser destacado no caso em pauta é a for-ma como tais recursos, além de outros mais es-pecíficos, foram obtidos e mobilizados, figuran-do situação particular.

Contrariamente ao que ocorre na maioria doscasos examinados, em que, de modo geral, osagentes eram, já de início, detentores de montan-te relativo de capital social herdado e cuja estrutu-ra fundamental baseava-se em relações do grupofamiliar – tratando-se muitas vezes de “famíliasde tradição militar” – com agentes próximos aopoder político e à burocracia estatal, tem-se nocaso de Klinger situação diversa. Ao passo que amaior parte das trajetórias dos componentes daelite estudada seguia direção que ia da utilizaçãode relações com agentes socialmente bem-posicionados – políticos e militares de alta paten-te, em especial – à sua reconversão em trunfosmilitares e também de outras naturezas, vê-se emseu caso, marcado pela ausência relativa de umcapital sólido de relações, um investimento muitogrande na aquisição de recursos de origem esco-lar e cultural (orientado desde cedo pelos pais) e aadoção de estratégias de carreira mais arriscadas.Assim, à medida que seus “sucessos” e, em par-ticular, sua concepção marcante frente à “profis-são” permitiam-lhe acumular certo “prestígio”militar, teve a possibilidade de desenvolvergradativamente “boas” relações internas e exter-nas à instituição, as quais seriam fundamentais paraseu progresso futuro. Por fim, ao atingir posiçãosaliente no seio do Exército, ocorre seuenvolvimento mais direto com a “política”, comono “Movimento de 1930” e na Revolução Paulistade 1932, de onde resultam tanto sua promoção aogeneralato quanto sua reforma precoce.

Um dos indícios mais evidentes do esforçoempreendido por Klinger para a obtenção de re-cursos culturais e escolares, mas também da trans-

missão doméstica de um determinado capital cul-tural pelos pais e sua forte orientação ao filho paraos estudos25, encontra-se em suas disposições àescrita e, de modo geral, às atividades ligadas àliteratura e ao jornalismo. Ao longo da vida, pro-duziu quantidade extraordinária de material escri-to, chegando a um total de 24 livros, entre tradu-ções de obras alemãs e participação em coletâne-as e outros, e mais de 140 artigos, incluindo no-tas, editoriais e traduções. Suas Narrativas auto-biográficas, que serviram como principal fontepara este trabalho, são compostas de sete longosvolumes e foram editadas entre 1944 e 1953, cadavolume correspondendo a um posto na hierarquiamilitar. Além disso, Klinger defendia uma Orto-grafia simplificada brasileira, por ele criada em1940 e cuja idéia central era “simplificar” e “raci-onalizar” a língua portuguesa ao se estabelecer paracada fonema apenas um grafema (letra). Toda suapublicação a partir daquela data, o que inclui aAutobiografia, foi escrita segundo aquelas regras.

Bertoldo Klinger nasceu em Rio Grande, em1884, filho de um imigrante austríaco e de umadescendente de alemães. Seu pai trabalhou como“colono” e professor até 1883, tornando-se, en-tão, proprietário de uma cervejaria, em seguidaampliada com a produção de malte. Em 1891,pouco depois da promulgação da Constituinte quepermitia a nacionalização dos imigrantes, foi no-meado Capitão da Guarda Nacional, chegando aoposto de Major e também ao de Conselheiro Mu-nicipal. Alguns anos mais tarde, Antônio Klingerfechou suas duas fábricas e transformou-se emrepresentante de uma poderosa cervejaria sediadaem Pelotas e pertencente a seus dois cunhados,ao mesmo tempo em que abria uma fábrica desabão e de velas, depois transformada em fábricade gelo. Além dos cunhados, outros parentes pró-ximos possuíam cervejarias em Porto Alegre e emSão Lourenço. Pelo ramo materno, descendia da“família” Ritter, a quem mais tarde, quando já re-formado, Klinger dedicará uma (última) obraintitulada Uma família Ritter no Brasil desde 1846,em que conta como em um século de existênciano país esta já “somava 385 famílias, com cercade 2 000 pessoas”.

25 A respeito das relações entre a posição social dos agen-tes, a transmissão do capital cultural e o incentivo familiarao investimento em diferentes recursos escolares e cultu-rais, ver Bourdieu (1966; 1979).

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A ênfase nos estudos, desde pequeno, é umdos traços marcantes de sua infância e adoles-cência, o que futuramente trar-lhe-ia benefíciosimportantes na carreira que vislumbrava. Em casa,falava alemão com os pais e recebia aulas particu-lares para aperfeiçoar a língua, também receben-do “bom ensino” de francês. Fez os estudos bási-cos em dois “colégios alemães” e em um “fran-cês”, em Rio Grande, onde permaneceu até os 15anos de idade, quando entrou para a Escola Pre-paratória e de Tática de Rio Pardo. Atraído peloExército “desde que era criança”, sem “jamais terpensado em outra profissão”, teve seu ingressona carreira em 1899. Segundo Klinger, esse lhe“foi facilitado [...] porque me apresentei carrega-do de ‘preparatórios’, pois aos treze anos equatorze fizera, com bom êxito, na delegacia dainstrução pública, [...] exames de português, fran-cês, alemão, geografia, história, aritmética, álge-bra e geometria”. E, além disso, “essa bagagemme permitiu fazer em dois anos o curso daquelaescola, que normalmente era de três”. De “estatu-ra muito baixa”, temendo não ser aceito no Exér-cito, levou consigo duas “cartas de recomenda-ção”, cuja origem não revela: uma ao Comandan-te da Escola e outra a um Capitão-Professor(KLINGER, 1944, p. 18).

Uma vez aceito, destacou-se rapidamente emmeio aos colegas e recebeu o prêmio de “melhoraluno da Escola”. Dá continuidade aos estudosmilitares na Escola da Praia Vermelha, mas é ex-cluído em 1904 por tomar parte na Revolta daVacina, quando é preso e em seguida anistiado.Transferido para o Realengo, pode então concluiros cursos de Engenharia e de Estado-Maior. Ter-minada sua formação como oficial, após servirem diversas comissões de engenharia, “surge-lhea oportunidade” de tomar parte em um grupo deoficiais que estagiariam na Alemanha e de fatoconsegue uma vaga.

A partir desse estágio, do qual “tirou grandeproveito pela familiaridade com a língua” e “rece-beu grandes elogios de seus superiores alemães”,a “carreira” de Klinger pautar-se-ia pela constantedefesa da utilização dos esquemas organizacionaise avanços técnico-bélicos alemães. Ao retornar doestágio, juntamente com outros oficiais, fundou efoi redator-chefe da revista militar A Defesa Na-cional, que tornar-se-ia o principal meio de divul-gação daqueles princípios. Ao lado de uma defesada adoção das técnicas e materiais empregadospelo exército alemão, colocava-se igualmente ên-

fase na aplicação da lei do recrutamento por sor-teio, na ampliação do ensino militar secundário esuperior, e na “modernização” do Exército comoum todo26.

Valendo-se habilmente desse trunfo, Klingerdedicaria grandes esforços, especialmente atravésde artigos na revista e em jornais, em divulgarsuas posições com respeito à “identidade militar”e às “tarefas do Exército nacional”. Inicialmentecentrado em defender as técnicas e os armamen-tos alemães e a constituição de uma instituiçãomilitar “moderna”, à medida que adquiriu maiornotoriedade e alcançou postos mais elevados nahierarquia passou a tomar posições mais explíci-tas e marcadas frente aos mecanismos de ascen-são militar e ao “universo da política”. Em suma,dado o desfavorecimento imposto por suas con-dições sociais, cujos recursos tinham pouco va-lor real no interior da esfera militar, Klinger tendiaa adotar estratégias de maior risco, como fica claroem seu incessante questionamento das regras queregulavam a carreira de oficial. Com efeito, nãohá nada de fortuito no fato de opor-se com tantaveemência a mecanismos que valorizavam recur-sos dos quais não dispunha, ou seja, aqueles combase em relações pessoais e materializados no “fa-voritismo”, “filhotismo”, “apadrinhamento” e ou-tros equivalentes. Em contrapartida, lançava-se na“luta” pela valorização do “oficial de tropa” e do“serviço arregimentado”, da “instrução” e “pre-paração técnica” e daquilo que chamava de “reli-gião” e “higiene” do “trabalho”: “[...] A tropa eraociosa, descurada pelo governo, menoscabadapelos oficiais habilitados, de modo que os jovenscheios de sabença, egressos da escola, procura-vam comissões de engenharia, militar ou civil, ouo magistério militar, ou, como pis aller, a buro-cracia reiúna ou lugar junto a algum alto coman-do. Só os ‘malucos, ou os de todo ‘pagãos’, sempadrinho, iam dar à praia como náufragos, nal-

26 Pela influência da doutrina alemã em suas argumenta-ções, os oficiais agrupados em torno da revista passaram aser chamados de jovens turcos, em alusão aos militaresturcos que, depois de estagiarem na Alemanha, introduzi-ram reformas políticas e militares em seu país e foramdecisivos no processo de “modernização” institucional li-derada por Kemal Atatürk. Ver mais a respeito em McCann(1984). Para questões gerais sobre o fenômeno de importa-ção de modelos institucionais e outros bens simbólicos porfrações da elite com passagem pelo exterior, bem comosobre as lutas por redefinições institucionais, ver Badie(1992).

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gum batalhão ou regimento, para se entediarem,jogar damas ou gamão, tomar café e palestrar,vencer antigüidade como meros canhões nos par-ques” (idem, p. 183).

“Um clássico exemplo do crônico desamor dosdirigentes às classes armadas têmo-lo no manejodas promoções por seleção. Não pode o bom sen-so admitir, sequer deixar conceber, a simplóriahipótese de que a folga das malhas da regulamen-tação possa ser usada senão com o critério supe-rior da justiça e do interesse supremo do serviço,possa ser explorada, malversada, ao talante dasdisposições pessoais de munificência para uns oude postergação para outros. Entretanto esse abu-so, esse desregramento das promoções por sele-ção, é comum” (KLINGER, 1948, p. 383). “Acura de seu descalabro [do Exército], obra e gló-ria da bacharelice civil e fardada que nos tem des-valido, exige simplesmente isto: a higiene do tra-balho” (idem, p. 439; grifos no original).

A intensidade das “críticas” e “comentários”de Klinger à “realidade” do Exército, crescente apartir da criação de A Defesa Nacional27, teveimpacto forte sobre sua posição no interior da ins-tituição. Em 1918, ao pronunciar-se contrário àescolha de ministros civis para pastas militares eao contrato de uma missão militar francesa queseria encarregada de promover uma reorganiza-ção institucional, teve seu nome excluído do qua-dro de promoções para o período. Particularmen-te quanto à missão francesa, fazendo parte dacomissão de oficiais encarregada de recebê-la,manifestou “restrições sobre alguns aspectos dainstrução” e a “incapacidade de preencher certaslacunas em seus objetivos”. A este posicionamentofrente à missão seguiu-se seu envio como AdidoMilitar ao Peru, afastando-o temporariamente docentro das discussões militares.

De volta ao Brasil em 1922, opôs-se ao levan-te tenentista eclodido no Rio de Janeiro e no MatoGrosso, constituindo-se aos poucos em um deseus maiores opositores. Segundo o oficial gaú-cho, esse movimento – como será também o caso

com o “clube” 3 de Outubro, núcleo militar dogolpe de 1930 – era senão a expressão de “inte-resses meramente pessoais” perpassados por “am-bições de caráter político”. No entanto, ao mes-mo tempo em que condenava o envolvimento demilitares com a “política” em um dado plano, sus-tentava-o em outro, “mais elevado”, “pessoalmentedesinteressado”. E, para isso, aproximando-secada vez mais de uma posição nitidamente milita-rista, no sentido da concepção de um oficialatomilitar como fração social e politicamente privile-giada para a ação política nacional, Klinger proce-dia em seus textos a uma redefinição da concep-ção de “política”, dividindo-a entre a “verdadeirapolítica” e a “politicagem”. Da primeira, e exclu-sivamente desta, deveriam ocupar-se por exce-lência os militares, já que seriam “melhor prepa-rados” para executar as tarefas de “interesse na-cional”, “sem particularismos” e “interesses deoutra natureza”: “[...] Chega-se à conclusãoirrefutável de que a profissão militar é precisa-mente aquela que, intrinsecamente, maior aptidãocria no cidadão para o julgamento dos interessescoletivos nacionais e o exercício dos cargos dire-tores da política nacional. Em vez do tão recla-mado afastamento dos militares, inclusive com oingênuo argumento ao parecer paternal, de suainexperiência dos ‘processos’ políticos, [...], deve-se justamente considerar as Forças Armadas comoas fontes ideais para o recrutamento de bons po-líticos”.

Os homens da defesa nacional são pois, pordever de ofício, os que acima de seus interessespessoais, dilatados até a classe, visam sempre emsuas ações e cogitações os interesses conjuntos detodas as classes que formam a nação [...]. Assimhabituados, são pois eminentemente aptos paraos altos cargos políticos, subentendido que já te-nham atingido a necessária maturidade de espíri-to, a imprescindível experiência da vida.

Têm os chefes militares uma base incompará-vel para o exercício dos cargos diretores do país.E a investidura para o supremo posto de direção éverdadeiramente um magno problema de defesanacional. A quem mais do que aos militares podeentão, e deve, interessar esse problema? Não é bemcerto até, que aí se trata de alta questão de Estadomaior? [...] Os militares devem ter horror à politi-cagem, e [...] são particularmente bem dotados paraparticiparem da verdadeira atividade política”(idem, p. 379-381; sem grifos no original).

27 Foi seu redator-chefe de 1913 a 1915 e de 1918 a 1920.Também escrevia com regularidade na imprensa civil, “maisassiduamente na ‘Gazeta de Notícias’, graças às relaçõesque o nosso companheiro de redação Pantaleão Pessoa es-tabelecera com o simpático secretário Cândido Campos,relações jornalisticamente concretizada em ‘sueltos’ mili-tares que Pessoa fornecia” (KLINGER, 1946, p. 141).

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Ao tentar definir os limites do legítimo e doilegítimo, quanto à participação dos militares na“política”, por meio de categorias como defesa einteresse nacional, politicagem e verdadeira ati-vidade política, Klinger passava também a afir-mar a “vocação” das Forças Armadas para o pa-pel de liderança do país, identificando-as com os“mais altos valores da nação”. Entretanto, aindaque apresentasse tais concepções, seuenvolvimento mais direto em movimentos de cu-nho político só ocorreria no período próximo àsmudanças ocorridas em 1930, das quais foi umdos protagonistas. Até lá, seria procurado em di-versas oportunidades para liderar levantes e cons-pirações contra a situação política em vigor,notadamente pelos líderes tenentistas Joaquim eJuarez Távora, com quem o oficial manteria con-tato ao longo de anos. Por suspeita de colabora-ção com os rebeldes que ocuparam São Paulo portrês semanas, em 1924, Klinger foi julgado e pre-so, embora negasse a acusação, afirmando so-mente ter sido procurado durante a faseconspirativa28.

Nesse período, aumenta suas atividadesjornalísticas através de “colaboração” no periódi-co O Jornal, mediante “recomendação sua ao Dr.Chateaubriand”, feita pelo Major Leitão de Carva-lho, e ainda retornaria à redação de A Defesa Na-cional. Com respeito às suas atividades no quedenomina a “frente” da imprensa, Klinger escre-ve: “De qualquer modo eram ainda, a bem dizer,serviço militar: com a pena, utilizando a mais am-pla publicidade, eu prolongava e aumentava a mi-nha atuação profissional, com tendências de dou-trinação, para além e acima do estreito raio dasminhas funções militares” (KLINGER, 1950, p.101-102). De fato, amplamente conhecido por suaspublicações, estas forneciam-lhe canal importan-te de contato com os principais líderes políticosdo país. Em 1929, Klinger recebe o convite deAssis Chateaubriand para conversar com Osval-do Aranha e Afrânio de Melo Franco – dois líde-res oposicionistas pertencentes à Aliança Liberal– e apoiar a chapa Getúlio-João Pessoa. Inicial-mente “avesso à idéia”, meses mais tarde, apósentendimento promovido por seu “velho amigo”,

General Malan, um dos subchefes do Estado-Maior do Exército, Klinger assume a chefia doEstado-Maior do 1º Grupo de Regiões Militares(sediado no Rio), comandado pelo General gaú-cho João de Deus Menna Barreto, a quem Klingerdiz ter convencido a aderir ao movimento.

Uma vez realizada a destituição do PresidenteWashington Luís e dominada a situação pelos “re-volucionários”, passa a comandar o Estado-Mai-or das autodenominadas “forças pacificadoras”,isto é, os contingentes da capital comprometidoscom o golpe, e é também nomeado Chefe de Po-lícia do Distrito Federal. Porém, em pouco tem-po, viria a romper com os “ideais” da revolução,segundo ele, “traídos” em nome de todos os víci-os que sempre condenara, mas principalmente pelaaplicação de regras externas na gestão das carrei-ras de oficiais do Exército, como ocorreu com asrápidas promoções de oficiais “revolucionários”e, em particular, no caso dos Primeiros-Tenentespromovidos “por merecimento”29.

Ele próprio fez parte da primeira leva de gene-rais escolhidos pelo novo governo, ao lado de GóisMonteiro. Ainda Tenente-Coronel, em 1931, foipromovido a Coronel e General no espaço de doismeses (!), tornando-se um dos mais jovens gene-rais do Exército brasileiro de toda a República,aos 47 anos de idade. Em seguida à promoção, énomeado para servir em Mato Grosso (“FarWest”), como “forma de afastá-lo do centro dopoder” (KLINGER, 1951, p. 23), demonstrando-se, então, cada vez mais hostil à correntehegemônica dos “tenentes”.

Quando no Mato Grosso, estabeleceu conta-tos no Rio de Janeiro com oficiais igualmente con-trários ao tenentismo e ao Governo Provisório, osquais organizaram a União da Classe Militar(UCM), para “defender o reforço da disciplina e oafastamento das forças armadas da vida política”.A partir desse núcleo, formaram-se os primeirosentendimentos entre correntes militares dissiden-tes e as forças paulistas que também combatiamo governo central e defendiam a devolução daautonomia estadual e a reconstitucionalização dopaís, liderados todos pelo General gaúcho IsidoroDias Lopes. Klinger adere ao movimento e assu-

28 Em suas Memórias, Juarez Távora afirma que a parti-cipação de Klinger fora bem mais expressiva, pois teria eleintegrado o Estado-Maior do General Isidoro Lopes, seuconterrâneo.

29 Cabe lembrar que desde a introdução do regulamento de1850, as promoções até o posto de Capitão deveriam serexclusivamente regidas pelo princípio da antigüidade, su-bentendida a posse do curso das armas.

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me o comando das “forças constitucionalistas”,que desencadearam ação em São Paulo, em 1932:“Essa minha invariável, inflexível orientaçãoconstitucionalista, anti-ditatoriana, não me deman-dava nenhum esforço de elaboração de opiniãopessoal. Os oficiais das Forças Armadas eram ví-timas, diretas ou afins, dos desrespeitos aos fun-damentais princípios das instituições militares;eram alvo predileto dos requestos (sic) e sedu-ções, mas também das perseguições; e em grandenúmero fraquejavam, optando pela adesão ao si-nistro bando, mal-intencionado, aproveitador –mascarado de idealismo. Eis porque os chefesmilitares, de par com sua personalidade a zelar,tinham que, um dia, tomar posição, envolver-se,ainda que sem querer, para defesa de suas prerro-gativas e para honrar suas responsabilidades, es-tas perante os comandos e perante a nação” (idem,p. 35; sem grifos no original).

Com a derrota da revolução, Klinger é preso eexilado em Lisboa, onde, juntamente com outrosoficiais “constitucionalistas”, cria um conselho degenerais para reorganizar o movimento. Sua vi-são e posições sobre esses fatos foram relatadasem obra escrita em conjunto por diversos ofici-ais, intitulada Nós e a ditadura – a jornada revo-lucionária de 1932 (KLINGER, 1933). Depois doexílio, dedicou-se com intensidade à literatura,redigindo suas memórias, traduzindo publicaçõesalemãs e, ainda, realizando estudos genealógicosda família materna e de uma nova ortografia paraa língua portuguesa (cf. KLINGER, 1962).

V. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como procurou-se tornar evidente, as condi-ções sociais e culturais de formação da elite doExército brasileiro, durante o Império e a I Repú-blica, apontam para o funcionamento de meca-nismos híbridos de recrutamento e seleção, regu-

lados por lógicas contraditórias em que fundem-se princípios meritocráticos (títulos escolares,tempo de serviço, bravura) e extrameritocráticos(relações personalísticas, notoriedade política) paraa ascensão na carreira. Sem desconhecer os efei-tos da expansão do sistema escolar militar e a ado-ção de critérios formais de regulação, o estudoprocurou explorar os impactos objetivos de taisinovações sobre aquela esfera profissional, dandoespaço à análise das variadas combinações de re-cursos e estratégias acionados pelos agentes so-ciais, em especial, o uso de relações baseadas nareciprocidade pessoal e as tomadas de posiçãopolítica.

A reconstituição do espaço militar brasileiro apartir do exame das trajetórias de altos oficiaisparece contribuir, adicionalmente, à compreensãodas concepções que os agentes possuem acercado legítimo e do ilegítimo, as condutas sendo li-das, então, de modo variável segundo o ponto devista adotado e a posição ocupada no espaço so-cial. Noções como “carreira”, “mérito”,“profissionalismo”, “moderno”, “ultrapassado”,“favoritismo”, “filhotismo” “politicagem”, entreoutras, são categorias vocalizadas por indivíduosem constante disputa pelas redefinições das fron-teiras do espaço em que se movem e dentro doqual procuram ocupar posições vantajosas. Porfim, a análise detida das vias (por vezes tortuo-sas) de consagração social dos oficiais do Exérci-to no contexto examinado procura trazer nova luzsobre as transformações do espaço político e osprocessos de inovação institucional em curso noBrasil do período, dos quais os personagens aquiapresentados são ao mesmo tempo indícios e ato-res.

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MILITARY ELITES, TRAJECTORIES AND POLITICAL-INSTITUTIONALREDEFINITIONS (1850-1930)

Ernesto Seidl

This study looks at the social and cultural conditions of the formation of the Brazilian army duringthe Empire and the First Republic. Within a context of weak military autonomy vis-a-vis other socialspheres, our results point to the functioning of hybrid recruitment and selection mechanisms regulatedby contradictory logics that fuse meritocratic principles (academic degrees, years of service, courage)and extra-meritocratic ones (personalist relationships, political notoreity) for the purposes of promotion.Without denying the effects of the expansion of the military school system and the adoption offormal regulation criteria, our study aims to explore the objective impacts of such innovation overthat professional sphere, permitting the analysis of the varied types of resources and strategiesemployed by social agents, in particular the use of relationships based on personal reciprocity andtaking political positions. The reconstitution of the Brazilian military space through the examinationof the trajectories of high level officials seeks to contribute to an understanding of what conceptionsagents present as legitimate or illegitimate, with conducts being read in variable ways according tothe viewpoint adopted and the position occupied within social space. Through an in-depth presentationof two particular trajectories, we note how relationships between social practices, conceptions andmeanings associated with particular agents and groups and the processes of institutional re-definitionthey are located within are articulated, seeking to shed new light on the question of the transformationof political space and the processes of institutional innovation underway in Brazil during the period.

KEYWORDS: military elite; Army; meritocracy; clientelism; social trajectories.

ÉLITES MILITAIRES, TRAJECTOIRES ET REDÉFINITIONS POLITICO-INSTITUTIONNELLES (1850-1930)

Ernesto Seidl

L’étude examine les conditions sociales et culturelles de la formation de l’élite de l’Armée brésilienneentre l’Empire et la Première République. Dans un contexte d’autonomie réduite du militaire àl’égard des sphères sociales, les résultats indiquent un fonctionnement des mécanismes hybrides derecrutement et de sélection réglés par des logiques contradictoires intégrant des principesméritocratiques (titres scolaires, temps de travail, hardiesse) et extra-méritocratiques (relationspersonnelles, renommée politique) en vue de l’ascension dans la carrière. Sans méconnaitre leseffets de l’expansion du système scolaire militaire et l’adoption de critères formels de reglémentation,l’étude a essayé d’exploiter les impacts objectifs de telles innovations sur la sphère professionnellece qui rend possible l’analyse des combinaisons variées de recours et de stratégies mises en marchepar les agents sociaux, surtout l’emploi de relations basées dans la réciprocité personnelle et lesprises de position politique. La reconstituition de l’espace militaire brésilien à partir de l’examen destrajectoires de hauts officiers cherche à contribuer à la compréhension des conceptions que lesagents présentent comme légitime ou illégitime, les comportements étant lus de manière variableselon le point de vue adopté et la position occupée dans l’espace social. Au moyen d’une présentationen profondeur de deux trajectoires, on montre comment s’articulent les relations entre pratiquessociales, conceptions et significations associées à certains agents et groupes et les processus deredéfinition institutionnelle dans lesquels ils sont inserés, tout en cherchant à apporter une nouvellelumière aux transformations de l’espace politique et les processus de l’innovation institutionnelle encours au Brésil de cette période.

MOTS-CLÉS: élites militaires ; Armée ; méritocratie ; clientélisme politique ; trajectoires sociales.