eliene lopes faria€¦ · connaissance. dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils...

229
Eliene Lopes Faria A aprendizagem da e na prática social: um estudo etnográfico sobre as práticas de aprendizagem do futebol em um bairro de Belo Horizonte Belo Horizonte Faculdade de Educação da UFMG 2008

Upload: others

Post on 25-Sep-2020

3 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

Eliene Lopes Faria

A aprendizagem da e na prática social: um estudo etnográfico sobre

as práticas de aprendizagem do futebol em um bairro de

Belo Horizonte

Belo Horizonte Faculdade de Educação da UFMG

2008

Page 2: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

2

Eliene Lopes Faria

A aprendizagem da e na prática social: um estudo etnográfico sobre as práticas de aprendizagem do

futebol em um bairro de Belo Horizonte

Tese apresentada ao Programa da Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Educação. Orientadora: Profª. Dra. Ana Maria Rabelo Gomes

Belo Horizonte Faculdade de Educação da UFMG

2008

Page 3: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

3

Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Educação Programa de Pós-graduação Tese intitulada A aprendizagem da e na prática social: um estudo etnográfico sobre as práticas de aprendizagem do futebol em um bairro de Belo Horizonte, de autoria de Eliene Lopes Faria, analisada pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores:

______________________________________________________________ Profª. Dra. Ana Maria Rabelo Gomes – Orientadora

______________________________________________________________ Prof. Dr. Valter Bracht - UFES

______________________________________________________________ Profª. Dra. Maria Cristina Magro

______________________________________________________________ Prof. Dr. Tarcísio Mauro Vago - FAE/UFMG

______________________________________________________________ Prof. Dr. Luiz Alberto Oliveira Gonçalves - FAE/UFMG

Belo Horizonte, outubro de 2008

Page 4: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

4

AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos aqueles que, de algum modo, participaram da construção deste trabalho... Agradeço à minha orientadora, Profª. Dra. Ana Maria Rabelo Gomes, pelo acolhimento e aposta na pesquisa, pelo respeito ao meu processo de formação, pela generosidade da orientação atenciosa e por desafiar-me na busca de outras trilhas...

Aos participantes da pesquisa (jovens, professores de educação física e treinadores de futebol) agradeço a disponibilidade e receptividade. Aos Professores Luiz Alberto, Bernardo Jefferson e Jocimar Daolio, agradeço as contribuições no exame de qualificação. Aos colegas de doutorado, agradeço a partilha do processo. Na Faculdade de Educação, também agradeço aos funcionários da Pós-Graduação. Aos amigos da Escola de Educação Física e da Faculdade de Educação, agradeço a amizade, os incentivos e as contribuições. Aos professores do Centro Desportivo da Universidade Federal de Ouro Preto, agradeço o apoio ao doutoramento. Agradeço à Rosângela pela colaboração na transcrição das entrevistas e à Elinor pela revisão cuidadosa do trabalho. Aos amigos Fabrine, Roni, Josè Alfredo, Tatá, com quem tive o prazer de compartilhar reflexões contidas neste trabalho, agradeço o carinho, a disposição e o envolvimento com a pesquisa. Ao Adilson, Ayrton, Cristina e Ricardo, amigos de toda hora, agradeço a solidariedade. Aos meus pais, José e Zilma, agradeço o amor e o incentivo em cada fase da minha vida. Às minhas irmãs, Eliane e Elenice, agradeço a convivência cotidiana, quando compartilhamos alegrias, angústias e projetos. Aos meus sobrinhos Marcielo e Saulo, os momentos de carinho, descontração e à pergunta que me motivava a seguir em frente: “Tia quando será a defesa?”. Obrigada a todos por fazerem parte da minha vida e pelo apoio incondicional. Com carinho, agradeço à minha filha Clara, pelo amor indescritível que me faz sentir. Agradeço os afagos, gestos e palavras doces e por convidar-me a usufruir da vida com alegria: “Mamãe vamos brincar!”. Agradeço também à Janeuza que cuidou com carinho da minha filha me permitindo tranqüilidade para realizar meus estudos. De forma especial agradeço, ao Glaucinei, pelo respeito à singularidade desse momento da minha vida, pela presença e aconchego nas horas mais difíceis, por

Page 5: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

5

ajudar-me, a todo o momento, a ver um caminho de possibilidades. Obrigada por partilhar a vida... por estar sempre comigo... pela serenidade...

Page 6: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

6

RESUMO

O objeto desta pesquisa são as práticas de aprendizagem do futebol.

Amplamente difundido/popular no Brasil (como prática masculina) o futebol é um

esporte em que se observa pouco ensino, mesmo quando a sua aprendizagem se

dá dentro da escola. Para descrever/analisar a aprendizagem do futebol foram

utilizadas a abordagem da aprendizagem situada em comunidades de prática (LAVE

e WENGER, 1991) e a teoria da forma escolar (VINCENT, LAHIRE, THIN, 2001) —

teorias que foram tomadas no trabalho como um tipo oposição complementar. O

estudo aborda a aprendizagem enquanto um aspecto inerente a toda prática social

(LAVE e WENGER, 1991). Elaborado a partir de uma incursão etnográfica no

universo das práticas cotidianas de futebol entre os jovens de um bairro de Belo

Horizonte, a pesquisa deu visibilidade a aspectos importantes do processo de

aprendizagem. Revelou que no futebol, o modo de aprender situado (nas relações

entre pares e no compartilhamento das práticas) é hegemônico, mesmo em

contextos com ocorrência de práticas pedagógicas orientadas pela forma escolar. A

aprendizagem do futebol está difusa nos diferentes modos de participação na prática

social e envolve mais do que técnicas, táticas e regras. Nas práticas futebolísticas

cotidianas os jovens praticantes aprendem o futebol e nele constituem identidades,

significados, disposições corporais, tipos de atenção, emoções e conhecimentos.

Como parte das redes de sociabilidade juvenis, os jovens incorporavam o jogo —

que se compõe de relações sociais complexas, diferentes formas de participação,

relações de poder, etc. Não se trata, entretanto de um processo de assimilação

passiva, em que o corpo vai sendo moldado. Ao contrário, numa relação tensa e

sutil, a cultura futebolística marca o corpo dos praticantes ao mesmo tempo em que

é marcada por ele.

Page 7: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

7

ABSTRACT

The subject of this research are the practices of the learning of soccer. Highly

spreader/popular in Brazil (mainly as a male practice), soccer is a sport where it is

noticed little education, even when its learning takes place inside of the school. In

order to describe/analyze the learning of soccer were used the learning approach

situated in communities of practice (LAVE and WENGER, 1991) and the theory of

School System, (VINCENT, LAHIRE, THIN, 2001) — theories that were used in this

work as a complementary opposition type. The study broaches the learning as an

inherent aspect of the whole social practice (LAVE and WENGER, 1991). Compiled

from an ethnographic incursion in the universe of the daily soccer practices among

young people from a district of Belo Horizonte, the research gave visibility to

important aspects of the learning process. Revealed that in soccer, the situated way

of learning (i.e., in relations among peers and in the sharing practices) it is

hegemonic, even in contexts of occurrence of teaching practices guided by the

School System. The learning of soccer is diffuse in the different ways of participation

in the social practice and it involves more than techniques, tactics and rules. In the

daily soccer practices the young athletes learn soccer and in it establish identities,

meanings, bodily arrangements, types of attention, emotions and knowledge. As part

of the networks of young people’s sociability, the young athletes incorporated the

match — which is constituted of complex social relations, of different ways of

participation, of power relations, etc. It is not, however, a passive process of

assimilation, in which the body is being shaped. Unlike, in a subtle and tense relation,

the soccer culture shapes the body of the practitioners at the same time that is

shaped by it.

Page 8: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

8

RÉSUMÉ

L'objet de cette recherche sont les pratiques de l'apprentissage du football.

Amplement diffusé / populaire au Brésil (surtout en tant que pratique typiquement

masculin) le football est un sport sur lequel on observe peu d’apprentissage, même à

l'école. Pour décrire / étudier comment se fait l'apprentissage du football ont a suivi la

théorie des communautés de pratiques (LAVE et WENGER, 1991) et la théorie de la

forme scolaire (VINCENT, LAHIRE, THIN, 2001) – celles qui ont été prises dans cet

étude pour faire un type de opposition complémentaire. L'étude traite de

l'apprentissage comme une partie inhérente à toute la pratique sociale (LAVE e

WENGER, 1991). Développé à partir d’observation ethnographique dans l'univers

des pratiques quotidiennes de football chez les jeunes d’un quartier à Belo

Horizonte, l'enquête a donné une visibilité à des aspects importants du processus

d'apprentissage. L’enquête a révélé que dans le football la façon d'apprentissage

situé (c'est-à-dire, dans les relations entre les pairs et le partage de pratiques) est

hégémonique même entre contextes avec l’occurence de pratiques pédagogiques

guidées par la voie scolaire. L'apprentissage du football est diffusé dans les

différents moyens de participation dans la pratique sociale et implique plus que des

techniques, des tactiques et des règles. Dans les pratiques quotidiennes de football

les jeunes pratiquant apprendre à jouer au football et donc ils constituent leur

identité, significations, dispositions corporelles, types d'attention, émotions et

connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le

jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent formes de

participation, de relations de pouvoir etc. Mais il ne s’agit pas d’un processus

d'assimilation passive, dans lequel le corps est moulé. Au contraire, dans une

relation subtile et de tension, la culture du football marque le corps des praticiens

alors qu'elle est marqués pour eux.

Page 9: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

9

SUMÁRIO

I INTRODUÇÃO.............................................................................................................12 II A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE PESQUISA..................................................................17

1.1 - A teoria da forma escolar...............................................................................20

1.2 - Contribuições da antropologia da aprendizagem...........................................23

1.3 - Participação Periférica Legitimada: a aprendizagem situada.........................26

1.4 - Forma escolar e aprendizagem situada: a trama da pesquisa.......................30

1.5 - O conceito de habilidade.................................................................................32

1.6 - Caminhos da pesquisa: a metodologia...........................................................38 1.6.1 - A ante-sala da pesquisa: escolhas e negociações.................................38

1.6.2 - A produção da pesquisa e a produção da pesquisadora: a pesquisa de

campo.................................................................................................................40

III O CONTEXTO DA PRÁTICA DO FUTEBOL: O FUTEBOL NO BAIRRO UNIVERSITÁRIO...........51

3.1 - Práticas de futebol no campo do Racing.........................................................52

3.1.1 - O futebol no projeto Esporte Esperança/Segundo Tempo.....................53

3.1.2 - O treino do time de futebol do Racing....................................................61

3.1.3 - Práticas cotidianas de futebol no campo do Racing...............................65

3.2 - Práticas de futebol no cotidiano da escola......................................................69

3.2.1 - Recreios com futebol..............................................................................71

3.2.2 - A aula de Educação Física/futebol..........................................................73

3.3 - O bairro Universitário como uma comunidade de prática do futebol...............83

IV A PARTICIPAÇÃO NO FUTEBOL: DA APRENDIZAGEM SITUADA À FORMA ESCOLAR...........88

4.1 - “Futebol é coisa de homem”: a legitimidade da participação..........................90 4.2 - A aprendizagem cotidiana do futebol............................................................101

4.2.1 - “A próxima de fora é nossa”: uma ponta para o processo....................103

Page 10: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

10

4.2.2 - “Chutando que você aprende”: ensaios de futebol no bairro

Universitário.....................................................................................................107 4.2.3 -“Tem hora que eu fico fazendo exercício”: ensaios “solo”.....................111

4.2.4 - “Ensino ele posicionamento pra chutar a bola”: ensaios “guiados”......113 4.2.5 - “Ele prefere a bola que um prato de comida”: o sentido dos

ensaios.............................................................................................................118 4.2.6 - “Igual urubu na carniça”: iniciantes no jogo..........................................121 4.2.7 - “A tendência dele é melhorar”: aprendendo na prática social..............129

4.3 - Futebol para poucos: “especialização”..........................................................136

4.3.1 - A entrada para os times de várzea: formas de recrutamento...............136 4.3.2 -“Joga na lateral que seu futebol vai render muito mais”: a várzea como

contexto especializado.....................................................................................139 4.3.3 - “Eu botava infantil na reserva do juvenil”: a organização da

aprendizagem...................................................................................................142 4.3.4 - “Num amistoso, num jogo bom é que ele vai ganhar posição”: aprender

para fazer, aprender é fazer.............................................................................151

4.3.5 - “Quem nunca disputou um campeonato... vai tremer”: aprendendo a lidar

com o futebol ritual...........................................................................................156

4.4 - “O futebol é um jogo de contato; muito contato entre seres humanos”:

aprender é incorporar............................................................................................166

4.5 - Jogo do corpo, corpo do jogo: futebol e masculinidade................................174

4.6 - A aprendizagem do futebol e a forma escolar ..............................................187

4.6.1 - O futebol nas aulas de Educação Física: traços da forma

escolar..............................................................................................................187

4.6.2 - Forma escolar e Educação Física: outras aprendizagens a partir do

futebol...............................................................................................................191

4.6.3 - Práticas de futebol fora da escola: traços da forma escolar.................194

4.6.4 - O discurso educativo no futebol do Esporte Esperança/Segundo

Tempo..............................................................................................................199

4.6.5 - Forma escolar no futebol: síntese de uma educação do corpo............202

V CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................206

Page 11: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

11

5.1 - Esporte e escola: algumas palavras..............................................................206

5.2 – Fechando um processo de pesquisa: novo ponto de partida.......................209

VI REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................................219 ANEXO I.....................................................................................................................229

Page 12: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

12

I INTRODUÇÃO

O esporte é uma das instituições que, a partir do século XX, tiveram ampla

difusão no mundo. Tendo surgido nas escolas inglesas, no final do século XIX, a

nova forma de atividade corporal foi ganhando expressão e se difundindo

massivamente, até tornar-se prática cotidiana de lazer, prática escolar, prática

profissional, prática de aperfeiçoamento/manutenção do corpo (e da saúde), etc.

Assim, o esporte foi rapidamente se expandindo para os mais diferentes contextos,

tornando possível a divulgação de uma forma de exercitar o corpo, de normas e

valores e também de um novo modo de ser (“ser esportivo”). Mas esse impacto do

esporte sobre as diferentes sociedades não promoveu homogeneidade.

O esporte pode ser interpretado como uma prática cultural que engendra

ambigüidades, tensões, antagonismos, heterogeneidade. Portanto as modalidades

esportivas apresentam diferenças profundas nos modos de produção, apropriação,

significação e difusão nos diferentes contextos. Não há dúvida de que o esporte

orquestra processos de competição, seleção, rivalidade, etc., e de que algumas

modalidades ganharam destaque no cenário esportivo mundial. Essa intrigante

difusão ocorreu com o futebol, hoje a modalidade esportiva mais praticada no

mundo.

No Brasil, reconhecido como “o país do futebol”, a prática é amplamente

difundida. Trata-se mesmo de uma manifestação cultural que se multiplica e se

desdobra numa diversidade de práticas, assumindo múltiplos contornos em

diferentes contextos sociais.

Do espírito aristocrático do final do século XIX, quando foi importado da

Inglaterra como prática da elite, o futebol passou por intensos processos de

apropriação e popularização no Brasil. Segundo DaMatta (1994, p. 11), é,

certamente, a mais moderna instituição e “chegou no Brasil por um bem

documentado processo de difusão cultural”. Isso porque, o futebol foi introduzido no

país “sob o signo do novo”. “Estava, pois, na lista das coisas moderníssimas: era um

esporte”. Para o autor (1994, p. 11), o futebol é: [...] uma atividade destinada a redimir e modernizar o corpo pelo exercício físico e pela competição, dando-lhe a higidez necessária a sua sobrevivência num admirável mundo novo — esse universo governado pelo mercado, pelo individualismo e pela industrialização.

Page 13: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

13

Marca da modernidade e sinônimo de sofisticação, o futebol chegou, pois, ao

Brasil como promissor atrativo das elites. Não era acessível a qualquer um, mas

somente aos iniciados em seus princípios e saberes técnicos (sportmen), que

desfrutavam de tempo livre para desenvolvê-lo. Portanto, a prática do futebol visava

uma elite educada, capaz de garantir a permanência dos sentidos incorporados ao

jogo pela sociedade inglesa.1 Assim, afastavam-se do direito a essa prática os

trabalhadores manuais, operários e negros (PEREIRA, 2000).

Mas, o futebol não ficou confinado às elites brasileiras, passando rapidamente

a ser praticado “também em outros campos pelos negros, pobres e trabalhadores”

(PEREIRA, 2000, p. 87). Longe do ideal de controle pretendido, foi se disseminando

por todo o País. Transformou-se rapidamente em fenômeno de massas. À medida

que começava a despertar o interesse de diferentes segmentos da sociedade,

dando início a sua popularização, tornava-se pano de fundo para a explicitação de

variados conflitos sociais (LINHALES, 1996, p. 85).

Esse processo “resultava, ainda na década de 1910, na construção de outra

imagem para o jogo, muito diferente daquela projetada sobre ele pelos sportmen”

(PEREIRA, 2000). Do ponto de vista da elite, o futebol deixava de ser esporte

refinado para se transformar em jogo de negros e pobres. Para Pereira (2000, p. 17),

esse processo de consolidação indicava as “fissuras e ambigüidades de sua

construção — que faziam (e ainda fazem) dele um campo de disputas em torno de

outros objetivos, além da bola”.2

O futebol é, assim, uma prática que envolve códigos, interesses, identidades,

redes de sociabilidade e uma diversidade de sujeitos, em todos os âmbitos de sua

manifestação.3 Constitui-se, portanto, como prática profissional (atletas, treinadores,

1 Sem negar a existência de um amplo debate sobre a distinção (especificidades) entre esporte e jogo e sobre sua importância para a compreensão do universo de significação que envolve cada uma dessas práticas, uso neste trabalho os termos esporte e jogo como sinônimos. 2 “Fazendo dele o que bem entendiam, os adeptos do bola no pé tinham nos seus centros esportivos um espaço de efetivação de um sentido para o jogo que ressignificava muitos dos ideais projetados sobre ele por seus defensores na imprensa, na literatura ou na medicina. No lugar de uma solidariedade que anulasse as tensões, a busca de um meio próprio de articular identidades e antagonismos, organizando as diferenças sociais nos bairros pobres; em vez da disciplina uniformizadora, a efetivação de suas próprias práticas; e, onde se esperava regeneração, a consolidação de tradições recreativas que transformavam esses pequenos clubes nos grandes centros de sociabilidade da Zona Norte e dos subúrbios. Nem parecia que falavam do mesmo esporte...” (PEREIRA, 2000, p. 255). 3 Tal como Dayrell (2005, p.183), ao longo do trabalho utilizo o termo sociabilidade “como uma forma, dentre outras possíveis de sociação”. Recorrendo a sociologia simmeliana, Dayrell (2005, p. 184) afirma que a sociabilidade “tem uma especificidade que a torna peculiar: apresenta-se emancipada dos conteúdos, apenas como forma de convivência com o outro e para o outro. Se uma sociação

Page 14: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

14

juízes, jogadores, jornalistas, locutores, patrocinadores, etc.), prática educativa

(objeto de ensino em escolas, “escolinhas” de esportes e projetos sociais), prática

ritual (nos jogos entre os clubes brasileiros e nas torcidas organizadas, por

exemplo,) e prática cotidiana (as peladas nas ruas, quadras, campos de futebol e

várzea).

No Brasil, o futebol permanece como prática majoritariamente masculina.

Entretanto já se observa crescente envolvimento feminino, notadamente pela

projeção de atletas, como Marta, escolhida a melhor do mundo pela FIFA, e da

seleção brasileira, que conseguiu medalha de prata na Olimpíada de 2004/2008.

Mesmo sendo pouco acessível às mulheres, tal é o impacto do futebol na cultura

brasileira que ele não se restringe a uma faixa etária específica, sendo praticado da

infância à velhice, ainda que a amplitude do acesso dos jovens seja marcante.

De fato, é intrigante a difusão do futebol no país. Há um conjunto de

explicações para esse fenômeno de popularização. Para Linhales (1996, p. 84),

“pelas vias da fábrica e da várzea, o futebol implementa o seu processo de

popularização para além das organizações e dos clubes de elite”. Segundo a autora,

outra explicação é a facilidade de apropriação e a pouca exigência quanto a

recursos materiais e espaciais, podendo ser o futebol praticado em ruas, campos,

beira de rios (campos de várzea), escolas, enfim, em qualquer área plana. Melo

(2000) justifica que essa prática impregnou a cultura brasileira pela simplicidade das

regras.

Daolio (2000, p. 32), entretanto, afirma: [...] essa facilidade da prática do futebol, se pode ser considerada facilitadora para a sua popularização, não parece ser absoluta para podermos compreender a grande fama deste esporte entre brasileiros, uma vez que outras modalidades esportivas teriam chegado ao País na mesma época, exigindo também poucos implementos e com regras de fácil compreensão. De qualquer forma, não parece promissor explicar o futebol pelo que o diferencia das outras modalidades.

Essas reflexões sobre a popularização do futebol são importantes, mas

parecem insuficientes para explicar o fenômeno, suscitando outras indagações: Que

qualquer implica o agrupamento em torno da satisfação de interesses, uma finalidade qualquer, na sociabilidade encontramos uma relação na qual o fim é a própria relação, a pura forma, e é por ela que se constitui uma unidade. No campo da sociabilidade, os indivíduos se satisfazem em estabelecer laços, e esses laços têm em si mesmos sua razão de ser”.

Page 15: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

15

elementos do futebol (que não estavam/estão presentes em outro esporte de forma

tão expressiva) poderiam facilitar a adaptação aos diversos espaços e levar à pouca

exigência material? Será que o futebol é mesmo mais fácil que os outros esportes?

O que torna possível uma prática assim tão difundida? Que mecanismos permitem

essa difusão do futebol? Não seria o futebol — ao contrário de um esporte

“naturalmente” mais fácil e por isso possível de ser praticado numa diversidade de

espaços — uma prática complexa que encontra nos mecanismos (invisíveis) de

reprodução/produção cultural o aliado que torna possível a sua

difusão/aprendizagem? Neste trabalho, interesso-me particularmente em explicitar

as práticas de aprendizagem (como aprendizagem da cultura) que permitem a

(re)produção/difusão do futebol.

No Brasil, o futebol passou por um intenso processo de naturalização,

tornando-se difícil perceber os diferentes aspectos que o compõem. A profusão de

elementos naturalizados, que vão de aspectos identitários, normas, valores,

emoções, disposições até questões mais diretamente ligadas à aprendizagem,

remete à compreensão da habilidade futebolística como dom ou dão a idéia de

facilidade de regras e técnicas. A dificuldade de desnaturalização e de

distanciamento da prática — observada, sobretudo, no diálogo com os interlocutores

masculinos — advém da pouca percepção dessas dinâmicas.

Duas hipóteses complementares sobre a complexidade que envolve a

dinâmica de aprendizagem dessa prática podem ser esboçadas. Primeira: a

popularização/naturalização do futebol no cotidiano brasileiro é tal que este parece

mais fácil do que outros esportes. Segunda: a naturalização do futebol, que o faz

parecer mais fácil, torna invisíveis vários aspectos, incluídos os modos de

aprendizagem. Nesse ponto, chega-se a uma encruzilhada: a naturalização, que

torna o futebol mais fácil que outros esportes, torna invisíveis os processos de

aprendizagem. Portanto, a naturalização de uma prática tão complexa parece

produzir invisibilidades. Enfim, o futebol é tão “natural” no contexto cultural brasileiro

que a investigação da sua aprendizagem aponta para a possibilidade de melhor

compreensão da aprendizagem da cultura.

O trabalho se situa nesse contexto de problematização, ou seja, o estudo do

futebol busca desvelar práticas de aprendizagem. Existem atualmente abordagens que, contrapondo-se à visão de futebol como

dom, apontam processos culturais que favorecem a construção (ou domínio) da

Page 16: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

16

habilidade. Esta investigação inscreve-se, pois, nessa perspectiva. Busca, desse

modo, contribuir para a compreensão da aprendizagem como historicamente

constituída e como processo que envolve/entrelaça corpo e cultura.

Considerando a aprendizagem como aspecto inerente a qualquer prática

social (LAVE e WENGER, 1991), este trabalho tem como ponto de partida uma

pesquisa etnográfica realizada em um bairro de Belo Horizonte. A incursão no

universo das práticas futebolísticas juvenis possibilitou uma aproximação dos

processos de aprendizagem — ainda submersos nas explicações pautadas na

ideologia do dom, ou seja, de que não se aprende o futebol — oferecendo pistas

para a compreensão de como eles ocorrem. Tentando superar a dicotomia

educação formal versus educação informal e a noção de informalidade — muito

relacionada às aprendizagens não-escolares —, o trabalho busca dar relevo à

natureza socialmente organizada da aprendizagem (LAVE, 1982). Para isso está

estruturado em três partes.

A primeira parte é composta de dois itens. No item I, a aprendizagem do

futebol é apresentada como tema de pesquisa. Assim, aponto o enquadramento

teórico que possibilitou abordar a aprendizagem do futebol: a teoria da forma escola

(VICENT, LAHIRE e THIN, 2001) e a proposta da aprendizagem situada (LAVE e

WENGER, 1991). Apresento, também, os conceitos que permitiram ampliar a

compreensão da aprendizagem do futebol como aprendizagem da cultura. Desse

modo, destaco o conceito de habilidade proposto por Tim Ingold. No item II,

descrevo a trajetória da pesquisa (metodologia).

Na segunda parte, descrevo/analiso a trama cotidiana de produção do futebol

no bairro Universitário: nas aulas de educação física, no projeto social Esporte

Esperança/Segundo Tempo, no treino do Racing e nas práticas de futebol no campo

do bairro.

Na terceira parte, descrevo/analiso a participação dos jovens nas práticas

futebolísticas do bairro Universitário como modos situados de aprendizagem e o

impacto da forma escolar nas práticas futebolística dentro e fora da escola.

Nas considerações finais, abordo as principais sínteses produzidas a partir da

pesquisa e proponho algumas reflexões sobre a relação esporte e escola.

Page 17: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

17

II A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE PESQUISA Este trabalho tem como foco de investigação os modos de aprendizagem do

futebol. O interesse em compreendê-los surgiu do estudo feito, no mestrado, sobre

as práticas esportivas escolares. A pesquisa, intitulada “O esporte na cultura escolar:

usos e significados”, possibilitou desvelar aspectos importantes da produção do

esporte na escola bem como suscitou a elaboração de questões que apontavam

para a necessidade não só de aprofundamento como também de mudança de foco.

Ao deparar com o fato de que o futebol acontece (ou se produz)

cotidianamente na escola de maneira independente em relação às práticas de

ensino, a minha intenção inicial de professora era criar formas ou métodos que

pudessem transformá-lo em objeto de ensino nas aulas de Educação Física.

Inserida na produção acadêmica da Educação Física escolar no Brasil, buscava

soluções para a falta de “trato pedagógico” desse esporte. Mas um novo olhar sobre

os dados de pesquisa, constituído do diálogo com outras áreas de conhecimento

(principalmente da Antropologia), levou-me a fazer outras reflexões e formular outros

questionamentos para as práticas de futebol produzidas no contexto escolar. Assim,

a necessidade de propor formas de ensinar o futebol foi sendo substituída pelo

desejo de compreender mais a sua produção/aprendizagem. Passei a interessar-me

pelo estudo (descrição e análise) de como se aprende uma prática não ensinada

deliberadamente, mesmo quando se dá no contexto escolar. Afinal, como dizem os

alunos nas aulas de Educação Física: “É futebol? Então solta a bola, professor”.

Há uma variedade de estudos que tematizam a difusão do futebol no Brasil.

Embora tenham sido produzidos com abordagens teóricas e com objetos de

investigação diferentes, muitos trazem como linha de fundo da argumentação a idéia

de que essa produção se dá a partir de processos culturais difusos.4 Sem tratar o

tema da aprendizagem, vários desses autores oferecem pistas importantes sobre a

cotidianeidade da aprendizagem do futebol, implícita no processo de difusão.5 Nos

trabalhos de Bueno (2005) e Damo (2005), no entanto, encontrei a especificidade da

aprendizagem do futebol tematizada.

4 “O futebol é chave para o entendimento de questões tão variadas quanto a identidade nacional, a questão racial, a cultura operária, a religião a sexualidade e as questões de gênero, o novo capitalismo e o império da mercadoria entre outros” (MELO e ALVITO, 2006, p. 7). 5 Daolio (1997, 2000), Guedes (1998), Pereira (2000), Ramalho (1998), Lucena (2001), DaMatta (1994, 1987, 2006), Cruz (2006), Caldas (1994), Leite Lopes (1994), Toledo (1994, 2002, 1996), Carrano (2000), Galeano (2000), Gestaldo e Guedes (2006), só para citar alguns.

Page 18: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

18

O trabalho de Bueno (2005), que enfoca a construção social das habilidades

esportivas (futebol e hipismo) e artísticas (violão e piano), tem relevância neste

estudo.6 Com o objetivo de escapar das explicações biológicas ou essencialistas

naturalizadas, considerando que estas se nutrem “das invisibilidades e sutilezas de

alguns processos” constituidores das habilidades, a autora buscou, a partir dos

casos estudados, “constituir as evidências, os contextos, as conexões que

pudessem fundamentar a compreensão da natureza social da constituição das

habilidades” (BUENO 2005, p. 373).7 Bueno (2005, p. 16) toma “como ponto de

partida a compreensão de que as habilidades são fatos sociais e, portanto

socialmente construídos”. Desse modo, compreende que “as habilidades são

constituídas e emergem a partir de uma história e de processos de socialização”.8

Ao mesmo tempo, conforme explica a autora, “tal afirmação significa colocar em

causa” as explicações “substancialistas e naturalizadoras”, ou seja, aquelas “que

buscam explicar o domínio de uma habilidade associando-a à posse de dons ou

talentos naturais, frutos de predestinação, não importando se ela é de cunho

biológico, genético ou religioso”.

Bueno (2005, p. 373) afirma que, “se pode contemplar uma habilidade, não só

por aquilo que ela revela da ação individual, mas também como obra humana

coletiva”. A autora (2005, p. 11) explicita a dimensão social da constituição das

habilidades e conclui: [...] os processos de constituição das habilidades estão associados e sofrem influências das condições e trajetórias sociais dos sujeitos e de suas famílias, das intenções e propósitos socializadores; são sustentados por ações mobilizadoras da família; relaciona-se a aspectos intersubjetivos; vinculam-se a histórias e memórias familiares e, por fim, são dependentes de múltiplas modalidades de socialização.

6 A autora observa os treinamentos, jogos, campeonatos e lazeres de um jogador de futebol (juvenil) e, a partir de entrevistas, recupera, historicamente, a constituição da sua habilidade — habilidade que é definida como o domínio de um saber-fazer, a maestria das execuções (Bueno, 2005). 7 Duas referências teóricas fundamentam a pesquisa de Bueno (2005). A primeira é o modelo teórico desenvolvido por Pierre Bourdieu, “principalmente os conceitos de habitus e estrutura de patrimônios (capital cultural, simbólico e econômico), onde a ênfase é colocada sobre as influências advindas do meio social de pertencimento”. A segunda são as contribuições (principalmente de Bernard LAHIRE) referentes aos “estudos na linha de uma sociologia dita ‘disposicionalista’ onde os conceitos de socialização e disposição tornam-se centrais” (p. 10). 8 Entendendo que o conceito de socialização (a sua abordagem clássica como a sociedade que se impõe sobre o indivíduo de maneira unidirecional) contradiz a perspectiva relacional proposta nessa pesquisa, a sua utilização ao longo do trabalho se dará apenas como parte do conteúdo das reflexões de alguns autores — autores que, para além do uso do conceito, contribuem para as reflexões propostas neste trabalho.

Page 19: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

19

Outra referência importante para a construção do objeto desta pesquisa é o

trabalho de Damo (2005), intitulado “Do dom à profissionalização: uma etnografia do

futebol de espetáculo a partir da formação de jogadores no Brasil e na França”, em

que apresenta dados referentes ao que chama de “processo de formação/produção

de futebolistas”.9 “O processo em questão é uma etapa que sucede à aquisição das

técnicas elementares”, que, não raro, são realizadas “à margem das instituições

clubísticas, e antecede a atuação propriamente dita” (DAMO, 2005, p. 14). Damo

(2005, p. 174) constrói este quadro (com as etapas da carreira do futebolista) onde

explicita o ciclo de preparação ou formação como foco da sua investigação:

Ciclo de aprendizagem

ou pré-formação

Ciclo de preparação

ou formação

Ciclo de

aprimoramento e de atuação

Ciclo de desconversão

Ciclo de reconversão

ou aposentadoria

Domínio de técnicas

elementares, freqüentação a

escolinhas, eventual reconhecimento do talento, seleção e

recrutamento para a formação.

Restrito aos

vocacionados, aos que dispõem do dom;

refinamento das técnicas corporais e

progressão em direção do

profissionalismo ou exclusão.

Atuação profissional

sujeita a variações em termos de

remuneração, prestígio e sucesso,

embora ser profissional seja um valor em si, pois é

associado a um ideal de masculinidade.

Fim de carreira e

reconversão profissional, podendo esta ser definida por

limitações físicas (idade ou lesões

graves) ou desemprego crônico.

Período de recesso;

seguidamente traumático pela

distanciamento do público.

Dos primeiros passos

aos 14 anos

A partir dos 10 anos,

intensificando-se dos 14 aos 20 anos

Entre os 17 e os 35

anos

Entre os 30 e os 40

anos

A partir do fim da

carreira ou quando este estiver próximo.

Sem colocar o foco nos processos de aprendizagem do futebol que

antecedem a entrada dos jovens no circuito de preparação/formação profissional

clubística, DAMO (2005, p. 139) faz referência à difusão do futebol no cotidiano como

mecanismo de “aquisição de técnicas futebolísticas elementares”. Ainda que esse

não seja o ciclo no qual concentra a sua investigação, o autor dedica um capítulo do

seu trabalho à apresentação da aprendizagem do futebol como parte do processo de

“socialização primária” masculina que, segundo o autor, é “a ante-sala da formação

profissional”. No referido capítulo, Damo (2005) tematiza (em linhas gerais) o

aprendizado do futebol, a partir da observação das práticas cotidianas de um grupo

de jovens na rua. É importante salientar, entretanto, que os objetivos de Damo

9 Um conceito importante para o trabalho Damo (2005) é o de habitus proposto por BOURDIEU e WACQUANT (1995) e Bourdieu (1996).

Page 20: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

20

(2005, p. 139) ultrapassam “as preocupações com o aprendizado das técnicas

futebolísticas”. Perguntando sobre os “motivos com que os meninos se põem a

jogar”, o autor mostra que eles “jogam para se fazerem meninos”, ou seja, que o

futebol é prática constitutiva da identidade masculina. Dentre outras reflexões

importantes do trabalho, está a evidência de que, no fazer cotidiano das práticas

futebolísticas (em ruas, becos, etc.), processos de aprendizagem estão acontecendo

— aspetos sobre os quais o autor faz breve menção, visto que não é o seu alvo de

investigação.

Tomando como referência os estudos da habilidade futebolística como

produção histórica e cultural, sobretudo com as contribuições teóricas de Damo

(2005) e Bueno (2005), é possível afirmar que a aprendizagem do futebol se dá nas

múltiplas relações cotidianas (não se concentrando, portanto, na instituição escolar).

Mas, afinal, como ocorre? Situando-se num momento de aprendizagem anterior à

fase estudada por Damo (2005) e Bueno (2005), esta pesquisa busca desvelar os

modos de aprendizagem do futebol nas interações cotidianas (o mergulho na prática

social).

Para constituir um quadro teórico que possibilitasse descrever/analisar a

aprendizagem do futebol, recorri às contribuições teóricas de Vicent, Lahire e Thin

(2001) (sobre a teoria da forma escolar), às contribuições sobre a aprendizagem

produzidas no campo da Antropologia (sobretudo a abordagem situada de Lave e

Wenger, 1991) e ao conceito de habilidade de Ingold (2000, 2001). Desse modo,

apresento, em linhas gerais, a singularidade da discussão em cada uma dessas

abordagens para, posteriormente, articulá-las com o objeto desta pesquisa.

1.1 - A teoria da forma escolar O trato da temática da aprendizagem do futebol (objeto de ensino nas aulas

de Educação Física) toca profundamente questões que envolvem a educação

escolar.10 Afinal, a crença de que aprender exige situação separada, protegida,

programada e regulada (tentativa de controlar situações muito complexas) está na

origem da própria escola. Isso é o que revelam estudos sobre a forma escolar

10 Vários estudos no campo da Educação Física apresentam o amplo grau de penetração do futebol no cotidiano escolar: por exemplo: Altmann, 1998; Faria, 2001; Mazoni, 2003, Silva, 2004.

Page 21: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

21

produzidos por Vicent, Lahire e Thin (2001)11, que tratam das “práticas constitutivas

de uma sociabilidade escolar e o modo, também escolar, de transmissão cultural

(CARVALHO, 1998, p. 2)”.12

Centrando o foco na expansão da escolarização da sociedade, Vicent, Lahire

e Thin (2001) apresentam as implicações do processo. Para eles (2001, p. 9), em

certa época, foi possível assistir à constituição de “formas relativamente invariantes

(isto é, recorrentes) de relações sociais”. Destacam, desse modo, o surgimento de

uma “forma inédita de relação social entre um mestre (num sentido novo do termo) e

um aluno (VICENT, LAHIRE e THIN 2001, p. 13). Ela é inédita, porque é distinta e

se autonomiza em relação às outras relações sociais”, na medida em que

“desapossa os grupos sociais de suas competências e prerrogativas” (isto é,

autonomiza o processo de ensino-aprendizagem).

Afirmando que a forma é, antes de tudo, aquilo que não é coisa, nem idéia,

isto é, uma unidade que não é a da intenção consciente, os autores apontam que a

emergência da forma escolar “se caracteriza por um conjunto coerente de traços”.

Destacam-se estes: a “constituição de um universo separado para a infância; a

importância das regras na aprendizagem; a organização racional do tempo; a

multiplicidade e a repetição de exercícios”, cuja única função é “aprender conforme

as regras”. A “categoria forma escolar foi, assim, gestada tendo como mira a

disseminação de saberes elementares e as relações entre mestre e aluno, em um

espaço tempo normatizados” (VIDAL, 2005, p. 39). Fundamentalmente ligada à

aprendizagem de “formas de exercício do poder”, a forma escolar caracteriza-se,

portanto, pela imposição “tanto aos alunos quanto aos mestres” de regras

11 “Preocupado em compreender as permanências na organização escolar Vincent, no livro L’école primaire française, publicado em 1980, interrogava-se acerca da gênese dos três elementos para ele constitutivos da instituição: o espaço, o tempo e a relação pedagógica. [...] Vincent percebia a gênese desse modelo [da forma escolar] na escola lassalista da França no fim do século XVII. [...] “Apesar de afirmar que o regramento do tempo, a organização espacial da escola e o constrangimento moral do aluno com a introdução de Leis Guizot (1833) e Jules Ferry (1880), que tornam laico o ensino elementar francês, Guy Vincent considerava que a forma escolar criada por La Salle havia sido mantida na sua essência.. Para Vincent, a alteração fundamental foi operada” pela passagem de uma cultura fundada na oralidade para a cultura da escritural, [...] mas principalmente na organização do pensamento e relação do homem com o mundo pela lógica escritural. Esse primado permitiu que viesse a defender no artigo “Sobre a história e a teoria da forma escolar”, em co-autoria com Bernad Lahire e Daniel Thin” (VIDAL, 2005, p. 37-38). “A teoria da forma escolar embora de caráter histórico, se situa no âmbito da sociologia da educação francesa, em diálogo (ou por vezes continuidade) com a abordagem de P. Bourdieu” (GOMES, 2007, p. 2). 12 Os estudos do que tem sido denominado forma escolar vêm ganhando centralidade no âmbito da educação nos últimos anos. Segundo Carvalho (1997, p. 291), “depois de Focault, a historiografia da educação tem estado atenta à pluralidade dos dispositivos [...] dos quais se produziu, na modernidade, o que vem sendo chamado de modelo escolar ou de forma escolar de educação”.

Page 22: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

22

impessoais (VICENT, LAHIRE e THIN, 2001, p. 30) e também pela idéia de limitação

das interações verbais, na perspectiva de “construir o educando como aluno

disciplinado e limitar toda polissemia” que impeça o curso normal das atividades

escolares (p. 33).

A escola inaugura/funda um tipo de relação social própria (“a forma escolar

como uma relação específica de ensino aprendizagem") que se “opõe então [...] à

aprendizagens no âmago das formas sociais orais, pela e na prática” (p. 30). É

importante salientar, entretanto, que falar em “forma escolar de relações sociais

permite evitar a confusão entre instituição e forma (instituição escolar e forma

escolar)”. Desse modo, ela pode ser entendida como um tipo de relação social (a

relação pedagógica) que atravessa diferentes instituições.13

Tendo por fim seu próprio fim, esse modo de socialização não pára de se

expandir, o que é visível no rápido desenvolvimento da escolarização (p. 38).

Segundo os autores, a forma escolar é hoje hegemônica e se impôs a outros modos

de socialização. Afirmam, portanto, a existência de uma pedagogização das

relações sociais. Conforme Vicent, Lahire e Thin (2001, p. 39), “encontram-se, hoje,

numerosos elementos e traços da forma escolar (em graus diversos) nas práticas

socializadoras” e a “predominância do modo escolar de socialização se manifesta

pelo fato da forma escolar ter transbordado largamente as fronteiras da escola” e

atravessado outras instituições e grupos sociais. Concluem que, “inversamente, a

instituição escolar pode ser atravessada por diferentes formas de relações sociais”.

Segundo Gomes (2007, p. 2): [...] a teoria da forma escolar é uma ferramenta de análise que permite colocar em relevo aspectos mais amplos, que nos interessam quando tentamos responder a perguntas tais como: porque a escola continua a ser o que ela é?; O que é que se repete?; O que faz com que se imponha um modo de funcionar que, se não cuidarmos para que seja diferente, se instaura quase que “naturalmente” na escola?

Na teoria da forma escolar, “o realce recai sobre as permanências” (VIDAL,

2005, p. 44). Vicent, Lahire e Thin (2001) destacam as continuidades. A teoria é,

pois, de grande importância para a compreensão da natureza da prática social que

13 Assim como Focault “pôde colocar ênfase sobre os dispositivos transversais em relação às divisões institucionais (escola, prisão, hospital, caserna, etc.), pode-se perceber certas formas sociais que atravessam diversas instituições” (VINCENT, LAHIRE e THIN, 2001, 36).

Page 23: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

23

se dá na escola e permite desnaturalizar essa forma de relação social amplamente

presente na sociedade.

Neste trabalho, a teoria da forma escolar é usada na análise de contextos em

que as práticas esportivas são constituídas como práticas pedagógicas, em que o

futebol se torna um conhecimento tanto a ensinar quanto para educar.

1.2 - Contribuições da Antropologia da Aprendizagem Tendo abordado a especificidade da forma escolar, que evoca certos tipos de

relações sociais como relações pedagógicas, verifiquei a necessidade de analisar as

interações cotidianas do futebol — plano de pouca (ou nenhuma) visibilidade nessa

teoria. A difusão do futebol na sociedade e a sua difícil pegadogização (FARIA,

2001) apontam para a necessidade do uso de abordagens que permitam contemplar

outros tipos de relações sociais estabelecidas nesse esporte que sejam capazes de

dar pistas sobre os modos de aprendizagem. Retomei, então, algumas ponderações

que funcionaram como alertas teóricos, para elucidar elementos ofuscados na teoria

da forma escolar: a noção de dinâmica cultural na escola (ROCKWELL, 1997), o

questionamento sobre a naturalização da escola como o lugar da aprendizagem

(GOMES, 2007) e a distinção entre ensino e aprendizagem (WOLCOTT, 1982).

Para Rockwell (1997), a dinâmica cultural, na escola, tem que ser apreendida

também na dimensão do cotidiano. Segundo a autora (1997, p. 31), as investigações

recentes sobre o cotidiano escolar “obrigam a modificar um modelo de cultura

escolar estático e homogêneo” amplamente difundido nas teorias da reprodução (de

que há um “suposto modelo de escola como agência que transmite uma cultura

oficial uniforme”).14 Tais estudos revelam a complexidade dessa dinâmica,

possibilitando lançar novos olhares sobre a instituição. Argumentando sobre a

dificuldade de “sustentar a noção convencional de uma cultura escolar”, Rockwell

(1997) afirma que não há uma cultura escolar padrão/única, ainda que existam

características comuns que identificam a instituição. Segundo a autora, essas

características/recorrências (neste trabalho tratadas a partir da teoria da forma

escolar) só podem ser observadas nos planos de análise da média e da longa

14 Segundo Rockwell, (1997, p. 23 - 24) a referência mais importante da teoria da reprodução (que comporta distinções internas) é “o livro de Pierre Bourdieu e Jean Claude Passeron (1977), a reprodução”.

Page 24: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

24

duração, não estando evidentes no plano do cotidiano (que se constitui por uma

heterogeneidade de práticas, significados e usos da escola).15

Em outra linha de argumentação, as ponderações de Gomes (2007, p. 4)

sobre a escolarização também são importantes. Diz a autora: Essa afirmação da escola como espaço adequado por excelência (e por vezes assumido como exclusivo), dedicado ao ensino-aprendizagem, nos leva a outra percepção também naturalizada: que tudo seja possível de ser ensinado e aprendido na escola; ou ainda; que seja possível tratar toda aprendizagem (tomada no sentido amplo) como possível de ser reduzida a forma escolar.

Nesse ponto da discussão, Wolcott (1982) — que propõe distinção entre

ensino e aprendizagem — contribui particularmente para o debate ao questionar a

centralização na escola dos estudos sobre a aprendizagem. Para Wolcott (1982, p.

83), “alguns cientistas sociais bem como educadores têm considerado ensino e

aprendizagem de uma mesma forma, como uma coisa só”. Como adverte, trata-se

de uma visão problemática, pois alguns antropólogos “parecem equiparar

transmissão de cultura, particularmente a que ocorre com esforços conscientes

dentro de uma sociedade, com aprendizagem de cultura”. Assim, percebe-se nesse

campo um “maior interesse em informar as tentativas para transmissão da cultura,

subestimando aquilo que os aprendizes aprendem, ou seja, há uma maior ênfase no

processo de ensino/transmissão comparado ao da aprendizagem”. Entendendo que

a aprendizagem não pode ser explicada fora do contexto cultural em que ela ocorre

e que ela é “essencialmente um processo de ativa redescoberta”, Wolcott (1982, p.

104) afirma que a aprendizagem escolar tem recebido atenção considerável, sendo

importante dar relevo às aprendizagens que ocorrem em lugares naturais ou

contextos culturais mais amplos.16

15 Rockwell, (1999) propõe uma abordagem da cultura escolar a partir de três planos de análise (longa duração, continuidade relativa e co-construção cotidiana). A longa duração (longue dureé, como diz a autora) está relacionada àquelas “configurações culturais radicadas, que perduram dentro de uma determinada área geográfica ou domínio social e tendem a resistir a mudança” (p. 116). O segundo plano de análise é a continuidade relativa, que abarca as práticas culturais que “surgem, são mantidas por um tempo e, são depois abandonadas”. “Essa concepção implica continuidade e descontinuidade” (p.118). Já o plano de co-construção cotidiana remete à idéia da constante re-elaboração da cultura recebida, reprodução e recriação das culturas escolares no trabalho cotidiano de professores e alunos. Embora a autora apresente cada plano separadamente, a sua intenção é sugerir uma estrutura para observar as interações entre os três planos. 16 Para Spindler e Spindler (1982), a tarefa do antropólogo é diferente da dos psicólogos, pois “antropólogos estão interessados em como a cultura em sua variedade de tempo e lugar é adquirida e transformada por cada nova geração”. Isso “requer um foco nos indivíduos como agentes sociais e

Page 25: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

25

Buscando compreender a escola a partir da tensão anunciada por Rockwell

(1997) e, ao mesmo tempo, entendendo que nela não se resumem as possibilidades

de transmissão da cultura a partir das provocações apresentadas por Gomes (2007)

e Wolcott (1982), busquei formas de abordar a aprendizagem do futebol na

aproximação com o campo da Antropologia, mais especificamente com a

Antropologia da Aprendizagem.

Amplamente concebidos por uma variedade de formas, conteúdos e

contextos, o ensino e a aprendizagem estão ligados ao centro dos interesses da

Antropologia. Para Pelissier (1991 p. 75), “aprendizagem e ensino são fundamentais,

implicitamente ou explicitamente, para a adaptação humana, socialização, mudança

cultural e, no mais amplo nível, a produção e reprodução da cultura e sociedade”.

Segundo Wolcott (1982, p. 83), a sociedade tem sucesso nos esforços de

produzir ou reproduzir os vários tipos de indivíduos de que precisa. Isso significa que

a eficácia do processo de inculturação mostra que há uma dinâmica de

aprendizagem que funciona. A partir de tal afirmação, o autor elabora questões

instigantes: Como (de que modos) os indivíduos dentro de uma sociedade realmente

adquirem a cultura? Nesse processo (de transmissão da cultura) como a mensagem

é transmitida? O que é feito dela? Mas, afinal, por que nem todo mundo aprende?

Como se dá a aprendizagem? Essas questões elaboradas por Wolcott (1982) me

instigaram no decorrer deste trabalho de pesquisa.

O primeiro debate sobre a aprendizagem, no âmbito da Antropologia, foi

produzido sob a coordenação de Wolcott. Interessado em questões relacionadas à

aprendizagem em contextos não-institucionais, o autor realizou, em 1980, a primeira

tentativa de sistematizar o tema da aprendizagem na Antropologia. Assim, organizou

idéias sobre a Antropologia da Aprendizagem, como área de interesse acadêmico

coletivo, e convidou estudiosos para apresentar seu ponto de vista em um Simpósio

de Antropologia da Aprendizagem apresentado na Associação Antropológica

Americana.17

processors (processadores/receptores) simbólicos complexos e na cultura como sine qua non (condição absoluta) da natureza humana” (p.120). 17 Embora o evento marcasse o início de um diálogo, o esforço do grupo deve ser considerado como renovado e não como novo interesse na aprendizagem (WOLCOTT 1982, p. 84). A primeira tarefa assumida pelo grupo foi refletir sobre os modos como as contribuições iniciais da Antropologia da Aprendizagem e Ciências Sociais relacionadas os conduziram ao ponto em que estavam. Dentre os

Page 26: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

26

Outra revisão, em que a aprendizagem apareceu tematizada, foi produzida

por Pelissier, em 1991. Mas, “ao invés de empreender uma exaustiva revisão da

história das várias mudanças da antropologia do ensino e aprendizagem”, a autora

tocou em alguns tópicos chave: “nomeadamente, modos de pensar, cognição

cotidiana e intercultural (cross-cultural), socialização, estilos de comunicação e

modos de educação”. As categorias utilizadas por Pelissier (1991) para abordar a

bibliografia estabeleciam perspectivas diferentes de análise do tema. Um dos

objetivos dessa revisão foi mostrar a necessidade de repensar algumas das

dicotomias que ainda permeavam as discussões sobre ensino e aprendizagem. O

estudo revelou que “a Antropologia do ensino e aprendizagem tem sido

excessivamente estática e determinística”. Mas também apontou para os recentes

movimentos em direção à prática, à atividade e à ação, consideradas no contexto da

estrutura.

Contemporaneamente à revisão de Pelissier (1991), ganhou destaque no

panorama internacional, entre os estudos da aprendizagem no contexto da prática, a

abordagem teórica de Lave e Wenger (1991).18 Para esta pesquisa, essa

abordagem se mostrou particularmente importante, por oferecer guia teórico à

descrição e análise da aprendizagem do futebol, tratando-a fora do contexto da

estruturação pedagógica.

1.3 - Participação Periférica Legitimada: a aprendizagem situada A aprendizagem como “atividade situada” constitui a definição central do

processo, que Lave e Wenger (1991 p. 29) chamam de Legitimate Peripheral

Participation (LPP), ou seja, processo pelo qual aprendizes participam em

comunidades de prática em que o domínio do conhecimento e das habilidades

requer movimento em direção à “participação plena nas práticas socioculturais”.19 A

aprendizagem “como um aspecto inseparável e integral da prática social” é o que

autores convidados para esse encontro estavam Jean Lave, Frederick Erickson, George Spindler, Louise Spindler. 18 Numa perspectiva de fronteira entre a Antropologia e a Psicologia, o trabalho de Lave e Wenger (Situated Learning: legitimate Peripheral Participation, 1991), toma como foco o relacionamento entre aprendizagem e as situações sociais nas quais ocorre. 19 A obra “contribui para o crescimento do corpo de investigação nas ciências humanas que explora o caráter situado da compreensão e comunicação humana”. Mais do que se perguntarem quais classes de processos cognitivos e estruturas conceituais estão envolvidas, Lave e Wenger (1991) se perguntam sobre as classes de compromissos sociais que proporcionam o contexto apropriado para que a aprendizagem ocorra (HANKS, 1991, p. XVII).

Page 27: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

27

propõem os autores, sob a rubrica LPP. Oferecendo uma forma de falar sobre as

relações entre os novatos (newcames) e veteranos (old-timers) e sobre atividades,

identidades, artefatos e comunidades de conhecimento e prática (p. 29), a LPP é um

“ponto de vista analítico sobre a aprendizagem”, em que “saber/conhecer e

aprendizagem são parte da prática social” (p. 40).20 Portanto, é “proposta como um

descritor (descriptor) do engajamento na prática social que acarreta aprendizagem”

(p. 34 - 35).21

Em contraposição às teorias clássicas (intelectualistas) da aprendizagem —

em que é “a mente individual que adquire domínio sobre os processos de

raciocínio/racionalização e descrição, mediante uma internalização e manipulação

de estruturas” — o desafio de compreensão da aprendizagem proposto por Lave e

Wenger (1991) é, como afirma Hanks (1991, p. 15), mais profundo: [...] a aprendizagem é um processo que toma lugar em uma estrutura de participação, não em uma mente individual. Isto significa entre outras coisas, que está mediada pelas diferenças de perspectivas entre os co-participantes. É a comunidade, ou ao menos aqueles participantes no contexto de aprendizagem, quem aprende sob essa definição. A aprendizagem está, distribuída entre os co-participantes, não no ato de uma pessoa. (Grifos meus)

Lave e Wenger (1991) apontam limites em “explicações convencionais” que

percebem a “aprendizagem como um processo pelo qual o aprendiz internaliza o

conhecimento já descoberto, transmitido por outros, ou experimentado na interação

com os outros”. Os autores (1991, p. 47) argumentam que essa forma de

compreendê-la é problemática, pois estabelece “nítida dicotomia entre insider e

outsider, sugere que o conhecimento é amplamente cerebral e toma o indivíduo

como unidade não problemática de análise”. Afirmando que o caráter social da

aprendizagem tem sido ignorado, Lave e Wenger (1991) apresentam a

aprendizagem como um processo de participação na comunidade de prática —

participação que é, primeiro, periférica legitimada, mas que aumenta gradualmente

20 O conceito foi elaborado a partir da análise de cinco estudos (descrições) de experiências de aprendizagens: “o aprendizado das parteiras do Yucatec (México); o aprendizado dos alfaiates Vai e Gola (áfrica); o aprendizado dos oficiais interdependentes na marinha americana; o aprendizado dos açougueiros em uma cidade americana; e o aprendizado dos alcoólatras que não bebem, da associação AA” (LAVE e WENGER, 1991, p. 38) 21 Os autores advertem, entretanto, que a escolha do termo participação periférica legitimada (LPP) não pode ser conceituada pelo contraste. A intenção de Lave e Wenger (1991) é que o conceito LPP seja tomado com um todo. Para os autores (1991, p. 35), “cada um dos seus aspectos é indispensável na definição do outro”, não podendo ser considerado isoladamente. LPP “é uma noção complexa que implica relações envolvendo estruturas sociais de poder”.

Page 28: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

28

em engajamento e complexidade. Isso implica inicialmente “ênfase no entendimento

compreensivo envolvendo a pessoa por inteiro” (e não o recebimento de um corpo

de conhecimento factual sobre o mundo). Além disso, na visão de que agente,

atividade e mundo se constituem mutuamente (p. 33). O aprendiz individual não

adquire, desse modo, um corpo discreto de conhecimentos abstratos que ele

transporta e reaplica em outro contexto. O que ele adquire é a habilidade para

desempenho pelo engajamento no processo, sob uma condição atenuada de

participação, isto é, a LPP. Como um traço da prática, a aprendizagem está

presente, portanto, em todos os tipos de atividades, não apenas em casos claros de

treinamento e ensino. As situações cotidianas das quais a pessoa participa (com

extensão limitada) permitem “acesso a modos de comportamento de outra maneira

não disponível para ela”.

Nessa visão, aprendizagem, pensamento e conhecimento são relações entre

pessoas em atividade, com e em um mundo culturalmente e socialmente

estruturado. Desse modo, a “natureza histórica da motivação, desejo e as muitas

relações pelas quais a experiência, mediada social e culturalmente, está disponível

para a pessoa-na-prática” são elementos-chave para o desenvolvimento de uma

teoria da prática. Essa teoria “enfatiza a independência relacional do agente e

mundo, atividade, significado, cognição, aprendizagem e conhecimento” (LAVE e

WENGER, 1991, p. 50).

Considerando a aprendizagem como “produção histórica, transformação e

mudança das pessoas”, Lave e Wenger (1991, p. 51) propõem entender a

participação “sempre baseada na negociação e renegociação situada dos

significados do mundo”. Não aceitando, pois, a internalização passiva, os autores

incluem a “estrutura do mundo social na análise” e levam em conta, de forma

central, “a natureza conflitual da prática social”.22

A noção de participação formulada por Lave e Wenger (1991, p. 52) propõe a

dissolução de dicotomias, como “atividade corporal (embodied) e cerebral”,

“contemplação e envolvimento”, “abstração e experiência”. Para os autores (1991, p.

22 Em resposta à noção de que a compreensão é algo que as pessoas têm em suas cabeças (proposta sobretudo em análises estruturais clássicas), Lave e Wenger localizam a aprendizagem não na aquisição da estrutura, mas no acesso à participação. Os autores contrapõem também uma “outra posição extrema de que as estruturas podem pré-formar os aspectos da experiência”. Lave e Wenger (1991) não rejeitam a noção de que as estruturas de participação são estruturadas. A difícil questão é: “Que tipo de sistema e que tipo de estrutura? Ou seja, as estruturas devem ser significativamente reconfigurada no contexto local.

Page 29: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

29

52), isso implica que “entendimento e experiência estão em constante interação —

são mutuamente constitutivos. Assim, “pessoas, ações e mundo estão implicados

em todo pensamento, fala, conhecimento e aprendizagem”.

Apostando na necessidade da visão relacional da pessoa e da aprendizagem,

Lave e Wenger (1991, p. 54) acreditam que é importante construir uma “noção

robusta da pessoa por inteiro”, fazendo justiça às “múltiplas relações através das

quais ela define a si mesma na prática”. A ênfase está nas relações entre produção

de identidades e produção da comunidade de prática, o que permite entender que a

aprendizagem incorpora, embora de modos transformados, a característica

estrutural da comunidade (p. 56). Afirmam também que o “desenvolvimento da

identidade é central para as carreiras de novatos (newcomers) na comunidade de

prática e, assim, fundamental para o conceito de LPP” (p. 115).

A aprendizagem é, pois, constitutiva das experiências na e da prática social.

Está ligada, portanto, ao centro da produção, reprodução, transformação e mudança

da ordem sociocultural (LAVE, 1993, p. 30). A prática social é tomada, desse modo,

como contexto de aprendizagem. Entendendo que contexto não é contêiner (lugar,

espaço, etc.) em que a prática social acontece, Lave (1993, p. 18) fundamenta-se

nas reflexões de Engeström (1993, p. 67) para propor uma definição: [...] contextos não são nem containers nem espaço experiêncial criado situacionalmente. Contextos são sistemas de atividades. Um sistema de atividade integra o sujeito, o objeto e os instrumentos (ferramentas materiais bem como signos e símbolos) dentro de um todo unificado. [...] Um sistema de atividade incorpora tanto aspecto produtivo object-oriented quanto o aspecto comunicativo person-oriented da condução humana. Produção e comunicação são inseparáveis. De fato, um sistema de atividade humana sempre contém subsistemas de produção, distribuição, troca e consumo (p. 67).

Se o contexto é visto como um mundo social constituído de relações entre

pessoas que agem, a compreensão de ele é inescapavelmente flexível e está em

constante transformação ganha destaque. Definindo o contexto como em

permanente mudança, a aprendizagem torna-se característica central. Em outras

palavras: a “atividade situada sempre envolve mudança no conhecimento e na ação”

e isso é o que os autores entendem por aprendizagem. Sendo assim, “a

aprendizagem se dá no curso da atividade”, muito embora freqüentemente não seja

reconhecida dessa maneira (LAVE, 1993, p. 5).

Page 30: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

30

Em face da difusão/popularização do futebol no Brasil, este esporte foi

tomado como prática em que os processos de aprendizagem são indivisíveis da

produção cotidiana.

1.4 - Forma escolar e aprendizagem situada: a trama da pesquisa Para descrever/analisar a aprendizagem do futebol, recorri à teoria da forma

escolar, de Vincent, Lahire, Thin (2001), e à proposta da aprendizagem situada em

comunidades de prática, formulada por Lave e Wenger (1991). Mas, como operar

com teorias que possuem focos opostos? Como articulá-las de maneira a beneficiar

a compreensão do objeto pesquisado? Entendendo que a forma escolar e a

aprendizagem situada são constitutivas das aprendizagens do e no futebol, esta

pesquisa aborda as duas teorias como um tipo “oposição complementar" (GOMES

2007, p. 1). Ao descrever os modos de aprendizagem do futebol em um bairro de

Belo Horizonte, busquei dar relevo àquilo que é traço singular das relações sociais

escolares, segundo a teoria da “forma escolar”, e a outros modos de relação social

de aprendizagem, segundo a noção de aprendizagem situada de Lave e Wenger

(1991). Trata-se, portanto, de entrar no tema da aprendizagem por dimensões

distintas: “o estrutural (o conceito de forma como algo que se mantém, que dá

sentido/direção do conjunto); e o situacional (a ação localmente contextualizada)”

(GOMES, 2007, p. 1-2). É importante salientar, entretanto, que, ao utilizar a

separação entre a forma escolar e a aprendizagem situada, estou criando uma

oposição que não existe, de forma descontínua, na realidade. Essas distinções,

utilizadas do ponto de vista analítico, permitiram penetrar mais o processo de

aprendizagem do futebol. Suficientemente amplas para abarcar os diferentes

contextos de produção do futebol e, desse modo, ajudar na compreensão das

relações sociais de aprendizagem que ocorrem dentro e fora da escola, as teorias

da forma escolar e da aprendizagem situada permitiram desvelar facetas dos modos

de aprendizagem do futebol: o que é aprendido no modelo escolar e na participação

na prática social. Favoreceram também a compreensão dos contextos de produção

desse esporte como contextos híbridos, isto é, que possuem modos de aprender

que se articulam e também se opõem no cotidiano.

De maneira pontual, a teoria da forma escolar foi usada neste trabalho por ser

a que explicita a organização de fundo da escola, ou seja, que revela o tipo de

relação social que nasce (se configura) na escola e vai se expandir para a

Page 31: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

31

sociedade. Como uma teoria que, ao explicar o passado, por uma abordagem sócio-

histórica, ajuda a esclarecer a gênese do que se vive no presente, encontrei na

teoria da forma escolar modos de expressar as relações sociais educativas que

ocorrem em diferentes contextos de produção do futebol. Tal abordagem permitiu

conhecer mais sobre o processo de expansão da escolarização da sociedade e

sobre as tensões, oposições e resistências a esse processo. Sobre esse “modo de

socialização específico”, cuja incidência vai muito além da instituição escolar,

afirmam Vincent, Lahire, Thin (2001, p. 17): [...] a análise sociogenética da forma escolar como forma de relações sociais permite tornar estranha a nós mesmos esta realidade social, hoje onipresente, desnaturalizando certas noções constituídas freqüentemente como categorias genéricas: educação, pedagogia, etc. [...] A forma escolar de relações sociais só se capta completamente no âmbito de uma configuração social de conjunto e, particularmente , na ligação com as transformações das formas de exercício do poder.

A adoção da perspectiva proposta por LAVE e WENGER (1991) possibilitou

tratar da dimensão social da aprendizagem e/ou do tipo de interação que leva a

pessoa/sujeito a aprender. Considerando que a aprendizagem não se circunscreve à

forma escolar de relações sociais, foi necessário operar a mudança de foco proposta

por Lave e Wenger (1991): do indivíduo, como aprendiz, para a aprendizagem como

participação no mundo social. Portanto, a abordagem teórica da aprendizagem

situada ensejou possibilidades de análise de uma dinâmica em que a aprendizagem

é inseparável da prática social cotidiana. Permitiu também: abordar a aprendizagem

do futebol como constituição de habilidade e identidades; compreender mais sobre

os processos cotidianos de aprendizagem do futebol (relações sociais que as

fundamentam e o diálogo e tensões que estabelecem na escola); questionar a

onipresença das relações mestre/aprendiz como traço característico da

aprendizagem e explicitar outras dinâmicas sociais de aprendizagem (invisíveis) na

escola.

É importante salientar que, ao lidar com a escola e o esporte (instituições

sociais diferentes), não estabeleci uma oposição simplificada. A relação entre o

contexto escolar e o contexto esportivo (mais amplo) foi tratada neste trabalho como

uma tensão permanente entre autonomia e interdependência. Desse modo, retomo

os modos de aprendizagem do futebol atenta a essa (des)articulação esporte/escola,

explorando suas nuanças a partir de aproximações e distanciamentos. Parto do

Page 32: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

32

pressuposto de que ambos são produções humanas históricas, polissêmicas e

ambíguas — esporte e escola produzem sujeitos que, por sua vez, são seus

produtores.

1.5 - O conceito de habilidade

“Aqui é o país do futebol. Igual aos Estados Unidos [...], eu comparo o futebol brasileiro com o basquete, porque lá você não tem que ensinar muito basquete, qualquer um lá sabe jogar basquete. O cara…, você vê nos filmes lá, eles estão brincando, conversando e jogando basquete. Pega agora aqui no Brasil, por exemplo, aqui você tem que ensinar basquete. Então é a mesma coisa do futebol, futebol é da cultura do país”. (Professor de EF) (Grifos meus)

Aprendido concretamente, “nada é natural no futebol” (DAMO, 2005, p. 311).23

Como afirmou o professor de Educação Física acima, esse esporte é favorecido pela

cultura do país, ou seja, é na participação em contextos de prática do futebol (na

cultura) que os jovens constituem habilidade. Como uma pedagogia culturalmente

fundada (GOMES, 2006), no caso do futebol, a cultura é contexto e objeto de

aprendizagem: se aprende a cultura na cultura. Em vista disso, este trabalho — que

considera o futebol como uma prática culturalmente construída — dá ao conceito de

cultura centralidade. Portanto, as formas de tratar a cultura vão ser determinantes

para a compreensão da dinâmica de aprendizagem desse esporte.

Mas pretendo tratar o conceito de cultura de forma pontual, sem passar pelas

várias acepções, que incluem abordagens que colocam ênfase no seu caráter

normativo ou que a abordam como traços culturais.24 Embora a abordagem

simbólica, amplamente reconhecida a partir de Geertz (1978), Sahlins (1997) e

outros, seja recorrentemente utilizada no âmbito da educação, neste trabalho

caminhei em direção a um possível paradigma ecológico de cultura.25 Para Velho

23 No âmbito da Educação Física, estudos, como o de Daolio (1995, 2001), que seguem a trilha de MAUSS (1974), em seu texto clássico de sobre as técnicas corporais, possibilitam entender as técnicas futebolísticas, como produções simbólicas e históricas. Afirma Daolio (2001, p. 34): “Mauss, considerado um dos pais da Antropologia moderna, nos ensina que qualquer movimento humano é uma técnica, por possuir tradição e eficácia”. 24 Uma revisão das várias acepções de cultura e as suas implicações para a aprendizagem pode ser vista em Gomes (2006). 25 Abordagem da qual Gregoy Bateson é precursor.

Page 33: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

33

(2001), essa abordagem busca, fundamentalmente superar a oposição entre

natureza e cultura, há muito instaurada no âmbito científico.26 Afirma o autor (2006,

p. 5): [...] hoje ironicamente, é o intelectualismo que está posto em dúvida, sobretudo através de renovadas referências que questionam a oposição mente-corpo, por vezes por via de uma rediscussão dos cartesianismos. Na antropologia isso tem sido associado a problemáticas como a do embodiment27 [...] e a do desenvolvimento de habilidades (Skills) que envolvem transformações corporais no próprio processo de transmissão e aprendizado. [...] Mas também tem sido associado de um modo mais geral ao questionamento à oposição forte entre cultura e natureza.

Levando em consideração a importância da abordagem ecológica da cultura

para o desenvolvimento do trabalho, recorri à abordagem alternativa de Tim Ingold28

(2000, 2001), que propõe “a noção de cultura como habilidade” e de “aprendizagem

como educação da atenção”.29

Em seu texto “From the transmission of representations to the education of

attention”, publicado em 2001, Ingold apresenta como questão norteadora: como

cada geração contribui para o conhecimento (knowledgeability) da seguinte?

Adiantando que a sua resposta não pode estar ligada à transmissão de

representações, Ingold (2001, p. 139) fundamenta suas análises para mostrar “que a

contribuição que cada geração dá para a sucessora equivale a uma educação da

atenção”. De acordo com essa abordagem, o que se aprende e transmite às novas

gerações não seria a cultura (somente significados), mas habilidades.

26 Segundo Velho (2001, p. 133), “a natureza científica das ciências sociais nunca deixou de ser um problema". Uma solução elegante, que vem do final do século XIX e é associada a Dilthey (e posteriormente Weber), consiste em distinguir as ciências do espírito das ciências da natureza. Essa solução aparentemente nova não fez mais do que se enquadrar num dos lados de uma oposição fundante entre natureza e cultura. Oposição que, juntamente com uma série de outras (como sujeito e objeto, razão e emoção), parece fazer parte de um quadro que ganhou organização especial no século XVIII [...]. 27 O campo dos debates sobre incorporação (embodiment) vem sendo constituído desde os anos 80 (ver Csordas, 1990). Nesse cenário, Csordas (1990) mostra que autores, como Bourdieu e Merleau Ponty, tratam há bastante tempo da idéia de incorporação na prática. 28 Professor de Antropologia Social da Universidade de Aberdeen, Tim Ingold, que discute a cultura em relação à aprendizagem, é uma referência importante na Antropologia internacional (VELHO, 2006). “Ingold acentua a importância do desenvolvimento de habilidade na vida social, inclusive no aprendizado da antropologia. Acentua também a noção consagrada de Gregory Bateson de aprender a aprender ou de deuteroaprendizado” (VELHO, 2006, p. 5). 29 Sei quanto é controverso o uso do termo habilidade no âmbito da Educação Física (sobretudo por sua versão mecanicista). Contudo, apostando na força teórica do conceito de habilidade de Ingold, que escrevo em itálico no texto, a ele recorro para expressar a complexidade de elementos em questão na aprendizagem do futebol.

Page 34: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

34

Uma premissa do autor (2001, p. 135) é que o conhecimento é fundado na

habilidade, e não em alguma combinação de capacidades inatas e competências

adquiridas. Para o Ingold (2001, p. 27), “o ser humano, com suas atitudes e

disposições particulares, não é produto nem dos gens nem da cultura, nem de

ambos juntos”. Ele “é formado dentro de um processo vitalício (lifelong) de

desenvolvimento ontogenético”. Buscando mover-se para além “da dicotomia entre

capacidades inatas e competências adquirida” (ou entre biologia e cultura) e com

foco nas “propriedades emergentes de sistemas dinâmicos”, Ingold (2001, p. 114)

sugere que é por meio de um “processo de habilitação (enskilment)” que “cada

geração desenvolve dentro e além dos conhecimentos de seus predecessores”. Isso

o leva a concluir que, no desenvolvimento do conhecimento, a contribuição que cada

geração dá para a próxima não está na acumulação/estoque de representações,

mas no desenvolvimento de um modo particular de orientação/ação/interação em

um ambiente, que o autor trata como educação da atenção. Em síntese, sua

proposta busca a superação de um modelo de compreensão do conhecimento como

informação e de aprendizagem como transmissão e/ou processamento de

informações. Segundo Ingold (2001, p. 142), a educação da atenção é, pois,

equivalente a um processo de afinação/refinamento do sistema perceptual.30

O autor (2001, p. 136) fundamenta-se em Lave (1988), para dizer que “cada

ser humano é o centro da consciência e agencia no campo da prática” (portanto,

aprendizagem humana como engajamento na prática) e que a habilidade é

inevitavelmente incorporada por meio da experiência e prática em um ambiente

(INGOLD, 2001, p. 27).31 Desse modo, para ele, a habilidade não pode ser

considerada simplesmente como técnica do corpo (num sentido de técnica reduzido

a um movimento mecânico). Para entender a verdadeira natureza da habilidade, é

preciso mover-se na direção oposta, buscando restaurar o ser humano no contexto

original de engajamento ativo com os constituintes do seu ambiente.32 Situando-se

30 Para formular a noção de educação da atenção, Ingold (2001) fundamenta-se em Gibson (1979), que trata a percepção como uma atividade do organismo todo em um ambiente ao invés de uma mente dentro do corpo. 31 O trabalho de Lave e Wenger (1991) sobre a aprendizagem situada e a perspectiva teórica de Ingold (2000, 2001) sobre o conceito de habilidade têm sido usados como referência para pesquisas sobre a aprendizagem em diferentes campos. Por exemplo, de Gisli Palsson, 1994 (Enskilment at sea), Mark HARRIS, 2005 (Riding a Wave: embodied skills and Colonial History on the Amazon Floodplaim). 32 “Sem dúvida, pessoas criadas em diferentes ambientes aprendem a perceber o seu entorno, e a agir dentro dele, de diferentes modos” (INGOLD, 2001, p.134).

Page 35: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

35

entre os que buscam na visão ecológica um “deslocamento do sujeito cartesiano, e

com ele, da série de oposições que inclui aquela entre natureza e cultura” (VELHO

2001, p. 135), Ingold propõe a retomada da unidade original do sentido de

habilidade.33 Para isso, a sua noção de habilidade considera a interação entre o

sujeito, os instrumentos e o ambiente. Esse é o motivo pelo qual Ingold (2001, p.

178) afirma que “o estudo da habilidade não apenas se beneficia, mas também

demanda uma abordagem ecológica” (p., 21).

Ainda segundo Ingold, todas as habilidades são constituídas da mesma

maneira, até aquelas que são supostamente consideradas inatas, como andar e

falar (VELHO, 2001, p. 137). Tendo como fundamentação os estudos de Gregoy

Bateson, Ingold (2001) afirma que a “habilidade, em síntese, é uma propriedade não

individual do corpo (como uma entidade biofísica, uma coisa em si mesma), mas um

campo total de relações constituídas pela presença da pessoa-organismo” (corpo e

mente) em um ambiente ricamente estruturado. Ao propor a habilidade como

fundamento do conhecimento e a educação da atenção como o modo pelo qual se

pode compreender a aprendizagem (na prática cotidiana), o autor argumenta sobre

a necessidade de tratar a habilidade como conhecimento prático (prática habilitada):

“nem funcionamento mecânico, nem expressão simbólica” (INGOLD, 2001, p. 20). A

habilidade é, portanto, a capacidade de agir prontamente em relação às diferentes

situações, ou seja, ela se constitui do desenvolvimento de certas modalidades de

atenção para o mundo, que Ingold (2001) denomina educação da atenção.

Entendendo que o conhecedor é desvelado na prática por sua presença como

ser-no-mundo, Ingold (2001, p. 177) ressalta que os “seres humanos não constroem

o mundo”, mas o habitam. O uso que Ingold (2001) faz do termo habitar permite

compreender que o mundo que as pessoas habitam passa a existir à medida que

agem nele e que as pessoas são constituídas pelo engajamento no mundo, não em

uma “natureza dada” e nem em uma “cultura constituída" (INGOLD, 2000).

* * *

A tensão que percorre este trabalho é que se aprende sempre nas diferentes

situações. Nas práticas futebolísticas, portanto, os jovens estão sempre aprendendo

alguma coisa. O que estão aprendendo? Como estão aprendendo? O que promove

33 Afirma Velho (2001, p. 137): “aí se coloca a problemática do embodiment, que, para Bateson, tem suporte, não propriamente nos corpos, mas nas relações, padrões comunicativos”.

Page 36: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

36

a aprendizagem? Para abordar o tema, contudo, é preciso superar a idéia —

amplamente divulgada e criticada no âmbito da Educação Física — de

aprendizagem de gestos (descontextualizados, sem significados e sem história).34

Parto do princípio de que as práticas esportivas não são aprendidas apenas como

gestos motores, pois considero que os esportes são práticas culturais e, desse

modo, cheios de significados.35 É preciso salientar, entretanto, que a complexidade

da prática futebolística mostrou que aprender (a cultura) não se esgota na

consideração de gestos motores e significados, mas que, no processo de

incorporação da prática social, outros aspectos estão em jogo. Portanto esta

pesquisa procura dar relevância ao conjunto de elementos que envolvem a

aprendizagem desse esporte — a incorporação da habilidade, ou seja, de

significados, disposições corporais, tipos de atenção, emoções e conhecimentos que

caracterizam a prática (e que não são percebidos pelos próprios sujeitos). Estou

operando, portanto, com o conceito ecológico de cultura de Ingold (2000, 2001).

Dada a natureza do futebol — um saber que se inscreve no

corpo/corporificado, bem como se situa mais próximo do saber-fazer que se produz

na prática do que do conhecimento racionalizado —, neste trabalho tomo a

experiência como percurso de aprendizagem e o conhecimento como fundado na

habilidade. Assim, ao lado do conceito de participação (LAVE e WENGER, 1991)

pretendo, ao trazer para o centro das análises essa noção de habilidade (como

campo total de relações constituídas que no caso do futebol envolvem o jogador,

a bola, o outro, o ambiente), descrever esse campo de relações.

Para a perspectiva proposta, foi necessário articular, também questões

referentes aos significados dessa prática no contexto brasileiro, bem como a

construção de identidades (juvenis). Assim, o eixo da pesquisa é a discussão da

aprendizagem do futebol. Mas foi inevitável o diálogo com a bibliografia que trata as

práticas culturais juvenis (em particular, os aspectos da identidade masculina) e do

futebol no Brasil.

O quadro teórico adotado permitiu descrever/analisar os modos de

aprendizagem de uma prática singular (o futebol), ao mesmo tempo em que

ofereceu subsídios para o desvelamento de como se aprende algo sobre o qual há

34 Por exemplo: a linha de pesquisa da aprendizagem motora. 35 Posição que partilho com autores como Bracht (1997, 2003, 2005), Kunz (1994), Vago (1999), Daolio (1995, 2001), Taborda de Oliveira (2003), dentre outros.

Page 37: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

37

pouco ensino observável ou de como a cultura (entendida como habilidade) é

aprendida. Utilizo, para isso, operadores conceituais que permitem identificar

dinâmicas de aprendizagem nos contextos escolar e não-escolar, sem, contudo,

tratá-los de forma dicotômica (escolar versus não-escolar). Assim, abordo a forma

escolar quando essa se revela fora da escola e, também, dentro da escola, abordo a

aprendizagem situada.

Page 38: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

38

1.6 - Caminhos da pesquisa: a metodologia Amplamente divulgado no Brasil, o futebol parece ser uma prática conhecida

por todos — sobretudo os homens. Por isso, descrevê-la procurando desnaturalizar

as supostas obviedades não é tarefa simples. Para dar conta dos aspectos sutis (ou

invisíveis) que envolvem o jogo e obscurecem a constituição dos modos de

aprendizagem, procurei fazer o exercício do personagem Palomar, de Ítalo Calvino

(1994): concentrei-me nos detalhes das práticas futebolísticas juvenis em um bairro

de Belo Horizonte, tentando capturar/compreender as sutilezas, nuances,

opacidades que dessem pistas sobre a aprendizagem. Para descrever e analisar a

aprendizagem do futebol recorri à etnografia.36

1.6.1 - A ante-sala da pesquisa: escolhas e negociações Em 2004, realizei um estudo exploratório com o intuito de identificar na cidade

de Belo Horizonte, um espaço propício à investigação. Buscava um bairro,

aglomerado ou vila dotados de espaços diversificados para a aprendizagem do

futebol (escola pública, “escolinhas” de esportes, projetos sociais, campos de

várzea, praças esportivas, terrenos baldios, ruas, becos, etc.). O objeto de pesquisa

exigiu, portanto, a escolha de um contexto social em que os recursos para a

aprendizagem do futebol viessem de várias fontes (não apenas da atividade

pedagógica); em que fosse possível observar a ocorrência de intricada estrutura de

aprendizagem do futebol; em que a prática criasse um currículo potencial (de

aprendizagem), no sentido amplo37; enfim, em que o futebol fizesse parte do dia-a-

dia dos jovens.

A opção por investigar as práticas de futebol de jovens da periferia da cidade

tornou-se relevante. Primeiro, porque os jovens em idade de escolarização têm

intensificação do acesso às práticas esportivas/futebolísticas nas aulas de Educação

Física e ampliação da sua vivência em outros tempos escolares (recreios, entradas e

saídas da escola) e sociais (fora da escola). Além disso, porque na periferia (ao

contrário dos bairros mais centrais de Belo Horizonte) se multiplicam os 36 Segundo Gusmão (1997, p. 22) “a etnografia deixou de ser privilégio de antropólogos desde que estes mudaram seu campo para as cidades”. Para a autora o desafio é “conhecer outros mundos simbólicos” no interior do próprio mundo, o que constitui uma “via de mão dupla, onde estão em jogo a objetividade e a teoria científica e também a sensibilidade interpretativa”. 37 Segundo Lave e Wenger (1991), um currículo de aprendizagem é essencialmente situado. Ele não é alguma coisa que possa ser considerado isolado, manipulado em termos didáticos arbitrários ou analisado à parte das relações sociais. Um currículo de aprendizagem é, pois, característico de uma comunidade.

Page 39: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

39

espaços/tempos de produção do jogo: na escola pública (que é a que garante

acesso às camadas populares), nos projetos sociais e “escolinhas” de futebol, nas

peladas nas imediações do bairro, nos times amadores de futebol de várzea, nas

torcidas dos times profissionais de futebol, etc. O futebol é, portanto parte da

sociabilidade.

Em novembro de 2004, realizei pesquisa exploratória no Bairro Universitário

— contexto em que a infra-estrutura (campo de futebol, quadras, ruas, praças

esportivas, escola) permitia a inserção cotidiana do futebol. Com idas à escola e ao

campo de futebol, conversas informais e algumas observações das práticas, foi

possível ter acesso a dados importantes sobre a dinâmica de funcionamento do

futebol no bairro. Os dados levantados — sobre a inserção/impacto do futebol no

cotidiano dos jovens moradores do bairro — culminaram na escolha desse espaço

para a realização da pesquisa, feita no decorrer do ano de 2005.38

Uma particularidade dessa escolha é que resido no limite aos bairros Santa

Rosa e Universitário. Separa o meu prédio do complexo onde se situam o campo de

futebol, a escola e a Praça de Esportes uma área (acidentada/íngreme) onde há um

espaço de reserva da prefeitura de Belo Horizonte (PBH). Dito de outra forma: moro

no alto de um morro (na divisa entre esses bairros) e da minha janela tenho a visão

de todo o espaço onde realizei a coleta de dados. Com algumas limitações, trata-se

de uma visão panorâmica privilegiada do contexto pesquisado. Da minha casa ouço

os sinais que demarcam os horários escolares, os gritos dos alunos que fazem aulas

de Educação Física na quadra esportiva da escola, o apito dos treinadores e

professores de futebol no campo do Racing, o apito do juiz e os gritos das torcidas

em jogos importantes dos finais de semana, a oração dos jogadores e os gritos de

guerra na hora de entrar em campo. Desse ponto muitas vezes fui surpreendida com

práticas não-programadas e/ou das quais ainda não havia sido informada. Isso era

motivo para descer até o campo e acompanhar de perto as práticas que aconteciam.

Em certas ocasiões, acompanhava o movimento do campo apenas da janela. Mas,

se houve vantagem nessa posição estratégica, foi estar sempre a par dos

movimentos futebolísticos que aconteciam no bairro Universitário.

38 A primeira pesquisa exploratória foi feita em agosto de 2004 no Aglomerado Santa Lúcia. Entretanto, apesar de cumprir os critérios básicos para a realização do estudo, a incompatibilidade de horário (noturno) de funcionamento dos projetos de escolinhas de futebol se colocou como um limite para a realização do estudo.

Page 40: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

40

A opção por um estudo etnográfico em um contexto específico da cidade

(bairro, aglomerado, vila, etc.) demandou atenção a um aspecto importante. Como

afirma Magnani (1996), estudar o bairro possibilita compreender as relações de

sociabilidade em determinada delimitação do espaço urbano (bairro popular de

periferia), contudo isso não significa isolamento da dinâmica em relação à produção

da cidade. Seja qual for a esfera de relações que mantém com a sociedade, a

dinâmica de um espaço não se esgota no seu perímetro. Para Magnani (1996, p.47),

“recortar um objeto ou tema de pesquisa na cidade não implica cortar os vínculos

que mantém com as demais dimensões da dinâmica urbana, em especial, e da

modernidade, em geral”. E acrescenta o autor:

[...] o que caracteriza o fazer etnográfico, no contexto da cidade é o duplo movimento de mergulhar no particular para depois emergir e estabelecer comparações com outras experiências e estilos de vida, no âmbito das instituições urbanas, marcadas por processos que transcendem os níveis local e nacional (p.48).

1.6.2 - A produção da pesquisa e a produção da pesquisadora: a pesquisa de campo

Poderia iniciar o relato traçando, passo a passo, as etapas da pesquisa, as

decisões tomadas no campo de pesquisa e as implicações nos dados coletados (ou

construídos). Mas, se tais informações são fundamentais à leitura deste trabalho

sendo, portanto, descritas, elas parecem deixar escapar o processo vivido. Afinal,

como falar de uma trajetória de pesquisa sem falar da trajetória da pesquisadora?

Como explicar o mergulho/penetração no contexto observado (inevitável à pesquisa

etnográfica) sem tratar das emoções vividas no decorrer da investigação? Como

falar de práticas corporais (da habilidade futebolística) sem tratar do lugar ocupado

pelo próprio corpo? Muitas são as questões e anunciá-las ajuda a elucidar o grau de

envolvimento vivido e a entrelaçar a produção da pesquisa com a produção da

pesquisadora.

Na verdade jamais tinha experimentado uma situação de tamanho

envolvimento com as práticas de futebol. Terceira de quatro filhas, o futebol não fez

parte dos jogos e brincadeiras na minha infância, nem mesmo nas aulas de

Educação Física. Isso porque os esportes praticados pelas mulheres, nessa época,

eram o vôlei e o handebol. Do meu pai herdei uma “adesão” (fraca) à torcida do

Page 41: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

41

Cruzeiro. Porém, como ele (que se envolve com o esporte apenas como

telespectador), jamais freqüentei campos e/ou estádios de futebol. E jamais usei

uma camisa do clube. Meu contato com o futebol, no curso de Educação Física da

Universidade Federal de Minas Gerais, se deu em duas disciplinas específicas:

Futebol de Campo e Futebol de Salão. No curso de graduação, entretanto, jamais

joguei um “jogo de verdade”. Atenta aos processos pedagógicos para o ensino das

técnicas e regras futebolísticas, não me sentia à vontade no jogo. Na Universidade

Federal de Ouro Preto, onde sou professora de Educação Física, é que experimentei

o jogo. Em algumas aulas — para motivar jovens a participar do jogo de futebol em

turmas onde predominava o masculino (turmas de Engenharias) — tive a

oportunidade de jogar futebol com os alunos. Portanto, como outras mulheres

brasileiras, nasci e cresci no “pais do futebol” sem praticar o jogo (o que não significa

que esse esporte não faça parte de minha vida). Afinal, neste contexto cultural, o

futebol é prática do âmbito masculino. Diante do exposto, em que termos ocorreria a

observação? Qual o tipo de inserção no campo futebolístico me seria possível?

Como se daria a relação investigadora/nativos? A partir das contribuições de

referências importantes no campo da Antropologia como Geertz (1997), Sahlins

(2006), e também de pesquisadores atuais como Goldmam (2003) – que se

debruçaram sobre a tarefa do antropólogo/antropologia - busquei fazer das

diferenças com os informantes (nativos) possibilidade de conhecimento.

Para Geertz (1997, 85), há um mito sobre o “pesquisador de campo

semicamaleão, que se adapta perfeitamente ao ambiente exótico que o rodeia, um

milagre ambulante em empatia”. Desse modo, o autor (2004) recoloca a questão

central da Antropologia: para fazer etnografia não é necessário se tornar nativo.

Fazer observação participante significa, pois, “muito mais a possibilidade de captar

as ações e os discursos em ato do que uma improvável metamorfose em nativo”

(como diz GOLDMAM, 2003, p. 458). Mesmo porque não existe nativo, mas nativos

(no plural).

A inexistência de “um ponto de vista nativo único” — pois há “inúmeras

‘posições do sujeito’ diferentes, cada uma com sua visão interessada de um

fenômeno que é, em si mesmo, intersubjetivo e maior que qualquer uma delas” —

levou Sahlins (2006, p.12) a argumentar que essa “é uma razão para se ter um

observador externo bem informado”. Para o autor (2006, p.12), na etnografia “é

preciso ter o que Mikhail Bakhtin louvava como a compreensão criativa do olhar

Page 42: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

42

externo antropologicamente bem informado”. Sahlins (2006) argumenta que no

âmbito da cultura a noção de exotopia proposta por Bakhtin é uma poderosa

ferramenta para a compreensão. Segundo o autor, ao afirmar que é aos olhos de

outra cultura que uma cultura estranha revela-se mais completamente e

profundamente, Bakthin chama a atenção para a “externalidade do etnógrafo e,

desse modo, a cultura em observação passa a ser vista a partir da experiência de

outras culturas — incluindo em especial a do próprio observador”. Para ele, “uma

dada forma de vida torna-se compreensível por sua posição relativa no arranjo geral

de outros esquemas culturais”. Nesses termos Sahlins (2006, p.12) salienta que

Bakthin “oferece uma base melhor para a integridade da antropologia do que seus

praticantes apresentaram”. Assim, o autor, se fundamenta no conceito de exotopia

de Bakhtin para afirmar que “é preciso outra cultura para conhecer outra cultura”.

Atenta às contribuições desses autores, realizei o processo de incursão no

campo da pesquisa, considerando tanto a necessidade de reconhecer a

diversidade/heterogeneidade dos interlocutores/nativos (juventudes39), quanto de ser

observadora externa bem informada. A coleta de dados teve a duração de um ano e

meio: um ano de observação participante e seis meses de entrevistas.

Iniciei a pesquisa de campo (observação participante) em fevereiro de 2005,

no bairro Universitário em Belo Horizonte.40 Passei a acompanhar um grupo de

jovens em suas práticas cotidianas de futebol na escola (aulas de Educação Física e

recreios), no campo de futebol do bairro (Projeto Esporte Esperança/Segundo

Tempo, treinos do time juvenil e infantil, jogos de futebol amistosos e de

campeonatos, práticas de lazer), na Praça de Esportes em frente à escola (aulas de

39 Busquei nos estudos sobre os jovens (MELUCCI, 1997; SPÓSITO, 1997; dentre outros) compreender juventude como categoria não-homogênea. Como afirma Melucci (1997, p.9), “a juventude não é mais somente uma condição biológica, mas uma definição cultural”. Constituída pela faixa de 15 a 24 anos nas orientações de trabalhos na área demográfica, essa classificação de juventude é questionada por Spósito (1997, p.39): [...] para o conjunto da sociedade brasileira, a tendência maior é a antecipação do início da vida juvenil para antes dos 15 anos, na medida em que certas características de autonomia e inserção em atividades no mundo do trabalho — típicos do momento definido como a transição da situação de dependência da criança para a autonomia completa do adulto — torna-se horizonte imediato para grande parcela dos setores empobrecidos”. A partir das reflexões apresentadas por Spósito (1997), torna-se possível afirmar que a categoria juventude não é estável e linear, mas histórica. Assim, juventude não é um dado. Ela é, antes de tudo, uma construção carregada de significação cultural. 40 A observação participante “caracteriza-se, num sentido geral, pela presença constante do pesquisador no campo” e a observação das “atividades de um grupo no local de sua ocorrência” (TURA, 2003, p. 189). Ela pressupõe o “envolvimento do pesquisador em múltiplas ações, entre elas o registrar, narrar e situar acontecimentos cotidiano”.

Page 43: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

43

Educação Física e práticas de lazer), em outros campos de futebol da cidade (jogos

de futebol do campeonato amador).

Na escola (EECJP), só comecei a pesquisa após contatos com a diretora e

autorização dos professores de Educação Física para acompanhar as aulas do turno

da manhã. De início a minha presença era motivo de constrangimentos entre os

professores (preocupados em expressar/justificar suas escolhas e saber da minha

opinião) e de curiosidade entre os alunos (que sempre me perguntavam sobre o que

fazia, se eu era uma nova professora, se eu estava selecionando atletas, sobre o

que eu escrevia tanto, etc.). Contornava as diferentes indagações, explicando os

objetivos da pesquisa (dizendo que se tratava de uma pesquisa sobre a

aprendizagem do futebol). Mas conversar sobre a aprendizagem do futebol com os

participantes da pesquisa sempre gerava debate sobre um fenômeno que, de tão

familiar (naturalizado), é também desconhecido. Nas relações com os meninos,

jovens e homens (enfim com o gênero masculino) me sentia marcada pela diferença.

Conversar com esses participantes sobre a pesquisa me deslocava de posição.

Passava do lugar de quem sabe (pois anunciar uma pesquisa de doutorado dava

certo status no grupo) para o lugar de quem não sabe, enquanto o inverso acontecia

com os meus informantes. Então jogadores de futebol na escola, boleiros de fim de

tarde no campo do bairro, “atletas” de fim de semana, professores e treinadores,

dentre outros, passavam a me conduzir — como se conduz um iniciante — no tema

de pesquisa. Nesses momentos da experiência de campo pude compreender melhor

porque Velho (2006, p.06), afirma que o antropólogo é duplamente aprendiz: “dos

mestres acadêmicos, mas também dos seus mestres no campo”.

Na EECJP, foi difícil escapar da rígida demarcação de papéis da instituição. A

entrada de um adulto no contexto posiciona-o imediatamente: professor, futuro

professor/estagiário, pai de aluno, membro da direção. Para minimizar o impacto da

minha presença, procurei escapar dessas classificações, ficando sempre onde

estavam os alunos. Desse modo, sentava na arquibancada com eles no decorrer

das aulas de Educação Física, assistia aos jogos do campeonato do lado em que

eles ficavam na quadra (junto à torcida) e buscava me aproximar dos grupos de

conversa. Percebi, então, que uma relação de confiança foi sendo lentamente

tecida: nas conversas sobre o desempenho de alguns jogadores na escola (e fora

dela); nas “tarefas” de tomar conta do material de alguns alunos na quadra (já que

muitos ficavam bastante preocupados com roubos); na leitura/observação dos

Page 44: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

44

cadernos dos alunos decorados com escudos e figurinhas dos times de futebol

profissional; nas conversas sobre outros assuntos.

Quando os professores e alunos já se sentiam mais à vontade com a minha

presença, comecei a levar o diário de campo para a escola para fazer algumas

anotações. Vez por outra, entretanto, um aluno tentava ler o que eu estava

escrevendo. A dificuldade para entender o manuscrito e o pouco sentido que ele

tinha (basicamente tópicos sobre práticas de futebol), contudo, levava os mais

curiosos a desistir da empreitada. Dos professores, as preocupações com as

anotações eram não interromper o meu trabalho. Assim, eles sempre se

aproximavam para trazer informações sobre os fatos ocorridos na semana ou no

momento. Muitas conversas sobre problemas com os alunos e com a escola faziam

surgir relatos de percursos de vida, de dificuldades com as aulas, de investimentos

com a Educação Física, bem como de ansiedades e insatisfações. Numa dessas

oportunidades de conversar com o professor, tive acesso às redações (“A Educação

Física na minha escola”) dos alunos no primeiro dia de aula.41 O objetivo do

professor era saber sobre as expectativas dos alunos para as aulas de Educação

Física naquele ano. Fiz a leitura de todas as redações (que posteriormente me foram

doadas pelo professor) e tabulei os temas mais apontados pelos alunos para as

aulas — dados que são apresentados em outra parte deste trabalho.

No início da pesquisa, algumas vezes acompanhei os professores de

Educação Física à sala de professores, no horário de recreio. Aproveitava esses

momentos para tentar entender mais sobre as aulas de Educação Física e sobre a

escola. No final do primeiro bimestre escolar passei a ficar na quadra da escola no

decorrer de todos os tempos escolares.

Na quadra da escola nunca acontecia apenas uma prática. Ainda que o

futebol ocupasse o espaço primordial/oficial (nas aulas de Educação Física, nos

recreios e, até no campeonato) muitas práticas compunham a cena e o

deslocamento dos alunos entre uma e outra atividade, os rodízios nos jogos, as

decisões sobre os times, etc. eram tão dinâmicas que exigiam de mim o

desenvolvimento de um tipo de atenção (INGOLD, 2001). Nas práticas de futebol

dos jovens do bairro evidenciavam-se ditos e não-ditos, numa linguagem pautada no

41 O uso da escrita nas aulas de Educação Física e também o modo como muitos jovens se expressaram através dela nas redações (por exemplo, usando escritas que se assemelhavam às “pichações” feitas por torcedores no espaço urbano) merecem investigações.

Page 45: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

45

silêncio e na fala e, de qualquer forma, incrustada no corpo. Tentava compreender o

que diziam aqueles corpos juvenis. Precisava elaborar, portanto, estratégias para

alcançar os modos de organização da prática (da qual a aprendizagem era parte).

Como meus informantes, eu estava passando por um processo de aprendizagem

(também precisava aprender para fazer e fazer para aprender). No decorrer da

pesquisa de campo é que fui constituindo uma percepção ampliada da dinâmica do

futebol e dos seus modos de aprendizagem. Fui constituindo na prática a habilidade

de pesquisadora (como um tipo de educação da atenção proposto por Ingold, 2001).

Assim, aos poucos (e num exercício prático) comecei observar aprendizagens onde

antes não via. Mergulhei nesse exercício. Outra estratégia utilizada foi o uso dos

contrastes nas práticas futebolísticas: diferenças entre os futebóis femininos e

masculinos; diferenças na aprendizagem do futebol e de outros esportes; diferenças

dos contextos de produção do jogo no bairro; etc.

Iniciei a coleta de dados no campo de futebol do bairro (no período da tarde e

nos fins de semana) após autorização dos professores e treinadores que orientavam

as práticas futebolísticas juvenis. A participação feminina, nos contextos de

produção do futebol do bairro, no entanto, muitas vezes destoava da lógica do lugar.

Na maior parte das vezes em que fui ao campo de futebol, era a única mulher

presente, principalmente no decorrer da semana à tarde. A evidente exclusão das

mulheres dessa prática social reapresentava a forte demarcação de gênero nesse

esporte. Desse modo, as questões de gênero atravessaram toda a coleta de dados.

Ao me inserir nos contextos de produção do futebol no bairro Universitário,

tentava não interferir na organização da prática social. Mas, isso escapa ao controle

do pesquisador — havia reciprocidade na observação, ou seja, sabia que observava

e que estava sendo observada. Fui descobrindo que a atenção à minha presença

era em si um dado importante e que era necessário compreender o tipo de

participação construída/negociada com o grupo. Na inserção cotidiana no campo de

futebol, fui constituindo um tipo de relação com o grupo — os jovens/jogadores de

futebol, os treinadores, os professores, bem como outros sujeitos que ali passavam

parte do seu dia. — que privilegiava o diálogo (e ainda mais a escuta). Desse modo,

com o passar do tempo, “todos” passaram a me informar (e às vezes tentavam

explicar) o que acontecia dentro e fora do campo de jogo. Jamais levei o diário de

campo para realizar anotações sobre as práticas de futebol nesse contexto. Optei

por fazer as anotações (em forma de relato sistemático das práticas) em casa,

Page 46: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

46

imediatamente após as observações. Essa escolha que favoreceu a minha inserção

no campo, desvencilhando-me aos poucos dos papéis a mim associados.

Se na escola o modo de falar passava despercebido, pois alguns tipos de

linguagens não são permitidas, a linguagem dos jovens fora dela me chamou a

atenção. Acontecia que as práticas de futebol no campo de futebol eram

atravessadas por linguagens, gestos masculinos (uma forma masculina) e conversas

sobre futebol que pareciam (na visão dos participantes) extremamente adequadas

ao espaço. A questão da linguagem não passou despercebida também pelo

treinador, que, durante os primeiros treinos observados, fazia recomendações

explícitas sobre a minha presença (feminina) e a proibição do uso de palavrões

(diga-se de passagem que nem assim os “palavrões” deixavam de fazer parte do

contexto). Mas o tempo extenso de coleta de dados foi dando lugar a certa

naturalização da minha presença. Portanto, fomos construindo um tipo de relação

em que cada um podia se comunicar sem ter que se transformar no outro: nem eu

passei a falar como eles (mesmo porque isso não era esperado de uma mulher),

nem os jovens se constrangiam em falar na minha presença.

Passar dias e dias no entorno do campo de futebol ajudou-me a compreender

o futebol como parte da rotina dos jovens no bairro Universitário e também de outros

praticantes que faziam desse contexto o espaço de lazer, de projetos, de jogo

político, dentre outros interesses.42 Enfim, com a participação nos espaços de

42 Os jogos juvenis do campeonato de futebol amador da cidade aconteceram aos domingos. Para jogos marcados longe do campo do bairro era alugado um ônibus para levar os jogadores, o treinador, o auxiliar, etc. Nessas ocasiões optei por ir para o campo de ônibus com o grupo e retornar de carro. Quando os jovens seguiam a pé para o campo de futebol (em jogos marcados em bairros próximos), eu (grávida de 06/07 meses) optei por ir e voltar com o meu esposo — que aproveitava para assistir ao jogo. Essa presença nos jogos foi, portanto, uma particularidade da minha pesquisa de campo. Esse era o único momento em que ele participava do contexto em que eu realizava a coleta de dados. Contudo o contraste entre as nossas formas de envolvimento com as práticas de futebol também me chamou atenção. Enquanto freqüentar o campo de futebol era para mim mais uma das muitas tarefas de doutorado (muito desgastante, pois os campos nos quais ocorriam os jogos raramente tinham sombra e os jogos ocorriam em horários de “sol a pino” e em condições muito precárias de acomodação: bancos de cimento, beiras de barrancos, etc.), para ele era tempo de “lazer”. Inicialmente, ele se envolvia na leitura do jornal (que sempre comprava a caminho do campo) e de tempos em tempos assistia ao jogo anterior ao do time do Universitário. Mas, iniciado o jogo desse time, ele ia se envolvendo na prática e passava a comentar os jogos e a fazer indicações aos jogadores. A euforia masculina em torno do futebol é intensa. Desse modo, muitas vezes, também meus sobrinhos pediam para ir ao campo conosco. Buscando apreender os modos de aprendizagem de um jogo (que causavam grande euforia aos meus acompanhantes masculinos), muitas vezes também me vi torcedora do time.

Page 47: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

47

futebol do bairro, fui adquirindo “graus crescentes de familiaridade” (VELHO, 2006,

p. 8).43

O encerramento da observação participante — instrumento de coleta de

dados que ocupou lugar privilegiado na pesquisa — se deu ao final de 2005, após a

leitura sistemática das notas de campo (digitadas e indexadas) e a elaboração de

um roteiro de trabalho para a construção da tese. A partir desse trabalho, construí

também os tópicos para as entrevistas com os sujeitos da pesquisa.

No primeiro semestre de 2006, fiz as entrevistas não-estruturadas com alguns

praticantes do futebol do bairro. Como propõe Burgess (1997, 112), esse tipo de

entrevista “utiliza uma série de temas e tópicos em torno dos quais se constituem as

questões no decurso da conversa”. Como parte de um programa de investigação,

que utiliza “o conhecimento que o investigador tem da situação social”, as

entrevistas foram “usadas como complemento da observação participante” e como

auxilio do “acesso a situações que, ao longo do tempo, e conforme o lugar ou a

própria situação, eram fechadas”. Assim, foram usadas para obter acesso a

biografias, bem como “para obter pormenores de situações” que não pude por algum

motivo presenciar (BURGESS, 1997, p. 116).

As entrevistas (um total de 10) foram realizadas com diferentes praticantes do

futebol (em diferentes posições na prática): um professor de Educação Física da

EECJP, o treinador e o seu auxiliar técnico do time de futebol do Racing (infantil e

juvenil), o professor e o seu auxiliar técnico do Projeto Esporte Esperança/Segundo

Tempo, quatro jovens do sexo masculino que participavam dos diferentes contextos

de produção do futebol no bairro Universitário e uma jovem que tinha amplo

envolvimento com o jogo nas aulas de Educação Física.44 As entrevistas foram feitas

em lugares indicados pelos próprios entrevistados: no campo de futebol do Racing,

no campo do time Real Pompéia, na EECJP, na casa de alguns jogadores, em

minha casa, no bar do auxiliar técnico do Projeto social da PBH, no bar do treinador

do Racing. Ao deixar a cargo do informante a escolha do lugar para a realização das

43 Afirma Velho (2006, p. 8): “Fórmulas sintéticas como a do ‘estranhamento do familiar’ podem, na prática, se reduzir a expressões retóricas para se referir disfarçada e paradoxalmente à velha objetivação; recurso necessário, mas que, afinal, não nos distingue, antes nos distancia do reconhecimento da positividade das afetações, até as expressas por meio de performances aparentemente ingênuas [...]. talvez fosse melhor, na direção contrária, falar em alcançar graus crescentes de familiaridade, para isso desconstruindo, inclusive o superficialmente familiar em nossas próprias práticas”. 44 Para preservar os sujeitos da pesquisa utilizei nomes fictícios.

Page 48: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

48

entrevistas, busquei também deixá-los mais à vontade para narrar suas histórias

com o futebol.

As entrevistas exigiram de mim duplo movimento. Primeiro: situar-me melhor

sobre cada informante, revendo a sua trajetória de futebol nas notas de campo.

Segundo: refinar a capacidade de escuta para retomar das narrativas os pontos

particularmente importantes para o estudo (fugindo da idéia de pergunta e resposta).

Em algumas entrevistas a conversa fluiu de forma muito tranqüila. Outras exigiram

maior perícia para resgatar as principais questões no andamento da conversa e

apenas em uma delas não foi possível superar os entraves que se colocavam nesse

tipo de relação. Um jovem/jogador se intimidou (ou foi intimidado?) no decorrer da

conversa, ficando restrito às minhas perguntas, que rompiam o silêncio após curtas

respostas/relatos.

Certo nervosismo fazia parte de todas as entrevistas. Alguns participantes

mantinham olhos baixos ou olhavam noutra direção durante a fala. Outros se

mexiam muito na cadeira (houve até um jovem que passou a arremessar

incessantemente para o alto uma pequena almofada que decorava o sofá da sala).

Outra particularidade dessa atividade foi a realização quase sempre em caráter

coletivo. Uma vez iniciadas as entrevistas, outros personagens passavam a compor

a cena. Desse modo, no campo de futebol, outros atores eram convidados pelos

entrevistados a entrar na conversa. Nas residências dos jogadores as mães

(principalmente) iam se aproximando e no decorrer da conversa passavam a emitir

opiniões (geralmente mostrando o futebol profissional como projeto familiar). Na

escola uma jovem entrevistada solicitou a presença de uma colega de classe (que

não se manifestou em momento algum da entrevista).

Trabalhar entrevistas como conversa exigiu de mim alto grau de

conhecimento do campo de pesquisa, perícia para resgatar (estender) relatos

importantes e para abordar questões que não eram mencionadas pelos

entrevistados no decorrer da conversa. Lidar com esse tipo de tensão é sempre um

aprendizado e o conjunto das entrevistas transcritas revelam oscilações na forma de

condução. Oscilações que têm relação com as emoções vividas nos contextos de

pesquisa. Como não se emocionar com o sorriso iluminado de alguns participantes

ao falar de suas histórias de futebol? Como não se entristecer com os relatos de

investimentos frustrados de famílias inteiras na trajetória profissional (sem sucesso)

Page 49: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

49

de seus filhos? Como ficar alheia às solicitações dos participantes por oportunidades

no cenário futebolístico?

Após um trabalho exaustivo de leitura/análise do material da pesquisa,

construí alguns esquemas de compreensão do material e, aproximando dados (e

leituras teóricas), produzi um roteiro básico sobre a participação no futebol do bairro

como modo de aprendizagem. Com esse material em mãos, retornei ao bairro

Universitário em 2007 para fazer uma triangulação de dados.45 Nessa ocasião

apresentei o material ao professor de Educação Física da EECJP e ao treinador do

time de futebol (Infantil e Juvenil) do bairro — ambos escolhidos pelo tipo de

envolvimento e experiência no futebol. O objetivo era que eles dessem retorno das

análises construídas a partir dos dados. A conversa com o professor de Educação

Física foi tão produtiva (no sentido de confirmar as análises apresentadas e propor

outras) que optei por gravar a com o outro informante — dados que também foram

transcritos e incluídos no trabalho46.

Ao abordar as práticas de aprendizagem do futebol focalizei as formas de

engajamento na prática, como sugerem Lave e Wenger (1991). Assim, a descrição

dos modos de participação nesse esporte é o eixo organizador do texto etnográfico.

Trata-se de um tipo de descrição que busca dar relevo à lógica da comunidade de

prática, como a definem os autores (1991, p. 98):

Uma comunidade de prática é um conjunto de relações entre pessoas, atividades e mundo. [...] Uma comunidade de prática é uma condição intrínseca para a existência do conhecimento, porque minimamente ela proporciona um suporte interpretativo necessário para dar sentido da sua herança.

Operando com o conceito de comunidade de prática — que permitiu inclusive

dar relevo a aspectos marcantes da prática, como a repetição — a questão do

significado também pôde ser recolocada. Para recuperar a dimensão do significado

nas práticas futebolísticas, foram significativas as contribuições de Geertz (1978).

Como afirma o autor (1978, p. 22) “a cultura é pública porque o significado o é”. Não

45 O cruzamento das informações recolhidas (triangulação) “visa esclarecer determinado fato, acontecimento ou interpretação, a partir de três (ou mais) fontes, três tipos de dados ou três tipos de métodos diferentes”. Ela “é geralmente considerada como o meio mais poderoso de realização da confirmação da informação” (SARMENTO, 2003, p. 156 – 157) 46 Posteriormente, outro professor de Educação Física (ex-jogador de futebol) leu a versão mais elaborada do texto produzido sobre a aprendizagem do futebol — ocasião em que destacou as semelhanças nas formas de aprendizagem do futebol descrita com a sua própria história de aprendizagem.

Page 50: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

50

se situando na cabeça dos indivíduos, os significados já circulam na comunidade

desde quando o indivíduo nasce e “eles permanecem em circulação após a sua

morte, com alguns acréscimos, subtrações e alterações parciais dos quais pode

participar ou não participar” (GEERTZ, 1978, p. 57).

Para descrever a aprendizagem do futebol na comunidade de prática, dentro

do texto monográfico, utilizei quadros nos quais destaco alguns relatos de campo

para que o leitor possa fazer uma maior incursão no universo investigado. O texto

revela um esforço de compor as aprendizagens do futebol em permanente

articulação da minha presença em campo de pesquisa. Nele estão destacados os

momentos mais significativos, quando a minha presença era reveladora de algum

aspecto particularmente importante.

A participação nos contextos de futebol do bairro (posição na qual também

obtive legitimidade) me permitiu bordejar aspectos importantes dessa aprendizagem

da prática social, sem nela me tornar uma jogadora futebol. Portanto, o trabalho que

segue foi feito por alguém que, após tem vivido a experiência de pesquisa de campo

(sem se confundir ou converter em nativo) pôde mostrar aspectos que a imersão

total no jogo pode esconder ou não deixa ver com clareza (DAMATTA, 2006, p. 16).

Os relatos feitos a partir da pesquisa etnográfica não são, portanto, retratos

fotográficos da realidade, mas “textos nos quais se realiza um esforço interpretativo

daquilo que é a realidade, freqüentemente, caótica, complexa e multifacetada”

(SARMENTO, 2003, p.166).

De fato, o processo de imersão da pesquisa é uma experiência singular para

o pesquisador. Dela saio marcada na forma de ver as práticas de futebol dos jovens,

na forma de compreender as relações sociais (de aprendizagem) que envolvem a

produção desse esporte na sociedade, mas também a forma de ver a mim mesma

— marcas que se projetam no corpo, no agir/sentir. Como afirma DaMatta (1987,

p.153), a etnografia: implica, realmente, num exercício que nos faz mudar o ponto de vista e, com isso, alcançar uma nova visão do homem e da sociedade no movimento que nos leva para fora do nosso próprio mundo, mas que acaba por nos trazer mais para dentro dele.

Page 51: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

51

III O contexto da prática do futebol: o futebol no bairro Universitário Situado na região nordeste de Belo Horizonte, às margens do Anel Rodoviário

(BR-381), o bairro Universitário faz limite com o Santa Rosa, o Dona Clara, o

Palmares, o Santa Cruz e a Vila São Francisco.47 Trata-se de um bairro residencial

que, além de uma grande empresa de peças automobilísticas, do Correio e uma

universidade particular, possui comércio local (bares, padarias, supermercados,

oficina mecânica, borracharia, armarinho, etc.) e espaços públicos (o Posto de

Saúde, a EECJP, o campo de futebol e a Praça de Esportes). Com grande parte das

ruas asfaltadas, no decorrer da semana, o bairro tem momentos de pico de

movimentação de carros e pessoas no início da manhã, no fins da tarde e nos

horários de mudança de turno na EECJP.

Diferenças socioeconômicas e outros contrastes, que revelam aspectos

importantes dos modos de vida dos moradores do Universitário, podem ser

observados na arquitetura local (casas grandes de quintais amplos, nas

proximidades da avenida principal, e barracos de lona e/ou madeira, nas imediações

do Anel Rodoviário) e na distribuição espacial (espaços amplos da empresa de

peças automobilísticas, do campo de futebol, da área de reserva ecológica da PBH e

o “amontoado” de famílias que vivem sob o viaduto e nas proximidades do Anel

Rodoviário). As diferenças socioeconômicas podem ser observadas também nas

condições materiais de vida dos moradores. Enquanto os que moram na parte

central do bairro têm acesso a água, esgoto, luz e outros bens, muitos que ocupam

o entorno do Anel Rodoviário e proximidades convivem com a precariedade, como,

desemprego, moradias insalubres (umidade, pouca luz e espaço), barulho, lixo,

inundações, chuva. Para estes, o cotidiano tem uma dimensão pública acentuada.

Isso porque é na rua (que também é o “quintal” das casas) que crianças, mulheres e

homens passam grande parte do tempo (para lavar roupas, para brincar, para beber

cerveja, para namorar, para conversar, para escapar do calor, para olhar o

movimento dos que ali fazem ponto de passagem).

O cotidiano do bairro Universitário não permite compreende-lo, entretanto,

como um contexto onde impera separação e diferenças. O bairro é dinâmico e, se os

lugares são fixos, as pessoas não. Jovens, crianças e adultos deste bairro e dos

vizinhos se misturam no cotidiano na EECJP, na Praça de Esportes, no campo de

47 De fácil acesso, o bairro Universitário está situado entre as avenidas Antônio Carlos e Cristiano Machado.

Page 52: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

52

futebol do Racing, no mercadinho, no bar, na rua. Desse modo, a trama cotidiana

desemboca em interesses diferentes, mas também em interesses comuns.

Observando o cotidiano do bairro, é possível perceber as práticas centrais que

produzem sociabilidades. O futebol é uma delas, tendo centralidade no cotidiano dos

moradores. Assim, em vários espaços ocorrem produções cotidianas do esporte: o

campo de futebol do Racing, a Praça de Esportes, a quadra da EECJP.48

3.1 - Práticas de futebol no campo do Racing

Localizado em área de reserva da PBH, ao lado do Posto de Saúde e da

EECJP, o campo do Racing (de terra batida) é um espaço importante para a prática

do futebol no bairro. Fazem parte do complexo do campo uma quadra de futebol

com arquibancada cimentada e um bar, que funciona nos fins de semana e à noite

(somente em dias em que há jogos de futebol). Isso porque, em 2005, o campo do

Racing foi contemplado pelo Projeto Campos de Luz da PBH e passou a funcionar

em alguns dias da semana (quarta, quinta e sexta-feira) à noite. O Projeto, que visa

a melhoria dos equipamentos esportivos da cidade, tem como objetivo beneficiar a

população de baixa renda, ao proporcionar, simultaneamente, lazer, educação e a

prática esportiva.49

Fundado em 1955, por Nelson Santana de Jesus, que escolheu as cores

(vermelho, azul e branco), o símbolo (uma águia) e o nome (Racing), de inspiração

americana,50 o campo de futebol do Racing é um contexto de lazer, mas também de

tensões e disputas.51 Mas é, principalmente parte das muitas conquistas dos

moradores, como afirmou o presidente do Racing em 2005: O pessoal da comunidade resolveu abraçar mais a causa né. Porque é um espaço aqui. Que muita gente reivindica um espaço como esse pra prática de esporte, pra ter um lazer e tudo mais. Então teve a reunião do orçamento participativo a segunda rodada. É onde o morador tem de comparecer para ele eleger delegados, né, que vão ter poder de negociação das obras. Ai foram 102

48 E é só atravessar o Anel Rodoviário que se chega ao campo do bairro Cachoeirinha e do Santa Cruz. 49 Informações obtidas no site da prefeitura de Belo Horizonte. 50 Informações obtidas em conversas informais com o presidente em 2005. 51 Por exemplo: disputas em torno da presidência do campo. No ano de 2005, candidatos à vaga de presidente do Racing fizeram campanhas políticas nesse espaço anunciando a necessidade de mudança. Uma reclamação dos que pleiteavam o cargo de presidente era que o atual presidente não se importava com o time e queria apenas alugar o campo. Pautado nesse discurso, um dos candidatos à vaga, no ano de 2005, assumiu o time juvenil do Racing, fornecendo camisas, lanches e transportes aos jogadores.

Page 53: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

53

pessoas aqui do bairro. Conseguimos eleger 10 delegados mais o presidente 11. Então nossa área tem tudo pra ganhar com o orçamento participativo 2007/2008. Já estamos reivindicando o fechamento total da área (do campo) murar, da mais segurança [...]

A centralidade do Racing na vida dos moradores do bairro Universitário (e

também dos bairros vizinhos) pode ser percebida na dimensão espacial, social e

política e nos diferentes usos e práticas que nele são produzidas: o projeto social de

futebol (Esporte Esperança/Segundo Tempo), os treinos dos times do Racing

(infantil e juvenil), práticas de lazer dos jovens do bairro (nos momentos em que o

campo está “ocioso”), práticas de caminhadas no seu entorno, campeonatos

esportivos amadores da cidade, jogos de futebol de times que alugam o campo de

futebol nos fins de semana, dentre outras.

3.1.1 – O futebol no Projeto Esporte Esperança/Segundo Tempo O Esporte Esperança/Segundo Tempo é um programa social desenvolvido

pela Secretaria Municipal Adjunta de Esportes (SMAES) da PBH, em parceria com

as “Secretarias Municipais da Coordenação das Gestões Regionais (SCOMGER’s)”

e o Ministério do Esporte.52 Responsável pela implementação de políticas públicas

de esporte e lazer destinadas ao público infanto-juvenil, suas principais ações são:

52 “Em 1994 a Secretaria Municipal de Esportes, contando com a parceria com a AGAP (Associação de Garantia ao Atleta Profissional), implantou no município de Belo Horizonte o Projeto Dente de Leite, voltado para crianças e adolescentes entre 09 e 17 anos. O projeto consistia de escolinhas de futebol, cujas aulas eram realizadas em campos de várzea da periferia da cidade. O principal objetivo era a socialização e ocupação do tempo ocioso dessa população evitando que fossem para as ruas. Em 1994 nasceu também o MEL (Módulos de Esporte e Lazer), projeto sócioeducativo voltado à difusão de práticas esportivas (Futsal, Voleibol, Handebol, Basquetebol, Peteca etc.) destinado à crianças e adolescentes de 7 a 15 anos. Em 1997 por iniciativa da Secretaria Municipal de Esportes de Belo Horizonte em parceria com a PMMG foi inaugurado o núcleo do Projeto Bom de Bola, Bom de Escola (com atividades esportivas nas modalidades de Futsal, Voleibol e Futebol de areia) para atender a faixa etária de 8 a 14 anos de ambos os sexos. Tendo como principal objetivo a socialização e a valorização do menor, através de aspectos educativos formais e não formais e a conscientização para a importância da atividade física o projeto era desenvolvido em parceria com a Secretaria Municipal de Educação e a Secretaria Municipal de Abastecimento. Em janeiro de 1999 o Secretário de Esportes incorporou dentro de um único programa os três projetos já existentes: MEL, BBBE e Dente de Leite. Surge então o Programa Criança e Adolescente. Contudo, eles ainda continuaram sendo administrados de maneira separada e sem maiores vínculos. Em maio de 2002, após um trabalho interno de avaliação e construção de propostas, decidiu-se pela supressão dos projetos e o Programa Esporte Esperança, surge da necessidade de adequação à nova proposta de governo: com a descentralização de ações. Assim, os núcleos foram divididos por regional, sendo a supervisão técnica e o acompanhamento sistematizado, comum a todos os núcleos independentemente das modalidades oferecidas”. (Informações obtidas em abril de 2008 no documento “Breve Histórico: Programa Esporte Esperança/Segundo Tempo da Secretaria municipal de Esporte e lazer — SMES/BH, mimeog).

Page 54: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

54

escolinhas de esportes, eventos, apoio, cursos de capacitação e ciclo de palestras.

Trata-se de “ações diversificadas de esporte e lazer” implementadas: em caráter permanente, que priorizam a democratização de atividades voltadas à socialização, à educação e à saúde de pessoas de todas as idades, sexos, raças, com atenção aos cidadãos portadores de necessidades especiais e á população belo-horizontina menos favorecida de recursos e oportunidades. (SMES-BH, 2008)

Conforme descrito no Projeto Esporte Esperança/Segundo Tempo, ele tem

como filosofia a noção de esporte como direito social, garantido pela Constituição

Federal e pelo Estatuto da Criança e Adolescente. Norteia-se pelos princípios da

inclusão, participação, respeito e ludicidade. Trata-se de um programa gratuito que

tem como objetivo o desenvolvimento pessoal, social, técnico e cognitivo da criança

e do adolescente (de 07 a 17 anos) em escolinhas de esportes (Futebol de campo,

Futebol de Areia, Handebol, Voleibol, Basquetebol, Futsal, Jogos e Brincadeiras).53

Priorizando o atendimento em locais próximos às áreas com maior índice de

vulnerabilidade social, o programa da PBH promove escolinha de futebol de campo

em todas as regionais da capital.54 Para participar, o jovem além, de preencher ficha

de cadastro, deve estar matriculado e, com freqüência regular, em uma escola. As

aulas são ministradas por professores de Educação Física em campos de futebol de

Belo Horizonte e os alunos recebem um lanche ao final de cada dia do treino.

* * *

Um dos espaços em que a PBH manteve o Projeto Esporte

Esperança/Segundo Tempo com aulas de futebol, em 2005, foi o campo do

Racing.55 Ela disponibilizava o material das “aulas” (bolas de futebol de campo,

53 Atualmente o Programa Esporte Esperança (da Secretaria Municipal Adjunta de Esportes, em parceria com as Secretarias Municipais de Coordenação das Gestões Regionais e Ministério do Esporte) planeja, coordena, executa, supervisiona e avalia políticas públicas de esporte e lazer para cerca de 8.000 crianças e adolescentes em Belo Horizonte. O trabalho é desenvolvido em 50 núcleos de esporte de diversas modalidades distribuídos nas nove regionais da cidade — localizados estrategicamente em “áreas de grande vulnerabilidade social onde está concentrada a parcela da população menos favorecida economicamente e mais suscetível a violência e ação do tráfico de drogas”. (“Breve Histórico: Programa Esporte Esperança/Segundo Tempo — SMES/BH, 2008, mimeog). 54 Na Regional Noroeste, 750 alunos de 7 a 17 anos em cinco campos de futebol. 55 Depois de 11 anos no Racing, esse Projeto social da PBH foi desativado em 2006 por motivo de evasão dos alunos. Diz um auxiliar do professor no Projeto: “— Tinha pouco menino realmente, começou a cair bastante os meninos, você lembra como é que estava, e por eles alegarem isso também, eles cortaram ali e preferiram investir em outros campos que estava mais com freqüência maior de alunos aí desativaram aqui e acho que mais quatro campos eles desativaram, não foi só

Page 55: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

55

cones, coletes) e o lanche, que passou a ser oferecido apenas no segundo semestre

de 2005. No Racing, o Projeto atendia crianças e jovens oferecendo a possibilidade

de aprendizagem/treinamento do futebol. Grande parte dos participantes eram

alunos da EECJP. Os que freqüentavam a escola pela manhã, participavam do

Projeto às terças e quintas-feiras, à tarde, das 14h às 17h.56

No bairro Universitário, apenas jovens do sexo masculino freqüentavam o

Esporte Esperança/Segundo Tempo. O sexo não era, contudo, critério para a

participação. Foi o baixo número de jovens “interessadas” em participar das práticas

futebolísticas que fez com que o professor não formasse turmas femininas de

futebol.57 No decorrer desta pesquisa de campo, apenas duas jovens buscaram

informações sobre a participação feminina no Projeto. Informadas da ausência de

turmas femininas não retornaram mais com esse objetivo ao Racing.

No início de 2005 as turmas masculinas foram definidas por faixas etárias:

jovens de 12/14 anos (treino das 14h às 15h); jovens de 14/16 anos (treino das 15h

às 16h); jovens de 16/17 anos (treino de 16:00 às 17:00). Contudo essa composição

das turmas não perdurou para além dos dois primeiros meses de treino. Com o

passar do tempo e o alto índice de evasão de alunos (que, segundo o professor, era

causado pelo corte da oferta do lanche no primeiro semestre) o professor optou por

juntar os alunos de todas as turmas formando um único grupo — que passou a

treinar a partir das 15h.58

Participando do Projeto, o jovem passava a ser acompanhado quanto ao

rendimento escolar. Assim, houve momentos em que o professor e o seu auxiliar

foram à escola em busca de informações sobre a freqüência dos alunos. Essa

parceria ultrapassava, entretanto, os limites da freqüência escolar. Ela estava aqui. Foi uma pena, porque o projeto começou foi aqui, o primeiro dente de leite que começou foi no aqui no Racing, no Racing”. 56 Na parte da manhã, as crianças (07 a 12 anos) é que participavam do Projeto. 57 Diferentemente do que ocorreu em 2005, no passado o interesse feminino no Projeto possibilitou a formação de uma turma para o futebol. Contudo, como a freqüência foi pequena, o grupo logo se desfez. Com a baixa participação, essas turmas foram fechadas, pois o professor preferia não colocar mulheres para jogar com homens: “Ele tem medo de que os homens às machuquem” (conforme explicou o auxiliar do projeto). Diferente do que ocorria no Universitário, no Aglomerado da Serra havia um grupo de jovens do sexo feminino que participam do projeto social de futebol de campo nesse contexto (dados coletados por Aloíse Fellipo em Projeto vinculado à rede CEDES, sob a minha orientação). 58 No decorrer do primeiro semestre de 2005, o número de alunos no Projeto caiu drasticamente (chegando a uma freqüência de 05 a 08 alunos por tarde). As turmas voltaram a ficar cheias no segundo semestre (em torno de 40 alunos), quando a PBH em parceria com o governo federal, voltou a oferecer lanche após os treinos. Segundo Lúcio, o lanche é um dos elementos motivadores da participação no projeto, pois para muitos jovens esse era o único alimento a que poderiam ter acesso no período da tarde.

Page 56: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

56

presente em algumas normas. Como, na escola, o jovem tinha atribuições e regras a

seguir no Projeto: obrigatoriedade da presença (chamada feita diariamente);

proibição do uso de adereços (como bonés) e de determinadas linguagens; respeito

ao professor; dentre outras.

No bairro Universitário Lúcio coordenava as atividades futebolísticas dos

jovens no Projeto.59 Mário (com a atribuição de auxiliar) lhe dava suporte60: fazia

inscrição dos alunos no Projeto, fazia a chamada diária dos inscritos, buscava os

materiais para os treinos (bolas, cones, etc.), colocava as redes no gol do campo,

lavava os coletes do grupo, distribuía água (no intervalo) e lanche ao final do treino.

Quando Lúcio se atrasava, ele também propunha atividades para os jovens. Como

explicou Mário:

O treinador, ele treina mesmo os meninos. Treina, dá física, dá toda a estrutura da física do futebol, ensina mesmo. E eu estou mais, como se diz, (ar de riso) atrás dos bastidores, dou lanche pros meninos, machucou, eu oriento, levo no posto; ligo pra prefeitura, qualquer coisinha que tiver que marcar entre a gente, então estou mais pra auxiliar ele mesmo em tudo que ele precisar, e ele só com a parte de treinamento mesmo.

No Projeto Esporte Esperança/Segundo Tempo, Lúcio organizava o grupo,

ensinava aspectos do futebol, apitava o jogo e “controlava” as interações. Mas não

havia muito rigor na realização dessas atividades. Assim, enquanto Lúcio exercia

59 Diferentemente da proposta original, que define os profissionais de Educação Física como os professores para conduzir as atividades esportivas no Projeto, Lúcio (46 anos) é ex-jogador de futebol profissional. De origem “muito simples”, conta que iniciou a carreira futebolística com 9 anos de idade. Jogando futebol, ele foi trabalhar na ESAB (filial de uma fábrica sueca de eletrodos). Segundo Lúcio, na ESAB ele encontrou uma pessoa que, vendo que tinha “bom futebol” e era “muito pobre”, começou a ajudá-lo “com uma ajuda material”. Ele começou a construir um barração para sua família e foi morar na ESAB (com 10/11 anos). Através do futebol ele começou a “comprar as coisas” para manter a sua família. Nesse período Lúcio se filiou a AGAPE, como jogador de futebol (“porque a ESAB além de fábrica era um time de futebol”) e começou a “disputar os campeonatos mineiros infanto-juvenil e juvenil”. A AGAPE fornecia bolsas de estudos, então ele começou a estudar: “me formei, tenho hoje o 2º grau completo, não deu pra seguir mais, mas graças a Deus eu consegui me formar”. Lúcio jogou em 12 clubes profissionais (“não foram times de primeiro escalão, mas foram 12 clubes em que eu ganhei um pouco de dinheiro, um pouco de experiência melhor da vida, onde eu pude me formar, outra coisa que eu fico admirado nesses 12 clubes que eu joguei eu fui titular, então eu procurei da melhor maneira possível, aproveitar aquele dom que Deus me deu”. Lúcio trabalha no Projeto há 13 anos. 60 Mário (contratado para auxiliar os trabalhos de Lúcio no Racing) é morador do Universitário. Ele contou que começou jogando bola no Projeto com um outro professor (e não com Lúcio). Relatou que nesse período sua mãe passou a trabalhar de auxiliar no Projeto — substituindo um jovem que saiu, por aproximadamente seis meses. Nessa época ela passou numa seleção de trabalho e então o indicou (Mário) como o seu substituto: “meu filho, joga bola lá, ele interessa muito, ele gosta muito de campo, eles me chamaram, fizeram entrevista comigo, e me pegaram, eu fiquei lá”. Mário trabalhou no Projeto 5 anos — “Antes de eu trabalhar aqui, comecei a trabalhar pela ASPROM (Associação Profissionalizante do menor), na BHTRANS”.

Page 57: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

57

suas tarefas, às vezes saía do campo e “deixava o jogo correr” por um longo tempo

sem intervenções. Geralmente nesses momentos os jogadores é que regiam todo o

funcionamento do futebol, convocando Lúcio a voltar ao centro das decisões como

juiz apenas quando havia algum tipo de divergência intransponível para o grupo, ou

seja, muito raramente. Outras vezes Lúcio se distraía do jogo e iniciava uma prosa

com algum dos freqüentadores do campo. Algumas vezes ele também se distraía

com uma bola de futebol e, assim, se envolvia num jogo de corpo-bola paralelo ao

jogo de futebol no campo.

Todos os treinos (conforme eram chamadas as atividades do Projeto pelos

praticantes) eram iniciados com a convocação dos jovens para o centro do campo —

local onde Lúcio os orientava, informava (sobre assuntos diversos) e organizava o

grupo. O trecho do diário de campo que segue em destaque demonstra uma forma

de organização bastante regular no projeto: Lúcio convoca o grupo para o centro do campo de futebol. Com os jovens sentados em círculo, Lúcio  (de pé)  fala sobre as novidades da Secretaria para o Projeto em 2005. Desse modo, ele informa  aos  jovens  sobre  a  possibilidade  de  retorno  do  lanche  e  dos  campeonatos  entre diferentes  turmas  do  Projeto  em  Belo  Horizonte.  Solicitando  dos  jovens  mais  seriedade  e participação, Lúcio diz que é um privilégio ter um campo como o do Racing para treinar e que os  jovens devem aproveitar  e  levar a  sério  (explora a  idéia de que o  futebol poderá prover o sustento de alguns tal com fez com ele). Lúcio pede aos jovens que convidem colegas a também participar  do  projeto  e  avisa  que  somente  os  freqüentes  terão  direito  de  participar  dos campeonatos. Depois ele distribui os coletes para o jogo selecionando os times. Desse modo vai chamando um a um dos participantes pelo nome e dizendo a cor que deve usar (vermelho ou azul). Mário recolhe os bonés dos jovens que esqueceram de retirá‐lo antes do início do jogo. 

Após a rotineira conversa inicial com os jovens, Lúcio dava início às práticas

futebolísticas. No projeto social havia três maneiras de organizar os treinos, que

denominei: formato de jogo, formato de exercício e formato misto.

Quando havia número alto de participantes, Lúcio dava preferência ao jogo

(formato de jogo). Assim, logo após a formação dos times, ele dava início ao futebol

(aproximadamente uma hora com um intervalo para beber água) e passava a apitar

o jogo de um lugar fixo do campo e a fazer intervenções nas práticas futebolísticas

dos jovens. Algumas vezes, entretanto, ele encerrava o jogo um pouco mais cedo e

ministrava uma série de exercícios futebolísticos (formato misto). Nesse momento,

com o auxílio de Mário, priorizava a execução de atividades específicas: passes,

chutes, condução, etc., como em um treino de agosto de 2005:

Page 58: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

58

[...] Lúcio dá início ao jogo de futebol ao som do apito e solicita que Mário busque os cones. No campo do Racing os jovens jogam sem interrupção por aproximadamente 40 minutos. [...] De repente  Lúcio  apita  o  fim  do  jogo  e  pede  que  alguns  jovens  peguem  os  cones  que Mário depositou num canto do campo de  futebol. Lúcio organiza os cones usando um dos  lados do campo (meio campo). Ele pede a um rapaz mais velho/experiente que faça o exercício (que é de circular  cada um dos 10  cones  e depois  chutar  a gol)  como uma demonstração  aos demais. Enquanto  dois  jovens  (por  vez)  realizam  o  exercício,  os  outros  esperam  sentados  a  vez  de participar. Mário  chega  com  a  água  e  os  jovens  o  rodeiam para beber  água  (disputam para beber primeiro). Depois dessa pausa, Lúcio muda a posição de alguns cones e novamente pede ao  jovem para executar o exercício explicado (de condução de bola entre os cones, passe para Lúcio,  recepção mais  à  frente  e  chute a gol). Realizado por um  jovem de  cada vez, o  tempo desse  exercício  é mais  longo.  Assim,  enquanto  alguns  esperam  a  vez  de  fazer  o  exercício sentado, conversando e observando os colegas, outros em círculo  fazem um “piruzinho” com uma  outra  bola. Após  todos  realizarem  o  exercício,  Lúcio  propõe  um  último  (todos  devem “bater um pênalti”) e libera os jovens — que seguem para um canto do campo de futebol para entregar os coletes e receber o lanche das mãos de Mário. 

Algumas vezes o exercício proposto por Lúcio era um tipo de jogo. Com

objetivo de treinar alguns aspectos do futebol, Lúcio organizava outros modos de

jogar futebol. Um desses exercícios, que presenciei no campo do Racing, quando o

número de alunos do Projeto estava aquém das expectativas, foi o futevôlei. Outro

jogo nesse formato, com um maior número de participantes (organizado com a

intenção de desenvolver nos jovens a “visão de jogo”) foi narrado por Mário: Tinha uma técnica, um treinamento que nós fazíamos que era até interessante porque a gente pegava dois times, um time de um lado e outro do outro. O que a gente fazia? A gente pegava um atacante, um atacante só de um time e jogava ele pro lado de lá, ele tinha que jogar, um atacante só, ele tinha que tomar a bola dos onze, (riso) aí ele começava a correr e os onze iam tocando e tal e deixava ele doidinho. Ele tinha que arrumar, como se ele estiver sozinho, pra ele entender também que sozinho não dava pra ele ir adiante. Aí o que a gente fazia, pegava mais um e colocava com ele, aí começava os dois juntos, começavam a tentar criar alguma coisa pra tomar a bola, só que ainda era difícil porque era contra onze. À medida que o tempo vai passando a gente sempre colocava mais um, aí ia apertando também pros outros de lá. A gente colocava tipo assim: pegava os atacantes mais ou menos, contra a defesa, só que ele ficava parado, cada um ficava na sua posição, o lateral na lateral. [...] Só os atacantes, porque o lateral ficava na lateral, o ponta, na ponta, o meio, no meio, o zagueiro no cantinho dele. E até mesmo o atacante, que a gente colocava um pouquinho, mas ele ficava sempre naquele lugar, eles não podiam sair dali não, podiam movimentar só um pouquinho, só os outros. Na hora que fosse ele via essa visão, o que ele tinha que fazer, como que ele, eles mesmos, deles, porque a gente já estava fazendo um

Page 59: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

59

trabalho em cima deles então eles já tinha projetado o que eles iam fazer. Aí fazia assim, todo mundo em cima de um só, e já tocava a bola pra outro lado e tinha que todo mundo correr, eles mesmos deles, falam, espera aí, a gente não pode ir todo mundo junto, já começavam a fazer as jogadas deles, no início eles pegavam muita habilidade e havia aquela visão deles. (Grifos meus)

Somente quando a evasão de alunos do Projeto chegou ao extremo, Lúcio

optou por treinos exclusivamente técnicos (formato exercícios).61 Desse modo, ele

organizava exercícios com e sem a bola e criava situações (reais e imaginárias) de

jogo para a aprendizagem dos alunos:

Chego  ao  campo  às  15h05  e  Lúcio  já  ministra  para  4  jovens  uma  série  de  exercícios  de fundamentos do futebol: • Condução de bola (andar entre os cones  tocando a bola entre os pés);  • Recepção da bola e chute (o professor entre os dois jogadores que passam a bola entre si);  • Cabeceio (bola arremessada pela mão do professor aos alunos em fila);  • Choque entre jogadores (dois jovens chutam a bola ao mesmo tempo; depois saltam de frente e tocam os ombros — fazem um ombro‐a‐ombro sem bola);  • “Chutinhos” (tipo espelho — quantos chutinhos um dos jogadores der o colega deve dar);  • Treino de domínio (nas coxas, no peito ou nas pernas). No decorrer desse último exercício o professor diz: “—Na situação de jogo vocês têm que se virar”. Um jovem relata um exemplo de domínio  de  bola  com  as  duas  pernas.  O  professor  começa  a  dar  exemplos  de  domínios extraordinários feitos por jogadores profissionais — o clima é de empolgação.  Feitos os exercícios  iniciais, todos vão para o centro do campo, onde são propostos por Lúcio exercícios variados de chutes a gol em diferentes posições do campo/área (Mário  fica no gol). Os alunos do Projeto  jogam/treinam algumas  situações de  jogo  sob as orientações de Lúcio: “—Tá lento”, “—Tá correndo assim oh” (inclinado), “—Calma filho, não entra pra dentro da área”,  “—Ai  filho! Melhorou  tá  vendo”  (fala  a  um  jovem  que  tem  muita  dificuldade  de realizar os exercícios). Lúcio coordena o treino e com educação ensina a partir de explicações sobre como  fazer com demonstrações de gestos. Ao  final do  treino Lúcio  informa aos  jovens: “—Pra terminar, chutes. Tá valendo refrigerante (a contagem de gols)”. Os jovens sorriem da brincadeira. Lúcio faz a contagem de pontos dos meninos e um deles comemora: “—Ganhei”. Lúcio encerra o treino no apito. 

Apenas em um treino Lúcio iniciou as atividades com um aquecimento — o

que os jovens chamavam de física: pulos, alongamentos, exercícios comuns no

futebol, etc. Mas, todos os treinos eram encerrados com a formação de uma fila e a

execução de pênaltis por todos os participantes.

No Esporte Esperança/Segundo Tempo, exercícios para aprender e jogos

pré-desportivos só ocorriam muito raramente, sobretudo quando o número de

61 Em junho de 2005, o Projeto chegou a ter freqüência diária de 05/06 alunos por treino.

Page 60: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

60

participantes inviabilizava a realização do jogo de futebol. O jogo “convencional” de

futebol (hegemônico nesse contexto) era foco de maior interesse entre os

participantes e o principal modo de trabalho do professor. Ambíguo, o futebol no

Projeto social era jogo “de verdade” (de que os jovens usufruíam em tempo real),

mas, ao mesmo tempo, possuía uma lógica educativa de fundo. Não havia,

entretanto, envolvimento homogêneo dos participantes. As diferentes formas de

engajar e significar o Projeto davam dinamicidade ao futebol. Situações totalmente

atípicas também alteravam as práticas futebolísticas nesse contexto. Nos dias de

chuva, o futebol no Esporte Esperança/Segundo Tempo se transforma radicalmente

— a festa era geral! Alguns jovens já realizam um “bate‐bola” em um dos lados do campo enquanto Mário anota nomes de jovens que querem participar do Projeto e coloca presença no diário para aqueles que já estão inscritos. Com a demora de Lúcio, Mário vai para o centro do campo para organizar os times. Ele avisa que só quem está de tênis pode jogar (por isso Josué não vai participar — está de chinelo). Quando Mário dá inicio ao jogo, começa a chover. Vamos para uma parte coberta ao lado do vestiário. Os jovens continuam a jogar na maior animação. Lúcio chega e retira do jogo os jovens maiores — aqueles que jogam no horário seguinte. Eles resistem, mas acabam acatando a sua decisão. Um dos jogadores que teve de sair pede a Lúcio para deixá‐lo apitar, mas ele não concorda. Continua na sua tarefa.  A  chuva aumenta  e o  jogo no  campo vai  ficando  cada vez mais  inviável, pois o barro  toma conta e os jovens ficam mais caídos do que de pé. Josué pega um tênis emprestado de um colega (número muito maior)  e  vai  para  o  jogo.  Entre  chutes  na  bola  e  guerra  de  barro  o  jogo acontece.  Quando  há  algum  confronto/choque  entre  jogadores,  Lúcio  logo  apita  falta  ou simplesmente grita: “—Nada. Nada” (quando percebe que os jovens estão “cavando faltas”). Os jovens maiores ficam perguntando a Lúcio se está na hora (deles) de jogar. Lúcio ignora e segue apitando o jogo dos menores. A chuva não pára, mas os jogadores também não. Outros vão  chegando para  o próximo  jogo. De  repente Lúcio  encerra  o  jogo dos menores. Eles vão saindo do campo em direção ao vestiário (para o banho) enquanto os maiores pegam os coletes e entram  em  campo  com  certa  euforia. Alguns  jovens  ficam  nas  imediações  do  campo  para assistir ao jogo dos mais velhos e são advertidos por Lúcio para ir para casa.  Lúcio  organiza  os  times  e  dá  início  ao  jogo  de  futebol,  que  logo  se  descaracteriza  em comparação aos outros dias. Com a chuva e o campo completamente cheio de lama, os jovens passam a se divertir com as muitas quedas. Jogam  futebol ao mesmo tempo em que realizam outras práticas: algumas vezes arrastam os colegas pela lama, correm atrás daqueles que ainda não estão sujos, para jogar lama ou disputar na força quem consegue ficar de pé, etc. Também Lúcio  ri  das  várias  situações  engraçadas  (diferente  dos  dias  anteriores  em  que  cobra maior seriedade no treino). Alguns  jogadores vão saindo do campo. A quem sai do  jogo Lúcio pede que lave o colete (sujo de barro) no vestiário. 

Page 61: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

61

3.1.2 - O treino do time de futebol do Racing No campo de futebol do bairro Universitário, outro contexto juvenil de

participação no futebol eram as sessões de treino dos times Infantil e Juvenil do

Racing. Antecedendo o período do campeonato de futebol amador da cidade (a

Copa DFA), os treinos não foram regulares no decorrer do ano de 2005. Com uma

duração média de 40 minutos, eles começaram nas últimas semanas de inscrição de

times para disputar a Copa DFA, e terminaram nas primeiras semanas após o

início.62 Afinal, como disse Biruga, “o resto a gente tira do menino no jogo”.

Participavam dos treinos de futebol, quarta-feira à tarde (das 16h às 17h),

apenas os jovens (de 12 a 17 anos) que eram jogadores do Racing. Selecionados

pelo treinador, no cotidiano de futebol do bairro, muitos deles moravam nas

proximidades e freqüentavam a EECJP no turno da manhã.63 Desse modo, eles iam

para o treino a pé e permaneciam no entorno do campo em outros horários e

práticas. Coordenados por Biruga64 (o treinador) com a ajuda de Juliano65 (o

auxiliar), esses jovens participavam de um contexto de futebol que se constituía de

três momentos específicos: uma reunião inicial, o jogo de futebol propriamente dito e

uma reunião final.

62 No decorrer do campeonato, o treinador abolia completamente os treinos. Assim, os jovens eram convocados a participar dos jogos amistosos do Racing aos sábados, nos fins de semana sem jogos de campeonato. Devido à suspensão dos treinos no início do campeonato, observei poucas sessões de treino. 63 Alguns jovens eram obrigados a deixar o time de futebol antes de completar a idade-limite, em função do trabalho — sobretudo aqueles que não conseguiam conciliar seus horários com os dos jogos de futebol nos fins de semana. 64 Biruga é treinador dos times infantil e juvenil do Racing. Ele começou a sua carreira futebolística aos 12 anos “jogando pelo Racing”, onde ficou até completar 17 anos. Depois Biruga fez um teste no Vila e passou, mas, como não tinha pai e precisava trabalhar, fez um concurso para o Correio: “passei e fui trabalhar no Correio”. Ele jogou no Racing, no Cachoeirinha e depois no Pitanguí — ocasião em que lhe permitiram explorar o bar “da beirada do campo”. Ele ficava no bar e, quando faltava um árbitro, apitava. Nesse período lhe ofereceram a possibilidade de fazer um curso de árbitro. Biruga fez o curso e, aos poucos, passou a apitar jogos amadores pela cidade. O presidente do Racing teve problema e (como “ninguém queria mexer”) Biruga se tornou presidente do Racing. Não cumpriu o mandato todo. Faltando seis meses, ele entregou o cargo. Então o convidaram para trabalhar com a categoria de base do Racing: “do infantil, passei pro juvenil, e me deram o bar do campo e eu tinha um outro bar no bairro, e sempre convivendo com a rapaziada, foi lá onde que você me conheceu que eu comecei com o juvenil, depois eu passei para o júnior”. 65 Juliano (19 anos) é auxiliar de Biruga nos treinos e jogos do time do Racing. Ele conta que começou em 1990, numa escolinha de futebol de salão no bairro Cachoeirinha. Ele morava no bairro cachoeirinha e ficou sabendo que um rapaz estava precisando de “um menino para ajudar” no futebol. Juliano se apresentou ao rapaz e o auxiliou por três anos (97, 98 e 99): “o dia que num dava para ele dá treino eu pegava e dava treino para menino e menina”. Juliano conta que sempre gostou de futebol. De sua trajetória como jogador relatou que teve uma passagem no time Santos Dumont (em Lagoa Santa) e que depois foi jogador do time juvenil do Racing, antes de trabalhar como auxiliar de Biruga nos treinos.

Page 62: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

62

Todos os treinos do Racing eram iniciados com uma reunião no campo. Com

os jogadores dispostos em círculo (e de preferência sentados), o treinador dava as

orientações necessárias ao desempenho no treino do dia e nos futuros jogos.

Nesses momentos não havia interferências dos jogadores: alguns ouviam

cabisbaixos, outros ficavam alheios ao discurso do treinador (pareciam mais

interessados em iniciar logo o jogo). Algumas vezes, a reunião inicial se estendia de

tal forma que os jovens começavam a ficar dispersos e acabavam se envolvendo em

conversas paralelas. Isso era motivo, entretanto, para acentuar as repreensões do

treinador com discursos que, muitas vezes, levavam os jogadores a refletir sobre a

oportunidade da participação nesse tipo de contexto, como uma dádiva. Outra

prática característica desse momento era a organização do jogo — quando a divisão

dos times era feita a partir da distribuição de coletes dupla-face aos jogadores.

Assim, o treinador ia chamando os jovens pelo nome (ou apelido). Ao receber o

colete, cada um era avisado sobre qual cor usar (o que definia o seu time: azul X

vermelho).

Após dar início ao jogo, Biruga sentava-se em uma lateral do campo e dali

fazia todas as intervenções necessárias no jogo.66 Nesse momento, seu foco

principal de atenção era o posicionamento, as jogadas e a conduta dos jogadores

em campo. Quem apitava o jogo era Juliano (que também contribuía com

orientações ao grupo). Em campo, jogadores do infantil e juvenil experimentavam a

organização do time proposta pelo treinador, assumindo as devidas posições e, vez

por outra, saindo dela — o que fazia Biruga se exasperar e repreender o jogador.

No decorrer do treino, prevalecia o uso de regras oficiais. Era na verdade, um

dos momentos de aprendê-la. Contudo, paralelamente, também havia flexibilizações

das regras. Jamais observei, por exemplo, a marcação de um impedimento no jogo.

Quando Juliano percebia que o impedimento estava para acontecer, antecipava-se,

avisando ao jogador ou o alertava posteriormente para o ocorrido.

Enquanto os jovens criavam as jogadas em campo, Biruga ia narrando o seu

próprio jogo (onde queria que os jogadores ficassem e ações para as diferentes

situações do jogo). Mas, nem sempre a vontade de Biruga prevalecia. Os jogadores

em campo tinham certa “autonomia” e muitas vezes assumiam o ônus pelo

desrespeito a uma indicação do treinador.

66 Apenas em um treino Biruga propôs aquecimento (com corrida e alongamentos) antes do jogo.

Page 63: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

63

O jogo de futebol no treino apresentava características do jogo de futebol

oficial, mas se distanciava muito dessa configuração com relação ao sentido/objetivo

da prática. Tratava-se, pois, de um contexto que não se constituía por uma disputa

com demarcação nítida de vencedores e vencidos (característica das competições

esportivas). O que movia os treinos era a busca do aprimoramento das condições

física, técnicas e táticas dos jogadores. Toledo (2002, p.131) afirma: [...] em princípio destinadas estritamente à manutenção física e técnica do conjunto de jogadores, eles [os treinamentos] constituem, como se pode notar, um lócus simbólico privilegiado que se contrapõe ao domínio ritual das partidas, na medida em que constituem no avesso dos ritos [...].

Ao final do jogo, novamente Biruga reunia o grupo. Nesse momento avaliava

a atuação dos jovens em campo e orientava a participação do time nos jogos

(amistosos ou de campeonato) do final de semana seguinte. Após dar as indicações

técnicas e táticas, Biruga abordava questões referentes à conduta desejável para

um jogador. Assim, alimentação, bebidas, drogas, horário de sono, pontualidade,

assiduidade, compromisso eram temas recorrentes. Tendo feito todas as

observações necessárias, o treinador liberava os jovens, indicando o horário da

presença em campo para o jogo do fim de semana.67

Segue um relato de um treino típico do time (Infantil e Juvenil) do Racing,

recortado do diário de campo:

Chego ao Racing às 16h05 e o grupo já está reunido no centro do campo. Alguns jovens de pé, e  outros  sentados  ouvem  as  orientações  do  treinador  (Biruga).  Energicamente  Biruga  dá instruções  sobre a participação dos  jovens no  jogo do  sábado  seguinte  (valendo  troféu)  e no campeonato de futebol amador que se iniciará em breve. Desse modo, Biruga afirma que: • Se os jovens perderem o jogo de sábado, vão ter que pagar a compra de outro troféu.  • A oportunidade que os jovens têm é muito importante e por isso eles devem levar a sério o futebol.  • Há muitos jovens dispostos a ocupar o lugar daqueles que não estiverem rendendo nos jogos.  • Não quer jovens ao seu portão pedindo para jogar (só receberá Juliano seu auxiliar técnico).  • Ele se esforçará para  fazer o melhor (garantir o  lanche após o  jogo), mas cabe aos  jovens o empenho para ganhar os jogos.  • Ele sente pela morte do pai de um dos jogadores, mas, passadas duas semanas, não é possível ficar tão apático/abatido no jogo (“—É importante acordar.”). • Isaque vai ficar na reserva enquanto não entender que futebol é coletivo.  

67 Não presenciei treinos técnicos (com exercícios específicos) no Racing. Há relatos dos participantes, afirmando que muito raramente eles aconteciam.

Page 64: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

64

• Não adianta nada o  jovem querer  jogar nessa ou naquela posição, pois é ele quem sabe do jogo/time e é ele quem vai dizer a posição de cada jogador.  • Alguns jogadores podem melhorar. • Alguns jovens jogam como moça (com medo de colocar o pé na bola).              Enquanto Biruga conversa com os  jogadores, outros  jovens que sempre se encontram nos  fins de tarde no campo de  futebol (grupo que Biruga caracterizou como problemático no bairro) vêm perguntar se ele tem uma bola para emprestar. Biruga informa que o jogo vai se iniciar  em breve e que  ele está  só com uma bola em campo. Observando a presença de duas bolas o rapaz solicita novamente o empréstimo de uma. Biruga informa que uma das bolas não está boa.  Depois  de  longa  conversa  (de  aproximadamente  30  minutos)  unilateral,  pois  os  jovens permanecem  calados, Biruga  começa  a  organizar  o  grupo para  o  treino distribuindo  coletes dupla‐face  (azul e vermelho) para  formar dois  times. Desse modo, começa convocando um a um  os  jogadores  titulares  do  juvenil  para  formar  um  dos  times. Com  o  restante  do  grupo (principalmente  jovens  do  infantil)  forma  o  outro  time  (o  resultado  é  a  formação  de  times tecnicamente desiguais). Após selecionar os times, Biruga  informa a posição de cada  jogador (principalmente aos do  infantil) reafirmando a necessidade de cada um  ficar em sua posição. Antes de iniciar o jogo, Biruga é enfático: “—Nada de palavrões hoje.” [indicando a minha presença]. “—Amanhã [no  jogo] vocês podem soltar o verbo.” Após organizar tudo, ele vai se sentar em uma lateral do campo e acaba emprestando uma bola aos rapazes para que possam a “bater bola” também na lateral do campo. Juliano apita o início do jogo depois de recolher os bonés dos jogadores De  uma  lateral  do  campo,  Biruga  dá  instruções  constantes,  principalmente  sobre posicionamento, aos  jogadores.  Juliano acompanha de dentro do campo as  jogadas e às vezes também orienta os jogadores. Há maior domínio do jogo dos jovens maiores (o que faz com que o time se concentre mais em um dos lados do campo).  Um dos rapazes que pediram a bola emprestada organiza times e convida Biruga a jogar. Ele grita avisando a Juliano que vai jogar uma pelada e que o auxiliar deve seguir com as tarefas. No Racing, os dois jogos se misturam num lado do campo. Desse modo, é constante a mistura de  jogadores  e bolas de  jogos diferentes. De  fora, a desordem parece geral, mas no campo os jogos  ocorrem  sem  conflitos. Aos  poucos Biruga  vai  se  ausentando  do  jogo  para  o  qual  foi convidado  e  retomando  a  posição  de  treinador. Às  vezes,  ele  pára  de  jogar  para  orientar  o treino: “—Olha  a posição,  caralho”. Depois  sai do  jogo definitivamente,  atravessa  o  campo para se concentrar no treino. Entre os jogadores, as indicações constantes são feitas pelos pares no “calor” do lance. O jogo tem a duração de 40 minutos.  No entorno do campo alguns jovens/crianças vêm e vão: observam, assistem, saem... Marcelo (o futuro presidente do time do Racing, caso seja eleito no fim do ano) chega após iniciar o jogo e  fica sentado (fora da tela) até o  final. Encerrado o  jogo, os  jovens (suados e com respiração ofegante) vão beber água. Biruga se aproxima dizendo que eles não estão liberados e que devem se  sentar. Muitos  se  sentam, outros de pé  encostados à  tela do  campo, ouvem Biruga dizer, nome por nome, os jogadores do infantil que irão jogar às 08h do sábado seguinte. Biruga pede aos jovens que avisem os ausentes. Avisa ainda que somente o juvenil terá direito a lanche no sábado (uma banana antes do jogo e pão com refrigerante depois) e que o lanche será oferecido por Marcelo   em tom de propaganda política. Ressalta que o  infantil não terá  lanche, porque não está merecendo.  Marcelo  entra  na  conversa  e  pergunta  o  número  de  jogadores  do  infantil  (pensando  na possibilidade de também  lhes oferecer o  lanche). Mas Biruga é enfático ao dizer que eles não 

Page 65: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

65

vão  ter  lanche,  pois  não merecem  [repete]. Antes  de  liberar  os  jovens,  Biruga  diz  que  os jogadores devem se alimentarem antes do jogo (“— Tomar um bom café da manhã”) para não acontecer como na semana anterior (em que um menino de um dos times desmaiou em campo). Diz ainda que na sua casa há duas pessoas e que ele faz café para umas seis. Desse modo, quem não tiver condição pode tomar café na casa dele. Biruga novamente cobra do time a vitória no dia seguinte voltando ao assunto da compra de troféu (R$1,00 ou R$2,00 por jogador). Depois libera o grupo informando os horários de chegada de cada grupo: infantil às 07h30 para jogar às 08:00 e juvenil 09h para jogar às 09h30.  Enquanto Biruga e Juliano se envolviam mais diretamente com os jogadores e

os jogos de futebol dos times (infantil e juvenil) do Racing, um dos candidatos à

presidência do campo dava suporte para as práticas futebolísticas, fornecendo o

material (bolas), ônibus (para os jogos de futebol da Copa DFA que aconteciam fora

do bairro), camisas do time e lanches (ao fim de cada jogo). O Racing é um time de

futebol amador, portanto não havia qualquer tipo de pagamento aos jogadores,

treinador e auxiliar. Como afirmavam muitos dos envolvidos no futebol de várzea,

era “o gosto pelo jogo” que os fazia participar do futebol. Entre as expectativas dos

jovens, o desejo de profissionalização também estava presente.

3.1.3 - Práticas cotidianas de futebol no campo do Racing Definir futebol como modalidade esportiva “em que disputam dois times de 11

jogadores, num campo retangular [...], na qual é vedado aos jogadores, exceto ao

goleiro, tocar a bola com a mão” ou como “um dos vários jogos esportivos

disputados por dois times, com uma bola de couro, num campo com um gol em cada

uma das extremidades, e cujo objetivo é fazer entrar a bola dentro do gol” do

adversário parece ser a mais comum e também a menos precisa definição do

esporte.68 Como afirma Bruni (1994, p.07) essa definição do futebol “mal deixa

entrever o universo” simbólico, psíquico, social, cultural, histórico, político e

econômico inesgotáveis que envolvem multidões e mobiliza grandes recursos

financeiros. Não se circunscrevendo nos seus próprios limites, o futebol tem “um

enorme eixo expressivo e/ou simbólico que apenas diz e, com os rituais, revela

quem somos”. No futebol ocorrem, portanto, “batalhas simbólicas” que evidenciam

elementos de um jogo mais amplo — o jogo social.

Mais que uma prática motora que envolve o domínio da bola com os pés, o

futebol, no bairro Universitário, orquestrava profundas tensões, conflitos, relações de

68 Novo dicionário básico de língua portuguesa, 1995, p.312.

Page 66: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

66

gênero, etc. Tratava-se, pois, de uma prática cultural que se multiplicava numa

diversidade de usos e que, em cada uma de suas versões, guardava especificidades

e singularidades.

No campo de futebol do bairro, a diversidade de formas de jogar ultrapassava

qualquer definição pautada em jogos e regras oficiais, ou seja, o futebol era

produzido de muitas maneiras. É pouco usual, entretanto, a utilização do termo

futebol no plural. Contudo não parece fora de propósito a adoção do termo futebóis,

proposto por Damo (2005). Afinal, a produção cotidiana do futebol, nesse contexto,

revelava uma multiplicidade de jogos no mesmo jogo. Jamais estáticas ou

homogêneas tais práticas eram fluidas/fugazes: uma coisa virava outra muito

rapidamente. Assim, do “peruzinho/bobinho” os jovens passavam a passes e chutes

ou iniciavam uma pelada, etc. A diversidade de práticas e de modos de participar

dos jogos tornava o Racing um dos espaços centrais de produção do futebol no

bairro e imediações — o que não significa que ele fosse o único.

Todas as tardes, diferentes grupos se encontravam no campo do Racing para

jogar futebol. Crianças se misturavam a jovens e adultos, às vezes na mesma

prática. Outras vezes, em práticas diversas. Não há como negar, entretanto, que, se

o futebol era prática hegemônica (principalmente para os jovens), não era a única

que tomava forma no campo. Papagaio, bicicleta, corrida, conversas, encontros,

passagens, caminhada, dentre outras práticas, eram praticadas no entorno do

futebol.69 Portanto, quem ficava ou transitava no Racing jamais estava alheio a ele.

Freqüentado principalmente por jovens do sexo masculino, no decorrer da

semana, o campo do Racing era marcado por ampla rede de sociabilidade e

comportava interesses diferentes. Desse modo, havia os que gostavam de jogar, os

que preferiam assistir, os que gostavam de assistir aos jogos e comentar sobre

jogadas e jogadores (interferindo, pois, nas práticas de futebol produzidas), os que

aproveitavam a oportunidade para encontrar amigos e comentar sobre os resultados

do futebol profissional, dentre outros.

Sem horário fixo para começar ou terminar as práticas futebolísticas

raramente ocupavam o espaço oficial. Enquanto os da pelada (mais velhos) ficavam

em um espaço lateral (no campo) fora da área de gol, outros grupos de jovens e

crianças ocupavam os gols (em grupos menores) com pequenos jogos de futebol.

69 O campo de futebol do Racing era usado como atalho para quem se dirigia ao bairro ou saía dele no sentido bairro Santa Rosa.

Page 67: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

67

Pelada, peruzinho/bobinho, jogos na área do gol (duplas, trios, jogos sem goleiro,

jogos com goleiro, jogos com dois goleiros, jogos com e sem times “de fora”, etc.) e

brincadeiras de repetição (chutes a gol, passes, escanteios, etc.) eram parte das

redes juvenis de sociabilidade no Universitário. Mas, em dias de treino do time do

Racing ou do Projeto social, a configuração do campo do Racing era mais dinâmica

e complexa: Enquanto os meninos  treinam  chutes, passes,  condução de bola,  etc.,  sob o olhar  e algumas intervenções  do  professor  do  Projeto,  do  outro  lado  do  campo  um  grupo  de jovens/jogadores  do  time  do Racing  fazem  um  pequeno  jogo  na  área  do  gol  (jogo  que envolve chutes a gol dos atacantes, defesas do goleiro e disputa — visto que há um grupo de jovens  que  aguardam  a vez de  jogar na “de  fora”). Próximo a  eles outros  jovens  jogam inicialmente “peruzinho/ bobinho”. Depois demarcam o  espaço do gol  com pedras  e  iniciam uma “pelada” — que  é a última prática do  campo no  final da  tarde. Quatro meninos  (de aproximadamente sete anos) chegam ao campo com mochilas de escola nas costas e logo entram para o campo. Uma das bolas do Projeto que está ociosa perto dos jogadores é alvo de grande interesse desses meninos. Desse modo, eles seguem em direção à bola quase que hipnotizados (há  um  fascínio  pelo  objeto)  e,  apossando‐se  dela,  iniciam  chutes  e  dribles  pelo  campo. O professor  do  Projeto  não  se  importa  com  a  posse  da  bola  pelos meninos  e  só  os  repreende quando observa que eles estão se distanciando demais para o outro lado do campo. Fora da tela que separa o espaço do jogo (no entorno do campo do Racing), o entra‐e‐sai de observadores é constante. Nesse contexto sou a única mulher presente. 

À noite as práticas e os praticantes do campo de futebol se alteravam. Muitos

jovens que passaram a tarde jogando bola no Racing, à noite voltavam para assistir

aos jogos de futebol dos adultos, encontrar os amigos, beber cerveja no bar.70 A

freqüência ao bar — e as redes de sociabilidade que nele eram produzidas —

contribuía para transformar o campo num ponto de referência de lazer no bairro. À

“beira do campo”, o futebol era o tema de conversas em grupos masculinos,

principalmente. A partir do futebol podia-se conversar sobre muitas coisas: o jogo

realizado no momento; os problemas dos times em que participavam como

jogadores; os times profissionais e os campeonatos esportivos; os salários dos

jogadores; a possibilidade de ascensão no futebol; os erros de juizes das rodadas do

fim de semana; os programas esportivos de futebol da TV; o calendário de jogos

amadores e profissionais; as jogadas e gols espetaculares, enfim uma infinidade de

assuntos (temperados por disputas, afirmações e divergências).

70 Apenas um jogo amistoso juvenil do Racing ocorreu em uma quinta-feira à noite.

Page 68: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

68

Nos fins de semana, jovens e adultos se misturavam no campo de futebol.

Sábado pela manhã os jovens ocupavam o campo com jogos amistosos, tendo

outros jovens, crianças e adultos como público. O jogo do time infantil era marcado

para 08h e o do infantil para 10h. Contudo atrasos (de 40 minutos em média) eram

comuns e isso fazia com que os outros jogos tivessem seus horários alterados. No

período da tarde, o quadro da participação no futebol se invertia no Racing. A partir

de aproximadamente 13h os adultos entravam em cena com seus jogos (de

campeonatos e de grupos que alugavam semanalmente o campo) e ocupavam o

campo de futebol até o cair da noite — o que ocorria também aos domingos.71

Os jogos de futebol dos fins de semana aumentavam a movimentação de

crianças, jovens e adultos no entorno do campo. Acompanhados dos pais (e

munidos de bolas, bicicleta e papagaio), as crianças ocupavam diferentes espaços

do campo no decorrer dos jogos e o invadiam nos momentos de intervalos e de

troca de times. Enquanto os jogadores que ocupavam a arena central do campo

eram o foco no decorrer do jogo, o intervalo se constituía como momento para as

práticas dos jogadores coadjuvantes do dia. No intervalo os jogadores seguiam para

área do banco (ou qualquer lugar, de preferência, que tivesse sombra) para beber

água, descansar e,ao mesmo tempo, ouvir do treinador as avaliações e instruções

que “deviam” ser seguidas no segundo tempo. Nesse momento, outros

personagens tomavam a cena do campo com uma diversidade de práticas: pais que

traziam filhos menores para assistir ao jogo invadiam o campo com as crianças para

realizar um rápido bate bola; os jogadores-reservas dos times realizavam novo

aquecimento (ficavam de prontidão para o caso de serem convocados a jogar no

segundo tempo); meninos de diferentes idades invadiam o campo com bicicletas;

outros jovens aproveitam a oportunidade para brincar com os jogadores-reservas.

Fora das demarcações de campo, a cena também se modificava. Enquanto, no

decorrer do jogo oficial, todos tinham a atenção voltada para ele (e até quem parecia

mais disperso era capaz de dizer sobre o resultado do jogo, portanto jamais alheio

ao que acontecia), no intervalo (fora do campo) homens e jovens se dirigiam ao bar

para conversar com os amigos, comentar o jogo, beber cerveja ou apreciar a

especialidade da casa. No caso do campo do Racing, o feijão tropeiro.72 Mas

71 Os jogos juvenis da Copa DFA ocorreram em vários campos da cidade aos domingos. 72 O feijão tropeiro é prato típico das partidas de futebol que acontecem no principal Estádio da cidade, o Mineirão.

Page 69: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

69

bastava o juiz acenar para retorno dos jogadores ao campo, para que todos se

recolocassem em suas posições — imediatamente a cena do jogo de futebol se

recompunha e os expectadores voltam a atenção para o campo.

Ao contrário do que ocorria durante a semana, quando não se viam mulheres

nos arredores do campo de futebol do Racing, nos fins de semana a presença de

algumas mulheres era recorrente. Jamais como praticantes do futebol, elas

transitavam para assistir aos jogos e também para participar da sociabilidade no bar.

Mães, namoradas e irmãs de jogadores de futebol eram a maioria nesse contexto.

Em número muito inferior, em relação à presença masculina, as mulheres que

freqüentavam o campo quebravam barreiras, ocupando espaços reconhecidamente

masculinos. Portanto, o campo de futebol possuía uma forte demarcação de gênero.

3.2 - Práticas de futebol no cotidiano da escola

Localizada na rua principal, ao lado do Posto de Saúde e do campo de futebol

do Racing, a escola (EECJP) é destaque entre as construções do bairro. Primeiro

porque não há outras escolas públicas nas proximidades. Além disso, porque tem

formato oficial de construção escolar do Estado (amplamente reconhecida neste

contexto cultural). São dois prédios em forma de U, com acabamento de “tijolinho à

vista” (vermelho telha), ligados por um corredor que dá acesso à escada. Esta, que

liga o pátio ao segundo andar, onde ficam as salas de aula, tem uma grade que é

aberta por uma funcionária apenas no recreio ou no decorrer das aulas, para

passagem de professores e de alunos que seguem para as aulas de Educação

Física ou que foram autorizados a sair da sala. O pátio fica entre os dois prédios e

faz limite com a cantina, de um lado, com as salas de professores, secretaria,

biblioteca e sala da diretoria, do outro, e também dá acesso à quadra coberta da

escola.73 Em frente à EECJP há uma Praça de Esportes arborizada que tem uma

pequena quadra de basquete e espaços livres para outras práticas.74 Ela é utilizada

73 Escolano e Frago (1998) apontam que a categoria espaço não é esquema neutro. Para os autores, a organização do espaço escolar tende a “instituir” e “disseminar” sistemas de valores e ordens que indicam perspectiva do disciplinamento e do controle, como fonte de experiência e aprendizagem (o espaço educa). Sendo um currículo silencioso, o espaço escolar é dotado de significados que transmitem estímulos, conteúdos, ou seja, longe de ser uma propriedade “natural”, ele passa a ser assimilado como uma ordem a ser aprendida, como cultura a ser experimentada. 74 Como no bairro Universitário os jovens dão preferência à prática do futebol no campo do Racing, observei as práticas de futebol na Praça de Esporte apenas quando os alunos da escola realizavam práticas nesse espaço ou quando (em passagens pelo bairro) percebia nela movimentos futebolísticos de alguns jovens.

Page 70: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

70

pelos moradores do bairro (sobretudo por mães que seguem com filhos para tomar

sol no início da manhã e por jovens e crianças que a ocupam nos fins de tarde) e

pelos alunos da escola (que aguardam a hora de entrar para escola, depois da aula

e em algumas aulas de Educação Física).

No turno da manhã, a EECJP recebe jovens (das séries finais do Ensino

Fundamental e do Ensino Médio) que moram no bairro e imediações: Vila Santa

Rosa, Universitário, Suzana e Santa Cruz.75 Nesse turno estudavam, portanto,

jovens com diferentes idades (11/12 anos a 18 anos), interesses e estilos (maneiras

de ser jovem) evidenciados nas formas de agir, vestir76, de ocupar o espaço escolar

e de se envolver com a escolarização. A diversidade de sujeitos no cotidiano da

escola era percebida, principalmente, no recreio. Por exemplo: jovens grávidas,

casais de namorados, praticantes de futebol, dançarinos do recreio, etc., se

misturavam nesse tempo escolar. Estigmatizados como “marginais”, muitos jovens

produziam tensão nas práticas escolares. “Eles são difíceis”. “Eles não têm jeito”.

“Eles não querem aprender nada”. Essas eram frases que se repetiam na sala dos

professores e na quadra da escola.77

Cada turno escolar era composto por cinco horários de cinqüenta minutos e

vinte minutos de recreio. Às 06h50 soava o primeiro sinal e o portão era aberto para

a entrada dos alunos. Nesse momento, muitos jovens atravessavam o portão de

entrada e o pátio em direção às salas de aula e aos corredores do segundo andar.

Muitos professores (na maioria mulheres) chegavam antes do horário de aula,

dirigiam-se para a sala de professores e ali ficavam conversando, separando o

material até o horário da aula. As aulas iniciavam-se às 07h com o sinal de outra

sirene, quando muitos jovens que conversavam na Praça entravam para a escola.

Para agilizar a entrada dos alunos, uma funcionária ficava ao portão chamando

aqueles que ficavam conversando. Os que chegavam muito atrasados encontravam

o portão fechado e só podiam entrar no segundo horário. Isso não impedia,

75 O turno da tarde contempla as séries iniciais do Ensino Fundamental e o turno da noite, o Ensino Médio e a Educação de Jovens e Adultos. 76 O uniforme da EECJP era calça jeans e blusa azul (com o slogan da escola). Mas, os usos que os jovens faziam dele o transformava, dando a impressão de diversidade de trajes no cotidiano. Adereços (touca, colares, bonés, piercing) e maquiagem quebravam a noção de uniformização. 77 Entendida como um problema, destacado em muitos estudos sobre violência, drogas, gangues, torcidas organizadas de futebol, etc., a juventude é assunto da ordem do dia. Contudo, para Abramo (1997, p. 25), grande parte da “reflexão é ainda destinada a discutir os sistemas e instituições presentes na vida dos jovens [...], ou mesmo estruturas sociais que conformam situações problemáticas para os jovens, pouca delas enfocando o modo como os próprios jovens vivem e elaboram essas situações”.

Page 71: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

71

entretanto, que “implorassem” à funcionaria para abrir o portão, se o primeiro horário

fosse de prova. Cada horário escolar era marcado pela sirene — momento em que o

barulho e o trânsito de professores e alunos nos corredores se intensificavam e

modificavam a dinâmica escolar. Mas, quando a sirene sinalizava o final do turno

escolar, imediatamente todos iam se dirigindo ao portão. Muitos jovens logo

ocupavam as ruas em direção a casa. Outros ficavam conversando um pouco na

Praça de Esportes antes de ir para casa.

3.2.1 - Recreios com futebol O recreio da EECJP começava com o soar da sirene (após o 3º horário).

Nesse momento todos os alunos e professores desciam em direção ao pátio — que

funciona como elemento de passagem para a cantina, banheiro, quadra, sala de

professores, etc. e como espaço de práticas para muitos jovens que ali

permaneciam nesse tempo escolar. Uma funcionária da escola trancava o portão da

escada que dava acesso ao andar superior. Enquanto professores iam lanchar na

sala de professores, os alunos ocupavam espaços diversos da escola. Uns iam para

a fila da merenda na cantina, outros ficavam conversando no pátio, alguns

compravam merendas que eram vendidas ao lado da sala dos professores e outros

seguiam para a quadra esportiva.

No recreio o som da escola era ligado sob a responsabilidade de um aluno.

Ele manipulava o equipamento de som e recolhia os CDs da turma selecionada para

escolher as músicas do dia (funk, MPB, axé, etc.). O som alto e o barulho de muitas

vozes faziam da escola um espaço diferente nesse momento. Diferente dos horários

de aula, a escola ficava mais barulhenta, movimentada e alegre. Muitos alunos, após

o lanche, se dirigiam para a parte coberta do pátio, onde o som era instalado. Dali

acompanhavam as músicas com cantoria e algumas vezes até dançavam. Conforme

relato da coordenadora, a música foi introduzida na escola para diminuir os conflitos

entre os alunos no recreio.

Outros jovens preferiam passar o recreio na quadra poliesportiva (com

demarcações para prática de diferentes esportes) envolvidos com o futebol. A

regularidade da produção de futebol no recreio revelava, portanto, a importância

dessa prática no cotidiano da EECJP. Desde que o professor de Educação Física

Page 72: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

72

começou a emprestar uma bola para os jovens no recreio, o futebol virou regra.78 Os

jogos tornaram-se cotidianos: Assim, que soa a sirene  iniciando o recreio, os alunos de Educação Física começam a sair da quadra  ficando nela  apenas  alguns  jovens  para  continuar  o  jogo  de  futebol. Outros  jovens chegam  à  quadra  para  participar  do  jogo. Organizados  os  times  num  tipo  de  seleção  por escolha entre pares (par ou ímpar) o futebol começa e a dinâmica de revezamento (02 gols) de times é anunciada quando outros jovens se candidatam a participar.  Os jovens que chegam a quadra vão se aglomerando na linha lateral para assistir ao jogo ou compor o time “de fora”. Como o jogo está muito equilibrado, o primeiro rodízio demora a acontecer. Enquanto o futebol acontece, outros  jovens (algumas mulheres) passam a  jogar peteca, conversar,  lanchar (chips geralmente são compartilhado entre os colegas) na quadra. Terminado o primeiro jogo, alguns membros do time que perdeu saem em direção ao pátio. Outros jovens se candidatam ao time “de  fora”  (formado com alunos de diferentes  turmas,  idades e  tamanhos). Enquanto um dos times faz um revezamento de jogadores ao gol, os outros jogam com um goleiro fixo. O sinal de fim de recreio soa e um time que jogou todo o recreio vence novamente o jogo. Poucos alunos se movimentam  para  fora  da  quadra.  Na  quadra,  o  jogo  é  de  correria  e  os  expectadores acompanham cada “lance” da lateral (fazem intervenções, brincam com os jogadores). Alguns alunos começam a sair da quadra. Depois de alguns minutos, o professor de Educação Física, com apito, recolhe a bola e encerra o jogo na quadra da escola. Todos se dirigem ao pátio [...].  

No recreio, o jogo de futebol ocorria com regras simplificadas e negociadas no

momento, ainda que houvesse certa regularidade nas formas de jogar. Se, por um

lado, era possível notar a participação de jovens de diferentes idades, isso não se

dava por força da democratização do espaço, mas por tensões internas, hierarquias

e disputas referentes ao direito ao jogo. Nesse contexto, cada jovem podia

apresentar como moeda de troca não só a técnica futebolística, mas também a força

(os alunos maiores muitas vezes restringiam a participação dos menores) e a

amizade (o que levava jovens pouco habilidosos a conseguir participar, por vezes,

do jogo). Assim, com as limitações de tempo/espaço e as relações de poder, muitos

jovens não conseguiam jogar no recreio. Outros nem sequer se candidatavam à

prática: ficavam no espaço assistindo ou iam para outro espaço da escola.

De toda maneira, o futebol era uma prática de grande interesse e envolvia, de

forma diferente, os participantes. Havia, portanto, os que efetivamente jogavam

(participavam do futebol e das disputas que envolviam o jogo) e os que se envolviam

78 Quando fiz a pesquisa exploratória na EECJP, em 2004, não havia práticas esportivas no recreio. Conforme relato da vice-diretora (professora de Educação Física), o futebol na escola ocorria basicamente nas aulas de Educação Física, visto que faltava pessoal para agilizar o uso da quadra no tempo do recreio. Informou também que algumas vezes os alunos se organizavam para o uso desse espaço no recreio ou após as aulas, recebendo a autorização da direção para produzir pequenos campeonatos ou alguns jogos entre turmas.

Page 73: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

73

no futebol do recreio de forma diferenciada: assistindo, “gozando” os colegas,

cobrando o direito ao jogo, narrando os jogos... Logo, para os posicionados fora do

jogo, também havia ludicidade.

Na EECJP os homens eram maioria nas práticas futebolísticas do recreio.

Para as mulheres, que não disputavam o espaço imediato de jogo com os homens,

havia um dia da semana reservado exclusivamente. Esse tempo, conquistado com

intervenção docente, constituía direito ao futebol.79 Contudo, apenas algumas alunas

de uma das turmas que tinham aula de Educação Física no terceiro horário nas

quintas-feiras, continuavam na quadra e ocupavam o espaço do futebol no recreio.

Diferentemente do futebol dos homens, elas jogavam sem time de fora e seus jogos

também se caracterizavam por pouca correria e menor disputa, portanto, uma

dinâmica de menor rivalidade/competição. Ao contrário dos meninos, elas

encerravam o jogo imediatamente ao som da sirene. Mas, quando deixavam a

quadra, os rapazes invadiam o espaço. Para aproveitar melhor o tempo, eles

definiam os times (escolhas marcadas por relações de poder) e iniciavam

rapidamente os jogos de futebol — que perduravam até que o professor viesse

recolher a bola, ou seja, “acabar com a festa”.

3.2.2 - A aula de Educação Física/futebol Os alunos tinham uma aula de Educação Física de cinqüenta minutos duas

vezes por semana, na quadra poliesportiva (coberta). Os alunos da 5ª à 8ª série

tinham aulas com o professor Denis80 e os do Ensino Médio com a professora

Cláudia.81 As turmas de Educação Física, de aproximadamente quarenta alunos,

eram compostas por jovens do sexo feminino e do masculino (turmas mistas) — o

que não significava que homens e mulheres praticassem o mesmo esporte, nem que

jogassem juntos. 79 Sobre as relações de poder entre meninos e meninas na escola ver Altmann (1998) 80 Seguindo os passos do pai, Denis se tornou árbitro num curso em 1990, mas só começou a apitar jogos de futebol em Belo Horizonte em 2000. Para dar aulas de Educação Física, fez um curso de preparação conhecido em Belo Horizonte como CEDEF (Curso de Educação Física e Desporto) e começou a trabalhar com a Educação Física escolar. Em 2004 iniciou o curso superior de Educação Física na Faculdade Estácio de Sá, mas mudou para a Faculdade de Educação Física da Fundação Helena Antipof, em 2005. 81 Cláudia formou-se em Educação Física na década de 70, na Escola de Educação Física da UFMG. Depois de formada, participou de processos de capacitação diversos. Cláudia fez questão de ressaltar que um deles foi o de Educação Física Escolar oferecido pelo PROEF-UFMG (Pró-Educação Física Escolar) em parceria com o Estado. Cláudia diz que acompanha os debates da área e que participa de alguns encontros na Escola de Educação Física-UFMG. Do seu trabalho deu destaque à ginástica como tema com que tem mais prazer e familiaridade.

Page 74: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

74

Cada professor administrava o uso do seu material de trabalho. As bolas de

futebol, vôlei e handebol e algumas petecas, uma vez distribuídas, ficavam sob sua

responsabilidade. Mas, nem sempre os materiais necessários para as aulas de

Educação Física estavam na lista de prioridades de compra da escola. Foi o que

ocorreu em 2005. Nesse ano, devido à falta no fornecimento do material para as

aulas, os professores tiveram que lidar com a precariedade usando materiais do ano

anterior: algumas petecas, duas bolas de futebol e vôlei e, às vezes, uma bola de

handebol (todas em péssimo estado: murchas, descosturadas e até tortas). Para

superar essa dificuldade, o professor Denis (juiz de futebol nos fins de semana), às

vezes, levava para a escola bolas usadas/velhas que lhe eram doadas ao fim dos

jogos que apitava fora da escola. Mas, a professora Cláudia contava apenas com o

material fornecido pela escola e, desse modo, de vez em quando pedia emprestada

a Denis uma bola de futebol (que era a maior demanda da escola). Outras vezes os

próprios alunos levavam bolas de futebol para jogar nas aulas de Educação Física.

A prática mais recorrente era o futebol. De um total de 64 aulas observadas

no primeiro semestre de 2005, 02 aulas foram de peteca (para os alunos de 5ª e 6ª

série); 04 aulas foram de vôlei (02 para os alunos de 7ª série; 01 para os alunos do

2º ano e 01 para os do 3º ano do Ensino Médio); 03 aulas foram de caminhada (02

para os alunos da 7ª série e 01 para os alunos da 8ª série); 43 aulas foram de

futebol (distribuída entre todas as turmas).82 Os dados levantados servem para

demonstrar o grau de penetração do futebol nas aulas de Educação Física, prática

cotidiana na escola.83

Acreditando que a Educação Física deve ensinar esportes, danças, jogos,

ginásticas, etc. (e não deixar que os alunos joguem apenas o futebol), em muitos

momentos os professores falaram sobre as suas escolhas (ou falta de escolha) nas

aulas. Desse modo, para a hegemonia do futebol nas aulas eles traçaram algumas

justificativas. A primeira foi que esse esporte (que conquistou o status de esporte

82 E algumas aulas de futebol ministradas aos alunos de 5ª e 6ª série, também se jogou a queimada (mulheres, principalmente). Contudo nenhuma delas teve a queimada como tema principal. Ela era a opção dos alunos que não praticavam o futebol. 83 A hegemonia do futebol nas aulas de Educação Física parece estar associada à popularização no Brasil. O futebol faz parte do cotidiano dos jovens brasileiros em ruas do bairro, nas proximidades da escola, em quadras públicas e privadas, em campos de futebol de várzea e é diariamente divulgado pelos meios de comunicação de massa (o que não se dá, na mesma intensidade, com outra modalidade esportiva). Enquanto, para muitas das crianças, o primeiro contato com certas modalidades esportivas (basquete, handebol e até vôlei) se dá na escola, o futebol é uma prática comum no cotidiano (sobretudo para o sexo masculino) fora da escola, ainda que com enfoques, significados e participações diferenciadas (FARIA, 2001).

Page 75: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

75

nacional) era alvo de grande interesse entre os alunos da escola, sobretudo os do

sexo masculino — o que dificultava as negociações referentes a outras práticas.

Diante desse quadro, a falta de motivação para a prática de outros esportes era

outra justificativa apresentada pelos professores — que usavam a prática do futebol

para ganhar a confiança e amizade dos alunos, ou seja, permitiam que eles

fizessem o que mais gostavam para depois propor outras práticas. Outra forma de

justificar a hegemonia do futebol na Educação Física foi a dificuldade material

enfrentada pela escola. Com a falta de bolas e outros materiais necessários para as

aulas, o futebol acabava sendo o mais facilmente viabilizado. Afinal, no país se joga

futebol de qualquer maneira: com ou sem material e espaço adequado.

A hegemonia do futebol nas aulas não acontecia, entretanto, sem tensões.

Interpretada de diferentes maneiras, ela causava conflitos no cotidiano escolar.

Enquanto muitos jovens reclamavam contra a falta de opção (sobretudo as meninas

das turmas de 5ª e 6ª séries e os alunos que consideravam a Educação Física como

uma disciplina que deveria ensinar outros esportes e “não só jogar futebol”), para

grande parte dos jovens (sobretudo do sexo masculino) o futebol era visto como algo

positivo (o que levava alunos suspensos da escola a pular os muros para participar

do futebol nas aulas de Educação Física). Causando constrangimentos e

incômodos, a forma como os professores lidavam com o futebol parecia indicar que

a acentuada presença nessa disciplina funcionava como “um mal necessário”.84

Usado pelos professores como prática de lazer e como forma de conquistar os

alunos, o futebol era objeto de negociação, era moeda de troca.

Na EECJP, os professores de Educação Física trancavam o portão da quadra

durante as aulas.85 Portanto, mesmo que algum aluno optasse por não “nada” fazer

na aula (ficando na arquibancada para assistir a jogos ou conversar, etc.), não podia

sair desse espaço. Andar pelos corredores e atravessar o pátio da escola podia

84 Em alguns momentos a importância do futebol na escola superava a de outras disciplinas. Isso pôdia ser observado quando jovens que eram suspensos da escola a invadiam para participar do futebol na aula de Educação Física e, sobretudo na negociação feita entre professores, direção e alunos para a realização dos ensaios da quadrilha para a festa junina. Para convencer os alunos a participarem da dança, a escola se comprometeu a não fazer os ensaios nas aulas de Educação Física (horário do futebol). 85 Os professores de Educação Física precisavam revezar o uso da quadra apenas em 04 horários da grade curricular. A cada semana, nos horários que ministravam aulas de Educação Física simultaneamente, um professor ocupava a quadra enquanto o outro seguia com os alunos para a pracinha esportiva em frente à escola. Atípicas, nas aulas de Educação Física ministradas na pracinha de esporte, os professores deixavam a cargo dos alunos as decisões sobre as práticas (a única regra explicitada era a proibição do distanciamento dos alunos desse espaço).

Page 76: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

76

comprometer o andamento de outras tarefas escolares. Além disso, a freqüência à

aula de Educação Física era computada pela presença do aluno e não pela

participação nas práticas. Com exceção de um jovem que estava proibido de

participar das aulas por motivos médicos, todos os outros alunos eram considerados

aptos para a Educação Física.86

As aulas que tinham como tema o futebol eram organizadas de duas

maneiras:

• Turmas da 5ª e da 6ª série do Ensino Fundamental: Após a chegada do

professor com os alunos à quadra, a aula era iniciada com a definição do grupo

que iria ocupá-la na primeira parte da aula. Quando as meninas iniciavam as

práticas, o professor se retirava do centro da quadra, deixando a cargo delas

decisão sobre o que fazer (futebol ou queimada87) e a organização dos times

para o jogo. Ele só retomava o contato com esse grupo para finalizar as práticas

com a informação do final do tempo. Quando os meninos iniciavam a aula (o que

ocorria na maioria das vezes), o professor convocava os interessados para se

colocar em fileira na faixa central da quadra. Nesse momento organizava os

times (geralmente 3 ou 4 grupos de 5 alunos). O professor realizava a seleção

dos grupos de diferentes maneiras. Muitas vezes fazia um sorteio numerando os

alunos para cada grupo; outras vezes escolhia apenas aquele que iria selecionar

o restante do time (muito raramente a organização dos times ocorria sem a

intervenção do professor). Depois dessa organização o professor informava aos

alunos os modos de revezamento dos times (1 ou 2 gols e a substituição do time

perdedor) e se dirigia à arquibancada para fazer a chamada dos alunos

presentes no espaço e observar as práticas. Essa forma de administrar as

práticas masculinas de futebol ocorria também quando os meninos não eram os

primeiros a realizar o futebol na quadra.

Em algumas aulas dessas turmas o professor optou por jogos mistos de futebol

(homens e mulheres jogando juntos). Desse modo, enfrentou a resistência dos

alunos, argumentando sobre as possibilidades desse tipo de prática ou impondo-

86 O referido jovem tinha uma fragilidade óssea que o impossibilitava de participar das práticas (o que fazia inclusive sua mãe passar o tempo do recreio na escola a vigiar se as suas condutas eram de risco). Contudo, o jovem conhecido por todos como de “ossos de vidro”, burlava em muitos momentos as proibições. Bastava um pequeno descuido do professor para que ele entrasse em algum jogo (o que fazia o professor, imediatamente após observar, retirá-lo do jogo). 87 A partir da 7ª série a queimada já dava inícios de que perdera espaço para o futebol entre as meninas.

Page 77: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

77

a. Em aulas de futebol misto, o professor interferia mais. Ele participava da

organização dos grupos (como fazia no masculino) e também propunha

mudanças de regras (para facilitar a participação feminina no jogo). Os jogos

mistos eram acompanhados um pouco mais de perto pelo professor, que

repreendia os garotos que não respeitavam as regras previamente definidas.

• Turmas da 7ª série do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio: Nas

aulas de Educação Física dessas turmas os professores de Educação Física

(Denis e Cláudia) realizavam práticas semelhantes, com exceção do que se

referia ao encontro com os alunos no início da aula. Denis buscava os seus

alunos na sala de aula e os conduzia até a quadra, o que parecia funcionar como

medida disciplinar, visto que ministrava aulas para os alunos mais novos desse

turno. Cláudia aguardava os alunos na quadra. Após informarem aos alunos o

grupo que iria iniciar a prática na quadra, os professores davam inicio à aula com

a contagem de tempo para o futebol do primeiro grupo. Geralmente o primeiro

um tempo de jogo era masculino.88 Enquanto muitos alunos ocupavam a parte

principal da quadra com o futebol (organizando os times, regras de revezamento,

etc.), os professores dirigiam-se à arquibancada, lugar de onde faziam a

chamada, e depois passavam a observar as práticas e a conversar com os

alunos. Ao final do tempo de jogo do primeiro grupo, os professores avisavam

sobre a troca dos grupos. Nova interferência nas práticas de futebol era feita

apenas para avisar o final da aula (minutos antes de soar a sirene).

• Todas as intervenções docentes eram feitas ao som do apito que ambos os

professores mantinham pendurados ao pescoço. É importante destacar também

que algumas intervenções geravam resistência dos alunos, principalmente as

que alteravam o sentido do jogo e sua lógica de produção/reprodução. Assim, os

jogos muitas vezes eram reconfigurados, ou seja, uma vez iniciados, voltava à

organização própria dos alunos.

Nas aulas de Educação Física da EECJP, o principal exercício proposto pelos

professores (no ponto de vista deles) era o da inclusão. Entendendo que “o esporte

de rendimento é excludente”, Denis descreveu a sua participação na produção

escolar do jogo de futebol:

88 Essa escolha se dava também, porque eram os rapazes os mais afoitos para iniciar as práticas futebolísticas nas aulas.

Page 78: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

78

[...] não sei se você viu como é que eu dividi os meninos, eles ficavam, se você deixar eles dividirem entre eles, eles pegam os melhores, põe o gordinho no gol, isso aí a gente já estuda, a gente já vê. Então eu coloco lá e já dou oportunidade pra todo mundo. Como o tempo é pequeno eu coloco um gol só, um gol dá pra todo mundo jogar mais, então, exclusão e questão de violência também, de um estar agredindo o outro, chutando o outro, mas o que eu mais presto atenção é na exclusão. Eu gosto de dividir o time do jeito que todo mundo pode participar, então eu coloco lá, sorteio: “— Ah, mas esse aqui, meu time ta ruim”... Não tem problema, mas ta jogando. (Grifos meus)

De algum modo, embora fossem ações isoladas das quais tenho pouco

registro, as intervenções docentes no futebol repercutiam na sua aprendizagem.

Quando os professores incluíam jovens com dificuldade de acesso (por exemplo:

mulheres), eles “forçavam” a participação, eles “engajavam” o praticante num

processo de aprendizagem e/ou de experimentação do jogo. É importante destacar,

entretanto, que esse exercício de inclusão acontecia apenas em termos. Uma razão

é que, a participação docente era mais efetiva na organização dos times de futebol

masculinos nas turmas de 5ª e 6ª séries, ou seja, os professores não trabalhavam

do mesmo modo em todas as séries. Além disso, a atenção docente era dirigida

apenas aos jovens que demonstravam desejo e/ou disposição de participar do

futebol. Assim, muitos alunos passavam várias aulas de Educação Física nas

arquibancadas, sem ser convidados a participar do jogo. Outro motivo é que havia

interferência na regulação dos tempos de jogo e não no jogo de futebol em si. Desse

modo, outras praticas de exclusão ocorriam no futebol — jogo que é repleto de

significados e práticas de rivalidade e competição.89

Quanto maior era o impacto do futebol nas aulas (já que, com o avançar da

escolarização, a queimada iam saindo de cena), menor era a ocorrência de

intervenções docentes. Nas turmas das séries finais do Ensino Fundamental e nas

do Ensino Médio, os professores deixavam a cargo dos alunos todas as decisões

sobre o jogo de futebol: organização dos times, regulação dos jogos, modos de

89 A exclusão no esporte escolar é um debate muito presente no âmbito da Educação Física: Bracht (1992, 2003); Kunz (1994); Vago (1999), dentre outros, abordam a questão. As reflexões de Bracht (2003), no entanto, sintetizam bem a forma de compreender o papel da Educação Física (no trato com esporte) produzida por esse grupo. Para Bracht (2003, p. 96/97) “a escola tem especificidades que precisam ser respeitadas”. Isso, “obriga” todo e qualquer tipo de saber que pretenda adentrá-la a “passar pelo crivo dessas especificidades, tornando-se um saber tipicamente escolar”. Portanto, “sem negar o potencial educativo do esporte, é preciso que o esporte passe por um trato pedagógico para que se torne um saber característico da escola e que se faça educativo na perspectiva de uma determinada concepção ou projeto de educação”. Para Bracht (2003, p. 99) “o esporte só faz sentido, se for pedagogizado, ou seja, submetido aos códigos da escola”.

Page 79: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

79

revezamento, opção por jogos mistos, etc. Isso não significava, entretanto, ausência

de regras na escola. Nessas séries os professores mantinham o domínio do

contexto de produção do futebol. Contudo, iam cada vez mais se ausentando da

participação no futebol em si. Como foi possível perceber numa aula de Educação

Física de 8ª série, por exemplo, os jovens iam se tornando realmente protagonistas

do processo de aprendizagem do futebol: Os  alunos  (8ª  série)  já  chegam  pegando  o material  espalhado  pela  quadra  e  imediatamente começam a chutar as bolas. Denis pede que eles organizem seus jogos (como já sabem fazer). Um  grupo  começa  a  brincar  de  corta  três  (meninos  e  meninas)  nas  laterais  da  quadra, enquanto  alguns meninos  organizam um  jogo  de  futebol. O  jogo  é  iniciado  e  segue  a  todo vapor: marcações, gritos, chamadas de bola, etc. Observo que os jovens apresentam habilidade para  o  jogo  e alguns  expressam maior domínio — uma “malandragem” na  forma de  jogar, uma  linguagem  impressa na  habilidade. O  professor  senta na  arquibancada  da  quadra  e  lá permanece  o maior  tempo  da  aula  (fazendo  a  chamada  dos  alunos,  “gozando”  os meninos dentro do campo de jogo de futebol e tentando manter as regras disciplinares. Assim, chama a atenção de um casal de namorado, dizendo: “ — Separa. Aqui não, eu já falei”. Mas, no jogo Denis  não interfere). Passado o tempo estabelecido para o  jogo masculino, Denis avisa aos alunos que é a vez das meninas. Eles saem do espaço e elas iniciam o jogo. Enquanto os meninos conversam e batem bola nas laterais da quadra, observo o contraste do jogo de futebol de meninos e meninas. Elas têm pouco domínio de bola. Parece  faltar a  tal “malandragem” para maioria das meninas  e apenas uma delas tem algum domínio do  jogo. Dois meninos  jogam ao gol e parecem mais à vontade (como maior intimidade) com a bola. Denis  se  aproxima  de mim  e  volta  a  conversar  sobre  suas  aulas,  reafirmando  alguns  dos princípios de trabalho: disciplina, limite e organização. Soa o sinal do recreio.  

Produzido pelos jovens nas aulas de Educação Física, o futebol tinha uma

relação intrigante e singular com a escola. Diferente de outros esportes (e outros

conteúdos escolares), na EECJP ele não se transformava em seqüência de

exercícios organizados e repetidos com a finalidade de ensino/aprendizagem — o

que é uma especificidade do processo de escolarização.90 A descrição de uma aula

de futebol e uma de peteca ministradas aos alunos da 5ª série configura melhor o

contraste.

Aula de peteca

90 Esse trabalho dialoga com um dos sentidos da escolarização proposto por Faria Filho (2005, p.2): “aquele que nos remete mais diretamente ao ato ou efeito de tornar escolar, ou seja, o processo de submetimento de pessoas, conhecimentos, sensibilidades e valores aos imperativos escolares”.

Page 80: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

80

O professor chega com os alunos da 5ª série à quadra para a aula de Educação Física. Quando informa à turma o tema da aula (“— Hoje é peteca”), alguns alunos, sobretudo os meninos, reclamam  e pedem que a aula  seja de  futebol. O professor  é  enfático na definição do  tema  e inicia a aula.  O  professor  convoca  os  alunos  para  o  centro  da  quadra  e  distribui  aproximadamente  10 petecas. Ao observar que alguns iniciam uma atividade na tabela do basquete com uma bola de vôlei que estava na quadra  (usada na aula anterior), o professor proíbe e recolhe o material. Repete que a aula é de peteca e que todos têm de participar. Desse modo, ao som do apito, ele reúne os alunos para dar algumas  instruções. Começa a sua  intervenção ensinando como se deve segurar (jamais pelas penas) e “tocar” a peteca (segurando‐a pela base com uma das mãos e tocando a sua base com a outra – num movimento sincronizado de segurar e soltar). Dadas essas orientações, o professor coordena a realização de alguns exercícios:  Exercício 01 ‐ Os alunos devem formar pequenos grupos (3 ou 4 participantes) para rebater a peteca;  Exercício 02  ‐ Em duplas os alunos devem  rebater a peteca sobre a rede de vôlei afixada na quadra (um de cada lado); Exercício 03 ‐ Ainda usando a rede de vôlei os alunos devem sacar a peteca da linha de fundo da quadra de vôlei para o parceiro posicionado no outro campo;  Cada  exercício  proposto  pelo  professor  tem  a  duração  (sem  ser  cronometrado)  de  3  a  05 minutos.  Os  exercícios  em  que  os  alunos  estão  mais  motivados  são  prolongados.  Após  a realização dessa seqüência o professor reinicia os exercícios na mesma ordem. Terminada mais uma seqüência, ele libera os alunos para jogar peteca como quiserem.  Os alunos se envolvem nas atividades propostas pelo professor fazendo os exercícios e criando outros  movimentos.  Alguns  são  repreendidos  pelo  professor  quando  fazem  movimentos “inadequados”  ao  uso  do  material:  o  professor  repreende  severamente  aqueles  que  se aventuram a chutar a peteca. 

Aula de futebol

Algum  tempo após a sirene  tocar  (sinalizando a mudança de horário), os alunos da 5ª  série chegam à quadra correndo (como sempre fazem), tomam posse das bolas espalhadas no espaço e passam a realizar chutes, gols e passes do futebol. Alguns já chegam avisando: “—A de fora é minha”  (como  se  os  times  já  estivessem  pré‐formados  em  sala). O  professor  chega,  fecha  o portão da quadra e chama a atenção dos meninos que chutam a bola de handebol: “—Essa bola é pra chutar heim?”. Depois ele avisa: “—Hoje é dia dos meninos primeiro”. As meninas vão para as arquibancadas (e proximidades), enquanto o professor convoca para o centro da quadra os  interessados  em  participar  do  futebol. Ele  organiza  rapidamente uma  fileira  de meninos (sobre a linha que demarca a divisão central da quadra) e seleciona 3 deles (inventa apelidos a cada  um  deles  e  os  colegas  acham  graça).  Pede  que  eles  organizem  3  times  de  futebol, escolhendo os colegas dispostos nas  fileiras. Chamando um a um, cada um dos três meninos escolhe  os  seus  parceiros  de  jogo  (enquanto  os  jovens  da  fileira  se  oferecem  para  alguns escolhedores e se escondem de outros). Muitas vezes os alunos escolhidos ajudam o escolhedor na  tarefa  de  compor  o  time  “soprando”  ao  seu  ouvido  um  ou  outro  nome.  Com  os  times formados, os 3 garotos disputam quais times começam  jogando e o time de  fora num  jogo de “dois ou um”. O time de fora sai do espaço de jogo e vai assistir ao jogo que se inicia, da linha lateral da quadra. O professor avisa que o revezamento de times no jogo será feito a cada dois gols  ou  cinco minutos. Com  o  início do  rodízio de  times,  alguns meninos  reclamam  com  o 

Page 81: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

81

professor que seus colegas haviam mudado os times iniciais e já estavam jogando. O professor apita, pára o jogo e convoca os tais meninos para sair imediatamente do jogo. As meninas, na arquibancada, parecem alheias ao que se passa na quadra.  Como os times estão demorando a marcar o gol, o professor apita e avisa que é hora da troca de times. No  par  ou  ímpar  eles  decidem  o  que  permanecerá  em  campo  e  nova  troca  de  times ocorre. Dois meninos  iniciam uma briga no  jogo e o professor os coloca para  fora desse  jogo. Depois de um tempo o professor permite que eles voltem a jogar. O professor vem me explicar sobre  a  demora  com  a  turma  em  sala  de  aula:  “—Eu  estava  avisando  sobre  a  quadrilha. Fazendo um trabalho de convencimento deles”. De repente, o professor apita o fim do tempo de jogo dos meninos e as meninas ocupam o espaço da quadra. As meninas organizam o jogo de futebol  com  a  participação  de  dois meninos  no  gol  (sem  a  intervenção  do  professor).  Elas iniciam o jogo de futebol. [...] O tempo da aula está no fim e o professor avisa que é hora de ir para a sala.   Confrontando a aula de peteca com a de futebol, foi possível evidenciar o

exercício de pedagogização imprenso na primeira. Enquanto a aula de peteca

possuía uma sistematização do ensino (com uma de seqüência de exercícios para

que os alunos pudessem aprender como segurá-la, como “lançá-la”, como recebê-la,

etc.), no futebol as intervenções do professor visavam à gestão do espaço/tempo e

da disciplina na aula.

O foco de maior resistência às intervenções pedagógicas nas aulas de

Educação Física era o futebol. Como Cláudia afirmou: [esses alunos] “não têm jeito:

não se pode ensinar/propor nada” (principalmente os alunos do segundo grau).

Conversando com Denis sobre a diferença na organização das práticas nas aulas de

Educação Física, ele argumentou sobre o que o levava a não propor exercícios para

ensinar futebol:

A própria cultura da escola ta errada, a gente discute isso muito na faculdade, o menino já acha que chega na escola sabendo futebol, por isso futebol se você for ensinar: “— Ah, já sei, eu já jogo”. Então nos outros esportes, nas outras atividades é mais fácil você estar organizando porque eles não têm muito interesse. É a cultura só do futebol, futebol, futebol. Os outros esportes, as atividades é mais fácil você estar organizando do que o futebol. Eu acho assim. [...] Eu sei que educação física na escola não pode ser só lazer, mas o menino fica preso dentro de casa, na hora da educação física eu vou levar o menino pro quadro e ensinar quem foi que inventou o futebol, eu tento criar uma outra forma de jeito que ele aprende ali e, ao mesmo tempo, ta tendo a hora prazerosa dele. [...] Se você pegar uma turma de menino agora, por exemplo, que eu tenho lá e ficar dentro de sala escutando regras, escutando história, levando vídeo, levando foto, não iria surtir tanto efeito. [...] Aula de educação física é hora que você quer sair da sua sala, chega um chato de um professor de educação física lá e vai passar vídeo e texto. Eu acho que você pode estar

Page 82: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

82

fazendo isso lá embaixo na prática. Eu sei que tem que ter conhecimento, eu sei que a Educação Física não pode ser só rolar bola91, eu tenho consciência, tanto é que eu procuro fazer a minha parte, mesmo sendo limitada, mas é possível com outras práticas. (Grifos meus)

A dificuldade de sistematização do ensino do futebol não era um problema

enfrentado apenas nessa escola. Denis afirmou: “a maioria dos colegas da gente

que trabalham também tem esse mesmo problema quanto ao futebol”. Vários

estudos que tematizam o esporte nas aulas de Educação Física também revelam

aspectos semelhantes sobre a produção do futebol em outras escolas.92 Desse

modo, mostram: que os alunos resistem ao ensino sistematizado do futebol; que o

futebol é produzido predominantemente na forma de jogo; que a produção do futebol

nas aulas é semelhante à sua produção em outros tempos escolares (recreio) e

sociais (fora da escola); que o futebol nas aulas de Educação Física parece

preservar certas formas de relações sociais de aprendizagem (não se “curva” à

lógica da forma escolar de relações sociais de aprendizagem). Considerando-se a

forma escolar “como um modo de socialização” amplamente codificado — e, que os

“saberes ensinados aos métodos de ensino, passando pelos aspectos mais

insignificantes da organização do espaço e do tempo escolar, nada é deixado ao

acaso”, ou seja, “tudo é objeto de escrita, decomposição, fixação dos movimentos e

das seqüências”, (VINCENT, LAHIRE e THIN, 2001, 29) — é possível perceber a

tensão (“queda de braço”) que o futebol estabelece com a escola: contexto em que

se espera que as práticas culturais sejam transformadas em objeto de ensino.

Talvez essa fosse uma das poucas práticas escolares em que o professor deixava

de ser o centro do conhecimento (o que tornava os processos de aprendizagem, por

um lado, mais difusos, por outro, menos explícitos).

O futebol jogado na EECJP preservava, pois, os principais traços da sua

produção fora desse contexto: ser jogo. Contudo, se os alunos tensionavam a sua

produção ao resistir à transformação em exercício escolar, cuja finalidade é

aprender, não se pode dizer que os professores faziam o contrário. Como pude

perceber no relato de Denis e em algumas conversar informais com a professora

91 A estruturação das aulas de Educação Física (baseadas em jogos de futebol em que o professor não “ensina” de forma sistemática e não interfere nas práticas futebolísticas) é mais conhecida pelos professores dessa disciplina como “rolar a bola”. 92 ALTMANN, 1998; FARIA, 2001; SILVA, 2004, e outros.

Page 83: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

83

Cláudia, também no entendimento desses professores o futebol deve preservar

essas características para promover o lazer na escola.

Nas aulas de Educação Física da EECJP, o futebol é produzido de muitas

maneiras. Havia jogos competitivos, repletos de rivalidade, que se misturavam a

jogos em que a ludicidade se sobrepunha. Havia significados diferentes, isto é, o

futebol na aula estava associado ao lazer, ao descanso, à disputa, etc.93 De fato, o

jogo de futebol era a prática central das aulas de Educação Física. Não se pode

dizer, contudo, que outras práticas que se constituíam no seu entorno não eram

importantes. Enquanto alguns praticavam o futebol no espaço principal da quadra,

outros jovens, que aguardavam a hora de jogar ou que optavam por não participar

do futebol, realizavam diferentes práticas na arquibancada e nas laterais da quadra.

“Bate bola” de futebol, jogos como xadrez e baralho, toque do vôlei (jogo de corta-

três), peteca, exercícios de outras disciplinas escolares, dança (quando o professor

levava o som para a quadra) e correria eram freqüentes nesse espaço.

3.3 - O bairro Universitário como uma comunidade de prática do futebol

Conforme foi visto, no bairro Universitário o futebol era prática cotidiana.

Envolvendo adultos, jovens e crianças, na escola, no Racing, na Praça de Esportes,

nas ruas, etc., o futebol era parte da sociabilidade. A produção cotidiana do futebol

desdobrava-se em múltiplas oportunidades de participação na prática social, o que

favoreceu o estudo a partir do conceito de comunidade de prática. Um mapeamento

dos tempos e espaços de produção do futebol no bairro, em 2005, permite observar

o impacto dessa prática social no cotidiano dos jovens (principalmente do sexo

masculino):

93 Sobre apropriações do esporte na escola ver Faria. 2001; Stigger, 2001, 2005.

Page 84: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

84

Tempo/espaço feminino de produção do futebol no Universitário

Contextos de produção do futebol

Tempo de cada atividade

(em minutos)

Número de

vezes p/semana

Minutos

p/semana

Total de horas

p/semana

Aulas de Educação Física

As mulheres jogavam metade da aula de Educação Física;

25 min na parte oficial da quadra

2 vezes 50 min 0,8 h

Recreio

20 min 1 vez 20 min 0,3 h

Tempo total de práticas de futebol

por semana

70 min p/semana

1h10 p/semana

Tempo/espaço masculino (regular) de produção do futebol no Universitário

Contextos de produção do futebol

Tempo de cada atividade

(em minutos)

Número de

vezes p/semana

Minutos

p/semana

Total de horas

p/semana

Aulas de Educação Física

50 min A maioria dos jovens jogava

futebol a aula inteira 25 min na parte oficial da

quadra; 25 min nas laterais da quadra

2 vezes 100 min 1h40

Recreio

20 min 4 vezes 80 min 1h20

Treino Projeto social

120 min 2 vezes 240 min 4h

Jogos amistosos (infantil ou juvenil) no campo de futebol do

Racing (sábados)

Preparação = 30 min Jogo = 02 tempos de 45 min.

Intervalo de 15 min.

1 vez 135 min 2h15

Lazeres no campo de futebol (ensaios,

jogos, peladas, etc.) nos fins de tarde

180 minutos (aproximadamente)

3 vezes 540 min 9h

Tempo total de

práticas de futebol

1095 min

18h15

A prática do futebol no bairro era intensa. Sem contemplar os treinos e os

jogos do campeonato juvenil de futebol amador, as práticas futebolísticas juvenis

que ocorriam no âmbito da casa (jovens jogavam futebol com os pais, primos e

irmãos no terreiro de casa), os outros modos de participação (como assistir aos

jogos profissionais, participar do futebol como torcedor dos times amadores e

profissionais, assistir aos programas esportivos, conversar sobre futebol, etc.) e as

Page 85: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

85

práticas de futebol dos adultos (das quais os jovens participavam de forma indireta

na freqüentação a campos de futebol nos fins de semana), o quadra acima deu

visibilidade a uma ampla gama de possibilidades de participação/aprendizagem dos

jovens no futebol do bairro (contextos nos quais as mulheres tinham acesso restrito).

É claro que a existência desse rol de possibilidades de práticas futebolísticas não

significa homogeneidade de envolvimento e de investimento na participação, nem

que todos tinham oportunidades iguais. Nesses contextos havia disputas e relações

de poder em torno da participação no futebol — o que segue descrito no próximo

capítulo.

Conforme foi visto, no bairro Universitário havia contextos de produção do

futebol “organizados” para a aprendizagem, contudo relações assimétricas

mestre/aprendiz estavam longe de ser hegemônicas. No bairro, “o domínio do

conhecimento não residia no mestre, mas na organização da comunidade de

prática” da qual o mestre era parte. Em outras palavras: havia práticas de ensino do

futebol, mas a estrutura que orientava a aprendizagem era a participação na prática

social, ou seja, “os recursos de estruturação para a aprendizagem” vinham de uma

“variedade de fontes, não apenas da atividade pedagógica” (LAVE e WENGER,

1991, p. 94). Sendo assim, o envolvimento direto, contínuo e, por vezes, compulsivo

dos jovens no futebol é que permitia que eles fossem incorporando a habilidade. Era

a experiência do e no futebol que permitia a aprendizagem por meio de uma

“participação centrípeta na prática”, como sugerem Lave e Wenger (1991).

Como prática popular que envolve a construção de identidades no contexto

brasileiro, a difusão do futebol sugere que seus processos de aprendizagem estão

associados à prática social cotidiana. Eles transcendem a noção de práticas de

ensino e de relações pedagógicas como principal via de aprendizagem, mesmo

quando ocorrem em contextos estruturados para o ensino (escolas, etc.). Isso é o

que mostra Guedes (1998), ao tratar da construção do corpo masculino nas

“escolinhas” de futebol. Segundo Guedes (1998, 124): [...] torna-se visível, na interação entre adultos e garotos na escolinha, uma série de saberes, técnicas corporais, regras de etiqueta e preceitos éticos pelos quais os agentes pedagógicos se norteiam, explicitando-os, muitas vezes, no discurso. Mas, o processo de transmissão que está em jogo é mais amplo e implica na exposição dos socializados a significados naturalizados e objetivados em comportamentos, relações sociais e obras culturais. Inclui, portanto, uma série de atos não planejados e não

Page 86: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

86

conscientes, que se transmitem e são internalizados através da interação cotidiana, do estar lá e partilhar o mesmo espaço cultural. Investigar este processo representa, por certo, tentar interpretar e situar-se tanto em relação ao dito quanto ao que não se precisa dizer, em relação ao que é feito e ensinado como lição quanto ao que é feito, simplesmente, porque é assim. Tarefa, não há dúvida, das mais difíceis, principalmente quando o pesquisador partilha com os investigados uma série de significados, também naturalizados para ele.

Mais do que o tempo de envolvimento dos jovens com a prática futebolística,

o que estava em questão eram os seus modos de estruturação. Portanto, a prática

de ensino reduzida, a aprendizagem na prática, os diferentes níveis de participação

no futebol e os aspectos identitários envolvidos, permitiram tratar o bairro como uma

comunidade de prática do futebol.

Conforme dito, uma comunidade de prática “é um conjunto de relações entre

pessoas, atividades e mundo” e uma condição “intrínseca para a existência do

conhecimento” (LAVE e WENGER 1991, p. 98). Isto quer dizer que “a participação

na prática cultural, na qual cada conhecimento existe é um princípio epistemológico

da aprendizagem”, ou seja, “a estrutura social dessa prática, suas relações de poder

e suas condições de legitimidade definem possibilidades para aprendizagem”.

Portanto, o termo comunidade de prática implica participação em um sistema de

atividades no qual os participantes compartilham entendimentos a respeito do que

estão fazendo e do que isso significa em suas vidas e para a sua comunidade

(LAVE e WENGER, 1991, p. 98). Na comunidade de prática (diferente dos modos de

estruturação da escola) os envolvido têm acesso a um esboço geral da

atividade/prática. Participando da prática os aprendizes têm acesso ao que Lave e

Wenger (1991, p. 110) denominam de “campo da prática madura”, em que podem

compreender sobre a prática social e sobre as carreiras dos praticantes.

As características que delineiam o futebol no bairro Universitário permitiram,

pois, tratá-lo com base no conceito de comunidade de prática. Assim, o futebol foi

tomado como um tipo de aprendizagem que se dá pelo envolvimento crescente na

prática social. O bairro não é, entretanto, uma comunidade de prática na realidade,

simplesmente porque uma comunidade de prática não existe como um lugar. Trata-

se de um conceito que, sustentando a noção de participação periférica legitimada e

de conhecimento localizado no mundo vivido, permitiu dar visibilidade às diferentes

Page 87: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

87

dimensões da prática do futebol. Portanto, o uso do conceito de comunidade de

prática explicita os modos de produção do futebol como modos de aprendizagem.

Page 88: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

88

IV A PARTICIPAÇÃO NO FUTEBOL: DA APRENDIZAGEM SITUADA À FORMA ESCOLAR Tal como explicitado na construção do objeto, para descrever os modos de

aprendizagem do futebol nesse capítulo, utilizei os conceitos de participação

periférica legitimada (a aprendizagem situada de LAVE e WENGER,1991) e de

forma escolar (VICENT, LAHIRE e THIN, 2001). Apresentados em itens separados

com a intenção de desvelar os diferentes aspectos da prática (os modos de

organização da aprendizagem, as maneiras de abordar o papel e a relação entre

experientes e aprendizes, as relações de poder, etc.), forma escolar e aprendizagem

situada, no entanto, não se expressam de forma descontinua no cotidiano de futebol

no universo pesquisado.

Como é possível observar no quadro anterior — quando são explicitados os

contextos da prática e o investimento cotidiano dos jovens na produção do futebol —

a aprendizagem situada é hegemônica no bairro e a descrição que segue revela a

sua forte demarcação. Isso não significa a inexistência de práticas pedagógicas.

Marcadamente híbridos, os contextos futebolísticos caracterizam-se, entretanto pela

predominância dos modos situados de aprendizagem.

O capítulo está estruturado da seguinte maneira: Primeiro apresento a

exclusão explícita das mulheres. Diferente dos homens (para os quais os processos

de exclusão se davam de maneira velada em emaranhado de situações difíceis de

serem discernidas) o universo feminino era tão completamente separado no

contexto empírico pesquisado que foi necessário colocar foco nas questões de

gênero presentes no futebol. Assim, é apenas após anunciar essa demarcação

fundamental da prática (que caracteriza os homens como praticantes legítimos do

jogo) que passo a narrar sobre os seus modos de aprendizagem.

Inicio a descrição dos modos situados de aprendizagem do futebol dando

relevo aos diferentes aspectos das práticas cotidianas: os diferentes modos de

participação na prática; as relações de poder/aprendizagem entre experientes e

aprendizes; os exercícios/ensaios futebolísticos como contextos de aprendizagem; a

linguagem como elemento constitutivo da prática; a constituição da identidade dentro

desse processo, etc.

Em um tópico específico sobre a aprendizagem do e no futebol de várzea,

descrevo a constituição da habilidade futebolística nesse contexto. Buscando traçar

os modos de organização do futebol de várzea (as suas formas de seleção, seus

treinamentos, os modos participação no banco de reservas e em diferentes futebóis)

Page 89: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

89

esse item desvela as aprendizagens que envolvem o engajamento nesse contexto

futebolístico um pouco mais “especializado”.

Tratado como um jogo de “contato entre os seres humanos”, ou seja, cuja

aprendizagem requer o domínio de um campo total de relações constituídas, a

aprendizagem do futebol é descrita como um processo de incorporação da e na

prática. Nesse contexto o tema da identidade também ganha força, ou seja,

descrevo a participação dos jovens no futebol como parte de um exercício da

masculinidade.

Finalizo o capítulo com um tópico onde apresento a penetração da forma

escolar nas práticas futebolística. Jamais hegemônica no bairro pesquisado, a forma

escolar que segue descrita está presente nos diferentes contextos de produção do

futebol (ora de modo velado, ora de modo explícito), sem romper os modos situados

de aprendizagem. No futebol “enquadrado” na forma escolar, mais do que aprender

o jogo o que está em questão é a educação dos jovens a partir do esporte.

Page 90: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

90

4.1 - “Futebol é coisa de homem”: a legitimidade da participação Diariamente no bairro Universitário, o futebol era aprendido no contexto da

prática. Segundo Lave e Wenger (1991, p.29), a aprendizagem se dá a partir da

participação periférica legitimada (LPP) na prática social, ou seja, “os aprendizes

participam inevitavelmente em comunidade de prática, em que o domínio do

conhecimento e das habilidades requer um mover-se para a participação plena” nas

práticas socioculturais. É importante destacar, porém, que para o conceito de LPP, a

noção de legitimidade é central. Considerada uma abertura, um modo de ganhar

acesso a fontes de entendimento, a legitimidade é uma condição sine que non para

a participação e, conseqüentemente, para o conhecimento. Enfim, a estrutura social

da prática, “suas relações de poder e suas condições para a legitimidade definem

possibilidades para a aprendizagem”.

Tomando como referencia as reflexões de Lave e Wenger (1991), busquei

compreender o universo de aprendizagem do futebol como uma prática cultural

constituída por praticantes que possuem legitimidade de participação. Procurando

conhecer os contextos de produção do futebol no bairro, pude percebê-los,

entretanto, como contextos generificados. Isso porque as práticas futebolísticas que

ocorriam cotidianamente no Universitário eram marcadas por amplo engajamento

dos jovens do sexo masculino e pela ausência (ou exclusão) das mulheres em

muitos contextos. Mas, essa não era uma singularidade do futebol produzido no

bairro pesquisado. Vários estudos na área da Educação Física (e em outros àreas

do conhecimento) possibilitam compreender a generificação no esporte como parte

de processos culturais mais amplos na sociedade.94

No esporte, a generificação — expressa na distinção de modalidades

femininas e masculinas e nas relações que envolvem a prática — é constituinte.

Segundo Sousa e Altmann (1999) com o advento do esporte moderno as mulheres

mantiveram-se como perdedoras, uma vez que eram (e ainda são) compreendidas

como frágeis em relação ao homem. Segundo as autoras, aos homens eram

permitidos/incentivados a prática de esportes que exigiam maior vigor e esforço

físico, o confronto corpo a corpo e movimentos violentos (futebol, por exemplo). Para

as mulheres eram indicadas práticas que preservassem a suavidade de movimentos

e a distância de outros corpos, como a ginástica rítmica, o voleibol e a dança.

94 Altmann, (1998); Goellner (2000); Pacheco & Cunha Junior (1997); Sousa (1994;1997).

Page 91: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

91

De fato. Do tempo em que as mulheres eram espectadoras da maioria dos

esportes coletivos, proibidas de realizar algumas práticas (como o futebol), até os

dias atuais, houve grande mudança. Hoje as mulheres são protagonistas de muitas

modalidades esportivas. Contudo ainda não se pode afirmar a igualdade de

acesso/inserção de homens e mulheres em algumas modalidades esportivas (que

permanecem generificadas).

Como afirma Dornelles e Neto (2003, p. 90), “as transformações sociais e

culturais ocorridas nas últimas décadas do século XX foram elemento essencial,

porém ainda insuficiente, para a promoção da participação esportiva feminina”.

Assim, algumas modalidades, como é o caso do futebol, ainda apresentam, no

“início do século XXI, uma gama de discriminações e preconceitos quanto à ação

das mulheres, seja em clubes, espaços populares ou na escola”. Não há como

negar que, “como outras atividades, a prática do futebol, neste contexto histórico

cultural, está registrada como prática masculina”. Isso faz com que em muitas

situações a participação de mulheres seja considerada um desvio (GUEDES, 2006,

p.50).

Afirma Goellner (2000, p. 81):

Criado, modificado, praticado, comentado e dirigido por homens, o futebol parece pertencer ao gênero masculino, como parece também ser seu o domínio de julgamento de quem pode/deve praticá-lo ou não. É quase como se à mulher coubesse a necessidade de autorização masculina para tal. [...] Os argumentos sobre os quais repousam os cuidados com a prática do futebol pelas mulheres recaem, na maioria das vezes, na justificativa que esse é um esporte que, além de ser considerado violento, requer um nível apurado de preparação física e técnica. Ou seja, é um jogo para machos.

A pesquisa de campo destacou a ampla participação masculina no universo

do futebol. Conversando com o professor de Educação Física sobre os

temas/conteúdos de ensino das aulas na EECJP, por exemplo, ele falou sobre o

acentuado interesse masculino pelo futebol. Mas, foi nas redações dos alunos (122

homens e 110 mulheres), feitas no primeiro dia de aula, que encontrei pistas sobre

esse interesse.

Orientando os alunos das turmas da 5ª à 8ª séries do Ensino Fundamental,

para escreverem sobre as expectativas para as aulas de Educação Física, o

professor propôs a redação de um texto que tivesse estes itens: A) o que eu espero

Page 92: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

92

da Educação Física; B) o que eu gosto de fazer: C) o que eu não gosto de fazer: D)

deixe uma mensagem ou sugestão. As respostas que os alunos deram às questões

B e C permitem reflexões importantes para a compreender o futebol:

• Resposta à questão B: 97 alunos (79,51%) e 41 alunas (37,27%)

responderam gostar de jogar futebol nas aulas de Educação Física.95

• Resposta à questão C: 08 alunos (6,56%) e 34 alunas (30,91%) responderam

não gostar de jogar futebol nas aulas de Educação Física.

• Respostas às questões B e C: 17 alunos (13,93%) e 35 alunas (31,82%) não

mencionaram o futebol.

Esses dados mostram que o futebol era prática presente nas expectativas,

principalmente dos jovens do sexo masculino. Somado o número de mulheres que

não gostavam do futebol com o número das que não o mencionaram como

possibilidade de prática, chega-se a um número importante: o futebol não estava nas

expectativas de prática das aulas de Educação Física para 69 delas (62,73%). Para

os homens, o resultado foi de 25 (20,49%). Chamou a atenção também, na leitura

desses dados, outro fator. Enquanto os jovens do sexo masculino mantinham

regularidade no interesse por esse esporte nas séries do Ensino Fundamental,

apenas as mulheres mais avançadas na escolarização demonstravam interesse no

jogo. Em outras palavras: enquanto a queimada (jogo popular no Brasil) era foco de

muito interesse para as alunas da 5ª e da 6ª séries (36 de um total de 47 alunas, ou

seja, 76,59%, citaram a queimada em resposta a questão B), para as alunas das

turmas da 7ª e da 8ª séries houve um declínio do interesse no jogo (29 de um total

de 63 alunas, o que equivale a 46,03%). O maior interesse das alunas da 5ª e da 6ª

séries pela queimada também foi observado no cotidiano da escola. Na Educação

Física dessas turmas o jogo se repetia, aula após aula. Nas turmas da 7ª e da 8ª

séries ele se tornava esporádico. Contudo é preciso considerar que não havia

homogeneidade na produção da queimada e do futebol entre as mulheres. Assim,

era possível também observar uma ou outra turma da 6ª série envolvida com o

futebol e alunas que, na 7ª série, ainda preferiam jogar queimada.

Os dados citados revelam dois importantes aspectos. Primeiro: um crescente

interesse feminino pelo futebol no decorrer da escolarização. Segundo: o futebol

como parte do processo de “socialização primária” dos meninos (GUEDES, 1998). 95 Com menor freqüência, o vôlei e o basquete e a peteca foram citados, principalmente pelas mulheres.

Page 93: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

93

Estes, ao contrário das meninas (que iniciavam a prática do futebol na escola), já

chegavam à escola com mais interesse e em processo de aprendizagem do jogo.

Sobre essa questão Regina (6ª série) relatou o seguinte: As meninas da sala, quase nenhuma gosta de jogar (futebol), aí quando o horário é da gente são só quatro meninas pra jogar futebol. [...] São mais meninos pra jogar futebol. Não sei, eles gostam mesmo. Meninas... pode olhar que tem poucas, pouquíssimas meninas que gostam de jogar futebol, não são muitas. Agora a maioria dos meninos gosta. [...] Ah, queimada, queimada é o que elas gostam mais.

A pequena participação das mulheres no futebol do recreio e no festival de

jogos da escola e a separação de meninos e meninas para a realização das práticas

futebolísticas nas aulas de Educação Física eram também reveladoras da

generificação.96 Jogando futebol “somente” nas aulas de Educação Física, a maioria

das jovens do bairro estava distante de conhecer o seu universo de significação,

emoção e identificação. Na leitura das redações dos alunos encontrei expressão

para questões em jogo nas práticas futebolísticas: “Para os homens sempre o normal, ou seja, o futebol” (Bruno, 8ª série). “[...] Eu não gosto de fazer Educação Física e nem jogar futebol é coisa de meninos” (Janaina, 8ª série). “[...] eu pelo menos, gosto de jogar futebol, jogar baralho... e o que eu não gosto de fazer é jogar queimada [...] eu quero que a gente faça muita atividade de macho” (Clayton, 6ª série). “[...] peteca é para meninas” (aluno da 5ª série). “[...] eu quero que o professor dê mais futebol que os outros esportes, porque é melhor futebol que os outros esportes” (Hugo, 5ª série).

Raramente as alunas da EECJP participavam dos jogos de futebol com os

alunos. Mas, mesmo quando a participação era possível, isso não significava que

era fácil elas passarem a fazer parte. Ao contrário, qualquer motivo era suficiente

96 Festival de jogos foi o nome que o professor de Educação Física deu às atividades desenvolvidas na Semana do Estudante: um rodízio de jogos de futebol entre turmas que ocorreu (nos dois últimos horários de aula) na quinta e na sexta-feira dessa semana.

Page 94: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

94

para a exclusão das mulheres do futebol.97 A descrição que segue (de uma turma da

8ª série) permite compreender o futebol no universo feminino quase como “dádiva”.

Era como se às alunas já fosse o bastante penetrar no espaço sagrado do futebol (a

quadra da escola), durante o recreio, uma vez por semana. Os meninos pegam as bolas disponíveis no espaço e começam a chutar (2 meninas também). Depois de um  tempo  iniciam  a  organização dos  times  e  convidam  as meninas  a participar, visto que o número de  jogadores está  insuficiente. Quatro meninas  logo aceitam o convite e seguem para o centro da quadra onde ocorre a divisão dos times. Já estão para  iniciar o  jogo quando  o  professor  chega  à  quadra  com  alguns  alunos  da  turma  de  Cláudia  (a  outra professora) que estavam na pracinha e já haviam jogado no horário anterior (essa turma tinha aulas de Educação Física geminadas). Os meninos dizem  que  agora não precisam mais das meninas, pois eles jogariam com os meninos do 1º ano. As meninas resistem um pouco a sair da quadra. Dizem para o professor que é a vez delas de começar a aula jogando. O professor diz a  elas  então:  “—Hoje  vocês  jogaram  no  recreio”. Algumas  das meninas  afirmam  não  ter participado no referido jogo de futebol, mas saem do espaço da quadra. 

Segundo Damo (2005, p.139), os meninos jogam futebol “para se fazerem

meninos”, ou seja, “o futebol no Brasil é marcado por um arbitrário cultural que o

define como um espaço privilegiado da homossociabilidade masculina; de certo

modelo de masculinidade”. Desse modo, as mulheres, de uma forma geral, “tendem

a excluírem-se do futebol na medida em que ele é culturalmente marcado como um

jogo para meninos. Quando isso não acontece, elas são então excluídas”. Os

argumentos mais freqüentes são de que “elas não sabem jogar” e por isso

“atrapalham o jogo” (DAMO, 2005, p.157):

Ah, eu acho que tem algumas meninas que têm uma certa facilidade pra jogar futebol, mas acho que a maioria das meninas não gosta de jogar futebol por causa que expõe muito a beleza delas, usar calção, esse negócios, isso é mais coisa masculina do que pra feminino, por isso que elas não seguem muito jogando futebol. Algumas, mas algumas preferem poupar e fazer outras coisas malhar, dançar, outras coisas em vez do futebol. (Schiva) (Grifos meus) Eu acho que a mulher, não tem inteligência, ela não tem a coordenação pra jogar futebol que o homem tem. [...] Mesmo em seleção brasileira, por mais craque que ela seja de domínio, igual aquelas meninas que jogam na seleção, a Pretinha, aquelas

97 A observação do cotidiano escolar (por exemplo, a “conquista” feminina do direito ao jogo em um recreio por semana), ainda que não signifique democratização do espaço escolar, mostra que alunos e alunas produzem tensão contra a dinâmica excludente do futebol com práticas que desorganizam, muitas vezes, valores e normas culturais (FARIA, 2001). Como afirma Altmann (1998) “as meninas não são vítimas de uma exclusão masculina. Vitimá-las significaria coisificá-las, aprisioná-las pelo poder, desconsiderando suas possibilidades de resistência e também de exercício de dominação”.

Page 95: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

95

meninas lá, são, dá chapéu, mas na hora de jogar coletivo, as mulheres ainda não tem essa coordenação que o homem tem coletiva. (Denis) (Grifos meus) Isso é complicado, nós tivemos um time de meninas lá, só que elas foram muito mais desanimadas que os meninos, [...] rapidinho também desfizeram. Ficou uma ou outra querendo jogar no meio dos meninos, só que não dava muito certo. Os meninos assim, por mais que, igual tinha uma menina lá que tinha bastante habilidade, mas comparando com homem, homem tem mais corpo, tem mais força que ela então não dava pra gente colocá-los juntos. (Mário) (Grifos meus)

A naturalização do futebol como prática masculina ganhou destaque também

no decorrer do festival de jogos na Semana do Estudante. O jogo entre professores

e alunos (marcado como um clássico Cruzeiro e Atlético) tinha apenas homens.

Como, na escola, não havia o número de professores do sexo masculino suficiente

para formar um time, participaram do time dos professores/Cruzeiro três pedreiros

que prestavam serviços na escola naquele momento. Outro professor assumiu a

posição de juiz do jogo. Nenhum estranhamento para isso! Nenhuma reivindicação

de participação feminina. Parece que apenas eu me “incomodei” com tal fato.

A entrada de uma aluna no time dos alunos/Atlético, contudo, me fez

perceber o que estava em jogo na exclusão das mulheres. Essa jovem, que

participava do grêmio estudantil, como os demais jogadores do time dos alunos, e

que também possuía desenvoltura nos jogos de futebol das aulas de Educação

Física, entrou em campo ao final do segundo tempo de jogo. Mas, quando o jogo já

estava praticamente definido (6 X 0 para os alunos/Atlético). Posicionada perto do

gol, a jovem participava do jogo, principalmente recebendo passes dos colegas para

finalizar com chutes a gol. Em dado momento, num chute certeiro, a jovem “vazou” o

goleiro do time dos professores/Cruzeiro e a torcida dos alunos/Atlético foi ao delírio.

Tantos gritos e “gozações” intimidaram os professores. Nesse jogo a derrota dos

professores foi dupla: perdedores do jogo e amplamente caçoados pelo público (em

sua maioria de alunos), o gol da aluna foi recebido como uma humilhação. Como

afirma Damo (2005, p. 166): as alegações de que “as meninas não sabem jogar” e de elas “avacalham o jogo” devem ser compreendidas a partir de uma noção mais alargada de jogo, no sentido de que, para além do futebol ou de outra modalidade qualquer, existe um jogo de status ou, se preferirem, um operador simbólico em ação. O que está em jogo no futebol dos meninos é, basicamente, sua honra pessoal — a

Page 96: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

96

coragem e a virilidade, sobretudo — ainda que elas sejam seguidamente implícitas.

Poucas mulheres se aventuravam a romper as fronteiras de gênero. Por outro

lado, uma vez jogando com mulheres, os homens eram obrigados a assumir os

riscos de ser desqualificados. A participação feminina no futebol constituía uma

ameaça: de mudança do sentido do jogo, destituindo-o da conotação masculina; de

desqualificação do desempenho masculino, caso uma mulher apresentasse

habilidade superior à do homem no jogo. Se um menino driblasse uma menina, não

teria feito “nada além do óbvio”, mas, se viesse a ser driblado, seria “caçoado por

seus pares” (DAMO, 2005, p. 159). Sobre o risco de jogar com mulheres e,

principalmente, de “levar gol de menina” Schiva (17 anos) afirma:

É pesado (risos), é pesado, é triste, é sofrido. [...] Porque as meninas já não são muito boas de bola, ainda você toma um gol pra elas aí é triste, aí o coração dói, não tem jeito. [...] É pesado, é triste. [...] Humilhação pesada. É melhor tomar um gol pra um menino novinho do que pra uma menina velha, porque não tem jeito não, mulher. (Grifos meus)

Na observação dos raros momentos de participação simultânea de mulheres

e homens nas práticas de futebol nas aulas de Educação Física, fui compreendendo

as tensões e os riscos a que os jovens ficavam expostos com a participação

feminina. O trecho do diário de campo que segue é apenas uma das muitas

situações ocorridas na EECJP: [...]  A  professora  encerra  o  jogo  dos  jovens  informando  aos  jogadores  que  é  a  vez  das “meninas”. Assim, pede que elas organizem os times e que eles desocupem o espaço. Enquanto o grupo se organiza, a professora permite que os jovens saiam da quadra para beber água (já que a quadra permanece trancada durante toda a aula e a professora é quem controla entradas e  saídas). Os  times  femininos  são  formados  a  partir  de  convocações  do  grupo.  As  jovens chamam  insistentemente  as  colegas  que  estão  sentadas  na  arquibancada  para  participar  do jogo. Há  algumas  adesões, mas muitas  jovens  permanecem  na  arquibancada. Demora  um pouco  até  que  os  times  sejam  formados  (4  meninas  na  linha  e  1  menino  no  gol).  Nesse momento, soa a sirene de encerramento do 2º horário, mas a turma ainda tem outro horário de Educação Física. Iniciado  o  jogo,  imediatamente  percebo  a  diferença  de  ritmo:  o  jogo  das meninas  é menos corrido do que o anterior, dos meninos, e tem menos choques e rivalidade entre as jogadoras. Poucas jovens têm domínio da bola nos pés e, desse modo, são inevitáveis as saídas de bola pela linha  lateral, paralisando  o  jogo. O grupo  tem dificuldades de posse de bola. As “meninas” correm muito, mas não  conseguem deter  a  bola — parecem  ter medo de  cair  ao  tocá‐la  em movimento. O jogo permanece por um tempo, sem que as meninas consigam acertar passes e fazer chutes a gol. 

Page 97: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

97

Os jovens começam a voltar para a quadra e alguns sentam bem próximo ao lugar que escolhi para fazer a observação. Alguns comentam sobre os problemas e lances importantes do jogo de futebol que acabaram de jogar. Parece até que o jogo continua a acontecer fora de campo. Uns cobram os erros, outros indicam os problemas, outros discutem questões de regras em alguns lances do jogo. Logo que a maioria deles retorna, todos vão para o outro lado da arquibancada. Não consigo escutar o que conversam, apenas quando interferem no jogo das “meninas” (o que acontece o tempo todo). A professora observa o jogo rindo de alguns lances e cobra, principalmente dos jovens, que se comportem  na  quadra.  Na maioria  das  vezes,  quando  eles  “excedem”  no  barulho  ou  nos conflitos  entre  si. As  jovens  seguem  jogando  sem muita  rivalidade  e  entre muitos  risos. Os goleiros  (meninos  que  se  prontificaram  a  participar  do  jogo  feminino  nessa  posição)  fazem solicitações de posicionamento (“— Vai para o ataque”, “— Corre”) e também sobre técnicas de domínio de bola. O goleiro diz, enquanto mostra como se faz, batendo a mão no peito: “— Mata no  peito”. Outras  vezes  eles  pedem  que  as  “meninas”  chutem  firme na  bola  e  fazem também indicações sobre passes, apontando para quem a jogadora deve passar a bola.  Na arquibancada, as jovens que optaram por não participar ficam alheias ao jogo de futebol e muito  raramente  observam  o  que  acontece  na  quadra.  Estão  fazendo  tarefas  escolares  e conversando. Diferentes delas, eles não perdem um lance. Assim, comentam algumas jogadas em  alto  tom  e  interferem  em  outras  (geralmente  a  partir  de  gozações,  mas  também  de indicações sobre como fazer: “— Chuta rasteiro”;  “— Cabeceia”...).  O jogo já não se dá apenas entre os times dentro da quadra. Acontece que os jovens que estão na arquibancada participam dele comemorando os gols com gritos e risos. Enquanto os times que  estão  jogando  buscam  o  êxito,  na  forma  de  gol  no  time  adversário,  os  jovens  da arquibancada  iniciam  um  jogo  “intermediário”. Não  importando  qual  time  está  ganhando, eles torcem para que as “meninas” consigam fazer gols em seus colegas (os goleiros). Quando  o  gol  acontece,  a  farra  é  geral. Muitos  gritos,  comemorações  e,  principalmente, chacotas  aos goleiro “vazado”. Os goleiros  respondem  as  críticas  e,  às vezes, denunciam  os erros dos colegas em outros jogos (jogos anteriores).  A  interferência dos  jovens no  jogo  é visível:  eles  incentivam as  jogadoras a chutar cada vez mais para o gol e a driblar os goleiros. Elas passam a tentar mais o gol e, com isso, aumenta o número  de  gols  no  jogo.  Os  jovens  também  reforçam  os  acertos  das  jogadas  (“—  Isso Fabíola”). As  jogadoras  parecem mais  empenhadas  em  atender  às  indicações. Os  goleiros parecem se dividir entre a defesa do gol e as chacotas dos colegas  (parecem menos concentrados). O jogo segue, cada vez mais, envolvendo jogadores e “torcedores”.  A professora encerra a aula pouco antes do sinal de recreio e recolhe a bola de  futebol  (após alguns  chutes  a  gol  dos  jovens  que  estavam  na  arquibancada). Os  alunos  saem  da  quadra enquanto converso um pouco com a professora sobre a minha pesquisa.  Soa a sirene anunciando o recreio e a escola se modifica.   Como em outros contextos brasileiros, a participação feminina nas práticas

futebolísticas não se dava de forma “natural” e tranqüila. Exigia, ao contrário, de

homens e mulheres a superação de barreiras, a aceitação de certos estigmas e aos

riscos que envolvem esse tipo de jogo.98 Nesse caso, o que estava em questão

98 Laura, uma das meninas pesquisadas por Damo (2005), empenhou-se no desenvolvimento da habilidade futebolística (treinando sozinha, dias a fio, manobras com a bola). Desse modo, conseguiu

Page 98: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

98

eram as identidades. Para Lave e Wenger (1991, p. 116), o processo de

participação/aprendizagem de uma prática social envolve “o risco de iniciar o

estabelecimento da identidade”. No caso do futebol essa era uma questão central:

conflitos entre o desejo de participar e o medo de mudança também cercavam o

universo de produção desse esporte.

Enquanto, na escola, as mulheres, de certo modo, tinham penetração e

tencionavam a produção do jogo, fora dela esse tipo de conflito não existia. No

cotidiano do bairro, a ampla e intensa participação masculina no jogo contrastava

com a ausência das mulheres não só como praticantes do futebol, mas também dos

contextos de sociabilidade produzidos no seu entorno. Se a significação do futebol

na escola remetia “automaticamente” ao masculino, no campo de futebol, na Praça

de Esportes e nas ruas do bairro essa significação ganhava mais força.

No bairro Universitário, a “falta” de habilidade da maioria das mulheres no

futebol estava, portanto, diretamente atrelada à dificuldade de participação no jogo.

Tendo em vista que a habilidade futebolística é constituída do engajamento na

prática social, para participar dela, entretanto era necessário ser admitido como

iniciante (ou ter acesso à participação periférica, nas palavras de Lave e Wenger,

1991). Enquanto ser do sexo masculino era suficiente para tornar os jovens

participantes em potencial do futebol, o mesmo não acontecia com as jovens (que

não eram consideradas iniciantes). A falta de legitimidade feminina para participar do

jogo não possibilitava às mulheres um tipo de envolvimento que lhes permitisse

aprender. Das que conseguiam a participação, a maioria o fazia no contexto escolar.

Era como se na escola (“que não é o mundo de verdade”) as jovens pudessem

experimentar uma prática do universo masculino — o que não significava participar

desse universo de prática.99

Nas relações cotidianas de futebol obter legitimidade de participação era mais

importante que obter o ensino ou até mesmo legalidade. Segundo Costa (2006, p.

118), no Brasil, “o medo da masculinização foi uma das principais motivações para

que, em 1941, através do Decreto-Lei nº. 3199”, a prática do futebol feminino fosse

proibida. “Esse perigo era inaceitável para uma sociedade que entendia que as constituir habilidade e passou a ser temida pelos meninos. Segundo Damo (2005, p. 167), “Laura foi uma espécie de vigarista, ao roubar dos meninos a ilusão de que menina não pode jogar futebol”. Vale a pena ressaltar, entretanto, que apenas Laura jogava com os homens no contexto estudado pelo autor. 99 Como se aprende Física na escola, sem ser participante do mundo dos físicos (LAVE e WENGER, 1991).

Page 99: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

99

mulheres deveriam ser ‘belas, maternais’ e femininas”. Na década de 80, o futebol

feminino (sob pressão) foi oficializado no país (COSTA, 2006). Sem legitimidade,

entretanto, a legalidade não garantiu a participação feminina no futebol. Como

afirma Costa (2006, p. 126)

Não é verdade que mulher naturalmente não se interesse por futebol ou naturalmente não saiba jogar futebol. Também não é verdade que futebol seja coisa de homem. Mas muitas mulheres ouviram e até reproduziram essas assertivas durante muito tempo, porque a configuração tanto simbólica quanto concreta dos espaços ocupados pelo futebol pertence, primordialmente, aos homens.

No bairro Universitário, para se tornar participante periférico do futebol (que,

conforme Lave e Wenger, 1991, é o que permite o engajamento/aprendizagem,) o

mais básico requisito era ser do sexo masculino. Assim, um rapaz podia até se

considerar sem aptidão para o jogo, mas jamais sem legitimidade de participação.

Portanto, participantes legítimos da prática social, os homens eram quase

“obrigados” a participar desse universo. Lidar com as questões que envolvem a

produção desse esporte, exige, pois ultrapassar o limite da denuncia da dominação

do feminino pelo masculino e retomar o debate sobre o conceito de gênero proposto

por Scott (1995) e Machado (1998). Para Scott (1995, p.75), “o termo gênero não

implica necessariamente uma tomada de posição sobre a desigualdade ou o poder,

nem tampouco designa a parte lesada (e até hoje invisível). A autora afirma que o

termo gênero, “é também utilizado para sugerir que qualquer informação sobre as

mulheres é necessariamente informação sobre os homens, que um implica o estudo

do outro”. Acrescenta que o gênero rejeita explicações biológicas para “designar as

relações sociais entre os sexos”, como forma de indicar construções culturais. Para

Machado (1998, p. 117), os “estudos de gênero” sugerem mudança significativa no

olhar sobre a questão das relações socioculturais entre homens e mulheres, na

medida em que “afirmaram a primazia metodológica de investigar as relações sociais

de gênero sobre a investigação das concepções de cada um dos gêneros”. Essa perspectiva possibilita reflexões interessantes sobre as práticas

futebolísticas, pois permite observar que, para além da dominação masculina, há um

discurso que se estabelece na educação do masculino e do feminino, ficando

homens e mulheres marcados nessa relação cultural — nessa construção/educação

do corpo. Se às mulheres foi negada historicamente a participação no futebol, aos

homens essa inclusão foi imposta, ou seja, a identidade masculina no Brasil está,

Page 100: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

100

em grande medida, atrelada à intimidade com essa prática cultural. Enquanto as

mulheres que constituem a habilidade futebolística são estigmatizadas (“Maria

homem”), os homens que se distanciam desse modelo sofrem discriminações que

colocam em questão a afirmação da sua identidade masculina (homens que não

jogam futebol são “maricas” ou jogam como “mulherzinha”).

No Universitário, meninos, jovens e homens (ou seja, o masculino) eram

praticantes legítimos da prática social futebolística. Isso não significava ausência das

mulheres nem que os iniciantes iam se tornar participantes plenos da prática (o que

é outra questão). Isso porque, no interior da cultura futebolística, havia múltiplos

processos de enfrentamento e tensões que podiam redefinir a participação e a

permanência no jogo social. A legitimidade da participação masculina no futebol não

indicava, portanto, homogeneidade e permanência na prática: trajetórias diferentes

eram constituídas nas e das práticas de futebol do bairro.

Page 101: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

101

4.2 - A aprendizagem cotidiana do futebol O mar está levemente encrespado e pequenas ondas quebram na praia arenosa. O senhor Palomar está de pé na areia e observa uma onda. [...] Não está absorto, porque sabe bem o que faz: quer observar uma onde e a observa. [...] O senhor Palomar vê uma onda apontar na distância, crescer, aproximar-se, mudar de forma e de cor, revolver-se sobre si mesma, quebrar-se, desfazer-se. A essa altura poderia convencer-se de ter levado a cabo a operação a que se havia proposto e ir embora. Contudo, isolar uma onda da que lhe segue de imediato e que parece às vezes suplantá-la ou acrescentar-se a ela e mesmo arrasta-la é algo muito difícil, assim como separa-la da onda que a precede e que parece empurrá-la em direção à praia, quando não dá até mesmo a impressão de voltar-se contra ela como se quisesse fechá-la. Se considerarmos cada onda no sentido da sua amplitude, paralelamente à costa, será difícil estabelecer até onde a frente que avança se estende contínua e onde se separa e se segmenta em ondas autônomas, distintas pela velocidade, a forma, a força, a direção. Em suma, não se pode observar uma onda sem levar em conta os aspectos complexos que concorrem para formá-la e aspectos também complexos que a essa dá ensejo”. [...] “O senhor Palomar está procurando agora limitar seu campo de observação; se tem presente um quadrado de, digamos, dez metros de praia por dez metros de mar, pode levantar um inventário de todos os movimentos de ondas que ali se repetem com freqüência variada dentro de um dado intervalo de tempo. A dificuldade está em fixar os limites desse quadrado, porque, por exemplo, se ele considera como o lado mais distante de si a linha em relevo de uma onda que avança, essa linha ao aproximar-se dela irá, erguendo-se, ocultar de sua vista tudo que está atrás; e eis que o espaço tomado para exame se destaca e ao mesmo tempo se comprime. (CALVINO, 1994, p. 7 – 9).

Após um ano de coleta de dados e a produção de páginas e mais páginas de

notas de campo e de entrevistas, era impossível escapar a esta pergunta: Como dar

legibilidade aos dados coletados, à experiência do campo? Afinal, o mundo não se

organiza em categorias explicativas. Como afirma Atkinson (1992, p. 5), “o mundo

social não se apresenta para nós na forma de tese, monografia ou artigo de jornal”.

Os dados acumulados “dia a dia, semana a semana e mês a mês não produzem

automaticamente um entendimento organizado em termos de temas e capítulos”.

Nós é que tentamos transformar “a complexidade densa da vida cotidiana em uma

estrutura linear”. Atenta a essa complexidade da prática social cotidiana fui tentando,

como alguém que tece uma trama com muitos fios, compor a aprendizagem do

futebol — tarefa difícil, já que nas práticas futebolísticas, cuja a aprendizagem de tão

sutil é chamada de dom, muitos elementos parecem escapar.

Para desvelar os modos de aprendizagem, coloquei foco na produção do

futebol no bairro Universitário, procurando analisar como os jovens, a partir do

Page 102: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

102

envolvimento na prática social, se transformavam em praticantes, ou seja, como os jovens iniciantes se tornavam veteranos. Esse engajamento/aprendizagem, no

futebol do bairro me dava, contudo, a mesma impressão da onda observada pelo

personagem Palomar de Ítalo Calvino: sem início nítido, sem fim delimitado. Por

onde começar? Como focar as aprendizagens dos jovens (heterogêneos também

em relação à participação no futebol) e, ao mesmo tempo, considerar os diferentes

interlocutores desse processo dinâmico e multifacetado? No bairro Universitário o

futebol era produzido nas relações entre crianças, jovens e adultos, em contextos

diferenciados, como relata Pelé (12 anos): “Joga adulto também com nós, tem vez

que eu jogo até com os cara grande lá da favela, os cara já maior, eles fala você

quer jogar? Eu falo, quero. Aí eu jogo lá com eles”. Buscando desvelar os modos de

aprendizagem, centrei esforços de descrição/análise nos modos de participação dos

jovens na prática a partir do conceito participação periférica legitimada (LPP),

proposto por Lave e Wenger (1991). Com isso, pude focar os recursos de

aprendizagem da prática social. Como sugerem os autores, tentei superar a noção

de aprendiz individual e descentralizar a análise da figura do mestre (pedagogo) e

do ensino. Desse modo, o engajamento dos jovens no futebol é descrito na

produção cotidiana em diferentes contextos do bairro: escola, Praça de Esportes,

campo de futebol e outros campos da cidade em os jovens pesquisados tiveram

acesso ao futebol.100

Imbuída de fazer um exercício semelhante ao de Palomar (que observa uma

onda para compreender seu movimento), tentei dar legibilidade ao processo

(também circular) de aprendizagem do futebol. Buscando resposta nas categorias

nativas, recorri à denominação compartilhada nos contextos de produção desse

esporte. Como uma lente de aumento para as formas de participação, nos jogadores

de fora, encontrei mais que uma expressão para tratar os menos habilidosos, mas

uma forma de falar dos iniciantes.101 Sendo assim, os de fora foram tomados como a

100 As aprendizagens que descrevo neste item ocorreram com jovens dos 10/12 anos aos 17/18 anos de idade. Sobre o recorte dessa faixa etária duas considerações ainda devem ser feitas. A primeira é que, obviamente, os jovens já haviam incorporado uma série de elementos significativos da prática. Afinal, no contexto brasileiro, os jovens estão, desde muito cedo, imersos numa rede de relações das quais o futebol não é só parte, mas elemento central. A segunda é que, essa faixa etária (ampla) possibilitou observar jovens/iniciantes e jovens/veteranos elaborando, produzindo e aprendendo o futebol. 101 A imersão no contexto investigado, associada a uma ampla produção bibliográfica na àrea da Educação Física sobre os modos de organização dos esportes, permite abordar a de fora como o espaço dos menos experientes. Portanto, quanto mais iniciante for o jovem, maior a participação como de fora.

Page 103: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

103

ponta do processo de participação/aprendizagem, como um tipo de participação

periférica no jogo.

4.2.1 - “A próxima de fora é nossa”: uma ponta para o processo

Uma maneira muito recorrente de entrada dos jovens iniciantes no futebol, no

Universitário, era a de fora. Esse tipo de participação (observada nos contextos de

produção do futebol com grande número de jogadores) caracterizava-se como um

tipo de revezamento em que os jovens disputavam uma oportunidade de

participação e de permanência no jogo.

No bairro era possível observar duas maneiras de ser participante de fora no

futebol: os times de fora e os jogadores de fora. Quando o número de jogadores de

fora equivalia ao número de jogadores de um time em campo, os jovens que

aguardavam a oportunidade de jogar constituíam novo time que iria disputar o

próximo jogo contra aquele que fizesse determinado número de gols primeiro ou que

estivesse vencendo o jogo ao final de 5 minutos. Casos de empate eram decididos

por sorteio/par ou ímpar.102 Acontecia muitas vezes, entretanto, de o número de

interessados em participar do futebol na de fora não atingir o número de jogadores

necessários para formar um novo time. Quando isso ocorria, os jogadores

excedentes ocupavam a posição de fora e passavam a substituir os jogadores do

time que perdeu o jogo.

Nas aulas de Educação Física e no entorno do Racing, a composição dos

times era feita por processos de seleção. Mas, parecia consenso que o lugar dos

iniciantes (no grupo ou no futebol103) era a de fora, exceto quando ele era amigo ou

mantinha outros vínculos com aqueles que escolhiam os jogadores para compor os

times ou quando a escolha era feita pelo professor de Educação Física104. Isso

ocorria seguidas vezes, com três jovens que, por serem menores em relação aos

colegas de turma, denominei de pequeninos, numa turma da 6ª série:

102 A definição do número de gols para a troca de times tinha relação com o número de interessados em participar do jogo. Jogos com muitos praticantes na de fora eram definidos por um gol ou cinco minutos, jogos com poucos de fora podiam ser definidos por dois gols. 103 Quando o jovem era iniciante apenas em relação ao grupo, precisava (além de apresentar a habilidade futebolística) participar dos momentos de sociabilidade com o grupo para ser aceito como parte dele. 104 Em muitos momentos, a seleção de times era feita por par ou ímpar: quem ganhava a disputa iniciava o processo de seleção.

Page 104: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

104

[...]  Quando  o  professor  apita  o  fim  do  tempo  de  jogo  das  meninas,  os  meninos  logo  se organizam para o futebol escolhendo os jogadores para compor os times. Com um grupo na de fora o professor avisa: “—Um gol”. O jogo é iniciado. Muitos jovens aguardam a vez de jogar da lateral da quadra esportiva da escola. Três jovens (pequeninos), que fazem parte da de fora, esperam a vez de jogar brincando de chutes e passes com uma bola velha. Após o primeiro gol, saem  alguns  jogadores do  time perdedor  e  aqueles que  estavam de  fora  entram no  jogo. Os pequeninos percebem que não foram incluídos no time e avisam ao grupo: “— A próxima de fora é nossa”. Após novo gol, eles entram no  jogo. Imediatamente outro gol é  feito pelo time que segue ganhando todos os jogos e novamente os pequeninos voltam a brincar de futebol nas laterais  da  quadra. O  jogo  segue  com  o  revezamento  de  alguns  jogadores. Os  pequeninos entram em um novo jogo, escolhendo jogadores do time perdedor para substituir. Basta a saída de bola para que outro time vença novamente. Eles jogam uns 10 segundo e voltam a ficar na de fora. [...]  Num jogo de inclusão/exclusão (de fora para dentro e novamente de fora), de

hierarquias e de competição, mas também de aprendizagem (até das relações de

poder e dos aspectos competitivos do jogo), o futebol era cotidianamente produzido.

Nessa forma de organização, alguns jogadores participavam do jogo o tempo todo,

enquanto outros (inexperientes/iniciantes) a todo o momento retornavam à

participação como de fora. Sendo o último a ser escolhido, o último a entrar no jogo

e o primeiro a sair nos momentos de revezamento de times, o desafio do iniciante

era “suportar” os processos de exclusão do jogo e o fato de ser reconhecido pelos

pares como aquele que conhece (corporalmente) menos o futebol. Uma condição

para a permanência no futebol era, portanto, aceitar a participação em um jogo de

subjugação/hostilização: contexto em que a própria identidade estava em

questão.105

É importante ressaltar que a participação como de fora se constituía como um

lugar de poder. No bairro Universitário os de fora no futebol eram os jovens do sexo

masculino (participantes legítimos da prática social, conforme foi visto). As mulheres

jamais ocupavam essa posição de jogo. Quando jogavam futebol nas aulas de

Educação Física e no recreio, elas permaneciam em grupos fechados, do início ao

fim, com as mesmas jogadoras. Só se tornava de fora, portanto, quem de certa

forma já era de dentro, ou seja, os jogadores que participavam dos contextos de

disputa, de compartilhamento de identidades, de solidariedade e de amizades

gerados/consolidados em torno do futebol.

105 É importante ressaltar também que, além da sociabilidade masculina, o que levava muitos jovens à “compulsividade” do jogo era interesse pelo profissionalismo (o desejo de ser jogador profissional).

Page 105: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

105

Certas maneiras de jogar futebol com de fora eram produzidas no bairro.

Assim, enquanto, na quadra da EECJP, a maioria dos jogos com de fora se

aproximava da forma “convencional”, no entorno da área do gol no campo de futebol

do Racing, outros grupos realizavam pequenos jogos: futebol de dupla, trios e

quartetos, jogos sem goleiro, jogos com goleiro, jogos com dois goleiros, etc. Sendo

assim, em dimensões menores do campo e com regras combinadas a cada

situação, uma multiplicidade de formas de jogar podia se observada: Dois jovens ao gol formam um time contra dois jovens na linha. O jogo começa com um chute a gol na marca de pênalti. Quando os goleiros defendem (sem apreender a bola), o rebote passa a ser alvo de disputa entre os dois jovens que atacam e um dos goleiros passa a jogar na linha, ficando  apenas  um  para  defender  nova  tentativa  de  gol.  Quando  os  jogadores  de  linha conseguem  fazer  o  gol,  novos  goleiros  passam  a  compor  o  jogo. Quando  um  dos  goleiros apreende  a  bola,  há  troca  de  posições:  os  goleiros  passam  a  jogar  na  linha  e  o  grupo  que aguarda a vez de jogar (de fora) vai para o gol.  Quem está na de fora espera nova vez de jogar assistindo ao jogo sentado perto do local, dentro do campo.  O tempero dos jogos com times/jogadores de fora era a disputa, a

competição. Afinal do resultado do jogo também dependia a permanência. Jogos de

futebol com de fora exigiam participantes que suportassem as tensões e as

exclusões presentes no esporte. Nem todos, pois, se submetiam a esse processo.

Damo (2005, p. 158) afirma:

É pelo fato que se naturalizou, entre nós, o futebol como prática masculina, que se espera de meninos e meninas, atitudes diferenciadas. Meninas atrapalham não apenas porque não dominam as técnicas corporais, senão que são percebidas pelos meninos como propensas a não se deixarem absorver pelo jogo, e raramente o fazem. Medir-se, hostilizar-se, fazer tremer, subjugar e, sobretudo, faze-lo aberta e publicamente – razão pelo qual o jogo constitui uma ocasião privilegiada – é um arbitrário imposto aos meninos e os jogos são absorventes na medida em que suscitam tais atitudes. Todos, meninos e meninas, são hostilizados no jogo, com a diferença de que se espera dos meninos que eles permaneçam no jogo [...].

O paradoxo da participação como de fora estava no fato de que os iniciantes

tinham de apresentar habilidade futebolística para participar, porém tinham de

participar/praticar para constituir habilidade. Aprender a lidar com essa tensão — de

fazer parte, mesmo não estando à altura dos demais praticantes, e, ao mesmo

tempo, ter que participar para estar à altura — era fundamental para os iniciantes.

Page 106: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

106

Como de fora, os iniciantes participavam momentaneamente do jogo e

realizavam longos períodos de observação — momentos em que mesmo os que

pareciam dispersos sabiam o resultado do jogo ou o tempo que faltava para a sua

vez de jogar. Assistir aos jogos de futebol não significava, portanto, estar passivo ao

que acontecia. Ao contrário, significava ocupar uma posição em que era possível

perceber facetas não disponíveis aos jogadores (como um tipo de prática de

futebol). Como afirmou Pelé, assistindo ao jogo também se aprende a jogar: “Eu

aprendo vendo, olhando eu aprendo, senão meu professor ensina isso, mas eu olho

assim, eu vejo os outros jogando aí eu olho e aprendo, fácil. [...] É por isso que eu

gosto muito de jogar futebol, desde pequeno”. A observação era, portanto, uma

prática central à participação/aprendizagem do futebol.106

Era da observação conjugada à experimentação do jogo que os jovens “de

fora” aprendiam também a compor os times. Aprender a escolher parceiros era uma

estratégia imediata de participação desses jovens, pois dela também dependia a

possibilidade de permanência no futebol. Geralmente os mais experientes é que

escolhiam os times. Quando um iniciante era levado a realizar esse processo — o

que ocorria apenas nas aulas de Educação Física na EECJP, quando o professor

intervinha na organização dos times — muitas vezes, jovens mais experientes

discretamente sopravam ao ouvido os nomes dos jogadores a serem escolhidos.107

Contudo, no exercício de participação e de observação do futebol, os iniciantes iam

refinando o olhar sobre o jogo e sobre os parceiros que podiam permitir que

obtivessem sucesso e, conseqüentemente, saíssem do revezamento. Isso porque o

time que vencia permanecia inalterado. Mas as relações sociais no futebol eram

complexas e outros elementos também faziam parte do processo. Assim, relações

de amizade, por exemplo, podiam impedir que um de fora (no momento da

substituição dos jogadores) retirasse do jogo um amigo iniciante.

Constrangidos socialmente a participar do futebol e obter sucesso, os de fora

não eram, contudo, homogêneos nas ações dentro e fora do jogo. Enquanto

aguardavam a vez de jogar, misturavam-se aos veteranos na realização de práticas

diversas: exercitavam manobras com a bola e jogadas de futebol fora do campo.

Essas práticas de futebol ocorriam simultaneamente a todas às “modalidades” de

106 Sobre observação como modo de aprendizagem, ver Rogoff, Paradise, Correa-Chávez E Mejía-Arauz, 2003. 107 Prática observada também no Aglomerado da Serra – Pesquisa Rede CEDES.

Page 107: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

107

jogo de futebol (dos jogos escolares aos jogos do campeonato). Em vista da

singularidade e da importância dessas práticas para a aprendizagem do futebol,

procurei sobre elas colocar foco.

4.2.2 - “Chutando que você aprende”: ensaios de futebol no bairro Universitário

No bairro, os jovens realizavam práticas futebolísticas múltiplas em contextos

diferentes. Muitas ocorriam no entorno de outros jogos de futebol, por exemplo. Nas

aulas de Educação Física, alunos que ficavam na de fora aproveitavam a

oportunidade para “experimentar” a bola nas laterais da quadra. Nas imediações do

bairro (em casa, na rua, na praça), jovens realizavam cotidianamente manobras

futebolísticas. No campo de futebol do Racing, jovens que observavam as práticas

(os treinos de futebol dos times do bairro e dos alunos do Projeto Social, as práticas

de futebol de lazer de grupos e os jogos amistosos e campeonatos no fim de

semana) exploravam movimentos do corpo com a bola e/ou aproveitavam os

intervalos dos jogos para ocupar o campo de futebol com um “bate-bola” (situações

em que jovens, crianças e adultos se apropriavam do espaço “sagrado” do jogo de

futebol no bairro). Como afirma Damo (2005, p.166), o aprendizado do futebol no

bairro não era “instrumental, consciente e desconexo da sociabilidade como um

todo”.

Quando dois/três jovens se encontravam no entorno do campo, na quadra ou

no pátio da EECJP, na rua ou na Praça de Esportes do bairro, e algum deles tinha

uma bola (ou qualquer objeto que a substituísse), imediatamente se iniciava uma

movimentação. Entre praticantes de diferentes idades (mas, principalmente, jovens)

o futebol se desdobrava em repetidas execuções de pênaltis com ou sem goleiro, de

lançamentos da bola na área de gol para a finalização do colega, de tentativas de

realização de diferentes gols (de bicicleta, de cabeça, etc.), de chutes de escanteio

direto a gol ou para o colega finalizar a jogada com a cabeça ou de voleio

(geralmente os mais audaciosos), de pedaladas (correr com a bola fazendo

passagens do pé em torno dela), de controle da bola (chutinhos), de diferentes

dribles (chapeuzinho, fintas, etc.), de passes com o peito do pé, de calcanhar, de

cabeceio, de recepção da bola no peito (“arrematar no peito”) e chute, enfim, de

diferentes possibilidades de uso do corpo/bola no futebol. Mas, se o grupo

aumentava, com a chegada de pelo menos mais duas/três pessoas, novo jogo podia

Page 108: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

108

ser criado. Afinal, onde havia um grupo de jovens e uma bola havia sempre um

peruzinho/bobinho.108

No decorrer da pesquisa de campo, chamou-me a atenção a intensidade do

envolvimento dos jovens nessas práticas. Rotineiras e exclusivamente masculinas, a

maioria delas não possuía denominação específica entre os “nativos”. Por ocasião

do registro das notas de campo, a esse tipo de engajamento na prática do futebol

dei o nome de ensaios. Isso me permitia expressar uma forma específica de

interação do jogador com a bola e com os outros jogadores. Foi na leitura do texto

de Ingold (2000, 2001), entretanto, que encontrei reforço para o uso dessa

denominação. Assim, uso o termo ensaio duplamente: como expressão do dado de

campo e como incursão teórica.

Segundo autor (2001, p. 21) a aprendizagem (ou processo de habilitação que

se constitui na prática) envolve observação e imitação. A imitação não é, contudo,

“uma transcrição automática de dispositivos cognitivos de uma cabeça para outra”

(INGOLD, 2001, p.130).109 Ela é um processo “desenvolvimental” que ocorre em um

ambiente, ou seja, a imitação — que envolve tarefas repetidas e exercícios — é um

aspecto da vida da pessoa no mundo.110 Tomando como exemplo as práticas do

ferreiro, Ingold (2001, p. 21) afirma que seus movimentos não podem ser entendidos

como produto de um “programa motor fixado” conseguidos “através de aplicação de

uma fórmula”. Mais do que “mera” execução técnica, as mãos do ferreiro são

guiadas pela percepção e a repetição rítmica do movimento é constituída na

interface com o ambiente (INGOLD, 2000, p. 190). Carregados de intenção, os

movimentos são continuamente responsivos a cada mudança de situação (INGOLD,

2000, p. 414) e, desse modo, são sempre diferentes (em relação ao anterior), pois

108 Em círculo, os jovens trocavam passes entre si, ao mesmo tempo em que impediam que um dos jogadores (o peruzinho/bobinho) alcançasse a bola. Quando o peruzinho/bobinho conseguia tocar a bola, imediatamente, trocava de posição e o último jogador a tocá-la tornava-se o novo peruzinho/bobinho indo para o centro do círculo. No jogo era permitido usar (no toque com a bola) as mesmas partes do corpo que é permitido usar no jogo de futebol: pés, cabeça, peito, coxa, etc. Nunca reter ou tocar a bola com as mãos. Tratava-se de um jogo que podia ser realizado em qualquer lugar e que, muitas vezes, era usado como uma prévia para a organização de outros jogos (era aquecimento para os jogos oficiais, era jogo “pré-desportivo” no projeto social, era tempo de espera da pelada, era espaço de transição dos jogadores de fora). Porém, mais do que isso, o peruzinho/bobinho também possuía uma lógica de organização própria — não apenas de prévia dos jogos que lhe sucediam. 109 Contrapondo-se à ciência cognitiva convencional Ingold (2001), Maturana e Varela (2005), Varela (1992) e Toren (1999) questionam abordagens sobre a aprendizagem como aquisição de representações separada do fazer. 110 “Sem dúvida, pessoas criadas em diferentes ambientes aprendem a perceber o seu entorno, e a agir dentro dele, de diferentes modos” (INGOLD, 2001, p.134).

Page 109: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

109

se efetivam em condições ambientais diferentes a cada momento. O que o

praticante faz, quando parece apenas repetir, são “ajustamentos” contínuos do

movimento no curso da tarefa emergente. Assim, a performance exige habilidade de

coordenar ação/percepção (INGOLD, 2001, p. 23 - 24).

Para Ingold (2000, p. 414), a constituição da habilidade (do ferreiro, por

exemplo) não se dá espontaneamente, sem preparação. Ao contrário, ela envolve

muita prática, exige ensaio. Segundo o autor (2001, p. 131) a capacidade de

percepção e ação, nas diferentes práticas humanas (como andar, atirar, reter, etc.),

são constituídas por meio da prática e do treino no ambiente característico da

atividade e, sobretudo, sob a orientação/guia dos mais experientes. O ensaio — ou

processo de “repetir o mesmo movimento como uma preparação ou condução para

o seu desempenho prático” (INGOLD, 2000, p. 418) — é, então, a experiência de

movimentos em diferentes circunstancias/ambientes. Na conceituação do autor, o

ensaio é tratado como forma fundamental de aprendizagem, ou seja, como processo

de incorporação a partir do exercício de mergulho no que se está aprendendo. O

ensaio é, então, uma forma de entendimento na prática. Nas palavras do autor

(2000, p. 416), o tipo de know-how alcançado no contexto da prática é “processo de

habilitação, no qual a aprendizagem é inseparável do fazer”.

Iniciados na infância, os ensaios constituem experiências masculinas no

futebol, que se desdobram no decorrer de todo o processo de participação na prática

social. A recorrência nos relatos dos praticantes e a redundância nas notas de

campo permitiram compreender que se tratava de práticas ordinárias entre os jovens

do bairro. É como relatou Schiva:

Quatro anos eu tinha quando meu pai me deu a bola. [...] Já brincava só de ficar jogando, era bola de plástico, eu ficava brincando, jogando na parede pra bola voltar em mim e eu ficava brincando, chutando de qualquer jeito, derrubando os trem da minha mãe dentro de casa. (Grifos meus)

Diferente, por exemplo, da aprendizagem do boxe — em que a prática se

concentra no espaço institucionalizado da academia e, predominantemente, na

presença de um mestre/treinador (WACQUANT, 2002)111 — os ensaios

futebolísticos faziam parte das interações masculinas cotidianas em casa, na rua, na

111 Outro texto que se tornou profícuo no processo de escrita deste trabalho (pelas possibilidades de aproximação no trato com a questão da aprendizagem) foi o trabalho de Loic Wacquant (2002) — Corpo e Alma: notas etnográficas sobre um aprendiz de boxe.

Page 110: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

110

escola, no campo de futebol, etc. Mesmo sem um espaço/tempo específico, sem a

presença de um mestre/professor, os ensaios de futebol eram práticas fluídas,

difusas que conjugavam aspectos aparentemente inconciliáveis: a aprendizagem se

dava de forma intensa e, ao mesmo tempo, opaca, porque, fora das situações de

ensino, a aprendizagem ganhava pouca visibilidade.

Uma singularidade dos ensaios — que os torna atraentes, sobretudo para os

iniciantes — era que neles o jogo de corpo realizado ocorria, predominantemente,

fora das situações de competição (e/ou ritual) inerente ao esporte. Como um jogo-

exercício para todas as configurações do futebol, não havia entre os jogadores,

portanto, uma preocupação imediata com vencer. Nos ensaios de futebol (em que

pegar o jeito do corpo se sobressaia aos demais aspectos da prática social) não

estava em questão a superação do outro, mas a superação dos limites que separam

a bola do corpo.112 Isso não quer dizer que se tratava de práticas fáceis e/ou

repetitivas. Os movimentos futebolísticos produzidos pelos jovens do bairro, nos

ensaios, eram dinâmicos e complexos. Por exemplo: receber passes de diferentes

modos (rasteiro, meia altura, alto, etc.), de diferentes parceiros, de diferentes lugares

do campo, sob diferentes velocidades e forças imprimidas à bola, em diferentes

contextos, etc., implicava a execução de diferentes movimentos dos praticantes.

Portanto, os jovens não estavam fazendo sempre a mesma coisa. Nas horas que

passavam trocando passes, chutando e/ou realizando manobras com a bola, eles

estavam ensaiando ou tentando repetir o resultado da ação sob condições adversas.

Assim, mais que repetição/reprodução, os jovens exercitavam/experimentavam o

futebol e, desse modo, aprendiam a coordenar os movimentos do corpo. Como

afirma Ingold (2000, p. 190) colocar o foco sobre o caráter habilitado das práticas

humanas (e não no produto final) é fundamental para a compreensão do processo,

porque o que se repete a todo o momento é o resultado do movimento, e não o

movimento em si. Sendo assim, é o foco do observador que causa a impressão

imediata de repetição/reprodução de movimentos.

Apesar dos praticantes que consideravam o futebol inato, o movimento

futebolístico não vinha naturalmente. Os ensaios no bairro Universitário eram, pois,

um importante modo de incorporação da habilidade futebolística: uma forma de

aprender que envolvia esforço e ludicidade. A importância dessas práticas para a

112 Ou, como poderiam dizer Maturana e Varela (2005), do sistema bola-corpo.

Page 111: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

111

aprendizagem do futebol foi destacada pelo o professor de Educação Física da

EECJP: Você pode pegar menino que nunca foi em escolinha de futebol e que já sabe dominar a bola e chutar, a maioria já pega, jogando bola na rua, jogando em casa, chutando em parede, o pai pega e vai ensinar, ele pega isso tranqüilo. [...] eu nunca fui em escolinha. Na aula de educação física o professor não ensinava isso pra gente no rola bola. Então, chutando bola na parede, chutando que você aprende a dominar, chutar com o pé, depois que você vai ver. (Grifos meus)

A narrativa do professor, somada às observações de campo, suscitam ao

menos duas reflexões sobre os ensaios de futebol, como modo de aprendizagem. A

primeira é, conforme já foi dito, a importância dessas práticas como experiências

fundamentais à incorporação do jogo (por exemplo: domínio). A segunda é que,

apesar da multiplicidade de práticas que podem estar sob a denominação ensaios,

pode-se dizer que havia pelo menos dois tipos de ensaios no bairro Universitário:

ensaios “solo” (“chutando bola na parede, chutando que você aprende a dominar”) e

os ensaios “guiados”: (“O pai pega e vai ensinar”). São esses tipos ou situações de

produção dos ensaios a que passo a dar relevo.

4.2.3 -“Tem hora que eu fico fazendo exercício”: ensaios “solo” Os ensaios “solo”, neste trabalho, são aqueles em que o praticante, no

empenho de movimentar-se com a bola, seguia realizando práticas futebolísticas

sozinho. Nesse tipo de ensaio, a ausência de uma relação imediata com outro

praticante não significava falta de referência. Pelo contrário: as jogadas de sucesso

amplamente divulgadas na mídia e os lances dos mais experientes do futebol local

eram fomentadores de múltiplos ensaios entre os praticantes. O relato de Pelé, que

diariamente tentava com afinco, realizar movimentos futebolísticos diferentes, é um

exemplo.

Tem hora que eu fico... faço ali só uma coisa, só pra conseguir, até eu conseguir. [...] Lá dentro da casa, lá dentro de casa tem espaço aí eu só fico chutando na parede, brincando assim com a bola, fazendo um tanto de coisas com a bola, tem hora que eu fico fazendo exercício, fico fazendo um tanto de coisas. (Grifos meus)

Passar muito tempo chutando uma bola na parede (como descreveu Pelé)

pode até parecer uma prática simples ou de menor importância, quando se tem

Page 112: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

112

como horizonte a complexidade do jogo de futebol. Contudo aprender a mover-se

num espaço limitado, aprender a situar-se em relação às outras pessoas e outras

práticas que ocupavam o mesmo contexto, aprender a desviar a bola de objetos ou

mesmo impedir que ela ultrapassasse o muro de casa, aprender a imprimir força e

direção adequada à bola e, ao mesmo tempo, acertá-la num ponto “ideal” ou que

permitisse ela retornar sob condição de domínio são apenas aspectos desse tipo de

prática que permitem perceber a complexidade da atividade. Exercitando-se na

parede, o praticante buscava a construção de um domínio dos movimentos do corpo

com a bola (na relação com o entorno).113 De outro modo, é importante ressaltar

também que, mesmo quando Pelé realizava seus ensaios de futebol, ele tinha a sua

disposição um conhecimento coletivo.

Produzir (no próprio corpo) gestos futebolísticos de outros exigia ensaio

exaustivo. Afinal, para os praticantes, não bastava conseguir realizar determinado

movimento uma vez (como um golpe de sorte que, no bairro, é o mesmo que

“cagada”). Era preciso que esse movimento passasse a fazer parte do rol de

movimentos de que o praticante pudesse valer-se em situações da convivência com

os pares, na prática social. Portanto, em situações específicas de jogo e em

contextos onde era solicitado a demonstrar o domínio do gesto futebolístico. Esses

contextos de sociabilidade juvenil do bairro se tornavam contextos de encenações

de virilidade/masculinidade. Além disso, os ensaios de futebol funcionavam como

possibilidade de exibições de habilidade, da perícia do jogador com a bola. Era com

essa motivação que Pelé investia tempo e energia nos ensaios: “até eu conseguir”.

Como Pelé, muitos outros jovens do bairro Universitário passavam muito

tempo realizando ensaios “solo”: chutinhos/controle, chutes na parede, pedaladas,

chapéu, peripécias de equilíbrio (a bola no pescoço, nas costas, na cabeça, etc.). É

a importância dessas práticas, tão visível e intensa no cotidiano dos jovens (e tão

invisível como modo de aprendizagem para muitos praticantes) que parece ter sido

antevista por Biruga (técnico do Racing Infantil e Juvenil). Para ele é no processo de

execução que os jovens aprendem a perceber o corpo: “[...] é, ficam chutando,

chutando, ele dá um chute, ele vê como ele chutou, e ele vai lembrar se ele pôs

113 Conversando com um professor de Educação Física (que quase chegou a jogar futebol profissionalmente e que colaborou com esta pesquisa, fazendo a leitura desta parte do trabalho) sobre os ensaios, ele falou sobre esses momentos como mágicos. Nos ensaios de futebol que realizava na infância, criava jogos imaginários e experimentava a prática do futebol como se fosse jogador (renomado) dos times profissionais.

Page 113: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

113

pouca força, se ele pôs a perna ou não”. Biruga confirmou também que os

movimentos futebolísticos realizados pelos jovens no cotidiano (os ensaios) não

eram repetitivos. Mais do que isso, ele descreveu como é sutil, dinâmico e complexo

o processo de habilitação disposto nos ensaios. Assim, a cada execução o

praticante observava, realizava um tipo de cálculo, que tinha como referência

experiências prévias (não apenas suas) e produzia mudanças/ajustes do movimento

no curso da atividade. A esse tipo de procedimento, que possui transformações na

prática, Maturana (2001, p.72) chama de recursão. Em outras palavras, o conjunto

de movimentos produzidos por esses jovens no cotidiano — que aos olhos de outros

aparenta um processo meramente repetitivo — é um procedimento recursivo, onde

cada gesto produzido “faz referencia à aplicação de uma operação sobre o resultado

da aplicação de uma operação”.

O relato de Biruga confirmava também que a habilidade se constitui da ampla

experimentação do e no futebol e que esse processo é repleto de intencionalidade,

como sugere Ingold (2000, 2001). Era repetido/ensaiando e deixando-se guiar por

suas observações, que os iniciantes gradualmente sentiam as coisas por si mesmos

(INGOLD, 2001, p.21 - 22). Os ensaios futebolísticos dos jovens estavam, portanto,

distantes de um mero processo de cópia ou, no sentido limitado do termo, de um tipo

de reprodução da cultura. Pelo contrário, nessas práticas futebolísticas recursivas a

cultura era um processo. Realizando os ensaios, os jovens constituíam uma

corporeidade futebolística que — impregnada do contexto — era também singular. A

cultura se constituía nesse exercício.

4.2.4 - “Ensino ele posicionamento pra chutar a bola”: ensaios “guiados” Muitos ensaios de futebol no bairro Universitário ocorriam com a participação

de mais de um praticante. Esse tipo de contexto era bastante profícuo à ocorrência

de ensaios “guiados”: alguém procurava orientar o ensaio de um iniciante ou menos

experientes. Essa prática podia acontecer em vários contextos de produção de

futebol do bairro. Por exemplo: nos ensaios dos alunos que participavam do Projeto

Social no campo de futebol do Racing, Lúcio (que muitas vezes permitia que os

jovens realizassem suas práticas de futebol “livremente”) e outros praticantes faziam

intervenções pontuais:

Page 114: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

114

Há poucos alunos para participar do futebol no Projeto Esporte Esperança/Segundo Tempo no campo do Racing. Lúcio (professor do Projeto) entrega uma bola aos jovens e fica a distância conversando  com  Mário  e  observando  as  práticas  dos  jovens.  Os  jovens  iniciam  uma movimentação do futebol próximo ao gol. Várias vezes deixam a bola correr para as posições de escanteio e, com indicações dos colegas (sobre como e onde jogar), realizam o chute. Se a jogada é realizada com sucesso, todos comemoram. Outra movimentação que se repete é a tentativa de formas diferentes de chutes a gol  (quando os  jogadores  também  levantam a bola para que os colegas possam realizar gols de bicicleta, de cabeça, etc.). Um dos jogadores pede que o colega chute  a  bola  impondo  nela  o  movimento  de  rotação  na  hora  do  chute  (tentativa  de  gol olímpico). Após a execução, o jogador afirma: “Quase deu”. São raros os momentos de silêncio. Tudo é feito com indicações (sinalizadas com gestos e fala) sobre como realizar os movimentos futebolísticos entre os jogadores. Lúcio permanece todo o tempo dentro do campo observando à distância. De repente, ele diz a um  jogador que erra o cabeceio: “—O cabeceio é assim, oh!” (monstra com gesto). Os jovens seguem realizando diferentes jogadas por  longo tempo. [...]  Como nos ensaios “solo”, nos ensaios “guiados”, os praticantes podiam, a

cada execução, realizar tentativas, “corrigir” o corpo na relação com a bola,

descobrir como fazer, com “infinitos” acertos e erros. Nos encontros juvenis em que

“a bola rolava”, os praticantes mais experientes ajudavam os demais a compreender

como abordar a bola, como posicionar o corpo para realizar embaixadas, como

posicionar-se em campo, como chutar, por exemplo. Essas situações de produção

do futebol, que ocorriam com freqüência no Universitário, mostravam que a

aprendizagem do futebol fazia parte da sociabilidade.

Outra forma de aprendizagem que ocorria nos ensaios “guiados” tinha por

referência a performance imediata dos veteranos. Como guias para a participação

dos iniciantes, os veteranos funcionavam como modelos da prática — o que fazia

muitos jovens neles prestar atenção. Nesses contextos, a presença do outro

funcionava também como presença motivadora da performance. Assim, o jovem que

seguia observando/observado caprichava, empenhava-se na realização de cada

gesto.

Ensaios repetidos à exaustão — como afirma Damo (2005, p.285), repetidos

até que o praticante começasse a “pensar corporalmente, antecipando se possível,

as ações”114 — ocorriam no âmbito da casa (com pais, irmãos, primos, tios, etc.) e

proximidades (com colegas de rua e da escola), no cotidiano escolar (com colegas

de turma nas aulas de Educação Física e no recreio), no campo de futebol (com

colegas de pelada, de time de várzea e do Projeto Social), etc. Nas muitas

peripécias dos jogadores com a bola (que podiam se tornar pauta de longas 114 A essa capacidade de agir prontamente Varela (1992, p.19) denominou presteza para ação.

Page 115: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

115

conversas), eles criavam, experimentavam e imitavam jogadas. Como a

possibilidade de inventar e experimentar raramente motivava exclusões, nos ensaios

também se buscava (re)produzir (ou trazer para o próprio corpo/incorporar) as

jogadas espetaculares da mídia. Assim, situações de pedaladas, dribles, etc., eram

constantemente exibidas/aprimoradas por veteranos e experimentadas por

iniciantes. Como um jogo de “pegar o jeito”, nos ensaios “guiados” os jovens

também realizavam jogadas do futebol com jogadores posicionados em campo

(cobrança de falta, pênalti, lateral, escanteio eram comuns). Esse amplo processo

de experimentação permitia a execução do movimento futebolístico num jogo de

"ajustamento rítmico de percepção e ação” (INGOLD, 2001, p.135).

Um foco mais aprofundado nos ensaios mostrou também que outras

aprendizagens estavam em questão. O ensaio “guiado” que segue narrado por Cadu

(17 anos) serve como exemplo emblemático:115

Igual o meu primo, meu primo tem, vai fazer 07 anos, se não me engano, ele começou a jogar bola com 4 anos , ele não gostava de bola assim, eu comecei a jogar, hoje ele não larga a bola, hoje ele dorme com a bola. Agorinha mesmo, ele está estudando, cinco e meia ele chega: “— ô Cadu, vamos lá fora”. Eu tenho a maior paciência, o irmão dele não. [...] Ensino ele posicionamento pra chutar a bola, ensino ele a bater chutinho, já bate chutinho já, 7 anos, pequenininho, vai fazer 7 anos, depois,[...] Brinco com ele, falo com ele a boleragem e tal, tipo assim, você tem [...], falo com ele, “— Tem que ser humilde, Douglas”. Igual ele fica virando a cara assim, que todo jogador faz, eu acho ruim isso. [...] Tipo assim, pega na bola assim, toca e vira a cara, discriminando o outro jogador, aí o outro jogador pode apelar. Igual ele fica brincando assim e virando a cara, eu: “— Não Douglas, vamos ter humildade e tal”. Ensino ele só o básico, ele já quer pedalar, já quer fazer tudo. [...] Chutar pro gol, posicionamento, chutar com a outra perna. Desde agora isso, desde agora chutar com a outra perna, já ta chutando com a outra perna, quando eu vou brincar com ele aqui fora, e ele vai chutar com a direita: “— Eu não. Vou parar. Tem que chutar com a esquerda”. Pra ele ir aprendendo”.(Cadu) (Grifos meus)

Praticando futebol no terreiro de casa ou na rua, Cadu e Douglas repetiam

movimentos básicos do futebol (Cadu orientava Douglas sobre posicionamento do

corpo), movimentos de domínio do futebol (por exemplo, chutinhos) e aprimoravam a

115 Cadu é um jovem que se destaca nas práticas futebolísticas do bairro: sempre está inserido nos jogos cotidianos (raramente fica na “de fora”), faz parte do time juvenil do Racing como titular e já atua como reserva no Júnior do Racing. Segundo ele, várias vezes foi convidado para compor times que poderiam rende-lhe inserção profissional. Chegou a treinar, por exemplo, no Cruzeiro Esporte Clube, mas foi prejudicado por seu porte físico: Cadu é “baixinho”.

Page 116: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

116

execução de movimentos bilaterais (o uso das pernas esquerda e direita). As

indicações de Cadu ajudavam Douglas a constituir uma percepção do seu

corpo/movimento na relação com a bola e o ambiente. Um tipo de exercício prático

que não comportava dicotomias (corpo/mente, biologia/cultura, pensamento/ação,

ensino/aprendizagem, etc.), Cadu tentava orientar Douglas na difícil tarefa de

aprender a dominar o próprio corpo e o jogo.

Os ensaios cotidianos de futebol, que ocupavam importante parte da vida dos

dois, permitiam que Douglas fosse constituindo a habilidade sob a orientação de

Cadu. Nesse contexto de interações — em que Cadu era portador de

conhecimentos específicos e necessários para que o iniciante/Douglas pudesse se

situar na prática social — a aprendizagem ultrapassava aspectos técnicos. Mais do

que orientar Douglas na execução das técnicas futebolísticas, o que Cadu fazia era

explicitar aspectos velados da prática social, a complexidade que envolve o jogo: a

ética do futebol que requer do praticante senso de humildade incorporado.

Traduzindo um tipo de resposta ética, no futebol o praticante tem que conseguir

comunicar não apenas verbalmente, mas também corporalmente, o respeito para

com o outro — aspectos também observados por Varela (1992) ao estudar a

competência ética.116

Entendendo que a forma de se expressar no futebol (verbal e gestualmente)

era inadequada à participação mais abrangente na prática social, Cadu mostrava a

Douglas que, o que ele estava fazendo para afirmar-se no campo futebolístico

(sobrepujando explicitamente o outro com a mania de “boleragem”) estava fazendo

de forma equivocada/grotesca. A pretensa superioridade tão almejada pelos

praticantes do jogo não seria, portanto, alcançada dessa maneira. Pelo contrário.

Se, no futebol, era permitido sobrepujar/humilhar o outro, isso não podia ser feito de

maneira explícita, como Douglas estava fazendo. Era necessário, pois, que ele

aprendesse a se situar nesse campo de relações que constitui o futebol sem infringir

regras básicas (do jogo e as sociais). Sobrepujar e humilhar o outro só é permitido

de maneira velada: uma passada de bola entre as pernas, um “chapéu”, uma

116 Varela (1992, p. 14), no desenvolvimento do trabalho sobre a competência ética, toma como ponto de partida as contribuições recentes da fenomenologia e do pragmatismo e daquilo que define como “tríade de sabedoria: confucianismo, taoísmo e busdismo”. Um importante ingrediente do seu trabalho é o “esforço de evidenciar contribuições não-ocidentais, adotando, portanto um ponto de vista comparativo relativamente à experiência ética”. A tese de partida do autor é que “a ética está mais próxima da sabedoria do que da razão, mais próxima da compreensão de que a coisa deve ser o bem do que da formulação de princípios corretos” (p.13).

Page 117: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

117

“canetada” (drible), um sorriso contido, etc. Jamais de forma direta. Cadu queria de

Douglas, portanto, mais que postura física, uma postura ética em relação ao futebol.

Esse tipo de habilidade que Cadu queria que Douglas constituísse não é

obtido por meio de informações livrescas ou transmitido pela oralidade em formas

convencionais de instrução.117 Disposto no próprio corpo do praticante, era, pois um

conhecimento incorporado que exigia o envolvimento prático — que Douglas jamais

encontraria fora da prática social.118 Cadu não criava, contudo, situações para

ensinar a Douglas determinados aspectos do futebol. As orientações emergiam das

interações na prática. Assim, por exemplo, foi motivado pela “boleragem” de Douglas

que Cadu expôs seus conhecimentos sobre o campo esportivo/futebolístico — o que

é completamente diferente de uma aula teórica sobre o futebol no Brasil ou de um

exercício com a finalidade de ensinar. Como a aprendizagem em Alcoólicos

Anônimos, descrita por Lave e Wenger (1991) — em que os “veteranos que atuam

como padrinhos (sponser) dão aos recém-chegados avisos e instruções apropriados

para os passos seguintes” e os contêm à espera de que “estes se tornem

preparados para um próximo passo através de uma participação crescente na

comunidade” (LAVE e WENGER, 1991, p. 92) — nos ensaios cotidianos Cadu “guiava”

os passos de Douglas no fluxo da prática emergente.

Era o “engajamento atento e situado” na prática que permitia que Douglas (e

também Cadu) constituísse a habilidade (INGOLD, 2001). Sobre esse processo

Ingold (2001) traz contribuições singulares. Segundo autor (2001, p. 138), o

“conhecimento na história de vida da pessoa não é um resultado de uma

transmissão de informação, mas de uma redescoberta guiada”. Como ocorreu entre

Cadu e Douglas, o conhecimento se constitui no próprio sujeito, na interação com os

predecessores e sob a sua direção. Para Ingold (2001, p. 14) “o processo de

aprendizagem pela redescoberta guiada é mais competentemente conduzido pela

noção de execução”. Assim, diz o autor: [...] o iniciante observa, sente, escuta os movimentos do expert, e procura por meio de experiências repetidas executar o seu próprio movimento [...] para alcançar um tipo de ajustamento rítmico da

117 Isso foi também observado por Wacquant (2002, p. 78) no caso da aprendizagem do boxe. 118 Isso, segundo Damo (2005, p. 176), dificulta a reconversão de jogadores profissionais. Segundo o autor “as possibilidades de reconversão dos capitais futebolísticos são restritas, visto que os investimentos são demasiadamente especializados para servirem ao que quer que seja para além do futebol”.

Page 118: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

118

percepção e ação que liga ao centro da performance fluente. (INGOLD, 2001, p. 141).

Como Cadu e Douglas, muitos jovens se envolviam em múltiplos ensaios

“guiados” no cotidiano do Universitário. Neles, mesmo com diferentes tipos de

participação, se elaborava no corpo a habilidade para o jogo. Afinal não importava

ser iniciante, iniciado ou veterano. Havia sempre o que melhorar no futebol: o

manejo com a bola, o domínio refinado do corpo ou leitura do corpo do outro, a

compreensão mais ampla da prática futebolística. Diferente das relações

pedagógicas, nos ensaios “guiados” a reciprocidade era o que movia a participação.

Quem participava/praticava aprendia: Eu gosto de chutar no gol de falta, de pênalti, essas coisas aí eu gosto. [...] Drible também. Drible, nós fica brincando com meu primo, ele fica nervoso comigo porque eu driblo ele toda hora, ele só fica me batendo (ar de satisfação) brincando. [...]. Eu brinco muito com minha família, a minha família é grande tem muitos meninos, e nos brinca junto, toda mão na quadra. Tem vez que eu consegui ensinar, meus irmãos. [...] Meu irmãos pequenos. Ah, fico ensinando como que é para fazer. Tem hora que ele erra, eu falo, vou te ensinar como é que é heim, e ensino ele. Igual ele me ajuda e eu ajudo ele. [...] Quando eu estou querendo brincar ele brinca comigo, ele vai no gol e eu fico chutando nele, senão eu fico no gol e ele fica chutando em mim. Eu brinco muito com minha família, a minha família é grande tem muitos meninos, e nos brinca junto, toda mão na quadra.(Pelé) (Grifos meus) Aqui em casa tem essa varanda aqui, só que ela era mais ampla, aí eu chamava minha irmã, meu primo de 12 anos, que eles não tem uma malandragem no futebol, jogavam os quatro contra mim e eu ficava driblando pra sempre eu estar aprimorando, vinham os quatro eu driblava os quatro, vinham os dois, eu driblava os dois. E eles sempre que a gente estava brincando, eu sempre aprimorando o drible também jogando contra eles porque eles não tem uma noção muito bem do futebol. Eles sabem que futebol você tem que fazer o gol dentro de uma casinha e pronto, eles não sabem distinguir uma falta de alguma coisa. Eu sempre chamava eles pra brincar pra poder estar aprimorando drible, aprimorando chute, esses negócios 119.(Schiva) (Grifos meus)

4.2.5 – “Ele prefere a bola que um prato de comida”: o sentido dos ensaios Computando o tempo de envolvimento dos praticantes nos ensaios, percebi

que não se tratava de uma tarefa insignificante ou destituída de intencionalidade,

119 Esse é a único relato que menciona a presença de mulheres nos ensaios de futebol. No cotidiano do bairro é rara essa participação. Uma situação específica, da qual tenho registro, ocorreu na escola quando algumas jovens participaram de um jogo de peruzinho/bobinho com os meninos.

Page 119: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

119

porque envolvia completamente os praticantes. Essa imersão cotidiana é relatada

pela mãe de um jovem (Cadu):

Nóh! A vó dele brigava porque ele ficava jogando bola no terreiro, quebrava os vidros tudo da casa da vó dele. Quebrava os vidros da casa do tio dele [...] O negócio dele era bola. Ele ia chegando da escola e ia procurando a bola. Até hoje, hoje ele fica aqui, daí a pouquinho na hora que o meu sobrinho chega ele vai lá pra rua ficar jogando bola com ele. [...] Ele chega aqui, daí a pouquinho ele fala assim, vou lá no campo jogar uma bola. Ele não perde a mania de bola de jeito nenhum; ele prefere a bola do que um prato de comida [...]. (Dona Eduarda)

Nos ensaios, os jovens do bairro (tal como Cadu) investiam tempo e energia,

e levavam a sério a tarefa de domínio/constituição do próprio corpo no futebol. A

busca de know-how mobilizava-os nessas práticas. Segundo Varela (1992, p. 28) —

que toma de empréstimo a distinção entre know-how e know-what de Dewey —

pode dizer-se que, mediante os nossos hábitos, “sabemos como comportar-nos”.

Assim, passeamos, lemos em voz alta, entramos e saímos do ônibus, vestimo-nos e

despimo-nos, “em suma, fazemos uma infinidade de atos úteis sem neles pensar”.

Para Varela (1992, p. 28) esse tipo de conhecimento — “capacidade de confronto

imediato” que não implica em uma reflexão e uma valoração consciente — é

corporificado na prática.

Justamente porque percebiam que nos ensaios estavam aprendendo, os

jovens eram, tomados pelo processo: um exercício do corpo e da masculinidade. A

intencionalidade dos ensaios, ou o que movia o empenho dos praticantes, era,

portanto, a constituição de um tipo de relação afinada e profícua entre corpo,

movimento, bola e ambiente. Em outras palavras: jovens que realizavam ensaios se

imbuíam da tarefa de compreender o futebol no corpo. Mas, não pelo pensamento

abstrato e, sim, pela própria ação.

Os jovens do bairro Universitário se engajavam nos ensaios porque era isso

que se esperava deles (porque há um discurso social de que homem tem que jogar

futebol), mas também por outros motivos. Como os boxeadores estudados por

Wacquant (2002, p. 88), os praticantes do futebol realizavam ensaios pelo prazer de

produzir o próprio corpo (habilidade), pelo “prazer de vê-lo desabrochar”.120 Para

eles, quanto maior era a complexidade da tarefa, maior era o empenho de realização 120 Em seu trabalho Wacquant (2002) narra esse processo de incorporação do pugilismo mostrando as sessões de treinamento como motivadas pelo desejo de produção do corpo boxeador.

Page 120: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

120

e, conseqüentemente, a satisfação da conquista. A recompensa vinha da

incorporação de um gesto difícil (como uma vitória sobre si mesmos) e do

sentimento de pertencimento — uma alegria geralmente esboçada em grito de

comemoração, sorriso, ou até mesmo seriedade que não combinava. Era como se

estivessem afirmando em silêncio: “—Normal!”.

Quando, por exemplo, a bola ia, “redondinha”, cumprir o objetivo do jogador, a

festa era geral. Até quem estava assistindo sorria e/ou fazia algum tipo de

comentário: “—É isso aí, fulano!”; “—Que é isso, veio!”; “—Estilo Romário!”. Muitos

jovens se empolgavam e até aplaudiam os colegas que conseguiam acertar o tempo

da bola, realizar jogadas “bonitas” dos jogadores profissionais e/ou de repercussão

na mídia. De outro modo, às vezes, ajudavam (mesmo com demonstrações) os

colegas/jogadores com dificuldades na realização de uma dada jogada, um tipo de

chute, um cabeceio, etc. Nesse contexto os praticantes eram também movidos por

admiração pelos que constituíram habilidade (reconhecimento de que se tratava de

algo difícil) e pela expectativa de serem também admirados/afirmados.

Sendo assim, nos ensaios os jovens se tornavam e eram, ao mesmo tempo,

tornados jogadores. Como pianistas que “não precisam construir mãos para tocar,

mas levam anos e anos criando mãos pianistas” (“fortes, destras, calibradas no

espaço, com uma extraordinária precisão”), os praticantes do futebol no bairro

Universitário não precisavam construir pernas para jogar, mas transformá-las em

“pernas de jogadores” (fortes, ágeis, rápidas e lépidas).121 Para isso era necessário

dedicação, era necessário um esforço invisível. Para transformar gestos grotescos e

desajeitados em habilidade futebolística, como quem bricola o futebol no corpo, a

repetição não só era fundamental, como também era inovadora, ou seja, ela era

prenhe de invenção. Compreendendo a aprendizagem como imersão e invenção,

Kastrup (2005, p. 1278), ajuda a refletir sobre esse processo:

A sedimentação do aprendizado ocorre por intermédio da repetição e do ritmo de um treino que se dá por meio de um conjunto de sessões consecutivas e regulares. O sentido do treino é criar um campo estável de sedimentação e acolhimento de experiências afectivas122 inesperadas, que fogem ao controle do eu. A regularidade das sessões tem como efeito a criação de uma familiaridade com experiências de breakdown/pertubações e enfim, o desenvolvimento de uma atitude cognitiva e atencional ao plano

121 Depraz, Varela & Vermersch, 2003, p.100 citado por Kastrup, 2005, p 1278. 122 Afectiva como algo que afeta o sujeito/corpo, sendo por ele incorporado.

Page 121: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

121

das forças. O processo começa com esforço, por intermédio de uma atitude consciente e intencional, mas que se torna, com a prática, espontânea e initencional.123

Nas múltiplas maneiras de jogar futebol, os jovens praticantes iam realizando

ensaios como exercício de iniciação, de permanência e também de especialização

no futebol. Mas a falta de tradição de considerar essas práticas, como práticas de

aprendizagem, tornava invisível essa constituição da habilidade futebolística. Além

disso, esses praticantes as intercalavam com a participação em outros futebóis.

4.2.6 - “Igual urubu na carniça”: iniciantes no jogo

No cotidiano do Universitário, a presença de iniciantes, iniciados e veteranos

na mesma prática futebolística era regularidade. Na EECJP, nas ruas, na Praça de

Esportes e no campo de futebol, jovens que, em um dia, ensaiavam e/ou assistiam

ao jogo, como de fora, no outro já eram iniciados como jogadores de futebol. A

entrada em campo — na maioria das vezes para compor o time ou cobrir a falta do

goleiro ou por amizade com algum participante — era um ponto de partida para a

prática: quando o grupo avaliava e re-posicionava o jogador em relação aos demais

praticantes.

Uma vez dentro do jogo de futebol, os iniciantes — que na maioria das vezes

corriam de um lado para o outro, seguindo a trajetória da bola — participavam de

algumas jogadas. Ficando com as “migalhas”, a sua tarefa parecia ser apenas

“compor” numericamente o grupo e garantir a disputa entre “iguais” que o esporte

prega. Assim, ficava visível em todos os jogos de futebol observados no bairro, até

nos que ocorriam na escola, a posse de bola dos mais experientes, que também

jogavam muito tempo entre si. [...] Os alunos da sexta série chegam à quadra para a aula de Educação Física, rapidamente. Muitos meninos pegam  as  bolas  (deixadas pelo professor na  quadra  após  a  aula  anterior)  e começam a  chutar de um  lado para o  outro. Outros  iniciam a divisão dos  times de  futebol, convocando alguns colegas. Dois meninos brincam de chutes a gol. Três meninas rebatem a bola  de  vôlei. O  professor  chega  e  avisa:  “— Na  primeira  parte  da  aula,  a  quadra  é  dos meninos”. Depois passa a interferir na divisão dos times.  Os jovens fazem uma disputa (par 

123 Contrária à noção de que a aprendizagem que se faz sobre o corpo não envolve invenção, Kastrup (2005, p. 1278 – 1279) recorre à origem latina da palavra: invenção (invenire) significa compor com restos arqueológicos. Quanto ao exemplo do pianista, a autora afirma que as mãos “não são uma invenção ex-nihilo nem se definem por seu aparato biológico”. “Elas (que se definem pela destreza, firmeza, precisão e perícia de movimentos dos dedos) são cuidadosamente produzidas”. [...]

Page 122: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

122

ou  ímpar) pela posse de bola e o  jogo é  iniciado. O professor  faz a chamada e depois passa a observar os alunos. Os jovens têm pouco domínio de bola, desse modo, o jogo caracteriza‐se por uma correria atrás da  bola:  jogadores  se  embolam  em  campo  de  jogo. De  repente  um  goleiro  “leva  um  gol  de frango” e alguns colegas do time reclamam. Quando leva o segundo gol, o goleiro é substituído e, sob as muitas reclamações dos colegas, passa a jogar na linha. Um dos jovens que reclama (o que mais bravamente o repreende) ocupa o seu  lugar. Algum  tempo depois de sair do gol, o jovem volta a jogar nessa posição. Agora com a ajuda do colega que antes o repreendera, coloca uma bola fora do foco do gol e recebe elogios e incentivos.  Como  os  times  são muito  desiguais  em  termos  de  habilidade  futebolística,  o  jogo  acontece basicamente de um dos lados da quadra (todos em torno da bola). Do outro lado o goleiro senta ao  chão  e, de vez  em quando, passa a  jogar na  linha. Dois meninos do mesmo  time  trocam passes  em direção  ao gol  (driblam  os  colegas). Outro  jogador,  antes de  realizar  o passe,  faz passagens do pé em torno da bola (“pedaladas”).  Alguns  jovens dominam o  jogo o tempo todo (têm a posse de bola). Outros correm tentando uma oportunidade de participar das  jogadas  (de “tocar a bola”), mas quando  se aproximam dela têm dificuldade para dominá‐la e acabam perdendo a posse de bola. Apenas 05 meninos não participam do jogo de futebol na quadra. Pergunto a um deles sobre o porquê de não estar jogando e ele responde: “— Não gosto. Não posso. Tenho ossos de vidro. As vezes eu jogo”. Do lado  de  fora  do  jogo,  dois  jovens  passam  a  fazer  embaixadas:  disputam  quem  faz  mais. Algumas  meninas  rebatem  bola  de  vôlei  na  lateral,  outras  ouvem  música  no  celular.  O professor apita (é hora do jogo de queimada das meninas). Os meninos saem do espaço de jogo: passam a ocupar as laterais da quadra e a brincar de futebol com outra bola disponível. [...] 

Mesmo assim, os iniciantes participavam do futebol de forma intensa. Poucas

vezes ficavam alheios ao que acontecia em qualquer parte do campo. Portanto

ficavam aguardando, em movimento no campo, uma oportunidade para receber

passe, “tocar a bola”, ou realizar uma jogada a gol — oportunidade em que poderiam

alcançar credibilidade no grupo. Cumprindo papel pouco definido no jogo, pouco

requisitados pelos pares e com pouca marcação dos adversários, muitas vezes, os

iniciantes pareciam perdidos, exceto quando estavam no gol, ou seja, em posição

mais definida. A singularidade dessa participação foi notada também pela

necessidade que tinham de olhar para a bola na hora de “tocá-la”, na dificuldade de

dosar agressividade e força, no menor controle do corpo/jogo. Participar do jogo de

futebol não significava, portanto, igualdade de habilidade e de posse de bola. Como

explicou Damo (2005, p. 154):

O domínio das técnicas propriamente futebolísticas é condição para que alguém seja notado no jogo: para que receba passes dos seus parceiros de time, denotando confiabilidade; para que faça gols, o que o tornará célebre; para que desarme os adversários, o que fará com que estes o evitem como sparing para floreios e humilhações; enfim, é preciso aperfeiçoar a técnica para assegurar uma boa

Page 123: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

123

performance no conjunto, deixando de ser o último a ser escolhido, [...].

A dificuldade de simultaneamente abordar a bola e perceber as ações de

parceiros e adversários fazia com que os iniciantes a “despachassem” rapidamente

em qualquer direção (como quem se livra de um fardo) e os destacava. “Tensos” e

“eretos” (na relação com a bola/outro), esses jovens preferiam os passes rápidos

aos dribles, à condução de bola a outros confrontos com os adversários. “Tocando”

a bola “de dedão” ou com outra parte do pé/corpo, iniciantes tinham o gol como foco.

Portanto, a dificuldade de domínio fazia com que, muitas vezes, a bola tocasse o

corpo e não o inverso. Era uma bola “espirrada” e não conduzida. Desse modo, a

chance de que ela chegasse a um parceiro era menor.

Nos jogos de futebol com um grande número de iniciantes (por exemplo:

jogos dos alunos das séries iniciais, nas aulas de Educação Física) havia uma

característica básica: a centralização na bola. Portanto, onde estava a bola estava a

maioria dos participantes. Como Biruga (treinador do Racing) explicou:

O adulto, ele pega aqui e vira lá do outro lado. No adulto, a bola é que corre mais. Por exemplo, eu vou apitar um jogo de juvenil eu perco uns três quilos; adulto eu perco um quilo e meio, dois, porque é mais cadenciado, tum, tum, tum, eles tocam mais a bola. E os meninos não, parece até um, se não tiver uma coisa técnica, eles vão onde a bola vai.Fica igual urubu na carniça. Então aquele que tem uma colocação melhor faz três, quatro, cinco, brincando [...] (Grifos meus).

Distante do futebol “verdadeiramente absorvente”124 (as competições), os

iniciantes participavam dos jogos diários dispersos pelo bairro. Como coadjuvantes,

realizavam “tarefas periféricas, menos complexas e menos vitais” para o andamento

da prática (LAVE e WENGER, 1991, p. 96), ou seja, tinham pouca responsabilidade

em relação ao resultado do jogo e contribuição singular no seu andamento.125

Assim, por exemplo, impediam que a bola chegasse ao alvo/gol por estar

posicionados na trajetória ou mesmo por chutar a bola que “sobrou” na sua área de

gol para o outro lado do campo. Entretanto não eram poupados de xingamentos

124 Utilizando os temos de GEERTZ (1978), DAMO (2005, p. 154) estabelece analogia entre o jogo de futebol no Brasil e a briga de galo em Bali. 125 Nas aulas de EF da EECJP eles ocupam a quadra (em diferentes posições) quando jogavam com colegas da “mesma” faixa etária. Nas brincadeiras de futebol na rua as posições no jogo dependiam da configuração do grupo: quando jogavam com jogadores maiores e menores; no Projeto Social, eles eram participantes periféricos, pois o grupo comportava jogadores mais habilidosos.

Page 124: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

124

(DAMO, 2005, p. 154) — o que levava muitos a ficarem nervosos e chutar a bola

para frente rapidamente. Acontecia também que nem todos ficavam conformados

com o tipo de participação possibilitada. Além das tensões, reclamavam do formato

excludente da prática social: “—Vocês é que não passam a bola”. Mas logo

aprendiam que os conflitos faziam parte do jogo e que não deveriam jamais ser

levados para fora do contexto.

De outro modo, relações de poder e camaradagem entre jogadores de idades

e habilidade diferentes demarcavam o quadro da aprendizagem. Assim, algumas

vezes, quando os experientes percebiam que estava ao gol um jovem iniciante (ou

muito menor), chutavam a bola com menor força e determinação. Isso não acontecia

quando estava no gol um colega maior ou habilidoso. O mesmo podia ocorrer em

relação aos dribles. Fazer um drible bonito em um jogador habilidoso parecia ter

mais sentido do que fazer em iniciantes (o que não significa que não ocorressem). O

que fica evidente é que havia muitos tipos de futebol (futebóis) e muitas formas de

agir como iniciante, iniciado e veterano (e de relacionamento entre eles).

No Universitário havia contextos pedagógicos de aprendizagem do futebol,

que não eram hegemônicos. No bairro, a “relação específica mestre/aprendiz” não

era característica “onipresente da aprendizagem” (LAVE e WENGER, 1991, p. 91).

Ao contrário. Nem mesmo na escola o futebol era aprendido, predominantemente,

nessas relações. Os iniciantes aprendiam nas interações com os mais experientes

(que também estavam em processo de aprendizagem), numa relação circular e de

reciprocidade — um jovem participando do aprendizado do outro.126 Conforme

explicaram Pelé e Brunão (dois jovens praticantes assíduos do futebol) era ao jogar

futebol com os mais velhos que se aprendia mais o jogo:127 “— Eles fala assim, você tem só que ficar calmo, você não pode apavorar, porque você joga bem, toda mão os cara fala, toda mão

126 Para MATURADA e VARELA (2005) a aprendizagem é um processo contínuo e circular. Segundo os autores, como seres inacabados, estamos sempre aprendendo: conhecer e viver são sinônimos. 127 Pelé (12 anos) é um jovem iniciante que ampliou a participação no futebol no bairro no ano de 2005. Praticante do futebol na aula de Educação Física, passou a jogar também no recreio. No segundo semestre Pelé ingressou no Projeto Social Esporte Esperança/Segundo Tempo, ocasião em que foi escolhido para participar do time mirim do Racing. Brunão (16 anos), que já havia ultrapassado os contextos de produção de futebol vivenciados por Pelé quando iniciei a pesquisa em 2005, foi ampliando a participação no futebol de várzea e se inseriu num grupo de pelada dos jovens mais velhos que ocupavam o campo de futebol do Racing todas as tardes. Em 2007 voltei ao bairro para realizar uma triangulação de dados e fui informada sobre vários jogadores do time juvenil do Racing que obtiveram acesso ao Júnior. Brunão foi um deles.

Page 125: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

125

que eu já joguei, se to jogando bola, fazendo alguma coisa, vendo jogo, sempre eles fala...”. (Pelé)

Eliene – Onde é que você acha que mais aprendeu? Brunão – Ah, jogando peladinha com os caras mais velhos. Eliene – Ah, é? Por que? Brunão – Porque lá eles ensinam você a tocar. Você faz, vamos supor, você joga no ataque, eles ensinam você como que é, ensina você a tocar, ensina você a bater também, apanhar. Eliene – Ah, tá. E eles te ensinam isso como, falando toda hora? Brunão – Não, jogando mesmo. Eles falam, você olha aí e vai vendo como que é. Você observando e aprende.

Logo os aprendizes iam alterando a participação por meio do envolvimento

direto e crescente na prática (LAVE e WENGER, 1991). Não participavam, portanto,

de um tipo de jogo específico, separado ou diferente. Engajados na sua produção,

eles é que participavam do futebol de forma diferente. Como afirmam Lave e

Wenger (1991, p. 110) tinham “amplo acesso aos ambientes de prática, mas pouca

demanda de tempo, esforço e responsabilidade”, em relação aos veteranos.

Contudo é importante ressaltar que o valor da participação dos iniciantes crescia na

medida em que se tornavam mais aptos à prática, ou seja, quando aprendiam

facetas do jogo, ampliavam possibilidades de ação e de intervenção nas práticas de

outros iniciantes, servindo como modelo ou dando orientações pontuais à execução.

Cada aspecto da habilidade futebolística era assim repassado pelos/aos membros

da prática social na prática — o que não se dava de maneira mecânica. No futebol a

aprendizagem era interminável e compartilhada. Para compreender o que

fundamentava esses contextos de futebol no bairro, como sugere Schérer (2005, p.

1990-1991), é necessário passar “a um outro domínio”, não mais do laboratório

pedagógico escolar, mas o da própria vida.

No esporte (contexto em que a competição é inerente), a aprendizagem é

condição de permanência, mas os fracassos consecutivos geram exclusão. Quem,

durante algum tempo, apresentasse as mesmas dificuldades, ia perdendo a

confiabilidade/credibilidade e ficando cada vez mais esquecido/excluído das

jogadas, até ficar à margem do jogo. Em vista disso, o engajamento na prática

futebolística podia culminar em nova forma de participação (sinônimo de

aprendizagem), mas também gerar exclusão.128

128 Observação importante nesse sentido é o fato de que, mesmo as turmas da EECJP tendo mais ou menos o mesmo número de alunos, eram as turmas de 5ª, 6ª e 7ª série que realizavam jogos de

Page 126: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

126

Uma característica marcante do futebol (dos esportes em geral) são os

mecanismos velados de exclusão. Assim, no bairro Universitário aos jovens do sexo

masculino que tinham dificuldade de progredir/aprender, a participação não era

negada abertamente. Mas ficavam “gelados” até que resolvessem abandonar o jogo.

Para suportar tal processo (condição de permanência no futebol) era preciso

desenvolver outras disposições. Conforme explicou Pelé (um jovem que em 2005,

conseguiu ampliar a participação nas práticas de futebol, estabelecendo-se como

jogador do time de futebol mirim do Racing), o importante no futebol era não perder

a calma: “Tem gente que já fica nervoso, já não quer jogar mais. Mas, ninguém vai

aprender sem jogar futebol não. Você não pode ficar nervoso. Você tem que ter

calma.”

Cansados dos processos de seleção/exclusão a que eram submetidos e do

que significava ser escolhido por último (sinal de inaptidão) ou mesmo do tipo de

participação possibilitada aos iniciantes que demoravam a constituir habilidade,

alguns participantes iam se ausentando dos contextos de produção do futebol.129

Essa situação podia se tornar dolorosa e marcava profundamente os jovens que

optassem pela não-participação. Mais do que o manejo da bola, o que estava em

questão era a própria identidade dos aprendizes. Como afirma Maturana (2001,

p.123) aprende-se “de uma outra ou de outra maneira na convivência com outros

seres humanos”. Contudo “o conhecimento tem a ver com as ações consideradas

adequadas em um domínio particular” e depende da pessoa “aceitar entrar nesse

espaço de convivência no qual uma outra conduta vai ser a conduta adequada”

(MATURANA, 2001, p.124).

Alguns jovens “preferiam” assistir aos jogos nas arquibancadas da escola

(contexto em que a presença era obrigatória), ausentando-se de outros contextos.

Isso foi o que ocorreu com Michel em 2005. Esse jovem que participou do Projeto

Esporte Esperança/Segundo Tempo apenas no período em que as turmas estavam

com poucos alunos, ou seja, quando o treino consistia em exercícios para

desenvolver técnicas específicas do futebol (chutes, passes, dribles, condução, etc.).

Com dificuldade de acoplar a bola ao corpo e de se relacionar com os demais

futebol com maior participação de times e jogadores de fora. Nas séries finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio poucos jovens se candidatavam à participação no futebol como de fora. 129 Isso não significava não-participação no universo futebolístico. Muitos jovens optavam por outras formas de engajamento na prática social (LAVE e WENGER, 1991).

Page 127: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

127

praticantes, Michel saiu do Projeto quando houve expressivo aumento do número de

alunos e os treinos voltaram a ser no formato de jogo.130

Outros jovens do bairro também tinham dificuldade de participação no

futebol.131 A diferença entre eles era que, enquanto uns desistiam do jogo (e

pagavam um preço por isso, conforme se verá no item sobre a identidade), outros

persistiam. Para esses jovens, a possibilidade de inserção no futebol estava

intimamente atrelada ao conhecimento dos contextos em que podiam se produzir

como jogadores/participantes. A participação nos jogos de futebol em aulas de

Educação Física (onde as chances de participação eram um pouco mais evidentes),

era uma estratégia usada por jovens excluídos em algum contexto.132 Outros

intensificavam ensaios de futebol dispersos pelo bairro para produzir condições

(habilidade) para o jogo. Contudo é importante dizer que não era só a habilidade que

estava em questão. Participar das sociabilidades juvenis que se produziam no

futebol (encontros de conversa, compartilhamento de identidades e interesses e por

brincadeiras) era extremamente importante para a entrada e permanência na

prática.

Ao contrário daqueles para os quais o jogo era rotineiro e envolvia, dentre

outros aspectos, ludicidade e sociabilidade, aprender para alguns jovens era

sinônimo de trabalho árduo. Com esses acontecia o que diz um ditado muito

presente no contexto esportivo: “— É preciso suar a camisa”. Para entender como

esses processos podiam se tornar difíceis e principalmente sobre a cotidianidade da

aprendizagem do futebol, segue o relato de Mário (auxiliar do professor no projeto)

sobre a aprendizagem de um aluno do Esporte Esperança/Segundo Tempo: [Alberto era] bem ruinzinho. Não tinha muita noção, e assim... começou na hora que eu entrei no projeto [...], acho que seis meses depois ele entrou, e nós percebemos que realmente... o Lúcio falou “— Não, nós vamos ter que fazer um trabalho com esse menino”. Aí... e ele tinha, e ele era tão indeciso que não sabia se ele queria

130 Conversei com Michel sobre as ausências no Projeto. Nessa ocasião ele me contou que havia recebido um bilhete do professor que, ao explicar sobre o número elevado de participantes, o excluía do Projeto. Posteriormente conversei com o auxiliar do professor no Esporte Esperança/Segundo Tempo sobre as ausências de Michel — quando fui informada que Michel parou de ir aos treinos do grupo (estava infreqüente). 131 A saída de Michel (e de outros jovens) das práticas de futebol no campo do Racing e a ausência no futebol das aulas de Educação Física não eram, entretanto suficientes para definir a exclusão total no universo do futebol. Outras formas de engajamento na prática, como era o caso daqueles que se envolviam no futebol como torcedores, constituíam outros tipos de participação na prática social. 132 Ainda que jogar com colegas da mesma idade não significasse homogeneidade, a escola era um lugar que aumentava a possibilidade de experimentação do futebol para iniciantes.

Page 128: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

128

ser goleiro, se ele queria ser jogador, jogar na linha. Aí com o trabalho, a técnica que o Lúcio dava pra ele, a gente percebeu que ele foi melhorando, melhorando, melhorando. Também ele não ficou assim, bom, bom aquele jogador maravilhoso, mas ele melhorou bastante. O chute dele, o chute dele melhorou bastante, começou a chutar até mais forte pro gol. [...] Conseguiu melhorar, conseguiu pegar aquele embalo com os meninos, conseguiu sair, porque ele dava muita bobeira e ficou mais esperto. Não fazia aquele drible, não tinha igual esse que eu te falei, esse tinha uma facilidade tremenda de driblar, de passar a bola... (se refere a outro jovem do projeto). Ele não tinha isso, ele foi adaptando depois que ele entrou no projeto, foi a partir de vários trabalho. (Grifos meus)

Superar o medo de errar e ganhar visibilidade no grupo/jogo era fundamental

para que os iniciantes saíssem dessa condição. Mas era com a prática/participação

que os jovens que raramente recebiam/tocavam a bola passavam a ser requisitados

no jogo. De “pegadores de restos” (ou seja, aquele que corre pra lá, corre pra cá e

que, mesmo estando sem marcação, quase não recebe passes) alguns jogadores

passavam a participantes das situações de emergência, quando apenas eles

estavam livres de marcações no jogo. Começar a se distinguir dos demais iniciantes

era fundamental para ser solicitado pelos membros do grupo no jogo.

Quando os jovens conseguiam compartilhar da prática do futebol de forma

mais equilibrada e competente, começavam a ser percebidos pelos pares como

possíveis parceiros do jogo. Deixando para trás a condição de quase “ornamento”

necessário à composição do time, começavam a constituir um tipo de participação

mais efetiva no jogo — conseguindo se posicionar melhor no campo e aprendendo a

“tocar a bola” (o que não envolve apenas o gesto em si, mas uma ação afinada com

outros). Adquiriam, pois, certa visibilidade. Com a participação crescente, em que

“entendimento e experiência” estavam em constante interação ou eram mutuamente

constitutivos (LAVE e WENGER, 1991, p. 52), os jovens que entraram no jogo para

“cobrir” a falta do goleiro ou de outro jogador iam deixando a “de fora” quando

melhoravam a atuação. Isso envolvia mudança no sujeito: da forma de falar, de

andar, de correr, de se movimentar com e sem a bola, de se relacionar com os pares

e de se situar no contexto da prática.

Desvelando e incorporando a prática, alguns iam passando a ser escolhidos,

deixando para trás a posição de participantes periféricos, enquanto outros iam sendo

Page 129: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

129

deixados de lado nos processos de seleção dos grupos.133 Era, entretanto o

“investimento corporal no tempo” que demarcava a fronteira entre “participantes

ocasionais e regulares” (WACQUANT 2002, p.164). Obstinados em participar do

jogo, alguns jovens buscavam novas formas de engajamento no futebol, enquanto

outros podiam demorar mais tempo ou mesmo sair da prática antes que a mudança

da participação que caracterizava a aprendizagem ocorresse.

4.2.7 - “A tendência dele é melhorar”: aprendendo na prática social Com a habilidade em constituição, os jovens do bairro Universitário

ampliavam a participação no futebol. Buscando espaço entre jogadores mais velhos,

alguns já se permitiam enfrentar as tensões do futebol no recreio escolar e em

outros contextos do bairro (o que não era uma regra). Esse era o caso de Pelé,

jovem que tinha “compulsão” pelo jogo: [...] “Eu brinco muito com minha família, a minha família é grande tem muitos meninos, e nos brinca junto, toda mão na quadra”.[...] “Não, mas igual na Educação Física, na Educação Física não, nós já tira par ou impar, senão o Denis [o professor] mesmo escolhe o time, de vez quando tem gente assim, aí ele vai escolhendo um, dois, e vai escolhendo assim”. [...] “Mas tem uns meninos lá na favela que gostam de jogar futebol, igual eu, e nós joga, só fica brincando, mesmo na chuva nós joga. [...] Na lama nós tá jogando. [...] Na mesma hora que um cai assim, todo mundo começa a rir, é muito bom. [...] É, mas quando eu chego muito sujo lá em casa, minha mãe me xinga todinho”. [...] “Joga adulto também com nós, tem vez que eu jogo até com os cara grande lá da favela, os cara já maior, eles fala você quer jogar? Eu falo, quero; aí eu jogo lá com eles”. [...] “Lá na favela a gente põe uma plaquinha assim, porque os carros passa lá, mas tem vez, aí nós joga lá, aí na hora que os carro passa nós pára, e aí nós fica jogando lá”. “Eu gosto de jogar mais em campeonato, porque em campeonato eu já fico mais é empolgado para jogar, porque está valendo alguma coisa, aí você fica mais querendo jogar”. [...] “Eu jogo mais é na quadra com os meninos ali, naquela quadra ali de areia lá em cima”. [...] “Agora eu tô treinando também lá no Bola na rede. [...] (Grifos meus)

Participando de forma diferente, esses jovens permaneciam mais tempo no

jogo e ocupavam menos a de fora. Constituir um desequilíbrio harmonioso,

aparentar certa naturalidade, como menor esforço para realizar as jogadas, eram

requisitos importantes para serem aceitos como parceiros do futebol, mesmo que a 133 Como observa Damo (2005, p. 162), “os resultados (aprendizagem) aparecem, em alguns mais rapidamente e mais claramente, enquanto noutros parecem não evoluir e assim vão se produzindo as diferenças, as hierarquias, uns vão ser os primeiros a ser escolhidos, outros deixados de lado”.

Page 130: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

130

participação exigisse muito mais. Além disso, a prática continuada permitia que

fossem se tornando mais capazes de responder às demandas do jogo. Como

afirmou Biruga, com a prática, esses jovens começavam “a participar mais do jogo, a

entrosar mais”.

É importante salientar, entretanto, que ainda não se tratava de veteranos e

que as formas de participação não eram fixas, mas negociadas continuamente nos

diferentes grupos. Pelé, por exemplo, era um praticante que deslocava de posição

de acordo com o contexto. Quando jogava com os colegas nas aulas de Educação

Física, participava das jogadas mais importantes, recebia/dava muitos passes e

orientava a participação de outros jovens. Quando jogava futebol no recreio e no

Projeto Esporte Esperança/Segundo Tempo (contextos compostos por jogadores

habilidosos), participava mais vezes como goleiro, recebia/dava poucos passes,

raramente participava de uma jogada com gol e recebia orientações constantes dos

outros jogadores.

Nesses contextos futebolísticos, a comunicação (com gestos e fala) era um

tipo de atividade. O recorte de um trecho do diário de campo permite visualizar o

modo como a comunicação, inerente aos contextos de futebol, fundamentava a

aprendizagem: [...] Na aula de Educação Física da sétima serie o jogo de futebol segue acirrado na quadra.[...] Um  jovem  faz um  passe  longo/alto  para um  colega  do  outro  lado  da  quadra. O  jovem  que recebe a bola  tenta dominá‐la  levantando o pé, mas não  consegue  (a bola  chega alto demais para esse tipo de abordagem). O jovem autor do passe imediatamente grita: “— Não tem peito não?” [...]. Outro jovem diz ao colega que fez o passe: “— Você joga forte demais viado” [...].  Com gritos, palmas, gestos e outras formas de sinalização (de jogadas e de

jogadores a passar a bola, por exemplo), a comunicação, no campo, era a base do

jogo. Portanto, aprendê-la era fundamental. Jovens que mergulhavam na prática

aprendiam uma linguagem específica e, com ela aspectos importantes do futebol.

Exemplos de falas recorrentes nos contextos de jogos de futebol mostram como as

orientações entre praticantes ocorriam (e eram parte) no jogo: “—Vamos ganhar

esse jogo”; “—Joga que nem homem, porra”; “— Cruza a bola”; “— Cuidado com o

ladrão”; “—Lança para o gol”; “— Pedala”; “— Dá o sangue, caralho”; “— Calma.

Protege a bola”; “— Chuta”; “— Que canetada, véio!”; “— Aqui!”; “— Passa a bola”;

“—Dá um bicão”; “— Como que você perde uma bola dessa, meu filho”; “— Chega

junto”; “—Toca a bola”; [...].

Page 131: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

131

Aprendidas concretamente as regras faziam parte das práticas lingüísticas do

jogo. Jamais na forma escrita, até na escola, as regras eram tornadas públicas,

aprendidas e (re)produzidas nos diferentes jogos de futebol do bairro. “— Falta!”, “—

A bola é nossa”, “— Mão”, [...] são exemplos das ações pautadas em regras que

compunham os jogos.

Mas no futebol era tão importante aprender o que era permitido falar quanto o

que também era preciso silenciar. A comunicação estabelecida no campo de jogo

possuía regras e preceitos morais. [...]Tem que conversar, tem que gritar. Jogador tem que conversar, mesmo que fale palavrão, aqueles palavrões, por isso que eu já falo, não é igreja, mas também vamos respeitar o adversário. Evita falar o nome da mãe, tem uns nomes que eu não gosto, você desculpa o termo, porra, caralho, pega aqui, não sei o que... faz parte. Faz parte, é tipo você ta xingando o cara, tem hora que você desabafa, as vezes o cara acha que você ta xingando ele e não ta, você ta desabafando. (Biruga) (Grifos meus)

Mais do que falar sobre a prática, a comunicação estabelecida em campo

(como linguagem corporal ampla) permitiam que os praticantes fossem

organizando/estruturando a prática social, orientando-se e aprendendo nela. Nesse

processo não havia formas especiais de discurso a ser dirigidas aos aprendizes,

mas uma linguagem partilhada no grupo, que Lave e Wenger (1991) denominam

falar de dentro. Como explicam os autores (1991), falar de dentro inclui as trocas de

informações necessárias ao andamento das atividades, quanto falar sobre, como

estórias, tradições da comunidade. Na prática compartilhada, ambas as formas de

falar desempenham funções específicas. Para os iniciantes o propósito não é,

portanto, aprender a falar como um substituto da participação (LAVE e WENGER,

1991). Na participação periférica legitimada a prática lingüística é um tipo de

atividade, ou seja, iniciantes distanciam-se dessa forma de participação, quanto

mais se aproximam dos modos de agir e falar dos veteranos (ou participantes

plenos).

Nesse processo de participação/aprendizagem do futebol, como afirmou

Biruga, a atenção era fundamental: Fundamental, demais, não é pouco não, é muito. Porque o menino que é atencioso, ele se passa ser inteligente, igual aquele ditado, toda pessoa curiosa aprende. Não é isso? Toda pessoa curiosa e

Page 132: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

132

atenciosa. Vai ver o cara fazer uma mágica ali, às vezes não é mágica, é um trem bobo. Um dia eu tava na Praça Sete, o cara tava fazendo um negócio, o menino olhando, olhando pra aprender. O menino foi lá e levantou a camisa do cara e puxou a caneta com o cadarço. O menino viu. O menino tava de lado, nós que somos adultos não vimos. É igual o menino. O cara bateu na bola, ele [disse]: “— bateu de três dedos [com os dedos laterais do pé], não bateu de cadarço [com o peito do pé] não Biruga. Bateu de três dedos, né Biruga”. Por isso é que eu falo, menino atencioso vai embora, é igual a pessoa curiosa, ele aprende rapidinho, não é isso? Porque é atencioso, tem vontade, né? (Grifos meus)

O modo de compreender a relação entre atenção e aprendizagem, relatado

por Biruga — em que a atenção é vista como qualidade individual que promove a

aprendizagem — é recorrente na cultura. Na escola, por exemplo, vários são os

mecanismos que visam o favorecimento da atenção para a aprendizagem. Assim, a

organização do espaço escolar com a colocação dos alunos em carteiras

enfileiradas, as janelas acima do alcance da visão dos alunos, etc., visam favorecer

o foco/atenção do aluno no professor.

A noção de educação da atenção proposta por Ingold (2001), entretanto,

possibilita outra forma de abordar esse processo. Ultrapassando essas noções

convencionais de atenção e de aprendizagem, Ingold (2001, p.142) afirma que a

educação da atenção (ou processo de afinação/coordenação do sistema perceptual)

é a própria aprendizagem e que esta se situa na prática.134 Desse modo, a qualidade

da atenção é equivalente ao que o autor (2000, p. 414) — apontando a performance

musical — chama de feeling (“tocar é sentir”). Para Ingold (2001), agir é prestar

atenção, ou seja, “a atenção do agente é totalmente absorvida na ação”. Diz o autor

(2001, p. 133): As várias capacidades dos seres humanos de arremessar pedras a jogar “cricket ball”, de subir em árvores a subir escadas, de assobiar a tocar piano, emergem através do trabalho de maturação dentro do campo da prática constituída pela atividade de seus predecessores. Não faz sentido perguntar se a capacidade para escalar está no escalador ou na escada, ou se a capacidade para tocar piano reside no pianista ou no instrumento. Essas capacidades não existem nem dentro do corpo e cérebro do praticante nem fora no ambiente. Elas são especialmente propriedades de sistemas estendidos ambientalmente que atravessam/cruzam o corpo.135

134 Sobre a aprendizagem da atenção, ver também Kastup (2004). 135 Tentando escapar às dicotomias entre organismo e ambiente, Ingold aposta na relação como fundamento de uma abordagem ecológica (Velho, 2001).

Page 133: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

133

Não aceitando a atenção como capacidade previamente estabelecida, Ingold

(2001, p.138, 139) considera que os movimentos/ação e seus ajustamentos às

diferentes situações constituem um processo de atenção. As contribuições do autor

(2001), associadas às observações de campo, permitiram-me entender a

incorporação da habilidade futebolística136 — entendida como responsividade de

“movimentos para as condições do entorno que nunca são as mesmas de um

momento para o outro” (INGOLD, 2001, p. 21) – como um tipo de educação da

atenção, e não o contrário. Portanto, os iniciantes só se tornavam praticantes

habilitados quando eram capazes de afinar continuamente seus movimentos

segundo as perturbações do ambiente (INGOLD, 2000, p. 415).

Conseguir acertar o tempo da bola, aprender a cabecear (de olho aberto), a

chutar com mais precisão e força, a fazer manobras do futebol (canetar, chapéu,

pedalar, etc.), enfim, ter melhor relação com a bola em jogo era fundamental para

que os jovens se afirmassem como praticantes. Mas isso não era tudo. A habilidade

futebolística é mais complexa e mais sutil. Ela exige a incorporação de um tipo de

atenção que permite ao praticante perceber aspectos do jogo não visíveis ao

iniciante/outsider. A amplitude e complexidade da prática social (futebol) e os muitos

aspectos que os praticantes precisavam aprender podem ser observados nos

implícitos dos relatos de alguns praticantes: Talvez o que entra na escolinha a tendência dele é melhorar, mas ele não é um menino igual aquele menino que já vem pro campo de várzea onde o contato é mais forte (bate com as duas mãos para exemplificar), que o choque é mais forte. Não é igual escolinha onde não tem briga, não pode ter nada, não tem discussão, não pode xingar. (Denis) (Grifos meus) Ah, se tiver eu e o goleiro, eu chuto pro gol. [...] Sem goleiro, eu ando até eu chegar perto, aí eu chuto, mas se tiver vindo alguém eu tento driblar, senão eu toco, nó, você não pode demorar muito com a bola, senão o cara vem fortão, e chuta a bola fortão, aí fica ruim”. (Pelé) (Grifos meus) O jogo é coletivo, que não é individual, ele tem que ser rápido, tem que ter raciocínio rápido, isso aí tudo você vai botando na cabeça dele, até o raciocínio dele rápido, raciocínio rápido é o seguinte,

136 Na mesma linha de argumentação, Kastrup (2005, p. 1277-8) recorre a Deleuze e Varela para afirmar que aprender é antes “uma questão de invenção que de adaptação”. Usando o exemplo da música, a autora relata que “a habilidade musical não é meramente técnica, nem visa a um adestramento muscular e mecânico. Está envolvida aí a aprendizagem da sensibilidade, o que significa a aprendizagem de uma atenção especial que encontra a música, deixando se afetar por ela e acolhendo seus efeitos sobre si”.

Page 134: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

134

se chegou em você, você já sabe onde você vai jogar, você já sabe como é que [...]. Então isso tudo eles vão aprendendo. (Biruga) (Grifos meus)

Constituir um corpo capaz de enfrentar “as divididas” e de jogar com o outro

(parceiros e adversários) em diferentes contextos eram características importantes

para que os jovens se tornassem veteranos. Todavia perceber os próprios

movimentos, perceber os movimentos dos outros jogadores e agir (prontamente) em

campo, parecia óbvio apenas para os jogadores experientes. Os iniciantes tinham

dificuldade de captar os indícios do corpo dos outros praticantes e de antecipar

ações. Às vezes, mesmo quando chegavam a percebê-los, não conseguiam, em

tempo hábil, antecipar-se ao outro. Mas, para os praticantes veteranos/habilidosos, a

bola e o corpo dos outros praticantes eram quase uma extensão do próprio corpo.

Isso porque a percepção os permitia “obter características críticas do ambiente” que

os iniciantes simplesmente falhavam em notar (INGOLD, 2001, p.142). Nesse caso,

o que estava em questão era aprender e aprender a partir da percepção das

diferenças. Como afirma Bateson (1986) não existe aprendizagem (ação) sem a

percepção da diferença, ou seja, o processo de conhecimento é um processo

comparativo. Os relatos possibilitam compreender também, que não estava em jogo

no futebol a assimilação passiva de um programa motor definido, mas a

aprendizagem de uma relação, da qual era preciso considerar a dinâmica inteira: eu,

a bola, o outro, o contexto.

Participando do futebol de forma mais qualificada (o que significava a

incorporação de certas maneiras de se relacionar entre experientes e aprendizes,

certas práticas lingüísticas e o domínio da ação) e em contexto mais amplo, os

jovens iam ganhando visibilidade e podiam até conseguir oportunidade de jogar em

times de várzea — a primeira “peneira”.137 Observados nas práticas cotidianas de

futebol alguns eram convidados para os times de futebol infantil/juvenil do Racing:

Cadu, Schiva, Brunão, Pelé, por exemplo, foram selecionados para jogar na várzea.

Mas esses jovens não jogavam futebol, com foco na aprendizagem. Eles

buscavam a participação. Como pude observar nos jogos de futebol, a

aprendizagem era uma conseqüência do engajamento na prática. Do mesmo modo, 137 No bairro alguns jovens que iam se habilitando no jogo — quando superavam os processo de seleção e as hierarquias da várzea — adentravam o futebol amador (Infantil, Juvenil, Junior). Essa inserção podia se converter, ainda que muito remotamente, em possibilidade de ganhar visibilidade para adentrar o futebol profissional (caso esses jovens fossem vistos/selecionados por “olheiros” nesses contextos).

Page 135: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

135

a mudança no modo de participação (ou a movimentação para a participação plena,

como propõem Lave e Wenger, 1991), que significava aprendizagem, significava

também maior responsabilidade: com o resultado do jogo, com o processo de

colocação de outros iniciantes (o que já não era mais o seu caso), com a produção

da prática, etc.

É importante ressaltar que jogar não constituía a única atividade futebolística.

O futebol é plural e a habilidade constituída no jogo era uma dimensão da

participação na prática. Portanto, no bairro Universitário, a circulação de

conhecimento/habilidade não se restringia à participação como jogador, ainda que

essa fosse a que mais dava status aos praticantes. O currículo de aprendizagem do

futebol envolvia outras formas de engajamento e a participação periférica não

ocorria apenas no jogo. Aprendizagens de juizes, de treinadores e de auxiliares, etc.

também ocorriam cotidianamente.138 Contudo, um tipo de engajamento era

unanimidade para os jovens e outros não praticantes do futebol: o envolvimento

como torcedor. No bairro esse tipo de engajamento podia ser observado no uso de

adereços dos clubes esportivos, nos intermináveis debates sobre os campeonatos

(estadual, brasileiro, etc.), na circulação de jocosidades entre torcedores de clubes

profissionais (não só diferentes, mas rivais) que recriavam a disputa em outros

tempos e espaços sociais.139

138 Neste trabalho não faço descrição das aprendizagens que ocorrem a partir desses outros modos de engajamento no futebol. Ainda que essa seja uma tarefa importante, optei por descrever mais detidamente a constituição da habilidade futebolística do jogador, por ser o principal exercício de aprendizagem dos jovens praticantes no bairro. 139 Sobre a paixão clubística no Brasil ver Toledo, 1996; Damo, 2005, Silva, 2005.

Page 136: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

136

4.3 - Futebol para poucos: “especialização” 4.3.1 - A entrada para os times de várzea: formas de recrutamento

A escolha de jogadores para compor os times de futebol de várzea no bairro

Universitário era um processo permanente, sistemático e perceptível (embora não

fosse de todo explícito) que se intensificava em determinados meses do ano, com a

aproximação do campeonato de futebol amador (a Copa DFA).140 Nessa ocasião,

olheiros dos times de várzea (como o treinador Biruga) se dedicavam à busca de

novos membros para os times e ao treinamento dos jogadores: Conheci Biruga (no seu ofício de descobrir  jovens para compor os times  infantil e  juvenil do Racing)  em meados de 2005 nas  imediações da EECJP. Com motivações distintas  e papel  e caneta nas mãos, ele e eu observávamos o mesmo  jogo de  futebol de um grupo de  jovens, em uma aula de Educação Física. Acompanhando uma aula que acontecia na Praça de Esportes em frente à escola, já que a quadra da escola estava ocupada com as atividades de outra turma, comecei a notar a presença e as intervenções de um homem, num jogo de futebol dos alunos. Sentado em um degrau próximo à quadra, chamando muitos jovens pelo nome e perguntando os nomes daqueles que não conhecia, ele zombava/brincava com os que já conhecia, convocava para o treino do time Juvenil,  jovens que estavam participando da aula (“— Quarta‐feira às quatro  horas”)  e  também  para  o  amistoso  do  final  de  semana  (“—Sábado  se  ganhar  tem lanche”). Observando o jogo, Biruga também convidava outros jovens, que se sobressaiam no futebol, para participar do treino dos times infantil e juvenil do Racing. Após a aula, enquanto conversava com alguns jovens, fui informada de que Biruga era treinador do Racing e estava recrutando jovens para os treinos de futebol do time infantil/juvenil e, conseqüentemente, da Copa de Juvenil de Futebol Amador da cidade. Nesse mesmo dia, no trajeto da escola para casa, encontrei Biruga em frente à banca de revista nas imediações do campo de futebol. Apresentei‐me e falei do interesse em acompanhar os treinos e os jogos do Racing no campeonato. Biruga consentiu prontamente para observações das práticas.141 Rotineira, a seleção de jovens para jogar no Racing (Infantil/Juvenil) era feita

pelo treinador. Algumas vezes, Juliano (seu auxiliar) também participava desse 140 A Copa DFA tinha um calendário específico e agregava muitos times juvenis de futebol de várzea da cidade de Belo Horizonte. Para inscrição na Copa DFA, o critério básico era ser do sexo masculino e, ter a idade entre quinze e dezessete anos ou, como diziam os “nativos”, os nascidos em: “88, 89, 90”. Contudo, algumas vezes, era possível “fazer gato”, ou seja, inscrever um jogador que tinha mais de 17 anos indicando idade inferior, a partir do uso de documentos de outros jovens. 141 Nos meses que sucederam ao primeiro encontro com Biruga, acompanhei o time juvenil do Racing em todos os treinos, nos jogos amistosos no seu campo e em 06 jogos oficiais do campeonato juvenil de futebol da cidade: Racing X Cachoeirinha; Racing X Tupinense; Racing X Tupinambá; Racing X São José Operário; Racing X Águia Dourada; Racing X Saga. Não pude, entretanto, ir ao sétimo jogo do time — quando ele foi eliminado do campeonato. Conversando com alguns alunos/jogadores na escola eles me informaram sobre alguns acontecimentos que fizeram com que o time fosse desclassificado. Segundos eles, no último jogo da primeira fase do Campeonato, houve um erro da equipe técnica do Racing e a entrada de Humberto no jogo (um dos jogadores que acumulou dois cartões amarelos no jogo anterior) provocou a perda de 06 pontos e, consequentemente, a desclassificação.

Page 137: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

137

processo.142 Contudo ele geralmente “captava” jogadores, no cotidiano do bairro,

para participar das categorias inferiores. Por exemplo, para jogar no Racing Mirim: No  jogo  de  futebol  dos  jovens  do Projeto Esporte Esperança/Segundo Tempo, no  campo  do Racing, Lúcio  (professor)  intercala momentos de observação e silêncio com  intervenções que servem como reforço positivo aos jogadores: “—Boa Baiano”. No entorno do campo é intenso o movimento  de  pessoas  que  circulam  ou  que  assistem  ao  jogo.  Quem  passa  pelo  campo, geralmente  faz algum comentário sobre o  jogo de  futebol.  Isso é  também o que passa a  fazer Juliano, quando chega às  imediações do campo do Racing. Observando o  jogo dos  jovens do Projeto,  ele  inicia  uma  série  de  comentários  (em  tom  alto):  “—Tijolo.”;  “—Eh,  Gilberto! Cascalho.”;  “—Eh,  domina...”;  “—Pingue‐pongue  em  Clevinho!”;  “—Leva  você.”;  “—Se tocar está  impedido”.  Juliano participa/observa atentamente, e, de repente, comenta com um jovem  ao  seu  lado:  “—Aquele menino  é  bom!”.  Refere‐se  a  Pelé,  jovem  que  está  entre  os participantes mais novos do grupo. Depois  Juliano grita a um  jogador do Projeto  (irmão de Pelé que  joga no  time do Racing): “—Marcos,  traz ele sábado”  [para participar de um  jogo amistoso do Racing Mirim].  Semelhante a um grande funil, o campo esportivo não comporta grande parte

dos interessados na inserção, nem mesmo no futebol de várzea. Menor ainda é o

número de praticantes do futebol que chegam ao profissionalismo. Como uma

pirâmide, no esporte quanto mais próximo ao ápice (esporte de rendimento) maior é

o processo de exclusão/seleção.

Muitos dos jovens que participavam do futebol do bairro jamais iriam

experimentar, portanto, um jogo oficial (na posição de jogador) nas competições de

futebol amador da cidade. Sinônimo de reconhecimento e de oportunidade de

superação das condições materiais em que viviam esses jovens, a participação

nesses contextos tinha dupla perspectiva. Inicialmente, garantia aos

jovens/praticantes certo status no bairro.143 Além disso, funcionava como

possibilidade de ser visto por “olheiros” que selecionam jogadores para treinar nos

clubes de futebol profissional. O futebol de várzea era, portanto, mais que atividade

física e que contexto de encontros, de ludicidade e de compartilhamentos. Tema de 142 A forma como Juliano participava nas práticas futebolísticas do bairro o colocava como um veterano no futebol (tinha conquistado respeitabilidade com os jovens) e como um iniciante/aprendiz de treinador de futebol de várzea. Participando perifericamente das práticas junto a Biruga no Racing, fazendo tarefas periféricas na organização/treinamento do time Infantil e Juvenil do Racing, Juliano trilhava passos na aprendizagem dessa atividade futebolística. Simultaneamente à constituição das práticas futebolísticas dos jogadores em campo, Juliano ia desenvolvendo a sua participação e constituindo habilidade de treinador. 143 Economicamente desfavorecidos, os jovens do bairro Universitário (e entorno) viam no futebol, esporte mais “acessível” a seu grupo social, possibilidade de ascensão social e também de consumir bens matérias e simbólicos, de conhecer lugares, de constituir fama, etc. No cotidiano, enquanto falavam sobre a possibilidade de profissionalização, os jovens tinham como pauta de discussão o salário de profissionais, como Ronaldinho e Ronaldo, etc.

Page 138: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

138

muitas conversas entre eles, a inserção no circuito de várzea (em competições)

afirmava certa habilitação para o jogo (motivo até de orgulho para os jovens, que, no

futebol afirmavam também a masculinidade) e significava a possibilidade de ser

escolhido para treinar em times/clubes, como o Atlético, o Cruzeiro ou o América.

Considerando os critérios básicos de participação (idade e sexo), muitos

jovens poderiam participar desse contexto de produção do futebol no bairro.

Contudo a composição dos times, que impunha um limite nítido entre quem era de

dentro e quem era de fora, revelava os elementos da prática que os jovens

precisavam conhecer para ser escolhidos e participar dos times de várzea do bairro.

A seleção tinha como uma das referências iniciais as técnicas futebolísticas

propriamente ditas e o tipo físico dos jogadores para cada posição de jogo: ataque,

defesa, meio de campo e gol. Conforme relato de Biruga, que foi endossado por

Denis (o professor de Educação Física da EECJP), para jogar na várzea é preciso

ter um bom “passe, o domínio, a boa colocação e a conduta do lado de fora [do

campo de jogo]”: A primeira coisa que hoje em dia eu olho muito e ensino os meninos... nos amadores, eu olho a conduta do atleta dentro e fora do campo. [...] eu olho no domínio do menino, é o passe e o domínio, o jeito que ele bate na bola, a conduta dele dentro de campo, na matéria de colocação dele dentro de campo, o lateral, o meio campo, o zagueiro, o goleiro. [...] Tem um menino que chuta forte, tem outro que tem boa colocação, tem outro que tem medo, tem outro que já mais habilidoso, porque a várzea não é igual ao profissional, o campo é de terra, tem que olhar o condicionamento, existe a bebida, existe a droga, por exemplo, um jogador que você precisa dele e ele chega drogado, como é que você vai fazer? (Biruga - treinador do Racing) (Grifos meus) Você pega, todo olheiro de futebol vai olhar isso, a habilidade do menino primeiro, todo olheiro de futebol vai olhar isso a habilidade, ele olha lá, esse menino sabe, ele pega o menino e lapida o menino. (Denis) (Grifos meus)

Para transpor o limite da participação nos jogos cotidianos de futebol e

conseguir oportunidade na várzea, era necessário, entretanto, mais que isso. Era

importante que o jogador já tivesse aprendido outros aspectos da prática social. O

recrutamento de jogadores para a várzea possuía um critério básico: o domínio dos

fundamentos do jogo, aspectos que os jovens desenvolviam nas interações

cotidianas de futebol no bairro. Mas, também eram exigidas outras disposições

corporais relacionadas à disciplina e a hábitos de vida. Conforme indicaram Biruga e

Page 139: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

139

Denis, o processo de seleção funcionava também como uma aposta na formação

futebolística dos jovens que penetravam no contexto de futebol de várzea. A

participação no futebol pressupunha, pois, uma aprendizagem feita pela imersão.

4.3.2 -“Joga na lateral que seu futebol vai render muito mais”: a várzea como contexto especializado

Uma vez selecionados, os jovens começavam a participar dos treinos do time

do Racing, na categoria correspondente à sua faixa etária: de 14 a 15 (Infantil) e de

16 a 17 (Juvenil).144 Nesse contexto um pouco mais especializado, regulamentado e

competitivo, os iniciantes ingressavam numa lógica de organização do futebol que

se estruturava pautada no “rendimento”.

Diferente das práticas de futebol às quais os jovens tinha acesso no cotidiano

do bairro, a participação na várzea pressupunha formalidades (assiduidade,

freqüência, pontualidade e orientação de um adulto), proibições (usar adereços

como bonés; jogar descalço; etc.), punições e formas de regulação do corpo

ausentes em outros contextos (controle dos horários, dos hábitos de vida, etc.).

Funcionando como contexto de preparação/organização do grupo para os

jogos disputados pelo Racing, os treinos de futebol que Biruga conduzia tinham

orientações, execução de alguns exercícios (física) e jogos de futebol propriamente

ditos. Havia, portanto, um currículo de formação que dosava os elementos da prática

a ser disponibilizados aos praticantes. Mas era sobretudo do jogo de futebol que

saíam os jogadores. Era a dinâmica do futebol, com todos seus aspectos

contingentes, que dava suporte à aprendizagem. Um know-how constituído na

prática, no corpo (VARELA, 1992; INGOLD, 2000).

Nos treinos que ministrava, Biruga misturava jogadores diferentes quanto à

categoria (Infantil e Juvenil) e à habilidade: iniciantes, iniciados e veteranos. Isso não

significava, contudo, nivelamento do grupo em termos de obrigações e

responsabilidades. Diferentes dos veteranos, que já possuíam um lugar “definido” no

time do Racing, independentemente da participação nos treinos, ou dos iniciados,

que “podiam” até faltar, os iniciantes tinham freqüência obrigatória em todos os

144 É importante ressaltar duas questões: primeira, que em ambas as categorias podem ser admitidos jovens com a idade inferior (jovens de 13 anos no Infantil e de 15 anos no Juvenil); segunda, que Biruga dava preferência à seleção de jogadores mais novos (do Infantil) – àqueles que poderiam participar mais tempo do processo de formação no futebol de várzea com ele.

Page 140: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

140

treinos.145 Era por meio dos treinos que eles galgavam a participação nos jogos

amistosos e, posteriormente, no campeonato de futebol amador da cidade. O treino

era, portanto, o primeiro passo para o futebol de várzea. Iniciantes que dele se

ausentavam não podiam ser selecionados para os jogos amistosos da sua categoria.

Eram raros os casos de jogadores que não passavam pela etapa dos treinos.

Funcionando quase como um novo ponto de partida, era no treino que o

treinador mais atentamente observava as características dos iniciantes (biótipo para

ocupar determinadas posições, resistência física para a várzea, manejo com a bola,

interação com os pares, e, finalmente, a habilidade futebolística e o possível

aproveitamento no grupo). Como um maestro que compõe e afina a orquestra,

Biruga organizava os times testando em campo as posições dos jogadores

iniciantes, posicionamento que, uma vez definido, “determinava” a posição de cada

jogador nos jogos amistosos e campeonatos.

A definição das posições de jogo, portanto, pode ser entendida como início do

processo de especialização.146 Se antes os jovens (mesmo tendo preferências)

transitavam, de acordo com o contexto de jogo, entre diferentes posições de campo,

a participação na várzea exigia a aprendizagem (ou “lapidação”) de dada posição.

Na especialização, os iniciantes tinham o campo de ação reduzido, o que produzia

não só outro modo de jogar (outra relação com tempo e espaço), mas outra

compreensão do jogo. A escolha da posição de jogo (defesa, meio campo, ataque e

gol) e a aprendizagem do posicionamento em campo não eram, entretanto, tarefas

simples e podiam alterar significativamente a performance do jogador. Nesse

processo, a participação do treinador tinha caráter definidor, conforme explicou

Cadu: Nóh, eu estava jogando, eu jogo no meio, como eu vou disputar esse campeonato agora amador, e junior, é mais pesado e no meio, minha estatura, ele falou assim, “— Cadu, no meio é difícil você ganhar a bola, porque no meio é muita gente alta e tudo, joga

145 Cadu, Schiva e Luiz Henrique são exemplos de jogadores do Racing Juvenil que não compareciam aos treinos. Eles (que estavam no limite da faixa etária da categoria e pleiteavam vaga no Júnior) resistiam a participar dos treinos, mesmo sabendo da sua importância. 146 Escolinhas de futebol também podem ser interpretadas como contextos mais especializados. Pelé, por exemplo, falou sobre a importância dos treinos na escolinha de futebol Bola na Rede para o seu aprendizado e para a escolha da sua posição de jogo: “ —Aí antes eu jogava no meio, aí eu fazia muito gol aí o professor falou, não, você está fazendo muito gol então você tem que jogar mais na frente. [...] Aí ele falou, você tem que jogar mais na frente”. Contudo é importante ressaltar que escolinhas de futebol não eram contextos hegemônicos de participação dos jovens no bairro e no seu entorno.

Page 141: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

141

na lateral que seu futebol vai render muito mais. Você já é habilidoso e tem preparo, você jogando nas laterais, nas beiradas, onde tem menos gente, vai jogar na lateral e seu futebol vai render mais ainda”.[...] Foi, ele que me deu essa dica de jogar na lateral, aí eu, quer dizer, eu nem estava jogando no júnior ainda não, aí eu fui jogar no juvenil com ele pela lateral, fui jogando e tal, aí o Edson, que está mexendo com o junior, agora me chamou pra disputar esse campeonato como lateral, viu eu estou jogando como lateral, viu que rendeu mais e me pôs, porque o meio também é muito concorrido, o meio e o ataque tem muitas pessoas. (Cadu) (Grifos meus)

Uma das tarefas que mais consumia a atenção de Biruga no treino era o

posicionamento do grupo em campo de jogo.147 O posicionamento motivava a maior

parte de suas intervenções e, conforme explicou Cadu, podia alterar a participação

dos jovens no futebol.

Nesse contexto regido pela “especialização”, não era difícil perceber a

participação de iniciantes: menor domínio do jogo, pouca participação nas jogadas,

tendência de retenção da bola (jogadas individuais), saída constante da posição de

campo que devia ocupar. Isso fazia Biruga, repetidas vezes, esbravejar com aqueles

que ainda não haviam aprendido a jogar em dada posição. Nesse contexto era

possível encontrar também jogadores que ainda não entendiam muito bem a

especificidade do futebol de várzea, aspecto que Biruga constantemente explicitava

e reforçava: “— Não é pra fazer um jogo bonito, é pra ganhar o jogo.”

No treino o desafio de todos os jogadores, sobretudo dos iniciantes, era

conseguir certo nível de integração com o grupo. Para isso, eles tinham de aprender,

o mais breve possível, a se situar em campo e a identificar/conhecer o jogo dos

outros praticantes, para obter uma relação profícua e afinada de interação.

Paralelamente, deviam também aprimorar as possibilidades de uso do próprio corpo

(por exemplo: desenvolver a bilateralidade no manejo com a bola), constituir e

refinar posições de jogo e disposições corporais e “lapidar” os gestos. Porém isso

exigia muita prática (“suar a camisa”) e não era aprendizagem constituída apenas no

treino. Conversando com Schiva sobre as possibilidades de aprendizagem do jogo,

ele explicou que o futebol é um conhecimento prático, aprendido no fazer. Em seu

relato, reiterou a importância de treinar e de jogar, para a aprendizagem do futebol:

147 Sobre a formação tática do time do Racing em campo, o treinador esclareceu: “Eu jogo no 442, eu jogo só no 442; dois laterais um pouco adiantados, um zagueiro sobrando, um cabeça de área que sai mais, dois meia e dois atacantes; um mais fixo e um saindo mais”.

Page 142: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

142

No treino a gente também procura fazer isso, sempre estar aprimorando o máximo que a gente pode, porque a gente não precisa aprimorar naquilo que a gente já é bom, a gente tem que aprimorar naquilo que a gente ainda tem dificuldade, igual agora eu até estou melhor, mas eu tinha uma dificuldade de chutar com a perna esquerda e tocar com a perna esquerda. Mas agora não, agora eu já chuto com a perna esquerda, já toco, lanço tranquilamente, e isso a gente aprende com, a gente só aprende futebol jogando, não tem como aprender futebol olhando, tem sempre que estar jogando. (Schiva) (Grifos meus)

A maneira com que cada um ia se iniciando na prática (coletiva) era singular e

o treino era apenas o “pontapé inicial”. Nele, contudo, os iniciantes deviam

convencer os pares da importância da permanência no grupo e o treinador da

necessidade de continuar investindo na sua participação. Para os que conseguiam

comunicar isso (um tipo sutil de comunicação não-verbal) e que conseguiam

inserção, ia se descortinando a constituição da habilidade.

Na várzea os jovens ingressavam, pois, num tipo de contexto em que a

seleção era permanente. Iniciada quando eles eram escolhidos para compor

determinada categoria, estendia-se no decorrer da participação na prática social e

se desdobrava nas diferentes etapas e nas mínimas ações cotidianas. Para

permanecer, os iniciantes tinham que demonstrar habilidade suficiente para gerar

constantes promoções: ser escolhido para compor o time principal nos treinos, para

ser titular nos jogos de sua categoria, para compor a reserva na categoria superior,

para entrar no jogo de veteranos em dado momento. Todo esse processo de

participação era desencadeado pela ocupação de uma posição específica de jogo: o

banco de reservas.

4.3.3 - “Eu botava infantil na reserva do juvenil”: a organização da aprendizagem

Convidado para ocupar, no Racing, a categoria da sua faixa etária, os jovens

começavam a aprender novo esquema de participação. Assim, passavam por outro

processo de iniciação. Quase como quem retorna à de fora (apenas em grau mais

elevado, que dava a impressão de um processo de aprendizagem espiralado), os

iniciantes, na reserva, passavam por uma etapa de transição, que funcionava como

porta de entrada e modo de avaliação e recolocação. Isso porque, era no banco de

reservas dos jogos amistosos que os iniciantes tinham a primeira experiência na

várzea. Era nessa condição que participavam dos jogos amistosos, até que

Page 143: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

143

estivessem preparados para experimentar situações rituais do futebol (sempre

desafiadoras e muitas vezes até hostis).

Mas o treinador só colocava na reserva aqueles jovens que tinham potencial

de participação no jogo. Escolhendo os pares e o momento exato de investir nos

iniciantes (reservas), ele buscava formas de inserção que não extrapolassem a

habilidade (o que poderia causar a frustração de ser excluído pelos pares no jogo) e

que não comprometessem o resultado do jogo. Desse modo, Biruga continha esses

jogadores até que estivessem “preparados para um próximo passo” (LAVE e

WENGER, 1991, p. 92).

Quanto mais iniciante fosse um jovem em dada categoria, menor era a

chance de substituir um jogador titular no início do jogo, pois isso podia

comprometer o seu andamento. Geralmente a entrada desses iniciantes ocorria no

segundo tempo, quando o ritmo era menos intenso, quando podiam encontrar

adversários cansados, quando podiam impor novo ritmo de jogo ao próprio time.

Mas as substituições eram motivadas pelo rendimento dos jogadores em campo e

pelo objetivo do jogo. Um titular, por exemplo, podia ser substituído por um iniciante

quando estava com baixo rendimento em campo e o iniciante se apresentava com

uma alternativa para o treinador, quando o treinador queria poupá-lo para um jogo

mais importante ou quando o treinador queria testar um iniciante. As substituições

não eram, entretanto, sempre bem recebidas pelos titulares. Ser substituído por um

iniciante colocava em risco a posição do jogador.148 Conforme explicam Lave e

Wenger (1991, p. 115), há contradição entre participação periférica legitimada e o

deslocamento inerente ao processo: quando participantes plenos são substituídos

por iniciantes que estão se transformando em veteranos. Segundo os autores, essa

tensão entre “continuidade e deslocamento é a contradição básica da reprodução,

transformação e mudança social”. Nas palavras de Lave e Wenger (1991, p. 115): Conceder participação legitimada para iniciantes (com seus próprios pontos de vista) introduz na comunidade de pratica toda a tensão da contradição entre continuidade e deslocamento. Portanto, o iniciante pode se considerado como alguém que interfere na comunidade provocando mudanças. [...] Tornar-se participante pleno não acontece num contexto estático.

148 Nesse sentido o futebol se aproxima do boxe. Como afirma Wacquant (2002, p. 99) “cada vez que sobe no ringue, mesmo que seja para se ‘desenferrujar’ com um iniciante”, o boxeador põe em risco a sua posição.

Page 144: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

144

Como reservas, os iniciantes experimentavam o futebol de várzea numa

condição de participação atenuada, em relação aos titulares. Em vista disso, com

menos responsabilidade, os iniciantes engajavam-se na prática social para entendê-

la. Esse tipo de participação — na qual o aprendiz “ocupa um papel particular à

margem de um processo maior” e que Lave e Wenger (1991, p. 23) denominam de

participação periférica legitimada — fornecia aos “iniciantes muito mais que um

posto de vigia observacional”. Envolvidos em uma forma de aprendizagem, os

aprendizes tanto absorviam a cultura da prática quanto eram absorvidos por ela

(LAVE e WENGER, 1991, p. 95).

O banco de reserva era contexto de participação dos iniciantes em todas as

categorias. Por exemplo: titulares do Infantil tornavam-se reservas do Juvenil;

titulares do Juvenil tornavam-se reservas do Júnior. Na várzea, como se vê, as

categorias não eram rígidas e permitiam sempre a participação de jogadores mais

novos. Nas situações de disputa/competição o treinador colocava os titulares de

uma categoria no banco de reservas da categoria imediatamente superior para

“pegar experiência”:

Eu levava os meninos, eu botava infantil na reserva do juvenil porque você não pode usar todos. Por exemplo, o juvenil vai disputar um campeonato amador, certo? O juvenil joga no domingo, eu pegava os meninos do infantil, botava pra jogar, aquele que sobressaía melhor no jogo ia pra reserva no domingo. (Biruga)

Acreditando que a experiência dos jogadores iniciantes em jogos dos

veteranos gerava aprendizagem, o treinador organizava a participação. Isso porque

quando veteranos, iniciados e iniciantes estavam jogando juntos, os iniciantes

tinham acesso a um tipo de jogo em que os pares eram mais experientes e em que

a prática do futebol era mais complexa. O jogo era mais corrido, dinâmico e

despertava mais tensão; os jogadores eram maiores, mais fortes e mais habilidosos.

Esse processo foi explicado por Schiva e Pelé: A gente sempre está procurando acompanhar os times de maior idade do Racing, sempre você aprende uma coisinha ali, aqui que te ajudam no futuro, igual quando a gente acompanhava o jogo do junior, quando a gente era juvenil, a gente sempre estava indo em jogo do junior e a gente via que no junior o contato é mais forte, você tem que chegar firme pra você não estar machucando, se você chegar de corpo mole, jogando no junior você machuca muito rápido, tem que estar sempre pegando firme pra, chegue bem posicionado.Tem que ter uma certa malandragem pra poder jogar

Page 145: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

145

no junior porque eles chegam mais firmes, os jogadores já tem mais maldade, são maldosos. Não é igual no juvenil que é menino, os garotos da minha idade, alguns que estão começando agora, alguns nunca jogaram em outros time e tal, e aí o junior é mais difícil. Mas o juvenil também tem uma certa dificuldade mas o junior é mais difícil do que o juvenil. (Schiva) (Grifos meus) Eu fico no banco no infantil. Quando o infantil tá faltando aí eu fico no banco, mas no mirim eu não fico, no fraldinha, tem vez, só quando tem muito menino pequeno aí eu não jogo, mas quando tá faltando ele vai lá e põe eu. É só eu que ele põe porque eu sou o menor, aí ele põe eu. Mas no mirim eu não fico não, porque no mirim é só menino do meu tamanho.[...] Não, eu acho que todo mundo tem que jogar um tempo, quando eu tô no banco eu jogo só um pouquinho, mas eu não ligo pra isso não. (Pelé)

Acompanhando o grupo, como reservas, e assistindo aos jogos dos times

maiores, os jovens estabeleciam aproximações com a prática e, como quem “come

um prato quente pelas beiradas”, iam incorporando a prática social. No futebol de

várzea, transitavam em diferentes categorias (a sua, uma superior e até uma inferior

nos treinos). Desse modo, a aprendizagem se dava não só em vários contextos

(treinos, amistosos e competições), mas também no cumprimento de papéis

diferentes (jogador reserva e jogador titular).

Enquanto os titulares ocupavam o campo e participavam diretamente do jogo,

no banco de reservas outros jogadores permaneciam de prontidão para entrar em

campo substituindo jogadores da sua posição específica, ou até mesmo de outras

posições. É o que afirma Brunão (reserva do juvenil): “de vez em quando [...], faltava

gente e, de vez em quando, tinha um na minha posição, aí ele colocava eu também

[...] na lateral”. No banco de reservas não ficavam, entretanto, apenas iniciantes.

Também era possível encontrar jogadores titulares com lesões ou punidos por

algum tipo de indisciplina, como não respeitar uma definição tática do treinador ou

não respeitar regras básicas que fundamentavam a participação no grupo. Desse

último aspecto, duas situações podem servir de exemplo: a) Isaque (meio de campo)

foi substituído num jogo por fazer seguidas jogadas individuais (“floreio demais”),

amplamente recriminadas pelo treinador; b) Cadu, jogador importante do ataque, foi

substituído por não atender às indicações do treinador para cruzar a bola na hora da

cobrança da falta. Biruga tinha indicado as posições dos jogadores e mandou Cadu

“cruzar” a bola para a área. Como Cadu chutou direto ao gol, Biruga logo gritou: “—

Não bate mais”. Depois de alguns minutos Cadu foi substituído.

Page 146: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

146

O tempo de permanência na reserva (significativo para a aprendizagem) não

era fixo. Alguns permaneciam algum tempo e obtinham oportunidade de pequenas

entradas no jogo. Outros, uma vez testados no jogo, mudavam de posição

imediatamente. Brunão, por exemplo, oportunamente, substituía jogadores titulares

do juvenil nos jogos da Copa DFA. Jogo do campeonato amador Juvenil: Racing X Saga

 [...] Depois do  intervalo,  os  jogadores do Racing  e do Saga voltam  a  campo de  jogo para  o segundo  tempo. Quase não ocorrem alterações no ritmo do  jogo e nos “esbravejamentos” de Biruga com os jogadores. Juliano acompanha as jogadas e, quando elas ocorrem na área do gol de  seu  time,  é  enfático: “—Não  faz  falta. Abre  os  braços.” Desde  o primeiro  tempo  alguém solta bombinhas no entorno do campo, perto do espaço onde concentram os jogadores reservas do  time do Saga. Em um dado momento uma bombinha  é atirada ao  campo  e  explode num espaço  onde  não  há  jogadores.  Biruga  irritado  ameaça:  “—Se  soltar  bombinha  eu  vou conversar com os meninos dali oh.” (Tenta colocar medo em quem solta as bombinhas dizendo que vai chamar os jovens — tidos como “da pesada” — da comunidade). Brunão é colocado no aquecimento  por  Biruga.  Enquanto  Brunão  faz  alongamentos  e  pequenos  saltos,  Biruga  o orienta: “—Brunão, não deixa aqueles [atacantes] rebater não”. Os jovens da arquibancada, jogadores  do  infantil  e  torcedores  que  acompanham  o  time,  fazem  coro:  “—Brunão... Brunão...”. Ele entra em campo sorrindo e com o peito  inflado  [parece orgulhoso]. O  jogo segue no mesmo ritmo: maior posse de bola dos jogadores do Saga; várias ameaças de gol sem sucesso no Racing. Os jovens do Racing estão desarticulados e raramente conseguem levar a bola até a área do time adversário. Biruga senta, levanta (xinga) o tempo todo.[...]  Diferente de Brunão (15 anos), para Cadu (17 anos) uma entrada em campo

de jogo (em um time de várzea de outro bairro) foi o suficiente para que se firmasse

como titular da sua posição: No Suzana foi engraçado que eu fui lá pra jogar a primeira vez com um colega meu, um colega meu que me levou lá pra jogar. Aí estava dentro do vestiário na hora de escalar, falou assim: Quem joga no meio? Eu fui e levantei a mão e mais um menino. Assim, não é discriminando, mas o menino não tinha porte de jogar bola, era gordinho. Aí ele falou assim, mais alguém? Aí eu falei, nó, que isso, nós dois. Mais alguém? Não tinha não. Ele pôs o menino. Não, ta certo que era a primeira vez que eu estava indo, só que eu acho que ele devia ter me colocado pra testar. O menino entrou, jogou bem o menino. Ele falou assim, quero que você entre e que você faça aquilo que aquele menino fez. Eu, beleza. Entrei no segundo tempo, dei um passe pro gol e fiz um gol, o menino ficou doido. A partir daí ele me deixou lá e quis que eu fosse de qualquer jeito, fiquei um tempão jogando com a dez [camisa 10] lá. Jogava no meio, o quê que é isso, nó, foi bom demais. (Cadu) (Grifos meus)

Page 147: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

147

O modo de organização do futebol — deixando implícito que o que faz

aprender era participar (ou co-participar) de contextos de veteranos — parecia

presente na maneira como os jovens futebolistas percebiam a própria experiência: É porque eu tenho uma boa conduta, eu respeito muito os meus treinadores. O Biruga, por exemplo, ele me ensinou muita coisa no futebol, porque no futebol você tem que ter uma malandragem pra jogar, pra não machucar sempre, porque tem muitos jogadores que são maldosos, aí com o Biruga, eu joguei com o Biruga, joguei com o Valdo, eu sempre procuro estar escutando pessoas mais velhas do que eu no futebol pra sempre eu estar num nível bom pra eu poder estar jogando em outros times, não ficar num time pequeno”. [...] A gente treinava toda segunda, quarta e sexta. Tinha treino dos meninos menores e terça e quinta tinha treino dos meninos maiores, que eram meninos que tinha na época 17, 18 anos e a gente tinha 12, 13. Segunda, quarta e sexta a gente treinava e terça e quinta eram os maiores e ele sempre pedia pra eu ir ou na terça ou na quinta pra mim poder estar jogando com os meninos maiores pra mim poder estar. Ele já me preparando pro futuro próximo que ajudou, que me ajudou bastante no futebol, que eu sempre joguei uma categoria acima da minha. (Schiva) (Grifos meus)

A aprendizagem do futebol — cujos movimentos do corpo só podiam ser

“aprendidos completamente em ato” (WACQUANT, 2002 p. 78) — se efetuava no

bairro Universitário de modo prático e coletivo. Os iniciantes jamais eram

isolados/ilhados no seu processo de formação. Mergulhados no contexto da prática,

estavam sempre em contato com futebolistas mais experientes. Esse modo de

organização do futebol de várzea permitia que eles gradualmente constituíssem uma

idéia geral da prática, uma visão do que era a atividade e do que existia para ser

aprendido (LAVE e WENGER, 1991). Esse esboço da atividade exigia entender

quem estava envolvido; o que eles faziam; como os mais experientes falavam,

agiam e geralmente conduziam suas vidas; como as pessoas que não faziam parte

da prática interagiam com ela; o que os aprendizes precisavam “aprender para que

se tornassem participantes plenos”. Não se tratava, entretanto, de uma visão da

prática “congelada nas impressões iniciais”. No futebol de várzea o entendimento se

dava (e mudava) com a mudança na forma de participação (LAVE e WENGER,

1991, p. 95).

No banco reservas os jovens iam galgando lugar no time e o indício de que

estavam aprendendo era diretamente proporcional ao aumento do tempo de

participação nos jogos. De modo contrário, nesse contexto a exclusão funcionava

Page 148: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

148

com uma falta de investimento na participação. Ambígua, a reserva tinha duplo

significado: era porta de entrada (contexto de habilitação/aprendizagem dos

jogadores iniciantes em dada categoria) e de saída do circuito do futebol de várzea.

Quem não correspondia às exigências da prática ou não apresentava indícios

de progressão era excluído. Esse era um processo que podia ocorrer, de pelo

menos, duas maneiras: exclusão pelos pares/grupo; exclusão pelo treinador.

Segundo Biruga, os jovens que não correspondiam às expectativas da várzea eram

percebidos pelo grupo e nele começava o processo de exclusão: “— Porque você

querendo ou não, eles falam no vestiário quando você encontra com eles, eles

falam, ah, Biruga, não põe aquele cara não, aquele cara é ruim, Biruga [o

Jorginho]”. Concordando com esses jovens, Biruga reiterou:

Se você prestar atenção num menino, não sei se você viu o menino jogando, o Jorgino, um gordinho que me acompanhava, o irmão do Marcos Vinicius. Ele pegava a bola pra mim, ele acompanhava o time, onde que o time ia ele pegava a bola [era goleiro], ele comprou chuteira, ele já vendeu a chuteira, ele desistiu. Tem outra coisa que atrapalha ele, ele é obeso e isso atrapalhou ele muito, e ele não tem jeito de emagrecer. E ele não é bobo, ele era ruim, e os meninos falavam, õ, Jorgino você é ruim demais, aí ele falou, não Biruga, eu só vou com o time agora pra pegar bola. E ele comprou uma chuteira Umbro, o pai dele deu a ele uma chuteira boa, entendeu, e ele não foi pra frente. (Grifos meus)

No futebol (concebido também como um projeto de vida) os jovens investiam

tempo, energia (dedicando-se à prática cotidiana, aos treinos e jogos amistosos e de

campeonatos) e até dinheiro (comprando equipamentos para jogar, como chuteiras,

caneleiras, etc., pagando lavagem de camisa do time quando estavam no Infantil).149

Mas o investimento tinha que se conciliar com uma mudança na forma de

participação (rendimento/aprendizagem).

Quem entrava no circuito de várzea logo aprendia que a exclusão não era

possibilidade remota, mas parte do processo — mesmo porque havia espaço para

poucos. A exclusão dos jovens do futebol de várzea era, entretanto, na maioria das

vezes, velada, implícita. Muito raramente acontecia de um jogador ser despachado

149 Não se pode dizer que no universo do futebol de várzea não havia barreiras materiais propriamente ditas. Para participar do Infantil do Racing (ao contrário da participação no Juvenil) era necessário que o jogador pagasse a lavagem da camisa após o jogo (R$2,00 por jogo). Entretanto um jogador excepcional dessa categoria podia ser liberado do pagamento, caso o treinador visse vantagens na participação com o grupo.

Page 149: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

149

sumariamente. Somente em situações extremas, como indisciplina. Uma eliminação

que acontecia em “doses homeopáticas”. Para a exclusão, novamente a reserva era

acionada.

E pra ele chegar ali você já vai pegar ele completo. Tamanho não é documento, mas influi, passe, domínio, colocação, vontade. Isso tudo você vai tirar dele pra ele sair do infantil pro juvenil. Ou então se você precisar mandar o menino embora, você poe ele na reserva do juvenil, aos poucos você vai mandando ele embora. Ele não entra, ele vai sentindo, ele vai sentindo, aí ele pega e sai. [...] Por exemplo, eu vou tirar o menino do infantil pra botar ele no juvenil, eu tenho um juvenil formado, vão estourar dois ou três, eu já tenho uma base, dessa base vão estourar aqui seis ou oito, que são titulares no infantil. Ultrapassar a idade. Então eu tenho lá no juvenil, quinze, se estourou três, eu tenho dezoito, se estourou três, ficou quinze, aqui vão estourar oito, e dos oito aqui, seis são titulares, os oito jogam, mesmo sendo reserva mas sempre participam do jogo, o que acontece, eu vou ter que trazer oito pra cá. Eu não posso ficar, eu tenho que reduzir o meu plantel, não é igual ao profissional, então eu vou ficar com dezoito ou quinze funcionando, eu vou ter que ter dois goleiros, o que eu vou fazer? Eu vou pegar um aqui que joga na direita e joga na esquerda, eu vou pegar um que joga de cabeça de área e joga de beque, eu vou pegar um que joga de ponta de lança, outro segundo ponta de lança, vou pegar um que joga do lado direito e do lado esquerdo, esse sai, o que só joga numa posição vai embora. Você vai tirando aos poucos, é reserva. Reserva é o caminho. Hoje vem e joga, daí um mês o jogo ta bom, o cara ta apertado não joga, você vê que o cara não ta tendo contato, ta desanimado, você tenta, é claro que de repente o cara pode melhorar, vamos ver o que o cara, de repente ele não joga no infantil mas joga no juvenil, isso tudo é o tempo. Aí a reserva é que é o caminho de você mandar embora, não é igual a um Atlético, Cruzeiro, ah vai embora, não serve mais não, não é assim não; você vai tirando o cara aos poucos, reserva, reserva, reserva, reserva, aí ele sente.” (Biruga) (Grifos meus)

A reserva, como foi dito, tinha um status ambivalente: promovia ou impedia a

participação. Pois, o acesso à prática podia também ser negado, quando jovens de

baixo rendimento eram nela colocados de “molho”. Conforme afirmam Lave e

Wenger (1991), “a comunidade de prática pode regularmente isolar recém-

chegados” e, nesses casos, “eles são retirados ou removidos de uma participação

periférica”. Portanto, a legitimidade da participação não era o que estava em

questão, mas o acesso à periferia da prática. A entrada no circuito da várzea não era

garantia, pois, de permanência, de estabilidade. Havia exclusões durante todo o

processo de inserção no futebol e nem sempre era apenas a dimensão técnica que

a desencadeava. Dificuldade de compreensão das hierarquias e relações de poder

Page 150: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

150

implícitas na prática, indisciplina e baixo rendimento também causavam exclusão.

Havia, portanto, um conjunto de condições para a participação que os iniciantes na

várzea tinham de compreender e aceitar (aprender a jogar). Além disso, quem não

rendia (aprendia) até determinada idade, não rendia mais. Participar desse contexto

implicava, desse modo mudar continuamente de categoria e superar as avaliações

desse processo.150 Quem não estava apto a jogar na categoria superior (ao menos

como reserva) com a mudança da idade era eliminado da prática. Na mudança de

categoria (mas não só nela), muitos jovens encerravam a participação na várzea e

com ela o sonho da profissionalização.151 Em compensação, aqueles que iam

superando os processos de seleção/exclusão tinham a oportunidade de ampliar

significativamente sua habilidade futebolística. Conforme foi visto, como sugerem

Lave e Wenger (1991), controle e seleção, bem como a necessidade de acesso,

eram inerentes à prática.

Enfim, jogar futebol é extremamente difícil e o exercício que esses jovens

faziam na prática era de incorporação. Porque uma coisa era pensar o jogo, outra

muito diferente era dominar todos os elementos que possibilitassem a ação. O

investimento que faziam no futebol era intenso e movido a suor, cansaço (mas

também prazer), treinos e exercícios que colocavam a corporeidade no limite. Por

isso a decepção da exclusão era grande. Para Jorginho o que significava vender a

chuteira? Significava a colocação de um ponto final na sua trajetória futebolística.152

“Silenciosa” e dolorida, a exclusão funcionava como um currículo de derrota, ou seja,

sair de cena e ser responsabilizado por isso. Sobre como esse processo de

exclusão era uma experiência difícil para os jovens, segue o relato de Cadu e Dona

Eduarda:153

Cadu – A única coisa que eu não gosto é muita peixada, panelinha, esse negócio, mas agora eu já to sabendo lidar com esse negócio aí,

150 As possibilidades de uso do jogador (a habilidade) funcionavam como critério de seleção dos jovens que estavam para “estourar” (ultrapassar a idade) em sua categoria. Quando tinha que escolher entre dois jogadores habilidosos, Biruga preservava, no Racing, aqueles que podiam ser aproveitados em diferentes posições de jogo. 151 Outras formas de galgar acesso ao futebol profissional (por exemplo: clubes esportivos) podem ser encontradas em Damo (2005). 152 A saída desse circuito não significava, contudo, saída de participação geral na prática social. Muitos jovens que deixavam a várzea continuavam a ter o futebol como prática cotidiana, como parte da sociabilidade. 153 A entrevista com Cadu (em casa) já havia se iniciado quando a mãe (Dona Eduarda), interessada em tudo que envolvesse as práticas futebolísticas do filho, passou a fazer parte da conversa.

Page 151: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

151

Eduarda – Antigamente ele não sabia não, Cadu – Mas eu ficava irritado Eduarda – Ele chorava... Cadu – Panelinha e tal... Eduarda – Tem ali os padrinhos, ele chorava... Cadu- Agora até que não Eduarda – Ele ficava irritado, ele invocava de não jogar mais, igual às vezes tinha jogo lá no campo chamava ele, ele, não vou jogar não, e não vou não. Vai Eduardo, porque eu sou assim, tipo assim se assume uma responsabilidade, tem que cumprir, eu canso de falar com ele, a única coisa que a gente tem que ter é responsabilidade. Falo com ele, falo com (inaudível) e a outra também. Eu falava com ele, Eduardo, mas você já combinou que você vai jogar como é que você não vai? Eu não vou não! Daí a pouco falava, falava com ele na orelha e ele saía. Saía irritado mais ia, por conta de panelinha. Porque às vezes juntava ali e desfazia dele. Muitas vezes eu mais o pai dele já vimos isso, eles desfazendo da pessoa dele lá e não é bom. Eduarda- A gente que é pai e mãe não aceita Eduarda – mas agora ele se vira pra lá, ele já sabe se virar, já (Grifos meus)

4.3.4 - “Num amistoso, num jogo bom é que ele vai ganhar posição”: aprender para fazer, aprender é fazer

Muito raramente, jovens iniciantes começavam a participação na várzea em

campeonatos. Os jogos amistosos faziam parte do currículo de formação dos

jogadores e antecediam a entrada no circuito de competições. Organizados para

acontecer aos sábados pela manhã (Infantil 08h; Juvenil 10h), com jogadores do

Racing e de outros times de futebol da cidade, o amistoso funcionava como um

treino em que os praticantes experimentavam o futebol sob condições semelhantes

(jamais iguais) às situações de competição.

Conforme a própria denominação, no amistoso grande parte da exasperação,

da rivalidade e da cobrança de rendimento, diretamente ligada às situações de

competição, era atenuada154. Não se pode dizer, entretanto, que era contexto para

relaxamento e descontração. Como interseção entre o treino e o campeonato, no

amistoso havia coisas importantes em jogo. Funcionando como um tipo de exercício

“ajustado” para ambos os times, o treinador testava jogadores e o esquema tático do

grupo; os jogadores iniciantes tentavam alcançar visibilidade suficiente para se

154 Conforme o Novo Dicionário Básico de Língua Portuguesa (1995, p. 38), amistoso significa: “próprio de amigo, amical, amigável, amigo; propenso à amizade; (Futebol) Diz-se de partida disputada fora do campeonato ou de torneio, em geral para fins beneficentes, de treinamento, de confraternização ou para a arrecadação de fundos”.

Page 152: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

152

tornar titulares; os jogadores mais experientes buscavam a manutenção da vaga e

também a inserção na categoria superior.

Jogos amistosos constituíam-se, pois, para os iniciantes como um importante

exercício. Diferente das práticas cotidianas (quando os jovens jogavam futebol com

os amigos do bairro e da escola) e do treino que era jogado entre os jogadores do

time, o amistoso era o primeiro contexto de futebol com adversários totalmente

desconhecidos. Nesse contexto, eles colocavam à prova a compreensão do jogo

(expressa na forma de dosar velocidade, força, agressividade; na forma de interagir

com a bola, com os pares, com os adversários, com o juiz; etc.). Participar do

amistoso significava, portanto, uma mistura de recompensa e teste. Recompensa

porque sinalizava uma avaliação positiva do treinador sobre as condições de

participação dos iniciantes. E teste porque, uma vez no amistoso a performance

estava novamente sob avaliação. Quando entravam em campo de futebol (mesmo

que fosse para jogar um amistoso), os jogadores corriam riscos e colocavam em

jogo a sua possibilidade de inserção no grupo. Para Biruga, o amistoso era, nesse

sentido, extremamente importante para o jogador, pois “é, num amistoso, num jogo

bom é que ele vai ganhar posição”.

Outra singularidade do amistoso era a oportunidade de outras aprendizagens

na e da prática social (a partir da realização de outras tarefas no futebol). Uma das

aprendizagens juvenis que tomavam forma nesse contexto era a de juiz de futebol

(aprender a apitar os jogos). Nos amistosos que ocorriam no Racing, alguns

praticantes, das categorias imediatamente superiores ao jogo em questão, eram

convocados para participar como juízes. Isso foi o que aconteceu com Brunão (que

apitou alguns jogos do Mirim) e Cadu (que apitou um jogo Infantil). Nesses

momentos Biruga, que sempre estava por perto, e outros veteranos também davam

dicas e orientações/repreensões ao iniciante nessa tarefa.

No decorrer do amistoso, os iniciantes — que geralmente ocupavam o banco

de reservas — ficavam perto do treinador, assistindo, comentando o jogo e ouvindo

as orientações destinadas aos jogadores em campo. Podendo a qualquer momento

ser convocados a participar, os ocupantes do banco permaneciam em estado de

expectativa e prontidão para o jogo. Se o treinador colocava alguém no

aquecimento, era sinal de que ia substituir um jogador em campo. Antes de entrar

em campo (autorizado pelo juiz), o jovem exercitava-se na lateral do campo (com

Page 153: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

153

pequenos saltos, alongamentos e corridas), enquanto o treinador o orientava sobre a

participação.

Mas elementos da prática social ausentes em outros contextos de produção

do futebol no bairro (regras oficiais, espaço/tempo regulamentado, juiz, e algumas

vezes até o público), podiam alterar as possibilidades de ação dos iniciantes.

Dificuldades vividas em algumas situações denunciavam a presença no amistoso:

de localizar-se em campo, de marcar o adversário (principalmente um jogador de

maior desenvoltura), de percebe-se em jogo e de manter um ritmo de jogo. O

cansaço (dificuldade de respirar que fazia com que muitos baixassem o tronco

colocando as mãos sob os joelhos para recuperar o fôlego enquanto a bola corria

em campo), a dor muscular (sensação de pernas pesadas e câimbras) e o calor

(corpos suados e rostos vermelhos) eram elementos que acabavam por deixá-los

em desvantagens em relação aos praticantes mais experientes. Provocações dos

pares/adversários (compreendidas como parte do jogo pelos veteranos) podiam

irritar, desconcertar e desconcentrar esses jogadores. Ávidos por superar esses

limites, eles imitavam ações dos veteranos e seguiam em jogo.

No futebol de várzea a incorporação da prática se dava por intermédio da

execução conjugada com relatos orais e/ou narrativas de casos exemplares. Nessas

ocasiões modelos “bons” e “ruins” de praticante eram usados para reforçar

características necessárias aos jogadores ou para mostrar o que fazer e o que não

fazer na várzea. No bairro Universitário, o aprendizado do futebol tinha como

suporte, portanto, também as “conversas e estórias sobre casos problemáticos e

especialmente difíceis” (LAVE e WENGER, 1991, p. 105). Essa prática lingüística

(jamais observada entre as mulheres) fundamentava-se numa repetição incessante,

sobretudo das performances de sucesso.

Aprender a apreciar as histórias dos veteranos (com repetições) e a narrar a

sua própria performance era parte do que a participação no futebol oferecia aos

iniciantes. Essas estórias tinham um papel importante, ou seja, elas tinham

implicações para o que e o como os iniciantes aprendiam (LAVE e WENGER, 1991).

É por isso que Biruga e seus jogadores contavam e recontavam suas peripécias em

jogos anteriores. Algumas vezes faziam isso em grupo (momentos em que a

empolgação aflorava), outras vezes Biruga conduzia conversas específicas — antes,

durante e após as partidas de futebol — com alguns jogadores. Como afirmou Cadu,

em muitas situações “Biruga conversa mais individualmente, ele chama você,

Page 154: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

154

conversa com você, vê o quê que está certo, vê o quê que está errado, faz isso, faz

aquilo, ele faz isso”.

Como quem busca lapidar um diamante em estado bruto, Biruga interferia

permanentemente nas práticas de futebol que estavam sob a sua coordenação: “—

Abre o braço”; “— Presta atenção no ladrão”; “— Cuidado com a falta”; “— Se passar

é impedimento”, etc. Não se tratava, entretanto, de prescrições descontextualizadas.

Era das situações que emergiam da prática que Biruga e demais praticantes

produziam a pauta de discussão individual ou coletiva. No relato a seguir, Biruga

explica o modo como ensinava o futebol aos jovens (retirando da prática emergente

o que precisavam fazer para obter sucesso). Explicita também que era um

aprendizado difícil e que ele próprio alcançou na participação nos contextos de

futebol, ou seja, porque teve o envolvimento com o jogo: [...] às vezes eles batiam na bola errado e eu corrigia. Eu uso muito o tal bater com o cadarço, que seria com o peito de pé. [...] Por exemplo, você vai dominar pra você, você afasta. Você vai dar o passe, você estica o peito. Correr com a boca fechada e soltar. Eu falo isso pra eles, na televisão você vê dividir com a respiração presa. Você firma mais o corpo. Isso tudo eu procuro passar pra eles porque eu aprendi, quando eu joguei eu aprendi.” [...] Quando eu falo pra eles: dominar procê, não domina pro adversário, domina pro colega, domina proce, dá o passe, domina proce , leva, traz, muro. Muro é bater e voltar, proce, traz a perna pra cá. (Biruga)

As habilidades que Biruga constituiu (no corpo) participando da e na prática

social (“quando eu joguei eu aprendi”), eram repassadas na forma de discursos, mas

jamais se sobrepunham à experiência. Os jogos de futebol funcionavam, desse

modo, com um currículo de aprendizagem nos termos proposto por Lave e Wenger

(1991). Dizem os autores (LAVE e WENGER, 1991, p. 97): Um currículo de aprendizagem é essencialmente situado. Ele não é alguma coisa que possa ser considerada em isolado, manipulado em termos didáticos arbitrários, ou analisado à parte de relações sociais que formam a participação periférica legitimada.

Mesmo considerando a participação do treinador importante para a

aprendizagem do jogo, não se pode dizer que nele se concentravam todas as

possibilidades de compreender/aprender. A aprendizagem do futebol era um

Page 155: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

155

processo complexo e, conforme foi dito, sobretudo coletivo.155 No amistoso (e em

outros contextos), eram compartilhados conhecimentos sobre como (know-how) e

sobre o que (know-what) fazer no futebol: um jogo constante de

interação/comunicação muitas vezes não-verbal. Parafraseando Wacquant (2002, p.

134), pode-se dizer que a habilidade futebolística é transmitida “por intermédio de

uma comunicação silenciosa, prática, de corpo a corpo”. Não é, desse modo, um

“diálogo só entre o mestre e o seu aluno, mas uma conversa de muitas vozes aberta

ao conjunto dos participantes”.

Além de orientar, corrigir, ajudar e encorajar os iniciantes, os mais experientes

funcionavam como “modelos” em ação (WACQUANT, 2002). Modelos que a todo o

momento podiam desvelar aspectos da prática social, antes encobertos: na forma de

agir em dada situação, na forma de relacionar-se em campo, na forma de “gingar” o

corpo, dentre outros. Em síntese: o mergulho nos jogos amistosos, a participação

nos rituais que precediam as partidas (concentração, oração, alongamentos156), a

experiência do banco de reservas e as entradas “em campo” funcionavam como um

currículo de aprendizagem e possibilitavam a constituição da habilidade futebolística.

Em movimentação centrípeta na prática social (LAVE e WENGER, 1991), os

iniciantes deixavam para traz essa posição. Sutis, mas significativas, algumas

mudanças nas formas de participação indicavam que eles estavam aprendendo. A

primeira evidência era a ampliação do tempo em jogo (ficando menos na reserva).

Outra importante evidência podia ser notada quando da “beirada” do campo não se

ouvia mais o treinador cobrando deles, a todo o momento, posicionamento e ações

(indicando para quem deviam passar a bola, para onde deviam ir ou o que deviam

fazer). A maior evidência, entretanto, ocorria quando passavam a titulares do time ou

quando o treinador os inscrevia em competições (mesmo como reservas). Isso não

significava, contudo, o “fim da linha”. Ao contrário. Os jovens que se destacavam no

grupo eram levados a desenvolver, refinar e aprimorar cada vez mais a habilidade.

155 Esportes individuais também podem se caracterizar por aprendizagem coletiva. Isso é que conclui Wacquant (2002), ao descrever a aprendizagem do boxe. 156 Todos os jogadores participavam dos rituais de preparação para o jogo. A hora de se apresentar no campo futebol, a colocação do uniforme, os exercícios de aquecimento eram vivenciados por veteranos e iniciantes. Tais práticas visavam criar um conjunto de disposições, um tipo de atenção/concentração e preparação do corpo que favorecessem o desempenho dos jogadores na hora do jogo. Como afirmou Juliano (auxiliar técnico do Racing), as práticas realizadas antes do jogo eram importantes, pois incitavam/motivavam o grupo (“—Vamos entrar pra dentro dos adversários”) e podiam mesmo significar um diferencial no rendimento dos jogadores em campo.

Page 156: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

156

A mudança na forma de participação não seguia, contudo, um ritmo

homogêneo. Assim, os jovens pouco experientes não precisavam dominar

imediatamente todos os aspectos da prática. Eles deviam se mostrar esforçados,

perspicazes, obedientes e disciplinados. À medida que praticavam é que iam

constituindo a habilidade. Desse modo, o maior desafio era permanecer na prática

(não ser excluídos).

Era pelo viés dos hábitos exigidos para prática, todavia, que muitos jovens

também eram integrados e/ou eliminados do futebol de várzea. Os que participavam

do circuito de futebol de várzea deviam incorporar também disposições relacionadas

aos “bons” hábitos e à saúde (alimentar-se bem antes da partida; dormir cedo na

véspera do jogo), disciplina (chegar ao campo no horário marcado pelo treinador) e

condutas socialmente aceitas (manter “boa” conduta fora do campo). O não-

cumprimento dessas regras podia significar a exclusão do jogador de único jogo ou

até mesmo do time de futebol. Isso foi o que ocorreu no campo do Tupinambá,

quando Brunão (jogador titular do Racing Infantil e reserva do Juvenil) foi penalizado

pelo atraso (de 15 minutos) sendo excluído do jogo. Nesse mesmo jogo, Schiva, um

dos titulares do Racing Juvenil, ficou na reserva, porque havia passado a noite na

“gandaia”. É o que afirmou Biruga: “andar na linha, [...] porque se eu pegar jogador

depois de uma hora, duas horas na rua, não precisa nem vir pro vestiário não, pode

voltar; já mandei vários voltar, e jogador bom”.

4.3.5 - “Quem nunca disputou um campeonato... vai tremer”: aprendendo a

lidar com o futebol ritual A participação em campeonatos apresentava aos praticantes novos desafios

de aprendizagem. O campeonato era radicalmente diferente das demais práticas de

futebol a que os jovens tinham acesso. Nele havia mais coisas em jogo. Afirma

Schiva: Treino é treino. Campeonato não. Campeonato é todo mundo querendo ganhar de qualquer jeito, roubando, ganhar de qualquer maneira. O campeonato a gente entra pra vencer, não tem jeito de você entrar num campeonato pra empatar, de qualquer jeito você entra pra vencer.

Longe dos ditames e regras da Federação Internacional de Futebol (FIFA) —

que rege o futebol profissional e/ou de espetáculo — os jogos do campeonato

Page 157: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

157

amador não fugiam ao “formato oficial”, podendo muitas vezes assumir, em

dimensões menores (se comparado ao tamanho do público e à ausência da mídia),

as mesmas características do futebol profissional. Com atenção às devidas

proporções, entretanto, esses jogos eram capazes de mobilizar diferentes grupos da

cidade em torno da disputa.157

Situados entre o futebol jogado no cotidiano do bairro e o futebol profissional,

os jogos do campeonato juvenil da cidade nutriam-se de elementos de ambos.

Contudo é importante considerar que era no modelo profissional que essa

modalidade de jogo (o oficial amador) tinha referência. Caracterizado como um tipo

de jogo intermediário, segundo Damo (2005, p.41), o futebol de várzea apresenta

“quase todos os componentes do espetáculo”, diferindo em escala.158

Tensos e envolventes, os jogos de futebol de campeonato orquestravam uma

intricada trama social/simbólica e reproduziam (ou acentuavam) a oposição

êxito/fracasso. Nesse contexto, o que se observava era a ocorrência de um ritual

disjuntivo, em que o prazer era dado, “em grande medida, pela expectativa em

relação a seu desfecho” (DAMO, 2005, p. 31).159

157 “O controle sobre as regras do association cabe, na atualidade, à Internacional Board (IB), instituição centenária, associada à FIFA que, por seu turno, é responsável pelo gerenciamento direto ou indireto das competições futebolísticas mais importantes em termos econômicos. [...] Todavia, a IB não tem como impedir que o football association seja praticada para além do seu controle, pois também a FIFA não dispõe de mecanismos impedindo que se organizem eventos futebolísticos para além do seu domínio e muito provavelmente isto não lhe interesse. [...] O domínio FIFA-IB detém, portanto, o monopólio do mercado futebolístico, ou seja, do futebol que é praticado e apreciado em forma de espetáculo, como um bem simbólico com valor econômico, embora exista muitos futebóis para além dessa versão monopolizada” (DAMO, 2005, p.34). 158 Como afirma Damo (2005, p.42), no futebol de várzea “a divisão do trabalho fora do campo não é nula, mas precária. Todos os times de várzea têm um técnico e quase todos têm também um dirigente e um massagista. Nos jogos, os papéis são, de início, bem definidos e até especializados, mas não deve causar surpresa se o centroavante, a certa altura, for jogar de goleiro; ou se um atleta que atuava na ponta-direita, e fora substituído antes do intervalo, reaparecer como beque de espera nos minutos finais da partida”. Entrar e sair desse circuito não demanda o mesmo domínio do profissionalismo, mas também “não é tão poroso quanto o futebol bricolado” (um formato do futebol que tem como regra geral apenas o toque obrigatório com a bola aos pés, podendo até mesmo o gol estar ausente). 159 Para dar conta dessa dimensão simbólica do jogo de futebol nos campeonatos, a comparação entre jogo e ritual proposta por Lévi-Strauss (1989) é extremamente importante. Afirma o autor (1989, p. 52): “todo jogo se define pelo conjunto de suas regras, que tornam possível um número praticamente ilimitado de partidas; mas o rito, que se “joga” também, parece mais uma partida privilegiada, retida entre todas as possíveis, porque só ela resulta num certo tipo de equilíbrio entre os dois campos. A transposição é fácil de verificar no caso dos gahuku-gama, da Nova-Guiné, que aprenderam o futebol, mas que jogam, vários dias seguidos, tantas partidas quantas forem necessárias para que se equilibrem exatamente as perdidas e as ganhas por cada equipe, o que é tratar o jogo como um rito”. Muito diferente da lógica dos gahuku-gama, que buscam na produção da prática uma condição de igualdade entre os participantes, os campeonatos de futebol na nossa sociedade são realizados com o sentido exatamente oposto: parte-se de uma situação de igualdade

Page 158: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

158

Produtor de vencedores e vencidos a partir “de formas legítimas de medição

de força e de comportamento conflitivo e agonístico”, o futebol do campeonato se

transformava num “campo imbatível de todo o tipo de emoções” (DAMATTA, 2006,

p. 165). Como afirma DaMatta (1994, p.14): O futebol permite ritualizar a competição, o que vai estabelecer ou reafirmar os melhores e os piores, os ganhadores e os perdedores, os primeiros e o últimos, dentro de um quadro estratificado que o credo utilitário tende a mistificar e esconder. [...] a disputa transformou-se numa competição entre iguais. Um ritual agonístico, por certo, mas uma celebração na qual o conflito é programado e regido por normas conhecidas dos disputantes, da platéia, dos oficiantes (os juizes esportivos) e dos patrocinadores.

Como espaço legítimo para a produção da desigualdade e da competição, os

jogos de futebol da Copa DFA orquestravam intensos processos de exclusão, de

afirmação da superioridade e/ou da negação do outro, de exacerbação do corpo, de

rivalidade, de competição, de seletividade, etc. Todos esses elementos rompiam

com as idéias difundidas nos espaços educativos de produção desse esporte: “o

importante é participar”, esporte/saúde, solidariedade, cooperação, ludicidade, etc.

Como tempo de culminância da prática social de futebol, entretanto, não se

pode negar que esse tipo de evento também comportava elementos lúdicos (âmbito

do prazer, da alegria, da festa). Ele envolvia, portanto, um clima especial e ambíguo

que misturava de tensão com relaxamento, alegria com tristeza, frustração como

vitória, competição com cooperação e rivalidade com solidariedade.

Observando os jogos de futebol do Campeonato Juvenil Amador de Belo

Horizonte em 2005, fui entendendo que, apesar das singularidades e diferenças

presentes em cada um, uma regularidade os atravessava: o espaço físico do campo

(cotidianamente ocupado por jovens e crianças nas peladas, treinos de futebol e

outras práticas) era convertido em espaço ritual/simbólico. O relato completo do jogo

que se segue, expressa as tensões que envolviam esse tipo de evento.

Irrecortável/indivisível, o jogo do Racing com o Águia Dourada foi tomado como cena

emblemática: Alguns  homens  e  jovens no  bar  bebem  cerveja  e  assistem  ao  jogo  de  futebol  que  “rola” no campo. No vestiário (com vidros da janela quebrados) alguns jovens tomam banho. Um cheiro ruim  exala  dos  sanitários. Em  campo  o  time  juvenil  do Racing  joga  contra  o  time  juvenil 

(mesmo número de jogadores cumprindo regras iguais) para uma legitimação da desigualdade (oposição vencedor/perdedor).

Page 159: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

159

Águia  Dourada.  Ambos  trouxeram  seus  torcedores.  O  time  do  Racing  veio  a  pé  (campo próximo)  acompanhado  por  jovens  do  Infantil  ocupando  o  papel  de  torcedores.  O  Águia Dourada  veio  de  ônibus  especial,  de modo  que  outros  torcedores  desse  time  também  estão presentes no  campo  tencionando  jogadores  e  juiz — participando do  jogo. Poucas mulheres transitam no espaço do campo (as que por ali chegam não o fazem com interesse em assistir ao jogo – seguem para o bar). Disputando  cada  jogada,  jogadores de ambos os  times  se  esforçam na  realização do gol. Por todo o campo é grande a correria dos  jogadores com  e sem a posse da bola: passes, dribles  e chutes. O jogo segue com grandes chances de gols para os dois times (que se aproximam a todo o momento da meta/gol), mas principalmente para o  time Águia Dourada, que perde vários gols chutando a bola na trave. São muitas as  indicações entre os  jogadores dentro do campo, principalmente do goleiro, que chama atenção do time para o posicionamento nas situações de risco de gol.  O  juiz  apita  o  jogo  tentando  controlar  as  tensões. Os  treinadores  seguem  insistentes  nas orientações  dos  times  e  cobram  dos  jogadores  as  posições,  o  domínio  de  bola,  a  atenção  aos jogadores adversários, as marcações, etc. Biruga (treinador do Racing que precisa vencer o jogo para  continuar  no  campeonato),  próximo  ao  banco  reserva,  segue  no  seu  ritual  de  senta‐levanta,  grita‐xinga,  dá  instruções:  “—Corre,  caralho!”;  “—Pega  essa  bola,  caralho”;  “—Porra sô!”[...]. Juliano (assistente de Biruga), da lateral do campo, cobra insistentemente dos jogadores  o  posicionamento  e  dá  outras  orientações.  Por  exemplo,  quando  os  jogadores  de defesa do Racing vão interceptar os atacantes dentro ou próximo da área do gol ele logo grita: “—Sem falta”; “—Abre os braços”. Os dois treinadores do Águia Dourada cumprem o mesmo papel orientando os jogadores do seu time. Mais calmos, porém, têm falas mais positivas (“—Vamos  lá.”;  “—Não  há  como  perder  desse  time  ruim.”;  “—Chega  junto.”). Apresentando mais confiança no time (resultado do jogo), raramente se exasperam com os jogadores:“—Puta que pariu.”; “—Caralho. Quê que é isso?”; etc. Os treinadores (como maestros) tentam reger o jogo, exigindo dos jogadores o posicionamento, escolhendo quem deve cobrar as faltas, pênaltis, laterais, etc. Um dos treinadores do Águia Dourada recebe de um dos colegas, posicionado do lado de  fora da  tela/alambrado, um copo de cerveja  e bebe disfarçadamente, o que é proibido nesse espaço durante o jogo.  O Racing faz um gol (1X0) e a comemoração é geral entre os jogadores e torcedores do time. O jogo agora  segue mais  tenso. Num dado momento —   quando o  jogador do Águia Dourada disputa a bola com o adversário e acaba caindo ao chão (se contorcendo com as mãos sobre os joelhos) e o juiz dá prosseguimento ao jogo — um dos treinadores desse time grita para o juiz: “—Tem  que  apitar,  porra.” O  juiz  pára  o  jogo  e  apita  a  expulsão  do  treinador  do Águia Dourada do campo. Ele sai do espaço fechado por tela e continua suas provocações ao juiz do lado de fora da tela/alambrado, de onde continua a reger o seu time. Dentro do campo o jovem se levanta, manca um ou dois passos, depois segue correndo para ocupar a sua posição no jogo. Quando  termina  o  primeiro  tempo,  os  jogadores  titulares  do Racing  seguem  em  direção  a Biruga  (para  beber  água  e  ouvir  instruções  para  o  segundo  tempo),  enquanto  os  jogadores reservas do time  fazem o movimento contrário (seguem para o campo para “bater bola”). Os jogadores do Águia também vão em direção aos treinadores e alguns passam por eles e seguem para   um  lugar mais  fresco do  campo para descansar. Contudo mudam  a direção quando  o treinador diz: “—Vamos para lá. Estão perdendo e ainda querem sombra!”. Os treinadores de ambos os  times  conduzem os  jovens para uma  lateral do  campo —  lugar onde bebem água, conversam e recebem as instruções. Em campo várias pessoas (além dos reservas) aproveitam a oportunidade  para  “bater  bola”—jovens,  crianças  e  adultos  se misturam  no  “gramado”  e, 

Page 160: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

160

entre passes, dribles, chutes a gol e manobras com bola, aproveitam cada minuto do intervalo. Diferente das corriqueiras  entradas no campo de  futebol no decorrer da  semana, a ocupação nesse momento  é marcada por diferentes  interesses  e  sentidos: os  jogadores  reservas  entram para fazer aquecimento (uma aposta na participação e afirmação do pertencimento ao grupo); os demais praticantes, sobretudo as crianças, com os pais, realizam brincadeiras de futebol que parecem pulsar ao ritmo singular do embate (contagiados pela emoção de pôr o pé no espaço ritual, experimentam a emoção/tensão do jogo). O juiz, altamente criticado por técnicos e torcedores do Águia Dourada, chama os times para a continuidade do jogo e apita o início do segundo tempo. Reiniciado o jogo, dentro (e fora) do campo os ânimos vão se tornando cada vez mais exaltados (com cobranças de rendimento cada vez mais  incisivas sobre os  jogadores). Várias  jogadas aproximam o Águia Dourada do gol e isso faz com que o treinador inicie um série de reforços positivos ao time: “—Tá chegando!”; “—Vamos  lá!”. “—Isso!”[...]. Do outro  lado do campo, Biruga  fica raivoso com os erros do grupo  e  briga  com  os  jogadores. De  repente,  num  chute  certeiro  de  um  jogador  do Águia Dourada,  acontece  o  gol  de  empate  e  todos  (jogadores,  técnicos,  reservas  e  torcedores) comemoram muito. Em  tom de revanche  (guerra) os praticantes se abraçam,  tocam as mãos com força e gritam (parecem “ir à forra”). A tensão aumenta e de ambos os lados torcedores, técnicos e reservas gritam e sentam, levantam o tempo todo. Os torcedores do Águia Dourada e outras pessoas que assistiam ao jogo em frente ao vestiário ou nas proximidades dele, agora se  posicionam  junto  à  tela  do  campo  (segurando‐a)  atentamente  para  não  perder  nenhum “lance”. Nas  jogadas de  perigo de gol  a  correria desse  lado do  campo  é geral:  jogadores  de ataque  e  defesa  correm  dentro  do  campo,  enquanto  treinadores  e  alguns  torcedores acompanham o  jogo correndo nas  laterais do campo e também dando  instruções e  incentivos aos  jogadores: “—Fulano  corre”; “—Sicrano marca  fulano.”; “—Passa  a bola.”; “—Leva  a bola.”; “—Abre os braços.”; “—Sem falta.” Cada apito do juiz (ou a falta dele) causa ao time do Águia Dourada maior  insatisfação e as reclamações vão tomando cada vez mais  lugar no jogo: “—Juiz ladrão.”  Constantemente desequilibrados  (na corrida, no confronto com o adversário, no chute ou na condução da bola e, muitas vezes, até emocionalmente) os jogadores superam o limite do corpo na busca da vitória. Desse modo, nas corridas pela lateral eles surpreendem no alcance da bola; de  costas  para  o  adversário  (de  braços  abertos  e  corpo  ligeiramente  inclinado)  os  jogadores protegem a bola até conseguir uma situação favorável ao passe, chute, drible, etc. Nas situações de  desvantagem  eles  partem  “para  cima  dos  adversários”  para  recuperar  a  posse  de  bola; pedalam, driblam, correm, cansam (quando estão fora da jogada alguns jogadores recuperam o fôlego com as mãos apoiadas sobre os joelhos e os olhos atentos ao jogo). O sol já está muito forte  e a poeira se espalha no ar quando os jogadores penetram espaços do campo sem grama. O apito do juiz se destaca em meio aos muitos sons produzidos. A poucos minutos  do  final  do  jogo,  Luis Henrique  faz  o  gol  de  desempate  (favorecendo  ao Racing  – 2X1). Todos  ficam  ainda mais  exaltados  e  uma  falação/gritaria  impele  o Águia Dourada  a fazer  o  gol  e  o Racing  a não  “tomar”  gol nos minutos  finais. A  correria  dos  jogadores  em campo  é  também  uma  correria  contra  o  tempo  (num  piscar  de  olhos  tudo  pode  mudar). Enquanto Biruga e seus jogadores tentam conter o Águia Dourado com a posse/toque de bola entre  pares  para  “matar  o  tempo”  final  do  jogo  (que  parece  uma  eternidade)  e  “segurar  o placar”,  os  adversários  tentam  de  todo  modo  recuperar  a  bola  e  o  tempo  que  resta  para redefinir o resultado do jogo.   A pressão sobre o  juiz (que é cobrado  insistentemente pelo Águia Dourada) aumenta mais e mais: “—Juiz ladrão”. No decorrer do jogo ele vai administrando cartões para punir e conter 

Page 161: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

161

as infrações dos jogadores (dois cartões amarelos para o Águia Dourado e um para o Racing). Alguns  jogadores  realizam  dribles  nos  adversários  (que  levam  os  torcedores  a  gritar  “— OLÉ!!!!” nas situações de sucesso e a criticá‐los chamando‐os de irresponsáveis). Contudo são os passes que fundamentam o jogo e levam jogadores a se aproximar mais rapidamente da área do gol dos adversários. Assim, os jogadores do Racing e Águia Dourada vão ficando cada vez mais cansados (a expressão de dor na face, a respiração forçada, o rosto vermelho, o suor por todo o corpo, até mesmo do goleiro, que possui uma posição mais  fixa). Agora no entorno do campo não há treinadores e torcedores assentados. Todos de pé acompanham cada possibilidade de gol com gritos de motivação (“—Raça!”; “— Vamos!”) ou críticas nas situações de jogadas fracassadas.  Exasperação,  confrontos,  nervosismo,  adrenalina,  alegria  e  frustração  tomam conta  do  corpo  não  só  dos  jogadores,  mas  de  todos  que  participam  do  jogo  (treinadores, torcedores, etc.). Num choque entre jogadores de ambos os times, perto da área do gol, um jogador do Racing e o goleiro  do  Racing  caem  ao  chão.  O  goleiro  permanece  sentado  contorcendo  (de  dor???) enquanto os colegas socorrem o outro jogador com câimbras, que fica deitado no chão enquanto os  colegas  erguem  suas  pernas  e  forçam  seus  pés  para  baixo —  alongando  a  panturrilha. Enquanto o goleiro permanece sentado ao chão, o jogo fica parado (conforme a regra). O fato causa muita insatisfação aos torcedores do Águia Dourada, que querem jogo para recuperar o placar. Um deles, próximo à tela (do lado de fora do campo), grita insistentemente: “—Enfia o dedo no cu do goleiro que ele levanta.” O nervosismo toma conta quando o jogo recomeça. Os jovens do Águia Dourada tentam ao máximo o empate, mas não há mais tempo. O  juiz  encerra  o  jogo,  para  alegria  do  Racing,  que  vence  seu  primeiro  jogo.  Torcedores, jogadores  e  técnicos  seguem  para  o  centro  do  campo.  A  tensão  aumenta  e  o  clima  é  de insatisfação e confusão. Tensos os jogadores do Águia Dourada seguem o técnico em direção ao juiz. Biruga  (mais  calmo do que nos dias anteriores) percebe que algo  está para acontecer  e sinaliza a Juliano para retirar os seus jogadores do campo O técnico do Águia Dourada (que foi expulso por desrespeitar o juiz chamando‐o de ladrão) se aproxima e com poucas palavras dá um tapa na “cara” do juiz. O “bate‐boca” é geral. Auxiliares do juiz seguram‐no, enquanto jogadores e técnico do Águia Dourada seguram o outro técnico do time. Biruga tenta conter a situação,  enquanto  Juliano  recolhe  os  jogadores  do  time  levando‐os  para  outro  espaço (contornando o campo por fora seguem para a saída do campo). Demora um pouco até que a confusão  seja  dispersada  e  jogadores,  treinadores  e  torcedores  do Águia Dourada  saiam  do campo de jogo. Biruga segue para perto do vestiário e de lá chama os jogadores do Racing (que estão perto do portão de saída). A caminho do vestiário, os jovens do Racing se encontram com os do Águia Dourada (na  lateral externa do campo) e a passagem é tensa. Isaque, que passa sorridente, leva um “safanão” (um dos torcedores bate nele com um objeto que leva nas mãos, parecendo uma caneleira dentro da meia). Os jovens do Águia Dourada seguem para o ônibus especial (onde aguardam a chegada dos treinadores e de outros colegas que ficaram para trás). Biruga reúne os jovens do Racing perto do vestiário e depois sai com o grupo (a pé) rumo ao campo do Racing — lugar onde vão tomar banho e lanchar.   Jovens que adentravam as competições de futebol precisavam rapidamente

aprender a se relacionar com outros elementos da prática. A participação nesse tipo

de evento (que exacerbava as relações entre poder e conhecimento) implicava

tornar parte de dois grupos distintos: os dos vencedores e dos vencidos.

Page 162: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

162

Esse contexto, que dispunha para os praticantes um tipo emoção particular

não-acessível nas práticas cotidianas de futebol do bairro, fazia muitos jogadores

iniciantes em campeonatos “tremerem na hora do jogo”. Isso não significa que a

emoção estava ausente de outros contextos de produção do futebol. Jovens que

adentravam as práticas cotidianas também sentiam medo, ansiedade e viviam

situações de stress. Contudo era no contexto dos campeonatos futebolísticos

(quando as emoções eram multiplicadas pelas demandas do jogo) que elas deviam

ser controladas como condição de permanência.

Como afirmou Cadu, “quem nunca disputou um campeonato, só joga

peladinha e tudo, vai entrar num campeonato, ele vai tremer, não vai conseguir jogar

o que ele joga na peladinha”. Mas, se os jovens tremiam, tremiam porque já

conheciam o sentido do jogo — sentidos e emoções aprendidas também nas

experiências como torcedor (DAMO, 2005). Como afirma o autor (2001, p.7): Parte da estética esportiva não está ao alcance de quem observa apenas a forma. Desse ponto de vista o futebol mais parece uma seqüência de lances inócuos, repetitivos e sem sentido; com a bola sendo conduzida de uma intermediária a outras. Trata-se do ponto de vista daqueles que não têm familiaridade com as regras, com o significado do embate, enfim, com o próprio futebol. O prazer estético depende do entendimento da dinâmica do jogo, o que pressupõe aprendizado e, de outra parte, concordância em relação a alguns significados. Um desses significados partilhados pelos futebolistas é que o jogo é uma guerra mimética.160

Mistura de tensão e alegria, o campeonato (momento de experimentar a

competição, a rivalidade e, se tudo corresse bem, a vitória) era esperado por muitos

praticantes. Contudo a singularidade desse tipo de disputa colocava os iniciantes em

contato com um novo adversário: as próprias emoções. A ansiedade, o medo de

falhar/errar, de ser humilhado e de perder podia levar jogadores perspicazes e

audaciosos nos treinos e amistosos a se revelarem menos brilhantes, quando eram

confrontados com os adversários no campeonato. Como explicou Biruga: [...] tem menino que treina dribla pra cá, dribla pra lá, que tromba... mas na hora que vem o jogo parece que dá um branco. Eu te juro que eu não sei explicar o que é isso, não sei. Ele desenvolve no treino, mas quando vai no jogo é lerdo, parece que tem medo. Tem medo de fazer uma jogada e errar e acaba perdendo a

160 Como afirma Damo (2001, p.7), “nenhum torcedor diria que se entretém com o seu time, que vai ver um jogo como quem vai a um concerto. Vai para dilacerar ou ser dilacerado, vai para a guerra, mesmo que seja quase sempre uma guerra metafórica”.

Page 163: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

163

bola. Por exemplo, você vê que no treino ele bate falta bem, chega lá ele joga a bola na arquibancada, chuta na barreira, nem joga a bola próximo ao goleiro, vai dar um passe, dá errado.”. [...] Tem [jovem] que sabe jogar no amistoso, no amistoso joga bem pra caramba, mas na hora que chega três pontos, some. Eu não sei se é medo, medo do adversário, e os jogos não tem nada, não tem discussão, não tem nada, e é essa situação. [...] Eu não sei falar, eu não sei o que é, o que passa na cabeça do menino. No treino, Nossa Senhora, só falta derrubar as traves, dá os passes bem, bate falta bem, quando chega no jogo, eu não sei se é o compromisso ou o medo de errar, porque sabe que aquilo é a valer. (Biruga) (Grifos meus)

Situações corriqueiras de jogo de futebol (uma “dividida”, um passe, um

chute, uma cobrança de falta, etc.) ganhavam dimensão muito maior quando o jogo

era “pra valer”, quando assumia a sua versão ritual. O contexto ritual do futebol, que

conforme DaMatta (2006, p. 153), “entroniza no mundo moderno formas legítimas de

medição de forças e de comportamentos conflitivos e agonísticos”, traduzia para os

praticantes a possibilidade de experiências de vitória e de êxito (tanto quanto o

contrário) e despertava novas emoções.161 Como se pode observar no relato de

Biruga, na competição os jovens se viam diante de emoções que podiam tornar o

corpo desobediente/titubeante. Sem o controle das emoções que emergiam desse

tipo de partida, podiam até voltar a se portar como iniciantes e cometer os erros

primários.

Nos jogos do campeonato, os iniciantes nesse tipo de enfretamento jamais

entravam em campo no início da partida ou quando o time estava em desvantagem.

Na reserva eles permaneciam até que as tensões do jogo pudessem ser por eles

suportadas. Assim, o treinador só permitia a entrada em campo quando o placar

estava favorável para o time e, sobretudo nos minutos finais do jogo — tempo de

participação em que os iniciantes tinham a performance avaliada (o que, comparado

à performances anteriores, podia servir como indicativo de controle emocional)162.

161 Para DaMatta (2006, p. 164), “essa vitória que no mundo moderno traduz com a palavra mágica chamada sucesso e que o sistema social hierarquizado e concentrador de riqueza do Brasil faz com que poucos possam experimentar. Mas através do “jogo de futebol” as massas brasileiras podem experimentar vencer com os seus times favoritos”. 162 Os jogos de futebol de campeonatos de possuem uma disputa pelo uso do tempo que altera o seu sentido de linearidade, principalmente nos minutos finais de jogo. Segundo Damo (2005, p. 260), “o tempo dos códigos da FIFA-IB, marcado pelo cronômetro, é fixo e repetitivo, sem história”. Mas a relação com o tempo de jogo real é ambíguo e dependente dos muitos interesses que o envolvem. Para o time que está vencendo o jogo, esses minutos parecem se prolongar de tal maneira que muitas vezes o juiz é advertido (pressionado) para encerrar o jogo — a preocupação é com o “quanto tempo falta”. O time que está em desvantagem no placar, contudo, tem outro foco na mensuração do

Page 164: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

164

Para participar do circuito de campeonatos, portanto, o jovem tinham de

apresentar/constituir um tipo de auto-controle e auto-confiança que permitisse ter

“frieza” para agir nas diferentes situações. Eram até comuns na “beirada” do campo

de futebol expressões como: “sangue frio”, “fica frio”, etc. Não havia, contudo, outra

maneira de aprender a lidar com as situações rituais (temperadas por disputas e

relações de poder) que não fosse participar das competições e experimentar no

corpo as tensões. Diferente do aprendizado das manobras de futebol (que podiam

ser exaustivamente ensaiadas no cotidiano), do posicionamento (que podia ser

experimentado nos treinos, amistosos, etc.), as emoções que perpassavam o futebol

na competição só emergiam e podiam ser experimentadas no decorrer do evento.

Parafraseando (DAMATTA, 2006), os jovens aprendiam nas múltiplas dimensões do

próprio evento.

Nesse contexto, os conselhos do treinador (“—Você vê tem uns que chegam

tensos fica arregalado, uns tremem, você procura trazer eles, conversar com eles

baixinho”), os encorajamentos dos pares (“—Calma”) e do público funcionavam

como um tipo de reforço que podia ajudar aqueles em contato inicial (e pouco

controle) com esse tipo de emoções.163 Eram emoções que acometiam todos os

praticantes, mas que fragilizavam apenas aqueles que com elas ainda não tinham

aprendido a lidar. Enfim, o controle das emoções era constituído coletivamente pela

persistência e pela exposição prolongada do corpo aos contextos de competição e à

disciplina que esse tipo de jogo exigia.

Saindo do circuito de competição precocemente (por idade, por falta de

investimento do treinador ou pela falta de oportunidade no grupo, etc.) alguns jovens

jamais conseguiram o domínio desse tipo de emoção, jamais ficaram aptos para

suportar as relações de poder que implicavam a participação nessas competições

esportivas. Isso porque, quando fracassavam eram “sumariamente” excluídos.

Outros iam aprendendo a se controlar no processo de participação. Uma

aprendizagem lenta, progressiva que tinha relação com as experiências de sucesso

e de fracasso vividas nesse contexto.

Submetendo-se a prática, à disciplina, ao treinamento e, sobretudo, às

competições, alguns jovens tornavam o corpo “acostumado” (WACQUANT, 2002, p. tempo. Tentando esticá-lo ao máximo a preocupação dos perdedores é com o “quanto tempo resta” de jogo. 163 O público desse tipo de partida de futebol era formado, sobretudo, por pais, amigos e familiares dos praticantes.

Page 165: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

165

79) às situações de stress e, aos poucos, aprendiam a administrar calma e

nervosismo, ou seja, incorporavam a tensão. Isso, segundo Pelé, era fundamental

para o desempenho do futebolista: É, tem hora quando eles erram, que eu fico nervoso, porque senão, senão, faz de conta, se tiver cara a cara com o gol e o menino erra, aí você tem que ficar nervoso. Igual um menino lá outro dia fez dois pênaltis contra, contra o nosso time, o menino do nosso time fez dois pênaltis, mas deu sorte que o menino errou, e tava pedindo calma ainda. Aí todo mundo ficou nervoso com ele e ele tava assim, calma, calma... Calma não, tem hora que você tem que ter calma, mas tem hora que tem que ficar nervoso também. [...] É, é na hora que você tá perdendo (a hora de ficar nervoso), aí você já fica mais nervoso. [...] É, aí você tem que tocar, mas na hora que você tá nervoso, tem que fazer tudo pra pegar na bola e levar pro gol. (Grifos meus)

Um jogador extremamente calmo, que permanecesse apático ao resultado do

jogo, era tão pouco desejável na competição, quanto o que perdesse a “cabeça por

qualquer coisa”, colocando o grupo em condições de desvantagens (como expulsão

de jogador). Como afirmou Pelé, no futebol os jovens precisavam aprender a

perceber a hora e o modo de ficar nervosos e calmos. Diante de tantos apelos de

calma (do treinador, dos pares e do público) nos momentos decisivos do jogo, o

nervosismo só era permitido quando ele se convertia em ação, em agilidade para a

alteração do resultado (e não gerava o desequilíbrio do jogador). Diferentes

daqueles que perdiam a calma no jogo, que brigavam até com o juiz, reclamavam,

jovens que aprendiam a controlar as emoções advindas desse tipo de partida de

futebol permaneciam centrados no seu fazer, na sua tarefa e até conseguiam conter

a exasperação de outros praticantes. Esse tipo de controle parece ter sido

alcançado por Pelé: Eu nunca fui expulso, eu não xingo o juiz, já tomei amarelo, mas nunca fui expulso, nunca. Eu não sou muito nervoso, mas tem gente no meu time que é muito nervoso, então vai expulso a toa, eles vão expulsos, ficam xingando o juiz, ficam xingando nós mesmos, aí é ruim, mas eu não, eu nunca tomei um vermelho.

Jovens futebolistas começavam a se destacar, portanto, quando aprendiam a

agir com “frieza”, sendo capazes de esconder e de controlar os sentimentos mesmo

que o corpo estivesse envolto por um turbilhão de emoções. Nesse aspecto o boxe

em muito se parece com o futebol. Diz Wacquant (2002, p. 112):

Page 166: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

166

Uma vez entre as cordas, é preciso ser capaz de gerenciar suas emoções; saber, de acordo com o momento contê-las e reprimi-las, ou, ao contrário, alimentá-la; amordaçar certos sentimentos (de cólera, de irritação, de frustração), de modo a resistir aos golpes, às provocações e aos insultos dos adversários; e “fazer livre apelo” a outras (agressividade e raiva, por exemplo), sem por isso perder o controle delas.

O controle das emoções não se dava, entretanto, como um passe de mágica

ou de forma independente. O controle do corpo, dos gestos e das emoções era

interdependente — fazia parte de um exercício. Era quando iam ficando mais

“íntimos” como a bola, quando se acostumavam com o tempo/espaço de jogo,

podendo se concentrar em aspectos que o cansaço ofuscava, quando conseguiam o

domínio do jogo (“não ficar perdido dentro do campo”) que conseguiam manter-se

também emocionalmente estáveis. Nas práticas futebolísticas há, portanto uma

imbricação entre gesto, experiência, fisiologia, significado. Estar em boa forma física

e com bom desempenho técnico possibilitava estar emocionalmente equilibrado

(WACQUANT, 2002). Quando os jovens alcançavam esse tipo de equilíbrio, as

dificuldades iniciais ficavam para trás.

4.4 - “O futebol é um jogo de contato; muito contato entre seres humanos”: aprender é incorporar

A prática social, o tempo de dedicação ao jogo e a experimentação permitiam

que os jovens incorporassem gestos/expressões/linguagens, enfim a habilidade de

futebolista. Tal transformação era lenta (mas perceptível) e possibilitada pelo uso

ampliado dos sentidos: a visão, a audição, o tato, etc., eram aguçados no jogo. Os

praticantes constituíam, portanto, um tipo de atenção que não apenas permitia a

aprendizagem do futebol, mas era efeito dela.

KASTRUP (2005, p. 1279) explica: O aprendizado depende, de saída, da suspensão de uma atitude recognitiva. Começando por mobilizar uma intenção consciente, torna-se aos poucos initencional. [...] No longo prazo, uma segunda espontaneidade toma lugar. Esta é definida com uma curiosa formulação de um esforço sem esforço, que supera tanto a dicotomia ativo/passivo quanto a dicotomia voluntário e involuntário. Nesta segunda espontaneidade a atenção não é ativa, pilotada por um eu, nem passiva, lançada reflexa ou mecanicamente ao sabor dos estímulos do ambiente externo. [...] o aprendizado estabiliza um tônus atencional singular. (Grifos meus)

Page 167: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

167

Nesse processo, em que a compreensão se impunha à explicação e se

articulava à experiência (MAGALHÃES, 2007), como afirmavam os “nativos”, os

praticantes aprendiam a “pegar a moral do outro”: “— Eu sei como que ele joga e ele

sabe como que eu jogo”. Jogando juntos (ou em diferentes grupos) todos os dias, os

praticantes aprendiam a ler/narrar o jogo. Quando alcançavam esse tipo de

percepção, o jogo de futebol ganhava contornos de um diálogo sutil e ampliado (uma

linguagem gestual ilegível a um outsider) em que os praticantes conversavam com

as ações do corpo. Mas isso não era inato. Como afirmou Pelé, tratava-se de

habilidade aprendida: Não, nos primeiros [...] tem uns jogos aí que eu não estava fazendo gol, porque eu não estava acostumado com os meninos. Aí já tem outros jogos que eu já comecei a pegar a moral dos meninos. Aí isso aí é bom. Aí eu comecei a fazer muitos gols. [...] É, tem que aprender, aí você tem que olhar também as pessoas que você ta jogando pra você aprender como que ele joga, incentivar ele a jogar também, aí você vai pegando a moral do menino pra saber, aí você vai saber todos os toques que ele dá, aí você vai saber pegar. [...].(Grifos meus)

Esse tipo de percepção, que Pelé denominou a “moral do outro”, distinguia o

conhecedor, o habilidoso. “Pegar a moral do outro” no jogo de futebol era um desses

tipos de aprendizado, que, na definição de Kastrup (2005, p. 1279), estabilizava um

“tônus atencional singular”. Diferentes dos iniciantes, que tinham de pensar sobre

como agir a cada nova situação, os veteranos agiam. O corpo desses futebolistas

“pensa e calcula por ele, imediatamente, sem passar pela intermediação [...] do

pensamento abstrato, da representação prévia e do cálculo estratégico”. É o corpo

que “sabe, compreende, julga e reage [eu diria age], tudo ao mesmo tempo”

(WACQUANT, 2002, p.177 – 118). Quem constituía a habilidade futebolística agia

como tanta “naturalidade” e leveza que parecia ter nascido com o domínio do jogar,

ou seja, para esses praticantes — como afirmou Kastrup (2005, p. 1279) — “uma

segunda espontaneidade tomava lugar”.

Nos esportes, como nas artes, quanto mais invisível for o esforço, mais

incorporada é a habilidade, mais distante da posição de participação periférica

(LAVE e WENGER, 1991). Entendendo que nesse aspecto há aproximações do

aprendizado do futebol com o do boxe, recorri às reflexões de Wacquant (2002, p.

88 - 89):

Page 168: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

168

A simplicidade da aparência dos gestos do boxeador não pode ser mais enganosa: longe de serem “naturais” e evidentes, os golpes de base [...] são difíceis de serem executados corretamente e supõem uma “reeducação física” completa, uma verdadeira remodelagem de sua coordenação ginástica até mesmo uma conversão física. Uma coisa é visualiza-lo e compreende-lo em pensamento, outra bem diferente é realiza-los e, mais ainda, encadeá-los no fogo da ação. O domínio da teoria tem muito pouca utilidade, uma vez que o gesto não está inscrito no esquema corporal; e é somente quando o golpe é assimilado no e pelo exercício repetido ad nauseam que ele se torna, por sua vez, completamente claro para o intelecto. Há de fato uma compreensão no corpo que ultrapassa — e precede — a plena compreensão visual e mental. Somente a experimentação carnal permanente que constitui o treinamento como complexo e coerente de práticas de incorporação.

Nas práticas futebolísticas do bairro Universitário o conhecimento não era

racionalizado, mas encarnado. Nesse caso, as ações “não derivam de juízos ou de

raciocínios, mas de um confronto imediato com os acontecimentos” (VARELA, 1992,

p. 15). Esse tipo de habilidade ou, como afirma Varela (1992, p. 42), de “atividade

inintencional”, não é “casual ou exclusivamente espontânea”. São ações que se

“transformam em comportamento incorporado graças ao treino”. Conforme explica

Varela (1992, p. 95) nesse tipo de reflexão corporificada — que se aproxima mais de

um confronto imediato do que um conhecimento específico —, “a reflexão não é

apenas sobre a experiência, mas que ela própria é uma forma de experiência”.

Aprender futebol não significava, portanto, incorporar apenas gestos.

Significados, conhecimentos, emoções, disposições e até equipamentos eram

incorporados ou constituídos no corpo dos praticantes no decorrer do processo de

participação. Alguns relatos de praticantes do jogo servem como exemplos desse

processo de incorporação. Nos trechos de entrevistas que seguem, Biruga falou

sobre a importância da incorporação de equipamentos futebolísticos164, Schiva

abordou a incorporação do sentido do jogo e Cadu apresentou a humildade como

uma disposição corporal. Mas também tem uns que na pelada jogam descalço, igual campo de terra, é uma coisa. Mas quando você vê ele botar um calçado, aí você fala vamos ver se esse menino joga calçado com uma chuteira ou uma chuteira soçaite, uma chuteira de trava, vou ver ele jogar,

164 Para participar dos campeonatos de futebol de várzea muitos jovens tinham de aprender a jogar futebol de chuteiras (visto que a maioria jogava descalça no cotidiano). Esse aspecto, até então de menor importância (num contexto que sinalizava para a participação dos jovens em competições), tornava-se crucial. Se o jovem não conseguia estabelecer uma relação com a bola intermediada pela chuteira, ele se via limitado e desajustado na produção dos gestos futebolísticos. A inclusão desse elemento alterava substancialmente a performance.

Page 169: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

169

não é a mesma coisa. Um cara que só joga pelada aqui mata, mas não joga... [...] Então na hora que você coloca um calçado nele ele não joga, ele não joga. (Biruga) (Grifos meus) Tem, o meu primo, ele é mais novo que eu, ele tem, 12 anos, e ele tinha uma mania de pegar a bola e ficar driblando demais e quando você dribla demais, a proporção de você estar sofrendo a falta dentro do jogo, e ele chegava aqui em casa toda vez machucado, com o pé machucado, a coxa doendo, aí eu falei com ele pra ele poder parar de ficar prendendo muito a bola, driblando demais, porque é melhor você pegar a bola e tocar porque você evita de tomar uma pancada do que você ficar lá driblando sem objetividade, o drible no futebol é importante, mas você tem que estar driblando com objetivo de fazer o gol. Ele pegava a bola, levava pro canto do campo e ficava driblando, driblava um, dois, três, aí vinha um e rachava ele, rachava (no futebol é chegar forte, machucar, chegava pra machuca), ele saía, voltava ralado de novo, fazendo a mesma coisa, apanhava de novo e agora ele ta parando com isso, ele esta acostumando a tocar mais a bola, porque evita o contato. (Schiva) (Grifos meus) Igual eu falo, humildade tem que ter demais, falar eles falam mesmo, a gente se humilde. [...] Humilde no futebol, tipo assim, tem muita gente que joga pra torcida, você já viu?Quer enfeitar e tudo, e lá não, lá pra gente jogar pra equipe, ganhar e ir fazendo feio ou bonito,E humilde, tem que ser humilde, e graças a Deus, tudo que eu faço eu sou humilde. [...] Então, às vezes quando nós vamos jogar peladinha, esses negócios assim, aí dá, tem demais, o que você mais vê é avacalhação, tipo virar a cara, vem dar em mim, essas coisa assim, mas na hora de jogar, eu não faço isso, eu não gosto muito disso, aparecer para os outros não. (Cadu) (Grifos meus)

Tornar-se futebolista requer a incorporação da prática e de elementos que

parecem abstratos. Disciplina, humildade, controle das emoções, cuidados com o

corpo (formação de hábitos), regras e ética do campo futebolístico só tinham valor

quando incorporadas pelos praticantes, quando se tornavam disposições corporais.

A compreensão (do sentido do jogo, da importância da disciplina ou da humildade,

por exemplo) estava diretamente relacionada à mudança na forma de jogar/agir.

Jovens indisciplinados ou “metidos” podiam ser excluídos da prática por isso. Um

caso exemplar desse tipo de exclusão foi o de Rafael (jovem que se destacava em

relação aos pares do time infantil, mas que não conseguia estabelecer uma relação

amistosa com o treinador), que saiu do Racing por causa das implicâncias de

Biruga. Segundo Rafael, Biruga não aceitava o fato de ele treinar em outro time de

futebol de várzea no decorrer da semana. Acrescentou também que ele implicava

Page 170: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

170

com sua forma de jogar, dizendo que Rafael é “metido”. Numa das discussões com

Biruga, Rafael saiu definitivamente do Racing.

Nesse campo o domínio da teoria (know-what) não era suficiente, ou como

afirma Wacquant (2002, p. 89), “tem até mesmo pouca utilidade”. O futebol, uma vez

aprendido/incorporado, dispensava o discurso e a mediação do pensamento. Feita

de exercício prático e conduzida pela repetição, a habilidade futebolísticas advinha

“de um longo processo de cultivação no momento da ação” (VARELA, 1992), “da

participação na prática social” (LAVE e WENGER 1991), de um tipo de educação da

atenção (INGOLD, 2000, 2001).

A observação das práticas futebolísticas juvenis possibilitou ainda perceber a

imbricação de elementos tratados como dicotômicos e romper dicotomias clássicas.

Como afirma Toren (1999, p.4), certas distinções teóricas amplamente aceitas

(cultura/biologia, sociedade/indivíduo, mente/corpo, mental/material, teoria/prática,

subjetivo/objetivo, processo/estrutura), não “capturam a nossa experiência cotidiana

de mundo e nossas relações com os outros”.165 Pelo contrário, dificultam a

compreensão dos fenômenos sociais, uma vez que opõem aspectos intimamente

atrelados. No caso do futebol, a aprendizagem supõe uma simbiose entre corpo,

mente, cultura, ambiente.

Do mesmo modo que parece inadequado à compreensão da aprendizagem

do futebol estabelecer uma relação dicotômica entre corpo e mente, biologia e

cultura, não se pode tomar como foco o sujeito aprendiz (isolado,

descontextualizado). As várias citações do diário de campo apresentadas (e tantas

outras semelhantes que poderiam ser citadas) servem para mostrar que o futebol é

incorporado na prática social por meio da experiência.166 A complexidade que

165 Com a intenção de forçar uma mudança genuína no modo como os antropólogos e cientistas humanos, concebem a si próprios e aos outros seres humanos, bem como no modo como fazem suas pesquisas, Toren (1999, p. 4) propõe que o corpo e a mente, o biológico e o cultural, o material e o mental sejam tomados como aspectos um do outro, ao invés de fenômeno separado e dialeticamente relacionado. 166 O comportamento ético (descrito por Varela 1992), o boxe (descrito por Wacquant, 2002), o cálculo (descrito por Lave, 1988), a produção do ceramista (descrita por Sinha, 1999) e o futebol são atividades diferentes. Contudo, apesar de se tratar de práticas diferentes, as teorizações dos autores estão apontando para a mesma forma de entender o processo de aprendizagem. O que serve para compreender o modo de aprender futebol (atividade prática concreta) serve para atividades tidas como abstratas (como o cálculo, a ética). Em todos os casos a aprendizagem se dá por um processo de incorporação e de participação na prática social. É por isso que Wacquant (2002, p.12) tem grande pertinência na sua afirmação de que os boxeadores (ou nesse caso os futebolistas) “têm, aqui, muito a nos ensinar” sobre o boxe (e sobre o futebol), “é claro, mas principalmente sobre nós mesmos”.

Page 171: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

171

envolve a sua aprendizagem pode ser sintetizada na definição que Schiva faz do

futebol: O futebol é um jogo de contato; muito contato entre seres humanos e tem que treinar, porque se você não treinar você não consegue jogar [...] “a habilidade você adquire, você já não nasce sabendo não, ninguém nasce sabendo driblar, sempre está acumulando dentro de jogo um drible, um toque mais refinado, sempre você aprimora assim. (Grifos meus)

No futebol, que Schiva define como “jogo de contato”, o corpo está

completamente implicado e situado no coletivo. A aprendizagem é resultado da

experimentação ao infinito do jogo, de uma mudança na relação com a bola e com o

outro e, também da percepção do campo de jogo e das atividades das quais ele é

suporte. Nesse tipo de aprendizagem, o que está em questão não é o pé/perna

(músculos), a bola, o outro, o campo, como unidades isoladas. Aprender futebol,

como permite compreender Schiva, significa aprender o conjunto (ou sistema inteiro)

de relações dos quais esses elementos fazem parte. Assim, os movimentos de um

praticante habilidoso são “continuamente e fluentemente responsivo para as

perturbações do ambiente percebido”. Isso só é possível porque o movimento

corporal do praticante é um movimento da atenção, ou seja, porque ele observa,

ouve, sente e age (INGOLD, 2001, p. 135). Parafraseando Ingold (2001, p. 133), a

habilidade para jogar futebol não está, portanto, no jogador ou na bola. Ela “emerge

através do trabalho de maturação dentro do campo da prática”. Ela “não existe nem

dentro do corpo/cérebro do praticante nem fora no ambiente”. São “propriedades de

sistemas dinâmicos” que atravessam o corpo. O “jogo de contato” descrito por

Schiva supõe o domínio do futebol como um campo total de relações (INGOLD,

2001).

Finalmente, é importante ressaltar que a aprendizagem também

fundamentava a prática social. Desse modo, as aprendizagens futebolísticas

“garantiam” não só a permanência do praticante, mas a produção da prática social

em si. Jovens que se produziam jogadores de futebol (na escola, na rua, no campo

de futebol, em casa e na praça esportiva do bairro) produziam o futebol: com

valores, normas, significados, etc.

Nesses contextos, as próprias práticas da qual foram se constituindo

praticantes orientavam e faziam parte dos conhecimentos não apenas para dispor,

Page 172: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

172

mas, sobretudo para se relacionar com novos iniciantes.167 Isso não significava,

contudo um processo mecânico de reprodução cultural. No esporte — como em

outros campos das relações humanas onde poder e conhecimento se entrecruzam

— a realidade não é dada.

De fato, nos contextos futebolísticos do bairro Universitário a habilidade

constituía-se como demonstração de poder — capaz até de produzir violência

simbólica (DAMO, 2001) — e aprender implicava participar desse jogo de relações.

Como afirma Lave e Wenger (1991, p. 98), a estrutura social da prática, “suas

relações de poder e suas condições para a legitimidade” definiam possibilidades

para a aprendizagem. Nesses contextos de disputas e de contatos (que implicam

poder), o outro (com o qual se relaciona no jogo de futebol) era o adversário a

superar, a sobrepujar, a vencer. Contudo ele representava mais que isso: o outro era

parte da prática social, o outro era parte da performance de cada um, o outro era

parceiro de aprendizagem.

Como água e corpo que se transformam no mergulho (quando um dá nova

forma ao outro), nas práticas futebolísticas os jovens se constituíam e produziam a

prática social. Da experiência futebolística eles não saiam impunes e, como afirma

Toren (1999), literalmente incorporavam a sua história.168 Aprender é transformar, ou

seja, a participação dos jovens no universo do futebol funcionava, portanto como

invenção de si e do mundo (KASTRUP, 2004).

Se a aprendizagem vinha da experiência, contudo, ela não podia ser prevista

no tempo. De repente, na execução/participação havia o “clique”... Como um estalar

de dedos a habilidade já fazia parte do corpo.

Novamente Palomar...

Contudo, o senhor Palomar não perde o ânimo e a cada momento acredita haver conseguido observar tudo o que poderia ver de seu ponto de observação, mas sempre ocorre alguma coisa que não tinha levado em conta. Se não fosse pela impaciência de chegar a um resultado completo e definitivo da sua operação visiva, a observação das ondas seria para ele um exercício muito repousante e poderia salvá-lo da neurastenia, do infarto e da úlcera gástrica. E talvez pudesse ser a chave para a

167 A habilidade futebolística que os jovens mais experientes do bairro Universitário constituíam no corpo estava longe de ser o ponto final do processo de aprendizagem de um jogador de futebol. Jovens que ingressam na carreira profissional, por exemplo, necessitam de incorporar outros elementos da prática social — processo sobre o qual Damo (2005) se debruçou. 168 Como afirma Maturana (2001, p. 69), temos que atentar para o fato de que “a corporalidade é diferente quando se cresce fazendo trabalhos manuais, fazendo reflexão filosófica, ou não fazendo nenhuma dessas coisas”.

Page 173: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

173

padronização da complexidade do mundo reduzindo-a ao mecanismo mais simples. (CALVINO, 1994, p. 10)

Page 174: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

174

4.5 – Jogo de corpo, corpo do jogo 169: futebol e masculinidade

“A masculinidade, como a feminilidade, é um saber ver, um perceber uma parte do mundo que ao outro escapa” (LA CECLA, 2005, p. 7).

Toda tarde, jovens de diferentes idades que praticavam futebol na quadra da

EECJP pela manhã se misturavam com outros praticantes no campo de futebol do

Racing e na Praça de Esportes do bairro. À exceção da aula de Educação Física

(quando dividiam o espaço da quadra de futebol com as alunas), no recreio da

escola, no Projeto Social de futebol, no treino do time de futebol do Racing, nas

práticas de lazer (na pelada), etc., os jovens dominavam o espaço. Essa marcante

presença/participação masculina no futebol indicava, conforme foi visto

anteriormente, que no bairro Universitário o futebol era contexto generificado170, em

que os participantes legítimos eram do sexo masculino.171

A convivência entre meninos, rapazes e homens no futebol, evidenciava um

complexo exercício de constituição de identidades.172 De acordo com Lave e

Wenger (1991, p. 58), “a aprendizagem envolve a pessoa por inteiro”, de modo que

“atividades, tarefas, funções e entendimento não existem isoladamente”. Segundo

os autores (1991), “esses sistemas de relações surgem e são reproduzidos e

desenvolvidos em comunidades sociais”, de modo que a pessoa é definida por, bem

como define essas relações (e aprende). Para Lave e Wenger (1991, p. 53), ignorar

esse aspecto da aprendizagem é negligenciar o fato de que a “aprendizagem

envolve a construção de identidades” e de que “identidade, conhecimento e membro

social acarretam/causam (entail) um ao outro”. Como afirma os autores (1991, p. 58)

a “aprendizagem e um senso de identidade são inseparáveis: eles são aspectos de

um mesmo fenômeno”.

169 O subtítulo foi inspirado no trabalho de campo de Júlio César Fontes, meu orientando de pesquisa na Rede Cedes (EEFTO – UFMG) em 2006 e 2007. 170 O termo gênero é utilizado para rejeitar explicações biológicas, indicar as diferenças entre homens e mulheres como construções culturais, sugerir que qualquer informação sobre as mulheres é necessariamente informação sobre os homens (um implica o estudo do outro), enfatizar o fato de que o mundo das mulheres faz parte do mundo dos homens. O termo gênero também é utilizado para designar as relações sociais entre os sexos. Os estudos de gênero afirmaram a primazia metodológica de investigar as relações sociais de gênero sobre a investigação das concepções de cada um dos gêneros. 171 Neste trabalho dei centralidade à constituição da identidade masculina, embora saiba que outras identidades atravessam a produção deste esporte: a identidade de torcedor, por exemplo. 172 Sobre o futebol, como exercício e expressão de masculinidade, ver também Soares (2006), Guedes (2006), Archetti (2003).

Page 175: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

175

Como “arena simbólica de um ethos masculino encenado publicamente”, o

esporte representa para a maioria de homens “o principal lócus de ensino, de

preservação, de re-atualizam e de expressão pública das normas tradicionais de

masculinidade” (MOURA, 2005, p.140).173 Desse modo, ele pode ser entendido

como um dos contextos interacionais de constituição de identidades.174

A convivência masculina nos espaços de futebol do bairro Universitário (para

“jogar bola”, para observar as práticas, para conversar com os amigos, até para

estar lá) é reveladora da importância do tipo de sociabilidade que este esporte

oferecia/promovia. Como afirma Pelé, quem joga no campo de futebol e/ou nos

contextos de pelada da favela “é só homem (inclusive nas conversas sobre futebol),

as mulheres gostam de brincar de bingo”. Como “a casa-dos-homens” descrita por

Welzer-Lang (2001, p. 462), trata-se de contextos “onde a homossociabilidade”

podia ser vivida e “experimentada em grupo de pares” — quando os mais velhos

mostravam, corrigiam e serviam como modelo para aqueles que buscavam acesso à

virilidade.175

O universo do futebol é, portanto, um lócus “especialmente apto para oferecer

à comunidade masculina espaços, atores, ações e práticas condizentes à produção

e reprodução de um ethos” e de conjunto de emoções que se constituem

173 Não apenas o esporte constitui a identidade de gênero: a família e a escola são contextos de aprendizagem do masculino e do feminino. Assim, “a compreensão da masculinidade hegemônica em contextos culturais diferentes pode envolver práticas que estão em contradição com outros espaços culturais” (MOITA, 2003, p. 20 – 21). 174 Sem pretender ampliar a discussão, assumirei as identidades como um construto de natureza social. Como propõe Moita (2002, 2003) — que faz uma crítica às visões essencialistas — as identidades não têm uma base imutável que se mantém no decorrer da história. Compartilhando da posição de Hall (1996) o autor (2003, p. 27) afirma que as identidade “não são nunca unificadas”. Ao contrário, em permanente processo de mudança e transformação, “na modernidade tardia”, elas “são cada vez mais fragmentadas e fraturadas nunca singulares mas construídas de forma múltipla nos diferentes discursos, práticas e posições, frequentemente entrecruzados e antagônicos” (MOITA, 2003, p. 27). Como afirma Moita (2003, p. 27), a identidade “tem a ver com tornar-se e não com ser”. Para o autor (2003), aprendemos a ser o que somos nas interações cotidianas. 175 Diferente dos trabalhos do antropólogo Maurice Godelier (1982) sobre os Baruya da Nova Guiné — contexto em que “a casa dos homens está materializada e localizada num lugar específico” — Welzer-Lang (2001, p. 467) usa o termo “casa-dos-homens” para “metaforizar os lugares de socialização masculina em nossas sociedades complexas”. Assim Welzer-Lang (2001, p. 463) descreve a “casa-dos-homens”: “Ela funciona, parece, como um lugar de passagem obrigatória que é fortemente freqüentado. Um corredor onde circulam, ao mesmo tempo, jovens recrutas da masculinidade (os pequenos homens que acabaram de abandonar a sala das mães) e outros pequenos homens recém-iniciados que vêm também — assim como é o costume dessa casa — transmitir uma parte de seus saberes e seus gestos. Mas a antecâmara da “casa-dos-homens” é também um lugar freqüentado periodicamente por homens mais velhos. Homens que ocupam, ao mesmo tempo, o lugar de irmão mais velho, modelo masculino a ser conquistado pelos pequenos homens e agentes encarregados de controlar a transmissão de valores. Alguns se nomeiam pedagogos, outros monitores de esporte...”.

Page 176: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

176

culturalmente como um tipo de educação masculina (BINELLO, CONDE,

MARTINEZ, RODRIGUES, 2000, p. 39). O futebol é, desse modo, contexto onde

não apenas impera a presença masculina, mas também onde os comportamentos

(hegemônicos) associados à masculinidade são ressaltados. Conforme foi

observado no bairro Universitário, nesses contextos eram corriqueiras as situações

de brigas (pequenos conflitos ou “estranhamentos” entre jovens/jogadores),

empurrões, choques, palavrões — o que afinal, como afirmou Juliano (auxiliar do

treinador) “é inevitável, principalmente na hora do jogo”. A exaltação desses modos

masculinos (ou que na sociedade/cultura são associados à masculinidade) permite

que o futebol seja visto não só como específico para a sociabilidade dos homens,

mas também como “proibido” para as mulheres.

Era tão significativa a distinção de gênero nessas práticas futebolísticas que a

participação de mulheres parecia destoar da lógica do lugar. “Frágeis” (como diziam

os praticantes quando se referiam às mulheres), elas pareciam inadequadas para

contextos sociais de convivência dos homens e de exaltação de valores e modos

masculinos. No relato que segue, esses contextos de futebol podem ser entendidos

como masculinos: Combino  com Biruga  (o  treinador do  time  Infantil  e  Juvenil do Racing) para  freqüentar  os treinos, peladas e jogos do grupo.  Desse modo, no horário informado por ele, vou para o campo de futebol do Racing a fim de acompanhar um dos treinos.   Chego antes das 16h  (horário marcado para os  treinos) e  já  estão  lá alguns  jovens  (que não fazem parte do time) “batendo bola” em uma parte do campo. Do outro lado, Biruga conversa com os jovens/jogadores do Racing. Ele parece estar fazendo uma daquelas reuniões de rotina (para “chamar o time à responsabilidade” nos treinos). Vou  chegando  devagar  e,  logo  que  Biruga  percebe  a minha  presença,  acena  com  a  cabeça consentindo a minha aproximação. Muitos jovens estão sentados no banco de madeira, outros de  pé  ouvem  Biruga  (enquanto  observam  a  minha  chegada).  Paro  ao  lado  de  Biruga.  A princípio não entendo muito bem a conversa, apenas que ela funciona como um tipo de reforço, para  invocar a  seriedade da participação no  treino/time. Biruga afirma que os  jovens devem aproveitar  a oportunidade, pois podem ser substituídos. Após  conversa  (de  uns  10 minutos  aproximadamente), Biruga me  apresenta  aos  jovens  do time. Diz que eu estou fazendo uma matéria sobre o futebol e que vou acompanhar o grupo por um tempo. Fala também que eu devo ser formada em alguma coisa (confirmação de que mereço respeito ou credibilidade para meu trabalho). Biruga avisa ainda aos jovens que eles estão na  presença  de  uma mulher  (“—Que  deveria  ser  casada.”)  e  que  não  é  para  eles xingarem palavrões ou  falar  besteira no decorrer do  treino:  “—Nada de palavrões hoje”. Finalmente, avisa aos jogadores que Juliano e outro jovem vão assumir o treino, pois ele está fazendo um curso. Já de saída do campo, Biruga se dirige a mim dizendo: “—Você fica 

Page 177: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

177

por  aqui”  (referindo‐se  ao  lado  do  campo  em  que  devo  ficar  para  fazer  as observações). Ele acrescenta: “— Lá (apontou para o outro lado), eu não aconselho.” Deixa  implícita a  falta de segurança do  lugar próximo à arquibancada, onde estão sentados alguns  jovens que “usam” drogas. Biruga pede que  eu  o  siga  e  se dirige para dentro do campo. Antes de  sair, organiza os  times de  futebol para o  jogo/treino, convoca os jogadores  de  cada  time  falando  as  posições.  Biruga  dá  as  últimas  instruções  a  Juliano  e atravessa  o  campo  em  direção  às  arquibancadas. Mesmo  à  distância,  ele  continua  a  dar orientações  ao  grupo  e  a  Juliano.  Somente  após  estar muito  longe  sai  totalmente  de  cena. Juliano dá início ao jogo apitando. 

Constituindo a si próprios na prática social, os jovens do bairro produziam

futebóis e masculinidades. Do mesmo modo, jovens que ficavam sempre em grupos

de mulheres eram estigmatizados e tinham a masculinidade questionada. Isso foi o

que ocorreu com Joaquim, que participava de um grupo de meninas na escola.

Associado à feminilidade, ele não era chamado para jogar com os homens (a

praticar a masculinidade). A sua forma de inserção no futebol (jogando apenas com

mulheres) parecia deixá-lo à margem do universo simbólico do futebol e da

masculinidade hegemônica.

Para Welzer-Lang (2001) não se chega a ser macho sem passar grande parte

do tempo em “espaços masculinos”. Para o autor (2001, p. 465) “os homens que não

mostram sinais redundantes de virilidade” (participando das práticas futebolísticas

com outros homens, por exemplo,) “são associados às mulheres e/ou a seus

equivalentes simbólicos” (os homossexuais) e, portanto, estigmatizados. Foi o que

ocorreu com Joaquim e outros jovens que no bairro Universitário fugiam da

participação nesse tipo de prática social ou que aderiam à participação em práticas

mais associadas ao âmbito do feminino. Por exemplo, participar dos jogos de

queimada com as meninas da escola nas aulas de Educação Física como fazia

Joaquim.176 Afirma o autor (2001, p. 468): “nós estamos claramente na presença de

um modelo político de gestão de corpos e desejo”, em que o “aprender a estar com

homens [...], aprender a jogar hockey, futebol ou base-boll é inicialmente uma

maneira de dizer: eu quero ser como os outros rapazes”. Portanto, “eu quero me

dissociar do mundo das mulheres e das crianças” (WELZER-LANG, 2001, p. 463).

176 A participação masculina nos jogos de queimada das aulas de Educação Física não necessariamente significava uma vinculação com a feminilidade. Jovens que transitavam entre homens, participando dos contextos masculinos (como do futebol) podiam por vezes participar do jogo sem que a sua masculinidade fosse questionada pelos pares.

Page 178: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

178

Quanto mais distante do feminino, mais o jovem demarcava a sua

masculinidade. Assim, definir-se como homem era se distinguir das mulheres.177 É

por isso que no decorrer das práticas futebolísticas no bairro Universitário eram

muitas as intervenções que visavam à demarcação das ações “adequadas” ao sexo

masculino. A educação dos jovens nas práticas futebolísticas estruturava o

masculino de maneira paradoxal e produzia nos pequenos homens a idéia de que,

para serem homens de verdade, deviam “combater os aspectos que poderiam fazê-

los serem associados às mulheres” (WELZER-LANG, 2001, p. 426). Assim,

praticantes (sobretudo os mais velhos) se dirigiam aos jovens encorajando-os a

assumir posturas/modos masculinos e desencorajando-os (e até proibindo) de

condutas impróprias. Isso foi o que ocorreu, por exemplo, quando dois jovens (que

aguardavam a vez de realizar o exercício de futebol proposto pelo professor do

Projeto Social) começaram a brincar muito próximos, realizando até pequenos

toques corporais (um segurando o outro). Imediatamente, ao perceber a

movimentação desses jovens, o professor os advertiu em voz alta: “—Vão parar com

viadagem!” A intervenção chamou a atenção da turma, que logo se voltou para os

dois “infratores” dos códigos masculinos. Eles encerraram a brincadeira, enquanto o

professor se aproximava, completando: “—Homem não fica pegando assim não.

Isso é coisa de mulher.”

O esforço de diferenciação estava contido, entretanto, no próprio gesto

futebolístico e no investimento de aprendizagem/participação no futebol. Afinal, na

cultura em que o futebol se constituiu historicamente como prática/atribuição

masculina, o domínio do jogo em si já “atestava” masculinidade e/ou funcionava

como um investimento nela. Não se pode, contudo, dizer que o feminino estava

ausente. Pelo contrário, o feminino apresentava-se como uma referência a se opor.

Observando os jogos de futebol na aula de Educação Física na EECJP, no

bairro Universitário (único contexto em que mulheres jogavam futebol no bairro) foi

possível fazer um inventário das práticas de futebol de alunos e alunas. Nesse

exercício, foi possível destacar, para além das semelhanças, algumas

singularidades que caracterizavam os modos de jogar/agir de homens e de mulheres

no jogo — o que está diretamente relacionado com os valores e normas sociais

177 Sobre a aprendizagem da masculinidade como a que envolve a aprendizagem da distinção do feminino, pode-se consultar: La Cecla (2005); Oliveira (2004); Nogueira (2006); Welzer-Lang (2001).

Page 179: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

179

presentes neste esporte e com as condições de acesso/aprendizagem, mas não

com esquemas inatos.

Seguem descritos traços hegemônicos do futebol nas aulas de Educação

Física da escola EECJP:

a) Jovens do sexo masculino (que aprenderam ou que estavam aprendendo o

jogo): Chegavam ao espaço, organizavam e iniciavam o jogo rapidamente.

Paravam muito raramente o jogo para discutir as regras.

Realizavam jogos (com raras exceções) competitivos, dinâmicos/corridos, viris e

agressivos.

Encenavam, nos confrontos/choques entre os jogadores, quedas/manhas de

jogadores profissionais.

Faziam geralmente comemorações de gol silenciosas, com toques de mãos

fechadas.

Para chamar a atenção dos parceiros batiam palmas, assoviavam e produziam

outros sons com a boca.

Tinham mais intimidade/desenvoltura no manuseio da bola de futebol. Olhavam

menos para a bola e mais para os outros jogadores na hora do passe e recebiam a

bola escorando-a com a parte interna/externa do pé.

Recebiam o passe/bola com abordagem direta;

Insistiam mais em alcançar bolas longas (vigor para o jogo, superação de limites);

Consideravam errar chutes (ou, como diziam os nativos, “chutar vento”) motivo para

chacotas.

b) Jovens do sexo feminino:178 Demoravam a organizar o time e iniciar o jogo, pois tudo era mais conversado.

Paravam o jogo muitas vezes para discutir as regras.

Davam ao jogo geralmente um tom de brincadeira, com ritmo menos intenso, com

menos rivalidade e competição.

Gritavam (com expressão de dor), nos confrontos/choques entre si.

Faziam comemoração de gol com gritos, pulos e abraços entre si. 178 Algumas das características do futebol descritas neste parágrafo (como parte do modo de agir das mulheres no futebol) também foram observadas entre os iniciantes. Contudo eles não foram incluídos no grupo pelo fato de que, ao contrário das meninas, que seguiam realizando práticas de futebol semelhantes no decorrer de toda a escolarização (jovens de 5ª série jogavam de forma semelhante às do 2º grau), quase todos eles mudavam muito rapidamente a forma de jogar aprendendo/incorporando o jogo.

Page 180: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

180

Chamavam a atenção das parceiras tratando-as pelo nome ou gritando (“—Aqui.

Aqui.”).

Tinham menos intimidade/desenvoltura no manuseio da bola de futebol e, às vezes,

até parecia ter medo dela. Quase não tinham domínio de bola nos pés e

apresentavam dificuldade para abordar a bola em movimento.

Ficavam mais emboladas no campo (onde estava a bola estavam todas as

jogadoras).

Recebiam passes muitas vezes, titubeando sobre a forma de abordar a bola.

“Sapateavam” na escolha do pé a tocar a bola, preferiam os “bicudos” (chutar com o

dedão), olhavam para a bola, chutavam em direções menos precisas, recebiam

passes pisando na bola (movimento de cima para baixo — forma de apreensão de

pouco sucesso).

Usavam mais a força para manter/conseguir a posse de bola, valendo empurrar,

segurar, gritar.

Desistiam de correr nas bolas “longas” (mais freqüentemente) esperando a saída

lateral.

Consideravam errar chutes (“chutar vento”) motivo de risos.

Na escola, os praticantes que pretendiam se diferenciar das mulheres

realizavam exaustivamente o jogo. Quanto mais o modo de jogar se aproximava da

“forma como as mulheres” (ou iniciantes), maior era a chance de ser alvo de

chacotas (“—você joga que nem mulherzinha”). Isso era também o que acontecia

com aqueles que não apresentavam um tipo de vigor para o jogo. Um exemplo:

quando os jogadores do time de futebol do Racing manifestavam medo (ficando

titubeantes) nas situações de “dividida”, o treinador dizia: “— Alguns jovens jogam

como moça! Joga igual homem porra!”. No futebol, como afirma Oliveira (2004, p.

261), se exige dos jogadores: [...] assumir uma postura corporal mais rígida em situações em que se queira mostrar-se inabalável, negar-se a assumir alguns sentimentos tidos como não masculinos, reagir a desafios lançados por outros homens, desafiar outros homens, debochar e zombar de colegas por comportamentos e atitudes supostamente pouco masculinas.

Quanto às mulheres (que não deviam jogar como homens), elas podiam por

vezes participar do jogo, desde que passassem despercebidas, desde que não

apresentassem habilidade que pudesse remetê-las ao âmbito do masculino ou não

Page 181: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

181

disputasse espaço com os homens. Portanto, jovens que se habilitavam (aprendiam)

no futebol deviam mostrar-se masculinos, enquanto com as mulheres ocorria o

inverso. Em síntese: mulheres “que jogam quase como homens” e “homens que

jogam como mulheres” eram estigmatizados.

É importante salientar, pelo que foi visto, que a aprendizagem é que permitia

acesso ao jogo e que, ao contrário dos iniciantes na prática social (que podiam

aprendê-lo e com ele realizar um exercício de masculinidade) as jovens do bairro

estavam distantes da possibilidade de incorporá-lo.

Articulando o ônus (dores do corpo, exposição pública, etc.) e o bônus de

participar da prática social masculina — o “prazer de estar entre homens ou homens

em formação, de se distinguir das mulheres, prazer de poder legitimamente fazer

como os outros homens” (WELZER-LANG, 2001, p. 463), de pertencer à

comunidade de prática (LAVE e WENGER, 1991) — cada jovem/homem ia

individualmente e coletivamente constituindo a masculinidade. Mas não se tratava

de um processo ausente de coerções sociais. Afirma NOGUEIRA (2006, p. 231):

Os meninos, portanto, encontram-se duplamente marcados por essa exigência de se tornarem homens: (1) por serem jovens, assim como as meninas, e terem que corresponder aos ideais sociais estabelecidos para a maioridade [...]; (2) por serem impúberes em sua juventude e terem que adquirir, não apenas os caracteres sexuais secundários, mas a pilosidade mais abstrata, mas não menos material, de uma masculinidade incontestável e a mais próxima possível à hegemônica.

Nas práticas futebolísticas, portanto, cada praticante era guardião dos “modos

masculinos”, repassados com palavras (como fez o professor do Projeto Social),

mas sobretudo em gestos, posturas, poses, modos de agir.179 Era no “paralelismo

dos corpos” suados, viris, competitivos que cada jovem futebolista ia aprendendo a

compor o próprio corpo como corpo masculino. Como afirma La Cecla (2005, p.

102), “ser varão com outros varões significa saber jogar este jogo de regras não

escritas”, isto é, “os homens ficam juntos para definir a sua própria masculinidade”.

Masculinidade que se “adquire por imitação” e num processo de aprendizagem

contínuo (p. 105), “como corpo que imita a outros ao redor” (p. 28). No bairro

Universitário esse tipo de educação feita por mimetismo ocorria em todos os 179 “Estudos apontam que essa separação de mundos, em que os garotos tendem a interagir em amplos grupos de idades heterogêneas, nos quais os mais velhos, através de suas posturas e atitudes, aspectos corporais das vivências interacionais, impõem aos mais novos os códigos de comportamento masculino, modelo para vivenciais interacionais futuras” (OLIVEIRA, 2004, p. 259).

Page 182: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

182

contextos de futebol: quando os jovens imitavam os dribles e peripécias dos

jogadores profissionais e/ou os modos de agir, os gestos e as poses corporais dos

veteranos; quando eles imitavam a coragem daqueles que não “amarelavam”

(acovardavam) nos desafios e nos momentos de tensão/embates do futebol, etc.

Situando o exercício da masculinidade nos contextos de aprendizagem

esportiva, Guedes (1998) apresenta elementos da prática futebolística que também

estavam presentes no bairro. Segundo a autora (1998, p. 133 -132), é da

“tematização dos confrontos através do corpo” e dos “sucessivos embates” — “em

que se aprende a atacar e recuar, a não aceitar provocações, sendo, ao mesmo

tempo duro — que se aprende um “modo de ser homem”. Em vista disso, era da

“batalha fingida” do futebol na escola, no campo de futebol, no Projeto Social e nos

campeonatos amadores da cidade — em que se partia “do princípio fundamental de

que só se aprende a ser homem com homens” — que se celebrava a relação entre

os homens.

Pertencer ao universo futebolístico (como jogador, torcedor, colecionador de

figurinhas dos times, etc.) era ingressar numa trama de relações de masculinidades

que não tinha como resultado, contudo, um denominador comum. Segundo Connell

(1995, p. 190), a construção da masculinidade “tem uma estrutura dialética” e não

mecânica. Tal como afirma o autor (1995, p. 189), “diferentes masculinidades são

produzidas no mesmo contexto social”, ou seja, “as relações de gênero incluem

relações entre homens, relações de dominação, marginalização e cumplicidade”.

Enfim, “uma determinada forma de masculinidade tem outras masculinidades

agrupadas em torno dela”.

As relações de masculinidades no futebol do Universitário extrapolavam

também, em muitos sentidos, o campo de jogo. As práticas de torcedores, por

exemplo, eram reveladoras do tipo de construção do masculino que o futebol

envolve. Jovens que transitavam pelo bairro antes, durante e após as partidas de

futebol dos times profissionais (sobretudo Cruzeiro e Atlético) faziam também dessa

prática um exercício de masculinidade. Nesse contexto, críticas ao time perdedor,

chacotas (“tirar sarro” como diziam os nativos) envolvendo os torcedores do time

adversário, hinos dos Clubes, etc. eram apenas algumas das maneiras de “brincar

com a virilidade do oponente”. Esse tipo de zombaria e jocosidade (atrelada às

Page 183: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

183

situações rituais do futebol) assinalavam a “feminização indesejada pelos

praticantes” (NOGUEIRA 2006, p.213).180

Sob o risco de estar na posição não só inferior, mas sobretudo passiva, os

jovens participavam das práticas futebolísticas e demonstravam o pertencimento aos

clubes esportivos. Como afirma Damo (2005, p. 100), “o clubismo e, sobretudo, os

fluxos jocosos cotidianos mobilizam preponderantemente o público masculino”.

Nesse contexto, “pertencer é correr risco de ser insultado, gozado e passivizado”.

Acrescenta o autor:

Isso implica, de um ponto de vista posicional, tornar-se ativo/passivo. E o que é notável: é o seu time quem lhe torna ativo ou passivo. Pela performance dele é que alguém terá o direito a fazer ou o dever de receber uma jocosidade; de gozar em ou ser gozado por alguém. Talvez por isso o sofrimento faça parte da rotina de quem se diz torcedor; dos homens em particular; afinal ser torcedor é tornar-se susceptível de vir a ser passivizado metaforicamente. (2005, p. 100)

No futebol, como se pode concluir, eram exibidas e valorizadas as

demonstrações explícitas de habilidade, força, coragem, agilidade, virilidade,

velocidade, violência, rudeza. Cuspir, por exemplo, era prática muito comum entre

os jogadores no campo de futebol. Essas características eram atravessadas,

entretanto, por emoções “proibidas” aos homens em outros contextos. Assim, a

lágrima vinha aos olhos com a exclusão do time do campeonato, com a dor da lesão

muscular, com a vitória ou derrota em um jogo decisivo e em outras situações. Sobre

as emoções que envolvem o futebol, segue um relato de Denis (juiz de futebol):

É, e eu tava apitando o jogo lá, lotado, o campo lá de Neves. Choveu bastante e lotado o campo, mas choveu foi muito mesmo, o campo estava alagado. O time ganhou nos pênaltis... empate foi pra disputa de pênaltis, aí no vestiário, nós saímos do vestiário, e um monte de diretores do clube, [...], diretor de futebol amador, é muito interessante [...], chegou chorando pra mim dentro do vestiário (imita o choro do homem), muito obrigado, com o olho brilhando. Aquilo te emociona, aquilo você vê que seu trabalho, a responsabilidade de um árbitro de futebol é muito grande. (Denis) (Grifos meus)

180 O que também observou Nogueira (2006) em seus estudos sobre a identidade juvenil. Para o autor (2006, p.213) “o futebol também se prestava a essa mesma relação quando se tratava do enfrentamento das duas principais torcidas adversárias do estado no campeonato mineiro e nacional. Dizer que o “Galo”, símbolo do Atlético Mineiro, era uma galinha no campeonato ou que a Máfia Azul, torcida organizada do Cruzeiro, só tinha viado e que azul é cor de frutinha eram estratégias de imputar ao adversário uma condição feminina associada a seu time de futebol.”.

Page 184: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

184

Como espaço do masculino, o futebol permitia também a flexibilização de

regras que regem essas relações. Ao contrário de outros espaços sociais em que os

jovens do sexo masculino deviam manter a distância corporal, no momento ritual

desse esporte, alguns tipos de contatos masculinos não só eram permitidos como

também desejáveis. Os jogadores, por exemplo, ficavam abraçados em algumas

situações de jogo (na oração, no grito de guerra, na hora da cobrança de um

pênalti...). Eles se tocavam nas comemorações de gol: toque de mãos, abraços,

carregar no colo o autor de um gol importante. Muitas vezes, quando o autor do gol

se deitava ao chão “todo” o time podia ir deitando em cima dele, um verdadeiro

amontoado de homens, uns sobre os outros. Esse tipo de toque corporal não

colocava em questão a masculinidade. Como afirma Damo (2005, p.103), o futebol é

também uma “modalidade particular de sociabilidade”, em que são “culturalmente

toleradas, senão obrigatórias”, as “expressões públicas de afetos masculinos”.

Contudo o jovem (“aprendiz de homem”) devia saber se situar nesse campo de

relações, desvendando os limites colocados aos toques e as circunstâncias em que

eram permitidos. Esse aprendizado, feito a “duras penas”, constituía também num

exercício de identificação com os pares e de distinção do feminino.

Todo o processo de participação/aprendizagem na prática social permite

compreender que o jogo de futebol constituía o corpo do praticante como corpo

masculino e que o corpo do praticante constituía o jogo de futebol como jogo

masculino. De forma circular e imbricada, um ia produzindo o outro. No futebol os

jovens do bairro Universitário iam adquirindo aquilo que La Cecla (2005) chama de

fisionomia masculina (que os fazia parecer nascidos para o jogo). Por isso é que o

autor (p. XIV) afirma que “as identidades sexuais são fisiologias transformadas em

fisionomias”.

Essa circularidade de significados acabava por tornar a habilidade

futebolística “inacessível” às mulheres. Assim, eram comuns declarações

semelhantes a esta: “— As mulheres jamais jogam como os homens.” Conforme

afirmaram Izaque e Denis, o jogo era visto como patrimônio masculino:

Juliano - Aqui. Vou te perguntar. Olha aqui pra você ver. Sem olhar pra ele: — Izaque, Carol joga ou num joga? Izaque - Joga pra caralho. Juliano - Serve ou num serve no elenco? Eliene - E porque que ela joga pra caralho? O que que você olha assim para ela e fala assim: - Oh, joga pra daná?

Page 185: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

185

Izaque - Ah, ela joga muito veio. Joga quase igual homem mesmo. Eliene - É? Izaque - É. Eliene - O que que é diferente? Que num joga igual homem? Joga quase igual e num é igual? Izaque - Ah, porque ela é mulher também no caso... e qualquer coisa, tipo assim a gente trombar nela, num agüenta, porque nós homem trombar nela ai ela num vai agüentar, mas mulher ai ela agüenta. E ela deita o cabelo. Dibra pra caramba. Faz gol. Mete o gol. Mete a gaveta. (Grifos meus) Você pega uma seleção brasileira masculina jogando e a seleção brasileira feminina jogando e você vai ver a diferença, que é a mesma coisa de escola, se você for comparar, é a mesma coisa do homem jogando, só que ela tem habilidade, técnica, sabe tocar, correr, mas é diferente dos homens. (Denis - Professos de Educação Física) (Grifos meus)

A percepção dos modos de jogar futebol como modos masculinos parece não

apenas distinguir, mas, também homogeneizar homens e mulheres. Mas havia

contrastes: mulheres que jogavam melhor que alguns homens e homens que não

sabiam jogar futebol. Mesmo assim não serviam como parâmetro flexibilizador

destas certezas: “futebol é coisa de homem”; homem é que detém o domínio da

habilidade para o jogo. Ocorria desse modo no bairro Universitário uma

naturalização do futebol como prática masculina.181 O jogo de corpo no futebol

(historicamente adquiridos, porém interpretados pelos praticantes como naturais)

nesse contexto cultural se constitui como jogo de corpo masculino.

As identidades de gênero eram assim tecidas e incorporadas pelos

praticantes na prática social. Como afirma Connell (1995, p. 189), “no gênero a

prática social se dirige aos corpos”, ou seja, “as masculinidades são corporificadas,

sem deixar de ser sociais”. Segundo o autor (1995, p. 189), “nós vivenciamos as

masculinidades (em parte) com certas tensões musculares, posturas, habilidades

físicas, formas de nos movimentar, e assim por diante.

181 Alguns estudos (por exemplo, Altmann, 1998, Faria, 2001, Daolio, 1995) mostram que as mulheres, desde cedo, aprendem a ser obedientes, dóceis, dar atenção ao outro, perseverar nas tarefas, usar o espaço de forma limitada. Os meninos aprendem a competir, a se auto-afirmar, a usar o espaço sem economia. Nas relações com futebol essas diferenças se tornam ainda mais visíveis: os estímulos permeiam muito cedo a vida dos meninos (que, ao nascer, herdam um time de futebol para torcer, uma bola de futebol para iniciar aprendizagem, sendo todo o tempo incentivado competir...) as meninas são dirigidas para práticas consideradas, mais delicadas e de “bons modos” (por exemplo: não se sujar e não suar). Para uma menina assumir determinados comportamentos historicamente vistos como masculino, como ser agressiva e jogar futebol, implica em ir contra uma tradição.

Page 186: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

186

Parte de um jogo complexo, as masculinidades exercitadas nas práticas

futebolísticas não se produziam, contudo, de forma mecânica. Como afirma La Cecla

(2005, p. 60), “o gênero é uma prática, ou seja, algo que se modela com a prática”.

Assim, “ser homem ou mulher é uma técnica do corpo no sentido de Mauss, porém

uma que nos precede biograficamente, uma técnica de presença no mundo”, ou

seja, “ser homem ou mulher não é uma inscrição biológica, senão como temos dito,

uma condição”:182 Condição é um condicionamento e ao mesmo tempo uma faculdade, uma atitude. Uma condição pressupõe uma herança e um exercício, um “a partir” e um desenvolvimento, um ser precedido por algo e um estar destinado a ele, sem que estas linhas signifiquem um impedimento para a articulação inédita do presente. (LA CECLA, 2005, p. 13).

182Mauss (1974, p.211) define as técnicas corporais como maneiras com que os homens de cada sociedade “sabem servir de seus corpos” e que, não sendo naturais, mas adquiridas, expressam a própria sociedade que lhes deu origem.

Page 187: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

187

4.6 - A aprendizagem do futebol e a forma escolar Em vários momentos da pesquisa, pude perceber traços da forma escolar nas

práticas futebolísticas no bairro Universitário. Atravessando, de maneira sutil,

múltiplos contextos do jogo ela pôde ser percebida nos discursos e nas maneiras de

organizar algumas práticas dentro da escola e fora dela. Como objetivo dar relevo à

penetração da forma escolar no futebol do Universitário, esse item retoma e destaca

os contextos em que foi possível perceber evidências desse tipo de relação social

(relações pedagógicas).

4.6.1 - O futebol nas aulas de Educação Física: traços da forma escolar

Retomei as notas de campo buscando os traços daquilo que Vincent, Lahire e

Thin (2001) denominam de forma escolar no futebol das aulas de Educação da

EECJP. A estruturação do futebol nessa escola (descrita na parte II deste trabalho)

contrastava em alguns aspectos com a sua produção cotidiana no bairro. Assim, na

escola o futebol possuía um espaço/tempo específico para a prática/aprendizagem

(a aula de Educação Física), a freqüência era “obrigatória”, as turmas eram

organizadas por série/idade e os professores eram especialistas. De outro modo, as

práticas de futebol das aulas de Educação Física possuíam também semelhanças

com outros contextos de futebol, pois, conjugavam a “autonomia” dos alunos na

produção do jogo com a “ausência” quase total de práticas de ensino dos

professores (de sistematização do conhecimento). Como mostrado em vários

estudos no âmbito da Educação Física (FARIA 2001; SILVA 2004; ALTMAM, 1998),

o futebol era o esporte que oferecia maior resistência às práticas de ensino também

nas aulas de Educação Física na EECJP. Ele dificilmente era submetido aos

imperativos escolares de transmissão dos saberes (racionalização/organização,

seqüenciação, repetição) e, desse modo, não se transformava em exercício nas

aulas. Analisado sob a ótica da “lógica escolar de transmissão dos saberes”, pode-

se até concluir que o futebol produzido pelos jovens nas aulas de Educação Física

não se submetia à forma escolar, não se convertia em objeto de ensino na escola.183

183 Segundo Linhales (2006, p. 95) “é posterior a 1920 que essa prática social (o esporte) emprestará decisivamente à escola os seus dotes modernos e, nesse processo, também receberá dela sua forma socializadora. É também essa trama que cria as condições que possibilitarão que o esporte passe a ser, cada vez mais, apresentado como conteúdo educativo e como prática. Um ingrediente do fazer escolar”.

Page 188: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

188

A forma escolar emergia, contudo, em outros aspectos que permeavam a

produção do futebol na escola. Por exemplo, na relação que os professores

estabeleciam com as regras nas aulas de Educação Física. Algumas eram

propostas para atenuar os mecanismos de exclusão, ou seja, os professores

buscavam favorecer e ampliar a participação dos alunos. Duas situações específicas

(não-regulares) de intervenção docente servem como exemplo. Uma delas ocorreu

quando o professor retirou do campo o time que venceu repetidas vezes e que

estava sendo beneficiado pela regra (“perdeu saiu”), usufruindo do futebol mais

tempo na aula de Educação Física. A outra ocorreu quando o professor criou um

rodízio de jogadores ao gol (posição que era ocupado, sobretudo, por alunos pouco

habilidosos). Em uma das aulas que observei na EECJP, ao perceber as tensões

geradas na escolha do goleiro, o professor foi enfático: “—Cada hora é um”.

Contrastando com intervenções esporádicas, a divisão dos tempos de jogo de

futebol (masculino e feminino) demarcava regularidade nas aulas de Educação

Física. Controlando os tempos da prática, os professores regiam os horários

femininos e masculinos e, desse modo, criavam um tempo/espaço institucionalizado

para a participação das mulheres. A Educação Física era, portanto, não só o único

contexto em que a maioria das jovens do bairro tinha contato com o futebol, mas

também o único em que homens e mulheres tinham “iguais” direitos à prática.184

As alterações das regras do jogo de futebol nas aulas de Educação Física

podem ser entendidas como parte de um exercício característico da escola. Não era,

entretanto, qualquer exercício de apropriação das regras que a caracterizava como

prática escolar. Cotidianamente os jovens se apropriavam das regras do futebol nas

“peladas”, ensaios, brincadeiras e outros jogos de futebol (até nas aulas de

Educação Física). O que permitia perceber o uso das regras como um traço da

forma escolar era a sua apropriação com fins pedagógicos. Enquanto em outros

contextos a mudança de regras ocorria predominantemente como parte da

sociabilidade (do funcionamento do próprio jogo e das necessidades dos

participantes), alguns usos que os docentes faziam das regras tinha fins educativos.

Buscavam, portanto, garantir a participação de todos os alunos, criar contexto de

igualdade de oportunidades, constituir um ambiente de interação entre meninos e

184 O outro contexto em que as mulheres tinham acesso ao jogo de futebol (uma vez por semana) era o recreio escolar — o que também ocorria com intervenção docente.

Page 189: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

189

meninas. Mesmo assim, isso não anulava outras apropriações das regras pelos

alunos.

Um dos traços mais explícitos da forma escolar no futebol da EECJP ocorreu,

entretanto, na produção de jogos entre homens e mulheres (os chamados jogos

mistos). Pouco freqüente nas aulas de Educação Física (das 45 aulas cujo tema era

futebol, apenas 02 foram com times mistos), esse modo de organização, jamais

observado nas práticas cotidianas de futebol no bairro, nem no esporte profissional,

ganhou relevância. Revelando uma intenção pedagogizante e reguladora, que é

característica da forma escolar, o jogo de futebol misto era uma produção da escola: O professor sugere que nessa turma (5ª série) o jogo de futebol seja misto, ou seja, que meninos e meninas joguem juntos. Alguns alunos resistem: “— Os meninos machucam a gente”; “— Eles não passam a bola pra gente; “— Elas não sabem jogar”. O professor diz que vai regular o jogo de  forma que não  só os meninos peguem na bola. No  centro da quadra  ele organiza os times  (total  de  04  times)  e  sorteia  os  dois  primeiros  times  a  jogar. A  regra  proposta  pelo professor  é  a  seguinte:  as meninas podem  tocar  a  bola  quantas vezes  quiserem/puderem;  os meninos podem dar no máximo 03 toques na bola antes de passá‐la. Iniciado o jogo, o professor vai  para  a  lateral  da  quadra  e  passar  a  contar  o  número  de  toques  dos  alunos  na  bola. O revezamento de  times é  feito a partir da regra: perdeu saiu  (01 gol). Quando percebe que as meninas não estão  tocando na bola, o professor  indica  (numa saída de bola) que uma garota faça  a  recolocação da  bola  em  jogo: “— Pra  ela”. Os  jogos  seguem  com  o  revezamento dos times. Um menino  permanece  longo  tempo  com  a  bola  e  em muitas  situações  opta  por um “chutão”. O professor  interfere: “—Toca  a  bola meu  filho”. Em  campo meninos  e meninas seguem correndo de um  lado para o outro. Na maioria das vezes, entretanto, eles é que  têm maior  posse  de  bola.  Às  vezes  o  professor  se  distrai  em  conversas  com  alunos  que  não participam dos jogos. Soa a sirene. Os alunos saem da quadra. Uma aluna que participou do jogo de futebol misto diz ao professor: “— Eu sou ruim, professor”.  Os jogos mistos na EECJP desdobravam-se em novas (e raras)

manipulações das regras do futebol. Preocupado com o domínio masculino nesse

jogo, o professor se antecipava (tentando limitar/neutralizar) à participação dos

jovens com a produção de novas regras: “Somente as meninas podem fazer gol”;

“Nenhum menino pode dar mais que dois toques na bola” (sem realizar o passe).

Essa mudança de regras tinha como foco a inclusão das mulheres e a criação de um

espaço para convivência. Buscavam, portanto restabelecer as características dos

processos de ensino/aprendizagem previstos pela escola, alterados pela dinâmica

de produção/reprodução desse esporte. Contudo, essa transformação do futebol não

favorecia a participação das mulheres, que continuavam com poucas oportunidades

no jogo ou que dele saiam com as mesmas impressões: “— Eu sou ruim professor”.

Page 190: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

190

Não contemplava, também, as distinções internas entre os homens e as mulheres:

por exemplo, maneiras diferentes de ser masculino ou feminino e de participar do

futebol.

Particularmente, no caso do jogo misto, a mudança de regras estava

fundamentada na perspectiva da composição de grupos homogêneos (masculino e

feminino). A busca da homogeneidade — em que todos devem participar da mesma

maneira (fazendo as mesmas coisas), em que a prática é regulada a cada momento,

em que o exercício é um fim em si mesmo (o importante não é a prática, mas a

realização de um exercício) — estava implícita no modo de organização da

prática/aprendizagem e visava à diminuição das diferenças na forma de participação

dos alunos no futebol. Essa tentativa de produção da homogeneidade na aula de

Educação Física faz lembrar a idéia das classes homogêneas descritas por Carvalho

(1997). Segundo a autora (1997, p. 291) a organização de “classes homogêneas” é

parte dos mecanismos que “nas primeiras décadas do século XX buscaram legitimar

o saber pedagógico de tipo novo, moderno, experimental e científico” que

pretendiam configurar a infância como objeto de intervenção disciplinar.

As apropriações das regras nas aulas de Educação Física, que, a princípio,

pareciam estruturar apenas o contexto do jogo, alteravam o seu sentido: de jogo

masculino para jogo que também as mulheres “podiam” participar junto com os

homens na escola; de prática social para contexto de aprendizagem. Não é, pois,

sem motivo que, logo após o professor encerrar o jogo misto os jovens

argumentavam: “— Agora a gente pode fazer um jogo de verdade?”. Nesses termos,

como afirma Linhales (2006, p. 104) a escola pode ser entendida como lugar de

aprendizagem “sobre um conjunto de regras específicas para a ação esportiva”.

Nesse conjunto, “estariam também incluídas as aprendizagens de como negociar e

renegociar os significados constituintes dessas práticas” (LINHALES, 2006, p. 104).

Nesse caso, o que se percebe, entretanto, além da unilateralidade na

“negociação”, é que as intervenções pedagógicas propostas pelo professor não

produziam significados que ultrapassassem o de exercício conforme as regras. No

jogo misto, o futebol tornava-se mais um dos exercícios escolares. Talvez por isso,

os jovens resistiam tanto às intervenções pedagógicas (à penetração da forma

escolar). A desconstrução/descaracterização da cena que dá sentido ao futebol —

dos seus modos de interação, das suas relações corpo a corpo e de poder, dos seus

significados, etc. —, exigia uma regulação minuciosa do professor (que impedia a

Page 191: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

191

fluência do jogo) e, também revelava o desconhecimento docente da prática

futebolística.

Conforme explicou Denis, a Educação Física busca atenuar o jogo “pesado”

de exclusão/competição que há esporte, garantindo a participação de todos.185 Más,

há um conjunto de outros aspectos decisivos do futebol — tais como os diferentes

modos de participação, a dimensão ética e identitária, etc. —, que uma vez

retirados, esvazia a prática do seu sentido. Esse parece ser o simulacro da escola.

Muitas vezes, em nome de uma suposta participação (ou ação educativa

democrática) a escola retira da prática o seu conteúdo, incluídos os modos próprios

de aprendizagem.

4.6.2 - Forma escolar e Educação Física: outras aprendizagens a partir do futebol

Como quem busca “agulha no palheiro”, persisti na tentativa de compreender

o jogo que o futebol jogava com a escola. Que fio condutor o liga à escolarização?

Para além da habilidade futebolística, o que era aprendido no futebol marcado pela

forma escolar? Buscando outros elementos ou traços da forma escolar nas práticas

futebolísticas do bairro, fui compreendendo que, na organização escolar do jogo, os

jovens aprendiam o futebol e algo mais.

Na EECJP, o futebol cumpria um papel específico na educação. Desse modo,

se nas aulas de Educação Física o professor não o ensinava, isso não significava

que não ocorriam aprendizagens futebolísticas. Além disso, outras aprendizagens

escolares eram viabilizadas a partir dele. O futebol apresentava marcas da forma

escolar à medida que se constituía como parte dos discursos e práticas educativas

da escola. Na aula (sobre quadra poliesportiva) que o professor ministrou para os

alunos de 5ª série foi possível perceber usos escolares desse esporte: O  professor me  avisa  que nessa  aula  vai  ficar  dentro  de  sala  com  a  turma  da  5º  série:  por motivo de indisciplina desses alunos na escola. Dirigimo‐nos para a sala de aula no segundo andar  da  escola. Quando  chegamos  à  sala,  dois  alunos  estão  brigando  e  o  professor  logo pergunta o que está acontecendo. O professor ouve as versões dos dois alunos e insiste que eles peçam desculpas um ao outro. O professor cobra a disciplina dos alunos e diz que, se eles não 

185 São de grande importância as produções da área da Educação Física sobre o ensino do esporte na escola. Muitos estudos visam contrapor a hegemonia dos princípios e valores do esporte de rendimento, propondo outras formas de produzir o esporte nas aulas de Educação Física.

Page 192: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

192

melhorarem  nas  aulas,  não  vão  fazer  Educação  Física. Quando  os  alunos  querem  falar,  o professor  exige que  levantem o dedo. Depois de acalmar os ânimos  exaltados da  turma  e de falar sobre as regras de disciplina, o professor pede aos alunos que peguem o caderno e sai em busca de giz e apagador.  Imediatamente após a saída do professor alguns alunos voltam a atenção para mim: Arlei: “Você é estagiária?”; Eliene: “Não. Estou fazendo uma pesquisa aqui na escola e por isso fico assistindo as aulas de Educação Física.”; Arlei: “Sobre o que é a sua pesquisa?”; Eliene: “Estou pesquisando sobre o futebol. Estou tentando entender como é que se aprende a jogar futebol.”; Arlei: “Nossa, isso é muito difícil. Como você vai conseguir fazer isso?”;  Eliene:” Porque você acha difícil?. Arlei: ... Eliene: “Você sabe como se aprende a jogar futebol?”; Arlei: “Nasce com a gente.”; Marcelo: “Não sô. É só treinar”; De volta à sala, o professor entra no debate: “Futebol depende de Dom e lapidação. O Pelé, por exemplo, é Dom mais lapidação”.  Encerrando  o  assunto,  o professor  avisa  à  turma que  a  aula  é  sobre quadra poliesportiva  e, desse modo, começa a explicar o que é uma quadra poliesportiva, desenhando no quadro (passo  a passo) as diferentes marcações da quadra. Em tom irônico, ele pergunta aos alunos se estão gostando de ficar em sala de aula e eles respondem, também em alto tom e em coro, que não. O professor  desenha  quadras  de  diferentes  modalidades  e  pede  aos  alunos  que  as  copiem (sobrepostas  como  a  quadra  real). Ele  explica  que  só  desenha  as  quadras  separadas  para  os alunos aprenderem.  Iniciando o desenho da quadra de  futebol de salão, o professor pergunta aos alunos se sabem o que é  futsal. Os alunos respondem  futebol. O professor completa: “— Futebol de salão”. Depois de desenhar todas as demarcações de quadra o professor desce com os alunos para o pátio dois minutos mais cedo para o recreio.  A aula sobre quadra poliesportiva foi uma demonstração de que na escola o

futebol educava/disciplinava. A educação proposta não se dava, entretanto, pela

prática esportiva. Era a privação da prática, ou seja, retirar dos alunos aquilo de que

eles gostavam, que fornecia os elementos educativos. Nesse contexto, em que o

futebol funcionava como recurso disciplinar, outros elementos da forma escolar

emergiam. Um exemplo foi a organização do conhecimento a ser passado aos

alunos. De forma seqüenciada o professor foi desenhando separadamente o que

estava junto na quadra. O outro foi o controle das interações verbais. O professor

impôs a forma adequada de manifestação dos alunos e dirigiu as oportunidades de

fala do grupo. As perguntas dirigidas aos alunos tinham respostas consideradas

“adequadas” e/ou previstas pelo professor. Por exemplo: quando perguntou aos

alunos se eles estavam gostando da aula, o professor, que já sabia da contrariedade

Page 193: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

193

da turma por ficar na sala de aula no horário da Educação Física, reforçou o seu

objetivo de disciplinarização. Como afirma Vincent, Lahire e Thin (2001), essa

limitação das interações verbais ou mesmo a substituição por esquemas de

interações diretivas a partir de perguntas, de subperguntas e de respostas são

características da forma escolar.

Nas aulas de Educação Física da EECJP havia uma tensão permanente entre

a prática do futebol (como prática social dentro da escola) e o desejo dos

professores de instituir outros processos educativos. Como no uso das brincadeiras

em jogos matemáticos, quando o brincar serve como recurso pedagógico, as formas

como os professores de Educação Física lidavam com o futebol eram impregnadas

de uma relação pedagógica. Assim, o futebol era utilizado para diferentes fins.

Quando os alunos desobedeciam às regras escolares ou ficavam “indisciplinados”,

perdiam o direito de jogar futebol nas aulas. Alunos que, no decorrer das práticas, se

expressavam com palavras consideradas inadequadas ao contexto escolar eram

imediatamente repreendidos pelos professores e podiam até ser penalizados com a

exclusão. Nos jogos de futebol das aulas de Educação Física não era permitido falar

“palavrões” ou agir de forma que na escola era considerada violenta. O futebol

também servia para “gastar” energias acumuladas na sala de aula (como afirmou o

professor de Educação Física, para “tirar a energia dele rolando [a bola]) e como

objeto de barganha. Assim, os professores deixavam o futebol ocorrer em várias

aulas, para conquistar a confiança dos alunos e, posteriormente “impor” outras

práticas.

Na Educação Física a forma escolar também estava presente no uso de

regras impessoais, ou seja, quando a relação entre os alunos e os professores era

“mediatizada pela regra geral, impessoal” (VINCENT, LAHIRE e THIN, 2001, 31).

Isso ficava evidente na organização escolar (produção dos tempos, espaços,

práticas, etc.) e no uso que os professores faziam do apito nas aulas. Funcionando

como mecanismo de ordem, controle e comando, jamais como no âmbito esportivo,

o apito era usado para reger a prática escolar e os comportamentos dos alunos,

regular os tempos de jogo dos grupos, chamar a atenção dos alunos, coibir palavras

e ações indesejadas. Como afirma Vincent, Lahire e Thin (2001, 34), “neste nível, a

comunicação é toda mecânica e inteiramente hierarquizada”. Trata-se, portanto de

relações codificadas que estão indissociavelmente ligadas a um “modo particular de

organização e de exercício do poder” (p. 31).

Page 194: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

194

As aulas de Educação Física não estavam isentas, portanto, de um modo de

relação social específica, fundada no poder — uma forma de relação social entre um

“mestre” (em sentido novo do termo) e um aluno, uma relação que chamamos

“pedagógica” (VINCENT, LAHIRE e THIN, 2001, 13).186 Na Educação Física, essas

relações emergiam (ou se produziam) nas interações quando os professores faziam

intervenções no contexto de produção do futebol: definindo, permitindo, punindo,

mudando, gerindo, etc.

As intervenções, entretanto sempre causavam resistência. A particularidade

do futebol na escola (em relação a outros conteúdos escolares como a peteca

descrita no capítulo III) era certa alternância (“partilha”) do poder: entre os

professores (com maior domínio do contexto de produção do jogo na aula) e os

alunos (com maior domínio de produção da prática social). A “queda de braço”

surgia por forças divergentes: os alunos produziam práticas futebolísticas na escola

e aprendiam (independentemente da forma escolar); os professores regulavam os

comportamentos permitidos, comprometidos com certo tipo de educação escolar do

corpo.

4.6.3 - Práticas de futebol fora da escola: traços da forma escolar

Do mesmo modo que outras dinâmicas, práticas e relações sociais de

aprendizagem penetravam o cotidiano da EECJP, a forma escolar de relação social

ultrapassava os muros para fora da escola. Assim, no bairro Universitário, a forma

escolar das relações sociais não ficava retida na instituição (VINCENT, LAHIRE e

THIN, 2001, 36). Para Vincent, Lahire e Thin (2001, 39) a “nossa sociedade está

escolarizada”, ou seja, é “incapaz de pensar a educação a não ser segundo o

modelo escolar. Acrescentam os autores (2001, 39): “além da importância da escola e da escolarização nas nossas formações sociais, do papel das classificações, julgamentos e percepções escolares fora da instituição escolar, a predominância do modo escolar de socialização se manifesta pelo fato da forma escolar ter transbordado largamente as fronteiras da escola e atravessando numerosas instituições e grupos sociais:”

186 Nas palavras dos autores, “a forma escolar de relações sociais só se capta completamente no âmbito de uma configuração social de conjunto e, particularmente, na ligação com a transformação das formas de exercício de poder. Como todo modo de socialização específico, isto é, como espaço onde se estabelecem formas específicas de relações sociais, ao mesmo tempo que transmite saberes e conhecimentos, a escola está fundamentalmente ligada a formas de exercício do poder”. (VINCENT, LAHIRE e THIN, 2001, 17-18).

Page 195: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

195

No Universitário a forma escolar era difusa e se estabelecia em diferentes

situações da prática futebolística. Assim, em vários momentos de observação das

práticas juvenis de futebol, pude perceber fragmentos da forma escolar (como

estilhaços de uma explosão cultural) no cotidiano do bairro. É importante salientar,

contudo, que tais fragmentos eram produzidos sobretudo em contextos onde havia a

presença de um adulto (ou de alguém marcadamente mais experiente) que em

alguns momentos fazia da prática futebolística uma prática educativa: para ensinar

aos jovens o jogo ou até para educar os jovens a partir dele. No Universitário pude

observar a forma escolar (ou traços do tipo de relação social que ela produz) no

Projeto Social Esporte Esperança/Segundo Tempo e nos treinos de futebol do time

do Racing.

Proposto como espaço social educativo para os jovens, o Projeto Social

Esporte Esperança/Segundo Tempo possuía uma organização semelhante à

organização escolar. Desse modo, ele era um espaço/tempo específico para a

aprendizagem dos jovens no bairro. As práticas eram conduzidas por um adulto e

havia um conjunto de regras que deviam ser seguidas, como horário para iniciar e

terminar, roupas adequadas, presença obrigatória, condutas apropriadas.

Uma singularidade (inexistente na aula de Educação Física) era a

organização de alguns exercícios de futebol: “aprendizagens no decorrer das quais a

repetição” e o “respeito pelas regras” eram essenciais (VINCENT, LAHIRE e THIN,

2001, 41). Ainda que o formato de jogo de futebol prevalecesse hegemônico, o

professor “organizava” práticas específicas para a sua transmissão. Nesse formato,

os encontros possuíam certo nível de ordem, de regulação das interações e as

ações previstas possuíam uma organização racional.187 Assim, os exercícios

propostos tinham início com atividades que eram consideradas mais “simples”, como

chutes a gol, passes entre jogadores, etc. Mas essas atividades iam se tornando

complexas no decorrer do treino, com a inclusão de adversários e de situações que

exigiam maior perícia do jogador com a bola, etc. Havia também organização

minuciosa da prática: fila para a realização dos exercícios, ordenação (um de cada 187 No texto “Quando a história da educação é a história da disciplina e da higienização das pessoas”, Marta Carvalho (1997) apresenta a educação escolar como metáfora da vida moderna, ao associar o processo de racionalização a que foi submetido a escola no início do século XX às “relações sociais sob o modelo da fabrica”.

Page 196: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

196

vez), correção de gestos/posturas e gestão do tempo (hora para chegar, sair,

lanchar, tomar água, etc.).188 Enfim, o “enquadramento” da forma escolar era como

pano de fundo de um processo em que era importante aprender, mas aprender

conforme regras (VINCENT, LAHIRE e THIN, 2001).

Em contextos assim constituídos não estava previsto espaço para a

improvisação e para a produção de outras soluções (em forma de gesto) para os

problemas apresentados. Nos exercícios os alunos eram orientados a seguir um

script. Algumas vezes, o professor até tentava evitar diferenças nas interpretações,

apresentando um modelo, como ocorreu no dia em que pediu a um dos jovens mais

experientes que mostrasse como o exercício deveria ser feito. Em diálogo profícuo

com a forma escolar, nesses exercícios, o futebol constituía-se como objeto de

ensino e elemento educativo/escolar (em que as situações eram previstas,

reguladas e repetidas). Esse contexto era também constituído por relações

assimétricas (professor/aluno), ou seja, por relações que demarcam quem sabe e

quem não sabe. Portanto, por relações de poder (VINCENT, LAHIRE e THIN, 2001).

Quanto aos treinos do time do Racing orientados por Biruga, não havia

exercícios para aprender fora do jogo de futebol. O próprio jogo era o exercício dos

jovens nas tardes de sexta-feira. Nele as intervenções constantes do treinador

(sobre posicionamento, sobre as jogadas, sobre as condutas e comportamentos)

tensionavam a produção de um novo sentido para o jogo. O jogo de futebol

transformava-se também em tempo de preparação.189

O impacto da escola (“ou certos dispositivos forjados por e através dela”)

sobre outros contextos sociais, por exemplo, em clubes esportivos e escolinhas de

futebol, também foi observado por Damo (2005). Segundo o autor (2005, p. 44)

pode-se notar como nesses espaços, “não apenas ensinam e aprendem as técnicas

futebolísticas”, mas acreditam ser este processo singular: “disciplinador, formador do

caráter, metódico, criteriosos e assim por diante. Trata-se de uma migração de

valores, profissionais, disciplinas, enfim, de mentalidades”.

188 Como afirma Rocha (2000, p. 56), a organização escolar como signo da civilização e do progresso — “como espaço da ordem e da disciplina, pela prescrição de uma nova economia do corpo e dos gestos, de formas racionais de empregar o tempo, ocupar e gerir o trabalho pedagógico”, enfim, “dotar a instituição escolar de uma organização calcada nos ideais de racionalidade e previsibilidade” — no Brasil data do final do século XIX e início do século XX. 189 Nos treinos do time do Racing e em outros contextos juvenis de futebol no bairro não observei a produção de exercícios futebolísticos com as mesmas características que ocorriam no Projeto Social.

Page 197: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

197

No Projeto Social e nos treinos de futebol do time do Racing, em vários

momentos, pude perceber a relação estabelecida com os jovens como relação

pedagógico-educativa:

• Na forma como eram feitas as reuniões antes do treino: enquanto os jovens

permaneciam sentados em círculo para ouvir as orientações, o professor (no

Projeto Social) e o treinador (no treino do Racing) ficavam de pé.

• No domínio das situações de fala: o professor e o treinador falavam por longo

tempo (momento em que os jovens deviam ouvir em silêncio. Como afirmava

Biruga: “Quando um burro fala os outros murcham as orelhas.”).

• Nas regras de comportamento e disciplina: os jovens eram orientados sobre

como deviam indicar o desejo de falar (levantando o dedo); aos jovens eram

feitas prescrições sobre o que deviam ou não fazer (discursos educativos

sobre o que é certo ou errado).

• Nas exigências do cumprimento das regras: os jovens eram incentivados

cotidianamente a cumprir as regras (horário para chegar e sair, participação

no jogo de futebol, convivência com o grupo).

• Nas punições: sobretudo no treino do Racing, ausências e atrasos dos jovens

determinavam exclusão do jogo de futebol.

A heterogeneidade estava, contudo, presente nesses contextos. Os jovens se

apropriavam dos exercícios propostos pelo professor, imaginando outras jogadas,

narrando as jogadas dos outros, realizando outras jogadas nos intervalos,

desrespeitando as orientações para as práticas, etc. Apropriavam-se também das

regras e tensionavam as hierarquias propostas nesse tipo de relação social. Assim,

a forma escolar gerava tensões e resistências no cotidiano do Projeto Esporte

Esperança/Segundo Tempo e do treino de futebol do time do Racing. Era uma

tensão entre o que estava prescrito e o que efetivamente era vivido nesse contexto.

Um exemplo de que a forma escolar gerava resistência era a evasão dos

jovens do Projeto Esporte Esperança/Segundo Tempo. Muitos jovens substituíam a

participação nesse contexto (formal) por práticas de futebol cotidianas no bairro:

pequenos jogos de futebol com os amigos, ensaios, pelada, etc. Outro exemplo

eram as faltas aos treinos de futebol do Racing: alguns jovens driblavam a

obrigatoriedade de participação nos treinos com justificativas diversas (trabalho,

compromissos, etc.). Isso só era aceitável para jogadores habilidosos. Mas, quando

Page 198: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

198

a participação nos treinos do time (contexto que dialogava com a forma escolar de

produção do futebol) parecia inevitável, alguns jovens resistiam e criavam uma nova

prática: eles passavam a “morcegar”.

Eu não treino não... Nossa Senhora, eu sou morcego demais para treinar, não gosto de treinar nem a pau, meu professor de taekuando me chamava de Romário, porque eu chegava na academia, vamos supor, era meia hora de alongamento, eu ficava morcegando, chutando raquete, não estava nem aí. A mesma coisa no futebol. Antes do Cruzeiro eu treinava demais, corria, fazia tudo. [...] Mas chegou um dia eu falei, ah, não vou cansar não, tipo assim pus na cabeça, já sei jogar mesmo não preciso disso não. [...] Então, é porque nós (Cadu e Luis Henrique) éramos meio morcegos mesmo (riso), a gente não ia no treino. Não sei, preguiça de ir no treino. Chegar lá e fazer a mesma coisa. No jogo a gente jogava, não sei por que. A gente não treinava, chegava no jogo a gente jogava. (Cadu) (Grifos meus) Eu era muito como posse dizer pra você, indisciplinado, eu não gostava, não gosto até hoje de física, eu acho que os treinos ajudam, eu sei que ajuda, mas eu não gosto de fazer. E lá era um time sério, é um time sério ainda lá no Atlético, mas eu não gostava de física e eu já achava que eu sabia tudo do futebol, sabia fazer tudo, era o bom e não é assim, você não pode ser assim no futebol. Ele (o treinador) sempre conversava comigo e falava que eu ainda não era ninguém no futebol [...]. Mesmo do Galo, aí eu fazia as físicas, reclamando, mas fazia, daí chegou um outro treinador lá que dava a física e eu já não fazia, já puxava outros meninos que não queriam fazer a física, que queriam fazer a física pra não fazer e ficavam comigo lá morcegando na física. [...] ele tinha algumas coisas pra passar pra nós, mas não muitas do jeito que ele estava querendo ensinar a nós, igual tinha coisas que muitos que estavam lá já sabiam fazer, igual tocar a bola, isso é o básico do futebol, a gente já sabe. [...] Ele queria ensinar a gente a tocar, bater na bola, e isso a gente já não era criança mais, isso você ensina só quando o garoto está começando com 7, 8 anos, que você ensina o garoto a bater na bola, tocar a bola, e nessa época nós já tínhamos 14 para 15 anos, a gente já sabia como tocar a bola, como chutar pra gol, tudo a gente já sabia. (Schiva) (Grifos meus)

Novamente a questão que se coloca é sobre os sentidos/significados da

prática. Capazes de passar longo tempo realizando ensaios futebolísticos, jovens

praticantes burlavam os exercícios propostos na forma escolar, uma vez que neles

não conseguiam ver sentido.

Page 199: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

199

4.6.4 - O discurso educativo no futebol do Projeto Esporte Esperança/Segundo

Tempo Como uma extensão da prática escolar, o Projeto Esporte

Esperança/Segundo Tempo era proposto no Universitário como um tempo educativo

(a mais) para os jovens no cotidiano do bairro. As ações organizadas visavam não

somente a vigiá-los, mas principalmente a levá-los a “adquirir hábitos de vida

regular, assiduidade e pontualidade” (VINCENT, LAHIRE e THIN, 2001, p. 42).190

Assim, a aproximação entre escola e projeto se dava no compartilhamento de

interesses e no tipo singular de relação com os jovens (relação pedagógica

educativa). Conforme está descrito na proposta (na parte II deste trabalho), o apoio

cotidiano à escolarização fazia também parte das ações:

A gente, nós aqui quando os meninos chegavam ali, a gente incentivava eles primeiro no estudo, [...] o Lúcio, mas eu também fazia essa mesma coisa, era quem conversava mais perto dos meninos quando eles estavam [...] o Lúcio estava treinando, eu ficava com uma turma do lado de fora, eu falava com eles, conversava com eles bastante sobre estudos. Que tinha que estar estudando e tal porque se tratando de prefeitura também, tinha menino que sonhava muito alto, igual você falou, já queria entrar no profissional, eu falava, pra você ser um profissional no futuro, você tem que estudar primeiro. Eu incentivava a estudar bastante. Estudem, soca a cara nos estudos, lê, presta atenção nas aulas, aí no futebol, disciplina de novo que a gente dava pra eles e desenvolver no futebol, toque de bola, passe aquele trem todo. (Mário) (Grifos meus)

Também no Projeto Esporte Esperança/Segundo Tempo as atividades eram

“separadas das outras atividades sociais” (VINCENT, LAHIRE e THIN, 2001, 43).

Entretanto se tratava de uma separação muito sutil. Situado no principal contexto de

futebol no bairro (o campo de futebol) e rodeado de outras práticas e outros

praticantes, as práticas futebolísticas do Projeto Social aproximavam-se das demais

(era jogo), ao mesmo tempo em que se distinguiam delas. A distinção se

manifestava pela tentativa de produção de outros sentidos para a prática. As ações 190 O futebol é interpretado pelo Ministério e Secretarias de Esportes como uma importante possibilidade de diminuição da violência juvenil nas periferias urbanas — haja vista, inúmeros programas de fomento esportivo. “Sob a aparência de democratização social”, o futebol surge no cenário de políticas sociais compensatórias que buscam o redimensionamento das tensões sociais. Trata-se de programas educativos que, via práticas esportivas, buscam socializar a juventude em valores e normas dominantes (socialmente aceitos), no controle do uso do tempo livre que negligencia um conjunto de questões e problemas que envolvem a violência juvenil (SPÓSITO e CARRANO, 2003). .

Page 200: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

200

eram orientadas para a educação dos jovens. Nesse caso, o essencial não estava

na separação espacial, mas no fato de que eram “práticas distintas por serem

pensadas e pretendidas como educativas ou, mais exatamente, por não terem

outras funções sociais senão a de educar” (VINCENT, LAHIRE e THIN, 2001, 43).

Essa finalidade educativa do Projeto Esporte Esperança/Segundo Tempo é reiterada

por Lúcio (professor) e Mário (seu auxiliar):

E pra mim ter uma experiência maior de vida eu tive que adquirir no meio de futebol, ali que eu conheci as pessoas, ali que eu me eduquei e conheci um pouco melhor a vida. E hoje eu vejo essa garotada aí, muitos deles na mesma situação, às vezes até pior do que a que eu tinha antes, e eu vejo que a finalidade do projeto da Secretaria é a mesma que eu comecei, o que é? Sociabilizar, colocar esses meninos através do futebol em bom caminho, para que eles não tenham uma parte da manhã ou uma parte da tarde ocioso, e eles venham a aprender coisas que não devem. É claro que um ou outro, a gente não vai ter aquela condição de ajudar, [...], mas a gente procura dar conselho, o que eu aprendi, o que eu vi de errado ou o que eu vi certo, com isso eu adquiri uma certa experiência de vida, e eu procuro transmitir aos meus alunos. (Grifos meus) Olha o Clever ele é assim, muito responsável com as coisas dele e ele gostava de colocar a sua meta como você já viu lá também, ele colocava, ele gostava muito de disciplina, e eu aprendi, já tinha isso de família, eu aprendi muito mais com ele e como saber trabalhar também, saber lidar com os meninos, aprendi muito através dele também, aprendi como disciplinar, como levar menino, tipo assim, como é no esporte ali, no futebol, como levar os meninos a desligar de outras coisas erradas, ou conhecer drogas ou qualquer outro tipo de coisa e dentro do futebol, incentivando também os estudos. (Grifos meus)

O formato educativo do futebol no Projeto Social desdobrava-se na produção

de um tempo de útil e regulado para os jovens (os de maior vulnerabilidade social).

Assim, o “pano de fundo” era a retirada desses jovens da rua para preservá-los de

influências “frequentemente considerada como nefasta” (VINCENT, LAHIRE e THIN,

2001, 41) — no âmbito familiar, na rua, nos contextos de “más companhias” — e das

práticas que podiam gerar disposições contrárias à educação proposta pela escola.

Constituindo-se, portanto, como uma atividade que buscava criar uma ocupação

para os jovens, como afirmou Mário, o Projeto Esporte Esperança/Segundo Tempo

era um importante contexto de formação.

Hoje está difícil com esse negócio de drogas, ponto de drogas, gangue [...]. Você mora aqui perto, você vê que tem uns meninos

Page 201: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

201

[jovens que são reconhecidos no bairro como “os maconheiros”] até muito desagradável até ficar ali perto daqueles meninos, principalmente certos horários à tarde.

No programas governamentais destinados a jovens em situação de risco (dos

quais o Projeto Esporte Esperança/Segundo Tempo do bairro Universitário era

parte), a “perspectiva compensatória e salvacionista é a tônica da maioria das

iniciativas que assumem caráter profilático ou corretivo das possíveis distorções

causadas pela imersão desses jovens em contextos de desvantagens sociais”

(CARRANO e DAYRELL, 2003, p.14). Esse discurso da utilização do esporte

(incapaz de inviabilizar outros usos do futebol) se fundamentava no seu uso como

corretivo moral aos “riscos das drogas, do vício e do crime”.191 Afirmava Lúcio: “O

futebol, qualquer esporte faz com que melhore a pessoa”. Por isso ele procurava no,

Projeto Social, “lapidar” e “sociabilizar” os jovens para o esporte, fazendo-os

aprender “a perder, a ganhar ou a empatar uma partida, sem apelar, sem brigar e

melhorar o seu futebol”. Sobre esses contextos, como o do Projeto Esporte

Esperança/Segundo Tempo, Vincent, Lahire e Thin (2001, 41), afirmam:

as atividades organizadas, enquadradas por especialistas, regulam e estruturam o tempo das crianças [e jovens]; tendem a garantir sua ocupação incessante, ocupação cuja função consiste não tanto em enquandrar e vigiar, mas gerar disposições em relação à regularidade, ao respeito pelo “emprego do tempo” ... Submeter o desenvolvimento de sua vida a uma divisão em seqüências temporais previstas antecipadamente e fazer as coisas somente na hora certa, não será esse tipo de comportamento propício a adquirir forma de moralidade que é a do dever.

“Progressivamente, o modo escolar de socialização”, isto é, “socialização

pensada e praticada como educação” e pedagogia, constituía-se no Projeto Social

Esporte Esperança/Segundo Tempo como uma “referência (não consciente), como

modo legítimo — o que não significava ausência de resistências (VINCENT, LAHIRE

e THIN, 2001, 42). Esse modo de relação social entre adultos e crianças/jovens, cuja

“propensão de transformar cada instante em um instante de educação”, cada

atividade em “atividade educativa, isto é, uma atividade cuja finalidade é formá-las,

formar seus corpos, formar seus conhecimentos, formar a sua moral” (VINCENT,

LAHIRE e THIN, 2001, 43), ficava evidente nas relações que o professor (e também

191 Carrano e Dayrell (2003, p.14)

Page 202: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

202

o seu auxiliar) estabelecia cotidianamente com os jovens nos treinos de futebol do

Projeto.

4.6.5 - Forma escolar no futebol: síntese de uma educação do corpo Retomando a noção de que aprender é compreender na prática, pode-se

afirmar que, nas práticas futebolísticas em diálogo com a forma escolar, os jovens

incorporavam também outro tipo de relação social específica: mestre/aluno. Assim,

não parece precipitado afirmar que a identidade forjada pela forma escolar era a

identidade de aluno (aprendiz individual) e, conseqüentemente, a produção de uma

sociedade disciplinada e escolarizada.192

Pode-se dizer que a experiência de relações sociais pautadas na forma

escola permitia também outro aprendizado: o que é ser professor. Evidências desse

tipo de aprendizado foram obtidas na inversão de posições dos praticantes do

futebol no cotidiano do bairro. Quando o treinador do Racing, o professor do Projeto

Esporte Esperança/Segundo Tempo e outros praticantes do futebol no bairro eram

solicitados a assumir a condução da aprendizagem de crianças e jovens, eles

imediatamente mudavam de posição. Sem passar por processos específicos de

formação docente (mas por experiência prática da escolarização), eles assumiam a

posição de professor nas relações com os jovens e (re)produziam relações sociais

pautadas na forma escolar. Isso foi o que fez Cadu (um jovem/jogador de futebol de

18 anos) numa oportunidade de ensino do futebol. O modo como ele ensinava, em

oportunidades que teve para dar aulas de futebol para crianças, era completamente

distinto do modo como agia com Douglas (seu sobrinho de 7 anos) nos ensaios. No

contexto em que Cadu assumia o futebol como objeto de ensino, ele tornava-se

concretamente professor de futebol: [...] aos poucos eu fui entrosando e fiz com que eles. Tipo assim [para que eles], sentassem, fizessem abertura, aperfeiçoasse mais a abertura, alongar mais, e eles foram fazendo naturalmente, isso foi num domingo. Depois que eu fiz isso, fui trabalhei com bola, demos uma voltinha junto com os menininhos na quadra, ao redor, depois quando eu peguei a bola, a hora que eu pus a bola assim, os meninos ficaram todos [...] eu falei, não, não é agora não, primeiro

192 Soares (2006, p. XIV), no prefácio do livro “Educação do corpo na escola brasileira” apresenta questões instigantes sobre a educação do corpo. Dentre outras: “como foi possível, por exemplo, que essa instituição tomasse o corpo de meninas e meninos, depois de alunos, de um modo tão particular, como objeto central de sua intervenção?”. De acordo com a autora a densidade e a abrangência da educação do corpo na escola são impossíveis de serem traduzidas.

Page 203: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

203

vamos aprender a bater pro gol, aprender a chutar pro gol. Depois, quem é goleiro? Perguntei o menino, eu, eu, aí fui no gol porque o menino era muito pequeno e fiquei com medo dos meninos chutarem a bola nele, os meninos de 10 anos, eu fui no gol e aí ficou um menino perto, e eu falei, você vai tocar a bola nele e tal, ensinando como joga, posicionamento. (Cadu) (Grifos meus)

Revendo a penetração da forma escolar nas práticas futebolísticas do bairro,

pude perceber a sua projeção sobre o corpo dos jovens: o corpo a ser constituído

nessas intervenções era o disciplinado, conformado, controlado, ordenado. Como na

constituição da habilidade futebolística, o corpo estava no centro da intervenção

pedagógica. Segundo Soares (2006, p. XII), “como lugar visível e como registro da

cultura, os corpos e suas distintas expressões são objetos de constante intervenção

do poder”. Acrescenta a autora (2006, p. XII):

as múltiplas intervenções dirigidas, forjadas por inúmeras técnicas que são aprimoradas para incidir sobre os corpos, consolidam, na longa duração, práticas sociais desejadas, delineando o que se poderia chamar de uma educação do corpo na escola, mas não somente nela.

Polissêmico, o futebol se constituía também como prática pedagógica no

bairro Universitário. Nele a forma escolar criava disposições corporais nos jovens e

permitia que fossem constituindo um tipo de educação da atenção (no sentido

proposto por INGOLD, 2001). Aprendendo futebol em alguns contextos do bairro, os

jovens também incorporavam as relações sociais pautadas na forma escolar, ainda

que resistissem a sua penetração nesse âmbito. Aprender futebol era, portanto, uma

das faces do que estava em questão. Nesses casos, como afirmam Vincent, Lahire

e Thin (2001, 40), “as atividades esportivas — cuja percepção mais corrente as

associa menos espontaneamente ao escolar” — não eram “desprovidas de

propriedades da forma escolar”:

elas impõem um mínimo de disciplina e regras na aquisição de técnicas (neste aspecto, opõem-se aos jogos ‘livres’, as partidas de futebol perto do prédio onde as crianças moram...) e tendem a organizar esta aquisição conforme uma progressão programada sob a forma de seqüências sucessivas que dão lugar a exercícios repetitivos. São caracterizadas pelo fato de que tendem a constituir práticas corporais ‘para o corpo’, isto é, não tendo outro fim senão a educação, a formação dos corpos. Assim, estas atividades se identificam como a Educação Física ministrada na escola. (Grifos meus)

Page 204: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

204

O último elemento significativo da prática futebolística era o seu sentido

educativo mais amplo. Essa dimensão do futebol, como um tipo de educação da

pessoa, envolvia mais do que a forma escolar e que a aprendizagem do próprio

jogo. O modo mais profundo como o futebol se prestava a outros fins no bairro

Universitário foi evidenciado nas respostas obtidas no decorrer das entrevistas.

Tentando compreender a aprendizagem do futebol, lancei para alguns dos meus

interlocutores variações da seguinte questão: “Houve alguma situação em que você

viu melhora significativa na aprendizagem [na aprendizagem do futebol]? O que ele

[o jovem] melhorou e a que você remete essa melhora?”. As respostas que seguem

(que me surpreenderam na medida em que mudavam a minha intenção inicial) têm

eco no âmbito futebolístico e revelam a importância do futebol/esporte na formação

dos jovens do bairro. Essas respostas me fizeram pensar: na amplitude da

aprendizagem do e no futebol; no uso do futebol como pretexto para se aprender

outras coisas; no futebol como parte de processos (de aprendizagens), realmente,

muito variados.

Então é o seguinte, os meninos, menino é o seguinte, você tem que saber levar o menino dentro de fora do campo. Olha pra você ver, hoje eu encontro menino que jogou bola comigo que é traficantre, te dei um exemplo, menino que ta fazendo engenharia, menino que ta formando em advogado, menino que ta formando em enfermagem. Procuro passar pra eles pra estudar, se hoje uma pessoa que não tem estudo, pra trabalhar num prédio ele vai ter que ter estudo, porque hoje é tudo no computador, é tudo no botão, explico pra eles. Não adianta ser bonitinho hoje, você não ser bonito pra sempre, todo mundo muda. Vocês estão vendo aí os que tem estudos e estão na droga o que está acontecendo, vocês estão vendo aí, não agüentam nem correr, passa mal, isso tudo eu vou passando pra eles e os que não ouvem vão ficando pra trás. (Biruga) (Grifos meus) Eu já vi cenas muito assim comoventes, e cenas dramáticas no futebol, eu já vi crianças chegando com armas, amoitando, em determinadas moitas, jogando o futebol e logo após retornado pra pegar aquela arma pra ir pro morro fazer alguma coisa que não era adequada. Mas também já vi pessoas que às vezes eu passo em determinados locais ou no centro da cidade ou viajando, alguma coisa, encontro com aquelas crianças, com uma pessoa que me cumprimenta e eu vejo que essas pessoas estão em boa situação financeira, em boa situação de ser humano, recuperou ou às vezes até se colocou na parte financeira, na parte de doutor, e quando eu vejo aquilo me emociona, porque eu vejo que essa pessoa que começou comigo lá embaixo humilde, não tinha uma educação naquele momento que me procurou na

Page 205: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

205

escolinha adequada, era simples, às vezes na casa dele não tinha nem o que comer e hoje eu vejo que ta me cumprimentando um doutor, um empresário, me comove. E eu vejo que aquelas palavras, aquela preocupação, aqueles toques que eu sempre procurei dar a aquela pessoa, ela tirou aquilo como base, e eu até comento com alguns monitores, que às vezes a gente tem que sempre dar o bom exemplo, não fumar perto dessas crianças, não beber perto dessas crianças, porque eles miram na gente às vezes até como pais deles, às vezes até mais importantes do que os pais deles. Então eu vejo que muitas pessoas eu ajudei, não foi no intuito financeiro, nada não, mas às vezes a gente dá o toque, eles correspondem, obedecem e seguem aqueles bons mandamentos. (Lúcio) (Grifos meus)

Vou contar de um menino que esteve lá, ele começou com a gente pequenininho, ele começou, pequenininho assim né, hoje ele tem uns já deve ter dezoito anos e inclusive ele já fez até um curso técnico de computação, ele entrou ali, começou a jogar bola, jogava até bem e ali a gente com lanche, com o futebol, com toda a estrutura que tinha ali a gente passou para ele, a gente ensinou para ele e ele sempre querendo ser um jogador de futebol, falava desde pequeno, ele ficou três anos com a gente ali, saiu dali com dezesseis anos, acho que foi para um cursinho, um cursinho básico lá técnico de computação e hoje ele está em um empresa, eu não sei o nome do empresa, mas uma empresa grande que mexe com Microsoft de loja, ele disse que hoje está lá, de vez em quando fica com saudade de futebol mas para ele no momento, o interessante é trabalhar. (Mário) (Grifos meus)

Page 206: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

206

V CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao finalizar este trabalho, retorno ao objeto de pesquisa que lhe deu origem.

Com o objetivo de produzir um estudo etnográfico sobre os modos de aprendizagem

do futebol, mergulhei no universo das práticas futebolísticas juvenis em um bairro de

Belo Horizonte. Para descrever/analisar a aprendizagem do futebol, a teoria da

forma escolar (de VINCENT, LAHIRE, THIN, 2001) e a proposta da aprendizagem

situada em comunidades de prática (de LAVE e WENGER, 1991) foram tomadas

como enquadramento teórico do trabalho — abordagens a partir das quais busquei

estabelecer uma relação de oposição e complementaridade. Da investigação

proposta, destaco as principais sínteses produzidas. Antes, porém, tentei articular

pontos importantes. Inicio as considerações finais propondo algumas reflexões sobre

esporte e escola.

5.1 - Esporte e escola: algumas palavras Da observação dos modos de aprendizagem/produção do futebol no bairro

Universitário, a noção de escola e esporte homogêneo, uniforme, impenetrável e

coeso se desfaz.

Embora a forma escolar possa ser compreendida como a estrutura oficial das

interações na escola, esse não é o único tipo de relação social de aprendizagem

nela presente. A EECJP é atravessada por práticas futebolísticas de lógicas

distintas. Nela não ocorrem, portanto, comportamentos homogêneos e formas de

relações sociais apenas organizadas, controladas e previstas. Como um espaço de

práticas culturais específicas (forma escolar), a escola se constituí também por

outras relações, práticas e linguagens — formas culturais próprias de outros

contextos. Nem mesmo as relações de aprendizagem são únicas. Sob o manto e o

impacto da forma escolar sobrevivem na escola (em convivência tensa) outros

modos de aprendizagem.193

193 O trabalho de Philips (1993), sobre a organização da comunicação face-a-face dos indios da reserva Warm Springs e das conseqüências dessa organização para a aprendizagem das crianças índias na escola, aborda o contexto escolar como contexto híbrido. Uma tese básica desenvolvida no trabalho da autora é que crianças índias Warm Springs ao entrar para a escola já adquiriram formas de comunicação que são culturalmente muito distintas das usadas pelos professores (que não são nativos) e que isso contribui para problemas de comunicação entre professor e estudantes. Philips (1993), desse modo, apresenta evidências de que na escola “convivem” modos distintos culturalmente (culturally distinctive manner) de interação e de socialização — uma estrutura oficial (tratada nesse texto a partir do conceito de forma escolar) e uma infra-estrutura dos alunos.

Page 207: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

207

O movimento contrário também acontece e a forma escolar ultrapassa os

muros da escola, penetrando em outros contextos do bairro. Desse modo, diferentes

relações sociais de aprendizagem ocorrem tanto dentro quanto fora da escola e

estabelecem comunicação e oposição. Entretanto algumas reflexões são

necessárias. Primeira, é a participação nas práticas futebolísticas (na comunidade

de prática) que fundamenta a aprendizagem desse esporte dentro e fora da escola

(LAVE e WENGER, 1991). Compreender isso, numa sociedade escolarizada onde

aprender é sinônimo de ensinar, permite dar relevo à dinâmica cultural na escola e a

relativizar a noção de que ela é o lugar social da aprendizagem da cultura, bem

como da pedagogia/ensino como a única forma de aprender. Na EECJP, a

aprendizagem do futebol (que não é reconhecida como tal nem por professor, nem

por alunos) provoca tensões, ao se opor à matriz de ensino/aprendizagem escolar e,

sobretudo, ao poder dos professores como os detentores do conhecimento.

Diferentemente de outros esportes (e de outros conteúdos escolares), o futebol

produz mudanças na organização da aprendizagem e das relações sociais (de

poder) na escola. Revela o “empoderamento” dos alunos que constituem a

habilidade futebolística independentemente das práticas de ensino.

É importante observar, então, que o acesso às práticas/conhecimentos

culturais (educação e cultura) não se reduz à escolarização. A escola cumpre

apenas parte da trama educativa — possui um projeto de formação em disputa.

Assim, a cultura se produz a partir de práticas educativas difusas, que vão muito

além do perímetro escolar. Trata-se de práticas muitas vezes silenciosas e às vezes

invisíveis. Essas práticas e formas culturais, que dialogam com a forma escolar, são

construídas e constituem diferentes habilidades para diferentes grupos culturais.

No bairro Universitário a forma escolar produzida fora da escola, transformava

práticas futebolísticas também em práticas pedagógicas. De fato, como afirma

Linhales (2006, p.98), as criações escolares, “relativamente autônomas”, influenciam

as “práticas culturais e os modos de pensamento que organizam vários outros

campos sociais”. Entendendo que “o desenvolvimento esportivo pressupõe, nas

sociedades escolarizadas, a adoção de uma série de condicionantes, regras,

práticas e saberes que são tipicamente escolares”, Linhales (2006, p. 99) afirma que

é nesses termos que a “escolarização do esporte ultrapassa os muros escolares,

estendendo-se para outras instituições sociais”.

Segundo Faria Filho (2002, p. 22):

Page 208: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

208

Podemos dizer que na transição de uma sociedade não-escolarizada para a escolarizada, a tensão desta recai sobre a totalidade do social, não deixando intocada nenhuma de suas diversas dimensões. Tal tensão pode ser percebida não apenas naquilo que toca diretamente à escola e ao seu entorno, mas naquilo que de mais profundo há na cultura e nos processos sociais como um todo: das formas de comunicação às formas de constituição dos sujeitos, passando pelas inevitáveis dimensões materiais que garantem a vida humana e sua reprodução, tudo isso se modifica, mesmo que lentamente, sob o impacto da escolarização.

Conforme foi visto no caso futebol, entretanto, a forma escolar jamais se

tornou hegemônica no bairro. Ela (a forma escolar) é que sobrevive nos interstícios

das práticas futebolísticas. O transbordamento da escolarização para o social não

significa, desse modo, a sua imposição a todas as práticas. Ao contrário, é a escola

que sofre maior impacto dos modos próprios de organização/aprendizagem do

futebol. O estudo desses modos de aprendizagem evidenciou, portanto, a ocorrência

de um movimento inverso ao destacado por Faria Filho (2002): do social para a

escola. Mostrou que não há unidirecionalidade nesse processo. Isso significa que o

futebol produzido em outros contextos sociais marca a escola e tensiona a forma

escolar, sendo, ao mesmo tempo, marcado por ela. Nas práticas futebolísticas que

tomam lugar na escola e nos demais contextos de futebol do bairro há, portanto,

(des)continuidades.

Para Linhales (2006) a imbricação entre esporte e escola está na origem da

sua escolarização.194 Observa a autora (2006 p. 22):

[...] ao adentrar a escola, o esporte traz na bagagem uma série de regras, procedimentos, sujeitos, espaços, temporalidades e objetos que passam, então, a balizar a sua presença e o seu diálogo com

194 São pertinentes e atuais as análises de Linhales (2006) sobre a relação entre esporte e escola. Em seus estudos sobre a escolarização do esporte no início do século passado Linhales (2006, p. 244, 245) ressalta a complexidade da temática. Estudando a escolarização do esporte, a autora anuncia a relação estabelecida entre ambos: “Por um lado, o esporte se apresentava como um elemento educativo, um modelo pedagógico capaz de incrementar, dentre outras coisas, o sentido de coletividade e o aprendizado da vida social moderna. Uma promessa de aperfeiçoamento do povo ou, dito de outra forma, de “energização do caráter” dos brasileiros, por vezes representados como “sem nenhum caráter”. Por outro lado, a escolarização das práticas esportivas apresentava-se também como medida corretora do curso civilizatório, pois o esporte praticado pelo povo era considerado repleto de vícios e deformações. Assim, a escola teria como responsabilidade civilizar os costumes esportivos existentes, tomando pra si a tarefa de melhor apresentá-los às novas gerações. Nessa campanha, seria necessário não só moralizá-lo, mas também conferir eficiência pedagógica à sua aprendizagem e realização. Um afastamento cultural ...”.

Page 209: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

209

tantas outras bagagens lá existentes. Opera-se uma relação de trocas, de apropriações e de negociação de sentidos e significados.

Esporte e escola, que se afinam na constituição dos espaços educativos para

os jovens do bairro Universitário, opõem-se nos modos de aprendizagem. Num jogo

de alternância, podem ser entendidos como aliados e concorrentes na trama

educativa dos jovens. São aliados, pois ambos possibilitam a educação (constituem

o discurso educativo, a disciplina e o controle como aspectos comuns). São

concorrentes nos modos de relações sociais de aprendizagem, ou seja, nos tipos de

relações de poder. Na aprendizagem cotidiana do futebol o foco está na

participação, na aprendizagem entre pares; na forma escolar a centralidade na figura

do mestre/professor, no ensino.

Por fim, se o futebol independe da forma escolar para ser

produzido/aprendido e se, nesse caso, é possível até mesmo admitir que a escola

perde espaço para o esporte (como é denunciado no âmbito da Educação Física), o

que entra para a escola é mais que a instituição esportiva hegemônica.195 Há uma

pluralidade das práticas futebolísticas juvenis em diálogo com a escola. De fato, a

escola não está isenta da penetração de valores e normas (de exclusão, de

competição, de rivalidade) e de discursos do esporte de rendimento (querer e poder;

o importante é competir; respeito incondicional às regras; vencer com o esforço

individual, etc.).196 Contudo circulam nos contextos de futebol do bairro outras

lógicas de produção desse esporte (ludicidade, solidariedade, sociabilidades, etc.)

que também adentram a escola nas práticas juvenis (FARIA, 2001; STIGGER,

2005). Transitam no cotidiano diferentes usos dessa prática cultural. Volta, pois, a

fazer sentido o uso do termo futebóis.

5.2 – Fechando um processo de pesquisa: novo ponto de partida... A constituição da habilidade futebolística se decompõe em vários processos.

Difusa, a prática do futebol é reforçada por toda a estrutura da vida dos jovens

brasileiros. A sua aprendizagem não é, portanto, instrumental, consciente, 195 Como afirma Stigger (2005), a centralidade que o esporte na sua manifestação oficial (de competição/rendimento) tem ganhado no âmbito da EF obscurece a “diversidade do esporte”. Para o autor (2001, p. 70), “uma visão homogênea e homogeneizadora desta prática social tem prevalecido”, ou seja, a visão de que o esporte de rendimento se impõe de forma avassaladora sobre as demais práticas esportivas, sem que se leve em conta o “contexto cultural do local em que o esporte é praticado” (p.81). 196 Críticas ao modelo esportivo de rendimento podem ser encontradas em Bracht (1997), Vaz (1999), Kunz (1994), etc.

Page 210: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

210

individualizada e desconectada da sociabilidade. Para a compreensão de uma

prática cultural tão difusa e cotidiana, a teoria da aprendizagem situada e, sobretudo,

o conceito de participação periférica legitimada proposto por Lave e Wenger (1991)

— que permitiu dar visibilidade à aprendizagem implícita na mudança das formas de

participação na prática — foram fundamentais. O entendimento da aprendizagem

como um envolvimento crescente na prática social possibilitou a descrição desse

esporte complexo, dinâmico e irreprodutível. No futebol, os praticantes não se

deslocam/movimentam apenas em função da meta/gol. De iniciantes a experientes,

eles se deslocam na prática e, na medida em que ganham acesso ao conhecimento

no corpo (embodied), movem-se em direção à participação plena, ou seja, aquela

em que há o domínio do conhecimento ou prática coletiva.

A aprendizagem do futebol é, portanto, a conseqüência da imersão cotidiana

dos jovens na prática, ou seja, os praticantes (não identificados como aprendizes)

incorporam-no em seu contexto de produção. Nas relações de sociabilidade que

envolvem esses praticantes há intensos processos de aprendizagem em diferentes

formas de engajamento na prática. É por meio da participação nas práticas de

futebol, na escola, na Praça de Esportes, no campo de futebol, nas ruas, etc., que os

jovens (em relações de poder, tensões e conflitos inerentes à participação na prática

social) constituem a habilidade futebolística.

Nos múltiplos contextos, estruturados, sobretudo, sem a participação de

especialistas da Educação, o futebol é aprendido entre pares, no formato de co-

participação. Diferentes de outras modalidades esportivas — a que no Brasil só se

tem acesso em contextos estruturados pedagogicamente, como escolas e

“escolinhas de esportes” — as práticas futebolísticas juvenis no bairro Universitário

não se constituem como práticas intencionais de ensino, nem se caracterizam por

relações assimétricas em que seja possível observar quem ensina e quem aprende

(de forma dicotômica). Nesse tipo prática os recursos de estruturação da

aprendizagem vêm de uma variedade de fontes.

Uma característica marcante do futebol é a produção de jogos de futebol

entre praticantes de diferentes idades e com diferentes domínios da prática. Nele a

difusão do conhecimento se dá, portanto, nas diferentes formas de engajamento e a

partir de relações de poder e camaradagem (totalmente diferentes das relações

pedagógicas) entre jogadores mais velhos/experientes e mais novos/iniciantes. Um

participando do aprendizado do outro. É importante salientar, desse modo, que se

Page 211: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

211

trata de um processo circular. Isso porque, quando um jovem deixa de ser iniciante,

passa a constituir relações com outros iniciantes.

No bairro Universitário, a aprendizagem se dá nas interações futebolísticas

cotidianas, em infinitas experimentações. Isso não significa, entretanto, ausência de

ensino do futebol. Essas situações são menos recorrentes, pois, há poucos

contextos pedagogicamente estruturados no bairro. Assim, foi possível observar

práticas futebolísticas juvenis que dialogam com a forma escolar, sem que esta

fosse hegemônica. Relações pedagógicas foram observadas, desse modo, em

situações muito específicas. Por exemplo:

a) nas aulas de Educação Física na EECJP: os professores usavam o futebol

para educar e disciplinar os jovens;

b) no Projeto Social: oportunamente o professor coordenava a execução de

exercícios futebolísticos para os jovens e discorria sobre a educação da

juventude por meio do esporte — o que fundamenta esse tipo de Programa

Social;

c) nos treinos do time de futebol infantil/juvenil do bairro: o treinador conduzia

e ordenava algumas práticas para disciplinar os jovens;

De fato, a aprendizagem situada (a partir da participação periférica legitimada)

constitui-se como o modo mais efetivo para a aprendizagem do futebol no bairro. Um

dado preciso que informa que não é a partir da forma escolar que os jovens

aprendem esse esporte no bairro pôde ser observado também nos modos de

participação feminina no futebol. Diferentes dos homens (pelo menos dos engajados

na prática social), que com o avanço da escolarização davam indícios de

aprendizagem com a mudança na forma de participação (habilidade futebolística), as

mulheres do bairro (que só tinham acesso ao futebol na escola) seguiam por todas

as séries jogando da mesma maneira.

Por meio de amplo processo de participação ou de educação da atenção

(INGOLD, 2000, 2001), que envolve experimentações, repetições (ensaio) e

orientação constante de praticantes mais experientes, os jovens constituem a

habilidade com um tipo de "ajustamento rítmico da percepção e da ação” (INGOLD,

2001, p.135). Jogadores que iniciam a participação no futebol com poucas

oportunidades de jogo, recebendo poucos passes e participando de poucas jogadas

(chegando muitas vezes até a reclamar dessa forma de participação), passavam, à

medida que incorporam o jogo (maior domínio do futebol) a ser requisitados para

Page 212: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

212

participar dele de maneira diferente — a aprendizagem implica maior

responsabilidade.

A contradição básica da participação nas práticas futebolística é a

necessidade que os jovens têm de aprender para participar/praticar e de

participar/praticar para aprender. Sem outro caminho, é a participação no futebol que

permite que constituam o tipo de atenção necessário à prática futebolística

(INGOLD, 2001). Apenas aqueles que nele conseguem se engajar, movendo-se e

aprendendo os modos de participação possibilitados, suportando os processos de

exclusão no jogo e investindo na prática, constituem habilidade futebolística. Nem

todos persistem participando da prática social. Aqueles que não suportam as

exclusões e relações de poder inerentes a esse esporte encerram a carreira

futebolística ou passam a jogar apenas em contextos onde os confrontos são menos

intensos, e investem na constituição da habilidade futebolísticas a partir dos ensaios.

Alguns se engajam em outras formas de participação no universo futebolístico,

como, por exemplo, praticar futebol como torcedores.

Contudo somente os jovens do sexo masculino têm amplo acesso à prática

no bairro. Se o futebol é continuamente praticado, muitas vezes à exaustão, sem

que haja qualquer tipo de regulação da assiduidade, isso não se deve ao fato de que

esses participantes escolhem livremente. Como prática cultural, o futebol no Brasil é

“prescrito” histórico-socialmente para que meninos/jovens se tornem homens.

Generificado, o exercício de aprendizagem do futebol se constitui também num

exercício da masculinidade.

Espaço do masculino — e, portanto, de veiculação de modelos hegemônicos

de masculinidade a serem aprendidos nas relações entre meninos, jovens e homens

— nos contextos de produção do futebol exaltam-se qualidades, como força,

destreza, astúcia, virilidade, agressividade, e um misto de respeito à regra e

insubordinação. Portanto, o jogo de futebol é uma prática “mediante a qual se

aprende a ser corpo masculino”, num processo de aprendizagem contínua (LA

CECLA, 2005, p.105). Assim, o jogo envolve um tipo de pertencimento/identificação

e os jovens exercitam também discursos sobre o corpo repletos de padrões

hegemônicos — o que não significa homogeneidade. Cada prática possibilita aos

praticantes diferentes usos do corpo.

Nesse processo dinâmico e sutil, a aprendizagem do futebol engloba mais

que técnicas. Envolve a incorporação de formas de agir, de movimentar o corpo e

Page 213: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

213

com elas um conjunto de aspectos implícitos (referentes à dimensão identitária, à

prática coletiva, a significados, a certos valores e disposições). Envolve a

constituição da habilidade no sentido proposto por INGOLD (2001): gestos,

significados, tipos de atenção, emoções, disposições corporais, identidades, etc.

Nas diferentes práticas de futebol (ensaios, jogos de futebol na escola, jogos

amistosos e de campeonatos, jogos-treinos, peladas, jogos em duplas ou trios, gol-

a-gol, tira-tira e outros sem denominação) os jovens aprendem a “afinar” os

movimentos do corpo, ajustando-se e, ao mesmo tempo, produzindo o contexto

futebolístico. Cada uma dessas práticas de futebol contém múltiplos elementos que

os jovens precisam aprender a perceber para agir. Jogar pelada, por exemplo, é

diferente de jogar no campeonato amador ou na escola; jogar no campo de futebol é

diferente de jogar no beco da favela, no morro, na quadra, etc. Aprender a jogar é,

portanto, coordenar ação/percepção no fluxo da prática emergente.

Ao contrário do que apontam alguns estudos, isto é, que o futebol se difundiu

no Brasil devido ao fato de ser um esporte mais fácil/simples, a habilidade

futebolística — entendida neste trabalho como um campo total de relações

constituídas entre o sujeito, o instrumento e o ambiente (INGOLD, 2000, 2001) — é

algo extremamente difícil. Ela se constitui no sujeito a partir de intenso processo de

participação/experimentação/imersão do e no futebol. Como afirma Lave (1993, p.

10), “o que as pessoas estão aprendendo a fazer é um trabalho complexo e difícil. A

aprendizagem não é um processo separado, nem um fim em si mesmo. Se ela

parece sem esforço é porque em algum sentido ela é invisível”.

O conhecimento resultante da participação nas práticas de futebolísticas (a

habilidade), contudo, não “entra na cabeça” dos participantes como algum tipo de

representação. Ele toma forma no corpo (INGOLD, 2001). De outro modo, é

importante salientar que esse processo de aprendizagem não é linear e que a

aprendizagem não se dispõe apenas para aqueles que efetivamente participam do

jogo. Há formas de conhecimento do futebol dispersas em outros tipos de

engajamento na prática: os jovens aprendem jogando, mas também assistindo,

observando, torcendo, falando sobre, treinando, ensaiando [...] o futebol.

Diferente de um fazer que ocorre passo a passo, o aprendizado do e no

futebol assume a forma de um círculo, em que o movimento é o de reincidir, retornar,

renovar, reinventar, reiterar, recomeçar. O aprendiz jamais está concluído. Ao

participar da prática social futebolística, ele sempre constituí um novo aprendizado.

Page 214: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

214

A aprendizagem é contínua e permanente (KASTRUP, 2005). A participação no

futebol não define, contudo, habilidade e carreiras futebolísticas homogêneas. Os

jovens têm trajetórias diferentes no futebol. Engajam-se nele de muitos modos e

constituem investimentos variados na prática, repleta de relações de poder,

conhecimento e exclusão.

É importante salientar, finalmente, que nas práticas cotidianas de futebol dos

jovens, o objetivo central não é a aprendizagem, mas a participação (LAVE e

WENGER, 1991). Ainda que os praticantes “saibam” dessa possibilidade (de

aprendizagem) do jogo, jogam para ganhar, jogam pelo jogo (pelo prazer que ele

proporciona), jogam para estar em forma, jogam para manter laços de sociabilidade

e para afirmar identidades. Nos jogos de futebol, os jovens têm a possibilidade da

realização das jogadas e de revitalização de laços de solidariedade entre sujeitos

para os quais o futebol é muito mais do que atividade físico/motora. É contexto do

encontro, é modo de ser/viver.

De fato, não é a forma escolar que garante a aprendizagem do futebol.

Contudo, nos contextos em que foram observados traços da forma escolar nas

práticas futebolísticas juvenis, ficaram mais evidentes os usos educativos desse

esporte (para produzir contextos de educação da juventude), do que a sua

didatização (transformação em objeto de ensino). Chamou-me a atenção o fato de

ocorrer fora da escola o maior impacto da escolarização desse esporte. Enquanto

nas aulas de Educação Física os modos situados de aprendizagem do futebol eram

preservados nas práticas dos jovens, ficando pouca margem de penetração da

forma escolar, no Projeto Social Esporte Esperança/Segundo Tempo o futebol

assumiu traços evidentes dela (forma escolar), chegando mesmo a se transformar,

em alguns momentos em exercício para apreender (característico da escola). Em

outras palavras: no Projeto Social o impacto da forma escolar foi mais evidente.

Na EECJP o futebol é o esporte em que os jovens produzem maior tensão às

práticas docentes, dificultando a manutenção/imposição da forma escolar. Nele são

“preservadas” características de autonomia, em relação às especificidades do

ambiente escolar, e, ao mesmo tempo, o diálogo. O diálogo com a forma escola

nesse contexto se dá a partir de usos dos esportes fundamentados na idéia de

internalização da disciplina escolar, de educação do corpo (prática educativa de

controle do corpo/rendimento) ou de compensação do desgaste provocado pelo

ensino na sala de aula. Enfim, o que os praticantes experimentam na escola, sob a

Page 215: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

215

égide da forma escolar é a aprendizagem de outras coisas a partir do futebol. O

mais importante é que a forma escolar, jamais foi suficientemente impactante a

ponto de mudar, anular ou colocar em segundo plano o modo situado de

aprendizagem do futebol. Na escola os jovens praticam o futebol e, nesse contexto,

aprendem à revelia das práticas pedagógicas. De certo modo, engajam-se no

processo de participação no futebol também para resistir às relações autoritárias e

ao formato de lição eminentemente escolar.

Não há, entretanto, delimitações nítidas entre as diferentes práticas de

futebol. As múltiplas apropriações cotidianas desse esporte se apresentam como

zonas fronteiriças. No cotidiano de produção, forma escolar e aprendizagem situada

(participação periférica legitimada) não são apenas modos estanques de

aprendizagem. Eles também estabelecem relação de complementaridade. Trata-se,

pois, de modos de organização da aprendizagem que atravessam, simultaneamente,

contextos futebolísticos diferentes do bairro e que possibilitam aprendizagens

diferentes do e no futebol. As aulas de Educação Física, os treinos do time do

Racing e do Projeto Social são contextos híbridos. Neles convivem o que Philips

(1993) chamou de “culturally distinctive manner” de interação — distintos modos de

aprender que transitam de um contexto para outro e se influenciam reciprocamente.

Se os contextos são constituídos por modos de aprendizagem híbridos, há

neles também aprendizagens de futebol em oposição e diálogo. Como o esporte não

está dissociado da sociedade que o engendra, nas práticas futebolísticas os jovens

aprendem valores e normas sociais hegemônicos. Como afirma DaMatta (2006,

150), a função do esporte “no mundo moderno tem uma ligação íntima com dois

aspectos fundamentais”: o primeiro, “é a disciplina das massas que o esporte

ensina e reafirma”; o segundo “é a sua ligação estrutural estruturante com a idéia de

fair-play, que conduz à trivialização (e à relativização) da vitória e da derrota”. Para

DaMatta (2006, p.150) “essa banalização da perda, da pobreza e da má sorte, bem

como a não sacralização do êxito” que o esporte engloba “faz crer que todos são

mesmo jogadores com iguais oportunidades”. Com isso, “o esporte afirma valores

capitalistas básicos, como o individualismos [...] e o igualitarismo”, o que ajuda a

disseminar valores e normas de “uma justiça burguesa universalista”.

De fato, nas práticas futebolísticas, os jovens aprendem o esporte e também

valores, normas e significados associados à competição, consumo, masculinidade

hegemônica, etc. Contudo não se pode afirmar que a isso as aprendizagens

Page 216: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

216

futebolísticas se restringem. Participando do futebol no bairro Universitário, os

jovens também o incorporam como prática compartilhada, como modo de

sociabilidade, como contexto de ludicidade e de cooperação. Do mesmo modo,

hábitos “saudáveis” de vida e normas de comportamento (apelo educativo

incorporado ao futebol) também fazem parte das aprendizagens constituídas nesses

contextos, que são, pois, ambíguos.

A investigação dos modos de aprendizagem do futebol deu relevo à

complexidade da prática, ao mesmo tempo em que possibilitou a revisão de

dicotomias clássicas, como: formal e informal; corpo e mente; cultural e biológico,

etc. O estudo deu visibilidade à aprendizagem como um processo ativo, em que o

corpo, o pensamento, o sentimento, a ação e o mundo não são dicotômicos, mas

simultâneos, imbricados ou, como dizem Lave e Wenger (1991), mutuamente

constitutivos. Ao desvincular a aprendizagem do ensino, este trabalho também pôs

em questão certa centralização na educação escolar que acaba por colocar à

margem outras formas de educação, ao tratá-las como informais (LAVE, 1982, p.

181).

Contribuindo para a compreensão da natureza socialmente organizada da

aprendizagem (LAVE, 1982), esta pesquisa revelou que a participação nos

contextos de futebol engajava o praticante num processo de aprendizagem que é

estruturado — más não do modo pedagógico. Em outras palavras: nas práticas

cotidianas do futebol há uma estrutura de participação que permite a aprendizagem.

Assim, a aprendizagem não é casual, osmótica ou de imitação passiva (LAVE,

1982). Ela é um processo em que os aprendizes se movem (de iniciantes a

veteranos) na estrutura da prática social e nela aprendem. Nas práticas

futebolísticas há, portanto, um currículo de aprendizagem em que os jovens podem

se engajar para aprendê-lo (LAVE e WENGER, 1991).

Por fim, as contribuições deste estudo estão nas possibilidades de melhor

compreensão da aprendizagem: como um processo multifacetado, dialético,

dinâmico e de engajamento no mundo. É importante ressaltar, desse modo, que em

momento algum propus concluir esse trabalho com a produção de uma proposta

educativa para o ensino dos esportes — expectativa de grande parte dos

professores de Educação Física com os quais dialoguei no decorrer do

doutoramento. Contudo, a pesquisa permitiu ampliar a compreensão sobre esse

fenômeno e também sobre a própria escola.

Page 217: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

217

Quando iniciei a pesquisa em março de 2004, mergulhei no universo de

futebol dos jovens. Nesse processo de participação não constitui a habilidade

futebolística, pois para isso era necessário ser aceita como praticante. Isso não

significou, entretanto uma indiferença em relação ao futebol, apenas que não tive

acesso ao jogo por dentro. Contudo, na posição em que foi possível participar

constitui várias aprendizagens. Assim, a pesquisa possibilitou ampliar a

compreensão da aprendizagem do futebol (da cultura), constituir um tipo de atenção

para as aprendizagens nas diferentes práticas e desnaturalizar a centralidade do

ensino (a idéia de aprendizagem como conseqüência do ensino).

Estudando a aprendizagem do futebol me deparei também com aspectos

importantes das aulas de Educação Física. Como em um jogo de espelhos

invertidos, enquanto alcançava graus de familiaridade com a aprendizagem do

futebol, constituía estranhamento com a prática pedagógica. Portanto, a

aproximação com outras formas de aprender no futebol, me levou a perceber melhor

o tipo de relação social de aprendizagem proposta nas aulas de Educação

Física/escola e as suas implicações. Um deslocamento contraditório, que me

distanciava da escola e que, por isso, me levava de novo (com outro olhar) para

dentro dela.

Da pesquisa saio marcada na forma de compreender o esporte, os sujeitos

(praticantes/alunos/professores), a escola e a cultura. Volto à prática pedagógica

com maior atenção para os processos de aprendizagem e para as interações que

tomam lugar nas aulas de Educação Física, mesmo antes de pensar como vou

intervir como professora. Mais do que isso. Acredito na possibilidade de construção

de uma relação respeitosa e afinada de conhecimento entre professores e alunos.

Assim, busco no ofício do antropólogo inspiração para um exercício cotidiano na

Educação Física. Como afirma Velho (2006, p. 5) — ao recorrer às contribuições de

Ingold (2005) — a Antropologia “diz respeito a aprender a aprender”. Assim, ela “não

é tanto o estudo de pessoas, e sim um modo de estudar com as pessoas”. Trata-se,

mesmo de uma “prolongada aula de mestre em que o noviço gradualmente aprende

a ver as coisas, e, obviamente, aprende também a ouvi-las e senti-las do modo

como o fazem os seus mentores”. Para o autor, mais do que fornecer “conhecimento

sobre o mundo e sobre os seres humanos e as suas sociedades”, a Antropologia

“educa a nossa percepção do mundo, e abre os nossos olhos para outras

Page 218: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

218

possibilidades de ser”. E é “na medida em que essas possibilidades afetem a nossa

própria experiência” que, podemos “ser levados a novas descobertas”.

Page 219: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

219

VI REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMO, Helena. Wendel. Considerações sobre a tematização social da juventude. Revista Brasileira de Educação. ANPED, n. especial, p. 25-36, 1997. ALTMANN, Helena. Rompendo fronteiras de gênero: Marias (e) homens na educação física. 1998. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG), Belo Horizonte, 1998. ALVITO, Marcos; MELO, Victor Andrade de (Org.). Futebol por todo o mundo: diálogos com o cinema. Rio de Janeiro: FGV, 2006. ARCHETTI, Eduardo P. Masculinidades: futbol, tango y pólo en la Argentina. Buenos Aires: ANTROPOFAGIA, 2003. ATKINSON, Paul. Understanding ethnographic texts. Sage Publications, 1992. BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal. Breve histórico: programa Esporte Esperança/Segundo Tempo. Belo Horizonte: Secretaria Municipal de Esporte e lazer. Mimeo. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Tradução de Mariza Corrêa. Campinas, SP: Papirus, 1996. BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loic. Respuestas: por uma antropologia reflexiva. Cidade do México: Grijalbo, 1995. BATESON, Gregory. Mente e natureza. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986. BINELLO, Gabriela; CONDE, Mariana; MARTINEZ, Anália; RODRIGUEZ, María Graciela. Mujeres y fútbol: território conquistado o a conquistar? In: ALABARCES, Pablo (Org). Peligro de gol: estúdios sobre deporte y sociedad en América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2000. BRACHT, Valter. Educação física e aprendizagem social. Porto Alegre: Magister, 1992. BRACHT, Valter. Educação física: conhecimento e especificidade. In: SOUZA, Eustáquia Salvadora; VAGO, Tarcísio Mauro (Org.). Trilhas e partilhas: educação física na cultura escolar e nas práticas sociais. Belo Horizonte: Cultura, 1997. BRACHT, Valter. Sociologia crítica do esporte: uma introdução. Vitória: UFES, 1997. BRACHT, Valter. Identidade e crise da educação física: um enfoque epistemológico. In: BRACHT, V.; CRISORIO, R. A Educação física no Brasil e na Argentina: identidades, desafios e perspectivas. Campinas: Autores Associados; Rio de Janeiro: Prosul, 2003.

Page 220: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

220

BRACHT, Valter. Cultura corporal, cultura de movimento ou cultura corporal de movimento: In: S. JÚNIOR, M. (Org.). Educação física escolar: teoria e política curricular, saberes escolares e proposta pedagógica. Recife: Edupe, 2005. BRUNI, José Carlos. Dossiê Futebol: apresentação. Revista USP, São Paulo, n. 22, p. 6-9, jun./jul./ago. 1994.

BUENO, Kátia Maria Penido. Os processos sociais de constituição das habilidades: trama de ações e relações. 2005. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG), Belo Horizonte, 2005.

BURGESS, Robert G. A pesquisa de terreno: uma introdução. Tradução de E. de Freitas e M. I. Mansinho. Oeiras, Portugal: Celta,1997. CALDAS, Waldenyr. Aspectos sociopolíticos do futebol brasileiro. Revista da USP: dossiê futebol. São Paulo, n. 22, p. 40-49, 1994. CALVINO, Ítalo. Palomar. Tradução de Ivo Barbosa. São Paulo: Companhia da Letras, 1994. CARRANO, Paulo Cesar. Ronaldinho: ídolo esportivo ou mercadoria global? In: César______. (Org.). Futebol: paixão e política. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Quando a história da educação é a história da disciplina e higienização das pessoas. In: FREITAS, M. C. (Org.). História social da infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 1997. CONNELL, Robert. Políticas da masculinidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2. p. 185-206, jul./dez. 1995c. (Original inglês) CRUZ, Antonio Holzmeister Oswaldo. Futebol: nunca somente um jogo: comentários a partir do filme Febre de bola. In: ALVITO, M.; MELO, V. A. (Org.). Futebol por todo o mundo: diálogos com o cinema. Rio de Janeiro: FGV, 2006. CSORDAS, Thomas J. Embodiment as a paradigm for anthropology. Ethos, v. 18, n. 1, p.5-47, mar. 1990. DAMATTA, Roberto. Trabalho de campo. In: ______. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. p. 143-173. DAMATTA, Roberto. Antropologia do óbvio. Revista USP, São Paulo, n. 22, p. 10-17, jun./jul./ago, 1994. DAMATTA, Roberto. A bola corre mais que os homens. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. DAMO, Arlei Sander. Do dom à profissionalização: uma etnografia do futebol de espetáculo a partir da formação de jogadores no Brasil e na França. 2005. Tese

Page 221: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

221

(Doutorado em Antropologia) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FRGS); Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Porto Alegre, 2005. DAMO, Arlei Sander. Futebol e estética. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 15, n. 3, jul./set. 2001. DAOLIO, Jocimar. Da cultura do corpo. Campinas: Papirus, 1995. DAOLIO, Jocimar. Cultura: educação física e futebol. Campinas, SP: UNICAMP, 1997. DAOLIO, Jocimar. As contradições do futebol brasileiro. In: CARRANO, P. C. (org.). Futebol: paixão e política. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. DAOLIO, Jocimar. A Antropologia social e a educação Física. In: CARVALHO, I. M e RUBIO, K. (Org.). Educação física e ciências humanas. São Paulo: Hucitec, 2001. DAYRELL, Juarez Tarcísio. A música entra em cena: o rap e o funk na socialização da juventude. Belo Horizonte: UFMG, 2005. DAYRELL, Juarez Tarcísio; CARRANO, Paulo César R. Jovens no Brasil: difíceis travessias de fim de século e promessas de um outro mundo, 2003. Mimeo. DORNELLES, Pricila Gomes; e MOLINA NETO, Vicente. O ensino do futebol na escola: a perspectiva das estudantes com experiências positivas nas aulas de Educação Física em turmas de 5ª a 7ª série. In: KUNZ, E. Didática da educação física 3: futebol. Ijuí: Unijuí, 2003. ENGESTRÖM, Yrjö. Developmental studies of work as a testbench of activity theory: the case of primary care medical practice. In: CHAIKLIN, S.; LAVE, J. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. ERICKSON, FredericK. Taught cognitive learnig in its immediate environments: a neglected Topic in the anthropology of education. Anthropology & Education Quarterly. Special Issue, v. 13, n. 2, p. 149 180, 1982. ESCOLANO, Augustín. Arquitetura como programa: espaço-escola e currículo. In: ESCOLANO, Agustín; FRAGO, Antônio Viñao. Currículo, espaço e subjetividade: a arquitetura como programa. Tradução de Alfredo Veiga Neto. Rio de Janeiro: DP&A, 1998. FARIA, Eliene Lopes. O esporte na cultura escolar: usos e significados. 2001. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG), Belo Horizonte, 2001. FARIA FILHO, Luciano Mendes. Escolarização e cultura escolar no Brasil: reflexões em torno de alguns pressupostos e desafios. Belo Horizonte: FaE/UFMG, 2005b. Mimeo. FARIA FILHO, Luciano Mendes. Escolarização, culturas e práticas escolares no Brasil: elementos teórico-metodológicos de um programa de pesquisa. In: LOPES, A.

Page 222: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

222

C.; MACEDO, E. Disciplinas e integração curricular: história e políticas. Rio de Janeiro: AP&A, 2002. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio básico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. GALEANO, Eduardo. Depois do mundial futebol em pedacinhos. In: CARRANO, Paulo Cesar (Org.). Futebol: paixão e política. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. GASTALDO, Édison Luis e GUEDES, Simoni. Lahud. De pátrias e de chuteiras. In: GASTALDO, E. L.; GUEDES, S. L. Nações em campo: copa do mundo e identidade nacional. Niterói: Intertexto, 2006. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1978. GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Tradução de Vera Mello Joscelyne. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. GIBSON, J. J. The ecological approach to visual perception. Boston: Houghton Mifflin, 1979. GODELIER, Maurice. La production des grands hommes: pouvoir et domination masculine chez lês Baruya de Nouvelle-Guinée. Paris: Fayard, 1982. GOELLNER, Silvana Vilodre. Pode a mulher praticar futebol?. In: CARRANO, Paulo Cesar (Org.). Futebol: paixão e política. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. GOLDMAN, Marcio. Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos: etnografia, antropologia e política em Ihéus, Bahia. Revista de Antropologia. São Paulo, V. 46, n. 2, p. 446-476, 2003. GOMES, Ana Maria Rabelo. O processo de escolarização entre os Xakriabá: explorando alternativas de análise na antropologia da educação. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v.11, n. 32, p. 316-326, 2006. GOMES, Ana Maria Rabelo. M. R. Escolarização, estranhamento e cultura. In: Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte, Recife, UFP, set. 2007. GUEDES, Simoni Lahud. O Brasil no campo de futebol: estudos antropológicos sobre os significados do futebol brasileiro. Niterói, RJ: Eduf, 1998. GUEDES, Simoni Lahud. Jogo de corpo: um estudo de construção social de trabalhadores. Niterói: EDUFF, 1997. GUEDES, Simoni Lahud. Um dom extraordinário ou “cozinhar é fácil, mas quem sabe driblar como Beckham?”: comentários a partir do filme Driblando o destino. In: ALVITO, M.; MELO, V. A. Futebol por todo o mundo. Rio de Janeiro: FGV, 2006. GUSMÃO, Neuza Maria Mendes. Antropologia e educação: origens de um diálogo. Cadernos do Cedes, ano XVIII, n. 43, dez. 1997.

Page 223: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

223

HALL, Stuart. Who needs ‘identity’? In: HALL, S.; DU GAY, P. (Ed.). Questions of cultural identity. Londres: Sage, 1996. HARRIS, Mark. Riding a wave: embodied skills and colonial history on the amazon floodplain. Ethnos, v. 70, n. 2, p. 197-219, June, 2005. INGOLD, Thin. The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill. New York: Routledge, 2000. INGOLD, Thin. From the transmission of representations to the education of attention. In: ______. The debated mind: evolutionary psychology versus ethnography. Oxford: Harvey Whitehouse, 2001. INGOLD, Thin. Beyond art and technology: the anthropology of skill. In: SCHIFFER, M. B. Anthropological perspectives on technology. Albuquerque (NM): University of New Mexico Press, 2001. INGOLD, Thin. The 4A’s (Anthropology, Archaeology, Art and Architecture): reflections on a teaching and learning experience, mn. Versão provisória. Trabalho preparado para a Conferência Ways of Knowung. Universidade de St Andrews (Escócia), 13-15 de janeiro de 2005. KASTRUP, Virgínia. Políticas cognitivas na formação do professor e o problema do devir-mestre. Educação e Sociedade, Campinas, v. 26, n. 93, p.1273-1288, set./dez. 2005. KASTRUP, Virgínia. A aprendizagem da atenção na cognição inventiva. Psicologia e Sociedade. Porto Alegre, v. 16, n. 3, p. 7-17, set./dez. 2004. KUNZ, Elenor. Transformação didático-pedagógica do esporte. Ijuí: Unijuí, 1994. LA CECLA, Franco. Machos: sin ánimo de ofender. Tradução de Fernando Borrajo. Buenos Aires: Siglo XXI, 2005. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. LAVE, Jean. A comparative approach to educational forms of learning processes. Antropology & Education Quarterly. Special issue, v. 13, n. 2, p. 181-188, 1982. LAVE, Jean. Cognition in practice: mind, mathematics, and culture in everyday life. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. LAVE, Jean. The practice of learnig. In: CHAIKLIN, S.; LAVE, J. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. LAVE, Jean; WENGER, Etiene. Situated learning: legitimate peripheral participation. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1991.

Page 224: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

224

LEITE LOPES, José Sérgio. A vitória do futebol que incorporou a pelada. Revista da USP: dossiê futebol. São Paulo, n. 22, p. 64-83, 1994. LINHALES, Meily Asbú. A trajetória política do esporte no Brasil: interesses envolvidos, setores excluídos. 1996. Dissertação (Mestrado Ciência Política) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (FaFiCH/UFMG). Belo Horizonte, 1996. LINHALES, Meily Asbú. A escola, o esporte e a energização do caráter: projetos culturais em circulação na Associação Brasileira de Educação (1925:1935). 2006. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG), Belo Horizonte, 2006 LINHALES, Meily Asbú. A produção de uma forma escolar para o esporte: os projetos culturais da Associação Brasileira de Educação (1926:1935) como indícios para a historiografia da Educação Física. In: OLIVEIRA, M. A. Taborda de. Educação do corpo na escola brasileira. Campinas: Autores Associados, 2006. LEVI-STRAUSS. Claude. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1989. LUCENA, Ricardo de Figueiredo. O esporte na cidade: aspectos do esforço civilizador brasileiro. Campinas, SP: Autores Associados, 2001. MACHADO, Lia Zanotta. Gênero, um novo paradigma? Cadernos Pagu, Campinas, v. 11, p. 107-125 1998. MAGALHÃES. Romildo Sotério de. Sobre signo/corpo. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DO ESPORTE, Recife, UFP, set. 2007. MAGNANI, José Guilherme Cantor. Quando o campo é a cidade: fazendo antropologia. In: ______; TORRES, L. L. (Org.). Na metrópole: textos de antropologia urbana. São Paulo: USP; Fapesp, 1996. MATURANA, Humberto R. e VARELA, Francisco. J. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. Tradução de Humberto Mariotti e Lia Diskin. 5. ed. São Paulo: Palas Athena, 2005. MATURANA, Humberto R. Cognição, ciência e vida cotidiana. Tradução de Cristina Magro e Victor Paredes. 5. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. MAUSS, Marcel. As técnicas corporais. Tradução de Mário W. B. de Almeida. Sociologia e Antropologia, São Paulo, v. 2I, p. 209-233, 1974. (Original francês) MAZONI, Anna. Raquel. M. G. O corpo e o movimento no cotidiano de uma escola plural: um estudo de caso. 2003. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG), Belo Horizonte, 2003. MELO, Victor Andrade de. Futebol: que história é essa?. In: CARRANO, P. C. (Org.). Futebol: paixão e política. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

Page 225: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

225

MELUCCI, Alberto. Juventude, tempo e movimentos sociais. Revista Brasileira de Educação. ANPED, n. especial, p. 5-14, 1997. MOITA LOPES, Luiz Paulo. Identidades fragmentadas: a construção discursiva de raça, gênero e sexualidade em sala de aula. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2002. MOITA LOPES, Luiz Paulo. Socioconstrucionismo: discurso e identidade social. In: ______. Discursos de identidades. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2003. MOURA, Eriberto Lessa. O futebol como área reservada masculina. In: DAOLIO, J. (Org). Futebol, cultura e sociedade. Campinas: Autores Associados, 2005. p. 131-147. NOGUEIRA, Paulo Henrique Queiroz. Identidade juvenil e identidade discente: processos de escolarização no terceiro ciclo da Escola Plural. BH: FAE/UFMG, 2006 Tese (Doutorado Educação) – Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG), Belo Horizonte, 2006. OLIVEIRA, Pedro Paulo. A construção social da masculinidade. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2004. PACHECO, Ana Júlia; CUNHA JÚNIOR, Carlos Fernando Ferreira. Jogos Olímpicos de Atlanta, 1996: a imprensa e o “futebol de saias” do Brasil. Revista do Núcleo de Sociologia do Futebol/UERJ. Rio de Janeiro, n. 5, p. 95-108, 1997. PALSSON, Gísli. Enskilment at sea. Man, New Series, v. 29, n. 4, p. 901-927, Dec. 1994. PELISSIER, Catherine. The antrophology of teaching and learning. Annual Review of Anthropology, n. 20, p. 75-95, 1991. PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro (1902-1938). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. PHILLIPS, Susan. Invisible culture: communication in classroom and community on the warm springs indians reservation. Prospects Heights, llinois: Waveland Press, 1993. RAMALHO, Márcio. Futebol e bola na rede: diagnóstico e soluções para a crise do futebol. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998. ROGOFF, Barbara; PARADISE, Ruth; CORREA-CHÁVEZ, Maricela; MEJÍA-ARAUZ, Rebeca. Firsthand learning through intent participation. Annual Review of Psychology, v. 54, p. 175-203, 2003. ROCHA, Heloísa Helena Pimenta. Prescrevendo regras de bem viver: cultura escolar e racionalidade científica. Cadernos Cedes, ano XIX, n. 52, nov. 2000.

Page 226: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

226

ROCKWELL, Elsie. La dinamica cultural en la escuela. In: ALVAREZ, A. (Ed.). Hacia un currículum cultural: la vigência de Vygotsky en la educacion. Cidade do México: Fundación Infancia y Aprendizaje, 1997. ROCKWELL, Elsie. Recovering history in the study of shooling: from the longue durée to everyday co-construction. Human Development, v. 42, p. 113-128, 1999. SAHLINS, Marshall. O pessimismo sentimental e a experiência: por que a cultura não é um objeto em via de extinção (parte I). Mana, v. 3, n. 1, p. 41-73, abr. 1997. SAHLINS, Marshall. O pessimismo sentimental e a experiência: por que a cultura não é um objeto em via de extinção (parte II). Mana, v. 3, n. 2, p. 103-150, out. 1997. SAHLINS, Marshall. História e cultura: apologias a Tucídides. Tradução Maria Lúcia de Oliveira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. SARMENTO, Manuel Jacinto. O estudo de caso etnográfico em educação. In: ZAGO, N.; CARVALHO, M. P.; VILELA, R.A. (Org.). Itinerários de pesquisa: perspectivas qualitativas em sociologia da educação. Rio de Janeiro. DP&A, 2003. p. 137-182. SCOTT, Joan. Gênero: Uma categoria útil de análise. Educação e Realidade. Porto Alegre, v. 20, p. 71-99, jul./dez. 1995. SCHÉRER, René. Aprender com Deleuze. Educação e Sociedade, Campinas, v. 26, n. 93, p.1183 -1194, set./dez. 2005. SILVA, Silvio Ricardo. A construção social da paixão no futebol: o caso do Vasco da Gama. In: DAOLIO, J. (Org). Futebol, cultura e sociedade. Campinas: Autores Associados, 2005. p. 21-52. SINHA, Chris. Situated selves: learning to be a learner. In: BLISS, J.; SÃLJO, R.; LIGHT, P. (Ed.). Learning sites: social and technological resources for learning. Oxford: Pergamon, 1999. p. 32-48. SILVA, Fabrine Leonard. Práticas corporais de movimento na escola. 2004. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG), Belo Horizonte, 2004. SPINDLER, George; SPINDLER, Louise. Do anthropologists need learning theoy? Anthropology & Education Quarterly, Special issue, v. 13, n.2, p. 109 - 124, 1982. SOARES, Antonio Jorge. Diálogos identitários: etnia, gênero, sexualidade e futebol: comentários a partir do filme Driblando o destino. In: ALVITO, M.; MELO, V. A. (Org.). Futebol por todo o mundo: diálogos com o cinema. Rio de Janeiro: FGV, 2006. SOARES, Carmen Lúcia. Prefácio. In: OLIVEIRA, M. A. Taborda de. Educação do corpo na escola brasileira. Campinas: Autores Associados, 2006.

Page 227: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

227

SOUSA, Eustáquia S. Meninos à marcha! Meninas à sombra! A história da educação física em Belo Horizonte (1897-1994). 1994, 265 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de Campinas, Campinas, SP, 1994. SOUSA, Eustáquia S. O ensino da educação física para turmas mistas: difícil demais. Dois Pontos, Belo Horizonte, n. 1, maio, 1997. SOUSA, E.; ALTMANN. H. Meninos e meninas: expectativas corporais e implicações na educação física escolar. Cadernos Cedes, ano XIX, n. 48, ago. 1999. SPÓSITO, Marilia Pontes; CARRANO, Paulo César. Juventude e políticas públicas no Brasil. In: LEON, O. D. (Ed.). Políticas públicas de juventud en América Latina: políticas nacionales. Viña del Mar: CIDPA, 2003. SPÓSITO, Marilia Pontes. Estudos sobre a juventude em educação. Revista Brasileira de Educação. ANPED, n. especial, p. 37- 52, 1997. STIGGER, Marco Paulo. Educação física, esporte e diversidade. Campinas, SP: Autores Associados, 2005. STIGGER, Marco Paulo. Relações entre o esporte de rendimento e o esporte da escola. Revista Movimento, Porto Alegre, v. 7, n. 14, 2001. OLIVEIRA, Marcos Aurélio Taborda de. Práticas pedagógicas da educação física nos tempos e espaços escolares: a corporalidade como termo ausente?. In: BRACHT, V.; CRISORIO, R. A educação física no Brasil e na Argentina: identidades, desafios e perspectivas. Campinas: Autores Associados; Rio de Janeiro: Prosul, 2003. TOLEDO, Luis Henrique. Transgressão e violência entre torcedores de futebol. Revista da USP: dossiê futebol. São Paulo, n. 22, p. 92-101, 1994. TOLEDO, Luis Henrique. Torcidas Organizadas de futebol. Campinas, SP: Autores Associados/Anpocs, 1996.

TOLEDO, Luis Henrique. As cidades das torcidas: representações do espaço urbano entre torcedores e torcidas de futebol na cidade de São Paulo, apud MAGNANI. J. G. C. Quando o campo é a cidade: fazendo antropologia. In: ______; TORRES, L. L. (Org.). Na metrópole: textos de antropologia urbana. São Paulo: USP; Fapesp, 1996.

TOLEDO, Luis Henrique. Lógicas no futebol. São Paulo: Hucitec, Fapesp, 2002. TOREN, Christina. Mind, materiality and history: explorations in fijian ethnography. New York: Routledge, 1999. TURA, Maria de Lourdes Rangel. A observação do cotidiano escolar. In: ZAGO, N.; CARVALHO, M. P.; VILELA, R. A. (Org.). Itinerários de pesquisa: perspectivas qualitativas em sociologia da educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 183-206. VAGO, Tarcísio Mauro. Intervenção e conhecimento na escola: por uma cultura escolar de Educação Física. In: GOELLNER, Silvana Vilodre (Org.). Educação

Page 228: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

228

física/ciências do esporte: intervenção e conhecimento. Florianópolis: Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, 1999.

VAGO, Tarcísio Mauro. Cultura escolar, cultivo de corpos: educação physica e gymnastica como práticas constitutivas dos corpos de crianças no ensino público primário de Belo Horizonte (1897-1920). 1999. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade de (USP), São Paulo, 1999.

VARELA, Francisco. J. Sobre a competência ética. Tradução de Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 1992. VAZ, Alexandre Fernandez. Treinar o corpo, dominar a natureza: notas para uma análise do esporte com base no treinamento corporal. Cadernos Cedes, ano XIX, n. 48, p. 89-107, ago. 1999. VELHO, Otávio. De Bateson a Ingold: passos na constituição de um paradigma ecológico. Mana, v. 2, n. 7, p. 133-140, 2001. VELHO, Otávio. Trabalhos de campo: antinomias e estradas de ferro. Aula inaugural no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ, mar., 2006. VIDAL, Diana Gonçalves. Culturas escolares: estudo sobre praticas de leitura e escrita na escola publica primaria (Brasil e França, final do século XIX). Campinas, SP: Autores Associados, 2005. VINCENT, Guy; LAHIRE, Bernard; THIN, Daniel. Sobre a história e teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 33, p. 7-48, jun. 2001. WACQUANT, Loic. Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Tradução Ângela Ramalho, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. WELZER-LANG, Daniel. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Revista Estudos Feministas. Tradução de Miriam Pillar Grossi. Florianópolis, v. 9, n. 2, 2001, p. 460-485. (Original francês) WOLCOTT, Harry F. The Anthropology of Learning. Anthropology & Education Quarterly. Special issue, v. 13, n. 2, p. 83-108, 1982.

Page 229: Eliene Lopes Faria€¦ · connaissance. Dans le cadre de réseaux de sociabilité des jeunes, ils ont intégré le jeu - qui est composé pour relations sociales complexes, de différent

229

ANEXO I

TERMO DE CONSENTIMENTO

Declaro para os devidos fins que eu, ________________________________

tenho o conhecimento de estar participando da pesquisa de doutorado vinculada ao

Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da

Universidade Federal de Minas Gerais, realizada pela pesquisadora Eliene Lopes

Faria, cujo projeto se intitula: “O futebol dentro e fora da escola: um estudo sobre as

práticas de aprendizagem”.

Afirmo meu consentimento em participar nas formas necessárias (entrevistas

e observações) e autorizo futuras publicações nas formas de tese, artigos e/ou

livros, todos em caráter acadêmico e científico.

Ficam resguardadas as recomendações éticas que preservem a identificação

do participante.

Belo Horizonte, _____ de ____________________ 2006

________________________________________________

Assinatura do participante da pesquisa

________________________________________________

Assinatura do pai ou responsável