elas batem. eles apanham

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    Elas batem. Eles apanham

    No quarto do namorado da estudante carioca L.M., de 17 anos, há um buraco noarmário. É resultado do arremesso de um cinzeiro, lançado por ela. O alvo não era amobília, mas a cabeça dele. Aconteceu durante uma briga, no fim do ano passado. Elesestavam juntos havia seis meses. O namorado de L.M. implicava quando elaconversava com outros garotos ou passeava sozinha. Na véspera de uma viagem dele,ela comentou que sairia com uma amiga. Ele reclamou. “Tivemos uma discussão e,quando vi, estava atirando o cinzeiro”, diz L.M. Por sorte, a garota não tem boapontaria. O objeto arranhou o braço do namorado e quebrou o armário. Orelacionamento sobreviveu, também com arranhões. O casal ficou um tempo separadoe depois reatou, em outras bases. “Ai dele se me estressar de novo”, afirma L.M. Aestudante do 2o ano do ensino médio diz que parte de suas amigas tem umcomportamento parecido. “Elas são mais ‘macho’ que os namorados. Xingam,empurram. Não dão mole para eles.”

    As cenas violentas do namoro de L.M. serepetem na vida de milhões de brasileiros.É o que revela o mais completolevantamento sobre agressões no namoro,realizado pelo Centro Latino-Americano

    de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves) da Fundação Oswaldo Cruz, noRio de Janeiro. Foram pesquisados 3.200 estudantes de 104 escolas públicas eprivadas em dez Estados. A conclusão é chocante. Nove em cada dez adolescentesafirmaram praticar ou sofrer violência no namoro. E quem mais bate são as meninas.Quase 30% delas disseram agredir fisicamente o parceiro. São tapas, puxões decabelo, empurrões, socos e chutes. Entre os meninos, 17% se disseram agressores.Essa violência não distingue situação social. Metade da amostra é das classes A e B.“As meninas estão reproduzindo um padrão estereotipado do comportamentomasculino”, diz uma das coordenadoras da pesquisa, Kathie Njaine, professora doDepartamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina. O motivodas agressões é quase sempre o ciúme e a vontade de manter o parceiro sob controle.O estudo está no livro Amor e violência (Editora Fiocruz), lançado em agosto.

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    Os dados do Claves não sugerem que a natureza das meninas seja mais agressiva quea dos meninos. As atitudes denunciam algo mais complexo: relacionamentos violentos,em que a agressão, física ou emocional, é o meio que os parceiros usam para secomunicar. Funciona como uma estratégia de negociação, na falta de outro tipo dediálogo. Elas dizem bater para se defender. Os meninos, para revidar. Na maior parte

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    dos casos, ambos assumem o duplo papel de vítima e agressor. Os dados do Clavesrevelam essa ambiguidade: 86,8% dos entrevistados se disseram vítimas e 86,9%agressores. As meninas dizem fazer mais ameaças: 33% afirmaram insinuar destruirobjetos ou arremessar algo. Entre eles, 27% relataram esse tipo decomportamento. Elas ainda recorrem ao expediente de espalhar boatos contra oparceiro e tentar afastá-lo dos amigos, prática conhecida tecnicamente como“violência relacional”. Cerca de 20% dos rapazes declararam ser vítimas dessaestratégia ardilosa. Entre as meninas, 14% sofreram com a atitude (leia o quadroabaixo).

    A violência praticada pelas meninas pode não deixar marcas físicas porque elas têmmenos força para machucar. Mas causa danos emocionais. “Os meninos dizem que asagressões não doem fisicamente, mas eles se sentem moralmente agredidos ehumilhados”, afirma a psicóloga Queiti Oliveira, uma das autoras do estudo. Quando

    são eles que batem, triplica a chance de a menina sair ferida. Eles também recorremcom mais frequência à violência sexual – de beijos forçados a relações nãoconsentidas. A sua maneira, as meninas também usam esse tipo de agressão. Quase33% das adolescentes disseram forçar o namorado a tocá-las ou pressioná-los atransar, colocando em xeque sua virilidade.

    Quase 30% das meninas dizem agredir fisicamente. Entre os meninos, 17% se dizemagressores

    A violência no namoro adolescente é um fenômeno internacional. Pesquisas estimamque entre 20% e 60% dos relacionamentos juvenis sejam baseados em agressões. NosEstados Unidos, um em cada quatro adolescentes diz sofrer abuso físico, emocionalou sexual do parceiro. Lá também parece que as meninas fazem agressões maisfrequentes, embora haja discordância sobre quem bate primeiro. “Dada a naturezadiferente das agressões praticadas por meninos e meninas, é difícil compará-las paraentender quem agride mais”, escrevem os pesquisadores da organização americanaCentro Nacional de Recursos contra a Violência Doméstica. Outra dificuldade éestabelecer quando um clima tenso no casal evoluiu para a troca de provocações outapas.

    Numa pesquisa em São Paulo, 22% das meninas eram agressivas. Quase o dobro dosmeninos

    Ainda não se sabe se esse tipo de violência sempre existiu ou se está aumentandoagora. Há poucos dados sobre o tema de 20 anos para trás. Primeiro, porque esse tipode pesquisa costuma ser de difícil execução. Em segundo lugar, o conceito deviolência é complicado de definir. É possível que o problema sempre tenha estado ali,mas só apareceu quando nossa percepção se tornou mais aguda. A valorização dos

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    direitos humanos e o aumento do nível de educação da população nas últimasdécadas deixou as pessoas cada vez mais sensíveis a nuances sutis de agressão. Asofensas verbais, hoje consideradas uma forma de ataque emocional, foram tidas pormuito tempo como asperezas naturais dos relacionamentos.

    É provável que parte da violência esteja ligada à mudança no papel feminino. Umlevantamento com 320 adolescentes entre 10 e 19 anos, feito pelo Centro deAtendimento e Apoio ao Adolescente da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp),sugere que 22% das meninas atendidas têm comportamento violento contra outraspessoas (sejam meninos, amigas, pais ou professores). Esse padrão só aparece em12% dos meninos. “Parece que, ano a ano, a agressividade entre as meninas aumenta”,afirma a socióloga Miriam Abramovay.

    Num estudo coordenado por ela com 13 mil estudantes de cinco capitais brasileiras,

    10% das meninas afirmaram já ter batido em alguém na escola. Segundo Miriam, paraconseguir o mesmo status de liderança conferido aos homens, as meninas decidiramusar as mesmas táticas: se impor pela força. Inclusive entre elas. “A imagem defeminilidade tradicional não é mais aceita pela sociedade. As meninas competem comos meninos em tudo, no mercado de trabalho, no vestibular, na atenção de outrosamigos.”

    “Os garotos estão apanhando direto. Estão acuados. Como eles são mais fortes, têmmedo de revidar e ficam quietos”, diz a jovem G.F., de 18 anos. Há uma semana, elaterminou um relacionamento de três anos com seu primeiro namorado. Não é aprimeira vez. O casal, chamado de ioiô pelos amigos, vive rompendo e reatando porcausa do temperamento explosivo de G.F. O motivo, dessa vez, foram as agressõescontra o rapaz, de 19 anos. “Ele chegou a minha casa tarde depois do futebol com osamigos, sem avisar. Perdi o controle e parti para cima dele. Dei tapa, soquei, arranhei.Também o chamei das piores coisas possíveis”, diz. Segundo ela, o namorado nãoreagiu, apenas a empurrou para trás para se defender. G.F. diz que sua agressividade éreação ao comportamento da mãe, que, de acordo com ela, é submissa ao padrasto.“Quero tanto ser diferente que acho que meus namorados acabarão sofrendo.” G.F. dizquerer evitar a atitude submissa de sua mãe. Mas acaba reproduzindo em seusrelacionamentos o inverso do que vê em casa.

    O exemplo doméstico é considerado uma das principais causas da violência no

    namoro adolescente. Na pesquisa do Claves, os agressores tinham 2,6 vezes maischances de viver em ambiente violento. De acordo com o psicólogo canadense AlbertBandura, professor da Universidade Stanford e criador da teoria da aprendizagemsocial, os seres humanos aprendem pela imitação. Por isso, o adolescente agressor dehoje pode ter assimilado modelos de violência no relacionamento entre os pais.

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    Quando ele se vê em papel semelhante,reproduz o mesmo padrão decomportamento. “A criança passa aconfundir violência com cuidado”, diz apsicóloga Vivien Bonafer Ponzoni,coordenadora do Núcleo de Família eCasal da Associação Brasileira dePsicodrama e Sociodrama, em SãoPaulo. A formação da personalidadetambém é abalada pelas experiênciasda infância. Isso pode tornar o jovemmais propenso a repetir esse tipo decomportamento. Como as relaçõesfamiliares influenciam nossa

    capacidade de regular emoções, aspessoas que viveram em ambientesagressivos tendem a ter dificuldade decontrolar impulsos, instabilidadeemocional e insegurança nas relaçõesafetivas.

    A professora gaúcha Ana L.F., de 55anos, diz que sua relação com o marido

    influenciou sua filha, hoje com 30 anos. “Amo errado desde sempre”, diz Ana. Elaagrediu pela primeira vez um namorado aos 14 anos, quando flagrou uma traição. Ocomportamento se repetiu durante o namoro, o noivado e o casamento com o ex-marido, pai de seus filhos. “Nossos dois filhos presenciaram vários episódios em quenos xingávamos. Tanto que criei um monstrinho. Minha filha repete meucomportamento violento e ciumento desde os 13 anos”, afirma.

    Reproduzir modelos domésticos não é regra.“Qualquer jovem vítima de violência no larpode ser capaz de compreender o mal que isso lhe causa ou causou e criar laçosafetivos saudáveis”, diz a socióloga Maria Cecília de Souza Minayo, pesquisadora daFiocruz e uma das organizadoras da pesquisa do Claves. E mesmo quem sempre viveuem uma família tranquila pode se tornar um agressor. Em alguns casos, a instabilidadeemocional causada pela adolescência pode ter uma parcela de culpa. “Osadolescentes passam por uma série de mudanças biológicas, hormonais, emocionais.Mas isso é transitório e tende a atenuar com as experiências de vida”, afirma opsicanalista David Leo Levisky, de São Paulo. A necessidade de parecer independentee mostrar autonomia torna os adolescentes mais suscetíveis a aceitar pressões dogrupo – e a sucumbir às atitudes violentas. Uma pesquisa com mais de 1.300

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    estudantes, conduzida pelo psicólogoespanhol David Moreno Ruiz,pesquisador da Universidade Pablo deOlavide, em Sevilha, mostra que os jovens em busca de respeito eadmiração dentro do grupo são os maispropensos a agressões.

    A violência no namoro adolescente temoutras consequências. Pouco importase é para quem agride ou apanha, jáque os papéis mudam a todo momento.Pesquisas revelam que a agressividadegera queda no rendimento escolar,

    problemas com drogas e uso abusivode álcool, desordens alimentares esintomas depressivos. Em umlevantamento feito com mais de 5.400estudantes do ensino médio, realizadoem escolas da Carolina do Sul, nosEstados Unidos, a epidemiologista AnnCoker descobriu que tentativas desuicídio podem ser frequentes. As

    meninas que relataram ter sido agredidasduas vezes no último ano tinham risco 50% maior de se matar. Entre os meninosagredidos, havia pensamentos suicidas, mas não tentativas.

    Poucos jovens procuram ajuda para interromper o ciclo de violência. Apenas 3,5% dosentrevistados pelo Claves afirmaram ter buscado apoio de psicólogos. A principalrazão é desprezarem a importância das agressões dentro do namoro. Para eles,violência doméstica é algo de gente adulta e casada. A pedagoga americana SandraStith, diretora do Programa de Terapia Familiar e de Casal da Universidade do Estadodo Texas, compara o erro de percepção à relação dos adolescentes com a bebida. “Os jovens consideram normal se embebedar. Mas, se veem um adulto bêbado,consideram que ele tem um problema com o álcool”, diz Sandra. Ela está pesquisandoos efeitos da violência sofrida pelos meninos. Contribui para isso o fato de os jovens

    considerarem o principal estopim das brigas – o ciúme – como um sentimento positivo.“No namoro adolescente, a demonstração de ciúme costuma ser vista como sinal deamor. Só que as restrições vão crescendo – de patrulhar o celular do namorado aproibir a saída com os amigos”, diz o psicólogo Carlos Eduardo Zuma, do InstitutoNoos, de prevenção à violência doméstica do Rio de Janeiro. “Se você aceita como

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    algo natural, não importa se como vítima ou autor, a tendência é que piore com otempo.”

    O melhor caminho para pacificar essas relações é a educação. A tarefa começa comos pais. “O que pode ou não fazer em um namoro é uma questão moral, e o exemplovem de casa”, afirma a psicóloga Teresa Helena Schoen, da Unifesp. Parte daresponsabilidade é da escola, que deve identificar o problema. O México criou em2008 um programa de prevenção à violência, aplicado em 500 escolas do ensinomédio. O programa, chamado Escolas para a Igualdade, nasceu para combater aviolência contra a mulher. Logo no primeiro ano, foi identificado que o abuso sexual eas agressões físicas entre meninas eram comuns. As escolas passaram a abrir aossábados para atividades educativas e culturais que envolvem pai, mãe, aluno eprofessor. Também foi criado um canal para ouvir as queixas dos estudantes. Issoajuda a identificar casos de violência, que ganham acompanhamento psicológico.

    Cerca de 60% dos jovens que participam do programa dizem que suas relações compais, professores e colegas melhoraram. E 56% dizem que aprenderam a reconheceruma situação de violência dentro da escola. Pode parecer um tímido avanço. Mas é opasso fundamental para construir relações mais saudáveis e pacíficas.