elaine muniz pires - imprensa, ditadura e democracia.pdf
TRANSCRIPT
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
1/132
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC-SP
ELAINE MUNIZ PIRES
Imprensa, Ditadura e Democracia:
A construo da auto-imagem dos jornais do Grupo Folha(1978/2004)
MESTRADO EM HISTRIA
SO PAULO
2008
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
2/132
2
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC-SP
ELAINE MUNIZ PIRES
Imprensa, Ditadura e Democracia
MESTRADO EM HISTRIA
Dissertao apresentada Banca
Examinadora da Pontifcia
Universidade Catlica de So
Paulo, como exigncia parcial para
obteno do ttulo de MESTRE em
Histria, sob a orientao da Prof
Doutora Helosa de Farias Cruz.
SO PAULO
2008
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
3/132
3
BANCA EXAMINADORA
_______________________________
_______________________________
_______________________________
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
4/132
4
s minhas irms Carol e Dboraque a duras penas ainda encontram
sentido para a vida
Ao Vinicius
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
5/132
5
AGRADECIMENTOS
Este trabalho foi realizado sob condies to adversas que por muitasvezes pareceu que no se completaria. A finalizao da pesquisa e suaapresentao tm, para mim, um significado muito especial de superaoda dor pela continuidade da vida.
Dentre as pessoas que o tornavam possvel, sem dvida, a professora
Helosa de Farias Cruz, a principal protagonista. Agradeo pelacompreenso nos momentos difceis e pelo encaminhamento dado dissertao.
Agradeo aos colegas do Banco de Dados de S. Paulo e ao gerenteCarlos Kauffmann pelo auxlio na pesquisa.
A todos os amigos que contriburam no processo de produo dotexto, em especial, Antonio, Jacqueline, Daniel, Valdemar, Fbio Magoo,
Shis, Clodoaldo, Tiago, Eder, Ceclia, Andrea e Fernando.
professora Vera Lcia Vieira pelo auxlio na preparao do projetode mestrado e pelas contribuies valiosas em vrios momentos da
pesquisa. Ao professor Marcos Antnio da Silva pela participao esugestes quando do exame de qualificao.
Ao meu companheiro Sandro pelo apoio, amparo e carinho. minhafamlia e aos companheiros de militncia que compreenderam meu
afastamento. Aos amigos Fbio e Mrcia, pelo apoio tecnolgico, pelorango da hora, pelo vinho e pelo papo agradvel.
Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior,pelo financiamento da pesquisa.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
6/132
6
RESUMO
A presente dissertao busca contribuir para a compreenso da histria da
imprensa brasileira na atualidade atravs do estudo da emergncia da Folha de S. Paulo
como um dos mais importantes jornais da grande imprensa nacional. Nossa pesquisa se
dirige ao estudo da consolidao empresarial do Grupo Folha, suas relaes com os
governos militares e com a conjuntura das lutas contra a ditadura, pondo em foco adiscusso da construo de uma imagem de jornal democrtico e independente.
A anlise volta-se para os anos 1980, quando o Grupo Folha resolveu investir na
construo de uma imagem que trouxesse prestgio ao jornal e permitisse o sucesso
comercial do empreendimento.
O primeiro captulo explora a atuao da Folha de S. Paulo no processo de
construo de sua imagem voltada defesa dos valores democrticos, sobretudo a partir
de seu engajamento na Campanha pelas Diretas-j. O segundo aborda a continuidade
desta trajetria nos anos 1980 e 1990, destacando as estratgias de marketing e as
publicaes que rememoravam a participao da Folha no processo de transio da
ditadura democracia, concomitantemente reformulao do jornal implementada a
partir do projeto editorial e do Manual de Redao.
Por ltimo, analisamos polmicas sobre o Grupo Folha e suas relaes com o
regime civil-militar brasileiro trazidas tona por produes a partir de 1999.
PALAVRAS-CHAVE: HISTRIA DA IMPRENSA, FOLHA DE SO PAULO,
DITADURA MILITAR, IMPRENSA e PODER.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
7/132
7
ABSTRACT
The present dissertation aims to contribute for the understanding of the current
Brazilian press history through the study of the process of the emergency of the
newspaper Folha de S.Paulo as one of the most important newspapers of the Brazilian
mass media. Our research studies the consolidation of Grupo Folha and its relations
with military governments and with the historical juncture of the fight against the
dictatorship, focusing the debate about the construction of the image of a democratic
and independent newspaper.
This study begins in the 80s, when Grupo Folha decided to invest in the
construction of a image which could brought prestige to the newspaper and to achieve
commercial success for the enterprise.
The first chapter explores the performance of Folha de S.Paulo in the process of
the construction of its image as a defender of democratic values, mainly from its
engagement on the campaign for direct presidential elections, the Diretas-J campaign.
The second chapter approaches the continuity of this trajectory in the 80s and 90s,
emphasizing the marketing strategies and the publications that remember the
engagement of Folha de S.Paulo in the transition from dictatorship to democracy,
concomitantly to the reformulation of the newspaper implemented from its editorial
project and manual of style.
Finally, we analysed controversies over the relations of the Grupo Folha with the
civil-military regime revealed by academic works since 1999.
KEYWORDS: PRESS HISTORY, FOLHA DE S. PAULO, MILITARYDICTATOESHIP; PRESS AND POWER
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
8/132
8
SUMRIO
Agradecimentos p. 5
Resumo p. 6
Abstract p. 7
Apresentao p. 9
Introduo p. 13
Captulo I
Construindo uma Imagem: o jornal das Diretas p. 32
Captulo II
Um Jornal de Rabo Preso com o leitor? p. 59
Captulo III
Imagem Questionada p. 87
Concluso p. 120
Fontes p. 124
Bibliografia p. 128
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
9/132
9
APRESENTAO
O falecimento de Octvio Frias de Oliveira, um dos bares da imprensa
brasileira, em 29 de abril de 2007, aos 94 anos, marcou uma srie de debates sobre opapel da mdia na sociedade brasileira. A morte do proprietrio do jornal mais vendido
do pas, a Folha de S. Paulo, seguiu-se a de Roberto Marinho em 2003, outro expoente
do pequeno nmero de conglomerados que compem a poderosa mdia brasileira na
atualidade.
O Publisher1, Octvio Frias de Oliveira, foi aclamado como um dos responsveis
pelo retorno da democracia ao pas na dcada de 1980 pela maioria das personalidades
que lhe renderam homenagens. Alm de sees na Cmara e no Senado, o presidente da
repblica Luiz Incio Lula da Silva afirmou que a Campanha das Diretas J no teria
existido sem ele e que "todos ns ganhamos quando aprendemos as lies de
democracia que foram deixadas pelo doutor Frias" 2. Eduardo Suplicy3reconheceu que
"Frias canalizou os sentimentos to fortes de liberdade e democracia pelos quais a
populao clamava no final da ditadura militar" 4.
A imprensa estrangeira tambm ressaltou o papel desempenhado no processo de
redemocratizao. A agncia internacional Associated Press (AP) afirmou que Frias
"liderou a abertura da mdia" e que, durante o perodo militar "manteve sua
independncia ao dar voz tanto a crticos quanto a simpatizantes da ditadura durante
uma poca de crise nos direitos civis e na liberdade de expresso" 5.
No material produzido sobre a morte do proprietrio era grande o destaque dado
ao engajamento da empresa e do proprietrio falecido nos anos 80, enquanto que aos
momentos em que se vivenciou uma ditadura poltica no Brasil, o espao curto relatava
apenas as inovaes tcnicas implementadas no jornal Folha de S. Paulo. A notcia
sobre o enterro afirma que sob seu comando, a Folha abriu suas pginas ao debate
1No existe uma nica definio para o conceito. Nossas pesquisas mostraram que o termo utilizadopara cargos de diferentes funes nas revistas e jornais de pases de lngua inglesa, atribuindo aopublisher, em alguns casos, responsabilidade editorial e em outros apenas de circulao. No localizamoso significado do conceito para a empresa Folha da Manh. Octvio Frias de Oliveira ocupa esta posiodesde setembro de 1977, quando a Folha de S. Paulo foi ameaada de ser fechada pelo regime militar porter publicado uma coluna considerada ofensiva s Foras Armadas.2Pluralismo marca adeus a Octavio Frias de Oliveira. So Paulo: Folha de S. Paulo, 01/05/2007.3Eduardo Suplicy, em 2007, era senador pelo Partido dos Trabalhadores de So Paulo.4 Polticos elogiam atuao na retomada da democracia no pas. So Paulo: Folha de S. Paulo,
06/05/2007.5Nota publicada em 30 de abril de 2007 pela Associated Press, citada pela matria da Folha Online domesmo dia intitulada: Octavio Frias de Oliveira liderou abertura da mdia no Brasil, diz AP.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
10/132
10
democrtico e ao movimento que acabaria impondo a realizao de eleies livres e
diretas no Brasil e o fim do regime militar (1964-1985) 6. Em 2001, quando o jornal
comemorava os 80 anos de existncia, a chamada da matria que analisava as dcadas
de 60 a 80, enfatizava que Folha apoiou o regime de 64, mas se engajou na
redemocratizao nos anos 70 7.
Esta postura de jornal democrtico e independente em processo de construo
reforada constantemente no material publicitrio e em publicaes do Grupo Folha,
como estratgia de marketing. A Folha de S. Paulo carrega a marca do Jornal das
Diretas J, como o trunfo de um passado recente que colocou a publicao e o Grupo
Folha entre os maiores conglomerados de mdia do pas.
Porm, nem todas as lembranas que emergiram com a morte de Frias,
enfatizam este aspecto pioneiro e to adequado aos interesses atuais de uma sociedade
dita democrtica. H vozes dissonantes. E no so poucas. No dia 07 de maio de 2007,
o jornalista Edgar Olmpio de Souza, publicou na Revista Meio & Mensagem o texto
Nem to liberal assim sobre o Octvio Frias de Oliveira. Edgar lembrava crticas do
tambm jornalista Mino Carta s posies da empresa, favorveis ao golpe de 1964:
O liberal Frias teve, de fato, uma histria controversa em suasposies polticas. Logo ao comprar a Folha, teria feito do jornal
um instrumento a servio da conspirao golpista. Estampavamanchetes sensacionalistas contra o perigo comunista e assinavaeditoriais contra a corrupo e a subverso. Na fase mais aguda daditadura militar, por exemplo, a Folha da Tarde, tambm do grupo,divulgava a morte de terroristas em emboscadas policiais quandoestes ainda estavam na priso. 8
O box presente no obiturio de Frias rendeu a demisso do editor adjunto da
revista, Constbile Nicoletta e uma greve na redao. Poucos dias depois, Hamilton
Octvio de Souza, jornalista da Folha9entre 1983 e 1986 e Vasco Oscar Nunes, entre
1970 a 1979, publicaram no portal Comunique-se e posteriormente no site do
Observatrio da Imprensa, suas verses sobre o empresrio para no deixar que a
histria seja reescrita conforme os interesses dos poderosos 10. Nunes considera que o
6PLURALISMO..., 06/05/2007.7Tudo sobre a Folha. So Paulo: Folha de S. Paulo, 19/02/2001.8Nem to liberal assim. So Paulo: Revista Meio & Mensagem, 07/05/2007.9Nos escritos produzidos pela empresa e por estudiosos em geral, confunde-se a imagem do Grupo Folhacom a Folha de S. Paulo, na denominao nica de Folha. Utilizaremos em nosso trabalho a mesma
referncia em algumas passagens, por entender que o principal jornal do grupo reflete as decises dosproprietrios e da empresa, assim como a auto-imagem em construo do conjunto.10Sobre Octvio Frias de Oliveira. Portal Comunique-se, 14/05/2007.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
11/132
11
erro de Nicoletta foi ter feito um bom jornalismo e reitera as informaes contidas no
box publicado. Rememorando sua experincia na redao, o jornalista cita entre outros
exemplos, a censura praticada, os artigos publicados da TFP11, os agentes do Dops12que
trabalharam na sede da empresa. E, assim define Frias:
Frias era, como se diz, um come quieto, um por dentro, pobolorento, por fora bela viola..... Qualquer pessoa que o conhecesseo julgava uma tima pessoa. Cortez, gentil, amigvel, fala mansa, umdiplomata, um gentleman. Mas no recndito do seu egosmo era umditador. 13
Trazendo tona novas lembranas, alguns custa de seu emprego, estes
jornalistas mostram como sobre um mesmo acontecimento, diversas verdades podem
ser produzidas a partir do olhar de quem vivencia, envolvendo sentimentos, vises,
selees e interesses em sua reconstituio. Mas, mais do que isso, suas consideraes
so importantes questionamentos sobre a constituio da auto-imagem do principal
jornal do Grupo Folha, a Folha de S. Paulo, em que a figura do proprietrio apenas a
parte mais recente deste processo.
Motivados por este debate, desenvolvemos o trabalho sobre o processo de
construo desta auto-imagem da Folha de S. Paulo a partir dos anos 80 e os
argumentos que usam para legitim-la em resposta aos questionamentos emergidos
atravs de anlises acadmicas no limiar dos anos 2000.
No primeiro captulo exploramos a atuao da Folha de S. Paulo no processo de
construo de sua imagem voltada defesa dos valores democrticos, sobretudo a partir
de seu engajamento na Campanha pelas Diretas-j. Veremos que para cumprir este
intento foi necessrio o resgate de uma tradio de jornal pluralista e independente dos
governos, at ento pouco reivindicada pela empresa, e a elaborao de um projeto de
jornal, que fixasse normas e estilos de produo da notcia.
Em um segundo momento, discutimos como a auto-imagem da Folha continuou
a ser reforada na dcada de 80 e 90 atravs de estratgias de marketing e de
publicaes que rememoravam a participao da Folha na campanha das Diretas-J,
concomitantemente reformulao do jornal implementada a partir do projeto editorial
11Os artigos da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradio, Famlia e Propriedade, escritos por PlnioCorra de Oliveira, foram publicados na Folha de S. Paulo em 12 de maio de 1969 Tradio, 24 de abril
de 1969 Famlia e em 02 de outubro de 1968 Propriedade.12O Departamento de Ordem Poltica e Social era um rgo repressivo do governo militar.13SOBRE..., 14/05/2007.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
12/132
12
e do Manual de Redao. O novo perodo, inaugurado principalmente pelo diretor de
redao Otvio Frias Filho a partir de 1984, foi marcado pela busca incessante de uma
objetividade jornalstica e da execuo de tcnicas de produo da notcia identificadas
com a lgica empresarial, em detrimento de uma cultura jornalstica em voga at o
incio dos anos 80 e de um projeto editorial baseado em princpios democrticos
proposto por Cludio Abramo. A adoo da centralizao do poder editorial nas mos
do diretor de redao, apesar de contraditrio, foi responsvel pela continuidade da
afirmao de uma imagem relacionada ao processo de redemocratizao, definida como
estratgia de crescimento comercial.
Por ltimo, analisamos um processo iniciado a partir de 1999 em que produes
acadmicas trouxeram tona polmicas relacionadas ao Grupo Folha e suas relaes
com o regime civil-militar brasileiro. A autocensura praticada pela Folha de S. Paulo, o
apoio e participao no golpe militar de 1964, o papel conferido Folha da Tarde em
relao represso e os contatos entre os proprietrios do jornal e os militares, pem em
xeque a imagem construda de defesa democrtica. Para tanto, analisamos as produes
institucionais a partir de 2001 que no s debatem os questionamentos emergidos, mas
propem respostas e a assuno por parte da empresa de aspectos escusos de sua
trajetria, trazendo-lhes significados que permitem a manuteno da imagem em
constante construo de jornal democrtico para a Folha de S. Paulo e o grupo de que
faz parte.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
13/132
13
INTRODUO
Tornarem-se senhores da memria e do esquecimento uma dasgrandes preocupaes das classes, dos grupos, dos indivduos que
dominaram e dominam as sociedades histricas. Os esquecimentos eos silncios da histria so reveladores desses mecanismos demanipulao da memria coletiva. 14
O presente trabalho nasceu do interesse de pesquisar a censura governamental
imprensa durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), seus significados e como a
Folha de S. Paulo respondeu a este sistema repressivo de controle das informaes. Em
um estgio que realizei no Banco de Dados de S. Paulo, do Grupo Folha, tive contato
com comunicados enviados pela Polcia Federal entre 1969 e 1972 para a empresa
contendo proibies governamentais de temas a serem publicados que levavam os
jornais a praticar a autocensura. Resolvi investig-los por perceber que a ditadura
militar e, em especial, a participao da imprensa em sua promoo, so problemticas
que ainda carecem de aprofundamento na historiografia nacional, apesar do fluxo
crescente de produes neste sentido.
Contudo, no processo da pesquisa, nos deparamos com aes promovidas pelo
Grupo Folha visando rever sua atuao enquanto organismo de imprensa durante os
governos militares. Cumprindo este propsito, presenciamos em setembro de 2006 uma
palestra ministrada pelo diretor de redao Otvio Frias Filho da Folha de S. Paulo, a
ttulo de treinamento profissional de jornalistas, e localizamos um documento de
circulao interna produzido em 2004 sobre a temtica.
No publicada at os dias atuais, a produo deste documento, intitulado O
Regime Militar e a Folha15, reflete a necessidade de reconstruo de uma interpretao
sobre a atuao da empresa durante a ditadura militar, como reflexo de um processo
intensificado a partir de 1999, em que produes acadmicas e discusses pblicas em
diversos espaos comearam a trazer ao debate pontos controversos sobre a memria
dos jornais da empresa naquele perodo. A publicao de trabalhos como Censura,
Imprensa e Estado Autoritrio16 de Maria Aparecida de Aquino naquele ano e, em
2000 Um Acordo Forado17 de Anne-Marie Smith, apesar de no se debruarem
14GOFF, Jacques Le. Histria e Memria. Campinas, SP: UNICAMP, 1990, p. 426.15PILAGALLO, Oscar. A Folha e o Regime Militar. So Paulo: Folha de S. Paulo, 15/09/2004.16
AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa e Estado Autoritrio. So Paulo, EDUSC, 1999.17SMITH, Anne-Marie. Um Acordo Forado: o consentimento da imprensa a censura no Brasil.Rio deJaneiro, FGV, 2000.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
14/132
14
especificamente sobre a Folha de S. Paulo, apontam o exerccio da autocensura no
principal jornal do Grupo Folha durante o perodo de censura grande imprensa (1969-
1975), fato que vai de encontro com a defesa da empresa, at ento em voga, de que o
jornal resistiu censura. Em 2004, a publicao de Ces de Guarda: jornalistas e
censores18de Beatriz Kushnir, que detalha as relaes da Folha da Tarde com o regime
militar coroou este processo de questionamentos, que repercutiu num esforo interno da
empresa de resgate e escrita de sua histria, buscando a continuidade da construo da
auto-imagem da Folha de S. Paulo, relacionada defesa de eleies diretas em 1984.
Ao nos depararmos com obras e entrevistas que apresentam diversos aspectos de
uma mesma histria e interpretaes produzidas sobre o Grupo Folha durante a ditadura
militar brasileira, percebemos a importncia da construo da imagem da Folha de S.
Paulo a partir da dcada de 1980 e as implicaes que as disputas destas memrias
poderiam trazer para a manuteno do prestgio e da vendagem de produtos, de onde
deve surgir o interesse da empresa em tornar-se dona de sua histria. Estas questes,
emergidas atravs da anlise das fontes e da pesquisa bibliogrfica, fizeram com que
repensssemos a problemtica de nosso trabalho, que passou a investigar o processo em
curso de construo da imagem do principal jornal do Grupo Folha, a Folha de S. Paulo
a partir da dcada de 1980, e os questionamentos sobre a legitimidade de sua auto-
imagem, preocupao da empresa nos anos 2000.
Diante desta reorientao da pesquisa, a fonte principal de nosso trabalho se
concentra nas produes da empresa associadas construo de seu passado e de sua
auto-imagem, como as obras a Histria da Folha de S. Paulo19, de 1981, O Brasil em
Sobressalto20, de 2002, Mil Dias21, de 1988 e o documento interno O Regime
Militar e a Folha, de 2004. Para o enriquecimento desta perspectiva, tornou-se
necessrio abordar tambm editoriais e reportagens que associam o jornal Campanha
das Diretas-j, os documentos do Projeto Folha lanados entre 1978 e 1988 e peaspublicitrias lanadas entre os anos 80 e 90. Utilizamos ainda entrevistas publicadas dos
18KUSHNIR, Beatriz. Ces de Guarda: jornalistas e censores, do AI-5 Constituio de 1988. SoPaulo, Boitempo, FAPESP, 2004.19MOTA, Carlos Guilherme, CAPELATO, Maria Helena. Histria da Folha de S. Paulo (1921-1981).So Paulo, IMPRES, 1981.20PILAGALLO, Oscar. O Brasil em Sobressalto: 80 anos de histria contados pela Folha.So Paulo,
Publifolha, 2002.21SILVA, Carlos Eduardo Lins da. Mil Dias: os bastidores da revoluo em um grande jornal. So Paulo,Trajetria Cultural, 1988.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
15/132
15
proprietrios e depoimentos orais coletados integrantes do Projeto Histria Oral 22, do
Banco de Dados de S. Paulo, base da formulao do documento interno de 2004, na
discusso de seu contedo.
As obras que trazem os questionamentos sobre a auto-imagem construda da
Folha de S. Paulo rebatidos nos escritos da empresa, so utilizadas frequentemente
como suporte bibliogrfico de nossa pesquisa, j que so essenciais na compreenso dos
debates promovidos. Entre elas Ces de Guarda: Jornalistas e Censores, de Beatriz
Kushnir, Censura, Imprensa e Estado Autoritrio, de Maria Aparecida de Aquino, A
Regra do Jogo23, de Cludio Abramo, 1964: A Conquista do Estado24, de Rene
Dreifuss, Sndrome da Antena Parablica25, de Bernardo Kucinski, Folhas ao
Vento26, de Gisela Taschner e Um Acordo Forado, de Anne Marie Smith.
A evidncia da imagem que se quer da Folha de S. Paulo tem um significado
particular na imprensa brasileira, dada a complexidade da histria da empresa marcada
por diferentes proprietrios e defesas polticas diferenciadas. Os principais jornais do
conglomerado, as Folhas como so conhecidas as publicaes Folha de S. Paulo,
Folha da Tarde, Folha da Manh e Folha da Noite, em seus respectivos contextos, nunca
gozaram de uma imagem pblica bem delineada. Suas imagens variaram no decorrer de
suas trajetrias diferentemente de concorrentes, como O Estado de S. Paulo que h
algum tempo possui uma imagem reconhecida de jornal conservador e liberal entre o
pblico leitor. As mudanas nas linhas editoriais, as alteraes no comando da
empresa, os lanamentos, relanamentos e a aquisio de diferentes publicaes, so
alguns dos fatores que contriburam para a dificuldade encontrada na instituio de uma
imagem para a empresa.
O Grupo Folha formado atualmente pelos jornais Folha de S. Paulo e Agora
So Paulo, pela empresa de acesso internet Universo Online (Uol), pela editora
22 O Projeto Histria Oral tem como objetivo resgatar as memrias de jornalistas e do proprietrioOctvio Frias de Oliveira, sobre variados assuntos, como documentos passveis de interpretaes eprodues posteriores. As primeiras entrevistas foram colhidas entre 1995 e 1998 e tm como focoprincipal ex-jornalistas da empresa. O projeto conta ainda com uma longa entrevista de Octvio Frias deOliveira de maio de 1989 e o depoimento de Antonio Aggio Jnior em 2003, colhido especialmente paraelaborao do documento O Regime Militar e a Folha, escrito por Oscar Pilagallo em 2004.23ABRAMO, Cludio. A Regra do jogo : o jornalismo e a tica do marceneiro.So Paulo, Companhiadas Letras, 1988.24DREIFUSS, Ren Armand.1964: A Conquista do Estado.Petrpolis, Vozes, 198125KUCINSKI, Bernardo. Sndrome da Antena Parablica.tica no jornalismo brasileiro. So Paulo:
Editora Perseu Abramo, 1998.26TASCHNER, Gisela. Folhas ao vento: anlise de um conglomerado jornalstico no Brasil. So Paulo,Paz e Terra, 1992.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
16/132
16
Publifolha, a agncia de pesquisas Datafolha, alm de outras empresas grficas e de
produo da notcia, como a Folhapress. Suas origens remontam 192127, quando do
lanamento da Folha da Noite por Olival Costa, Pedro Cunha, Lo Vaz, Mariano Costa,
Ricardo Figueiredo, Antonio dos Santos Figueiredo, e Artmio Figueiredo. Estes
jornalistas, que trabalhavam no O Estado de S. Paulo, visando criar um jornal que
atingisse pblicos leitores diferenciados, inauguraram uma publicao vespertina que
dava nfase nas reportagens em detrimento de artigos, e que continha sees e
linguagens diferenciadas. A Folha da Noite era voltada principalmente s classes
mdias, procurando atingir tambm os trabalhadores assalariados. Tendo como um de
seus colaboradores Jlio de Mesquita Filho (que escrevera inclusive o editorial de
lanamento), os custos do jornal foram pagos pelo Estado de S. Paulo at que a
empreitada mostrou sucesso financeiro.
Em 1925, Pedro Cunha e Olival Costa28 lanaram a Folha da Manh, com
apresentao e linguagem mais prxima da imprensa tradicional, concorrendo
diretamente com O Estado de S. Paulo. Segundo os fundadores, as Folhas
priorizavam uma linguagem simples e a independncia em relao a partidos, adotando
o jornal opinies flexveis de acordo com as necessidades. Aps a sada de Pedro
Cunha da sociedade em 1929, Olival Costa se posicionaria politicamente ao apoiar a
candidatura de Jlio Prestes Presidncia, o que rendeu o empastelamento do jornal em
outubro de 1930.
As Folhas s voltariam a circular em janeiro de 1931, quando Octaviano Alves
de Lima comprou a empresa, denominada agora Empresa Folha da Manh Ltda.
Fazendeiro e comerciante de caf, os assuntos relativos agricultura e exportao do
produto passaram a ser acompanhados de perto e o jornal abriu sucursais no interior. Ao
defender a vocao agrria do pas e criticar as medidas governamentais voltadas
industrializao, o pblico alvo deixaria de se constituir principalmente de setores daclasse mdia: o jornal voltava-se elite.
Com o fim do Estado Novo e a volta democracia, o Brasil conheceu um
acelerado processo de industrializao. Enterradas as esperanas dos setores agrrios na
unificao dos interesses e sua defesa pelo estado, em 1945, Octaviano vendeu a
Empresa Folha da Manh para Jos Nabantino Ramos, Clvis Queiroga e Alcides
27O trecho de reconstituio histrica do Grupo Folha foi escrito baseado nas publicaes da empresa
sobre sua trajetria, como o livro A Histria da Folha de S. Paulo de Carlos Guilherme Mota e MariaHelena Capelato.28Neste ano os dois jornalistas passaram a ser os nicos proprietrios.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
17/132
17
Meirelles. Os novos proprietrios assumem as redaes pretendendo defender a
democracia e manter imparcialidade em relao a partidos polticos. Em 1949, lanam
mais uma publicao: a Folha da Tarde.
Nabantino implementa um processo de reformulao e modernizao do jornal:
estabelece critrios para a confeco da mensagem, inaugura em 1953 a sede prpria da
empresa na Alameda Baro de Limeira, centro de So Paulo, e unifica as Folhas em
1 de janeiro de 1960 na Folha de S. Paulo, que passa a ser a nica publicao da
empresa. Passa a vigorar neste perodo, a concepo de neutralidade e objetividade
jornalstica. Porm, o esforo expresso nestas remodelaes e a conjuntura econmica
nacional no propiciam o sucesso financeiro da empresa, impelindo Nabantino a vend-
la.
Em agosto de 1962, tem incio o perodo fundamental para constituio do
conglomerado. A Empresa Folha da Manh passa para o controle dos empresrios
Octvio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho. Frias era proprietrio de empresas de
variados ramos, como a Estao Rodoviria de So Paulo e a Transaco, especializada na
venda de aes diretamente ao pblico, alm de ser um dos maiores granjeiros do pas.
Caldeira tinha origens na construo civil.
A historiografia produzida sobre o jornal unnime em afirmar que, pouco
ntimos dos meios de comunicao, Frias e Caldeira investiram na reorganizao do
empreendimento e no saneamento das dvidas. A modernizao tecnolgica
considerada uma marca do perodo. Em 1967 introduzido o sistema de impresso
offset em cores abandonando em 1971 a composio a chumbo e adotando o sistema
eletrnico de fotocomposio. O sistema de distribuio, reorganizado por Caldeira,
passou a ser feito atravs da montagem de uma frota prpria de carros, que garante a
chegada pontual das publicaes s cidades do interior paulista.
Dentro da estratgia de crescimento da empresa, os proprietrios adquiriramgrficas como a Cia. Lithographica Ypiranga, e os jornais ltima Hora e Notcias
Populares, em 1965, lanaram no mesmo ano o Cidade de Santos e, em 1967,
relanaram a Folha da Tarde. Um ano depois, assumiram a Fundao Csper Lbero,
passando a controlar tambm o jornal Gazeta Mercantil. A publicao de diferentes
jornais garantia, dentro desta lgica, atingir pblicos leitores distintos e
conseqentemente a lucratividade da empresa.
No entanto, as orientaes editoriais diferenciadas, que no podem serentendidas unicamente pelos objetivos comerciais do Grupo Folha, passavam uma
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
18/132
18
imagem para muitos jornalistas e analistas, de que havia uma ambigidade entre duas
publicaes dentro de uma mesma empresa. Enquanto o principal jornal do grupo, a
Folha de S. Paulo, no explicitava a defesa pelo regime militar em seu contedo, a
Folha da Tarde fazia sua defesa deliberada. Para Perseu Abramo: era uma batida na
ferradura e outra no cravo, uma pela direita e outra pela esquerda. A Folha fazendo um
papel de defesa da liberdade democrtica e a Folha da Tarde, um rgo da represso 29.
A maneira como reproduzia as informaes advindas dos rgos de represso e o fato
de possuir jornalistas policiais, levaram a Folha da Tarde a ficar conhecida como o
jornal de maior tiragem do pas, em aluso aos tiras que trabalhavam na redao, e
dirio oficial da OBAN 30. H ainda outras acusaes que a empresa enfrenta sobre o
perodo, como a ligao dos proprietrios com militares e governantes, o uso de carros
por centros de tortura, a linha editorial adotada, a prtica da autocensura e os
financiamentos concedidos pelo governo.
Estas polmicas sobre a trajetria da empresa durante a ditadura militar,
comearam a afetar a imagem do Grupo Folha nos anos 2000, quando publicaes
demonstraram a preocupao de ajustar as contas com este passado contraditrio. At
este perodo, apesar de j existirem questionamentos sobre a temtica31, a empresa se
concentrou em promover uma reformulao editorial de seu jornal carro-chefe, a Folha
de S. Paulo, e de investir no reforo de uma imagem democrtica para o jornal possvel
a partir da ampla cobertura da campanha pelas Diretas-j em 1984. Esta imagem se
confundia com a do grupo, enquanto que a atuao da Folha da Tarde durante a ditadura
militar podia prejudicar os lucros e o crescimento de participao da empresa no
mercado de comunicao nacional.
A problemtica de nosso trabalho exige, portanto, a discusso sobre as
motivaes e a prtica empreendida pelos governos militares no Brasil, entre 1964 e
1985, os projetos de distenso e abertura poltica dos governos militares e osmovimentos sociais engajados na luta pela democracia, assim como a participao da
imprensa neste contexto.
O processo de levantamento historiogrfico sobre a ditadura militar e a
imprensa, aprofundamento necessrio para a fundamentao de nosso trabalho, foi
29ABRAMO, Perseu. Perseu Abramo: depoimento (28/08/1995). Entrevistador: Lzia Bydlowski. SoPaulo: Grupo Folha, 1995. Entrevista concedida ao Projeto Histria Oral em 28 de maio de 1995.30A Operao Bandeirante (OBAN) foi um centro de informaes, investigaes e torturas montado pelo
Exrcito do Brasil em 1969.31Durante os anos 80, algumas publicaes j debatiam o papel desempenhado pela Folha de S. Paulodurante a ditadura militar e a campanha pelas Diretas-j, como veremos no decorrer do trabalho.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
19/132
19
realizado tendo como base diversos estudosanalisados no decorrer da pesquisa. Alm
dos livros utilizados para preparao do projeto de mestrado, escritos por Maria Helena
Moreira Alves, Jacob Gorender, Moniz Bandeira, entre outros, buscamos obras que
trouxessem mais perspectivas deste momento da histria brasileira.
A leitura de artigos organizados no livro O Golpe e a Ditadura Militar: quarenta
nos depois (1964-2004) 32foram importantes para entrarmos em contato com correntes
historiogrficas e sociolgicas diversas que versam sobre o regime militar brasileiro. No
captulo I 1964: Temporalidade e Interpretaes, Lucilia de Almeida Neves Delgado
nos informa sobre interpretaes do golpe de 1964, de Octvio Ianni e Francisco de
Oliveira a Moniz Bandeira e Rene Dreifuss. A autora apresenta tambm as anlises
elaboradas por Florestan Fernandes e Caio Navarro de Toledo que, por aproximarem-se
de nossa interpretao deste processo, foram leituras que resolvemos aprofundar.
Para Florestan Fernandes, em A Revoluo Burguesa no Brasil 33, o ano de
1964 apresentou-se como um momento de situao limite em que existia uma presso
real de baixo para cima e uma iluso da possibilidade de revoluo socialista, resultado
das presses polticas internas geradas pela emergncia dos movimentos de massa
antiburgueses e do radicalismo burgus. Esta situao, somada ao crescimento da
influncia externa sobre o desenvolvimento do capitalismo interno quando da ecloso
do capitalismo monopolista, propiciou a solidariedade das classes e dos estratos de
classe burgueses, at ento irreconciliveis em seus interesses. Contando com apoio do
imperialismo internacional, a unio destes setores se fez com intuito de estabelecer uma
contra-revoluo que mantivesse o domnio burgus do poder estatal atravs de uma
nova ordem poltica baseada em processos considerados legtimos, como a manuteno
da Constituio, e na violncia institucionalizada, defendendo o binmio
desenvolvimento e segurana.
A aparncia da ordem constituda precisava ruir para que se iniciasse outroprocesso em que o poder burgus e sua dominao assumissem sua verdadeira imagem.
Era necessrio um excedente de poder pelo qual as classes pudessem acabar com as
presses inconformistas pr-burguesas e as presses antiburguesas o que s poderia ser
atingido na transferncia para setores militares de tarefas centrais do movimento
autodefensivo e contra-revolucionrio. As prticas coercitivas a partir de ento
32REIS, Daniel Aaro; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto S (orgs). O Golpe e a Ditadura
Militar: quarenta nos depois (1964-2004). Bauru: Edusc, 2004.33FERNANDES, Florestan.A Revoluo Burguesa no Brasil: ensaio de interpretao sociolgica. Riode Janeiro: Zahar, 1975.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
20/132
20
instaladas, baseadas na violncia institucionalizada para negar os direitos sociais e na
existncia de uma ordem constitucional que s tem validade para autodefesa, so
conceituadas como medidas adotadas por regimes polticos de traos fascistas por
Florestan, em Poder e Contrapoder na Amrica Latina34.
Para o autor, o fascismo latino-americano se caracteriza pela monopolizao de
uma classe no poder estatal que investe em uma modalidade do totalitarismo de classe,
para evitar e impedir a transio para o socialismo. Neste sentido, o fascismo se
apresenta como uma contra-revoluo j que combate tanto a revoluo dentro da
ordem (quando o processo de democratizao impede uma superconcentrao do poder)
como a revoluo socialista. Nestes regimes admitido o terror ocasional ou
sistemtico, o controle da comunicao de massa, o estabelecimento de eleies rituais e
parlamentos simblicos, a neutralizao das oposies atravs da opresso, o controle
total da economia, da educao e do movimento operrio.
Seguindo este raciocnio, alguns autores aprofundaram a anlise para o caso
especfico brasileiro. Antonio Rago Filho, em sua tese de doutoramento A Ideologia de
64 e os Gestores do Capital Atrfico 35, concordando com as caractersticas e anlises
apresentadas por Florestan Fernandes citadas resumidamente acima, acredita que, em
1964, teria se estabelecido uma contra-revoluo de domnio autocrtico da burguesia
exercido de modo indireto pelo conjunto desta classe atravs das armas, subjugando ou
castrando os poderes legislativo e judicirio. Rago, baseando-se em Jos Chasin,
Luciano Martins e Ricardo Antunes, acredita que estas sejam formas de natureza
bonapartista, j que a estrutura da dominao burguesa foi montada sob um executivo
absolutizado, forte e ditatorial.
O conceito de bonapartismo foi elaborado por Karl Marx na obra O Dezoito
Brumrio de Luiz Bonaparte36, anlise do golpe de estado de 1848 na Frana. A partir
deste momento histrico, Marx prope que o bonapartismo ocorre quando os militareschegam ao poder e o governam visando assegurar os interesses da burguesia e o
refreamento dos avanos sociais atravs da violncia. Incapacitada de manter seu poder
atravs da forma democrtica de estado, a burguesia opta por fazer alianas com foras
reacionrias e no com setores das classes trabalhadoras, conciliando-se assim, com as
foras armadas que passam a exercer o poder poltico.
34FERNANDES, Florestan. Poder e Contrapoder na Amrica Latina.Rio de Janeiro: Zahar, 1981.35
RAGO Filho, Antonio. A Ideologia de 64 e os Gestores do Capital Atrfico. So Paulo: Tese deDoutoramento, Departamento de Histria da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, 1988.36MARX, Karl. O Dezoito Brumrio de Luis Bonaparte. So Paulo: Centauro, 2004.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
21/132
21
Antonio Carlos Mazzeo37define bonapartismo como uma forma de governo que
surge do carter contra-revolucionrio da burguesia visando estabilizar e consolidar sua
dominao enquanto classe dominante. Intitulando-se imparcial, o Estado bonapartista
apresenta autonomia e neutralidade em relao s classes ao fazer defesas em nome do
bem comum ou dos interesses da nao. Buscando manter a ordem, salvar e fortalecer o
capitalismo e impedir que a dominao burguesa e o controle sobre o Estado nacional se
deteriorem, a burguesia levada a aes polticas profundamente reacionrias propensas
a formas abertas de ditadura de classe.
David Maciel38 admite que desde seu nascimento, no final do sculo XIX, o
estado burgus brasileiro assumiu carter autocrtico, oscilando entre a forma
democrtico-liberal e ditatorial. Para ele, mesmo nos perodos em que predominaram
mecanismos democrtico-representativos, o estado atuou como uma ditadura
dissimulada num processo em que a poltica se limitava s classes burguesas enquanto
as classes subalternas eram cooptadas politicamente.
Maciel afirma que o auge da autocracia burguesa no Brasil foi a ditadura militar
instalada em 1964, parteira do capitalismo monopolista e promotora da expanso
mxima da ordem social burguesa. Entre 1964 e 1974, se consolidou um novo pacto de
poder necessrio reestruturao capitalista, num movimento auto-defensivo gerado por
uma situao de crise de hegemonia burguesa. O gerenciamento do estado foi passado
aos militares com intuito de reprimir as classes subalternas e impedir que as
contradies interburguesas ameaassem a unidade da burguesia.
Diante destas anlises, inclinamos-nos a entender a ditadura militar colocada em
prtica no Brasil entre 1964 e 1985, como uma forma bonapartista de autocracia
burguesa em que, preocupada com a continuao de sua dominao poltica, a burguesia
procura unir os estratos conflitantes em torno de um nico objetivo: a autodefesa de
seus interesses. No entendemos que existisse uma ameaa real de tomada do aparelhodo Estado pelas classes trabalhadoras. Para ns, os setores burgueses se uniram neste
contexto sobretudo diante das presses sociais emergidas no governo de Joo Goulart,
reflexo de projetos sociais antagnicos implementados, e da resistncia de setores
proprietrios associados ao imperialismo internacional relacionadas aprovao das
reformas de base.
37MAZZEO, Antonio Carlos. Estado e Burguesia no Brasil: Origens da Autocracia Burguesa. So
Paulo: Cortez, 1997.38MACIEL, David. A Argamassa da Ordem: da ditadura militar Nova Repblica (1974-1985). SoPaulo: Xam, 2004.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
22/132
22
Preocupados em manter sua dominao poltica e econmica, os setores
proprietrios precisavam unir-se em torno de um ideal comum para seu fortalecimento e
para a continuidade do desenvolvimento capitalista. Este consenso necessrio s seria
possvel atravs de uma aparente ruptura com a ordem vigente e com a execuo de um
governo que intensificasse a opresso e a represso visando o esvaziamento do poder de
reao das classes dominadas e de setores divergentes da burguesia. O elo forte desta
cadeia seria representado pelas Foras Armadas que dariam uma nova face ao poder
poltico burgus aparentando uma ruptura com o modelo anterior, mas continuando a
servir aos interesses burgueses indiretamente de maneira ditatorial, repressiva e
opressiva.
Em relao atuao da imprensa nos antecedentes de 1964, identificamos sua
participao como um dos sustentculos na conspirao do golpe e para a manuteno
do regime militar. A maioria dos veculos de comunicao emitia editoriais e
reportagens apontando o perigo vermelho no pas, alm de participar de encontros
para promoo do movimento. Dada a concepo adotada, vemos esta relao como
fruto da unio dos setores da burguesia, em que est includa a grande imprensa. Para
ns, os veculos de comunicao de propriedade burguesa decidiram promover o golpe
militar e legitimar os governos constitudos aps 1964 por verem atendidos seus
interesses capitalistas e de manuteno de classe no poder.
Diversas leituras corroboram esta anlise de participao ativa da imprensa no
golpe militar. Entre elas, podemos citar a obra de Rodrigo Patto S Motta, Em guarda
contra o perigo vermelho39 que, ao detalhar a atuao de diversos movimentos
anticomunistas no Brasil, analisa o papel da imprensa em organismos golpistas, como o
IPES (Instituto de Pesquisas Econmicas e Sociais) e o IBAD (Instituto Brasileiro de
Ao Democrtica).Rene Dreifuss tambm traz informaes importantes neste sentido
em 1964: A Conquista do Estado40. Estas anlises serviram como contextualizaoda atuao da imprensa no processo inicial da ditadura sem, no entanto, aprofundarem-
se no perodo que mais no interessa, situado no processo de trmino da ditadura a partir
dos anos 70 e durante as movimentaes a favor de eleies presidenciais diretas no
decorrer da dcada de 80.
39
MOTTA, Rodrigo Patto S. Em Guarda Contra o Perigo Vermelho: o anticomunismo no Brasil(1917-1964). So Paulo: Editora Perspectiva: Fapesp, 2002.40DREIFUSS, 1981.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
23/132
23
Nesse sentido, a leitura do livro A Argamassa da Ordem41de David Maciel,
foi essencial para a compreenso da problemtica. Nesta obra, o autor tem como
objetivo entender o processo de redemocratizao brasileiro realizado por uma
perspectiva poltica autoritria burguesa que, ao invs de estabelecer uma democracia
popular, viabilizou a recomposio entre diversas fraes de classes dominantes num
projeto repressivo e autoritrio, mesmo diante do acirramento das contradies sociais e
da luta de classes. Maciel detalha nesta perspectiva o projeto distensionista do
presidente Ernesto Geisel decorrente do acirramento das contradies interburguesas no
seio do bloco no poder geradas quando da crise do milagre econmico e a passagem da
distenso para a abertura no governo Figueiredo, como uma passagem gradual da
responsabilidade do retorno da democracia para os setores burgueses e as manifestaes
populares que surgiram.
A anlise apresentada nos permitiu compreender como a grande imprensa
participou deste processo em consonncia com os projetos governamentais,
aproveitando-se das manifestaes sociais para sua autopromoo. Eder Sader, por sua
vez, permitiu que amplissemos nossa anlise deste processo, focando a participao de
outros personagens, atravs da compreenso da reorganizao do movimento sindical e
popular e seu papel nas movimentaes pelo fim da ditadura.
J Bernardo Kucinski, em seus artigos publicados na obra Sndrome da Antena
Parablica42, nos trouxe a experincia da imprensa alternativa durante a ditadura e no
seu fim, assim como confirmou a colaborao da grande imprensa com os governos
militares. No entanto, o autor mostrou-se ainda mais importante em nosso estudo por
seus textos analisarem vrias problemticas que debatemos, como a autocensura, a
funo da imprensa na eleio e queda do presidente Fernando Collor de Mello entre
1989 e 1992 e, os objetivos, causas e conseqncias do Projeto Folha no interior da
redao da Folha de S. Paulo e nos meios de comunicao nacionais. Kucinski discute
ainda os mecanismos de funcionamento da imprensa, a censura privada de informaes
j internalizada pelos jornalistas e os conglomerados jornalsticos brasileiros.
Estudar temas relacionados imprensa requer a compreenso de qual sua funo
social, condies materiais e imateriais de existncia, quais so os sujeitos e interesses
envolvidos em sua produo. Muitas vezes, as pesquisas histricas utilizam a imprensa
como fonte de informao, como se o contedo publicado, fosse uma verdade
41MACIEL, 2004.42KUCINSKI, 1998.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
24/132
24
inquestionvel ou uma mentira irrecupervel. Enquanto historiadores, quer seja a mdia
nosso objeto principal de pesquisa ou no, devemos analisar seu contedo criticamente
lembrando a correlao de foras que representa, os interesses embutidos na sua
formao, o carter mercadolgico que assumiu com o passar do tempo. Devemos
entender como os jornais narram e olham os acontecimentos, priorizando certas verses
de fatos em detrimento de outras. Qual a lgica, o funcionamento, a ideologia que a
orienta, quais interesses defende, quais olhares promove. Para tanto, construmos nosso
entendimento sobre a formao, o funcionamento e o papel da imprensa atravs de
leituras realizadas que passam desde Jrgen Habermas a jornalistas contemporneos
como Jos Arbex Jr.
H vrios debates sobre o papel que a imprensa cumpre. A leitura da obra So
Paulo em Papel e Tinta: Periodismo e Vida Urbana 1890-191543, de Helosa de Farias
Cruz, iniciou nossos debates sobre as relaes entre imprensa e histria. Neste livro,
nossa orientadora utiliza a imprensa como fonte fundamental, associada s memrias e
relatos da poca na busca de apreender a popularizao da cultura letrada na So Paulo
do fim XIX, incio do sculo XX. Compreendendo estas alteraes na difuso das
publicaes no como um processo de massificao como manipulao, mas
identificando as hegemonias e os conflitos presentes na sua construo, Helosa
acompanha a diversificao e expanso da imprensa paulista num contexto de expanso
do mercado e das relaes mercantis que acabaram por redefinir a cultura letrada. Esta
anlise nos mostrou que as demandas colocadas pelo mundo das mercadorias, passaram
a moldar os contedos e formas de dizer da imprensa tanto que, nos anos 20, a
propaganda j se tornava elemento essencial no s de sustentao financeira, mas
tambm da prpria conformao editorial de um peridico de sucesso, sinalizando as
origens dos processos de constituio da imprensa como um meio de comunicao de
massa no Brasil.Sobre este processo de massificao da imprensa foi fundamental a leitura de
Martin-Barbeiro44. O autor analisa a questo com profundidade e a discute sob
diferentes vertentes este processo que no de mo nica, mltiplo e envolve no
apenas seduo popular, mas a participao ativa da populao. Leo Serva por sua vez,
43CRUZ, Heloisa de Faria. So Paulo em Papel e Tinta. Periodismo e Vida Urbana 1890-1915. So
Paulo, EDUC/FAPESP, 2000.44MARTIN-BARBERO, Jess. Dos Meios s Mediaes:Comunicao, Cultura e Hegemonia. Rio deJaneiro, Editora UFRJ, 1997.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
25/132
25
em Informao e Desinformao45, debate como a imprensa nos dias atuais, atrelada
interesses econmicos e polticos, seleciona e cataloga os fatos atribuindo-lhes
importncia e prioridades, ao mesmo tempo em que no se aprofunda sobre seus
significados mais profundos, no busca contextualiz-los e acaba por apresentar ao
leitor uma grande quantidade de informaes esvaziadas de contedo, que no podem
ser compreendidas em apenas uma leitura e geram saturao no pblico leitor. Ao
informar em quantidade e sem qualidade, no informam efetivamente e geram a
necessidade de autoreproduo diria da mercadoria notcia, que traz sustentabilidade
empresa jornalstica.
Sobre o funcionamento da imprensa, sua escrita, seus mtodos, seus recortes, sua
histria, foram valorosas as consideraes de Robert Darnton46, sem as quais ficaria
extremamente difcil contextualizar o material jornalstico e entender seu processo de
produo e constituio. A leitura de Showrnalismo47, de Jos Arbex Jr., tambm
auxiliou na discusso levantada por outros autores sobre a pretenso dos veculos de
comunicao de transmitir a verdade dos fatos. O jornalista traz tona esta problemtica
atravs de sua experincia profissional ao ressaltar o contraste que ocorria entre a
imagem dos fatos adquirida por ele e a forma como o jornal a traduzia ao leitor, quando
era correspondente internacional da Folha de S. Paulo.
Estas anlises foram importantes na medida em que confirmamos que o discurso
dos jornais de anunciar de maneira clara e objetiva os acontecimentos como se fosse
mera reproduo da realidade, imparcialmente, no passa de um pretenso ideal. Na
simples anunciao de uma notcia, a imprensa imprime valores e ideais, pessoais, da
empresa, do governo ou do mercado. A organizao do texto, as imagens escolhidas, as
palavras utilizadas, carregam sempre uma viso dos fatos, interesses que esto em jogo.
Jrgen Habermas, no livro Mudanas Estruturais na Esfera Pblica48, mostra
como esta suposta neutralidade da mdia na narrao dos fatos faz parte do processo emque a imprensa aparece com papel fundamental na constituio e na afirmao da Esfera
Pblica Burguesa. Discutindo as transformaes que o meio jornalstico passou desde
seu aparecimento, o autor aponta como, diferentemente daquelas primeiras publicaes
surgidas com o advento da Revoluo Francesa, voltadas para um pblico determinado
45SERVA, Joo. Jornalismo e Desinformao. So Paulo: Editora Senac, 2001.46DARNTON, Robert e ROCHE, Daniel. A Revoluo Imprensa :A Imprensa na Frana, 1775-1800.So Paulo, EDUSP, 1996 e O Beijo de Lamourette. So Paulo, Companhia das Letras, 1990.47
ARBEX JR, Jos. Showrnalismo: A Notcia Como Espetculo. So Paulo, Casa Amarela, 2002.48HABERMAS, Jurgen. Mudana Estrutural da Esfera Pblica. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,1984.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
26/132
26
e com caractersticas marcadamente polticas deste pblico, hoje a imprensa se pretende
imparcial num espao em que as diferenas sociais so negadas, em que todos em
princpio podem participar. Isto se deve em parte ao fato da imprensa poder assumir o
carter de uma empresa comercial e seus lucros, com o estabelecimento do Estado
burgus de direito. Se de incio, este carter econmico assumido por algumas
publicaes considerado condenvel, aos poucos a necessidade de gerar lucros se
torna inevitvel para os grandes editores.
Ciro Marcondes Filho, em O Capital da Notcia49 e Imprensa e
Capitalismo50, tambm se preocupa com o poder da notcia na sociedade capitalista em
que vivemos. Como os fatos, transformados em notcia e da em mercadoria, so
mutilados ou embelezados para serem vendidos, como so submetidos a padronizaes,
simplificaes, generalizaes, como so apresentados sem contradies ao lado de
matrias sem maior significncia. Fatos/notcias/mercadorias so confundidos em meio
de anncios que permitem a existncia do jornal enquanto empresa e que refletem
ideologias e usos polticos governamentais e da imprensa.
Marcondes ressalta que a existncia democrtica que a mdia procura representar
no passa de ideologia, no se sustenta diante de uma economia de mercado que visa o
lucro, vez que as adequaes da mercadoria notcia necessidade de venda
impossibilitam a prtica de uma imprensa que abra espao para diversos setores
populares se posicionarem. Os interesses econmicos ditam a censura privada dos
jornais para que as notcias no prejudiquem os interesses imediatos dos proprietrios,
anunciantes e da estrutura do Estado, que deve garantir o funcionamento do sistema
econmico. Nesse sentido, para o autor, no h um atrelamento direto da imprensa ao
Estado, mas sim da imprensa ao capital que, em alguns momentos, convergir ou no
com as medidas promovidas pelo governo constitudo sem, no entanto, colocar-se
contra o Estado capitalista. Em Jornalismo Fin-de-sicle51, Marcondes aponta que istoocorre dada uma suposta funo de poder moderador dada a imprensa que, por
interesses de natureza econmica e aspiraes prprias, questiona tanto as polticas
governamentais quanto posies adotadas pela populao em alguns momentos.
Estas leituras do funcionamento da imprensa na sociedade capitalista atual,
como se deram as transformaes em sua constituio, a padronizao da notcia atravs
49
MARCONDES FILHO, Ciro. O Capital da Notcia.So Paulo, Editora tica, 1989.50Idem, Imprensa e Capitalismo.So Paulo, Kairs, 1984.51Idem, Jornalismo fin-de-sicle.So Paulo: Editora Pgina Aberta, 1993.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
27/132
27
das agncias de notcias e, principalmente, o carter empresarial atrelado ao capital
adquirido cada vez com mais efetividade que influencia os interesses salvaguardados na
produo da notcia, trouxeram contribuio na nossa compreenso no somente da
maneira como se constitui e articula a imprensa hoje, mas sua importncia na sociedade
capitalista. Ao mesmo tempo em que informa e forma a opinio de setores da
populao, a imprensa responsvel pela ampliao e divulgao do consumo e pela
manuteno de classes sociais no poder governamental.
Ao definir nossa compreenso do papel da imprensa durante a ditadura militar
brasileira e ao repensar nossa problemtica, percebemos que era urgente a discusso
sobre a memria coletiva e seus significados, j que a construo e sustentao da auto-
imagem da Folha de S. Paulo passa por um processo constante de edificao e reviso
da histria da empresa e de seus proprietrios. Em nosso trabalho, analisamos que o
Grupo Folha tem demonstrado de forma cada vez mais intensa o interesse em se tornar
senhor de sua memria na construo e reforo de sua imagem democrtica. Alm das
publicaes que fez evidenciando a defesa do processo de redemocratizao do pas,
quando da morte de Octvio Frias de Oliveira, a empresa investe desde a dcada de 80
em obras sobre sua trajetria e relevncia enquanto grupo de mdia.
Jacques Le Goff, em Histria e Memria52, discute como a memria no se
constitui simplesmente da propriedade de conservar certas informaes, mas
compreende processos sociais de releitura e constante resignificao de experincias e
informaes passadas por indivduos, grupos e classes sociais. um exerccio de
releitura feito no presente de eventos e sentidos selecionados coletivamente ou
marcantes na memria individual que trazem a marca da experincia vivenciada, do
impacto causado, da importncia atribuda.
Para o autor, a anlise coletiva de uma experincia pode dar sentido a algumas
memrias individuais ou de grupos e silenciar outras. Este processo ocorre, no sdevido forma como as lembranas so rememoradas, mas tambm diante das
ausncias nas narrativas que evidenciam as selees e valorizaes das experincias
vividas ou o esforo proposital do esquecimento, na tentativa de fortalecer os elos das
informaes fornecidas e esconder fatos que no so considerados importantes pelo
interlocutor. Na memria coletiva as ausncias possuem um significado ainda mais
importante j que so constitudas por um conjunto de interpretaes compartilhadas
52GOFF, 1990.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
28/132
28
por um grande nmero de pessoas. O domnio da rememorao e do esquecimento,
neste caso, um mecanismo de manipulao da tradio e da identidade individual e
coletiva. Geralmente h a predominncia da memria produzida pelas classes que detm
o poder poltico ou econmico, atravs do Estado ou de outras esferas do poder.
Esta anlise que Le Goff prope reflete para ns, como uma disputa da memria,
em que algumas verdades so ressaltadas enquanto outras so esquecidas, oculta
intenes de foras hegemnicas que conspiram na afirmao de interesses, valores e
prticas na busca de legitimao e dominao. Criam-se falsos consensos e
determinaes histricas reforando projetos polticos e culturais de classes e grupos no
poder. Na medida em que as intenes so alteradas ou tm predominncia de outros
agentes sociais, os consensos podem ser modificados e outras verdades podem emergir.
Os sentidos negligenciados em certos perodos no so apagados, podendo ser
retomados pelas circunstncias histricas, por sujeitos histricos diversos e atravs do
trabalho historiogrfico.
Sobre esta questo, Pierre Nora53 debate o uso da memria no trabalho do
historiador. Para o autor, a memria tornou-se objeto da histria e por ela reivindicada
no discurso histrico. Assim, a memria considerada imprescindvel para
reconstituio do passado, individual ou coletivo, tanto nos processos institucionais
quanto nas anlises acadmicas. O autor contrape-se a Maurice Halbwachs que, em
1925, opunha memria coletiva e histrica por compreender a histria apenas como
sntese de grandes acontecimentos de uma nao, distinta das percepes de indivduos
e grupos. Para ele, a memria s passava a fazer parte da histria, quando os grupos que
as lembravam deixar de existir ou de rememor-la. Nora, diante do desenvolvimento de
concepes historiogrficas menos restritas a fatos e datas, identifica o uso cada vez
mais intenso da memria no ofcio do historiador.
Apesar de discordarmos desta proposio de Halbwachs e concordarmos comNora, para ns, a leitura da obra A Memria Coletiva54deste autor, foi extremamente
importante, no que tange ao debate sobre como a interseco entre identidades coletivas
e a histria. Para Halbwachs, cada memria individual um ponto de vista para a
memria coletiva, a constituindo assim no refazer constante do passado atravs de
idias do presente. A memria individual existe sempre na memria coletiva, j que
53NORA, Pierre. Entre Memria e Histria: a problemtica dos lugares, In: Projeto Histria. So
Paulo: PUC, n. 10, pp. 07-28, dezembro de 1993.54HALBWACHS, Maurice. A Memria Coletiva. So Paulo: Vrtice, Editoria Revista dos Tribunais,1990.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
29/132
29
criada no interior de um grupo e muitos sentimentos que acreditamos ser puramente
nossos, formam criados coletivamente. Assim, a identidade que acreditamos formar
sozinhos de ns mesmos resultado da memria coletiva de que fazemos parte, assim
como a memria coletiva tambm carrega nossos valores e resignificaes.
Marilena Chau, na introduo da tese de doutoramento de Ecla Bosi, publicada
em livro posteriormente sob o ttulo Memria e Sociedade55, ressalta como a autora,
ao analisar a memria de velhos, debate este aspecto decorrente dos entrelaamentos
entre memria individual e memria coletiva. Chau reconhece em alguns depoimentos
a incorporao da histria oficial, num processo que pretende roubar o sentido da
memria individual e aprofundar esteretipos necessrios manuteno da ideologia
dominante e esclarece como ainda permanecerem significados pessoais para as
experincias coletivas. Esta leitura serve como um alerta de um lado para o impacto do
monoplio da histria oficial e, por outro, para as significaes pessoais das
experincias e sua existncia que revela sentidos diferentes, mas no menos
verdadeiros, de uma mesma histria.
Este aspecto transparece em nossa anlise, quando anlises acadmicas se
aprofundam em memrias do jornal, que contradizem a verso oficial de sua trajetria e
que, se durante anos foram negligenciadas, nos anos 2000, emergem com tal impacto,
que ameaam a imagem em construo da Folha de S. Paulo atravs de seu passado por
um lado mas, por outro, integram a identidade em construo do jornal na medida que a
fazem repensar e resignificar sua trajetria.
Sobre esta questo, Bronislaw Baczko56, esclarece que os sistemas simblicos
so construdos atravs da experincia dos agentes sociais, mas tambm atravs de seus
desejos, aspiraes e motivaes, ou seja, baseia-se tambm em objetivos claros que
nortearam o discurso construdo sobre o passado rememorado. Baczko estuda como
para garantir a dominao simblica, qualquer esfera do poder procura desempenhar umpapel privilegiado na emisso dos discursos que veiculam os imaginrios sociais,
procuram control-los para manter a dominao e o prestgio alcanado. E os meios de
comunicao de massa so elementos centrais neste processo, no s pelo alcance de
uma gama representativa de pessoas, mas pelo fato de manipularem suas caractersticas,
atravs da seleo, hierarquizao e dos interesses que envolvem.
55CHAU, Marilena. Introduo. In:BOSI, Ecla. Memria e Sociedade: lembranas de velhos.So
Paulo: Companhia das Letras, 1994.56 BACZKO, Bronislaw. Imaginao social. In: ROMANO, Ruggiero (org.). Enciclopdia Einaudi.Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1985. v. 5.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
30/132
30
No mesmo sentido Eric Hobsbawn, na introduo do livro A Inveno das
Tradies57, aponta como muitas vezes o passado institucionalizado diverge da
memria popular conservada sobre ele. Isto acontece porque na busca de legitimao de
formas de sociabilizao, atravs de valores ou normas de comportamento, tradies so
inventadas tendo como suporte acontecimentos histricos reais ou artificiais
reconstrudos de maneira a dar sustentao a imagem que ser passada atravs da
imposio da repetio. Hobsbawn nos indica assim, apesar de seu estudo dirigir-se
mais s prticas relacionadas constituio e manuteno das naes e nacionalismos,
um processo em que as tradies propagadas so inventadas tendo como suporte um
passado institucionalizado para este fim, que acaba por inculcar valores ou tornar
possvel o estabelecimento e manuteno de organismos pblicos e privados nas
sociedades atuais, como tradies a serem conservadas.
Em relao ao Grupo Folha, nossa anlise demonstra como a constituio de
uma imagem para o jornal Folha de S. Paulo foi possvel dada sua associao com um
passado lido atravs das produes institucionais produzidas conscientemente a partir
da dcada de 80 pela empresa, diversamente s memrias conservadas sobre a empresa
durante o regime militar e o seu fim vivenciada por jornalistas e funcionrios do jornal,
que tornaram-se pblicas atravs de obras acadmicas mais recentemente. Desse modo,
no poderemos deixar de lado em nossa anlise o sentido histrico das memrias
institucionais que analisaremos. Os interesses e valores que carregam, os lugares de que
foram rememorados, a experincia vivenciada, os esquecimentos, as memrias
contraditrias que a questionam. O objetivo da pesquisa histrica que tem como
problema a memria institucional apreender os esforos empreendidos na busca de
instituir como hegemnicas identidades.
No incio dos anos 80, a historiografia produzida sobre as Folhas procurou
mostrar quanto empresa sofrera durante o regime militar. Nos dias atuais, diante dasvozes dspares emergidas nos ltimos anos, o Grupo Folha rev sua participao. Nosso
objetivo investigar as representaes que os proprietrios fazem do jornal, como
procuram compor uma imagem nica e os argumentos que utilizam para legitim-la, no
mesmo processo em que outras imagens so colocadas mostra.
Entender como publicaes de modesta repercusso em meados dos anos 60 que
colaboraram com o golpe militar, praticaram a autocensura e deram voz represso
57HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence (orgs.). A Inveno das Tradies. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1984.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
31/132
31
poltica, se tornam smbolos do processo de redemocratizao, indicam o poder das
empresas capitalistas na seduo do consumidor e as contradies da histria
institucional na memria coletiva por um lado, mas por outro, traa caminhos de
reflexo de como a sociedade brasileira lidou com os participantes e apoiadores do
regime militar. Ao mesmo tempo em que ainda so eleitos alguns polticos a cargos
pblicos enquanto so expurgados outros representantes deste processo, no parecem
ntidas para a maior parte da sociedade as articulaes de poder no expressas apenas na
figura de governantes, mas de amplos setores da sociedade de que a participao foi
necessria para a sustentao de uma ordem poltica ditatorial. Ajuda-nos a rememorar
acontecimentos e posturas e a reconhecer na atualidade as permanncias e rupturas de
processos polticos ditatoriais que no podem ser silenciados. Auxilia, tambm, no
preenchimento de lacunas que refletem a dificuldade de parte da sociedade em
identificar e assumir feridas abertas que se sente responsvel por ter produzido.
Lembrando Daniel Aaro Reis58, doloroso para a sociedade brasileira dita democrtica
compreender como participou de uma ditadura que institucionalizou a tortura como
prtica de conteno das oposies. Esta dificuldade gera a contradio de poucos
personagens assumirem que colaboraram, a maioria hoje reconstri sua histria
tentando provar que resistiu.
58REIS, RIDENTI e MOTTA, 2004.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
32/132
32
CAPTULO I
CONSTRUINDO UMA IMAGEM: O JORNAL DAS DIRETAS
A Folha de S. Paulo nunca gozou, diante da opinio pblica, de umaidentidade poltica definida. (...) Com a perspectiva das Diretas J, aFolha entrou no movimento, aps uma curta indeciso, para dele saircomo o jornal dos novos tempos. 59
1984 um marco na histria do jornal Folha de S. Paulo. Naquele ano, a
campanha pelas eleies diretas para presidente da Repblica, aglutinou milhes de
pessoas nas principais capitais do pas60. As Diretas-J, como ficou conhecido este
movimento, contava com a participao de diversas organizaes da sociedade civil, de
partidos polticos, centrais sindicais e movimentos sociais. As motivaes que levaram
estes diversos personagens a participar da campanha eram distintas e por vezes
conflitantes, a defesa de eleies presidenciais diretas era o nico ponto consensual. A
Folha foi o meio de comunicao brasileiro que deu mais nfase s manifestaes e que
utilizou a ampla cobertura dada para construo de uma auto-imagem para o jornal.
A reivindicao por eleies diretas fazia parte do contexto de transio da
ditadura militar para a democracia finalizado em 1989. Este processo teve incio com a
crise econmica vivida a partir de 1973, quando era visvel no s o considerveldesenvolvimento do capitalismo monopolista no Brasil do final da dcada de 60, como
tambm suas conseqncias: aumento da desigualdade social e da concentrao de
renda e o xodo rural. A dependncia externa ficou evidente quando a crise
internacional do petrleo gerou a diminuio das exportaes brasileiras, a alta dos
juros da dvida externa, o aumento da inflao e o colapso da produo agrcola. Neste
contexto, o descontentamento com o governo cresceu entre as classes trabalhadoras que
sentiam os efeitos diretos da crise na queda do poder de compra causado pela inflao,rebaixamento do salrio mnimo, xodo rural e desemprego.
A crise no padro de acumulao capitalista gerou disputas tambm entre os
setores burgueses que sustentavam e compunham o bloco do poder. A dificuldade em
unificar estes setores podia trazer conseqncias considerveis manuteno dos
governos militares e, sobretudo, questionamentos sobre a origem autocrtica do poder
59MARCONDES, Ciro. A Folha e as Diretas-J. So Paulo: Revista Novo Leia, jan 85, ano 8, n 75, p.
16 e 17.60No comcio realizado em So Paulo no dia 16 de abril de 1984, participaram cerca de 1,7 milhes depessoas.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
33/132
33
se permitisse a mobilizao das classes trabalhadoras. Neste contexto, o presidente
Ernesto Geisel lanou em 1974 o projeto de distenso poltica lenta, segura e gradual
sob a direo do governo militar. Este projeto previa o alargamento progressivo da
representao poltica visando passivizar os conflitos sociais e acomodar a pluralizao
dos interesses burgueses evitando assim a ruptura no bloco do poder. Uma das primeiras
medidas neste sentido foi a diminuio da represso e da vigilncia aos organismos
burgueses da sociedade civil, como o fim da censura grande imprensa61. O Legislativo
recuperou parte de suas atribuies e as eleies foram valorizadas como instrumentos
de legitimao da ordem. O descontentamento popular, ainda tmido, foi expresso quase
que exclusivamente atravs do voto de protesto, quando o partido de oposio62, o
Movimento Democrtico Brasileiro (MDB), recebeu votaes massivas em 1978.
A poltica de distenso de Geisel foi continuada pelo presidente Joo Baptista
Figueiredo sob o termo de abertura poltica, a partir de 1979. O acirramento gradual das
contradies do bloco no poder, causado pela crise econmica, e a emergncia de
protestos populares, aprofundaram a crise poltica vivenciada, e levaram o governo a
realizar reformas institucionais para conteno dos conflitos nos marcos da ordem,
como a reestruturao partidria, em 1979 e 1980, a promoo de eleies diretas para
governadores de estados em 1982, o fim do AI-5 e a anistia poltica em 1979. No
entanto, este processo no rompeu com a perspectiva autoritria do governo militar. O
Executivo continuou com ascendncia legal sobre o Legislativo e Judicirio, e os
aparatos repressivos e de informao adquiriam novas funes, mas no foram
desmontados nem desativados. Paulatinamente, apesar do governo militar ainda
direcionar a abertura poltica, foram criadas condies para que os militares passassem a
responsabilidade do processo de transio para setores da sociedade civil que
compunham o bloco de sustentao do governo, garantindo a continuidade da autocracia
burguesa j que o pleno desenvolvimento do capitalismo monopolista estava realizado.A emergncia de movimentos sociais e de protestos populares na cidade e no
campo nesta etapa, era fator de preocupao para as classes hegemnicas levando-as a
compor este processo de transio dirigido pela ditadura militar. Entre 1983 e 1984,
foram muitas as greves desencadeadas no pas, a maioria em decorrncia da poltica de
61O cerco imprensa alternativa continuou.62 O bipartidarismo criado atravs do Ato Institucional n2, de 1965, pelo presidente Castelo Branco,
extinguiu os partidos polticos existentes e criou um partido da situao (ARENA) e um da oposio(MDB) para legitimar o governo militar sem que necessariamente o MDB fizesse oposio polticaefetiva ao governo.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
34/132
34
arrocho salarial, outras dada a reorganizao dos trabalhadores em seus sindicatos e o
processo de formao das centrais sindicais Central nica dos Trabalhadores (CUT) e
Central Geral dos Trabalhadores (CGT) 63.
A Campanha das Diretas J foi articulada em torno da proposta de emenda
constitucional por eleies presidenciais diretas apresentada pelo deputado federal
Dante de Oliveira (PMBD) em 02 de maro de 1983. Em junho daquele ano, foi
formada uma Frente Suprapartidria para promover a campanha em nvel nacional, mas
as Diretas-j s tomaram flego em janeiro de 1984, nos comcios realizados em
Curitiba e So Paulo. A Frente Suprapartidria aglutinava setores de oposio composto
por movimentos sociais das classes trabalhadoras e setores de oposio burguesa.
Alguns partidos polticos recm-criados, como o PMBD, haviam se fortalecido nas
eleies diretas para governadores ocorridas em 1982. A ascenso da oposio burguesa
aos governos de alguns estados reforou a disposio de representatividade
governamental de setores burgueses que se opunham poltica econmica empregada e
eram comprometidos com o fim da ditadura. Representantes destes partidos eleitos
aumentaram a bancada oposicionista no Congresso permitindo a ampliao de sua
autonomia diante do Executivo Federal.
Pretendendo participar da sucesso presidencial que se aproximava, muitos
partidos se dedicavam a costurar alianas, sob uma perspectiva de conciliao e
acomodao poltica. A campanha pelas diretas, ao mesmo tempo em que dava
visibilidade aos polticos entre as classes trabalhadoras e garantia a associao do
partido ao processo de retomada da democracia, por contar com a interveno de setores
e movimentos sociais antiautocrticos, feria a poltica conciliatria praticada. Muitos
partidos se viram obrigados a participar dos comcios, apesar de atuarem no sentido de
manter as reivindicaes apenas em relao s eleies diretas, respirando aliviados
quando a campanha foi derrotada e eles puderam retomar o processo de acomodao econciliao polticas em vista das eleies presidenciais.
Neste processo, aproveitando a imagem positiva criada na opinio pblica de
participao na campanha, num processo de consentimento com o governo, foi criada a
Aliana Democrtica ainda em 1984. Contando com quase a totalidade dos setores
governistas e da oposio burguesa em torno do PMDB, esta frente elegeu por via
63
Sobre a retomada do movimento sindical e social na dcada de 80, ver SADER, Eder. Quando NovosPersonagens Entraram em Cena: experincias, falas e lutas dos trabalhadores da Grande So Paulo(1970-80). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
35/132
35
indireta Tancredo Neves presidente em 1985, mantendo a institucionalidade autoritria
no governo e a tutela militar como condio de uma passagem tranqila para a forma
democrtica de Estado.
Como na derrocada do golpe militar de 1964, a mdia teve destacado papel na
campanha das Diretas-j. Desde o incio do processo de distenso poltica, a maior parte
da mdia apoiou a abertura dirigida pelo governo defendendo a transio de maneira
ordeira. De incio, era a imprensa escrita que dava mais destaque aos comcios, mas
com o crescimento das manifestaes, as redes de televiso tiveram que rever os
boicotes campanha, quando grande parte dos setores de oposio resolveram aderir 64.
Progressivamente, a cobertura da campanha crescia nos diferentes veculos de
comunicao nacionais e a Folha de S. Paulo foi o jornal da grande imprensa que com
mais nfase cobriu os eventos, ao ser o primeiro a declarar-se favorvel medida
quando publicou o editorial Por eleies diretas, em 27 de maro de 1983:
O xito da tese das eleies diretas ser to menos improvvel quantomais firme e abertamente ela seja sustentada pelos setores da opiniopblica que lhes so favorveis. (...) Na atual situao de gravesdificuldades econmicas e demandas sociais insatisfeitas, tal formade escolha se apresenta como a mais apta a estabelecer vnculosslidos e de confiana entre governos e sociedade.
Defendendo a superao da ditadura sob controle governamental como meio de
fortalecer os laos do contrato social, o jornal promoveu uma pesquisa em abril daquele
ano que confirmou ser este o caminho aprovado pela populao em relao s eleies
presidenciais. Dando continuidade promoo do movimento, publicou matrias e
editoriais em 1983 sobre as manifestaes, mas a ampla cobertura dada campanha pela
Folha de S. Paulo veio somente aps o comcio realizado em 25 de janeiro. A primeira
pgina do jornal do dia seguinte constantemente rememorada no imaginrio dacampanha: abaixo da manchete 300 mil nas ruas pelas diretas, uma grande foto da
Praa da S, no centro de So Paulo, tomada por manifestantes.
Deste momento em diante, vrias foram as iniciativas para promoo do
movimento. A Folha de S. Paulo passou a defender o uso da cor amarela, smbolo da
campanha. Em abril, a expresso Diretas-J fazia parte da cobertura exaustiva que o
64 Bernardo Kucinski, por exemplo, cita que A campanha pelas eleies diretas de 1984, o maior
movimento de massas ocorrido no Brasil desde os anos 60, foi ignorado pela TV Globo at o ltimominuto, quando a avalanche de adeses do campo liberal-conservador tornou o movimento quaseirresistvel e acabou por coloc-lo sob o controle das elites. KUSCINSKI, 1998, p. 30.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
36/132
36
jornal dava ao movimento, incluindo a publicao dos telefones de todos os
congressistas para que os eleitores pressionassem o voto a favor da emenda Dante de
Oliveira.
Quando a emenda foi rejeitada em 25 de abril de 1984, o jornal foi publicado
com uma tarja preta e trouxe o editorial Cai a emenda, ns no ao lado do placar da
votao do Congresso Nacional na primeira pgina. Chamando os congressistas de
fiapos de homens pblicos, fsseis da ditadura avaliava que:
Uma compacta minoria de maus parlamentares disse no vontadeque seu prprio povo soube expressar com transparncia, firmeza eordem. Nunca a sociedade brasileira se ergueu com tal vulto, nuncaum movimento se irradiou de modo to amplo nem o curso da
histria se apresentou assim palpitante e inconfundvel. Em poucosmeses a campanha pelas diretas-j dissolveu fronteiras de todo tipopara imantar o esprito dos brasileiros numa torrente serena,profunda, irrefrevel. Um povo sempre acusado de abulia e deinaptido para a vida pblica ofereceu, ante a surpresa deobservadores locais e estrangeiros, o espetculo de seu prpriotalento para se organizar e manifestar com responsabilidade, energiae imaginao. 65
O jornal clamava pela preservao da ordem, paz e tranqilidade em que
acredita ter ocorrido a campanha e elogiava a sociedade brasileira, em sua demonstrao
de responsabilidade na participao do movimento. Em sua avaliao, os diferentes
interesses polticos se uniram em torno de um objetivo que os parlamentares,
representantes do povo, no respeitaram, apesar da pacificidade do movimento e de uma
reivindicao exercida dentro dos limites da ordem. Esta defesa do jornal demonstra o
grau de importncia que era dado em seus editoriais s eleies diretas e s
reivindicaes populares atravs dos mecanismos de representao do Estado e em
respeito sua estrutura. Valdemar Gomes de Souza Jnior, analisando os editoriais da
Folha entre 1961 e 1963, concluiu que para a publicao:
Estas seriam as caractersticas fundamentais do processodemocrtico: a existncia e o funcionamento livre do sistemaeleitoral, por meio do qual haveria uma transferncia de poder dopovo para os homens e partidos que representassem suas aspiraes.As eleies funcionariam, assim, como um contrato, onde o povodetentor do poder transmitia ao destinatrio (o Parlamento) o poder-fazer, embora no renunciasse a ele, mas apenas abria mo de exerc-lo diretamente. Ao fazer esta transferncia de poder ocorreria umadelimitao e o estabelecimento de tarefas distintas para o povo e
65Cai a emenda, ns no. So Paulo: Folha de S. Paulo, 26/04/1984.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
37/132
37
para o governo. Ao primeiro caberia trabalhar ordeiramente eobedecer s decises emanadas do Estado, ao segundo o executar e odecidir. A cada um caberia executar o seu papel, determinadonaturalmente, de que deveria redundar o benefcio de todos.66
Apesar de referir-se ao perodo em que Joo Goulart presidia o Estado brasileiro,diversas passagens nos indicam que esta concepo foi mantida pela Folha de S. Paulo
no decorrer dos anos 1980, como a passagem que analisamos anteriormente. O projeto
editorial do jornal datado de 1986, por exemplo, esclarece que o jornal era a favor de
uma sociedade de mercado dotada de instituies polticas que possam viabilizar as
presses dos grupos excludos das vantagens do desenvolvimento 67.
Nas pesquisas que realizamos, compreendemos que para a Folha, a base de
sustentao da democracia o sistema eleitoral. O voto o mtodo primordial departicipao da sociedade civil no governo, atravs do qual elege seus representantes
que devem aplicar medidas visando minimizar as contradies sociais e assim os
conflitos entre classes. Os eleitores, quando no se sentem contemplados nas decises
do governo, devem utilizar os mecanismos democrticos para pression-lo, como
abaixo-assinados, moes, manifestaes pacficas ou atravs das prximas eleies.
No cabem, nesta tica, manifestaes que firam a ordem social burguesa ou que
atrasem o desenvolvimento econmico. Em 1996, a empresa publicou sua concepo,
que condiz com nossa anlise:
Do ponto de vista poltico, sustenta a democracia representativa, aeconomia de mercado, os direitos do homem e o debate dosproblemas sociais colocados pelo subdesenvolvimento. (...) Acreditaque a democracia se baseia no atendimento livre, diversificado eeficiente da demanda coletiva por informaes. 68
Concordando com a reivindicao de eleio presidencial direta a Folha, a partirde ento, passou a cumprir um papel importante enquanto veculo de informao para
setores da sociedade que passaram a v-la como porta-voz de seus interesses.
Encampando a luta destes setores numa clara estratgia de marketing, conseguiu tornar-
se a expresso daqueles que enxergavam o fracasso do regime militar e vislumbravam a
66SOUSA Jr. Valdemar Gomes de. Os Editoriais da Folha de S. Paulo (1963-1964): evidncia de umasoluo bonapartista para a crise poltica. Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Estudosde Ps-graduao em Histria da PUC-SP. So Paulo, 2007, pg. 139.67Projeto Folha. So Paulo: Folha de S. Paulo, 1986.68NOVO Manual da Redao. So Paulo: Folha de S. Paulo, 1996.
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
38/132
-
7/24/2019 Elaine Muniz Pires - Imprensa, ditadura e democracia.pdf
39/132
39
Inflando sua participao no processo como pioneira entre os meios de
comunicao na divulgao da campanha atendendo aos interesses de seus leitores, a
Folha desconsidera outras publicaes que resistiram censura prvia e que muito antes
defendiam o encerramento da ditadura, ao mesmo tempo em que reconhece que seu
engajamento foi uma medida tomada em consonncia com o projeto governamental.
Vrios estudiosos e jornalistas reconhecem o papel desempenhado por este
grupo de mdia, apesar de atriburem significados distintos para o processo. Ciro
Marcondes72, analisando a renovao da imagem do jornal, afirma que:
A posio da Folha no movimento das Diretas-J foi a de
organizadora em nvel macrossocial e de divulgao do processodirigido pelo Comit Suprapartidrio. Ocorre que nem o jornal nem ocomit imaginavam a forma explosiva com que tudo foi crescendo.(...) a Folha obteve os melhores lucros polticos (ideolgicos) eeconmicos. 73
O engajamento do jornal na campanha das diretas, tornou possvel para empresa
edificar uma imagem slida a partir da repercusso de seu envolvimento neste processo.
Octvio Frias de Oliveira, principal proprietrio do jornal nesta poca, considera que a
campanha das Diretas deu Folha uma imagem muito boa e que foi onde a Folharealmente nasceu como um grande jornal 74. Na avaliao do jornal: Esta Folha no
foi a primeira nem a nica a exigir diretas-j. Mas no mediu esforos, desde o incio,
para que a campanha se transformasse nesse grande festival de civilizao poltica que
vimos presenciando e estimulando 75. unnime a avaliao de que a emergncia da
Folha de S. Paulo como o maior jornal do pas em circulao em 1986, foi resultado das
reformulaes colocadas em prtica com o Projeto Folha e a defesa da Campanha das
Diretas J, aliadas consolidao do grupo enquanto conglomerado de mdia.A deciso de assumir o engajamento na campanha apontada como advinda da
proposta de Otvio Frias Filho, ento secretrio do Conselho Editorial do jornal, e do
texto