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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    ELAINE MUNIZ PIRES

    Imprensa, Ditadura e Democracia:

    A construo da auto-imagem dos jornais do Grupo Folha(1978/2004)

    MESTRADO EM HISTRIA

    SO PAULO

    2008

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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    ELAINE MUNIZ PIRES

    Imprensa, Ditadura e Democracia

    MESTRADO EM HISTRIA

    Dissertao apresentada Banca

    Examinadora da Pontifcia

    Universidade Catlica de So

    Paulo, como exigncia parcial para

    obteno do ttulo de MESTRE em

    Histria, sob a orientao da Prof

    Doutora Helosa de Farias Cruz.

    SO PAULO

    2008

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    BANCA EXAMINADORA

    _______________________________

    _______________________________

    _______________________________

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    s minhas irms Carol e Dboraque a duras penas ainda encontram

    sentido para a vida

    Ao Vinicius

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    AGRADECIMENTOS

    Este trabalho foi realizado sob condies to adversas que por muitasvezes pareceu que no se completaria. A finalizao da pesquisa e suaapresentao tm, para mim, um significado muito especial de superaoda dor pela continuidade da vida.

    Dentre as pessoas que o tornavam possvel, sem dvida, a professora

    Helosa de Farias Cruz, a principal protagonista. Agradeo pelacompreenso nos momentos difceis e pelo encaminhamento dado dissertao.

    Agradeo aos colegas do Banco de Dados de S. Paulo e ao gerenteCarlos Kauffmann pelo auxlio na pesquisa.

    A todos os amigos que contriburam no processo de produo dotexto, em especial, Antonio, Jacqueline, Daniel, Valdemar, Fbio Magoo,

    Shis, Clodoaldo, Tiago, Eder, Ceclia, Andrea e Fernando.

    professora Vera Lcia Vieira pelo auxlio na preparao do projetode mestrado e pelas contribuies valiosas em vrios momentos da

    pesquisa. Ao professor Marcos Antnio da Silva pela participao esugestes quando do exame de qualificao.

    Ao meu companheiro Sandro pelo apoio, amparo e carinho. minhafamlia e aos companheiros de militncia que compreenderam meu

    afastamento. Aos amigos Fbio e Mrcia, pelo apoio tecnolgico, pelorango da hora, pelo vinho e pelo papo agradvel.

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior,pelo financiamento da pesquisa.

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    RESUMO

    A presente dissertao busca contribuir para a compreenso da histria da

    imprensa brasileira na atualidade atravs do estudo da emergncia da Folha de S. Paulo

    como um dos mais importantes jornais da grande imprensa nacional. Nossa pesquisa se

    dirige ao estudo da consolidao empresarial do Grupo Folha, suas relaes com os

    governos militares e com a conjuntura das lutas contra a ditadura, pondo em foco adiscusso da construo de uma imagem de jornal democrtico e independente.

    A anlise volta-se para os anos 1980, quando o Grupo Folha resolveu investir na

    construo de uma imagem que trouxesse prestgio ao jornal e permitisse o sucesso

    comercial do empreendimento.

    O primeiro captulo explora a atuao da Folha de S. Paulo no processo de

    construo de sua imagem voltada defesa dos valores democrticos, sobretudo a partir

    de seu engajamento na Campanha pelas Diretas-j. O segundo aborda a continuidade

    desta trajetria nos anos 1980 e 1990, destacando as estratgias de marketing e as

    publicaes que rememoravam a participao da Folha no processo de transio da

    ditadura democracia, concomitantemente reformulao do jornal implementada a

    partir do projeto editorial e do Manual de Redao.

    Por ltimo, analisamos polmicas sobre o Grupo Folha e suas relaes com o

    regime civil-militar brasileiro trazidas tona por produes a partir de 1999.

    PALAVRAS-CHAVE: HISTRIA DA IMPRENSA, FOLHA DE SO PAULO,

    DITADURA MILITAR, IMPRENSA e PODER.

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    ABSTRACT

    The present dissertation aims to contribute for the understanding of the current

    Brazilian press history through the study of the process of the emergency of the

    newspaper Folha de S.Paulo as one of the most important newspapers of the Brazilian

    mass media. Our research studies the consolidation of Grupo Folha and its relations

    with military governments and with the historical juncture of the fight against the

    dictatorship, focusing the debate about the construction of the image of a democratic

    and independent newspaper.

    This study begins in the 80s, when Grupo Folha decided to invest in the

    construction of a image which could brought prestige to the newspaper and to achieve

    commercial success for the enterprise.

    The first chapter explores the performance of Folha de S.Paulo in the process of

    the construction of its image as a defender of democratic values, mainly from its

    engagement on the campaign for direct presidential elections, the Diretas-J campaign.

    The second chapter approaches the continuity of this trajectory in the 80s and 90s,

    emphasizing the marketing strategies and the publications that remember the

    engagement of Folha de S.Paulo in the transition from dictatorship to democracy,

    concomitantly to the reformulation of the newspaper implemented from its editorial

    project and manual of style.

    Finally, we analysed controversies over the relations of the Grupo Folha with the

    civil-military regime revealed by academic works since 1999.

    KEYWORDS: PRESS HISTORY, FOLHA DE S. PAULO, MILITARYDICTATOESHIP; PRESS AND POWER

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    SUMRIO

    Agradecimentos p. 5

    Resumo p. 6

    Abstract p. 7

    Apresentao p. 9

    Introduo p. 13

    Captulo I

    Construindo uma Imagem: o jornal das Diretas p. 32

    Captulo II

    Um Jornal de Rabo Preso com o leitor? p. 59

    Captulo III

    Imagem Questionada p. 87

    Concluso p. 120

    Fontes p. 124

    Bibliografia p. 128

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    APRESENTAO

    O falecimento de Octvio Frias de Oliveira, um dos bares da imprensa

    brasileira, em 29 de abril de 2007, aos 94 anos, marcou uma srie de debates sobre opapel da mdia na sociedade brasileira. A morte do proprietrio do jornal mais vendido

    do pas, a Folha de S. Paulo, seguiu-se a de Roberto Marinho em 2003, outro expoente

    do pequeno nmero de conglomerados que compem a poderosa mdia brasileira na

    atualidade.

    O Publisher1, Octvio Frias de Oliveira, foi aclamado como um dos responsveis

    pelo retorno da democracia ao pas na dcada de 1980 pela maioria das personalidades

    que lhe renderam homenagens. Alm de sees na Cmara e no Senado, o presidente da

    repblica Luiz Incio Lula da Silva afirmou que a Campanha das Diretas J no teria

    existido sem ele e que "todos ns ganhamos quando aprendemos as lies de

    democracia que foram deixadas pelo doutor Frias" 2. Eduardo Suplicy3reconheceu que

    "Frias canalizou os sentimentos to fortes de liberdade e democracia pelos quais a

    populao clamava no final da ditadura militar" 4.

    A imprensa estrangeira tambm ressaltou o papel desempenhado no processo de

    redemocratizao. A agncia internacional Associated Press (AP) afirmou que Frias

    "liderou a abertura da mdia" e que, durante o perodo militar "manteve sua

    independncia ao dar voz tanto a crticos quanto a simpatizantes da ditadura durante

    uma poca de crise nos direitos civis e na liberdade de expresso" 5.

    No material produzido sobre a morte do proprietrio era grande o destaque dado

    ao engajamento da empresa e do proprietrio falecido nos anos 80, enquanto que aos

    momentos em que se vivenciou uma ditadura poltica no Brasil, o espao curto relatava

    apenas as inovaes tcnicas implementadas no jornal Folha de S. Paulo. A notcia

    sobre o enterro afirma que sob seu comando, a Folha abriu suas pginas ao debate

    1No existe uma nica definio para o conceito. Nossas pesquisas mostraram que o termo utilizadopara cargos de diferentes funes nas revistas e jornais de pases de lngua inglesa, atribuindo aopublisher, em alguns casos, responsabilidade editorial e em outros apenas de circulao. No localizamoso significado do conceito para a empresa Folha da Manh. Octvio Frias de Oliveira ocupa esta posiodesde setembro de 1977, quando a Folha de S. Paulo foi ameaada de ser fechada pelo regime militar porter publicado uma coluna considerada ofensiva s Foras Armadas.2Pluralismo marca adeus a Octavio Frias de Oliveira. So Paulo: Folha de S. Paulo, 01/05/2007.3Eduardo Suplicy, em 2007, era senador pelo Partido dos Trabalhadores de So Paulo.4 Polticos elogiam atuao na retomada da democracia no pas. So Paulo: Folha de S. Paulo,

    06/05/2007.5Nota publicada em 30 de abril de 2007 pela Associated Press, citada pela matria da Folha Online domesmo dia intitulada: Octavio Frias de Oliveira liderou abertura da mdia no Brasil, diz AP.

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    democrtico e ao movimento que acabaria impondo a realizao de eleies livres e

    diretas no Brasil e o fim do regime militar (1964-1985) 6. Em 2001, quando o jornal

    comemorava os 80 anos de existncia, a chamada da matria que analisava as dcadas

    de 60 a 80, enfatizava que Folha apoiou o regime de 64, mas se engajou na

    redemocratizao nos anos 70 7.

    Esta postura de jornal democrtico e independente em processo de construo

    reforada constantemente no material publicitrio e em publicaes do Grupo Folha,

    como estratgia de marketing. A Folha de S. Paulo carrega a marca do Jornal das

    Diretas J, como o trunfo de um passado recente que colocou a publicao e o Grupo

    Folha entre os maiores conglomerados de mdia do pas.

    Porm, nem todas as lembranas que emergiram com a morte de Frias,

    enfatizam este aspecto pioneiro e to adequado aos interesses atuais de uma sociedade

    dita democrtica. H vozes dissonantes. E no so poucas. No dia 07 de maio de 2007,

    o jornalista Edgar Olmpio de Souza, publicou na Revista Meio & Mensagem o texto

    Nem to liberal assim sobre o Octvio Frias de Oliveira. Edgar lembrava crticas do

    tambm jornalista Mino Carta s posies da empresa, favorveis ao golpe de 1964:

    O liberal Frias teve, de fato, uma histria controversa em suasposies polticas. Logo ao comprar a Folha, teria feito do jornal

    um instrumento a servio da conspirao golpista. Estampavamanchetes sensacionalistas contra o perigo comunista e assinavaeditoriais contra a corrupo e a subverso. Na fase mais aguda daditadura militar, por exemplo, a Folha da Tarde, tambm do grupo,divulgava a morte de terroristas em emboscadas policiais quandoestes ainda estavam na priso. 8

    O box presente no obiturio de Frias rendeu a demisso do editor adjunto da

    revista, Constbile Nicoletta e uma greve na redao. Poucos dias depois, Hamilton

    Octvio de Souza, jornalista da Folha9entre 1983 e 1986 e Vasco Oscar Nunes, entre

    1970 a 1979, publicaram no portal Comunique-se e posteriormente no site do

    Observatrio da Imprensa, suas verses sobre o empresrio para no deixar que a

    histria seja reescrita conforme os interesses dos poderosos 10. Nunes considera que o

    6PLURALISMO..., 06/05/2007.7Tudo sobre a Folha. So Paulo: Folha de S. Paulo, 19/02/2001.8Nem to liberal assim. So Paulo: Revista Meio & Mensagem, 07/05/2007.9Nos escritos produzidos pela empresa e por estudiosos em geral, confunde-se a imagem do Grupo Folhacom a Folha de S. Paulo, na denominao nica de Folha. Utilizaremos em nosso trabalho a mesma

    referncia em algumas passagens, por entender que o principal jornal do grupo reflete as decises dosproprietrios e da empresa, assim como a auto-imagem em construo do conjunto.10Sobre Octvio Frias de Oliveira. Portal Comunique-se, 14/05/2007.

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    erro de Nicoletta foi ter feito um bom jornalismo e reitera as informaes contidas no

    box publicado. Rememorando sua experincia na redao, o jornalista cita entre outros

    exemplos, a censura praticada, os artigos publicados da TFP11, os agentes do Dops12que

    trabalharam na sede da empresa. E, assim define Frias:

    Frias era, como se diz, um come quieto, um por dentro, pobolorento, por fora bela viola..... Qualquer pessoa que o conhecesseo julgava uma tima pessoa. Cortez, gentil, amigvel, fala mansa, umdiplomata, um gentleman. Mas no recndito do seu egosmo era umditador. 13

    Trazendo tona novas lembranas, alguns custa de seu emprego, estes

    jornalistas mostram como sobre um mesmo acontecimento, diversas verdades podem

    ser produzidas a partir do olhar de quem vivencia, envolvendo sentimentos, vises,

    selees e interesses em sua reconstituio. Mas, mais do que isso, suas consideraes

    so importantes questionamentos sobre a constituio da auto-imagem do principal

    jornal do Grupo Folha, a Folha de S. Paulo, em que a figura do proprietrio apenas a

    parte mais recente deste processo.

    Motivados por este debate, desenvolvemos o trabalho sobre o processo de

    construo desta auto-imagem da Folha de S. Paulo a partir dos anos 80 e os

    argumentos que usam para legitim-la em resposta aos questionamentos emergidos

    atravs de anlises acadmicas no limiar dos anos 2000.

    No primeiro captulo exploramos a atuao da Folha de S. Paulo no processo de

    construo de sua imagem voltada defesa dos valores democrticos, sobretudo a partir

    de seu engajamento na Campanha pelas Diretas-j. Veremos que para cumprir este

    intento foi necessrio o resgate de uma tradio de jornal pluralista e independente dos

    governos, at ento pouco reivindicada pela empresa, e a elaborao de um projeto de

    jornal, que fixasse normas e estilos de produo da notcia.

    Em um segundo momento, discutimos como a auto-imagem da Folha continuou

    a ser reforada na dcada de 80 e 90 atravs de estratgias de marketing e de

    publicaes que rememoravam a participao da Folha na campanha das Diretas-J,

    concomitantemente reformulao do jornal implementada a partir do projeto editorial

    11Os artigos da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradio, Famlia e Propriedade, escritos por PlnioCorra de Oliveira, foram publicados na Folha de S. Paulo em 12 de maio de 1969 Tradio, 24 de abril

    de 1969 Famlia e em 02 de outubro de 1968 Propriedade.12O Departamento de Ordem Poltica e Social era um rgo repressivo do governo militar.13SOBRE..., 14/05/2007.

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    e do Manual de Redao. O novo perodo, inaugurado principalmente pelo diretor de

    redao Otvio Frias Filho a partir de 1984, foi marcado pela busca incessante de uma

    objetividade jornalstica e da execuo de tcnicas de produo da notcia identificadas

    com a lgica empresarial, em detrimento de uma cultura jornalstica em voga at o

    incio dos anos 80 e de um projeto editorial baseado em princpios democrticos

    proposto por Cludio Abramo. A adoo da centralizao do poder editorial nas mos

    do diretor de redao, apesar de contraditrio, foi responsvel pela continuidade da

    afirmao de uma imagem relacionada ao processo de redemocratizao, definida como

    estratgia de crescimento comercial.

    Por ltimo, analisamos um processo iniciado a partir de 1999 em que produes

    acadmicas trouxeram tona polmicas relacionadas ao Grupo Folha e suas relaes

    com o regime civil-militar brasileiro. A autocensura praticada pela Folha de S. Paulo, o

    apoio e participao no golpe militar de 1964, o papel conferido Folha da Tarde em

    relao represso e os contatos entre os proprietrios do jornal e os militares, pem em

    xeque a imagem construda de defesa democrtica. Para tanto, analisamos as produes

    institucionais a partir de 2001 que no s debatem os questionamentos emergidos, mas

    propem respostas e a assuno por parte da empresa de aspectos escusos de sua

    trajetria, trazendo-lhes significados que permitem a manuteno da imagem em

    constante construo de jornal democrtico para a Folha de S. Paulo e o grupo de que

    faz parte.

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    INTRODUO

    Tornarem-se senhores da memria e do esquecimento uma dasgrandes preocupaes das classes, dos grupos, dos indivduos que

    dominaram e dominam as sociedades histricas. Os esquecimentos eos silncios da histria so reveladores desses mecanismos demanipulao da memria coletiva. 14

    O presente trabalho nasceu do interesse de pesquisar a censura governamental

    imprensa durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), seus significados e como a

    Folha de S. Paulo respondeu a este sistema repressivo de controle das informaes. Em

    um estgio que realizei no Banco de Dados de S. Paulo, do Grupo Folha, tive contato

    com comunicados enviados pela Polcia Federal entre 1969 e 1972 para a empresa

    contendo proibies governamentais de temas a serem publicados que levavam os

    jornais a praticar a autocensura. Resolvi investig-los por perceber que a ditadura

    militar e, em especial, a participao da imprensa em sua promoo, so problemticas

    que ainda carecem de aprofundamento na historiografia nacional, apesar do fluxo

    crescente de produes neste sentido.

    Contudo, no processo da pesquisa, nos deparamos com aes promovidas pelo

    Grupo Folha visando rever sua atuao enquanto organismo de imprensa durante os

    governos militares. Cumprindo este propsito, presenciamos em setembro de 2006 uma

    palestra ministrada pelo diretor de redao Otvio Frias Filho da Folha de S. Paulo, a

    ttulo de treinamento profissional de jornalistas, e localizamos um documento de

    circulao interna produzido em 2004 sobre a temtica.

    No publicada at os dias atuais, a produo deste documento, intitulado O

    Regime Militar e a Folha15, reflete a necessidade de reconstruo de uma interpretao

    sobre a atuao da empresa durante a ditadura militar, como reflexo de um processo

    intensificado a partir de 1999, em que produes acadmicas e discusses pblicas em

    diversos espaos comearam a trazer ao debate pontos controversos sobre a memria

    dos jornais da empresa naquele perodo. A publicao de trabalhos como Censura,

    Imprensa e Estado Autoritrio16 de Maria Aparecida de Aquino naquele ano e, em

    2000 Um Acordo Forado17 de Anne-Marie Smith, apesar de no se debruarem

    14GOFF, Jacques Le. Histria e Memria. Campinas, SP: UNICAMP, 1990, p. 426.15PILAGALLO, Oscar. A Folha e o Regime Militar. So Paulo: Folha de S. Paulo, 15/09/2004.16

    AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa e Estado Autoritrio. So Paulo, EDUSC, 1999.17SMITH, Anne-Marie. Um Acordo Forado: o consentimento da imprensa a censura no Brasil.Rio deJaneiro, FGV, 2000.

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    especificamente sobre a Folha de S. Paulo, apontam o exerccio da autocensura no

    principal jornal do Grupo Folha durante o perodo de censura grande imprensa (1969-

    1975), fato que vai de encontro com a defesa da empresa, at ento em voga, de que o

    jornal resistiu censura. Em 2004, a publicao de Ces de Guarda: jornalistas e

    censores18de Beatriz Kushnir, que detalha as relaes da Folha da Tarde com o regime

    militar coroou este processo de questionamentos, que repercutiu num esforo interno da

    empresa de resgate e escrita de sua histria, buscando a continuidade da construo da

    auto-imagem da Folha de S. Paulo, relacionada defesa de eleies diretas em 1984.

    Ao nos depararmos com obras e entrevistas que apresentam diversos aspectos de

    uma mesma histria e interpretaes produzidas sobre o Grupo Folha durante a ditadura

    militar brasileira, percebemos a importncia da construo da imagem da Folha de S.

    Paulo a partir da dcada de 1980 e as implicaes que as disputas destas memrias

    poderiam trazer para a manuteno do prestgio e da vendagem de produtos, de onde

    deve surgir o interesse da empresa em tornar-se dona de sua histria. Estas questes,

    emergidas atravs da anlise das fontes e da pesquisa bibliogrfica, fizeram com que

    repensssemos a problemtica de nosso trabalho, que passou a investigar o processo em

    curso de construo da imagem do principal jornal do Grupo Folha, a Folha de S. Paulo

    a partir da dcada de 1980, e os questionamentos sobre a legitimidade de sua auto-

    imagem, preocupao da empresa nos anos 2000.

    Diante desta reorientao da pesquisa, a fonte principal de nosso trabalho se

    concentra nas produes da empresa associadas construo de seu passado e de sua

    auto-imagem, como as obras a Histria da Folha de S. Paulo19, de 1981, O Brasil em

    Sobressalto20, de 2002, Mil Dias21, de 1988 e o documento interno O Regime

    Militar e a Folha, de 2004. Para o enriquecimento desta perspectiva, tornou-se

    necessrio abordar tambm editoriais e reportagens que associam o jornal Campanha

    das Diretas-j, os documentos do Projeto Folha lanados entre 1978 e 1988 e peaspublicitrias lanadas entre os anos 80 e 90. Utilizamos ainda entrevistas publicadas dos

    18KUSHNIR, Beatriz. Ces de Guarda: jornalistas e censores, do AI-5 Constituio de 1988. SoPaulo, Boitempo, FAPESP, 2004.19MOTA, Carlos Guilherme, CAPELATO, Maria Helena. Histria da Folha de S. Paulo (1921-1981).So Paulo, IMPRES, 1981.20PILAGALLO, Oscar. O Brasil em Sobressalto: 80 anos de histria contados pela Folha.So Paulo,

    Publifolha, 2002.21SILVA, Carlos Eduardo Lins da. Mil Dias: os bastidores da revoluo em um grande jornal. So Paulo,Trajetria Cultural, 1988.

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    proprietrios e depoimentos orais coletados integrantes do Projeto Histria Oral 22, do

    Banco de Dados de S. Paulo, base da formulao do documento interno de 2004, na

    discusso de seu contedo.

    As obras que trazem os questionamentos sobre a auto-imagem construda da

    Folha de S. Paulo rebatidos nos escritos da empresa, so utilizadas frequentemente

    como suporte bibliogrfico de nossa pesquisa, j que so essenciais na compreenso dos

    debates promovidos. Entre elas Ces de Guarda: Jornalistas e Censores, de Beatriz

    Kushnir, Censura, Imprensa e Estado Autoritrio, de Maria Aparecida de Aquino, A

    Regra do Jogo23, de Cludio Abramo, 1964: A Conquista do Estado24, de Rene

    Dreifuss, Sndrome da Antena Parablica25, de Bernardo Kucinski, Folhas ao

    Vento26, de Gisela Taschner e Um Acordo Forado, de Anne Marie Smith.

    A evidncia da imagem que se quer da Folha de S. Paulo tem um significado

    particular na imprensa brasileira, dada a complexidade da histria da empresa marcada

    por diferentes proprietrios e defesas polticas diferenciadas. Os principais jornais do

    conglomerado, as Folhas como so conhecidas as publicaes Folha de S. Paulo,

    Folha da Tarde, Folha da Manh e Folha da Noite, em seus respectivos contextos, nunca

    gozaram de uma imagem pblica bem delineada. Suas imagens variaram no decorrer de

    suas trajetrias diferentemente de concorrentes, como O Estado de S. Paulo que h

    algum tempo possui uma imagem reconhecida de jornal conservador e liberal entre o

    pblico leitor. As mudanas nas linhas editoriais, as alteraes no comando da

    empresa, os lanamentos, relanamentos e a aquisio de diferentes publicaes, so

    alguns dos fatores que contriburam para a dificuldade encontrada na instituio de uma

    imagem para a empresa.

    O Grupo Folha formado atualmente pelos jornais Folha de S. Paulo e Agora

    So Paulo, pela empresa de acesso internet Universo Online (Uol), pela editora

    22 O Projeto Histria Oral tem como objetivo resgatar as memrias de jornalistas e do proprietrioOctvio Frias de Oliveira, sobre variados assuntos, como documentos passveis de interpretaes eprodues posteriores. As primeiras entrevistas foram colhidas entre 1995 e 1998 e tm como focoprincipal ex-jornalistas da empresa. O projeto conta ainda com uma longa entrevista de Octvio Frias deOliveira de maio de 1989 e o depoimento de Antonio Aggio Jnior em 2003, colhido especialmente paraelaborao do documento O Regime Militar e a Folha, escrito por Oscar Pilagallo em 2004.23ABRAMO, Cludio. A Regra do jogo : o jornalismo e a tica do marceneiro.So Paulo, Companhiadas Letras, 1988.24DREIFUSS, Ren Armand.1964: A Conquista do Estado.Petrpolis, Vozes, 198125KUCINSKI, Bernardo. Sndrome da Antena Parablica.tica no jornalismo brasileiro. So Paulo:

    Editora Perseu Abramo, 1998.26TASCHNER, Gisela. Folhas ao vento: anlise de um conglomerado jornalstico no Brasil. So Paulo,Paz e Terra, 1992.

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    Publifolha, a agncia de pesquisas Datafolha, alm de outras empresas grficas e de

    produo da notcia, como a Folhapress. Suas origens remontam 192127, quando do

    lanamento da Folha da Noite por Olival Costa, Pedro Cunha, Lo Vaz, Mariano Costa,

    Ricardo Figueiredo, Antonio dos Santos Figueiredo, e Artmio Figueiredo. Estes

    jornalistas, que trabalhavam no O Estado de S. Paulo, visando criar um jornal que

    atingisse pblicos leitores diferenciados, inauguraram uma publicao vespertina que

    dava nfase nas reportagens em detrimento de artigos, e que continha sees e

    linguagens diferenciadas. A Folha da Noite era voltada principalmente s classes

    mdias, procurando atingir tambm os trabalhadores assalariados. Tendo como um de

    seus colaboradores Jlio de Mesquita Filho (que escrevera inclusive o editorial de

    lanamento), os custos do jornal foram pagos pelo Estado de S. Paulo at que a

    empreitada mostrou sucesso financeiro.

    Em 1925, Pedro Cunha e Olival Costa28 lanaram a Folha da Manh, com

    apresentao e linguagem mais prxima da imprensa tradicional, concorrendo

    diretamente com O Estado de S. Paulo. Segundo os fundadores, as Folhas

    priorizavam uma linguagem simples e a independncia em relao a partidos, adotando

    o jornal opinies flexveis de acordo com as necessidades. Aps a sada de Pedro

    Cunha da sociedade em 1929, Olival Costa se posicionaria politicamente ao apoiar a

    candidatura de Jlio Prestes Presidncia, o que rendeu o empastelamento do jornal em

    outubro de 1930.

    As Folhas s voltariam a circular em janeiro de 1931, quando Octaviano Alves

    de Lima comprou a empresa, denominada agora Empresa Folha da Manh Ltda.

    Fazendeiro e comerciante de caf, os assuntos relativos agricultura e exportao do

    produto passaram a ser acompanhados de perto e o jornal abriu sucursais no interior. Ao

    defender a vocao agrria do pas e criticar as medidas governamentais voltadas

    industrializao, o pblico alvo deixaria de se constituir principalmente de setores daclasse mdia: o jornal voltava-se elite.

    Com o fim do Estado Novo e a volta democracia, o Brasil conheceu um

    acelerado processo de industrializao. Enterradas as esperanas dos setores agrrios na

    unificao dos interesses e sua defesa pelo estado, em 1945, Octaviano vendeu a

    Empresa Folha da Manh para Jos Nabantino Ramos, Clvis Queiroga e Alcides

    27O trecho de reconstituio histrica do Grupo Folha foi escrito baseado nas publicaes da empresa

    sobre sua trajetria, como o livro A Histria da Folha de S. Paulo de Carlos Guilherme Mota e MariaHelena Capelato.28Neste ano os dois jornalistas passaram a ser os nicos proprietrios.

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    Meirelles. Os novos proprietrios assumem as redaes pretendendo defender a

    democracia e manter imparcialidade em relao a partidos polticos. Em 1949, lanam

    mais uma publicao: a Folha da Tarde.

    Nabantino implementa um processo de reformulao e modernizao do jornal:

    estabelece critrios para a confeco da mensagem, inaugura em 1953 a sede prpria da

    empresa na Alameda Baro de Limeira, centro de So Paulo, e unifica as Folhas em

    1 de janeiro de 1960 na Folha de S. Paulo, que passa a ser a nica publicao da

    empresa. Passa a vigorar neste perodo, a concepo de neutralidade e objetividade

    jornalstica. Porm, o esforo expresso nestas remodelaes e a conjuntura econmica

    nacional no propiciam o sucesso financeiro da empresa, impelindo Nabantino a vend-

    la.

    Em agosto de 1962, tem incio o perodo fundamental para constituio do

    conglomerado. A Empresa Folha da Manh passa para o controle dos empresrios

    Octvio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho. Frias era proprietrio de empresas de

    variados ramos, como a Estao Rodoviria de So Paulo e a Transaco, especializada na

    venda de aes diretamente ao pblico, alm de ser um dos maiores granjeiros do pas.

    Caldeira tinha origens na construo civil.

    A historiografia produzida sobre o jornal unnime em afirmar que, pouco

    ntimos dos meios de comunicao, Frias e Caldeira investiram na reorganizao do

    empreendimento e no saneamento das dvidas. A modernizao tecnolgica

    considerada uma marca do perodo. Em 1967 introduzido o sistema de impresso

    offset em cores abandonando em 1971 a composio a chumbo e adotando o sistema

    eletrnico de fotocomposio. O sistema de distribuio, reorganizado por Caldeira,

    passou a ser feito atravs da montagem de uma frota prpria de carros, que garante a

    chegada pontual das publicaes s cidades do interior paulista.

    Dentro da estratgia de crescimento da empresa, os proprietrios adquiriramgrficas como a Cia. Lithographica Ypiranga, e os jornais ltima Hora e Notcias

    Populares, em 1965, lanaram no mesmo ano o Cidade de Santos e, em 1967,

    relanaram a Folha da Tarde. Um ano depois, assumiram a Fundao Csper Lbero,

    passando a controlar tambm o jornal Gazeta Mercantil. A publicao de diferentes

    jornais garantia, dentro desta lgica, atingir pblicos leitores distintos e

    conseqentemente a lucratividade da empresa.

    No entanto, as orientaes editoriais diferenciadas, que no podem serentendidas unicamente pelos objetivos comerciais do Grupo Folha, passavam uma

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    imagem para muitos jornalistas e analistas, de que havia uma ambigidade entre duas

    publicaes dentro de uma mesma empresa. Enquanto o principal jornal do grupo, a

    Folha de S. Paulo, no explicitava a defesa pelo regime militar em seu contedo, a

    Folha da Tarde fazia sua defesa deliberada. Para Perseu Abramo: era uma batida na

    ferradura e outra no cravo, uma pela direita e outra pela esquerda. A Folha fazendo um

    papel de defesa da liberdade democrtica e a Folha da Tarde, um rgo da represso 29.

    A maneira como reproduzia as informaes advindas dos rgos de represso e o fato

    de possuir jornalistas policiais, levaram a Folha da Tarde a ficar conhecida como o

    jornal de maior tiragem do pas, em aluso aos tiras que trabalhavam na redao, e

    dirio oficial da OBAN 30. H ainda outras acusaes que a empresa enfrenta sobre o

    perodo, como a ligao dos proprietrios com militares e governantes, o uso de carros

    por centros de tortura, a linha editorial adotada, a prtica da autocensura e os

    financiamentos concedidos pelo governo.

    Estas polmicas sobre a trajetria da empresa durante a ditadura militar,

    comearam a afetar a imagem do Grupo Folha nos anos 2000, quando publicaes

    demonstraram a preocupao de ajustar as contas com este passado contraditrio. At

    este perodo, apesar de j existirem questionamentos sobre a temtica31, a empresa se

    concentrou em promover uma reformulao editorial de seu jornal carro-chefe, a Folha

    de S. Paulo, e de investir no reforo de uma imagem democrtica para o jornal possvel

    a partir da ampla cobertura da campanha pelas Diretas-j em 1984. Esta imagem se

    confundia com a do grupo, enquanto que a atuao da Folha da Tarde durante a ditadura

    militar podia prejudicar os lucros e o crescimento de participao da empresa no

    mercado de comunicao nacional.

    A problemtica de nosso trabalho exige, portanto, a discusso sobre as

    motivaes e a prtica empreendida pelos governos militares no Brasil, entre 1964 e

    1985, os projetos de distenso e abertura poltica dos governos militares e osmovimentos sociais engajados na luta pela democracia, assim como a participao da

    imprensa neste contexto.

    O processo de levantamento historiogrfico sobre a ditadura militar e a

    imprensa, aprofundamento necessrio para a fundamentao de nosso trabalho, foi

    29ABRAMO, Perseu. Perseu Abramo: depoimento (28/08/1995). Entrevistador: Lzia Bydlowski. SoPaulo: Grupo Folha, 1995. Entrevista concedida ao Projeto Histria Oral em 28 de maio de 1995.30A Operao Bandeirante (OBAN) foi um centro de informaes, investigaes e torturas montado pelo

    Exrcito do Brasil em 1969.31Durante os anos 80, algumas publicaes j debatiam o papel desempenhado pela Folha de S. Paulodurante a ditadura militar e a campanha pelas Diretas-j, como veremos no decorrer do trabalho.

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    realizado tendo como base diversos estudosanalisados no decorrer da pesquisa. Alm

    dos livros utilizados para preparao do projeto de mestrado, escritos por Maria Helena

    Moreira Alves, Jacob Gorender, Moniz Bandeira, entre outros, buscamos obras que

    trouxessem mais perspectivas deste momento da histria brasileira.

    A leitura de artigos organizados no livro O Golpe e a Ditadura Militar: quarenta

    nos depois (1964-2004) 32foram importantes para entrarmos em contato com correntes

    historiogrficas e sociolgicas diversas que versam sobre o regime militar brasileiro. No

    captulo I 1964: Temporalidade e Interpretaes, Lucilia de Almeida Neves Delgado

    nos informa sobre interpretaes do golpe de 1964, de Octvio Ianni e Francisco de

    Oliveira a Moniz Bandeira e Rene Dreifuss. A autora apresenta tambm as anlises

    elaboradas por Florestan Fernandes e Caio Navarro de Toledo que, por aproximarem-se

    de nossa interpretao deste processo, foram leituras que resolvemos aprofundar.

    Para Florestan Fernandes, em A Revoluo Burguesa no Brasil 33, o ano de

    1964 apresentou-se como um momento de situao limite em que existia uma presso

    real de baixo para cima e uma iluso da possibilidade de revoluo socialista, resultado

    das presses polticas internas geradas pela emergncia dos movimentos de massa

    antiburgueses e do radicalismo burgus. Esta situao, somada ao crescimento da

    influncia externa sobre o desenvolvimento do capitalismo interno quando da ecloso

    do capitalismo monopolista, propiciou a solidariedade das classes e dos estratos de

    classe burgueses, at ento irreconciliveis em seus interesses. Contando com apoio do

    imperialismo internacional, a unio destes setores se fez com intuito de estabelecer uma

    contra-revoluo que mantivesse o domnio burgus do poder estatal atravs de uma

    nova ordem poltica baseada em processos considerados legtimos, como a manuteno

    da Constituio, e na violncia institucionalizada, defendendo o binmio

    desenvolvimento e segurana.

    A aparncia da ordem constituda precisava ruir para que se iniciasse outroprocesso em que o poder burgus e sua dominao assumissem sua verdadeira imagem.

    Era necessrio um excedente de poder pelo qual as classes pudessem acabar com as

    presses inconformistas pr-burguesas e as presses antiburguesas o que s poderia ser

    atingido na transferncia para setores militares de tarefas centrais do movimento

    autodefensivo e contra-revolucionrio. As prticas coercitivas a partir de ento

    32REIS, Daniel Aaro; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto S (orgs). O Golpe e a Ditadura

    Militar: quarenta nos depois (1964-2004). Bauru: Edusc, 2004.33FERNANDES, Florestan.A Revoluo Burguesa no Brasil: ensaio de interpretao sociolgica. Riode Janeiro: Zahar, 1975.

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    instaladas, baseadas na violncia institucionalizada para negar os direitos sociais e na

    existncia de uma ordem constitucional que s tem validade para autodefesa, so

    conceituadas como medidas adotadas por regimes polticos de traos fascistas por

    Florestan, em Poder e Contrapoder na Amrica Latina34.

    Para o autor, o fascismo latino-americano se caracteriza pela monopolizao de

    uma classe no poder estatal que investe em uma modalidade do totalitarismo de classe,

    para evitar e impedir a transio para o socialismo. Neste sentido, o fascismo se

    apresenta como uma contra-revoluo j que combate tanto a revoluo dentro da

    ordem (quando o processo de democratizao impede uma superconcentrao do poder)

    como a revoluo socialista. Nestes regimes admitido o terror ocasional ou

    sistemtico, o controle da comunicao de massa, o estabelecimento de eleies rituais e

    parlamentos simblicos, a neutralizao das oposies atravs da opresso, o controle

    total da economia, da educao e do movimento operrio.

    Seguindo este raciocnio, alguns autores aprofundaram a anlise para o caso

    especfico brasileiro. Antonio Rago Filho, em sua tese de doutoramento A Ideologia de

    64 e os Gestores do Capital Atrfico 35, concordando com as caractersticas e anlises

    apresentadas por Florestan Fernandes citadas resumidamente acima, acredita que, em

    1964, teria se estabelecido uma contra-revoluo de domnio autocrtico da burguesia

    exercido de modo indireto pelo conjunto desta classe atravs das armas, subjugando ou

    castrando os poderes legislativo e judicirio. Rago, baseando-se em Jos Chasin,

    Luciano Martins e Ricardo Antunes, acredita que estas sejam formas de natureza

    bonapartista, j que a estrutura da dominao burguesa foi montada sob um executivo

    absolutizado, forte e ditatorial.

    O conceito de bonapartismo foi elaborado por Karl Marx na obra O Dezoito

    Brumrio de Luiz Bonaparte36, anlise do golpe de estado de 1848 na Frana. A partir

    deste momento histrico, Marx prope que o bonapartismo ocorre quando os militareschegam ao poder e o governam visando assegurar os interesses da burguesia e o

    refreamento dos avanos sociais atravs da violncia. Incapacitada de manter seu poder

    atravs da forma democrtica de estado, a burguesia opta por fazer alianas com foras

    reacionrias e no com setores das classes trabalhadoras, conciliando-se assim, com as

    foras armadas que passam a exercer o poder poltico.

    34FERNANDES, Florestan. Poder e Contrapoder na Amrica Latina.Rio de Janeiro: Zahar, 1981.35

    RAGO Filho, Antonio. A Ideologia de 64 e os Gestores do Capital Atrfico. So Paulo: Tese deDoutoramento, Departamento de Histria da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, 1988.36MARX, Karl. O Dezoito Brumrio de Luis Bonaparte. So Paulo: Centauro, 2004.

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    Antonio Carlos Mazzeo37define bonapartismo como uma forma de governo que

    surge do carter contra-revolucionrio da burguesia visando estabilizar e consolidar sua

    dominao enquanto classe dominante. Intitulando-se imparcial, o Estado bonapartista

    apresenta autonomia e neutralidade em relao s classes ao fazer defesas em nome do

    bem comum ou dos interesses da nao. Buscando manter a ordem, salvar e fortalecer o

    capitalismo e impedir que a dominao burguesa e o controle sobre o Estado nacional se

    deteriorem, a burguesia levada a aes polticas profundamente reacionrias propensas

    a formas abertas de ditadura de classe.

    David Maciel38 admite que desde seu nascimento, no final do sculo XIX, o

    estado burgus brasileiro assumiu carter autocrtico, oscilando entre a forma

    democrtico-liberal e ditatorial. Para ele, mesmo nos perodos em que predominaram

    mecanismos democrtico-representativos, o estado atuou como uma ditadura

    dissimulada num processo em que a poltica se limitava s classes burguesas enquanto

    as classes subalternas eram cooptadas politicamente.

    Maciel afirma que o auge da autocracia burguesa no Brasil foi a ditadura militar

    instalada em 1964, parteira do capitalismo monopolista e promotora da expanso

    mxima da ordem social burguesa. Entre 1964 e 1974, se consolidou um novo pacto de

    poder necessrio reestruturao capitalista, num movimento auto-defensivo gerado por

    uma situao de crise de hegemonia burguesa. O gerenciamento do estado foi passado

    aos militares com intuito de reprimir as classes subalternas e impedir que as

    contradies interburguesas ameaassem a unidade da burguesia.

    Diante destas anlises, inclinamos-nos a entender a ditadura militar colocada em

    prtica no Brasil entre 1964 e 1985, como uma forma bonapartista de autocracia

    burguesa em que, preocupada com a continuao de sua dominao poltica, a burguesia

    procura unir os estratos conflitantes em torno de um nico objetivo: a autodefesa de

    seus interesses. No entendemos que existisse uma ameaa real de tomada do aparelhodo Estado pelas classes trabalhadoras. Para ns, os setores burgueses se uniram neste

    contexto sobretudo diante das presses sociais emergidas no governo de Joo Goulart,

    reflexo de projetos sociais antagnicos implementados, e da resistncia de setores

    proprietrios associados ao imperialismo internacional relacionadas aprovao das

    reformas de base.

    37MAZZEO, Antonio Carlos. Estado e Burguesia no Brasil: Origens da Autocracia Burguesa. So

    Paulo: Cortez, 1997.38MACIEL, David. A Argamassa da Ordem: da ditadura militar Nova Repblica (1974-1985). SoPaulo: Xam, 2004.

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    Preocupados em manter sua dominao poltica e econmica, os setores

    proprietrios precisavam unir-se em torno de um ideal comum para seu fortalecimento e

    para a continuidade do desenvolvimento capitalista. Este consenso necessrio s seria

    possvel atravs de uma aparente ruptura com a ordem vigente e com a execuo de um

    governo que intensificasse a opresso e a represso visando o esvaziamento do poder de

    reao das classes dominadas e de setores divergentes da burguesia. O elo forte desta

    cadeia seria representado pelas Foras Armadas que dariam uma nova face ao poder

    poltico burgus aparentando uma ruptura com o modelo anterior, mas continuando a

    servir aos interesses burgueses indiretamente de maneira ditatorial, repressiva e

    opressiva.

    Em relao atuao da imprensa nos antecedentes de 1964, identificamos sua

    participao como um dos sustentculos na conspirao do golpe e para a manuteno

    do regime militar. A maioria dos veculos de comunicao emitia editoriais e

    reportagens apontando o perigo vermelho no pas, alm de participar de encontros

    para promoo do movimento. Dada a concepo adotada, vemos esta relao como

    fruto da unio dos setores da burguesia, em que est includa a grande imprensa. Para

    ns, os veculos de comunicao de propriedade burguesa decidiram promover o golpe

    militar e legitimar os governos constitudos aps 1964 por verem atendidos seus

    interesses capitalistas e de manuteno de classe no poder.

    Diversas leituras corroboram esta anlise de participao ativa da imprensa no

    golpe militar. Entre elas, podemos citar a obra de Rodrigo Patto S Motta, Em guarda

    contra o perigo vermelho39 que, ao detalhar a atuao de diversos movimentos

    anticomunistas no Brasil, analisa o papel da imprensa em organismos golpistas, como o

    IPES (Instituto de Pesquisas Econmicas e Sociais) e o IBAD (Instituto Brasileiro de

    Ao Democrtica).Rene Dreifuss tambm traz informaes importantes neste sentido

    em 1964: A Conquista do Estado40. Estas anlises serviram como contextualizaoda atuao da imprensa no processo inicial da ditadura sem, no entanto, aprofundarem-

    se no perodo que mais no interessa, situado no processo de trmino da ditadura a partir

    dos anos 70 e durante as movimentaes a favor de eleies presidenciais diretas no

    decorrer da dcada de 80.

    39

    MOTTA, Rodrigo Patto S. Em Guarda Contra o Perigo Vermelho: o anticomunismo no Brasil(1917-1964). So Paulo: Editora Perspectiva: Fapesp, 2002.40DREIFUSS, 1981.

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    Nesse sentido, a leitura do livro A Argamassa da Ordem41de David Maciel,

    foi essencial para a compreenso da problemtica. Nesta obra, o autor tem como

    objetivo entender o processo de redemocratizao brasileiro realizado por uma

    perspectiva poltica autoritria burguesa que, ao invs de estabelecer uma democracia

    popular, viabilizou a recomposio entre diversas fraes de classes dominantes num

    projeto repressivo e autoritrio, mesmo diante do acirramento das contradies sociais e

    da luta de classes. Maciel detalha nesta perspectiva o projeto distensionista do

    presidente Ernesto Geisel decorrente do acirramento das contradies interburguesas no

    seio do bloco no poder geradas quando da crise do milagre econmico e a passagem da

    distenso para a abertura no governo Figueiredo, como uma passagem gradual da

    responsabilidade do retorno da democracia para os setores burgueses e as manifestaes

    populares que surgiram.

    A anlise apresentada nos permitiu compreender como a grande imprensa

    participou deste processo em consonncia com os projetos governamentais,

    aproveitando-se das manifestaes sociais para sua autopromoo. Eder Sader, por sua

    vez, permitiu que amplissemos nossa anlise deste processo, focando a participao de

    outros personagens, atravs da compreenso da reorganizao do movimento sindical e

    popular e seu papel nas movimentaes pelo fim da ditadura.

    J Bernardo Kucinski, em seus artigos publicados na obra Sndrome da Antena

    Parablica42, nos trouxe a experincia da imprensa alternativa durante a ditadura e no

    seu fim, assim como confirmou a colaborao da grande imprensa com os governos

    militares. No entanto, o autor mostrou-se ainda mais importante em nosso estudo por

    seus textos analisarem vrias problemticas que debatemos, como a autocensura, a

    funo da imprensa na eleio e queda do presidente Fernando Collor de Mello entre

    1989 e 1992 e, os objetivos, causas e conseqncias do Projeto Folha no interior da

    redao da Folha de S. Paulo e nos meios de comunicao nacionais. Kucinski discute

    ainda os mecanismos de funcionamento da imprensa, a censura privada de informaes

    j internalizada pelos jornalistas e os conglomerados jornalsticos brasileiros.

    Estudar temas relacionados imprensa requer a compreenso de qual sua funo

    social, condies materiais e imateriais de existncia, quais so os sujeitos e interesses

    envolvidos em sua produo. Muitas vezes, as pesquisas histricas utilizam a imprensa

    como fonte de informao, como se o contedo publicado, fosse uma verdade

    41MACIEL, 2004.42KUCINSKI, 1998.

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    inquestionvel ou uma mentira irrecupervel. Enquanto historiadores, quer seja a mdia

    nosso objeto principal de pesquisa ou no, devemos analisar seu contedo criticamente

    lembrando a correlao de foras que representa, os interesses embutidos na sua

    formao, o carter mercadolgico que assumiu com o passar do tempo. Devemos

    entender como os jornais narram e olham os acontecimentos, priorizando certas verses

    de fatos em detrimento de outras. Qual a lgica, o funcionamento, a ideologia que a

    orienta, quais interesses defende, quais olhares promove. Para tanto, construmos nosso

    entendimento sobre a formao, o funcionamento e o papel da imprensa atravs de

    leituras realizadas que passam desde Jrgen Habermas a jornalistas contemporneos

    como Jos Arbex Jr.

    H vrios debates sobre o papel que a imprensa cumpre. A leitura da obra So

    Paulo em Papel e Tinta: Periodismo e Vida Urbana 1890-191543, de Helosa de Farias

    Cruz, iniciou nossos debates sobre as relaes entre imprensa e histria. Neste livro,

    nossa orientadora utiliza a imprensa como fonte fundamental, associada s memrias e

    relatos da poca na busca de apreender a popularizao da cultura letrada na So Paulo

    do fim XIX, incio do sculo XX. Compreendendo estas alteraes na difuso das

    publicaes no como um processo de massificao como manipulao, mas

    identificando as hegemonias e os conflitos presentes na sua construo, Helosa

    acompanha a diversificao e expanso da imprensa paulista num contexto de expanso

    do mercado e das relaes mercantis que acabaram por redefinir a cultura letrada. Esta

    anlise nos mostrou que as demandas colocadas pelo mundo das mercadorias, passaram

    a moldar os contedos e formas de dizer da imprensa tanto que, nos anos 20, a

    propaganda j se tornava elemento essencial no s de sustentao financeira, mas

    tambm da prpria conformao editorial de um peridico de sucesso, sinalizando as

    origens dos processos de constituio da imprensa como um meio de comunicao de

    massa no Brasil.Sobre este processo de massificao da imprensa foi fundamental a leitura de

    Martin-Barbeiro44. O autor analisa a questo com profundidade e a discute sob

    diferentes vertentes este processo que no de mo nica, mltiplo e envolve no

    apenas seduo popular, mas a participao ativa da populao. Leo Serva por sua vez,

    43CRUZ, Heloisa de Faria. So Paulo em Papel e Tinta. Periodismo e Vida Urbana 1890-1915. So

    Paulo, EDUC/FAPESP, 2000.44MARTIN-BARBERO, Jess. Dos Meios s Mediaes:Comunicao, Cultura e Hegemonia. Rio deJaneiro, Editora UFRJ, 1997.

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    em Informao e Desinformao45, debate como a imprensa nos dias atuais, atrelada

    interesses econmicos e polticos, seleciona e cataloga os fatos atribuindo-lhes

    importncia e prioridades, ao mesmo tempo em que no se aprofunda sobre seus

    significados mais profundos, no busca contextualiz-los e acaba por apresentar ao

    leitor uma grande quantidade de informaes esvaziadas de contedo, que no podem

    ser compreendidas em apenas uma leitura e geram saturao no pblico leitor. Ao

    informar em quantidade e sem qualidade, no informam efetivamente e geram a

    necessidade de autoreproduo diria da mercadoria notcia, que traz sustentabilidade

    empresa jornalstica.

    Sobre o funcionamento da imprensa, sua escrita, seus mtodos, seus recortes, sua

    histria, foram valorosas as consideraes de Robert Darnton46, sem as quais ficaria

    extremamente difcil contextualizar o material jornalstico e entender seu processo de

    produo e constituio. A leitura de Showrnalismo47, de Jos Arbex Jr., tambm

    auxiliou na discusso levantada por outros autores sobre a pretenso dos veculos de

    comunicao de transmitir a verdade dos fatos. O jornalista traz tona esta problemtica

    atravs de sua experincia profissional ao ressaltar o contraste que ocorria entre a

    imagem dos fatos adquirida por ele e a forma como o jornal a traduzia ao leitor, quando

    era correspondente internacional da Folha de S. Paulo.

    Estas anlises foram importantes na medida em que confirmamos que o discurso

    dos jornais de anunciar de maneira clara e objetiva os acontecimentos como se fosse

    mera reproduo da realidade, imparcialmente, no passa de um pretenso ideal. Na

    simples anunciao de uma notcia, a imprensa imprime valores e ideais, pessoais, da

    empresa, do governo ou do mercado. A organizao do texto, as imagens escolhidas, as

    palavras utilizadas, carregam sempre uma viso dos fatos, interesses que esto em jogo.

    Jrgen Habermas, no livro Mudanas Estruturais na Esfera Pblica48, mostra

    como esta suposta neutralidade da mdia na narrao dos fatos faz parte do processo emque a imprensa aparece com papel fundamental na constituio e na afirmao da Esfera

    Pblica Burguesa. Discutindo as transformaes que o meio jornalstico passou desde

    seu aparecimento, o autor aponta como, diferentemente daquelas primeiras publicaes

    surgidas com o advento da Revoluo Francesa, voltadas para um pblico determinado

    45SERVA, Joo. Jornalismo e Desinformao. So Paulo: Editora Senac, 2001.46DARNTON, Robert e ROCHE, Daniel. A Revoluo Imprensa :A Imprensa na Frana, 1775-1800.So Paulo, EDUSP, 1996 e O Beijo de Lamourette. So Paulo, Companhia das Letras, 1990.47

    ARBEX JR, Jos. Showrnalismo: A Notcia Como Espetculo. So Paulo, Casa Amarela, 2002.48HABERMAS, Jurgen. Mudana Estrutural da Esfera Pblica. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,1984.

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    e com caractersticas marcadamente polticas deste pblico, hoje a imprensa se pretende

    imparcial num espao em que as diferenas sociais so negadas, em que todos em

    princpio podem participar. Isto se deve em parte ao fato da imprensa poder assumir o

    carter de uma empresa comercial e seus lucros, com o estabelecimento do Estado

    burgus de direito. Se de incio, este carter econmico assumido por algumas

    publicaes considerado condenvel, aos poucos a necessidade de gerar lucros se

    torna inevitvel para os grandes editores.

    Ciro Marcondes Filho, em O Capital da Notcia49 e Imprensa e

    Capitalismo50, tambm se preocupa com o poder da notcia na sociedade capitalista em

    que vivemos. Como os fatos, transformados em notcia e da em mercadoria, so

    mutilados ou embelezados para serem vendidos, como so submetidos a padronizaes,

    simplificaes, generalizaes, como so apresentados sem contradies ao lado de

    matrias sem maior significncia. Fatos/notcias/mercadorias so confundidos em meio

    de anncios que permitem a existncia do jornal enquanto empresa e que refletem

    ideologias e usos polticos governamentais e da imprensa.

    Marcondes ressalta que a existncia democrtica que a mdia procura representar

    no passa de ideologia, no se sustenta diante de uma economia de mercado que visa o

    lucro, vez que as adequaes da mercadoria notcia necessidade de venda

    impossibilitam a prtica de uma imprensa que abra espao para diversos setores

    populares se posicionarem. Os interesses econmicos ditam a censura privada dos

    jornais para que as notcias no prejudiquem os interesses imediatos dos proprietrios,

    anunciantes e da estrutura do Estado, que deve garantir o funcionamento do sistema

    econmico. Nesse sentido, para o autor, no h um atrelamento direto da imprensa ao

    Estado, mas sim da imprensa ao capital que, em alguns momentos, convergir ou no

    com as medidas promovidas pelo governo constitudo sem, no entanto, colocar-se

    contra o Estado capitalista. Em Jornalismo Fin-de-sicle51, Marcondes aponta que istoocorre dada uma suposta funo de poder moderador dada a imprensa que, por

    interesses de natureza econmica e aspiraes prprias, questiona tanto as polticas

    governamentais quanto posies adotadas pela populao em alguns momentos.

    Estas leituras do funcionamento da imprensa na sociedade capitalista atual,

    como se deram as transformaes em sua constituio, a padronizao da notcia atravs

    49

    MARCONDES FILHO, Ciro. O Capital da Notcia.So Paulo, Editora tica, 1989.50Idem, Imprensa e Capitalismo.So Paulo, Kairs, 1984.51Idem, Jornalismo fin-de-sicle.So Paulo: Editora Pgina Aberta, 1993.

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    das agncias de notcias e, principalmente, o carter empresarial atrelado ao capital

    adquirido cada vez com mais efetividade que influencia os interesses salvaguardados na

    produo da notcia, trouxeram contribuio na nossa compreenso no somente da

    maneira como se constitui e articula a imprensa hoje, mas sua importncia na sociedade

    capitalista. Ao mesmo tempo em que informa e forma a opinio de setores da

    populao, a imprensa responsvel pela ampliao e divulgao do consumo e pela

    manuteno de classes sociais no poder governamental.

    Ao definir nossa compreenso do papel da imprensa durante a ditadura militar

    brasileira e ao repensar nossa problemtica, percebemos que era urgente a discusso

    sobre a memria coletiva e seus significados, j que a construo e sustentao da auto-

    imagem da Folha de S. Paulo passa por um processo constante de edificao e reviso

    da histria da empresa e de seus proprietrios. Em nosso trabalho, analisamos que o

    Grupo Folha tem demonstrado de forma cada vez mais intensa o interesse em se tornar

    senhor de sua memria na construo e reforo de sua imagem democrtica. Alm das

    publicaes que fez evidenciando a defesa do processo de redemocratizao do pas,

    quando da morte de Octvio Frias de Oliveira, a empresa investe desde a dcada de 80

    em obras sobre sua trajetria e relevncia enquanto grupo de mdia.

    Jacques Le Goff, em Histria e Memria52, discute como a memria no se

    constitui simplesmente da propriedade de conservar certas informaes, mas

    compreende processos sociais de releitura e constante resignificao de experincias e

    informaes passadas por indivduos, grupos e classes sociais. um exerccio de

    releitura feito no presente de eventos e sentidos selecionados coletivamente ou

    marcantes na memria individual que trazem a marca da experincia vivenciada, do

    impacto causado, da importncia atribuda.

    Para o autor, a anlise coletiva de uma experincia pode dar sentido a algumas

    memrias individuais ou de grupos e silenciar outras. Este processo ocorre, no sdevido forma como as lembranas so rememoradas, mas tambm diante das

    ausncias nas narrativas que evidenciam as selees e valorizaes das experincias

    vividas ou o esforo proposital do esquecimento, na tentativa de fortalecer os elos das

    informaes fornecidas e esconder fatos que no so considerados importantes pelo

    interlocutor. Na memria coletiva as ausncias possuem um significado ainda mais

    importante j que so constitudas por um conjunto de interpretaes compartilhadas

    52GOFF, 1990.

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    por um grande nmero de pessoas. O domnio da rememorao e do esquecimento,

    neste caso, um mecanismo de manipulao da tradio e da identidade individual e

    coletiva. Geralmente h a predominncia da memria produzida pelas classes que detm

    o poder poltico ou econmico, atravs do Estado ou de outras esferas do poder.

    Esta anlise que Le Goff prope reflete para ns, como uma disputa da memria,

    em que algumas verdades so ressaltadas enquanto outras so esquecidas, oculta

    intenes de foras hegemnicas que conspiram na afirmao de interesses, valores e

    prticas na busca de legitimao e dominao. Criam-se falsos consensos e

    determinaes histricas reforando projetos polticos e culturais de classes e grupos no

    poder. Na medida em que as intenes so alteradas ou tm predominncia de outros

    agentes sociais, os consensos podem ser modificados e outras verdades podem emergir.

    Os sentidos negligenciados em certos perodos no so apagados, podendo ser

    retomados pelas circunstncias histricas, por sujeitos histricos diversos e atravs do

    trabalho historiogrfico.

    Sobre esta questo, Pierre Nora53 debate o uso da memria no trabalho do

    historiador. Para o autor, a memria tornou-se objeto da histria e por ela reivindicada

    no discurso histrico. Assim, a memria considerada imprescindvel para

    reconstituio do passado, individual ou coletivo, tanto nos processos institucionais

    quanto nas anlises acadmicas. O autor contrape-se a Maurice Halbwachs que, em

    1925, opunha memria coletiva e histrica por compreender a histria apenas como

    sntese de grandes acontecimentos de uma nao, distinta das percepes de indivduos

    e grupos. Para ele, a memria s passava a fazer parte da histria, quando os grupos que

    as lembravam deixar de existir ou de rememor-la. Nora, diante do desenvolvimento de

    concepes historiogrficas menos restritas a fatos e datas, identifica o uso cada vez

    mais intenso da memria no ofcio do historiador.

    Apesar de discordarmos desta proposio de Halbwachs e concordarmos comNora, para ns, a leitura da obra A Memria Coletiva54deste autor, foi extremamente

    importante, no que tange ao debate sobre como a interseco entre identidades coletivas

    e a histria. Para Halbwachs, cada memria individual um ponto de vista para a

    memria coletiva, a constituindo assim no refazer constante do passado atravs de

    idias do presente. A memria individual existe sempre na memria coletiva, j que

    53NORA, Pierre. Entre Memria e Histria: a problemtica dos lugares, In: Projeto Histria. So

    Paulo: PUC, n. 10, pp. 07-28, dezembro de 1993.54HALBWACHS, Maurice. A Memria Coletiva. So Paulo: Vrtice, Editoria Revista dos Tribunais,1990.

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    criada no interior de um grupo e muitos sentimentos que acreditamos ser puramente

    nossos, formam criados coletivamente. Assim, a identidade que acreditamos formar

    sozinhos de ns mesmos resultado da memria coletiva de que fazemos parte, assim

    como a memria coletiva tambm carrega nossos valores e resignificaes.

    Marilena Chau, na introduo da tese de doutoramento de Ecla Bosi, publicada

    em livro posteriormente sob o ttulo Memria e Sociedade55, ressalta como a autora,

    ao analisar a memria de velhos, debate este aspecto decorrente dos entrelaamentos

    entre memria individual e memria coletiva. Chau reconhece em alguns depoimentos

    a incorporao da histria oficial, num processo que pretende roubar o sentido da

    memria individual e aprofundar esteretipos necessrios manuteno da ideologia

    dominante e esclarece como ainda permanecerem significados pessoais para as

    experincias coletivas. Esta leitura serve como um alerta de um lado para o impacto do

    monoplio da histria oficial e, por outro, para as significaes pessoais das

    experincias e sua existncia que revela sentidos diferentes, mas no menos

    verdadeiros, de uma mesma histria.

    Este aspecto transparece em nossa anlise, quando anlises acadmicas se

    aprofundam em memrias do jornal, que contradizem a verso oficial de sua trajetria e

    que, se durante anos foram negligenciadas, nos anos 2000, emergem com tal impacto,

    que ameaam a imagem em construo da Folha de S. Paulo atravs de seu passado por

    um lado mas, por outro, integram a identidade em construo do jornal na medida que a

    fazem repensar e resignificar sua trajetria.

    Sobre esta questo, Bronislaw Baczko56, esclarece que os sistemas simblicos

    so construdos atravs da experincia dos agentes sociais, mas tambm atravs de seus

    desejos, aspiraes e motivaes, ou seja, baseia-se tambm em objetivos claros que

    nortearam o discurso construdo sobre o passado rememorado. Baczko estuda como

    para garantir a dominao simblica, qualquer esfera do poder procura desempenhar umpapel privilegiado na emisso dos discursos que veiculam os imaginrios sociais,

    procuram control-los para manter a dominao e o prestgio alcanado. E os meios de

    comunicao de massa so elementos centrais neste processo, no s pelo alcance de

    uma gama representativa de pessoas, mas pelo fato de manipularem suas caractersticas,

    atravs da seleo, hierarquizao e dos interesses que envolvem.

    55CHAU, Marilena. Introduo. In:BOSI, Ecla. Memria e Sociedade: lembranas de velhos.So

    Paulo: Companhia das Letras, 1994.56 BACZKO, Bronislaw. Imaginao social. In: ROMANO, Ruggiero (org.). Enciclopdia Einaudi.Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1985. v. 5.

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    No mesmo sentido Eric Hobsbawn, na introduo do livro A Inveno das

    Tradies57, aponta como muitas vezes o passado institucionalizado diverge da

    memria popular conservada sobre ele. Isto acontece porque na busca de legitimao de

    formas de sociabilizao, atravs de valores ou normas de comportamento, tradies so

    inventadas tendo como suporte acontecimentos histricos reais ou artificiais

    reconstrudos de maneira a dar sustentao a imagem que ser passada atravs da

    imposio da repetio. Hobsbawn nos indica assim, apesar de seu estudo dirigir-se

    mais s prticas relacionadas constituio e manuteno das naes e nacionalismos,

    um processo em que as tradies propagadas so inventadas tendo como suporte um

    passado institucionalizado para este fim, que acaba por inculcar valores ou tornar

    possvel o estabelecimento e manuteno de organismos pblicos e privados nas

    sociedades atuais, como tradies a serem conservadas.

    Em relao ao Grupo Folha, nossa anlise demonstra como a constituio de

    uma imagem para o jornal Folha de S. Paulo foi possvel dada sua associao com um

    passado lido atravs das produes institucionais produzidas conscientemente a partir

    da dcada de 80 pela empresa, diversamente s memrias conservadas sobre a empresa

    durante o regime militar e o seu fim vivenciada por jornalistas e funcionrios do jornal,

    que tornaram-se pblicas atravs de obras acadmicas mais recentemente. Desse modo,

    no poderemos deixar de lado em nossa anlise o sentido histrico das memrias

    institucionais que analisaremos. Os interesses e valores que carregam, os lugares de que

    foram rememorados, a experincia vivenciada, os esquecimentos, as memrias

    contraditrias que a questionam. O objetivo da pesquisa histrica que tem como

    problema a memria institucional apreender os esforos empreendidos na busca de

    instituir como hegemnicas identidades.

    No incio dos anos 80, a historiografia produzida sobre as Folhas procurou

    mostrar quanto empresa sofrera durante o regime militar. Nos dias atuais, diante dasvozes dspares emergidas nos ltimos anos, o Grupo Folha rev sua participao. Nosso

    objetivo investigar as representaes que os proprietrios fazem do jornal, como

    procuram compor uma imagem nica e os argumentos que utilizam para legitim-la, no

    mesmo processo em que outras imagens so colocadas mostra.

    Entender como publicaes de modesta repercusso em meados dos anos 60 que

    colaboraram com o golpe militar, praticaram a autocensura e deram voz represso

    57HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence (orgs.). A Inveno das Tradies. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1984.

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    poltica, se tornam smbolos do processo de redemocratizao, indicam o poder das

    empresas capitalistas na seduo do consumidor e as contradies da histria

    institucional na memria coletiva por um lado, mas por outro, traa caminhos de

    reflexo de como a sociedade brasileira lidou com os participantes e apoiadores do

    regime militar. Ao mesmo tempo em que ainda so eleitos alguns polticos a cargos

    pblicos enquanto so expurgados outros representantes deste processo, no parecem

    ntidas para a maior parte da sociedade as articulaes de poder no expressas apenas na

    figura de governantes, mas de amplos setores da sociedade de que a participao foi

    necessria para a sustentao de uma ordem poltica ditatorial. Ajuda-nos a rememorar

    acontecimentos e posturas e a reconhecer na atualidade as permanncias e rupturas de

    processos polticos ditatoriais que no podem ser silenciados. Auxilia, tambm, no

    preenchimento de lacunas que refletem a dificuldade de parte da sociedade em

    identificar e assumir feridas abertas que se sente responsvel por ter produzido.

    Lembrando Daniel Aaro Reis58, doloroso para a sociedade brasileira dita democrtica

    compreender como participou de uma ditadura que institucionalizou a tortura como

    prtica de conteno das oposies. Esta dificuldade gera a contradio de poucos

    personagens assumirem que colaboraram, a maioria hoje reconstri sua histria

    tentando provar que resistiu.

    58REIS, RIDENTI e MOTTA, 2004.

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    CAPTULO I

    CONSTRUINDO UMA IMAGEM: O JORNAL DAS DIRETAS

    A Folha de S. Paulo nunca gozou, diante da opinio pblica, de umaidentidade poltica definida. (...) Com a perspectiva das Diretas J, aFolha entrou no movimento, aps uma curta indeciso, para dele saircomo o jornal dos novos tempos. 59

    1984 um marco na histria do jornal Folha de S. Paulo. Naquele ano, a

    campanha pelas eleies diretas para presidente da Repblica, aglutinou milhes de

    pessoas nas principais capitais do pas60. As Diretas-J, como ficou conhecido este

    movimento, contava com a participao de diversas organizaes da sociedade civil, de

    partidos polticos, centrais sindicais e movimentos sociais. As motivaes que levaram

    estes diversos personagens a participar da campanha eram distintas e por vezes

    conflitantes, a defesa de eleies presidenciais diretas era o nico ponto consensual. A

    Folha foi o meio de comunicao brasileiro que deu mais nfase s manifestaes e que

    utilizou a ampla cobertura dada para construo de uma auto-imagem para o jornal.

    A reivindicao por eleies diretas fazia parte do contexto de transio da

    ditadura militar para a democracia finalizado em 1989. Este processo teve incio com a

    crise econmica vivida a partir de 1973, quando era visvel no s o considerveldesenvolvimento do capitalismo monopolista no Brasil do final da dcada de 60, como

    tambm suas conseqncias: aumento da desigualdade social e da concentrao de

    renda e o xodo rural. A dependncia externa ficou evidente quando a crise

    internacional do petrleo gerou a diminuio das exportaes brasileiras, a alta dos

    juros da dvida externa, o aumento da inflao e o colapso da produo agrcola. Neste

    contexto, o descontentamento com o governo cresceu entre as classes trabalhadoras que

    sentiam os efeitos diretos da crise na queda do poder de compra causado pela inflao,rebaixamento do salrio mnimo, xodo rural e desemprego.

    A crise no padro de acumulao capitalista gerou disputas tambm entre os

    setores burgueses que sustentavam e compunham o bloco do poder. A dificuldade em

    unificar estes setores podia trazer conseqncias considerveis manuteno dos

    governos militares e, sobretudo, questionamentos sobre a origem autocrtica do poder

    59MARCONDES, Ciro. A Folha e as Diretas-J. So Paulo: Revista Novo Leia, jan 85, ano 8, n 75, p.

    16 e 17.60No comcio realizado em So Paulo no dia 16 de abril de 1984, participaram cerca de 1,7 milhes depessoas.

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    se permitisse a mobilizao das classes trabalhadoras. Neste contexto, o presidente

    Ernesto Geisel lanou em 1974 o projeto de distenso poltica lenta, segura e gradual

    sob a direo do governo militar. Este projeto previa o alargamento progressivo da

    representao poltica visando passivizar os conflitos sociais e acomodar a pluralizao

    dos interesses burgueses evitando assim a ruptura no bloco do poder. Uma das primeiras

    medidas neste sentido foi a diminuio da represso e da vigilncia aos organismos

    burgueses da sociedade civil, como o fim da censura grande imprensa61. O Legislativo

    recuperou parte de suas atribuies e as eleies foram valorizadas como instrumentos

    de legitimao da ordem. O descontentamento popular, ainda tmido, foi expresso quase

    que exclusivamente atravs do voto de protesto, quando o partido de oposio62, o

    Movimento Democrtico Brasileiro (MDB), recebeu votaes massivas em 1978.

    A poltica de distenso de Geisel foi continuada pelo presidente Joo Baptista

    Figueiredo sob o termo de abertura poltica, a partir de 1979. O acirramento gradual das

    contradies do bloco no poder, causado pela crise econmica, e a emergncia de

    protestos populares, aprofundaram a crise poltica vivenciada, e levaram o governo a

    realizar reformas institucionais para conteno dos conflitos nos marcos da ordem,

    como a reestruturao partidria, em 1979 e 1980, a promoo de eleies diretas para

    governadores de estados em 1982, o fim do AI-5 e a anistia poltica em 1979. No

    entanto, este processo no rompeu com a perspectiva autoritria do governo militar. O

    Executivo continuou com ascendncia legal sobre o Legislativo e Judicirio, e os

    aparatos repressivos e de informao adquiriam novas funes, mas no foram

    desmontados nem desativados. Paulatinamente, apesar do governo militar ainda

    direcionar a abertura poltica, foram criadas condies para que os militares passassem a

    responsabilidade do processo de transio para setores da sociedade civil que

    compunham o bloco de sustentao do governo, garantindo a continuidade da autocracia

    burguesa j que o pleno desenvolvimento do capitalismo monopolista estava realizado.A emergncia de movimentos sociais e de protestos populares na cidade e no

    campo nesta etapa, era fator de preocupao para as classes hegemnicas levando-as a

    compor este processo de transio dirigido pela ditadura militar. Entre 1983 e 1984,

    foram muitas as greves desencadeadas no pas, a maioria em decorrncia da poltica de

    61O cerco imprensa alternativa continuou.62 O bipartidarismo criado atravs do Ato Institucional n2, de 1965, pelo presidente Castelo Branco,

    extinguiu os partidos polticos existentes e criou um partido da situao (ARENA) e um da oposio(MDB) para legitimar o governo militar sem que necessariamente o MDB fizesse oposio polticaefetiva ao governo.

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    arrocho salarial, outras dada a reorganizao dos trabalhadores em seus sindicatos e o

    processo de formao das centrais sindicais Central nica dos Trabalhadores (CUT) e

    Central Geral dos Trabalhadores (CGT) 63.

    A Campanha das Diretas J foi articulada em torno da proposta de emenda

    constitucional por eleies presidenciais diretas apresentada pelo deputado federal

    Dante de Oliveira (PMBD) em 02 de maro de 1983. Em junho daquele ano, foi

    formada uma Frente Suprapartidria para promover a campanha em nvel nacional, mas

    as Diretas-j s tomaram flego em janeiro de 1984, nos comcios realizados em

    Curitiba e So Paulo. A Frente Suprapartidria aglutinava setores de oposio composto

    por movimentos sociais das classes trabalhadoras e setores de oposio burguesa.

    Alguns partidos polticos recm-criados, como o PMBD, haviam se fortalecido nas

    eleies diretas para governadores ocorridas em 1982. A ascenso da oposio burguesa

    aos governos de alguns estados reforou a disposio de representatividade

    governamental de setores burgueses que se opunham poltica econmica empregada e

    eram comprometidos com o fim da ditadura. Representantes destes partidos eleitos

    aumentaram a bancada oposicionista no Congresso permitindo a ampliao de sua

    autonomia diante do Executivo Federal.

    Pretendendo participar da sucesso presidencial que se aproximava, muitos

    partidos se dedicavam a costurar alianas, sob uma perspectiva de conciliao e

    acomodao poltica. A campanha pelas diretas, ao mesmo tempo em que dava

    visibilidade aos polticos entre as classes trabalhadoras e garantia a associao do

    partido ao processo de retomada da democracia, por contar com a interveno de setores

    e movimentos sociais antiautocrticos, feria a poltica conciliatria praticada. Muitos

    partidos se viram obrigados a participar dos comcios, apesar de atuarem no sentido de

    manter as reivindicaes apenas em relao s eleies diretas, respirando aliviados

    quando a campanha foi derrotada e eles puderam retomar o processo de acomodao econciliao polticas em vista das eleies presidenciais.

    Neste processo, aproveitando a imagem positiva criada na opinio pblica de

    participao na campanha, num processo de consentimento com o governo, foi criada a

    Aliana Democrtica ainda em 1984. Contando com quase a totalidade dos setores

    governistas e da oposio burguesa em torno do PMDB, esta frente elegeu por via

    63

    Sobre a retomada do movimento sindical e social na dcada de 80, ver SADER, Eder. Quando NovosPersonagens Entraram em Cena: experincias, falas e lutas dos trabalhadores da Grande So Paulo(1970-80). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

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    indireta Tancredo Neves presidente em 1985, mantendo a institucionalidade autoritria

    no governo e a tutela militar como condio de uma passagem tranqila para a forma

    democrtica de Estado.

    Como na derrocada do golpe militar de 1964, a mdia teve destacado papel na

    campanha das Diretas-j. Desde o incio do processo de distenso poltica, a maior parte

    da mdia apoiou a abertura dirigida pelo governo defendendo a transio de maneira

    ordeira. De incio, era a imprensa escrita que dava mais destaque aos comcios, mas

    com o crescimento das manifestaes, as redes de televiso tiveram que rever os

    boicotes campanha, quando grande parte dos setores de oposio resolveram aderir 64.

    Progressivamente, a cobertura da campanha crescia nos diferentes veculos de

    comunicao nacionais e a Folha de S. Paulo foi o jornal da grande imprensa que com

    mais nfase cobriu os eventos, ao ser o primeiro a declarar-se favorvel medida

    quando publicou o editorial Por eleies diretas, em 27 de maro de 1983:

    O xito da tese das eleies diretas ser to menos improvvel quantomais firme e abertamente ela seja sustentada pelos setores da opiniopblica que lhes so favorveis. (...) Na atual situao de gravesdificuldades econmicas e demandas sociais insatisfeitas, tal formade escolha se apresenta como a mais apta a estabelecer vnculosslidos e de confiana entre governos e sociedade.

    Defendendo a superao da ditadura sob controle governamental como meio de

    fortalecer os laos do contrato social, o jornal promoveu uma pesquisa em abril daquele

    ano que confirmou ser este o caminho aprovado pela populao em relao s eleies

    presidenciais. Dando continuidade promoo do movimento, publicou matrias e

    editoriais em 1983 sobre as manifestaes, mas a ampla cobertura dada campanha pela

    Folha de S. Paulo veio somente aps o comcio realizado em 25 de janeiro. A primeira

    pgina do jornal do dia seguinte constantemente rememorada no imaginrio dacampanha: abaixo da manchete 300 mil nas ruas pelas diretas, uma grande foto da

    Praa da S, no centro de So Paulo, tomada por manifestantes.

    Deste momento em diante, vrias foram as iniciativas para promoo do

    movimento. A Folha de S. Paulo passou a defender o uso da cor amarela, smbolo da

    campanha. Em abril, a expresso Diretas-J fazia parte da cobertura exaustiva que o

    64 Bernardo Kucinski, por exemplo, cita que A campanha pelas eleies diretas de 1984, o maior

    movimento de massas ocorrido no Brasil desde os anos 60, foi ignorado pela TV Globo at o ltimominuto, quando a avalanche de adeses do campo liberal-conservador tornou o movimento quaseirresistvel e acabou por coloc-lo sob o controle das elites. KUSCINSKI, 1998, p. 30.

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    jornal dava ao movimento, incluindo a publicao dos telefones de todos os

    congressistas para que os eleitores pressionassem o voto a favor da emenda Dante de

    Oliveira.

    Quando a emenda foi rejeitada em 25 de abril de 1984, o jornal foi publicado

    com uma tarja preta e trouxe o editorial Cai a emenda, ns no ao lado do placar da

    votao do Congresso Nacional na primeira pgina. Chamando os congressistas de

    fiapos de homens pblicos, fsseis da ditadura avaliava que:

    Uma compacta minoria de maus parlamentares disse no vontadeque seu prprio povo soube expressar com transparncia, firmeza eordem. Nunca a sociedade brasileira se ergueu com tal vulto, nuncaum movimento se irradiou de modo to amplo nem o curso da

    histria se apresentou assim palpitante e inconfundvel. Em poucosmeses a campanha pelas diretas-j dissolveu fronteiras de todo tipopara imantar o esprito dos brasileiros numa torrente serena,profunda, irrefrevel. Um povo sempre acusado de abulia e deinaptido para a vida pblica ofereceu, ante a surpresa deobservadores locais e estrangeiros, o espetculo de seu prpriotalento para se organizar e manifestar com responsabilidade, energiae imaginao. 65

    O jornal clamava pela preservao da ordem, paz e tranqilidade em que

    acredita ter ocorrido a campanha e elogiava a sociedade brasileira, em sua demonstrao

    de responsabilidade na participao do movimento. Em sua avaliao, os diferentes

    interesses polticos se uniram em torno de um objetivo que os parlamentares,

    representantes do povo, no respeitaram, apesar da pacificidade do movimento e de uma

    reivindicao exercida dentro dos limites da ordem. Esta defesa do jornal demonstra o

    grau de importncia que era dado em seus editoriais s eleies diretas e s

    reivindicaes populares atravs dos mecanismos de representao do Estado e em

    respeito sua estrutura. Valdemar Gomes de Souza Jnior, analisando os editoriais da

    Folha entre 1961 e 1963, concluiu que para a publicao:

    Estas seriam as caractersticas fundamentais do processodemocrtico: a existncia e o funcionamento livre do sistemaeleitoral, por meio do qual haveria uma transferncia de poder dopovo para os homens e partidos que representassem suas aspiraes.As eleies funcionariam, assim, como um contrato, onde o povodetentor do poder transmitia ao destinatrio (o Parlamento) o poder-fazer, embora no renunciasse a ele, mas apenas abria mo de exerc-lo diretamente. Ao fazer esta transferncia de poder ocorreria umadelimitao e o estabelecimento de tarefas distintas para o povo e

    65Cai a emenda, ns no. So Paulo: Folha de S. Paulo, 26/04/1984.

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    para o governo. Ao primeiro caberia trabalhar ordeiramente eobedecer s decises emanadas do Estado, ao segundo o executar e odecidir. A cada um caberia executar o seu papel, determinadonaturalmente, de que deveria redundar o benefcio de todos.66

    Apesar de referir-se ao perodo em que Joo Goulart presidia o Estado brasileiro,diversas passagens nos indicam que esta concepo foi mantida pela Folha de S. Paulo

    no decorrer dos anos 1980, como a passagem que analisamos anteriormente. O projeto

    editorial do jornal datado de 1986, por exemplo, esclarece que o jornal era a favor de

    uma sociedade de mercado dotada de instituies polticas que possam viabilizar as

    presses dos grupos excludos das vantagens do desenvolvimento 67.

    Nas pesquisas que realizamos, compreendemos que para a Folha, a base de

    sustentao da democracia o sistema eleitoral. O voto o mtodo primordial departicipao da sociedade civil no governo, atravs do qual elege seus representantes

    que devem aplicar medidas visando minimizar as contradies sociais e assim os

    conflitos entre classes. Os eleitores, quando no se sentem contemplados nas decises

    do governo, devem utilizar os mecanismos democrticos para pression-lo, como

    abaixo-assinados, moes, manifestaes pacficas ou atravs das prximas eleies.

    No cabem, nesta tica, manifestaes que firam a ordem social burguesa ou que

    atrasem o desenvolvimento econmico. Em 1996, a empresa publicou sua concepo,

    que condiz com nossa anlise:

    Do ponto de vista poltico, sustenta a democracia representativa, aeconomia de mercado, os direitos do homem e o debate dosproblemas sociais colocados pelo subdesenvolvimento. (...) Acreditaque a democracia se baseia no atendimento livre, diversificado eeficiente da demanda coletiva por informaes. 68

    Concordando com a reivindicao de eleio presidencial direta a Folha, a partirde ento, passou a cumprir um papel importante enquanto veculo de informao para

    setores da sociedade que passaram a v-la como porta-voz de seus interesses.

    Encampando a luta destes setores numa clara estratgia de marketing, conseguiu tornar-

    se a expresso daqueles que enxergavam o fracasso do regime militar e vislumbravam a

    66SOUSA Jr. Valdemar Gomes de. Os Editoriais da Folha de S. Paulo (1963-1964): evidncia de umasoluo bonapartista para a crise poltica. Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Estudosde Ps-graduao em Histria da PUC-SP. So Paulo, 2007, pg. 139.67Projeto Folha. So Paulo: Folha de S. Paulo, 1986.68NOVO Manual da Redao. So Paulo: Folha de S. Paulo, 1996.

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    Inflando sua participao no processo como pioneira entre os meios de

    comunicao na divulgao da campanha atendendo aos interesses de seus leitores, a

    Folha desconsidera outras publicaes que resistiram censura prvia e que muito antes

    defendiam o encerramento da ditadura, ao mesmo tempo em que reconhece que seu

    engajamento foi uma medida tomada em consonncia com o projeto governamental.

    Vrios estudiosos e jornalistas reconhecem o papel desempenhado por este

    grupo de mdia, apesar de atriburem significados distintos para o processo. Ciro

    Marcondes72, analisando a renovao da imagem do jornal, afirma que:

    A posio da Folha no movimento das Diretas-J foi a de

    organizadora em nvel macrossocial e de divulgao do processodirigido pelo Comit Suprapartidrio. Ocorre que nem o jornal nem ocomit imaginavam a forma explosiva com que tudo foi crescendo.(...) a Folha obteve os melhores lucros polticos (ideolgicos) eeconmicos. 73

    O engajamento do jornal na campanha das diretas, tornou possvel para empresa

    edificar uma imagem slida a partir da repercusso de seu envolvimento neste processo.

    Octvio Frias de Oliveira, principal proprietrio do jornal nesta poca, considera que a

    campanha das Diretas deu Folha uma imagem muito boa e que foi onde a Folharealmente nasceu como um grande jornal 74. Na avaliao do jornal: Esta Folha no

    foi a primeira nem a nica a exigir diretas-j. Mas no mediu esforos, desde o incio,

    para que a campanha se transformasse nesse grande festival de civilizao poltica que

    vimos presenciando e estimulando 75. unnime a avaliao de que a emergncia da

    Folha de S. Paulo como o maior jornal do pas em circulao em 1986, foi resultado das

    reformulaes colocadas em prtica com o Projeto Folha e a defesa da Campanha das

    Diretas J, aliadas consolidao do grupo enquanto conglomerado de mdia.A deciso de assumir o engajamento na campanha apontada como advinda da

    proposta de Otvio Frias Filho, ento secretrio do Conselho Editorial do jornal, e do

    texto